03 - A Lenda de Drizzt - Refúgio - R. A. Salvatore

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A Lenda de Drizzt, Vol.

3 — Refúgio
©2004 Wizards of the Coast, LLC. Todos os direitos reservados.
Dungeons & Dragons, D&D, Forgotten Realms, Wizards of the Coast, The Legend
of Drizzt e seus respectivos logos são marcas registradas de Wizards of the Coast, LLC.

CRÉDITOS
Título Original: The Legend of Drizzt, Book 3: Sojourn
Tradução: Carine Ribeiro
Revisão: Rogerio Saladino e Rafael Dei Svaldi
Diagramação: Tiago H. Ribeiro
Ilustrações da Capa: Todd Lockwood
Ilustrações do Miolo: Dora Lauer e Walter Pax
Conversão para e-book: Vinicius Mendes
Editor-Chefe: Guilherme Dei Svaldi
Rua Coronel Genuíno, 209 • Porto Alegre, RS • CEP 90010-350 • Tel (51) 3391-0289 •
editora@jamboeditora.com.br • www.jamboeditora.com.br
Todos os direitos desta edição reservados à Jambô Editora. É proibida a reprodução total
ou parcial, por quaisquer meios existentes ou que venham a ser criados, sem autorização
prévia, por escrito, da editora.
1ª edição: agosto de 2018
Dramatis personae

Agorwal de Termalaine
Amigo de Drizzt.

Algazarra
Um urso marrom que mora perto do bosque de Montólio.

Angelander, o Tolo de Prata


Um dragão de prata.

Bartholomew Thistledown
Pai dos irmãos Thistledown, Bartholomew viveu toda sua vida em
Maldobar.

Belwar Dissengulp
Um gnomo das profundezas que foi mutilado pelo irmão de Drizzt.

Benson Delmo
Prefeito de Maldobar.

Bruenor Martelo de Batalha


Patriarca anão do clã Martelo de Batalha e rei legítimo dos Salões
de Mithral.

Caroak
Um poderoso lobo invernal, veterano de mais de cem batalhas.

Cattibrie
Uma garota humana, filha adotiva de Bruenor.

Connor Thistledown
O mais velho dos irmãos Thistledown.

Calçalargas
Um gigante das colinas que serve a Ulgulu e Kempfana.
Columba Garra-de-Falcão
Uma das Sete Irmãs, Columba é uma ranger que já matou muitos
gigantes.

Darda
Um homem baixo e muito musculoso, com uma barba cerrada.

Dilamon
Uma ranger e antiga mentora de Montólio.

Dinin Do’Urden
Um dos irmãos de Drizzt.

Drizzt Do’Urden
Um elfo negro da cidade de Menzoberranzan, filho de Zaknafein e
da Matriarca Malícia Do’Urden.

Eleni Thistledown
Uma jovem que age como uma mãe para seus irmãos mais
novos.

Estalo
Um pech, amigo de Drizzt.

Flanny Thistledown
Irmã mais nova da família Thistledown.

Fredegar Esmaga-Pedra
O assistente anão de Columba Garra-de-Falcão.

Gabriel
Um guerreiro alto, de expressão severa, que viaja com Columba
Garra-de-Falcão.

Graul
O chefe orc da região do Estreito do Orc Morto.
Grudby, o Inepto
Um goblin que fingiu ser um arquimago.

Guenhwyvar
Uma estatueta mágica que pode se transformar em uma pantera.
Companheira leal de Drizzt.

Hephaestus
Um dragão vermelho venerável que vive nas cavernas perto de
Mirabar.

Irmão Jankin
Um dos Frades Penitentes.

Irmão Herschel
Outro Frade Penitente

Irmão Mateus
Líder dos Frades Penitentes.

Kellindil
Um arqueiro elfo que odeia os drow.

Kempfana
Irmão de Ulgulu, um filhote de barghest.

Lady Alustriel
Senhora de Lua Argêntea, uma das sete irmãs.

Liam Thistledown
Um menino obstinado de dez anos de idade e um notório
mentiroso.

Markhe Thistledown
Pai de Bartholemew Thistledown.
Masoj Hun’ett
Um drow que já foi dono de Guenhwyvar.

Matriarca Malícia
Mãe de Drizzt e a Matriarca da Casa Do’Urden.

Mergandevinasander de Chult
Um dragão negro.

Montólio DeBrouchee
Um cego recluso que ensinou a Drizzt os caminhos dos rangers.

Nalfein Do’Urden
Um dos irmãos de Drizzt.

Nathak
Um goblin.

Piante
Coruja que atua como batedora para Montólio.

Porta-Voz Cassius
Porta-voz de Bryn Shander e o Porta-Voz Principal do Conselho
Governante de Bez-Burgos.

Roddy McGristle
Um fazendeiro e caçador de recompensas.

Shawno Thistledown
O segundo irmão mais novo depois de Liam Thistledown.

Tephanis
Um célere que trabalha para Ulgulu e Kempfana.

Ulgulu
Uma terrível criatura da Gehenna que se alimenta da força vital
dos mortais.
Zaknafein
Pai, mentor e amigo mais querido de Drizzt.
Prelúdio

O ELFO NEGRO SENTOU-SE na montanha deserta, observando


ansiosamente enquanto a linha avermelhada crescia além do
horizonte a leste. Aquele seria talvez seu centésimo nascer do sol, e
ele conhecia bem a dor que a luz abrasadora traria a seus olhos cor
de lavanda — olhos que conheciam apenas a escuridão do
Subterrâneo há mais de quatro décadas.
Porém, o drow não se afastou quando o topo flamejante do sol
surgiu no horizonte. Ele aceitou a luz como seu purgatório, uma dor
necessária para seguir o caminho que escolhera, para se tornar
uma criatura do mundo da superfície.
A fumaça cinzenta flutuava diante do rosto de pele escura do
drow. Ele sabia o que ela significava sem sequer olhar para baixo.
Sua piwafwi, o manto mágico feito pelos drow que o protegera dos
olhos dos inimigos tantas vezes no Subterrâneo, finalmente
sucumbira à luz do dia. A magia do manto tinha começado a se
desvanecer semanas antes, e o próprio tecido estava simplesmente
derretendo. Buracos imensos apareciam à medida que os pedaços
da roupa se dissolviam, e o drow apertou os braços com firmeza
para salvar o máximo que pudesse.
Não faria diferença, ele sabia; o manto estava condenado a se
desfazer neste mundo tão diferente de onde fora criado. O drow
agarrou-se desesperadamente a ele, vendo ali, de alguma forma,
uma analogia a seu próprio destino.
O sol se ergueu mais e as lágrimas rolaram dos olhos
semicerrados do drow. Ele não podia mais ver a fumaça, não podia
ver nada além do brilho cegante daquela bola de fogo terrível. Ainda
assim, sentou e observou durante todo o amanhecer.
Para sobreviver, teria que se adaptar.
Drizzt empurrou o dedo do pé dolorosamente contra uma fenda
na pedra e desviou sua atenção de seus olhos, das tonturas que
ameaçavam tomá-lo. Pensou no quão finas suas botas
delicadamente tecidas haviam se tornado e sabia que elas também
logo se dissolveriam.
E suas cimitarras? Será que suas magníficas armas drow, que o
apoiaram durante tantas provações, deixariam de existir? Que
destino teria Guenhwyvar, a pantera mágica que era sua
companheira? Inconscientemente, o drow deixou uma mão cair em
seu bolso para sentir a estatueta maravilhosa, tão perfeita em todos
os detalhes, que ele usava para invocar a gata. Sua solidez o
tranquilizou naquele momento de dúvida. Mas e se ela também
houvesse sido trabalhada pelos elfos negros, e se também fosse
imbuída da magia tão particular a seu domínio? Será que
Guenhwyvar logo se perderia?
— Que criatura deplorável eu me tornarei — o drow lamentou em
sua língua nativa. Ele se perguntou, não pela primeira vez e
certamente não pela última, se sua decisão de deixar o
Subterrâneo, de rejeitar o mundo de seu povo maligno, fora sábia.
Sua cabeça tombava, o suor descia em seus olhos, aumentando
o ardor. O sol continuava sua ascensão e o drow não conseguiu
mais suportar. Levantou e virou-se para a pequena caverna que
tomara como sua casa, então novamente pousou distraidamente
uma mão na estatueta da pantera.
Sua piwafwi pendia em farrapos sobre ele, servindo como uma
escassa proteção contra o frio dos ventos da montanha. Não havia
vento no Subterrâneo, exceto pelas ligeiras correntes que se
elevavam das piscinas de magma, e nem frio, exceto pelo toque
gelado de algum monstro morto-vivo. Este mundo da superfície, que
o drow conhecia há vários meses, apresentava muitas diferenças,
muitas variáveis… variáveis demais, ele pensava frequentemente.
Drizzt Do’Urden, porém, recusava-se a se render. O Subterrâneo
era o mundo dos seus, de sua família, e naquela escuridão ele não
encontraria descanso. Seguindo as exigências de seus princípios,
ele havia se rebelado contra Lolth, a Rainha Aranha, a divindade
maligna que seu povo reverenciava acima da própria vida. Os elfos
negros, a família de Drizzt, não iriam perdoar sua blasfêmia, e o
Subterrâneo não tinha buracos suficientemente profundos para
escapar de seu alcance.
Mesmo que Drizzt acreditasse que o sol o queimaria por
completo, como queimava suas botas e sua preciosa piwafwi,
mesmo se ele se tornasse nada além daquela fumaça cinzenta,
imaterial, espalhada na brisa da montanha gelada, manteria seus
princípios e dignidade, aqueles elementos que faziam sua vida valer
a pena.
Drizzt tirou os restos de sua capa e jogou-os em um buraco
fundo. O vento gelado beliscou sua testa suada, mas o drow
caminhava reto e orgulhoso, sua expressão firme e seus olhos
lavanda bem abertos.
Este era o destino que havia escolhido.

