OK Figuras Femininas Nos Labirintos Das Cidades
OK Figuras Femininas Nos Labirintos Das Cidades
OK Figuras Femininas Nos Labirintos Das Cidades
87 f. : il.
___________________________________________________
Professora Doutora Rosana Maria Ribeiro Patrício / UEFS
(Orientadora)
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Professora Doutora Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz / UEFS
(Membro)
____________________________________________________
Professor Doutor Carlos Magalhães / UNEB
(Membro)
Em 20 de junho de 2011.
Feira de Santana – BA
Junho de 2011
E a história humana não se desenrola apenas nos
campos de batalhas e nos gabinetes presidenciais.
Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas
e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos,
nos prostíbulos, nos colégios, nas usinas, nos
namoros de esquinas.
Disso eu quis fazer a minha poesia. Dessa matéria
humilde e humilhada, dessa vida injusta e
injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição
à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta
consigo as pessoas e as coisas que não têm voz.
Ferreira Gullar
Dedico a todos que acreditaram em mim, e
acreditando, partilharam comigo desse sonho.
Também, àqueles que nunca acreditaram como
prova de que consegui realizá-lo.
AGRADECIMENTOS
Também àqueles que sempre me ampararam nas angústias e me felicitaram nas alegrias:
minha família e meus amigos. Deles veio o apoio incondicional que me fez crer, em
todos os momentos, que era possível seguir. Prefiro evitar nomes, pois sempre há de
faltar algum, mas é impossível não citar ao menos três: Aislan, Andrigo e Luiza.
Esclareço que a ordem aqui colocada é meramente alfabética.
Por fim, aos demais professores e aos meus colegas, especialmente José Rosa e Thomaz
Heverton, que caminharam mais perto de mim nessa jornada.
Obrigada!
SUMÁRIO
1 – INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 09
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 83
RESUMO
Essa dissertação apresenta o exame das representações das figuras femininas do romance A
Hora da estrela, de Clarice Lispector, nos labirintos da cidade do Rio de Janeiro, trazendo uma
abordagem acerca do modo como essas mulheres se deslocam na grande metrópole e como a
experiência urbana interfere nas ações das personagens. O texto ficcional é analisado
considerando-se as suas relações com a sociedade que representa, levando-se em conta as
questões que envolvem a presença da mulher na cena social da vida na cidade, questões estas
que são problematizadas na ficção lispectoriana. Assim sendo, elementos externos da vida na
metrópole são incorporados à cena ficcional de A Hora da estrela, narrativa que retrata a
experiência urbana em forma de um binômio de dupla implicação: a cidade é ao mesmo tempo
polo de atração e de repúdio, paradoxalmente uma utopia e um inferno. Nesta obra a autora
realiza uma denúncia social acerca da condição da migrante nordestina Macabéa na grande
metrópole, trazendo à tona o retrato de uma sociedade cruel e indiferente. Apresenta-nos,
também, outras figuras femininas como Glória e Madama Carlota, mulheres que percorrem os
labirintos da cidade e neles vão tecendo os acontecimentos de suas vidas. Tal narrativa se
compõe, portanto, de imagens da ruína das relações humanas perante o monstruoso progresso
da tecnologia e dos ideais da produtividade do sistema capitalista, nos mostrando que o processo
de modernização gerou megalópoles problemáticas, em crise, atravessadas pela violência, pela
desestabilização de valores, pela lógica da exclusão e pela perda de laços comunitários.
A urbe escrita e descrita na obra em análise nos mostra o olhar de Lispector sobre a
cidade do Rio de Janeiro. A autora delineia tal metrópole enquanto espaço físico e mito
cultural, símbolo da modernidade, cenário de eterna mudança e de constante busca,
ícone complexo que exprime, ao mesmo tempo, uma tensão entre os labirintos e
emaranhados dos espaços geográficos e o enleado de existências e relações humanas,
tecidas numa rede dentro da qual se pode traçar múltiplos percursos e extrair conclusões
plurais.
Essa relação entre literatura e cidade tornou-se mais evidente na modernidade, momento
em que o urbano foi transformado pela Revolução Industrial e se apresenta como um
fenômeno novo, com um dimensionamento para a produção de bens de consumo e o
acúmulo de capital. Deste modo, sob o signo do progresso, alteram-se não só o perfil do
espaço urbano, mas também as relações com o humano e o conjunto de experiências de
seus habitantes. A cidade da multidão apressada passa a ser não só cenário, mas sim,
personagem de muitas narrativas e de muitos poemas. Dentro dessa perspectiva, a
literatura encontra na cidade um ambiente fértil para seus temas, nestes retrata uma
multidão cada vez mais numerosa, carros em alta velocidade e em uma metrópole em
eterna reconstrução, sintetizada com a palavra modernidade. Assim sendo, conforme diz
Sandra Pesavento (2002, p. 9), “[...] a cidade não é simplesmente um fato, um dado
colocado pela concretude da vida, mas, como objeto de análise e tema de reflexão, ela é
construída como desafio e, como tal, objeto de questionamento.” Neste sentido, indagar
sobre as representações da cidade na cena escrita construída pela literatura significa
considerar a cidade como um discurso. É preciso, então, ler textos que leem a cidade,
considerando não só os aspectos físicos e geográficos, mas também, os dados culturais
mais específicos, os costumes, os tipos humanos e toda a simbologia em que se cruzam
o imaginário, a história e a memória da cidade. É, enfim, olhar a metrópole através do
olhar dos autores e poetas. Sandra Pesavento endossa tais assertivas ao dizer que:
[...] sobre tal cidade, ou em tal cidade, se exercita o olhar literário, que
sonha, reconstrói a materialidade da pedra sob a forma de um texto. O
escritor, como expectador privilegiado do social, exerce a sua
sensibilidade para criar uma cidade do pensamento, traduzida em
palavras e figurações mentais imagéticas do espaço urbano e de seus
atores. (PESAVENTO, 2002, p. 10)
Por meio dessa leitura da cidade, reconhecemos que a literatura tem sido um importante
veículo de representação das mais variadas sociedades ao longo dos tempos, seu caráter
verossímil permite aos autores o registro da realidade de um dado momento, bem como,
pode, também, antecipar tendências e preconizar mudanças. É sabido, pois, que a
sociedade sempre serviu de inspiração para escritores e poetas, deste modo, não
podemos analisar uma obra literária sem levarmos em conta o tempo e o espaço em que
ela foi concebida. O meio, portanto, em que o escritor, artista da palavra, se encontra
será sempre algo que influenciará suas ideias e, consequentemente, sua obra. Por outro
lado, o leitor também é influenciado pelo que lê, a literatura, assim como os meios de
comunicação, serve, também, como formadora de opinião. Essa advém do pacto
ficcional firmado entre leitor e escritor, principalmente a respeito do caráter verossímil
ao qual nos referimos acima. O leitor sabe que a literatura não é a verdade, tampouco a
não-verdade, é o espaço no qual a verdade é posta em jogo. O enunciado fictício é
recebido exatamente pelo que é: nem verdade nem mentira. Escritor e leitor pactuam,
portanto, da suspensão de certas regras e entram numa realidade paralela que existe ali
no ato da leitura. Para isso, Clarice Lispector cria outro personagem, tão importante
quanto aqueles que protagonizam a trama: Rodrigo S.M., o narrador. Nizia Villaça
(1996, p. 43) coloca o narrador contemporâneo como sendo “[..] aquele que produz
autenticidade na própria construção da linguagem, independentemente do respaldo da
vivência e dos efeitos do real.” Aquele responsável por estabelecer esse pacto ficcional
entre o real e o narrado, entre o verossímil e o fantasmagórico. Mas, além da criação
desse pacto com o leitor, Rodrigo S.M. e Clarice Lispector mantêm uma estreita
relação, como se lê na dedicatória do autor: “(na verdade Clarice Lispector)”
(LISPECTOR, 2006, p. 7). Numa entrevista concedida à TV Cultura em 1977, Lispector
relata como surgiu a inspiração para a escrita de A Hora da estrela. Conta que passando
pela Feira de São Cristóvão, uma feira de nordestinos no Rio de Janeiro, se deparou
com o olhar perdido dos nordestinos na grande metrópole. Episódio explicitado pelo
narrador ao esclarecer a fonte primeira de sua inspiração para a escrita: “É que numa rua
do Rio de Janeiro, peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma
moça nordestina” (LISPECTOR, 2006, p. 26).
Clarice Lispector, constituindo essa conexão implícita com seu narrador e ciente do
pacto ficcional estabelecido com o leitor, expõe sua intenção de trazer à tona a história
de figuras femininas que, nos labirintos da cidade, enfrentam as dificuldades e desafios
nas rotinas de suas vidas. Esclarecendo que fará mais do que inventar uma história sobre
a vida de uma de suas personagens, assevera:
Contudo, A Hora da estrela não se configura apenas como a narrativa das desventuras
de Macabéa na grande urbe. A nordestina figura como personagem principal, mas ao
lado dela mais duas mulheres fazem da trama uma singular representação de diversos
tipos sociais femininos, configurados pelas vivências na cidade. Além da nordestina, a
carioca Glória e a ex-prostituta e agora cartomante madama Carlota têm seus perfis
delineados na trama e aparecem como figuras emblemáticas que configuram, junto com
Macabéa, a base para as análises realizadas nesse trabalho.
Migrantes como ela passam por dois processos de exclusão, o primeiro acontece em sua
terra natal, que não lhes dá perspectiva de uma vida digna em razão, sobretudo, da
situação de miséria e exploração à qual são submetidos. Fogem, então, dessa primeira
situação de exclusão; vivendo uma espécie de exílio dentro de sua própria pátria,
seguem para o sul/sudeste, como tantos outros que foram antes e tantos outros que virão
depois. Na nova terra adotada, tampouco, conseguem achar um “lugar ao sol”,
novamente se vêm marginalizados e excluídos por um sistema que os inscreve como
subalternos na hierarquia social do país. É o que ocorre com Macabéa e lhe dá a
sensação de inferioridade e subalternidade em relação aos outros, agindo sempre com
uma passividade que a induz a interpretar todas as situações contra si própria,
desculpando-se, inclusive, quando é ofendida pelos outros.
Glória, por sua vez, será apresentada na segunda parte do texto. Criativa, sensual e bem
sucedida, possui as características de uma mulher moderna e “bem resolvida”. Nascida
no Rio de Janeiro, é “carioca da gema” e foi capaz de roubar o namorado de sua colega
de trabalho, a nordestina Macabéa. Olímpico de Jesus é migrante nordestino e interessa-
se por Glória por enxergar nela uma forma de ascensão social, pois, “[...] o fato de ser
carioca tornava-a pertencente ao ambicionado clã do sul do país” (LISPECTOR, 2006,
p. 77), status que Macabéa, também sendo nordestina, não poderia oferecer-lhe. Além
disso, o pai de Glória era dono de açougue, uma das ambições do metalúrgico. Glória
assume, portanto, o papel do “bom partido”, da mulher desejada, possuidora dos
artifícios da sedução e de características que vão além do aspecto físico e configuram tal
vínculo como uma relação baseada, sobretudo, no interesse financeiro e na nova posição
social que essa união propiciaria ao nordestino.
O presente trabalho leva em conta, também, que a história das três personagens
femininas aparece entrelaçada por relações amorosas conflitantes, permeadas por
situações que não condizem com o ideal romântico do “par perfeito”. Macabéa vê em
Olímpico de Jesus um alento para suas dores, alguém que povoaria sua solidão interior.
Entretanto, é trocada por Glória, sua colega de trabalho. Contudo, a aproximação de
Olímpico e Glória se dá mediada pelo interesse do nordestino em ascender socialmente,
tirando proveito do fato da moça ser carioca e sua família ter posses, como por exemplo,
um açougue. Já Madama Carlota se relacionava como muitos homens em troca de
dinheiro e dizia que com esses era apenas trabalho, enquanto era explorada
financeiramente e espancada por um homem a quem dizia amar.
A Hora da estrela foi publicado em 1977, década em que figuravam muitos avanços dos
movimentos feministas com vistas à libertação das mulheres do padrão patriarcal que
por muito tempo prevaleceu na sociedade. Levando-se em conta a época e o contexto
social em que a obra foi escrita/publicada e que os modelos sociais veiculados em cada
período histórico acabam por influenciar na produção literária e na criação de
personagens, as mulheres criadas por Lispector na obra em questão representam, ainda,
uma forte ligação com os preceitos patriarcais em relação ao matrimônio como único
meio de encontrar a felicidade. Numa demonstração que, embora houvesse a circulação
de novos valores relacionados ao ideal de liberdade feminino, esses ainda não haviam
sido totalmente incorporados pelas mulheres, pois muitas mantinham a procura por
aquele que as completariam, “a outra metade” ou “príncipe encantado” propalado pelos
contos de fadas. Não podemos dizer, porém, que Clarice Lispector ao retratar a
dependência sentimental dessas personagens à figura masculina, concorda ou comunga
com tais preceitos. Ao contrário, a autora, já em setembro de 1959, escrevendo como
colunista feminina para o jornal Correio da manhã1, na coluna “O anel conjugal”,
critica o uso da aliança e, por conseguinte, o casamento e a dominação da mulher pelo
marido:
A aliança, símbolo que hoje a maior parte das mulheres usa com tanto
orgulho, tem sua origem bem humilhante para nós, mulheres. Na
Antiguidade, os maridos escravizavam as suas mulheres prendendo-as
com algemas ou grilhões. Daí originou esse delicado e romântico anel
de ouro, que hoje nos dá tanto prazer de usar. (LISPECTOR, 2008, p.
136)
A autora mais uma vez, traz ao cenário literário de A Hora da estrela uma temática
social que suscita a reflexão e discussão acerca do papel da mulher diante da submissão
e dependência à figura masculina, sobretudo no que se refere aos relacionamentos
amorosos, pois, ao tempo em que tais mulheres ansiavam pela liberdade,
paradoxalmente, talvez de modo introjetado e inconsciente, demonstram a necessidade
de um homem que direcionasse sua própria vida, como veremos adiante por meio da
análise dos caminhos e descaminhos amorosos trilhados pelas personagens Macabéa,
Glória e madama Carlota.
Nessa perspectiva, analisam-se, em A Hora da estrela, mulheres que têm suas vidas
atreladas à movimentação da cidade. Os labirintos nos quais tais mulheres se encontram
aprisionadas, constituem e definem os passos a serem dados, os caminhos a serem
percorridos, as decisões a serem tomadas. Personagens que sonham com melhores
condições de vida, que buscam, dia após dia, a realização de seus desejos.
1
Clarice Lispector, entre os anos de 1950 e 1960, escrevia colunas femininas no jornal Comício sob o
pseudônimo de Tereza Quadros; já no Correio da Manhã como Helen Palmer e no Diário da Noite como
Ilka Soares.
Trabalhadoras que, cansadas da rotina estafante de seus afazeres, buscam uma fuga nos
passeios aos domingos para olhar as vitrines (como é o caso de Macabéa) ou buscam no
amor a válvula de escape para mascararem suas dores. À luz das teorias literárias
associadas às teorias das ciências sociais, tratamos do cotidiano e das vivências dessas
mulheres, personagens ficcionais que dizem muito de mulheres reais, que vivem à
mercê dos códigos institucionalizados socialmente e têm suas vidas vinculadas ao fazer-
se e refazer-se ininterrupto da cidade, refletindo e reproduzindo-se através dos
movimentos citadinos que também movimentam suas vidas e suas concepções como
seres humanos passíveis às metamorfoses e ao caos da vida na metrópole.
A migração dos nordestinos para outras regiões do país não é uma história recente.
Antes da primeira metade do século XIX, o êxodo rural já transferia mão-de-obra,
principalmente da região Nordeste, onde o desenvolvimento desigual, em relação às
outras regiões do país, combinado com os longos períodos de estiagem, a tornavam
local de “expulsão” de seu povo. Com o auge da industrialização, entre as décadas de
1960 e 1980, a migração nordestina, em especial aos estados de São Paulo e Rio de
Janeiro, foi muito intensa. As capitais desses estados tornaram-se "terras de
oportunidades" e atraíram milhares de migrantes que, impulsionados pelo desejo de uma
vida melhor, abandonaram seus lugares na tentativa da realização de seus desejos,
sobretudo no que se refere às conquistas financeiras.
Era preciso fugir das intempéries do clima seco. Para isso, o nordestino tinha que deixar
para trás sua casa, sua família, sua raiz e migrar, então, rumo ao desconhecido. Como
disse Alfredo Bosi (1988, p. 12), era necessário ir “[...] para alguma cidade do Sul,
onde, faça chuva ou faça sol, precisa-se de mão-de-obra barata.” Sob o estigma da seca,
os migrantes iam se deslocando pelo sol escaldante, fugindo das áreas em que não havia
mais trabalho, nem possibilidade de produzir. Muitos se baseavam no exemplo de
outros que migravam e obtiveram sucesso. Segundo Itamar de Souza (1980), formou-se,
assim, uma categoria de migrantes a quem o autor chama de “seguidores”. Para o
mesmo autor, “[...] o sucesso dos que já foram tem uma força de persuasão superior ao
fracasso dos que regressam derrotados. [...] A migração deixa de ser uma maldição, uma
viagem para o desconhecido, para ser uma caminhada para o progresso.” (SOUZA,
1980, p. 37) Mas, para muitos, esse progresso não passou de ilusão. Mão-de-obra
desqualificada, ao nordestino sobrava apenas a exploração do trabalho braçal e mal
remunerado. Essa situação se deu, principalmente, após a revolução industrial, pois,
com ela o homem do campo, o trabalhador servil, enxergou na cidade várias outras
possibilidades de trabalho e isso significava concretamente uma espécie de libertação.
Nessa busca por melhores condições de vida, no dizer de Raquel Rolnik (1995, p. 12),
“[...] a cidade aparece como um imã, um campo magnético que atrai, reúne e concentra
os homens.” Contudo, ao perder o acesso à terra, às plantações, o homem perde também
a subsistência, caracterizando-se numa dupla condição: livre e despossuído. Para
muitos, a cidade trouxe a liberdade e também a pobreza. O trabalhador precisa agora
correr contra o tempo, abrir mão de toda e qualquer atividade que não seja o trabalho. O
ritmo frenético da produção isolou o homem e os avanços tecnológicos lhe trouxeram o
conforto e, também, o isolamento. Como disse Walter Benjamin (1994, p.124), “[...] o
conforto isola. Por outro lado, ele aproxima da mecanização os seus beneficiários.”
Na literatura, não raro, temos nos deparado com diversos personagens migrantes
nordestinos que vão tentar a sorte na cidade grande. Muitas obras tratam da viagem, do
percurso migratório, diferentemente do que encontramos em A Hora da estrela, de
Clarice Lispector. Nesta obra há, com grande expressividade, a opressão e o
deslocamento2 do nordestino na cidade grande, retratados através da saga da migrante
2
Usamos aqui o termo deslocamento para nos referirmos ao sujeito deslocado, que não se sente no lugar,
na situação ou no contexto apropriado, posto à margem.
Macabéa no Rio de Janeiro. Alagoana de dezenove anos, semianalfabeta, órfã de pai,
mãe e da tia que a criou, impulsionada pelo desejo de ser estrela de cinema, vai para o
Rio de Janeiro; contudo, só consegue um emprego como datilógrafa. Ela vai morar
numa pensão, onde divide o quarto com mais quatro moças. Tem uma vida sem muitas
emoções, não estabelece vínculos de amizade ou afetividade com as pessoas, pois todos
são indiferentes a ela. Conhece Olímpico de Jesus, também migrante nordestino, e os
dois começam a namorar. Porém a relação não se sustenta e Olímpico acaba trocando
Macabéa, a quem chama de “cabelo na sopa”, por Glória, colega de trabalho da ex-
namorada, que, por recomendação de sua cartomante, rouba o namorado de Macabéa.
Glória, então, recomenda-lhe sua cartomante à colega para que a alagoana se sinta
melhor. Macabéa decide ir à consulta com a vidente. A cartomante diz que a vida da
garota irá mudar repentinamente: seu ex-namorado irá pedir para reatar o namoro, ela
ganhará uma grande fortuna e se casará com um estrangeiro, rico e bonito. Macabéa fica
entusiasmada, mas, quando sai à rua, morre atropelada por uma Mercedes.
Mas ela não era a única. Representa tantos outros milhares de migrantes nordestinos.
“Há milhares como ela?” questiona-se o narrador, e logo conclui: “Sim, e que são
apenas um caso” (LISPECTOR, 2006, p. 53). Lispector a escolhe como sua
protagonista para falar dos nordestinos que mudaram de espaço, desenraizaram-se,
perderam o respaldo de seu grupo, e agora, pois, vivem estigmatizados – e por isso
muitas vezes à margem – nas grandes metrópoles. Deslocados e segregados, com
dificuldades financeiras, muitos nordestinos como Macabéa se aglomeraram em casas
improvisadas – barracos – por este motivo, segundo Itamar de Souza (1980), o
surgimento das favelas está diretamente relacionado à migração. Fato que ainda mais os
deslocavam, pois o migrante muitas vezes era hostilizado e malquisto. Ainda segundo
Itamar de Souza:
Macabéa precisa, então, incorporar uma nova cultura, uma nova maneira de viver,
desvencilhar-se das raízes sertanejas, recriar e reconstruir sua identidade, transformar-
se; dotar-se de mecanismos para que possa, de fato, interagir com aquela nova realidade
que agora lhe cerca. É preciso, então, fazer uma espécie de “negociação” da própria
identidade, pois, como diz Boaventura Santos (1999, p. 135), “[...] sabemos hoje que as
identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados
sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. [...] Identidades são, pois,
identificações em curso.”