Ao longo de outra montanha, não tão longe dali, outra criatura


observava o sol nascente. Ulgulu também havia deixado seu local
de nascimento, as fendas imundas e fumegantes que marcavam o
plano de Gehenna, mas o monstro não viera por sua própria
vontade. Era o destino de Ulgulu, sua penitência, crescer neste
mundo até conseguir força suficiente para retornar ao seu lar.
O destino de Ulgulu era o assassinato, alimentar-se da força vital
dos mortais fracos a seu redor. Agora estava perto de alcançar sua
maturidade: enorme, robusto e terrível.
Cada morte o deixava mais poderoso.
PARTE 1
Aurora
ELE QUEIMAVA MEUS OLHOS e fazia cada parte de meu corpo
doer. Destruiu minha piwafwi e minhas botas, roubou a magia de
minha armadura e enfraqueceu minhas confiáveis cimitarras. Ainda
assim, todos os dias, sem falta, eu estava lá, sentado em meu
poleiro, meu lugar na plateia, para aguardar o nascer do sol.
Ele vinha até mim a cada dia de forma paradoxal. A dor não podia
ser negada, mas tampouco eu podia negar a beleza do espetáculo.
As cores antes da aurora agarravam minha alma de uma maneira
que nenhum padrão de emanações de calor no Subterrâneo
poderia. De início achei que o meu transe fosse o resultado da
estranheza da cena, mas mesmo agora, muitos anos depois, sinto
meu coração saltar ao contemplar o brilho sutil que anuncia o
amanhecer.
Agora sei que meu período ao sol — minha penitência diária —
era mais do que um mero desejo de me adaptar ao mundo da
superfície. O sol veio a se tornar o símbolo da diferença entre o
Subterrâneo e meu novo lar. A sociedade da qual fugi, um mundo de
relações secretas e conspirações traiçoeiras, não poderia existir nos
espaços abertos sob a luz do dia.
Este sol, apesar de toda a angústia que me trouxe fisicamente,
representa minha negação daquele outro mundo mais sombrio.
Aqueles raios de luz reveladora reforçaram meus princípios com
tanta certeza quanto enfraqueceram os itens mágicos feitos pelos
drow.
À luz do sol, a piwafwi, o manto de proteção que enganava os
olhos atentos, a vestimenta de ladrões e assassinos, não passava
de um trapo esfarrapado e sem valor.
— Drizzt Do’Urden
CAPÍTULO 1
Lições Pungentes
DRIZZT SE ARRASTOU POR TRÁS DOS ARBUSTOS ATÉ a
pedra plana e nua que levava à caverna que agora servia como sua
casa. Ele sabia que algo havia passado por aquele caminho
recentemente — muito recentemente. Não havia pegadas para
serem vistas, mas o cheiro era forte.
Guenhwyvar circulava nas rochas acima da caverna da encosta.
A visão da pantera deu ao drow um pouco de conforto. Drizzt tinha
passado a confiar em Guenhwyvar de forma implícita, e sabia que a
gata afastaria quaisquer inimigos escondidos para uma emboscada.
Drizzt desapareceu na abertura escura e sorriu quando ouviu a
pantera descer logo atrás, cuidando dele.
Drizzt fez uma pausa atrás de uma pedra do lado de dentro da
entrada, deixando seus olhos se ajustarem à escuridão. O sol ainda
era brilhante, embora estivesse mergulhando rapidamente no céu a
oeste, mas a caverna era muito mais escura — o suficiente para
Drizzt deixar a visão deslizar para o espectro infravermelho. Assim
que o ajuste foi concluído, localizou o intruso. O brilho claro de uma
fonte de calor, uma criatura viva, emanava de trás de outra pedra
mais fundo na caverna de uma câmara. Drizzt relaxou
consideravelmente. Guenhwyvar estava a poucos passos de
distância então. Considerando o tamanho da rocha, o intruso não
poderia ser um animal muito grande.
Ainda assim, Drizzt tinha sido criado no Subterrâneo, onde cada
criatura viva, independentemente do tamanho, era respeitada e
considerada perigosa. Ele gesticulou a Guenhwyvar para
permanecer em posição perto da saída e se arrastou, tentando
conseguir um ângulo de observação melhor do intruso.
Drizzt nunca tinha visto aquele animal antes. Parecia quase
felino, mas sua cabeça era menor e mais angular. A criatura devia
pesar poucos quilos. Isto, somado à cauda peluda e ao pelo
espesso, indicavam que era mais um coletor do que um predador. A
criatura inspecionava um punhado de comida, aparentemente sem
notar a presença do drow.
— Vai com calma, Guenhwyvar — Drizzt falou suavemente,
deslizando suas cimitarras de volta às suas bainhas. Ele deu outro
passo em direção ao intruso para olhá-lo melhor, embora
mantivesse uma distância cautelosa para não assustá-lo,
acreditando que talvez pudesse ter encontrado outro companheiro.
Se ao menos conseguisse ganhar a confiança do animal…
O pequeno animal virou-se abruptamente na direção do chamado
de Drizzt, suas patinhas frontais batendo rapidamente contra a
parede.
— Calma, calma — disse Drizzt lentamente, desta vez para o
intruso. — Não vou te machucar — Drizzt deu outro passo e a
criatura sibilou e girou, suas patinhas traseiras sapateando no chão
de pedra.
Drizzt quase riu em voz alta, achando que a criatura pretendia
empurrar-se diretamente através da parede traseira da caverna.
Guenhwyvar se curvou então, e a cautela imediata da pantera
roubou a alegria do rosto do drow.
A cauda do animal subiu; Drizzt percebeu na luz fraca que a
criatura tinha listras distintas correndo por suas costas. Guenhwyvar
gemeu e virou-se para fugir, mas era tarde demais…
Cerca de uma hora depois, Drizzt e Guenhwyvar caminhavam
pelas trilhas mais baixas da montanha em busca de uma nova casa.
Eles haviam recuperado o que podiam, embora não fosse muito.
Guenhwyvar mantinha uma boa distância ao lado de Drizzt. A
proximidade só servia para deixar o fedor pior.
Drizzt lidou com tudo aquilo com calma, embora o mau cheiro de
seu próprio corpo tivesse tornado a lição um pouco mais pungente
do que gostaria. O drow não sabia o nome do animal, é claro, mas
havia marcado sua aparência na memória. Ele estaria mais
preparado da próxima vez que encontrasse um gambá.
— E quanto a meus outros companheiros deste mundo estranho?
— Drizzt sussurrou para si mesmo. Não era a primeira vez que o
drow havia manifestado tais preocupações. Ele sabia muito pouco
sobre a superfície e ainda menos sobre as criaturas que viviam aqui.
Passava os meses dentro da caverna e em seus arredores, com
apenas incursões ocasionais até as regiões mais baixas e
populosas. Lá, em suas explorações em busca de recursos, havia
visto alguns animais, geralmente à distância, e até mesmo observou
alguns humanos. No entanto, ainda não conseguira criar coragem
de sair de seu esconderijo para cumprimentar seus vizinhos,
temendo a rejeição em potencial e sabendo que não tinha para onde
fugir.
O som da água corrente levou o drow e a pantera até um riacho
de águas rápidas. Drizzt imediatamente encontrou uma sombra
protetora e começou a tirar suas roupas e armadura, enquanto
Guenhwyvar descia um pouco na margem para tentar pescar algo.
O som das patas da pantera batendo na água trouxe um sorriso ao
rosto severo do drow. Eles comeriam bem esta noite.
Drizzt abriu a fivela de seu cinto e colocou suas armas
requintadas ao lado de sua cota de malha. Realmente, o drow se
sentia vulnerável sem a armadura e suas armas — nunca as teria
deixado tão longe de seu alcance no Subterrâneo —, mas muitos
meses se passaram desde a última vez que Drizzt precisara usá-las.
Ele olhou para as cimitarras e foi inundado pelas lembranças
amargas da última vez que as usara.
Ele havia lutado contra Zaknafein, seu pai, mentor e amigo mais
querido. Apenas Drizzt havia sobrevivido ao combate. O lendário
mestre de armas se fora, mas o triunfo naquela luta pertencia tanto
a Zak quanto a Drizzt, porque não era realmente Zaknafein quem
havia vindo atrás de Drizzt naquelas pontes de uma caverna cheia
de ácido. Pelo contrário, era o espectro de Zaknafein, sob o controle
da maligna mãe de Drizzt, Matriarca Malícia, que buscava vingança
contra seu filho por sua renúncia a Lolth e à caótica sociedade drow.
Drizzt havia passado mais de trinta anos em Menzoberranzan, mas
jamais aceitara os comportamentos malignos e cruéis que eram a
norma na cidade drow. Ele tinha sido um motivo constante de
constrangimento para a Casa Do’Urden, apesar de sua considerável
habilidade com as armas. Quando fugiu da cidade para viver exilado
no Subterrâneo selvagem, Drizzt fez que sua mãe, uma alta
sacerdotisa, perdesse as boas graças de Lolth.
Como consequência, Matriarca Malícia Do’Urden reergueu o
cadáver de Zaknafein, o mestre de armas que havia sacrificado a
Lolth, e mandou a coisa morta-viva atrás de seu filho. Malícia
calculara mal, porém, porque boa parte da alma de Zak permaneceu
em seu cadáver, o suficiente para que ele se negasse a atacar
Drizzt. No instante em que Zak conseguiu quebrar o controle de
Malícia, gritou em triunfo e saltou para o lago de ácido.
— Meu pai — sussurrou Drizzt, tirando força das palavras
simples. Ele havia conseguido ter sucesso onde Zaknafein falhara;
havia abandonado os caminhos malignos do drow, dos quais Zak
tinha sido prisioneiro durante séculos, agindo como um peão nos
jogos de poder de Matriarca Malícia. No fracasso de Zaknafein, e
em seu consequente fim, o jovem Drizzt encontrou força; na vitória
de Zak na caverna de ácido, Drizzt encontrou determinação. Drizzt
havia ignorado a rede de mentiras que seus antigos professores da
Academia em Menzoberranzan haviam tentado tecer e finalmente
havia se dirigido à superfície para começar uma nova vida.
Drizzt estremeceu quando entrou no riacho gelado. No
Subterrâneo, ele conhecera apenas temperaturas bastante
constantes e a escuridão invariável. Aqui, no entanto, o mundo o
surpreendia a cada passo. Já havia notado que os períodos da luz
do dia e da escuridão não eram constantes; o sol se punha mais
cedo a cada dia e a temperatura — que, ao que parecia, variava de
uma hora para a outra — vinha caindo constantemente durante as
últimas semanas. Mesmo dentro desses períodos de luz e trevas
havia algumas inconsistências. Algumas noites eram visitadas por
uma esfera de prata brilhante e alguns dias eram cobertos de cinza
em vez da cúpula azul brilhante.
Apesar de tudo isso, Drizzt geralmente se sentia confortável com
sua decisão de chegar a esse mundo desconhecido. Olhando para
as armas e a armadura jogadas no chão nas sombras a uma dúzia
de metros de onde se banhava, Drizzt teve que admitir que a
superfície, apesar de toda sua estranheza, oferecia mais paz do que
qualquer parte do Subterrâneo.
Apesar de sua tranquilidade, Drizzt ainda estava em uma área
selvagem. Já estava há quatro meses na superfície e ainda se
encontrava sozinho, exceto quando conseguia convocar sua
companheira felina mágica. Agora, desnudo, exceto por suas calças
esfarrapadas, com os olhos ardendo depois do ataque do gambá,
com seu sentido de olfato perdido dentro da nuvem de seu próprio