No lugar novo, o passado não está; é preciso então encarar a nova realidade que se
apresenta diante dos olhos perdidos e assustados do sertanejo: primeiro vem a
perplexidade, em seguida, necessidade de orientação. Porém, a trajetória de Macabéa
não interage com a modernidade. A sertaneja vivencia, então, dilemas experimentados
pelo homem que vive nessa era das grandes revoluções: sociocultural, industrial e do
progresso cientifico. Berman (1998, p.19) a caracteriza como crescente expansão capaz
de tudo exceto solidez e estabilidade, o homem moderno testemunha a efemeridade das
coisas, a transitoriedade e velocidade do tempo.
O homem moderno vive um paradoxo: é livre para aventurar-se, quebrar limites, mas
vive angustiado, pois não consegue se adaptar totalmente às complexidades que a
modernidade apresenta nem as permanentes transformações e a velocidade com que as
mesmas acontecem:
Macabéa era “[...]uma moça numa cidade toda feita contra ela. Ela, que deveria ter
ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita” (LISPECTOR, 2006, p. 30). O
narrador se compraz do sofrimento de Macabéa, numa atitude de condescendência
assume que ela deveria ter ficado em Alagoas, onde, com seu vestido de chita, talvez
fosse mais feliz. A referência ao vestido de chita mostra a simplicidade das vestes de
Macabéa. Esse tipo de vestuário, certamente, não condizia com aquele costumeiramente
utilizado pelas mulheres da cidade do Rio de Janeiro. Sabe-se que a vestimenta assume
um papel importante na vida das pessoas. Através dela podem ser analisadas as relações
sociais institucionalizadas pelo homem, desse modo, atua diretamente no
comportamento humano, sendo fruto dos costumes e da cultura de um determinado
povo. A roupa pode indicar uma distinção social e, além disso, ainda que sutilmente,
pode refletir a opressão e o domínio de uma classe sobre outra. O uso da roupa,
portanto, não está relacionado apenas a uma questão da aparência ou de estilo, vincula-
se, também, às relações sociais, podendo ser visto como uma manifestação de poder,
distinção e comportamento. Macabéa destoava do ritmo da metrópole até no modo de se
vestir, característica externa que denota a adequação ou a posição social ocupada, fato
que interfere no modo como as outras pessoas se enxergam ou se tratam. Para Ana Fani
Carlos,
Mas, para Clarice Lispector, isso não era motivo para não contar a história da moça:
“preciso falar dessa nordestina senão sufoco” (LISPECTOR, 2006, p. 17). Era preciso
pensar a cidade, em A Hora da estrela, para além das aparências, mesmo
descompassada e mal vestida, era preciso narrar as aventuras dessa moça, e, de alguma
maneira, denunciar a vida precária de tantos brasileiros que se sentem como
estrangeiros em sua própria pátria, que servem apenas como instrumento de exploração,
Macabéa, então, representaria tantas outras moças:
Macabéa não era notada, perambulava pelas ruas e sequer tinha consciência de si e do
que lhe cercava: “Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era
um parafuso dispensável” (LISPECTOR, 2006, p. 45). Perdida numa cidade voltada
para a produção e a obtenção do lucro, numa sociedade de consumo, a nordestina não
acompanhava o ritmo apressado da vida na metrópole, era um “parafuso dispensável”,
não fazia parte da engrenagem da produção, portanto, não se enquadrava nos padrões.
Há no homem moderno a necessidade de parecer normal e estabelecer a normalidade,
isso faz com que ele estabeleça também o que é anormalidade. Este não deixa de ser
também um mecanismo de controle e de interferência, um mecanismo de vigilância, e é
acima de tudo um mecanismo de poder. Assim, o indivíduo tende a se isolar em suas
individualidades. Portanto, os donos do poder estabelecido são aqueles que passam uma
imagem da normalidade, qualquer pessoa ou segmento que foge ao padrão é uma
potencial ameaça às relações sociais, ficando à margem. Rodrigo S.M. caracteriza esse
estado de isolamento e “anormalidade” da moça na seguinte passagem do livro: “A
pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém
lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham.” (LISPECTOR, 2006, p. 30).
Não havia tempo para o sorriso tolo de Macabéa, ela era um ser estranho e marginal
àquele mundo, àquele caos que rotineiramente seguia uma linearidade: o trânsito
frenético, o barulho das máquinas, as multidões que caminham apressadas, cada
indivíduo fechado em seu próprio mundo, vivendo isolado dos demais. Marshall
Berman (1998) esclarece que:
Em tempos como esses, ‘o indivíduo ousa individualizar-se’. De outro
lado, esse ousado indivíduo precisa desesperadamente ‘de um
conjunto de leis próprias, precisa de habilidades e astúcias, necessárias
à autopreservação, à auto-imposição, à auto-afirmação, à
autolibertação.’ As possibilidades são ao mesmo tempo gloriosas e
deploráveis. ‘Nossos instintos podem agora voltar atrás em todas as
direções; nós próprios somos uma espécie de caos. (BERMAN, 1998,
p. 21)
Sendo assim, a nordestina agora se depara com uma nova realidade, com a eterna
novidade da grande cidade, que se renova a cada dia, nesse novo lugar ela está
deslocada e ao mesmo tempo deslumbrada. Macabéa, que vivia no subúrbio, num misto
de estranhamento e fascínio pelas lojas e os tantos diferentes produtos expostos, “[...]
vez por outra ia para a Zona Sul e ficava olhando as vitrines faiscante de jóias e roupas
acetinadas” (LISPECTOR, 2006, p.50). A Zona Sul do Rio de Janeiro é uma das regiões
mais nobres da cidade onde estão situados bairros como Leblon, Ipanema, Copacabana,
Leme, Botafogo, Flamengo, Urca e Glória, bairros da orla da Baía de Guanabara, além
de Lagoa, Jardim Botânico e Gávea. Todo o luxo desses bairros e seus comércios
fascinavam Macabéa, mas, ao mesmo tempo, representam, na obra, a segregação social
imposta pela divisão do espaço urbano. A nordestina vivia no subúrbio carioca, na Rua
do Acre, lugar de ratos gordos, era um “pedaço de vida imunda” (LISPECTOR, 2006, p.
46). Essa segregação é fundada nas diferenças relativas às tradições, costumes e estilos
de vida de grupos de diferentes origens étnica e geográfica, além, sobretudo, de
diferenças socioeconômicas, por conseguinte, diferenças de rendimento. Há uma
hierarquização dos espaços nas metrópoles que delimitam os lugares sociais,
estabelecendo, por exemplo, ambientes distintos para ricos e para pobres. Assim, temos
ricos de um lado, em suas mansões, palacetes e apartamentos luxuosos; e pobres do
outro lado, em cortiços, casas simples e favelas. Para Raquel Rolink (1995, p. 40) “É
como se a cidade fosse um imenso quebra-cabeças, feito de peças diferenciadas, onde
cada qual conhece o seu lugar e se sente estrangeiro nos demais”. Cada lugar serve
como referência para seus moradores, as classes se dividem e se reconhecem. Cada um
desses lugares serve como referência para seus moradores, as classes se dividem e se
reconhecem. Além da segregação imposta pelos bairros, que também serve de
referência para a construção da identidade de seus habitantes, há ainda divisões dentro
das próprias residências, locais comuns e locais privados, salas de estar, salas de visitas
e quartos individuais. O lar, núcleo de convivência familiar, serve de referencial na
diferenciação do espaço público e do privado, espaços comuns e espaços íntimos.
Macabéa, entretanto, não tem lar, ela divide um quarto de pensão com mais quatro
pessoas desconhecidas, assim, mesmo estando “em casa” continua num lugar “público”,
onde não há privacidade, sem espaços íntimos, onde ela não pode ser por um instante o
que quiser ser, pois está sempre acompanhada como se estivesse sempre vigiada.
Sentindo falta desse referencial de um lugar seu, dessa intimidade consigo mesma,
mente para o chefe dizendo que iria arrancar um dente e, para ela, arrancar um dente é
muito perigoso. Inventa essa mentira somente para ter um dia de privacidade no quarto
que divide com as demais colegas. Neste dia é a primeira vez que Macabéa toma
consciência de si, se olha no espelho, dança como uma borboleta que voa pelos espaços
do quarto, agora só seu:
Ela teve pela primeira vez na vida uma coisa a mais preciosa: a
solidão. Tinha um quarto só para ela. Mal acreditava que usufruía o
espaço. E nenhuma palavra se ouvia. Então dançou num ato de
absoluta coragem [...] diante do espelho para nada perder de si mesma.
Encontrar-se consigo própria era um bem que ela até então não
conhecia. (LISPECTOR, 2006, p. 57 – 58)
Nesse quarto fechado, sozinha, Macabéa está totalmente protegida da tensa e gigantesca
agitação da cidade. Finalmente encontrara um lugar onde “dançava e rodopiava e ao
estar sozinha se tornava: l-i-v-r-e!” (LISPECTOR, 2006, p. 58) tal liberdade era
decorrente da sensação de estar refugiada em seu abrigo, longe dos olhos daqueles que a
olhavam, mas não a viam.
Para o narrador, a história da nordestinha lhe escapava de si mesmo na emergência de
existir, ele, o narrador, embora às vezes tenha vontade, não pode mudar os fatos, não
poderia inventar outra vida pra nordestina senão aquela, como se a realidade fosse tão
forte que impulsionasse o desejo de transpô-la para a ficção e, por mais sofrida que
parecesse a história de Macabéa, ela teria que ser contada, teria que retratar os fatos
“nus e crus” da vida do migrante como ela é, assim explica o narrador: “[...] e foi
quando pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa” (LISPECTOR,
2006, p. 31). O caminho percorrido por Macabéa na cidade é descortinado de utopias
românticas e de final feliz para a mocinha, que, tal como nos contos de fadas, encontra o
príncipe e vive feliz para sempre. O desfecho da trajetória de Macabéa não comporta
tamanho fingimento, para uma migrante nordestina, com tamanha feiura e descompasso,
que não se integra à vida na urbe, não haveria para ela outra perspectiva senão um final
trágico. Seu narrador explica: “[...] o fato é que eu tenho nas minhas mãos um destino e
no entanto não me sinto com o poder de livremente inventar: sigo uma oculta linha
fatal” (LISPECTOR, 2006, p. 35). Macabéa é, então, mais uma migrante entre os
grandes contingentes humanos que abandonaram seu chão em direção às metrópoles,
atraídos pelo fenômeno urbano da eterna novidade e do progresso. Para Suzi Sperber
Representa uma multidão de seres, que vindos de todos os cantos do país, sobretudo do
Nordeste, passam a habitar as grandes capitais, e se vêem em meio ao individualismo
das pessoas que preconizam a produção de bens materiais, sem a criação de laços
comunitários. Para o migrante, há uma dissolução das referências socioculturais que
orientavam seu cotidiano. Tais características são observadas em A Hora da estrela, em
que a autora realiza uma denúncia social acerca da condição do migrante na grande
metrópole, traz à tona o retrato de uma sociedade cruel e indiferente. Sua narrativa se
compõe, portanto, de imagens da ruína das relações humanas perante o monstruoso
progresso da tecnologia e dos ideais da produtividade do sistema capitalista.
2.2 O ENCONTRO COM O (DES)AMOR
O amor tem sido tema recorrente na literatura, e, como já prediz o próprio desígnio da
maioria das obras – romance – não raro, temos nos deparado com literaturas que tratam
do amor como motivo de sua arte, especialmente, histórias de amantes infelizes e
tragédias, pois o amor feliz raramente é motivo para poesia ou romances. Conforme
assertiva de Denis de Rougemont (1988):
Em algumas obras, mesmo que tenham como abordagem principal questões que não
dizem respeito diretamente ao amor, suas personagens sempre nos trazem, ainda que em
segundo plano, os dramas das relações conjugais. É o que acontece no romance3 A Hora
da estrela. Tal livro, para Luciano Lima (2007):
3
Alguns críticos consideram A Hora da estrela como novela e não romance. Discordamos da primeira
classificação com base no conceito de que novela é uma sequência de capítulos em que sua ordem pode
ser alterada sem prejuízo da linearidade dos acontecimentos, o que não é o caso da obra em questão.
social, apenas vegeta esperando a hora do trabalho do dia seguinte.
Não possui nem mesmo a beleza comum de toda mulher jovem, pois
tem aparência doentia. Preenche o vazio do seu tempo escutando a
Rádio Relógio. Mas mesmo assim é acometida de amor. (LIMA,
2007, p. 74)
Essa visão do amor como algo supremo, virtuoso e belo surge no Ocidente a partir da
Grécia Antiga. E essa representação pode ser encontrada no Banquete de Platão, obra
composta de vários discursos, dentre os quais, muitos versam sobre Eros – a fonte do
mito amoroso no Ocidente, o Deus grego do amor. Nessa obra, O Banquete, vários
convidados debatem sobre os mais variados aspectos do amor. Embora os sete discursos
que a compõem não sejam equivalentes entre si, uns mais que outros foram
reapropriados na mentalidade romântica posterior e até hoje embasam as crenças
estabelecidas pela sociedade acerca do amor. Segundo Aristófanes, um dos participantes
do banquete, Eros é o deus mais antigo, podendo curar e proteger o homem da
infelicidade. Para ele, nos primórdios, a natureza tinha três sexos: o masculino, o
feminino e o andrógino. Por serem eles muito pretensiosos, a ponto de escalarem o céu
e investirem contra os deuses, foi preciso Zeus – deus supremo – cortá-los ao meio um a
um. As partes separadas, desde então, tentam se encontrar.
Daí tem-se a busca pela “outra metade”, ou a “alma gêmea”, que se reencontrando
novamente se tornariam um. São fragmentos do discurso no Banquete: “Mas eu, no
entanto estou dizendo a respeito de todos os homens e mulheres, que é assim que a
nossa raça se tornaria feliz, se plenamente realizássemos o amor e o ser próprio amado
cada um encontrasse, tornando à sua primitiva natureza.” (PLATÃO, 2001, p. 193) Essa
forma de amor, a busca incessante pela “outra metade”, é o que André Comte-Sponville
(1999) define como “amor Eros”. Mas esse mesmo autor acrescenta que não há
felicidade na completude propiciada pelo “encontro das duas metades”, como sugere
Aristófanes em O Banquete. Comte-Sponville acredita na teoria da busca pela “alma
gêmea”, mas defende a ideia de que o amor nunca é saciado; diz que, na verdade, o
amor Eros é a “falta”, é a eterna busca, e sendo assim, a completude lhe é vetada.
Deste modo, o mito das “almas gêmeas” faz sentido para muitos, pois, de certa forma,
responde aos sentimentos orientados pela ordem social no ocidente, como sendo útil,
agradável, desejável e correto. E Macabéa na obra em questão assim o considera. A
busca pela “outra metade” ou “o amor Eros”, conforme define André Comte-Sponville,
ainda que não seja designado com estes termos no romance, pode ser verificado nos
anseios da moça nordestina. Macabéa, numa tarde do mês de maio,
No meio da chuva abundante encontrou (explosão) a primeira espécie
de namorado de sua vida, o coração batendo como se ela tivesse
englutido um passarinho esvoaçante e preso. O rapaz e ela se olharam
por entre a chuva e se reconheceram como dois nordestinos, bichos da
mesma espécie que se farejam. Ele a olhara enxugando o rosto
molhado com as mãos. E a moça, bastou-lhe vê-lo para torná-lo
imediatamente sua goiabada-com-queijo. (LISPECTOR, 2006, p. 60)
Há, portanto, nos seres humanos a necessidade de se relacionar com outros. Para Anton,
(1998), o “outro” é um ponto de referência indispensável para a conservação da
percepção lógica e organizada de si mesmo. Um adulto, mesmo sem saber, conserva a
própria unidade e lucidez no confronto com as demais pessoas. A solidão, em suas
formas mais radicais, leva à confusão entre realidade e fantasia. Macabéa “[...]
precisava dos outros para crer em si mesma” (LISPECTOR, 2006, p. 55) e fazia de
Olímpico um referencial masculino a quem ela inabalavelmente admirava. Para
Macabéa, Olímpico representa o ápice do sucesso humano. Ela acreditava que ao casar-
se, por extensão, se tornaria alguém tão importante quanto ele. Pois, “[...] quando
Olímpico lhe dissera que terminaria deputado pelo Estado da Paraíba, ela ficou
boquiaberta e pensou: quando nos casarmos então serei uma deputada?” (LISPECTOR,
2006, p. 64). Dessa maneira, ao projetar seu destino a partir da afirmativa de Olímpico,
Macabéa demonstra conceber que o matrimônio garante à mulher a mesma posição
social ou o mesmo cargo ocupado pelo esposo e configura a construção de sua
identidade a partir do perfil descrito e ambicionado por seu amado Olímpico.
Entretanto, como foi dito, Olímpico não tratava a nordestina com afeto, era rude, grosso
e interesseiro, pois aprendera desde cedo com o padastro como se aproximar das
pessoas para se aproveitar delas; para ele, Macabéa era “[...] um cabelo na sopa. Não dá
vontade de comer” (LISPECTOR, 2006, p. 79). A moça não podia ter filhos, ele a
considerava, então, biologicamente inferior, “[...] enquanto Olímpico era um diabo
premiado e vital e dele nasceriam filhos, ele tinha o precioso sêmen. E como já foi dito
ou não foi dito Macabéa tinha ovários murchos como um cogumelo cozido”
(LISPECTOR, 2006, p. 77). No entanto, essa condição de “inferioridade biológica”
conferida a Macabéa, não está vinculada diretamente à limitação biológica por si só,
mas associada principalmente ao condicionamento ideológico. Tal limitação será
reconhecida, ou não, segundo os preceitos sociais, conforme elucidações de Simone de
Beauvoir:
Nesses termos, a biologia não basta para fornecer uma resposta à rejeição imposta à
Macabéa, mas esse foi um dos motivos que levou Olímpico a repudiá-la. O rapaz a
tratava com hostilidade, o que nos faz crer que nessa relação há, implicitamente, uma
questão ideológica que, na verdade, acentua a divisão de classes, os dois são migrantes
nordestinos, no entanto, Olímpico se vale de sua condição privilegiada, por se julgar
superior, para desdenhar da moça.
Sua única bondade com Macabéa foi dizer-lhe que arranjaria para ela
emprego na metalúrgica quando fosse despedida. Para ela a promessa
fora um escândalo de alegria (explosão) porque na metalúrgica
encontraria a sua única conexão atual com o mundo: o próprio
Olímpico (LISPECTOR, 2006, p. 76).
Vê-se, que, apesar de nordestino como Macabéa, Olímpico era muito diferente dela,
dotado de valentia e coragem “[...] era macho de briga, sabia muito bem o que queria”
(LISPECTOR, 2006, p. 74), ao contrário de Macabéa, se preocupava com o futuro, era
ambicioso e destemido, “[...] nascera crestado e duro que nem galho seco de árvore ou
pedra ao sol. Era mais passível de salvação que Macabéa pois não fora à toa que matara
um homem, desafeto seu, nos cafundós do sertão” (LISPECTOR, 2006, p. 76). Essa
diferença denuncia os estereótipos criados acerca da condição feminina. Macabéa, por
ser mulher, era fraca, ingênua e vulnerável, enquanto Olímpico era forte, astuto e
corajoso. Macabéa é escrava de sua própria situação e não sabe sequer como superar as
circunstâncias que restringem a sua liberdade. Há aí uma relação das diferenças de
gênero como mecanismos formadores e controladores das relações sociais, sobretudo
das relações de poder dentro da sociedade, conforme nos esclarece Joan Scott:
Desse modo, gênero refere-se a categorias psicológicas, sociais e culturais que diferem
homens e mulheres e tais diferenças não têm como base a biologia ou a mera distinção
entre o sexo masculino e feminino, na verdade é uma construção sociocultural que tem
colocado a mulher numa posição de inferioridade em relação ao gênero masculino. Na
cidade, esse grande sistema de superposição de subsistemas diversos, as relações sociais
se organizam em torno das diferenças, e as diferenças entre os gêneros compõem esse
arcabouço de censuras e interdições impostas, sobretudo, à mulher, que sempre foi vista
como um ser inferior, com inclinação natural para o lar e a educação das crianças,
destinada apenas ao casamento e à maternidade. Sua única força é o encanto, porém,
para Macabéa, a situação era ainda mais complicada, pois a moça não tinha encanto
algum e esse era um dos motivos pelos quais Olímpico a depreciava.