aroma pungente e seu senso de audição, normalmente afiado,
embotado pelo barulho da água corrente, o drow estava de fato
vulnerável.
“Devo estar um farrapo”, pensou, passando os dedos esguios por
seus cabelos grossos e brancos. Quando olhou de volta para o
equipamento, o pensamento foi lavado rapidamente da mente de
Drizzt. Cinco formas toscas mexiam em seus pertences e, sem
dúvida, importavam-se muito pouco com a aparência esfarrapada do
elfo negro.
Drizzt analisou a pele acinzentada e os focinhos escuros dos
humanoides de feições canídeas e dois metros de altura, mas,
particularmente, observava as lanças e as espadas que
empunhavam. Ele conhecia esse tipo de criatura, uma vez que já as
havia visto servindo como escravas em Menzoberranzan. Nessa
situação, no entanto, os gnolls pareciam muito diferentes, mais
ameaçadores do que Drizzt se lembrava.
Ele considerou brevemente a ideia de correr até as cimitarras,
mas descartou o plano, sabendo que uma lança o espetaria antes
de chegar perto. O maior gnoll do bando, um gigante de quase dois
metros e meio de altura com uma pelagem vermelha
impressionante, olhou para Drizzt por um longo momento, olhou o
equipamento do drow e então tornou a olhar para ele.
— No que está pensando? — Drizzt murmurou em voz baixa.
Drizzt, na verdade, sabia muito pouco sobre os gnolls. Na Academia
de Menzoberranzan, ensinaram que os gnolls eram uma raça
goblinoide maléfica, imprevisível e bastante perigosa. Ele também
ouvira o mesmo sobre os elfos da superfície e os humanos — e,
agora percebia, sobre quase todas as raças que não fossem os
drow. Drizzt quase riu alto apesar de sua dificuldade. Ironicamente,
a raça que mais merecia aquele manto de imprevisibilidade maligna
eram os próprios drow!
Os gnolls não fizeram outros movimentos e não proferiram
nenhum comando. Drizzt entendia sua hesitação ao ver um elfo
negro e sabia que deveria se aproveitar daquele medo natural se
quisesse ter alguma chance. Ao invocar as habilidades inatas de
sua herança mágica, Drizzt acenou com a mão esquerda e
contornou os cinco gnolls com as inofensivas chamas púrpuras.
Uma das feras caiu imediatamente no chão, como Drizzt tinha
esperado, mas os outros pararam diante de um sinal da mão
estendida de seu líder mais experiente. Eles olharam nervosos ao
redor, aparentemente se perguntando sobre a sabedoria de
continuar tal encontro. O chefe dos gnolls, no entanto, já tinha visto
o inofensivo fogo feérico antes, em uma briga com um infeliz — e
agora falecido — ranger e sabia o que era.
Drizzt ficou tenso e tentou determinar seu próximo passo.
O chefe dos gnolls olhou ao redor para seus companheiros, como
se estivesse estudando o quão completamente estavam cercados
pelas chamas dançarinas. A julgar pelo feitiço, não era um plebeu
drow comum que estava no córrego — ou Drizzt esperava que o
chefe estivesse pensando nisso.
Drizzt relaxou um pouco quando o líder baixou a lança e indicou
para os outros fazerem o mesmo. O gnoll então latiu um
emaranhado de palavras que soavam ao drow como sons sem
sentido. Ao ver a confusão óbvia de Drizzt, o gnoll gritou algo na
língua gutural dos goblins.
Drizzt entendia a linguagem goblin, mas o dialeto do gnoll era tão
estranho que ele conseguiu decifrar apenas algumas palavras.
“Amigo” e “líder” estavam entre elas.
Cauteloso, Drizzt deu um passo em direção à margem. Os gnolls
cederam terreno, abrindo caminho até seus pertences. Drizzt deu
outro passo hesitante, depois ficou mais à vontade quando notou
uma forma felina escura agachada nos arbustos a uma curta
distância. A seu comando, Guenhwyvar, em um único salto,
chegaria direto ao bando de gnolls.
— Você mais eu caminhar juntos? — Drizzt perguntou ao líder
gnoll, usando a língua goblin e tentando simular o dialeto da
criatura.
O gnoll respondeu com um grito apressado e a única coisa que
Drizzt achou que entendia era a última palavra da pergunta:
— … aliado?
Drizzt assentiu lentamente, esperando entender completamente o
que a criatura queria dizer.
— Aliado! — o gnoll grunhiu, e todos seus companheiros
gargalharam de alívio e bateram nas costas um do outro. Drizzt
alcançou seu equipamento e imediatamente embainhou suas
cimitarras. Ao ver os gnolls distraídos, o drow olhou para
Guenhwyvar e acenou para o arbusto espesso ao longo da trilha à
frente. Rápida e silenciosamente, Guenhwyvar assumiu uma nova
posição. Não era necessário entregar todos seus segredos, Drizzt
percebeu, não até que entendesse as intenções de seus novos
companheiros.
Drizzt caminhou junto com os gnolls pelas passagens inferiores e
sinuosas da montanha. Os gnolls ficavam longe do drow. Se era por
respeito a Drizzt e pela reputação de sua raça ou por algum outro
motivo, não fazia ideia. O mais provável, Drizzt suspeitava, era que
mantinham a distância simplesmente por causa de seu odor, que o
banho tinha feito pouco para diminuir.
O líder dos gnolls dirigia-se a Drizzt de vez em quando,
acentuando suas palavras empolgadas com uma piscadela
maliciosa ou um esfregar súbito de suas mãos espessas e
calejadas. Drizzt não tinha ideia do que o gnoll estava falando, mas
supôs pelo estalar dos lábios ansiosos da criatura que ele o levava a
algum tipo de banquete.
Drizzt logo adivinhou o destino do bando, porque ele muitas
vezes obsevava a partir de picos altos nas montanhas as luzes de
uma pequena comunidade agrícola humana no vale. Drizzt só podia
tentar adivinhar a relação entre os gnolls e os agricultores humanos,
mas sentiu que não era amigável. Quando se aproximaram da
aldeia, os gnolls entraram em posições defensivas, seguiram as
fileiras de arbustos e ficaram nas sombras o máximo possível. O pôr
do sol estava se aproximando rapidamente quando a trupe se
espalhou ao redor da área central da aldeia para ir em direção a
uma fazenda isolada a oeste.
O chefe gnoll sussurrou para Drizzt, lançando lentamente cada
palavra para que o drow pudesse entender.
— Uma família — grunhiu. — Três homens, duas mulheres...
— …uma mulher jovem — acrescentou outro com entusiasmo.
O chefe gnoll deu um grunhido.
— E três homens jovens — concluiu. Drizzt achou agora entendia
o propósito da viagem, e o olhar surpreso e questionador em seu
rosto levou o gnoll a confirmá-lo além da dúvida.
— Inimigos — declarou o líder.
Drizzt, sabendo quase nada sobre as duas raças, estava em um
dilema. Os gnolls eram saqueadores — isso estava claro — e
pretendiam se infiltrar na fazenda assim que a última luz do dia
desaparecesse. Drizzt não tinha a menor intenção de juntar-se a
eles em sua luta até ter mais informações sobre a natureza do
conflito.
— Inimigos? — perguntou ele.
O líder gnoll franziu a testa em aparente consternação. Ele cuspiu
uma linha de palavras sem sentido na qual Drizzt pensou ter ouvido:
— Humanos... fracos... escravos. — Todos os gnolls sentiram a
súbita inquietação do drow, e começaram a mexer em suas armas e
olhar um para o outro nervosamente.
— Três homens — disse Drizzt.
O gnoll cravou sua lança selvagemente no chão.
— Matar mais velho! Pegar dois!
— Mulheres?
O sorriso maligno que se espalhou pelo rosto do gnoll respondeu
a pergunta além de qualquer dúvida e Drizzt estava começando a
entender sua posição no conflito.
— E as crianças? — ele olhou diretamente para o líder gnoll e
falou cada palavra articuladamente. Não poderia haver mal-
entendidos. Sua pergunta final confirmou tudo, porque, embora
Drizzt pudesse aceitar a típica selvageria entre inimigos mortais,
nunca poderia esquecer a única vez em que participou de uma
incursão desse tipo. Ele havia salvado uma criança élfica naquele
dia, tinha escondido a menina usando o corpo de sua mãe para
poupá-la da ira de seus companheiros drow. De todos os males que
Drizzt já testemunhara, o assassinato de crianças tinha sido o pior.
O gnoll cravou sua lança no chão, seu rosto canino contorcido em
uma alegria perversa.
— Acho que não — Drizzt disse simplesmente, com o fogo
brotando em seus olhos cor de lavanda. De alguma forma, os gnolls
notaram, suas cimitarras apareceram em suas mãos.
Novamente o focinho do gnoll se enrugou, desta vez em
confusão. Ele tentou levantar sua lança em defesa, sem saber o que
aquele drow estranho faria a seguir, mas era tarde demais.
A corrida de Drizzt foi muito rápida. Antes que a ponta da lança
do gnoll se movesse, o drow avançou, com as cimitarras liderando o
caminho. Os outros quatro gnolls assistiram com espanto quando as
lâminas de Drizzt dispararam duas vezes, rasgando a garganta de
seu poderoso líder. O gigantesco gnoll caiu para trás em silêncio,
agarrando-se futilmente à garganta.
Um gnoll ao lado reagiu primeiro, deixando a lança em riste e
investindo na direção de Drizzt. O ágil drow desviou-se facilmente
do ataque direto, mas teve o cuidado de não retardar o impulso do
gnoll. Enquanto a enorme criatura passava, Drizzt girou ao lado dela
e chutou seus tornozelos. Desequilibrado, o gnoll tropeçou,
mergulhando a lança profundamente no peito de um companheiro
assustado.
O gnoll puxou a arma, mas estava firmemente presa, sua ponta
agarrada entre os ossos da coluna do outro gnoll. Ele não estava
nem um pouco preocupado com seu companheiro moribundo; tudo
que queria era sua arma. Puxou, torceu, xingou e cuspiu ante as
expressões de agonia que atravessavam o rosto de seu
companheiro — até que uma cimitarra atingiu seu crânio.
Outro gnoll, vendo o drow distraído e achando que seria mais
sábio atacar o inimigo à distância, levantou a lança para arremessá-
la. Seu braço subiu, mas antes que a arma sequer começasse a
avançar, Guenhwyvar o atingiu e o gnoll e a pantera caíram. O gnoll
desferiu uma série de socos pesados no flanco musculoso da
pantera, mas as garras de Guenhwyvar eram, de longe, mais
eficazes. Na fração de segundo que Drizzt levou para se virar de
onde os três gnolls estavam mortos a seus pés, o quarto do bando
estava morto embaixo da grande pantera. O quinto tinha fugido.
Guenhwyvar se soltou do aperto teimoso do gnoll falecido. Os
elegantes músculos da gata ondulavam ansiosamente enquanto
aguardava o comando esperado. Drizzt observou a carnificina a seu
redor, o sangue nas cimitarras e as expressões horríveis nos rostos
dos mortos. Ele queria que aquilo terminasse, porque percebeu que
havia entrado em uma situação além de sua experiência,
atravessando os caminhos de duas raças sobre as quais sabia
muito pouco. Depois de um momento de reflexão, no entanto, a
única noção que se destacou na mente do drow foi a promessa
alegre do líder gnoll de morte para as crianças humanas. Havia
muito em jogo.
Drizzt virou-se para Guenhwyvar, sua voz mais determinada que
resignada.
— Pega.

O gnoll tropeçava ao longo das trilhas, seus olhos se dirigiam de


um lado para o outro enquanto imaginava formas escuras por detrás
de cada árvore ou pedra.
— Drow! — ele gritou por repetidas vezes, usando a própria
palavra como encorajamento durante a fuga. — Drow! Drow!
Bufando e ofegando, o gnoll entrou em um matagal com árvores
que se estendiam entre duas paredes íngremes de pedra nua.
Tropeçou em um tronco caído, escorregou e machucou as costelas
na inclinação angulosa de uma pedra coberta de musgo. No
entanto, as dores menores não retardaram a criatura assustada, não
mesmo. O gnoll sabia que estava sendo perseguido, sentia uma
presença escorregando para dentro e para fora das sombras logo
além das bordas de sua visão periférica.
Quando se aproximou do final do matagal, a escuridão noturna
estava densa e o gnoll viu um conjunto de olhos brilhantes amarelos
o encarando de volta. A criatura vira seu companheiro ser derrubado
pela pantera e poderia adivinhar o que agora bloqueava seu
caminho.
Os gnolls eram monstros covardes, mas podiam lutar com incrível
tenacidade quando encurralados. E era exatamente como ele
estava. Percebendo que não tinha escapatória — não podia voltar
na direção do elfo negro — o gnoll rosnou e arremessou sua pesada
lança.
Então ouviu um farfalhar, uma batida e um grito de dor quando a
lança atingiu o alvo. Os olhos amarelos se afastaram por um
momento, então uma forma correu em direção a uma árvore. Ela se
movia rente ao chão, de forma quase felina, mas o gnoll percebeu
imediatamente que não havia atingido a pantera. Quando o animal
ferido chegou à árvore, olhou para trás e o gnoll reconheceu-o
claramente.
— Guaxinim! — o gnoll soltou, então riu. — Corri de guaxinim! —
o gnoll sacudiu a cabeça e soprou toda sua alegria em um suspiro
profundo. A visão do guaxinim trouxe algum alívio, mas o gnoll não
podia esquecer o que havia acontecido no caminho. Tinha que voltar
para o seu covil agora, para informar a Ulgulu, seu gigantesco
mestre goblinoide, sua divindade, sobre o drow.
Ele deu um passo para recuperar a lança, depois parou de
repente, sentindo um movimento por trás. Lentamente, o gnoll virou
a cabeça. Ele podia ver seu próprio ombro e a rocha coberta de
musgo por trás.
O gnoll congelou. Nada se movia por trás dele, nenhum som era
emitido de nenhum lado, mas a criatura sabia que havia algo ali. A
respiração do goblinoide vinha em fluxos curtos; suas mãos gordas
se apertavam e abriam aos seus lados.
O gnoll girou rapidamente e rugiu, mas o grito de raiva tornou-se
um grito de terror quando trezentos quilos de pantera caíram sobre
ele de um galho baixo.
O impacto tombou o gnoll imediatamente, mas aquela não era
uma criatura fraca. Ignorando as dores ardentes das garras cruéis
da pantera, o gnoll agarrou a cabeça de Guenhwyvar, segurando
desesperadamente para evitar que sua mandíbula mortal se
prendesse a seu pescoço.
Por quase um minuto, o gnoll lutou, seus braços tremendo sob a
pressão dos músculos poderosos do pescoço da pantera. A cabeça
desceu e Guenhwyvar encontrou um apoio para se prender.
Grandes presas travaram no pescoço do gnoll e tiraram a respiração
da criatura condenada.
O gnoll se sacudiu e se debateu descontroladamente; de alguma
forma, conseguindo rolar sobre a pantera. Guenhwyvar permaneceu
presa, despreocupada. A mandíbula segurava firme.
Em alguns minutos, ele parou de se debater.
CAPÍTULO 2
Questões de Consciência
DRIZZT DEIXOU SUA VISÃO ENTRAR NO ESPECTRO
infravermelho, a visão noturna que podia ver gradações de calor tão
claramente quanto via os objetos na luz. Para seus olhos, suas
cimitarras agora brilhavam com o calor do sangue fresco, e os
corpos de gnolls rasgados derramavam seu calor ao ar livre.
Drizzt tentou desviar o olhar, tentou observar a trilha que
Guenhwyvar tinha pegado em busca do quinto gnoll, mas toda vez
seu olhar caía de volta para os gnolls mortos e para o sangue em
suas armas.
— O que foi que eu fiz? — Drizzt se perguntou em voz alta.
De verdade, não sabia. Os gnolls haviam falado sobre o
assassinato de crianças, um pensamento que provocava raiva
dentro de Drizzt, mas o que Drizzt conhecia do conflito entre os
gnolls e os humanos da aldeia? Talvez os seres humanos, mesmo
as crianças humanas, poderiam ser monstros? Talvez houvessem
invadido a aldeia dos gnolls e matado sem piedade. Talvez os gnolls
pretendessem atacar porque não tinham escolha e precisavam se
defender.
Drizzt correu da cena sangrenta em busca de Guenhwyvar,
esperando que pudesse chegar à pantera antes do quinto gnoll
estar morto. Se ele pudesse encontrar o gnoll e capturá-lo, poderia
ter algumas das respostas das quais precisava tão
desesperadamente.
Ele se movia com passos rápidos e graciosos, fazendo apenas
um farfalhar enquanto passava pelos arbustos ao longo da trilha.
Encontrou sinais da passagem do gnoll facilmente, e viu, como
temia, que Guenhwyvar também havia descoberto a trilha. Quando
finalmente chegou ao estreito bosque de árvores, esperava que sua
busca estivesse no fim. Ainda assim, o coração de Drizzt se
encolheu quando viu a gata, reclinada ao lado de sua última vítima.
Guenhwyvar olhou para Drizzt com curiosidade quando ele se
aproximou, os passos do drow obviamente agitados.
— O que foi que nós fizemos, Guenhwyvar? — Drizzt sussurrou.
A pantera inclinou a cabeça como se não entendesse. — Quem sou
eu para fazer tal julgamento? — Drizzt continuou, falando mais
consigo mesmo do que com a gata. Ele se virou de costas para
Guenhwyvar e o gnoll morto e foi até um arbusto frondoso, onde
poderia limpar o sangue de suas lâminas. — Os gnolls não me
atacaram, mas sim me mostraram misericórdia quando me
encontraram no córrego. E eu os reembolso derramando seu
sangue!
Drizzt virou de volta para Guenhwyvar com a afirmação, como se
esperasse, até desejasse, que a pantera o repreendesse, de alguma
forma o condenando e justificando sua culpa. Guenhwyvar não tinha
se movido um centímetro, e os olhos redondos da pantera, brilhando
em um tom de amarelo esverdeado na noite, não se abalaram
diante de Drizzt, não o incriminaram por suas ações de forma
alguma.
Drizzt começou a protestar, querendo se afundar em sua culpa,
mas a aceitação tranquila de Guenhwyvar não seria abalada.
Durante o tempo em que viveram sozinhos no Subterrâneo
selvagem, quando Drizzt se perdeu para os impulsos selvagens que
se deleitavam ao matar, Guenhwyvar às vezes o desobedecia,
chegando mesmo ao ponto de, uma vez, retornar para o Plano
Astral sem ter sido dispensada. Agora, porém, a pantera não
mostrava sinal algum de que partiria, ou mesmo de
desapontamento. Guenhwyvar levantou-se, sacudiu a sujeira e os
galhos do seu elegante pelo preto e caminhou para se esfregar
carinhosamente em Drizzt.
Gradualmente, Drizzt relaxou. Limpou as cimitarras mais uma
vez, desta vez na grama grossa, e as colocou de volta nas bainhas.
Então, deixou uma mão agradecida cair sobre a enorme cabeça de
Guenhwyvar.
— Suas palavras os marcaram como malignos — o drow
sussurrou para si mesmo, para se tranquilizar. — Suas intenções
me forçaram a agir — suas próprias palavras não tinham convicção,
mas, naquele momento, Drizzt precisava acreditar nelas.
O drow respirou fundo para se estabilizar e olhou para dentro de
si para encontrar a força da qual sabia que precisaria. Percebendo
então que Guenhwyvar estava ao seu lado por um longo tempo e
precisava retornar ao Plano Astral para descansar, ele alcançou a
pequena bolsa ao seu lado.
Antes de Drizzt ter tirado a estatueta de ônix de sua bolsa, a pata
da pantera apareceu e arrancou-a de sua mão. Drizzt olhou para
Guenhwyvar com curiosidade, e a gata se inclinou pesadamente
sobre ele, quase o tombando no chão.
— Minha amiga leal — disse Drizzt, percebendo que a pantera
cansada queria ficar ao lado dele. Ele puxou a mão da bolsa e caiu
sobre um joelho, travando Guenhwyvar em um grande abraço. Os
dois, lado a lado, caminharam, então, para fora do matagal.
Drizzt não dormiu naquela noite, mas observou as estrelas,
pensativo. Guenhwyvar sentiu sua ansiedade e permaneceu por
perto durante a ascensão e o por da lua, e quando Drizzt saiu para
cumprimentar o próximo amanhecer, Guenhwyvar mergulhou,
cansada e exaurida, ao seu lado. Eles encontraram uma crista
rochosa nos contrafortes e sentaram-se para assistir o espetáculo
que se aproximava.
Abaixo deles, as últimas luzes desapareciam das janelas da
aldeia agrícola. O céu a leste tornou-se rosa, depois carmesim, mas
Drizzt estava distraído. Seu olhar permaneceu nas fazendas muito
abaixo; sua mente tentou imaginar as rotinas daquela comunidade
desconhecida e tentou encontrar alguma justificativa para os
eventos do dia anterior.
Os humanos eram fazendeiros, disso Drizzt sabia, e
trabalhadores diligentes, também, porque muitos deles já estavam
cuidando de seus campos. Embora esses fatos fossem promissores,
no entanto, Drizzt não poderia começar a fazer suposições