Mesmo maltratada a datilógrafa, ingenuamente, continuava a amá-lo e a sentir-se feliz
por ter um namorado. Tinha poucos desejos, mas um deles era o de se casar. No
romance encontramos diversas referências ao casamento, uma delas é a presença do mês
de maio na narrativa; mês das noivas, crença difundida pela Igreja Católica em razão de
maio ser o mês da consagração de Maria, mãe de Cristo. Além da comemoração do dia
das mães no segundo domingo de maio, que também contribuiu para a associação com
as noivas. “– Ah mês de maio, não me largues nunca mais!” exclamou Macabéa, e seu
narrador, Rodrigo S. M. ressalta: “Maio, mês dos véus de noiva flutuando em branco”
(LISPECTOR, 2006, p. 58). “E Macabéa só pensava no dia em que ele quisesse ficar
noivo. E casar” (LISPECTOR, 2006, p. 78). A vida de Macabéa é regida, então, pela
ideia de que o casamento deve responder exclusivamente a aspirações íntimas e
afetivas. A vida conjugal transforma-se então no território por excelência para a
manifestação do amor. A concepção romântica do casamento na qual Macabéa
acreditava e, de certo modo, condicionava sua vida, nos remete à sacralização do
matrimônio. Antes da queda do Império Romano o casamento era um acordo entre
famílias, um tipo de negócio ligado às trocas financeiras ou à procriação visando o
seguimento da linhagem familiar; era um ato que acontecia na esfera doméstica e o
clero praticamente não intervinha. Mas, com o passar dos anos, segundo Ronaldo
Vainfas (1986, p. 29), “[...] com a degradação do império carolíngio, a Igreja passaria a
ser mais atuante e tentaria submeter reis e cavaleiros a seu poder, inclusive na esfera
matrimonial.” O casamento passou a ter a chancela do cristianismo e se tornou uma
instituição divina. Os teólogos da época introduziram no casamento os valores da
hierarquia masculina, em que o homem deveria comandar a mulher em todas as
situações e o ato sexual visava meramente a procriação. Ainda conforme Vainfas, tais
teólogos
- Por que é que você me pede tanta aspirina? Não estou reclamando,
embora isso custe dinheiro.
- É para eu não me doer.
- Como é que é? Hein? Você se dói?
- Eu me dôo o tempo todo.
- Aonde?
- Dentro, não sei explicar. (LISPECTOR, 2006, p. 81)
A névoa romântica se descortina para Macabéa, ela agora precisa enfrentar a dor de
perder o namorado e despir-se do sonho de casar-se com Olímpico. Na verdade, a
infidelidade pode não ter sido a pior coisa que ele tenha feito para o fim do namoro com
a datilógrafa; o namoro entre os dois era “morno” e ele nunca demonstrou nenhum
sentimento de carinho ou amor pela moça. O narrador então elucida tais assertivas:
“Olímpico na verdade não mostrava satisfação nenhuma em namorar Macabéa”
(LISPECTOR, 2006, p. 77). Ela nunca teve um namorado e, de certo, não sabia como os
namorados agem e de que modo tratam suas companheiras, talvez por isso, não
conseguisse perceber o comportamento pouco acolhedor de Olímpico, ao qual se
submetia.
Agora estou vendo outra coisa (explosão) e apesar de não ver muito
claro estou também ouvindo a voz de meu guia: esse estrangeiro
parece se chamar Hans, e é ele quem vai se casar com você! Ele tem
muito dinheiro, todos os gringos são ricos. Se não me engano, e nunca
me engano, ele vai lhe dar muito amor e você, minha enjeitadinha, vai
se vestir com veludo e cetim e até casaco de pele vai ganhar! Macabéa
começou (explosão) a tremilicar toda por causa do lado penoso que há
na excessiva felicidade. (LISPECTOR, 2006, p. 97)
Macabéa estava em êxtase com tal profecia, finalmente iria realizar o seu grande sonho:
casar-se. “Estava meio bêbada, não sabia o que pensava, parecia que lhe tinham dado
um forte cascudo na cabeça de ralos cabelos, sentia-se tão desorientada como se lhe
tivesse acontecido uma infidelidade.” (LISPECTOR, 2006. p. 98) Nada mais importava,
pois além de se casar, o noivo era rico, lhe daria uma vida confortável e lhe
proporcionaria grandes alegrias. “Esquecera Olímpico e só pensava no gringo: era sorte
demais pegar homem de olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos, não havia como
errar, era vasto o campo das possibilidades.” (LISPECTOR, 2006. p. 98) A cartomante
lhe decretara uma “sentença de vida”. Mas a jovem saiu da casa da vidente com
tamanha empolgação que, distraída, ao atravessar a rua foi atropelada por uma
mercedes. Morreu sem ter tempo de realizar seu sonho. Na verdade, podemos dizer que
morreu em consequência dele, pois se não estivesse tão extasiada com a possibilidade
de casar-se com o tal estrangeiro, talvez tivesse olhado a rua antes de atravessar.
Mesmo levando uma vida tão sofrida, desejava viver, pois estava prestes a passar pela
maior de todas as angústias, a da morte. Essa mesma angústia também é experimentada
pelo narrador, que ao “matar” Macabéa também morreria. Meu Deus, só agora me
lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?! (LISPECTOR, 2006, p. 106). Para
Arthur Schopenhauer:
A Hora da estrela começa e também termina com um “sim”, como uma espécie de
círculo onde se volta sempre ao começo, numa constante repetição e estamos de volta
ao começo. É possível repetir a saga de Macabéa? “sim”. Ela teve o mesmo destino de
milhares de nordestinos que continuamente migram para o sul/sudeste do país,
alimentados pela esperança de conseguirem uma melhor condição de vida, muitas vezes
são esmagados, físico e simbolicamente pela metrópole que, em nome do progresso,
atropela aqueles que estiverem no caminho e que não conseguiram se ajustar ao
desenfreado ritmo da produção e do lucro. Mortes representadas na literatura, também,
pelos personagens Chico Bento, em O Quinze, de Rachel de Queiroz, migrante que, tal
qual Macabéa, morre atropelado. Ou por Nelo, em Essa Terra, de Antonio Torres, que
se sente envergonhado de ter fracassado na cidade grande e, ao regressar à terra natal, se
suicida ao se dar conta da ruína de seu sonho. Lembra-se das infelicidades que viveu na
metrópole e dá cabo da própria vida por não conseguir superar a desventura do regresso
sem nenhum sucesso para exibir aos que ficaram e esperam por boas notícias.
Após a Segunda Guerra Mundial, nas décadas de 1960 e 1970 ocorreu uma significativa
mudança social dos costumes. O aparecimento da contracultura, dos movimentos
ambientalistas, das reivindicações de tolerância aos grupos minoritários, das revoluções
tecnológicas e das novas vanguardas artísticas, abalaram muitos dos valores sociais
hegemônicos até então. No Brasil, especificamente, tudo isso acontecia num período de
ditadura militar que combatia de maneira cruel os diversos movimentos populares como
o sindical e o estudantil. Em meio a essa turbulência também nasceram os movimentos
feministas, os quais defendiam uma maior liberdade de atuação feminina no contexto da
modernidade. Principalmente na Europa e América do Norte, as mulheres começaram a
reivindicar com mais veemência o direito de usar o próprio corpo segundo suas
vontades e desejos. Os principais indicadores objetivos dessa nova tendência histórica,
segundo Mirian Goldenberg (2007), foram a elevação do consumo de contraceptivos e o
consequente controle da procriação; o acesso a mecanismos de geração de filhos sem a
dependência da figura masculina; o acesso ao mercado de trabalho formal em condições
iguais aos homens e a maior frequência às atividades sociais que até então lhes eram
proibidas. A obra de Clarice Lispector não ficou imune às conquistas femininas, em A
Hora da estrela, Glória se personifica da simbologia da mulher que busca conquistar
seus desejos, rompendo com a submissão imposta às mulheres por muitos séculos. “Ela
era muito satisfatona: tinha tudo o que seu pouco anseio lhe dava. E havia nela um
desafio que se resumia em ‘ninguém manda em mim’.” (LESPECTOR, 2006, p. 84).
Essa figura feminina está bem caracterizada por Gilles Lipovetsky, em seu livro A
terceira mulher. São palavras do autor:
Glória herdara características da mulatice que explicitadas por meio de seu bamboleio
no caminhar a tornava uma concorrente com requisitos físicos, de certo modo, desleais
aos de Macabéa. Seduzir Olímpico de Jesus, fazendo com que ele rompesse o namoro
com a nordestina não foi tarefa difícil para a carioca, seus atributos físicos, associados
ao seu status social, foram motivos mais que suficientes para que o nordestino optasse
por Glória. Logo, ela representava mais do que uma loira com bamboleio de mulata,
reunia características que a tornavam uma mulher atraente.
A expressão corporal no caminhar da personagem nos revela, ainda, que o corpo está
coberto de signos distintivos. Neste caso, as formas do corpo também tornam visíveis as
diferenças entre Glória e Macabéa, pois enquanto a nordestina “magricela” tinha o
“corpo cariado”, e o “rosto com ferrugem”, sua colega de trabalho “era um estardalhaço
de existir. E tudo devia ser porque Glória era gorda” (LISPECTOR, 2006, p. 79). Diante
da exposição de tais características, podemos inferir que existe aí uma construção
cultural da ideia de corpo, alguns atributos são valorizados em detrimento de outros,
fazendo com que haja um tipo de corpo adequado e outro inadequado em determinados
contextos históricos e culturais. As formas do corpo de Glória eram valorizadas, mesmo
sendo gorda, enquanto Macabéa era rejeitada por ser magra, contrariando ao padrão de
beleza do século XXI que preconiza como mais belas as mulheres que se aproximam
das medidas de modelos esguias e esbeltas.
Tais modificações implicam em uma espécie de servidão feminina, pois à medida que as
mulheres foram se libertando das amarras da domesticidade, da castidade e da
passividade, tornaram-se “escravas da beleza”. Segundo Naomi Wolf,
Tal influência midiática aparece em A Hora da estrela através das diversas referências
que Clarice Lispector faz aos anúncios de produtos de beleza colecionados e apreciados
por Macabéa. “Havia um anúncio, o mais precioso, que mostrava em cores o pote aberto
de um creme para pele de mulheres que simplesmente não eram ela.” (LISPECTOR,
2006, p. 55). Há, além disso, outras referências ao uso de esmaltes de unha, tintura para
o cabelo, cremes para o rosto, batons e outras maquiagens utilizadas não apenas por
Glória, mas também por Macabéa e pela cartomante madama Carlota. Glória tingia os
cabelos, e oxigenava os pelos das axilas e das pernas, Já “[...] madama Carlota era
enxundiosa, pintava a boquinha rechonchuda com vermelho vivo e punha nas faces
oleosas duas rodelas de ruge brilhoso” (LISPECTOR, 2006, p. 92). De certo,
influenciadas pelos modismos do momento ou inspiradas em estrelas do cinema, como
podemos ver no trecho da narrativa em que Macabéa, um dia depois de ter perdido o
namorado, resolveu aproximar-se da aparência da estrela de cinema, Marylin Monroe,
símbolo de beleza feminina, pois seu grande desejo era o de assemelhar-se à atriz:
Já que ninguém lhe dava festa, muito menos noivado, daria uma festa
para si mesma. A festa consistiu em comprar sem necessidade um
batom novo, não cor-de-rosa como o que usava, mas vermelho
vivante. No banheiro da firma pintou a boca toda e até fora dos
contornos para que os seus lábios finos tivessem aquela coisa esquisita
dos lábios de Marylin Monroe. (LISPECTOR, 2006, p. 80)
Para o antropólogo Gilles Lipovetsky (2000), embora a cultura tenha criado padrões
estéticos diferentes, como o culto à magreza que se vê hoje, o cérebro masculino
continua reagindo à beleza da mesma forma que há milhares de anos. Pois, segundo ele,
os homens não se sentem atraídos por mulheres muito magras. Sendo esqueléticas,
perdem os ícones da sexualidade, a simetria existente entre a cintura fina e o quadril
largo fica prejudicada em razão do emagrecimento e redução do quadril, além dos seios
que diminuem e, diante de tais transformações, o cérebro masculino não decodifica tal
figura como sendo um corpo de mulher, consequentemente não sente desejo. Fato que
pode justificar a rejeição de Olímpico à Macabéa, como vemos nas palavras do
nordestino: “Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá vontade de comer. Me
desculpe se eu lhe ofendi, mas sou sincero” (LISPECTOR, 2006, p. 79). A gordura
como padrão de beleza também era associada ao consumo alimentar, as mulheres mais
gordas representavam as classes mais privilegiadas, que tinham uma boa alimentação,
enquanto a magreza sempre era vista sob a perspectiva da fome, do empobrecimento e
da doença.
Sendo assim, a vida na grande cidade não era problema para Glória, ao contrário, tal
característica a tornava superior a nordestinos como Olímpico e Macabéa, que
consideravam a carioca como alguém admirável. Talvez essa admiração fosse um
reflexo, também, da tamanha autoestima que a moça fazia questão de externar: “Glória
era toda contente consigo mesma: dava-se grande valor” (LISPECTOR, 2006, p. 84).
Na era moderna o culto do “eu” ganha lugar de destaque na representação de nossa
cultura. Glória aparece, então, enquanto resultado desse processo de construção da
pessoa moderna, que se sente senhora das suas vontades e da verdade, ganhando
autonomia em um mundo onde reina a consciência individual e a liberdade, priorizando
características de constituição de uma identidade moral que valoriza a individualidade.
3. 2 A BUSCA E ENCONTRO DO AMOR
Desse modo, Glória representava uma “glória” para a vida sofrida de Olímpico.
Proporcionaria ao nordestino o acesso e aproximação a esse “outro” que ele desejava
ser. A individualidade do migrante encontra-se afetada em razão de que suas referências
anteriores foram ampliadas por vivências secundárias do novo ambiente, essa profusão
de novas vivências somadas às experiências anteriores provocaram uma confusão nas
respostas à vida privada e pública de Olímpico. O modelo de vida levado pela carioca
torna-se, então, alvo das ambições do nordestino como sinônimo de pertencimento
àquele espaço e, também, como uma maneira de ter acesso a bens materiais e a uma
convivência familiar da qual ele se encontra privado ou nunca teve. Conforme se vê no
seguinte trecho da narrativa: “[...] posteriormente de pesquisa em pesquisa, ele soube,
que Glória tinha mãe, pai e comida quente em hora certa. Isso a tornava de primeira
qualidade. Olímpico caiu em êxtase quando soube que o pai dela trabalhava num
açougue” (LISPECTOR, 2006, p. 78). A união com Glória ganha uma importância
econômica e social fundamental para Olímpico, pois esse vínculo com uma sulista
ajudaria na formação de uma identidade social diferente daquela vivenciada pelo
migrante, sempre visto como pertencente a uma classe inferior. Inferioridade conferida
aos nordestinos em consequência dos estereótipos criados imagética e discursivamente,
propagando a equivocada e generalizada figura de que o povo oriundo do Nordeste é
miserável e inculto. Esse estereótipo se pauta nas dificuldades de sobrevivência,
sobretudo dos menos favorecidos, numa região afetada diretamente pelas condições
adversas do clima, associadas a uma política socioeconômica opressora, que se vale das
necessidades de um povo para promover campanhas assistencialistas e de autopromoção
que propagam um quadro de miséria.
Não saber fazia parte importante de sua vida. Esse não-saber pode
parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita coisa assim como
ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir
fome; nasce-se e fica-se logo sabendo. (LISPECTOR, 2006, p. 45)
4.1 A PROSTITUTA
O sistema social preconiza como ideal uma estrutura normativa em que não há lugar
para os comportamentos que fogem aos padrões estabelecidos como corretos. Contudo,
essa tentativa de padronizar os comportamentos e atitudes àquilo que se considera como
ideal, ou como política e socialmente corretos, não tem dado conta das diversas
categorias sociais que são baseadas em diferentes códigos de condutas, normas e
valores. Levando-se em conta a existência das diferentes posições sociais, é preciso
considerar que essas geram interesses e necessidades também diferentes, embora essa
diferença seja posta como marginal, divergente e transgressora, classificada, muitas
vezes, como uma subcultura que se encontra alheia aos padrões legitimados. Assim
sendo, o modelo de uniformidade de comportamento não encontra ressonância na
realidade social. Não existe um sistema homogêneo ameaçado pelas transgressões, ao
contrário, o que existe é um sistema heterogêneo e as diferentes classes e
comportamentos são partes dele. Transgressividade diretamente ligada à desobediência
a um conjunto de regras prescritivas estabelecidas, sobretudo, por aquilo que Michel
Foucault, no livro História da sexualidade: o uso dos prazeres, chama de “código
moral”. Para ele,
Clarice Lispector, ao criar essa personagem, entra pelas alamedas dos códigos morais da
sociedade carioca da década de 1970, abordando a temática que se encontra localizada
no submundo da ética e dos preceitos morais: a prostituição. Atividade conhecida pelo
senso comum como a mais antiga das profissões, aparece no romance pondo à mostra
aspectos da mercantilização da libido, do desejo e do prazer, pelos quais se evidenciam,
em soma, a desigualdade entre os gêneros e a opressão sofrida pelo feminino, numa
experiência simbólica das relações mediadas pelas trocas financeiras em que o uso dos
prazeres, associado à apropriação do corpo, redundam na sujeição da mulher aos
desígnios masculinos. Há nessa relação duas questões antagônicas: ao tempo em que a
prostituta é vista como aquela que rompe com os preceitos morais e se rebela contra o
padrão preestabelecido por uma sociedade que prega a monogamia e a preservação dos
princípios cristãos no lar, no trabalho, na educação dos filhos e nas relações conjugais,
aparece, também, como ser assujeitado e com sua sexualidade dominada e posta na
categoria de mercadoria, comercializada como qualquer outra, pois, segundo Armando
Pereira (1976, p. 05), “[...] desde que o homem criou o dinheiro, criou também a
prostituta. Nesse momento a mulher ingressou na categoria de mercadoria encontradiça
no mercado. Não é a prostituta senão a resultante da ausência de amor e da presença do
dinheiro.” Mais uma mostra de que, dentro ou fora das indústrias e escritórios, o mundo
dos homens da cidade passa a ser o mundo das coisas, das mercadorias: mulheres são
como produtos, seus corpos expostos aos potenciais clientes, tentam atrair aqueles que,
imersos no mundo da comercialização, compram a companhia de uma mulher ou
algumas horas de prazer.
Após justificar os motivos pelos quais “caiu na vida”, reforça sua afeição à atividade
que passou a desempenhar: “E gostei, porque sou uma pessoa muito carinhosa, tinha
carinho por todos os homens. Além do mais, na zona era divertido porque havia muita
conversa entre as coleguinhas” (LISPECTOR, 2006, p. 91). E posteriormente suspira,
enfaticamente, como podemos observar através do ponto de exclamação ao final da
frase, quando diz: “Ai que saudade da zona!” (LISPECTOR, 2006, p. 92). Há nesse
aspecto uma tensão entre a imagem de desvio e repúdio social a essas mulheres e à
relativização de tais preconceitos por meio da identidade assumida e aceita por elas que
4
Informação disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Vila_Mimosa
constrói uma auto-representação positiva, sem levar em conta a estigmatização negativa
direcionada à mulher prostituta. A respeito dessa dupla construção identitária, de um
lado a imagem promulgada pela sociedade e do outro a construída pelas próprias
prostitutas, Maria Gaspar assevera:
Batia mas não era somente porque ao bater gozava de grande prazer
sensual [...] é que também considerava de dever seu evitar que a
menina viesse um dia a ser uma dessas moças que em Maceió ficavam
nas ruas de cigarro aceso esperando homem. (LISPECTOR, 2006, p.
31)
Neste sentido, o uso do corpo para o coito apenas pelo prazer sexual se caracterizou, por
muito tempo, como um ato profano. Gey Espinheira posiciona-se acerca desse assunto
dizendo que:
Nos dias de hoje tal preceito se perpetua por meio da condenação das igrejas católica e
ortodoxa, além dos praticantes do hinduísmo, ao uso de preservativos e métodos
anticoncepcionais que evitariam a concepção, atentando contra o princípio do direito à
vida. Ou seja, condena-se o uso de contraceptivos em defesa do ato sexual para fins
reprodutivos, por conseguinte, a prostituição é objurgada, além dos aspectos amorais da
libertinagem e da devassidão, pela prática do sexo sem fins reprodutivos e a prostituta
representando, portanto, o lado negativo e transgressor do ideal de comportamento
sexual.
Entretanto, a figura da prostituta é composta por uma dupla condição, está submersa
num paradoxo de negação visível e aceitação invisível. Socialmente repudiada, as
explicações para sua existência passam por questões ligadas a dificuldades financeiras e
vão até necessidades pessoais como causas para tal comportamento, mas, para além
dessas explicações, a prostituta é vista – e aceita – como um “mal necessário” à
sociedade. Segundo Simone de Beauvoir (1970, p. 126-127), “[...] relegadas
hipocritamente à margem da sociedade, as prostitutas desempenham papel dos mais
importantes. O cristianismo despreza- as mas as aceita como um mal necessário.”
Corrente de pensamento que segue o que foi dito por Santo Agostinho a esse respeito:
São Tomás de Aquino (apud GASPAR, 1994, p. 68) endossa os mesmos conceitos
aludidos por Santo Agostinho: “[...] retirem-se as cloacas da cidade e tudo se encherá de
imundície. Retirem-se as meretrizes e tudo se encherá de libido.” E mais ainda, para
Margareth Rago (1991, p. 173), “[...] para alívio de pais preocupados com a sexualidade
dos adolescentes, as meretrizes eram absolvidas por exercerem a tarefa de iniciação dos
rapazes no campo sexual, garantindo-se ao mesmo tempo a castidade das futuras
esposas e o futuro desempenho masculino.” Tal aceitação, pois, se justifica em nome da
manutenção da moral cristã da mulher “mãe de família”, recatada e honrada. À
prostituta, em contraponto, cabe a defesa da ordem frente aos entusiasmos sexuais
masculinos.