abrangentes quanto ao comportamento geral da raça humana.
Drizzt, então, tomou uma decisão, enquanto a luz do dia se
esticava, iluminando as estruturas de madeira da cidade e os
amplos campos de grãos.
— Eu preciso aprender mais, Guenhwyvar — disse suavemente.
— Se eu, se nós, vamos permanecer neste mundo, devemos
entender mais os nossos vizinhos.
Drizzt assentiu enquanto pensava sobre suas próprias palavras.
Já tinha sido comprovado, dolorosamente, que ele não poderia
continuar como um observador neutro dos eventos do mundo da
superfície. Drizzt era frequentemente chamado a agir por sua
consciência, uma força que não tinha como negar. No entanto, com
tão pouco conhecimento sobre as raças que compartilhavam aquela
região, sua consciência poderia facilmente desviá-lo de seus
caminhos. Ela poderia oprimir o inocente, indo contra os próprios
princípios que Drizzt queria defender.
Drizzt apertou os olhos através da luz da manhã, olhando a aldeia
distante, procurando por qualquer pista que pudesse ajudar a
responder suas perguntas.
— Eu vou até lá — disse à pantera. — Eu vou até lá, e vou
assistir e aprender.
Guenhwyvar manteve-se sentada em silêncio durante todo aquele
momento. Se a pantera aprovava ou não, ou mesmo se entendia a
intenção de Drizzt, ele não sabia. Desta vez, porém, Guenhwyvar
não fez nenhum movimento de protesto quando Drizzt alcançou a
estatueta de ônix. Poucos momentos depois, a grande pantera
atravessava o túnel planar para sua casa astral, e Drizzt seguia as
trilhas que conduziam à aldeia humana e a suas respostas. Parou
apenas uma vez, no corpo do gnoll solitário, para pegar o manto da
criatura. Drizzt estremeceu com seu próprio roubo, mas a noite
gelada lembrou-lhe que a perda de sua piwafwi poderia ser algo
sério.
Até então, o conhecimento de Drizzt sobre os seres humanos e
sua sociedade era severamente limitado. No fundo das entranhas
do Subterrâneo, os elfos negros tinham pouco contato, ou mesmo
interesse, com o mundo da superfície. A única vez em
Menzoberranzan que Drizzt tinha ouvido algo sobre os humanos
fora durante seu período como aluno na Academia, os seis meses
que passara em Magace, a escola de magos. Os mestres drow
haviam avisado os alunos contra o uso da magia “como um ser
humano”, o que implicava em uma imprudência perigosa associada
àquela raça de vida mais curta.
— Magos humanos — diziam os mestres — não têm menos
ambições do que os magos drow, mas enquanto um drow pode
levar cinco séculos cumprindo esses objetivos, um humano tem
apenas poucas décadas.
Drizzt tinha guardado as implicações dessa afirmação por
diversos anos, particularmente nos últimos meses, quando olhava
para baixo, para aquela aldeia humana, quase diariamente. Se
todos os seres humanos, e não apenas os magos, fossem tão
ambiciosos quanto muitos dos drow — fanáticos que podiam passar
a maior parte de um milênio cumprindo seus objetivos —, seriam
consumidos por uma mentalidade obsessiva que beirava a histeria?
Ou talvez, Drizzt esperava, as histórias que tinha ouvido sobre os
humanos na Academia fossem apenas mais das mentiras típicas
que mantinham sua sociedade unida em uma teia de intriga e
paranoia. Talvez os humanos estabelecessem seus objetivos em
níveis mais razoáveis e encontrassem alegria e satisfação nos
pequenos prazeres dos curtos dias de sua existência.
Drizzt encontrou um humano apenas uma vez em suas viagens
pelo Subterrâneo. Aquele homem, um mago, havia agido de forma
irracional, imprevisível e, derradeiramente, perigosa. O feiticeiro
transformara o amigo de Drizzt de um pech, uma criatura
humanoide pequena e inofensiva, em um monstro horrível. Quando
Drizzt e seus companheiros foram tentar consertar as coisas na
torre do feiticeiro, foram recebidos por uma explosão de
relâmpagos. No final, o humano foi morto e o amigo de Drizzt,
Estalo, continuou preso em seu tormento.
Drizzt tinha ficado com um vazio amargo, um exemplo de um
homem que parecia confirmar a verdade dos avisos dos mestres
drow. Assim, era com passos cautelosos que Drizzt agora viajava
em direção ao assentamento humano, seus passos pesados pelo
crescente medo de ter cometido um erro ao matar os gnolls.
Drizzt escolheu observar a mesma fazenda isolada na borda
oeste da cidade que os gnolls tinham selecionado para sua invasão.
Era uma estrutura longa e baixa, de madeira, com uma única porta e
várias janelas fechadas. Uma varanda aberta e coberta percorria o
comprimento da frente. Ao lado dela havia um celeiro, de dois
andares de altura, com portas largas e altas que poderiam
comportar uma carroça imensa. As cercas de vários materiais e
tamanhos pontilhavam o quintal imediato, muitas abrigando frangos
ou porcos, uma contendo uma cabra e outras que circundavam
plantas frondosas enfileiradas que Drizzt não reconhecia.
O quintal era cercado por campos em três lados, mas a parte de
trás da casa estava perto da inclinação da montanha, coberta de
rochas e arbustos. Drizzt se abaixou sob os ramos baixos de um
pinheiro ao lado de um canto traseiro da casa, proporcionando-lhe
uma visão da maior parte do quintal.
Os três homens adultos da casa — três gerações, Drizzt supôs
baseado em suas aparências — trabalhavam nos campos, longe
demais das árvores para que Drizzt pudesse discernir mais
detalhes. Perto da casa, no entanto, quatro crianças, uma garota
que acabara de alcançar a puberdade e três garotos mais jovens,
cumpriam silenciosamente com suas tarefas, cuidando das galinhas
e dos porcos e puxando ervas daninhas de uma horta. Eles
trabalhavam separadamente e com uma interação mínima durante a
maior parte da manhã, e Drizzt aprendeu pouco sobre seus
relacionamentos familiares. Quando uma mulher robusta com o
mesmo cabelo cor de trigo que todos os cinco filhos saiu na varanda
e tocou um sino gigante, parecia que todo o ímpeto que estava
guardado dentro dos trabalhadores irrompeu além do controle.
Com gritos de celebração, os três meninos correram para a casa,
parando por tempo suficiente para jogar vegetais podres em sua
irmã mais velha. A princípio, Drizzt pensou que o bombardeio fosse
um prelúdio para um conflito mais grave, mas quando a jovem
retaliou da mesma forma e os quatro explodiram em risadas, ele
reconheceu a brincadeira pelo que era.
Um momento depois, o mais jovem dos homens no campo,
provavelmente um irmão mais velho, entrou correndo no quintal,
gritando e brandindo uma enxada de ferro. A jovem gritou seu
encorajamento para o novo aliado e os três garotos fugiram para a
varanda. O homem foi mais rápido, porém, e agarrou o pequeno
diabrete em fuga com um braço forte e imediatamente o deixou cair
numa calha no chiqueiro.
E durante todo o tempo, a mulher com o sino sacudia a cabeça
impotente e emitia um fluxo interminável de resmungos
exasperados. Uma mulher mais velha, magricela e de cabelos
grisalhos, saiu ao lado dela, acenando ameaçadoramente com uma
colher de pau. Aparentemente satisfeito, o jovem lançou um braço
sobre os ombros da jovem e eles seguiram os dois primeiros
garotos até a casa. O jovem restante saiu da água turva e se mexeu
para segui-los, mas a colher de madeira o manteve à distância.
Drizzt não conseguia entender uma palavra do que eles estavam
dizendo, é claro, mas entendeu que as mulheres não deixariam o
pequeno entrar na casa até que se secasse. O jovem rabugento
murmurou algo às costas da mulher que empunhava a colher de
pau enquanto se virava para entrar na casa, mas seu tempo não foi
tão bem ajustado.
Os outros dois homens, um ostentando uma barba grossa e
cinzenta e o outro bem barbeado, surgiram dos campos e se
esgueiraram por detrás do garoto enquanto ele resmungava. O
garoto foi lançado no ar e, novamente, aterrissou com um som de
splash! na calha. Felicitando-se com entusiasmo, os homens
entraram na casa para as boas vindas de todos os outros. O menino
encharcado simplesmente rosnou novamente e derramou um pouco
de água no rosto de uma porca que havia vindo para investigar.
Drizzt observou a tudo com crescente espanto. Ele não tinha visto
nada conclusivo, mas a maneira brincalhona da família e a
aceitação resignada até mesmo do perdedor do jogo o encorajavam.
Drizzt sentiu um espírito comunal naquele grupo, com todos os
membros trabalhando para um objetivo comum. Se esta única
fazenda fosse um reflexo de toda a aldeia, então o lugar certamente
se assemelhava a Gruta das Pedras Preciosas, uma cidade
comunal dos gnomos das profundezas, muito mais do que se
parecia com Menzoberranzan.
A tarde foi muito parecida com a manhã, com uma mistura de
trabalho e brincadeira evidente em toda a fazenda. A família se
recolheu cedo, apagando suas lâmpadas logo após o pôr do sol, e
Drizzt mergulhou mais fundo no matagal da montanha para refletir
sobre suas observações.
Ele ainda não podia ter certeza de nada, mas dormiu mais
pacificamente naquela noite, sem ser incomodado pelas dúvidas
sobre os gnolls mortos.


Durante três dias, o drow se agachava nas sombras atrás da
fazenda, observando a família no trabalho e em suas brincadeiras. A
proximidade do grupo tornava-se cada vez mais evidente, e sempre
que uma verdadeira briga irrompia entre os filhos, o adulto mais
próximo rapidamente entrava e mediava o conflito até que
chegassem a algum nível de razoabilidade. Invariavelmente, os
combatentes voltavam a brincar juntos em um curto espaço de
tempo.
Todas as dúvidas haviam desaparecido de Drizzt.
— Temam minhas lâminas, malfeitores — ele sussurrou às
montanhas silenciosas uma noite.
O jovem drow renegado tinha decidido que, se algum gnoll ou
goblin — ou qualquer criatura de qualquer outra raça — tentasse
fazer mal a essa família de fazendeiros em particular, teriam antes
que lidar com as cimitarras dançantes de Drizzt Do’Urden.
Drizzt entendia o risco que estava assumindo ao observar a
família da fazenda. Se os fazendeiros o notassem — uma distinta
possibilidade —, entrariam em pânico. Mas, neste ponto de sua
vida, estava disposto a correr tal risco. Parte dele talvez até
quisesse ser descoberto.
No começo da manhã do quarto dia, antes que o sol tivesse
aparecido no céu a leste, Drizzt partiu em sua patrulha diária,
contornando as colinas e os bosques que cercavam a fazenda
solitária. Quando o drow voltou para sua tocaia, o dia do trabalho na
fazenda estava em pleno andamento. Drizzt sentou-se
confortavelmente em uma cama de musgo e espiou das sombras
para o brilho do dia sem nuvens.
Menos de uma hora depois, uma figura solitária se arrastou da
fazenda, na direção de Drizzt. Era o mais jovem dos filhos, o garoto
de cabelos cor de areia que parecia passar quase tanto tempo na
calha quanto fora dela, geralmente não por sua própria vontade.
Drizzt girou ao redor do tronco de uma árvore próxima, incerto da
intenção do rapaz. Logo percebeu que o jovem não o tinha visto,
porque o menino escorregou para dentro do matagal, depois bufou
por cima do ombro, de volta para a fazenda e se dirigiu para a
floresta montanhosa assobiando o tempo todo. Drizzt entendeu
então que o rapaz estava fugindo de suas tarefas, e Drizzt quase
aplaudiu a atitude despreocupada do menino. Apesar disso, Drizzt
não estava convencido da sabedoria da pequena criança em se
afastar de casa em terrenos tão perigosos. O menino não poderia
ter mais de dez anos de idade; parecia magro e delicado, com olhos
azuis e inocentes que espiavam por debaixo de seus cachos cor de
âmbar.
Drizzt esperou alguns instantes para permitir que o menino
assumisse a dianteira e para ver se alguém o estaria seguindo.
Então, seguiu a trilha, deixando que os assobios o guiassem.
O menino se afastou da casa da fazenda até as montanhas, e
Drizzt o seguiu a mais ou menos cem passos de distância,
determinado a manter o menino longe do perigo.
Nos túneis escuros do Subterrâneo, Drizzt poderia ter se
arrastado logo atrás do menino — ou atrás de um goblin, ou
praticamente qualquer outra coisa — e bater em seu ombro antes
de ser descoberto. Mas depois de apenas uma meia hora ou mais
dessa perseguição silenciosa, os movimentos e a mudança errática
de velocidade ao longo da trilha, juntamente com o fato dos
assobios terem cessado, disseram a Drizzt que o menino sabia que
estava sendo seguido.
Em dúvida se o menino tinha percebido alguma terceira pessoa,
Drizzt convocou Guenhwyvar da estatueta de ônix e enviou a
pantera à frente, caso precisassem flanquear alguém. Drizzt tornou
a caminhar em um ritmo cauteloso.
Um momento depois, quando a voz da criança gritou de medo, o
drow sacou suas cimitarras e desistiu de qualquer cautela. Drizzt
não conseguiu entender nenhuma das palavras do menino, mas o
tom desesperado já dizia o suficiente.
— Guenhwyvar! — o drow chamou, tentando trazer a pantera
distante de volta ao seu lado. Drizzt não podia parar e esperar pela
gata, então seguiu correndo o som.
A trilha seguia uma subida íngreme, saía das árvores de repente,
e terminava na borda de um grande desfiladeiro, de cerca de seis
metros de diâmetro. Um único tronco atravessava a fenda, e
pendurado nele, perto do outro lado, estava o menino. Seus olhos
se arregalaram consideravelmente à vista do elfo de pele de ébano,
com cimitarras nas mãos. Ele balbuciou algumas palavras que
Drizzt não conseguiu decifrar.
Uma onda de culpa inundou Drizzt à vista da criança em perigo; o
garoto só tinha ficado nesta situação por causa da perseguição de
Drizzt. O desfiladeiro era tão profundo quanto amplo, e a queda
terminava em rochas irregulares e arvores. A princípio, Drizzt
hesitou, pego de surpresa pelo encontro repentino e suas
implicações inevitáveis, então o drow rapidamente esqueceu seus
próprios problemas. Ele pôs suas cimitarras de volta em suas
bainhas e cruzou os braços sobre o peito no sinal dos drow para a
paz, então colocou um pé no tronco.
O menino tinha outras ideias. Assim que se recuperou do choque
de ver o elfo estranho, se sacudiu até uma borda no banco de pedra
em frente a Drizzt e empurrou o tronco de seu poleiro. Drizzt recuou
rapidamente do tronco no momento em que ele caiu na fenda. O
drow entendeu então que o menino nunca esteve em perigo real,
mas tinha fingido estar em perigo para tirar seu perseguidor de seu
esconderijo. E, Drizzt presumiu, se o perseguidor tivesse sido
alguém da família do menino, como ele sem dúvida havia
suspeitado, o perigo poderia ter desviado qualquer pensamento de
punição.
Agora era Drizzt quem estava em uma situação difícil. Ele havia
sido descoberto. Tentou pensar em uma maneira de se comunicar
com o menino, para explicar sua presença e impedir o pânico. O
garoto não esperou por nenhuma explicação. De olhos arregalados
e aterrorizados, ele escalou o banco — por um caminho que ele
obviamente conhecia bem — e se lançou para os arbustos.
Drizzt olhou em volta impotente.
— Espere! — ele gritou na língua drow, embora soubesse que o
menino não entenderia e não teria parado, ainda que entendesse.
Uma forma felina negra correu ao lado do drow e saltou no ar,
ultrapassando facilmente a fenda. Guenhwyvar aterrissou
suavemente do outro lado e desapareceu no mato.
— Guenhwyvar! — Drizzt gritou, tentando parar a pantera. Drizzt
não tinha ideia de como Guenhwyvar reagiria à criança. Pelo que
Drizzt sabia, a pantera havia encontrado apenas outro humano
antes, o mago que os companheiros de Drizzt mataram logo em
seguida. Drizzt olhou ao redor buscando um jeito de segui-la. Ele
poderia escalar a lateral do desfiladeiro, atravessar o fundo e subir
de volta, mas isso levaria muito tempo.
Drizzt correu de volta alguns passos, então investiu na direção do
desfiladeiro e saltou no ar, convocando seus poderes inatos de
levitação no meio do salto. Drizzt ficou realmente aliviado quando
sentiu seu corpo se livrar da gravidade do solo. Ele não havia usado
seu feitiço de levitação desde que chegara à superfície. O feitiço
não servia para um drow escondido sob o céu aberto.
Gradualmente, o impulso inicial de Drizzt levou-o perto do banco
distante. Ele começou a se concentrar em deslizar até a pedra, mas
o feitiço terminou abruptamente e Drizzt caiu diretamente no chão.
Ignorando as contusões no joelho e as perguntas de por que seu
feitiço tinha falhado, Drizzt saiu correndo, gritando
desesperadamente para que Guenhwyvar parasse.
Drizzt ficou aliviado quando encontrou a gata. Guenhwyvar estava
calmamente sentada em uma clareira, com uma pata casualmente
prendendo o menino deitado com o rosto contra o chão. A criança
estava gritando de novo — pedindo socorro, pelo que Drizzt
supunha —, mas parecia ileso.
— Venha, Guenhwyvar — Drizzt disse baixinho, calmamente. —
Deixe a criança em paz — Guenhwyvar bocejou preguiçosamente e
obedeceu, passeando pela clareira até ficar ao lado de seu mestre.
O menino continuou deitado por um longo momento. Então,
reunindo sua coragem, se moveu de repente, se levantando em um
salto e girando para enfrentar o elfo negro e a pantera. Seus olhos
pareciam ainda mais largos, quase uma caricatura de terror,
espreitando de seu rosto agora sujo.
— O que é você? — o menino perguntou na linguagem humana
comum. Drizzt estendeu seus braços para os lados para indicar que
ele não estava entendendo. Por impulso, cutucou um dedo em seu
peito e respondeu:
— Drizzt Do’Urden — notou que o menino estava se mexendo
sutilmente, deixando secretamente um pé cair atrás do outro e
deslizando o outro de volta ao lugar.
Drizzt não ficou surpreso — e assegurou-se de que Guenhwyvar
estivesse sob sua observação desta vez — quando o menino girou
nos calcanhares e correu, gritando:
— Socorro! É um drizzit! — a cada passo.
Drizzt olhou para Guenhwyvar e deu de ombros, e a gata parecia
dar de ombros de volta.
CAPÍTULO 3
Os Filhotes
NATHAK, UM GOBLIN MAGRICELA, ABRIU CAMINHO
lentamente sobre a inclinação íncreme e rochosa, com cada passo
medido pelo medo. O goblin precisava relatar suas descobertas —
cinco gnolls mortos não podiam ser ignorados —, mas a criatura
infeliz duvidava seriamente que Ulgulu ou Kempfana aceitassem a