Ainda analisando a figura de madama Carlota, nos chama atenção a estreita relação
existente entre o sagrado e o profano na alegorização dessa personagem. No início da
conversa com Macabéa a cartomante faz referência a Jesus Cristo como sendo seu
amigo e protetor, mostrando à nordestina um quadro com o coração de Jesus em cores
vermelha e dourada. Diz mais: que Jesus sempre a ajudou, por isso ela era fã daquele
que, para o cristianismo, é o filho de Deus, representação do sagrado. A ex-prostituta
não faz nenhuma menção a Deus, apenas a Jesus e, em vários momentos, repete o nome
do filho de Deus, chamando-o de “meu amigo Jesus”, além disso, expõe que é ele quem
a protege da polícia e concedeu a ela, através da prostituição, dinheiro para comprar o
apartamento e a mobília. Diz ela: “Eu sou fã de Jesus. Sou doidinha por Ele. Ele sempre
me ajudou. [...] Seja também fã de Jesus porque o Salvador salva mesmo”
(LISPECTOR, 2006, p. 90). Essa salvação à qual madama Carlota se refere pode estar
relacionada ao fato de Jesus Cristo, segundo a Bíblia, ter perdoado a mulher pecadora
que lavou-lhe os pés com lágrimas, como consta no Evangelho de Lucas, capítulo 7,
versículos 37 a 50: “Apareceu então certa mulher, conhecida na cidade como pecadora.
[...] A mulher se colocou por trás, chorando aos pés de Jesus; com lágrimas começou a
banhar-lhe os pés. Em seguida, os enxugava com os cabelos [...] E Jesus disse à mulher:
seus pecados estão perdoados” (BÍBLIA, 1991, p. 149-150). Ou ainda, ter livrado do
apedrejamento uma adúltera. Conforme passagem do evangelho de João, capítulo 8,
versículos 4 a 22: “Disseram a Jesus: ‘Mestre essa mulher foi pega em flagrante
cometendo adultério. A Lei de Moisés manda que mulheres desse tipo sejam
apedrejadas. E tu o que dizes?’ [...] Então Jesus levantou e disse: Quem de vocês não
tiver pecado, atire a primeira pedra” (BÍBLIA, 1991, p. 216), vendo que todos se
afastaram e ninguém a apedrejou, Jesus disse ainda, “eu também não a condeno”.
Segundo os preceitos do cristianismo, prostituir-se é profanar o corpo, e sabendo dessa
simbologia, madama Carlota pode ter vinculado o perdão de Jesus Cristo às mulheres
pecadoras, como vimos nas passagens bíblicas supracitadas, à sua vida de pecados e
intuitivamente imaginava-se também perdoada por ele. Talvez haja uma culpa incutida
no subconsciente da ex-prostituta que a leva a se apegar ao Salvador no intuito de
minimizar, em si mesma, uma possível crise existencial desencadeada pelo paradoxo da
satisfação que demonstra em ter sido prostituta e, ao mesmo tempo, conceber essa
prática como um pecado. Mircea Eliade, no livro, O Sagrado e o profano (1991),
discute o fato de muitos indivíduos buscarem na religião ou nos símbolos religiosos a
resolução para seus problemas interiores, ou até mesmo a tão almejada “salvação”
aludida por madama Carlota por intermédio de Jesus Cristo. A esse respeito a autora
diz:
Madama Carlota, não diferente de Macabéa e Glória, também tinha suas carências
afetivas. Na época em que era prostituta se envolvera com um homem a quem dedicava
o seu mais íntimo e sincero sentimento: o amor. Em uma declaração que choca pela
naturalidade espantosa com a qual revela detalhes de sua relação amorosa, diz que
sustentava financeiramente um homem de quem era, também, vítima de violência física
e que todas essas atrocidades eram luxo ou prova de amor. Disse a cartomante:
O que mais espanta e que não nos parece normal é que tamanha submissão seja
encarada, pela mulher submetida, como algo normal e que, de alguma maneira, possa
lhe trazer algum prazer, como declara a cartomante; “eu gostava de apanhar”. Tal
submissão vai além da violência física e passa a ser uma violência simbólica, pois esse
homem fez-se sentir como alguém que ao invés de fazer o mal, fazia o bem à Carlota.
Clarice Lispector nos apresenta, então, a figura do gigolô, aquele que vive às custas de
uma mulher a quem explora física e financeiramente mas, ironicamente, esse homem é
descrito pela vítima da exploração não como algoz, mas como alguém que praticava tais
violências por amor.
Era um homem que não gostava de trabalhar, dessa maneira, não exercia nenhuma
atividade externa que lhe desse a satisfação de deter o poder de exercer o papel de
domínio na esfera pública que sempre foi destinado ao homem, enquanto à mulher
cabiam os afazeres da órbita privada. Nesse caso há, de certo modo, uma inversão de
papéis, pois cabia a Carlota o exercício das atividades na esfera pública, sustentando-o e
mantendo-o na esfera privada. Embora essa fosse uma escolha dele, pois “não queria se
gastar em trabalho algum”, pode ser que tal situação o fizesse, de algum modo, se sentir
com seu poder de dominação ameaçado, pois nesse caso estava desprovido de
autoridade no espaço público – no trabalho e na política – não atendendo àquilo que
previa a ideologia dominante acerca do papel masculino e a violência física praticada
contra a prostituta que o mantinha seria um substituto compensatório para essa falta de
domínio no espaço mais amplo da sociedade, uma maneira de provar seu poder de
dominação enquanto homem. No artigo “Mulheres pobres e violência no Brasil
Urbano”, Rachel Soihet diz que o homem que não assumia o papel de dominador típico
do padrão patriarcal,
Além de tal fraqueza, some-se a isso o ciúme por saber que o dinheiro adquirido por
Carlota sobrevinha da relação com outros homens, embora saibamos que para o gigolô a
fidelidade era menos importante que a satisfação financeira. O corpo da mulher, para
ele, era um meio de produção de capital. Para Lená Medeiros de Menezes (1992), em
estudo intitulado Os estrangeiros e o comércio do prazer nas ruas do Rio (1890-1930),
a prostituição sofreu mudanças qualitativas com a expansão do capitalismo, embora
fosse tão antiga quanto as sociedades humanas, tal atividade se revestiu de novas
configurações, sobretudo mercadológicas, num momento em que o trabalho aparecia
glorificado como valor social e a escravidão era combatida em todas as suas dimensões,
a exploração da mulher pelos gigolôs surgia como uma nova escravidão. Segundo a
autora:
Depois que ele desapareceu, eu, para não sofrer, me divertia amando
mulher. O carinho de mulher é muito bom mesmo, eu até lhe
aconselho porque você é delicada demais para suportar a brutalidade
dos homens e se você conseguir uma mulher vai ver como é gostoso,
entre mulheres o carinho é muito mais fino. (LISPECTOR, 2006, p.
92)
A narrativa de Clarice Lispector mais uma vez rompe com a barreira dos estereótipos e
preconceitos e traz à tona um tema que na década de 1970 ainda era um tabu: o
homossexualismo. De forma natural, a cartomante afirma que mantinha relações com
outras mulheres, colegas de trabalho, e não demonstra nenhum constrangimento ao
fazer tal declaração, como se no ambiente da prostituição existisse uma cultura própria
que, em sua condição divergente, como um submundo delineado pela segregação social,
forma outro sistema de valores coerente com a realidade do grupo que compartilha de
outras formas de relacionamento, como é o caso do homossexualismo entre as
prostitutas, colegas de madama Carlota. Lispector ousa, então, colocar em seu romance
uma temática proibida pela censura ditatorial brasileira da época, que segundo Cláudio
Roberto Silva, só começou a ser divulgada pela mídia por volta de 1976, ano em que
“[...] o jornalista Celso Curi toma a iniciativa de publicar uma coluna com informações
diárias sobre o meio homossexual. Só a partir deste ano se iniciou a abertura pública de
uma matéria pré-cultivada e encerrada no
ambiente urbano brasileiro” (SILVA, 1998, p. 82). A publicação de tal coluna gerou
uma enorme repercussão na época, ano anterior à publicação de A Hora da estrela, por
Clarice Lispector. O colunista comenta que sofreu grande retaliação por trazer a público
tal tema, sendo ameaçado de morte e processado sob a acusação de sua coluna atentar
contra a moral e os bons costumes. Celso Curi explana a respeito do ocorrido:
Antes do Samuel sair do Última Hora, propus a ele fazer uma coluna,
a qual deveria ficar entre duas outras: uma coluna machista do Plínio
Marcos e uma coluna feminista... no meio, eu escreveria uma coluna
sobre homossexualidade. Foi um escândalo... as pessoas me achavam
louco. Elas diziam: "- Imagina, ninguém faz isso! Não existe em
nenhum lugar do mundo uma coluna que fale desse assunto!". Assim
criamos a Coluna do Meio. [...] Nas primeiras semanas recebi ameaças
escritas com sangue. Logo em seguida fui processado pela União
Federal "por atentado à moral e aos bons costumes pela união de seres
anormais". Este é o título do processo. (CURI apud SILVA, 1998, p.
82 – 83)
Diante disso, vê-se a tamanha audácia de Clarice Lispector em tratar de relações entre
mulheres em um livro publicado na década de 1970, período em que, conforme vimos,
havia uma forte repressão àqueles que atentassem contra a moral e os bons costumes,
estando a autora sujeita a sansões em nome da manutenção desses preceitos. Mais uma
vez Lispector põe à mostra em A Hora da estrela a história das minorias, não bastando
revelar a saga de nordestinos na grande cidade, trata, desta vez, embora sem dar muita
ênfase, de outra classe também marginalizada, a dos homossexuais.
A figura da cartomante em A Hora da estrela tem papel decisivo nas ações das demais
personagens, suas previsões direcionam os fatos da narrativa e condicionam as
mulheres que a procuraram – Glória e Macabéa – a agirem conforme suas adivinhações.
Madama Carlota intervém, como a maioria das cartomantes, diretamente na vida
amorosa das personagens: Glória, ao se envolver com o namorado da colega, justifica
que tal atitude teve como base as previsões de sua cartomante. Macabéa, por sua vez,
instigada pela euforia e pela ânsia de se encontrar com seu “príncipe encantado”, o
estrangeiro profetizado pela cartomante como o grande amor de sua vida, sai radiante da
casa da vidente e, envolta por esse êxtase, ao atravessar a rua sofre um acidente fatal.