notícia de boa vontade. Ainda assim, quais outras opções Nathak
tinha? Ele poderia correr, fugir pelo outro lado da montanha e sair
para os ermos. Parecia um curso ainda mais desesperado, no
entanto, uma vez que o goblin conhecia bem o gosto que Ulgulu
tinha pela vingança. O grande mestre de pele púrpura poderia
arrancar uma árvore do chão com as mãos nuas, arrancar punhados
de pedra da parede da caverna e facilmente arrancar a garganta de
um goblin desertor.
Cada passo trazia um tremor pelo corpo de Nathak enquanto o
goblin caminhava além do matagal que ocultava a pequena sala de
entrada do complexo de cavernas de seu mestre.
— Já passô da hora de voltá, mermão — um dos outros dois
goblins no quarto bufou. — Tu meteu o pé tem dois dia.
Nathak apenas assentiu e respirou fundo.
— Eaê? — o terceiro goblin perguntou. — Tu achou os gnoll? — o
rosto de Nathak empalideceu, e não havia respiração profunda que
poderia aliviar o aperto que veio sobre o peito do goblin.
— Ulgulu taí? — ele perguntou, reticente. Os dois guardas goblins
olharam curiosamente um para o outro, e depois de volta para
Nathak.
— Ele achô os gnoll — chutou um deles, adivinhando o problema.
— Gnoll morrero.
— Ulgulu vai ficá puto — o outro concluiu antes de se separar do
outro sentinela, um deles levantando a pesada cortina que separava
a sala de entrada da câmara de audiências.
Nathak hesitou e começou a olhar para trás, como se fosse
reconsiderar todo esse curso. Talvez a fuga fosse preferível, pensou
ele. Os guardas goblins agarraram seu companheiro magricela e o
empurraram para a câmara de audiências, cruzando suas lanças
atrás de Nathak para evitar qualquer recuo.
Nathak conseguiu encontrar algum resquício de compostura
quando viu que era Kempfana, não Ulgulu, quem estava sentado na
enorme cadeira do outro lado da sala. Kempfana havia ganhado
uma reputação entre as fileiras goblins como o mais calmo dos
irmãos governantes, embora Kempfana, também, houvesse
devorado impulsivamente o bastante de seus lacaios para ganhar
seu respeito saudável. Kempfana quase não notou a entrada do
goblin, mais preocupado em conversar com Calçalargas, o gigante
das colinas gordo que anteriormente reivindicava o complexo de
cavernas como seu.
Nathak tropeçou pela sala, atraindo os olhos tanto do gigante da
colina quanto do enorme — quase tão grande quanto o gigante —
goblinoide de pele escarlate.
— Sim, Nathak — induziu Kempfana, silenciando a reclamação
do gigante das colinas com a mão, antes mesmo que começasse a
ser pronunciada. — O que você tem a declarar?
— Eu . . . eu — Nathak gaguejou.
Os grandes olhos de Kempfana brilharam em uma luz laranja, um
claro sinal de empolgação perigosa.
— Eu encontrô os gnoll! — Nathak soltou de uma vez. — Tudo
morto. Morte matada. — Calçalargas emitiu um grunhido baixo e
ameaçador, mas Kempfana apertou o braço do gigante das colina
firmemente, lembrando-o de quem estava no comando.
— Mortos? — o goblinoide de pele escarlate perguntou
calmamente.
Nathak assentiu.
Kempfana lamentou a perda de escravos tão confiáveis, mas os
pensamentos do filhote de barghest estavam mais centrados na
reação inevitavelmente volátil de seu irmão às notícias. Kempfana
não teve que esperar muito tempo.
— Mortos! — surgiu um rugido que quase rachou a pedra. Todos
os três monstros na sala instintivamente abaixaram-se e viraram-se
para o lado, apenas a tempo de ver uma rocha enorme, a porta
grossa para outra sala, explodir e sair voando para o lado.
— Ulgulu! — Nathak gritou, e o pequeno goblin caiu de cara pro
chão, sem ousar olhar para ele.
A enorme criatura goblinoide de pele roxa invadiu a câmara de
audiências, com os olhos incandescentes em raiva alaranjada. Três
grandes passos levaram Ulgulu bem ao lado do gigante das colinas,
e Calçalargas de repente pareceu bem pequeno e vulnerável.
— Mortos! — Ulgulu rugiu de novo com raiva. Como sua tribo
goblin havia diminuído, morta pelos humanos da aldeia ou por
outros monstros — ou comida por Ulgulu durante seus ataques
habituais de raiva —, o pequeno bando de gnolls tornara-se a
principal força de captura para o covil.
Kempfana lançou um olhar furioso a seu irmão maior. Eles
haviam chegado ao plano material juntos, dois filhotes de barghest
lindos, para comer e crescer. Ulgulu reivindicara o domínio
imediatamente, devorando a mais forte de suas vítimas e, assim,
crescendo e ficando mais forte. Pela cor da pele de Ulgulu, e por
seu tamanho e força, era evidente que o filhote logo poderia retornar
às fendas fétidas do vale de Gehenna.
Kempfana esperava que este dia estivesse perto. Quando Ulgulu
se fosse, ele governaria; ele comeria e ficaria mais forte. Então,
Kempfana também poderia escapar de seu interminável período de
desmame neste plano amaldiçoado, poderia retornar para competir
entre os barghests em seu legítimo plano de existência.
— Morto — grunhiu Ulgulu de novo. — Levante-se, goblin infeliz,
e me diga como! O que fez isso com meus gnolls?
Nathak estremeceu por mais um minuto, e então conseguiu
levantar-se e ficar de joelhos.
— Eu não sabo — o goblin gemeu. — Gnoll matados, cortados e
rasgados.
Ulgulu apoiou-se nos calcanhares de seus pés molengas e
enormes. Os gnolls haviam saído para atacar uma fazenda, com
ordens para retornar com o fazendeiro e seu filho mais velho.
Aquelas duas refeições humanas robustas teriam reforçado o
grande barghest consideravelmente, talvez até levando Ulgulu ao
nível de maturação que precisava para retornar a Gehenna.
Agora, à luz do relatório de Nathak, Ulgulu teria que enviar
Calçalargas, ou talvez até ir ele mesmo, e a visão ou do gigante ou
da monstruosidade de pele púrpura poderia levar o assentamento
humano a uma ação organizada e perigosa.
— Tephanis! — Ulgulu rugiu de repente.
Em cima da parede mais distante, em frente a onde Ulgulu tinha
feito a sua entrada, uma pequena pedrinha desalojou-se e caiu. A
queda foi de apenas alguns metros, mas, quando a pedrinha atingiu
o chão, um sprite esbelto tinha deslizado para fora do pequeno
cubículo que usava como quarto, atravessado os seis metros da
sala de audiências e corrido até o lado de Ulgulu para sentar-se
confortavelmente no topo do imenso ombro do barghest.
—Você-me-chamou, sim-você-chamou, meu-mestre — Tephanis
zumbiu, rápido demais. Os outros nem sequer perceberam que o
sprite de meio metro de altura havia entrado na sala. Kempfana se
virou, sacudindo a cabeça em assombro.
Ulgulu rugiu uma gargalhada; ele adorava testemunhar o
espetáculo de Tephanis, seu servo mais valoroso. Tephanis era um
célere, um sprite diminuto, que se movia em uma dimensão que
transcendia o conceito normal de tempo. Possuindo energia
ilimitada e uma agilidade que humilharia o halfling ladino mais
proficiente, os céleres podiam realizar muitas tarefas que nenhuma
outra raça poderia sequer tentar. Ulgulu tinha feito amizade com
Tephanis no início de seu mandato no Plano Material — Tephanis
era o único membro dos diversos inquilinos do covil sobre o qual o
barghest não reivindicava soberania — e esse vínculo tinha dado ao
jovem filhote uma vantagem distinta sobre seu irmão. Com Tephanis
encontrando potenciais vítimas, Ulgulu sabia exatamente quais
devorar e quais deixar para Kempfana, e sabia exatamente como
vencer contra os aventureiros que fossem mais poderosos do que
ele.
— Caro Tephanis — Ulgulu ronronou com um som estranho e
áspero. — Nathak, o pobre Nathak — o goblin não deixou passar as
implicações dessa referência —, informou-me que meus gnoll
encontraram-se com um desastre.
— E-você-quer-que-eu-vá-ver-o-que-aconteceu-com-eles, meu-
mestre — Tephanis respondeu. Ulgulu levou um momento para
decifrar o fio de palavras quase ininteligível, então assentiu
ansiosamente.
— Agora-mesmo, meu-meste. Volto-já.
Ulgulu sentiu um ligeiro tremor em seu ombro, mas, quando ele,
ou qualquer um dos outros, percebeu o que Tephanis havia dito, a
cortina pesada que separava a câmara da sala de entrada estava
voltando à sua posição pendurada. Um dos goblins tocou a cabeça
por apenas um momento, para ver se Kempfana ou Ulgulu o havia
chamado, depois voltou para seu posto, crendo que o movimento da
cortina fosse algum truque do vento.
Ulgulu rugiu em uma risada novamente; Kempfana lançou-lhe um
olhar enojado. Kempfana odiava o sprite e o teria matado há muito
tempo, mas não podia ignorar os benefícios em potencial caso
Tephanis trabalhasse para ele no momento em que Ulgulu voltasse
a Gehenna.
Nathak deslizou um pé atrás do outro, na intenção de recuar
silenciosamente da sala. Ulgulu parou o goblin com um olhar.
— Seu relatório me serviu bem — começou o barghest.
Nathak relaxou, mas só pelo tempo que a mão de Ulgulu levou
para disparar, pegar o goblin pela garganta e levantar Nathak do
chão.
— Mas teria me servido melhor se você tivesse parado um minuto
para descobrir o que aconteceu com meus gnolls!
Nathak suou frio e quase desmaiou, e quando a metade de seu
corpo tinha sido enfiado na boca ansiosa de Ulgulu, o goblin de
braços magricelas desejou que tivesse desmaiado de fato.