Madama Carlota tem o poder de, por meio de suas previsões, influenciar nas ações das
mulheres que a procuram. Suas cartas atraem aquelas que se veem mergulhadas nas
incertezas e inseguranças “quanto ao futuro5”. Há no ser humano a natural curiosidade
acerca do “amanhã” e as cartomantes se aproveitam dessa curiosidade para ganharem
5
Um dos treze possíveis títulos do romance pensados por Clarice Lispector, todos constam no início do
romance. São eles: A Hora da Estrela, A culpa é minha, Ela que se arranje, O direito ao grito, Quanto ao
futuro, Lamento de um blue, Ele não sabe gritar, Uma sensação de perda, Assovio no vento escuro, Não
posso fazer nada, Registro dos fatos antecedentes, História lacrimogênica de cordel e Saída discreta pela
porta dos fundos.
dinheiro vendendo o futuro às pessoas. Mas as cartomantes não só desempenham o
papel de advinhas e prevêem o futuro, elas também assumem o papel de conselheiras,
daquelas que certamente terão uma palavra de conforto ou de esperança para as pessoas
que, ao procurarem esse tipo de “serviço”, comumente estão enfrentando algum
problema, geralmente conflitos interiores, e buscam a resolução dos mesmos através das
palavras daquelas que assumem o papel de “terapeutas”, ou como popularmente se diz:
“psicólogas dos pobres”. Sentar-se à mesa de uma cartomante é como se estivessem no
divã, contando seus problemas a um desconhecido e esperando dele um conselho que
consiga amenizar ou apaziguar os problemas que afligem os clientes/pacientes.
O narrador coloca madama Carlota como a principal responsável pelo ponto alto da
existência de Macabéa, já que a vidente ganha a responsabilidade de fazê-la perceber-se
enquanto ser oprimido e inconsciente da miséria e da opressão à qual sempre esteve
submetida. A presença da cartomante ganha o espaço do elemento mágico, responsável
por trazer consciência e esperança à Macabéa. Para João Ribeiro Júnior (1985, p. 24),
“[...] a cartomancia é uma, entre tantas práticas mágicas de adivinhação, que tem no
jogo das cartas a sua procura por revelação. Pode ser entendida como uma prática de
adivinhação externa, artificial ou indutiva pela observação e interpretação de sinais
exteriores, enviados pelos deuses.” Essa interpretação de fatos enviados por divindades
é assumida pela cartomante criada por Clarice Lispector. Madama Carlota recepciona
Macabéa avisando que já tinha conhecimento de sua vinda, pois já havia sido avisada
pela entidade sobrenatural que rege suas previsões: o guia. Disse ela à nordestina: “[...]
o meu guia já tinha me avisado que você vinha me ver” (LISPECTOR, 2006, p. 89). Foi
a primeira vez que Macabéa encorajou-se para ter esperança, vaidade, consciência da
vida sofrida e todos os outros sentimentos e aspirações que nunca teve antes. Nascera
ali, naquele instante, pela primeira vez refletiria sobre o passado e teria expectativas de
futuro:
Madama acertou tudo sobre o seu passado, até lhe disse que ela mal
conhecera pai e mãe e que fora criada por uma parente muito madrasta
má. Macabéa espantou-se com a revelação: até agora sempre julgara
que o que a tia lhe fizera era educá-la para que ela se tornasse uma
moça mais fina. (LISPECTOR, 2006, p. 94)
Macabéa nunca tinha tido coragem de ter esperança. Mas agora ouvia
a madama como se ouvisse uma trombeta vinda dos céus - enquanto
suportava uma forte taquicardia. Madama tinha razão: Jesus enfim
prestava atenção nela. Seus olhos estavam arregalados por uma súbita
voracidade pelo futuro (explosão). (LISPECTOR, 2006, p. 95)
Macabéa encontra nas palavras de madama Carlota a coragem para ser o que nunca foi.
Ela, que nunca soube ao certo quem era Deus, agora estava muito próxima do filho do
divino, pois “Jesus enfim prestava atenção nela”. Essa atenção de Jesus à alagoana diz
respeito ao prognóstico das cartas de que ela conheceria um estrangeiro rico e ele seria o
responsável pela libertação da nordestina do estado de pobreza:
Agora estou vendo outra coisa (explosão) e apesar de não ver muito
claro estou também ouvindo a voz de meu guia: esse estrangeiro
parece se chamar Hans, e é ele quem vai se casar com você! Ele tem
muito dinheiro, todos os gringos são ricos. Se não me engano, e nunca
me engano, ele vai lhe dar muito amor e você, minha enjeitadinha, vai
se vestir com veludo e cetim e até casaco de pele vai ganhar!
(LISPECTOR, 2006, p. 95-96)
Macabéa que até então “[...] não se preocupava com o próprio futuro [pois para ela] ter
futuro era luxo” (LISPECTOR, 2006 p. 71), saiu da casa da cartomante extasiada pelo
porvir. A nordestina já era outra pessoa, redimida de todo o sofrimento ao qual sempre
esteve submetida, finalmente teria tudo aquilo que sempre necessitou e foi privada de
ter. “É que a vida lhe era tão insossa que nem pão velho sem manteiga” (LISPECTOR,
2006, p. 71), mas agora as cartas haviam lhe revelado um novo mundo:
Tudo que antes lhe parecia tão pouco se apresentava como algo grandioso. As predições
da cartomante lhe decretaram a sentença de vida, como uma espécie de redentora, a ex-
prostituta agora se reveste do poder de prenunciar o futuro e de mudar a existência de
Macabéa. Suas palavras interferiram de tal modo na essência de Macabéa que ela jamais
seria a mesma depois de ouvir tais promessas. Perplexa, a nordestina atravessa a rua e
morre atropelada. “Macabéa ao cair ainda teve tempo de ver, antes que o carro fugisse,
que já começavam a ser cumpridas as predições de madama Carlota, pois o carro era de
alto luxo” (LISPECTOR, 2006, p. 99).
Será que a madama Carlota viu nas cartas o destino fatal de Macabéa e, ciente de todo o
seu passado sofrido, quis lhe dar esperança ou lhe proporcionar alguma alegria nos seus
últimos momentos de vida? Que cartas a nordestina teria tirado? Sabemos apenas que a
vida de Macabéa realmente mudou, primeiro pela consciência de si mesma e pela
esperança de futuro, posteriormente pela morte prenunciada nas cartas tiradas pela
cliente que lhe antecedera na consulta à cartomante. Se o destino certo de Macabéa – a
morte em consequência de um atropelamento – foi previsto nas cartas anteriores às que
ela tirou, pode ser que a bonança presumidas nas cartas retiradas pela alagoana sejam
justamente a fortuna da moça que aguardava na sala para consultar-se com a cartomante
logo após a saída de Macabéa, pois se a nordestina protagonizou a previsão feita para a
moça que lhe antecedera, sua sucessora poderia, também, assumir o destino daquela que
lhe antecedeu na consulta. Clarice Lispector aguça a curiosidade do leitor, deixando
inúmeras possibilidades que jamais poderão se esgotar já que a obra ficcional se
compõe de muitas entrelinhas e implícitos que dão margem a infindas maneiras de olhar
e interpretar.
Nota-se, pela análise das próprias palavras, que a madama Carlota não diz a verdade
quando afirma que tudo que recebe destina a obras de caridade, pois, ironicamente,
Clarice Lispector, ao criar tal justificativa para o destino do dinheiro nos dá uma
importante pista para a inexatidão da afirmação de madama Carlota: quem se abriga em
asilos são os idosos, a entidade que cuida de crianças é orfanato e não asilo. Para
Haakon Chevalier (apud MUECKE, 1995, p. 52) “[...] o traço básico de toda ironia é
um contraste entre uma realidade e uma aparência.” Neste sentido, a cartomante diz
estar fazendo uma coisa com o dinheiro adquirido, aparentando ser uma criatura
caridosa, quando, na realidade, faz outra coisa totalmente diferente, usando o dinheiro
para o próprio sustento. Além disso, se o dinheiro adquirido com seu vaticínio fosse
realmente destinado à caridade, a polícia não a perseguiria sob a acusação de
exploração, conforme palavras da cartomante: “Olhe, a polícia não deixa pôr cartas,
acha que estou explorando os outros, mas, como eu lhe disse, nem a polícia consegue
desbancar Jesus” (LISPECTOR, 2006, p. 90).
Essa relação ambígua de atração pelo progresso e repúdio ao descaso da vida nas
periferias tem aparecido nas narrativas literárias, corroborando o que diz Malcolm
Bradbury (1989, p. 77) ao afirmar que “[...] o poder de atração e repulsão da cidade tem
fornecido temas e posturas que atravessam profundamente a literatura, na qual a cidade
aparece mais como metáfora do que como lugar físico.” Temos nos deparado com a
cidade das multidões, que têm a rua como lugar comum para a manifestação da cultura
do isolamento humano, cenário de permanente mutação. Tal transitoriedade também se
reflete na desestabilização dos valores sociais que tem contribuído significativamente
para o desaparecimento dos laços comunitários, levando os indivíduos cada vez mais a
potencializarem a segregação daqueles que, tal qual Macabéa, vivem à margem dos
códigos instituídos pelo sistema dominante.
Sofrendo os efeitos de uma ordem social injusta e discriminatória, e tendo seu cotidiano
marcado pelas dificuldades de sobrevivência, a frágil personagem alagoana foi
submetida a uma violência simbólica. Todos os dias sujeitava-se à tortura silenciosa do
desamparo e da rejeição, era como uma erva daninha invadindo a concretagem da urbe,
precisava ser extirpada, pois não estava em conformidade com o modelo de habitante
reclamado pelas exigências do grande eldorado. Jamais teve o direito de inserção no
novo universo ao qual depositara a esperança da realização de seu único sonho: ser
estrela de cinema. Representou apenas o papel de si mesma, assumindo uma encenação
da própria vida, como se vivesse aquilo que lhe incutiam a viver. Apropriava-se de
estereótipos que eram absorvidos como verdades absolutas a partir de conceitos
extrínsecos que constituíam o pouco do que ela conseguia ser:
Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que pensava
com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só
então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com
obediência o papel de ser. [...] A datilógrafa vivia numa espécie de
atordoado nimbo, entre céu e inferno. Nunca pensara em "eu sou eu".
Acho que julgava não ter direito, ela era um acaso. (LISPECTOR,
2006, p. 53)
E não apenas Macabéa está submetida a essa coisificação do ser humano em detrimento
da aquisição do dinheiro numa dinâmica eminentemente capitalista. Olímpico
aproxima-se de Glória por interesses financeiros, vendo nessa união uma maneira de
ascender socialmente, como se a moça fosse apenas uma espécie de facilitadora de seus
objetivos, sem levar em conta aquilo que é visto como mediador das relações entre os
casais: o amor.
Nessa interação homem-cidade, a relação amorosa também tem grande importância nas
vidas das personagens femininas. Realizar-se plenamente, para estas mulheres, significa
encontrar a felicidade ao lado de um amor. Para elas, encontrar “a outra metade” é o
único meio pelo qual poderão encontrar a tão sonhada felicidade. Idealizam o par
amoroso e, para conquistar esse homem idealizado, não medem esforços. Imaginam
que, através dessa união, alcançarão a completude total, que nada mais irá lhes faltar e,
para isso, fica implícito que essas mulheres esperam ter todas as suas necessidades
satisfeitas pelo outro.
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