— Esfregue a traseira, alivie a dor. Troque e traga de volta de


novo. Esfregue a traseira, alivie a dor. Troque e traga de volta de
novo — Liam Thistledown repetiu de novo e de novo, uma ladainha
para tirar a concentração da sensação de queimação sob suas
ceroulas, uma ladainha que o malandro do Liam conhecia muito
bem. Desta vez era diferente, porém, com Liam realmente admitindo
para si mesmo, depois de um tempo, que ele tinha realmente
tentado fugir de suas tarefas.
— Mas o drizzit era de verdade — grunhiu Liam
desafiadoramente.
Como em resposta a sua declaração, a porta do galpão abriu
apenas uma fenda e Shawno, o segundo mais novo depois de Liam,
e Eleni, a a irmã maiss velha, entraram.
— Cê tá encrencado dessa vez — Eleni repreendeu na sua
melhor voz de irmã mais velha. — Já foi ruim o bastante fugir
quando tem trabalho pra fazer, mas voltar para casa com essas
histórias...!
— O drizzit era de verdade — reclamou Liam, não apreciando a
pseudo-maternidade de Eleni. Liam já tinha problemas suficientes
com apenas seus pais repreendendo ele; ele não precisava da
retrospectiva afiada de Eleni. — Preto que nem a bigorna de Connor
e com um leão tão preto quanto ele!
— Quietos, vocês dois — alertou Shawno. — Se papai souber
que estamos aqui falando assim, ele vai chicotear a gente.
— Drizzit — Eleni resmungou duvidosamente.
— É verdade! — Liam reclamou alto demais, ganhando uma
bofetada de Shawno. Os três se viraram, gelados, quando a porta
se abriu.
— Entra aqui! — Eleni sussurrou com dureza, agarrando Flanny,
que era um pouco mais velha do que Shawno, mas três anos mais
nova que Eleni, pelo colarinho e a arrastando para o galpão.
Shawno, sempre o mais preocupado do grupo, rapidamente esticou
a cabeça para ver se ninguém estava olhando, então fechou
suavemente a porta.
— Você não deveria estar nos espionando! — Eleni protestou.
— Como eu ia saber que cês tava aqui? — Flanny rebateu. — Eu
só vim provocar o pequeno — ela olhou para Liam, torceu a boca e
acenou os dedos ameaçadoramente no ar. — Temam, temam —
Flanny cantarolou. — Eu sou o drizzit, vim pra comer meninos!
Liam virou-se, mas Shawno não ficou tão impressionado.
— Ah, cala a boca — ele rosnou para Flanny, enfatizando seu
ponto com uma bofetada na parte de trás da cabeça de seu irmão.
Flanny virou-se para retaliar, mas Eleni entrou entre eles.
— Parem! — Eleni gritou, tão alto que os quatro filhos dos
Thistledown bateram um dedo sobre os lábios e disseram:
— Ssssh!
— O drizzit era de verdade — protestou Liam novamente. — Eu
posso provar — se cês não tiverem com muito medo!
Os três irmãos de Liam o observaram com curiosidade. Ele era
um notório loroteiro, todos sabiam, mas o que teria a ganhar com
isso? Seu pai não acreditava em Liam, e isso era tudo o que
importava em relação à punição que receberia. No entanto, Liam foi
inflexível, e seu tom deixava claro a todos eles que havia substância
por trás da proclamação.
— Como que cê pode provar o drizzit? — perguntou Flanny.
— Não temos tarefa nenhuma amanhã — respondeu Liam. —
Nós vamos catar amoras nas montanha.
— Mamãe e Papai nunca vão deixar — Eleni mencionou.
— Eles deixam se a gente conseguir convencer Connor a ir junto
— disse Liam, referindo-se ao seu irmão mais velho.
— Connor não ia acreditar em você — argumentou Eleni.
— Mas ele acredita em você! — Liam respondeu bruscamente,
levando os outros a responderem com outro “Ssssh!” em coro.
— Eu não acredito em você — retrucou Eleni calmamente. — Cê
tá sempre inventando coisas, sempre causando problema e
mentindo pra fugir das suas tarefa!
Liam cruzou seus bracinhos sobre o peito e começou a bater um
pé com impaciência em resposta ao fluxo contínuo de lógica de sua
irmã.
— Mas cê vai acreditar em mim — grunhiu Liam — se cê
conseguir convencer Connor a ir!
— Ah, por favor — Flanny implorou a Eleni, embora Shawno,
pensando nas consequências em potencial, sacudisse a cabeça.
— Então, a gente vai pras montanha — disse Eleni a Liam,
levando-o a continuar e assim revelando que concordava.
Liam sorriu amplamente e caiu em um joelho, coletando uma
pilha de serragem na qual desenhou um mapa aproximado da área
onde ele encontrara o drizzit. Seu plano era simples, usando Eleni,
casualmente colhendo amoras, como isca. Os quatro irmãos
seguiriam secretamente e observariam quando ela fingisse ter
torcido o tornozelo ou sofrido qualquer outra lesão. Estar com
problemas havia trazido o drizzit antes; com certeza, com uma
garota bem jovem como isca, isso traria o drizzit novamente.
Eleni não gostou da ideia, nem um pouco animada com o
conceito de ser plantada como uma minhoca em um anzol.
— Mas cê não acredita em mim, de qualquer forma — apontou
Liam rapidamente. Seu sorriso inevitável, completo com um buraco
vazio onde um dente havia sido arrancado, mostrou que sua própria
teimosia a encurralava.
— Então eu vou! — Eleni resmungou. — E eu não acredito no
seu drizzit, Liam Thistledown! Mas se o leão for de verdade, e eu for
mordida, eu te esfolo! — com isso, Eleni virou-se e saiu do depósito.
Liam e Flanny cuspiram em suas mãos, então viraram olhares
atrevidos para Shawno até ele superar seus medos. Então os três
irmãos juntaram suas palmas em uma bofetada triunfante e
molhada. Qualquer desentendimento entre eles sempre parecia
desaparecer sempre que um deles encontrava uma maneira de
incomodar Eleni.
Nenhum deles disse a Connor sobre sua caçada planejada para o
drizzit. Em vez disso, Eleni lembrou-lhe os muitos favores que ele
lhe devia e prometeu que consideraria a dívida paga na íntegra —
mas somente depois que Liam concordasse em assumir a dívida de
Connor se não encontrassem o drizzit — se Connor levasse a ela e
aos meninos para colher amoras.
Connor resmungou e hesitou, reclamando de algumas ferraduras
que precisavam ser feitas para uma das éguas, mas ele nunca
poderia resistir aos olhos azuis de sua irmãzinha e ao seu sorriso
largo e brilhante, e a promessa de Eleni de apagar sua dívida
considerável tinha selado o seu destino. Com a benção de seus
pais, Connor levou as crianças dos Thistledown até as montanhas,
com um balde nas mãos das crianças e uma espada grosseira no
cinto.

Drizzt percebeu o ardil muito antes que a jovem filha do


fazendeiro se afastasse sozinha na trilha de amoras. Ele viu,
também, os quatro meninos Thistledown, agachados nas sombras
de um aglomerado de árvores de bordo ali perto, Connor, um pouco
menos do que habilmente, brandindo a espada grosseira.
O mais novo os levara até ali, Drizzt sabia. No dia anterior, o drow
tinha testemunhado o menino sendo puxado para o depósito de
lenha. Gritos de “drizzit!” podiam ser ouvidos de vez em quando,
pelo menos no início. Agora, o garoto teimoso queria provar sua
história ultrajante.
A apanhadora de amoras se contorceu de repente, depois caiu no
chão e gritou. Drizzt reconheceu o grito de “Socorro!” como o
mesmo chamado por ajuda que o menino de cabelos cor de areia
usara, e um sorriso se abriu em seu rosto negro. Pela maneira
ridícula que a menina tinha caído, Drizzt vira a encenação pelo que
realmente era. A menina não estava ferida; ela simplesmente estava
gritando para atrair o drizzit.
Com uma sacudida incrédula de sua espessa crina branca, Drizzt
começou a se afastar, mas um impulso o deteve. Ele olhou de volta
para a trilha de amoras, onde a menina estava sentada esfregando
o tornozelo, enquanto olhava nervosamente ao redor ou para trás
em direção a seus irmãos escondidos. Algo tocou as cordas do
coração de Drizzt naquele momento, um impulso que ele não
conseguiu resistir. Há quanto tempo ele estava sozinho, vagando
sem nenhuma companhia? Ele ansiava por Belwar naquele
momento, o svirfneblin que o acompanhara através de muitas
provações no Subterrâneo selvagem. Ele ansiava por Zaknafein,
seu pai e amigo. Ver a interação entre os irmãos carinhosos era
mais do que Drizzt Do’Urden poderia suportar.
Chegou a hora de Drizzt conhecer seus vizinhos.
Drizzt tirou o capuz de sua capa de gnoll, um pouco grande
demais para ele, embora a roupa esfarrapada fizesse pouco para
esconder a verdade sobre sua raça, e atravessou o campo. Ele
esperava que, se pudesse, pelo menos, desviar a reação inicial da
menina ao vê-lo, poderia encontrar alguma maneira de se
comunicar com ela. Suas esperanças eram, na melhor das
hipóteses, um pouco forçadas.
— O drizzit! — Eleni falou de forma engasgada ao vê-lo chegar.
Ela queria gritar em voz alta, mas não encontrou ar; ela queria
correr, mas seu terror a segurava firmemente.
Do fundo das árvores, Liam falou por ela.
— O drizzit! — o menino gritou. — Eu disse! Eu disse! — ele
olhou para seus irmãos, e Flanny e Shawno estavam tendo as
reações empolgadas que eram esperadas. O rosto de Connor,
porém, estava preso a uma expressão de pavor tão profundo que
um olhar para ele roubou a alegria de Liam.
— Pelos deuses — murmurou o filho mais velho dos Thistledown.
Connor havia se aventurado com seu pai e fora treinado para
detectar inimigos. Ele olhou agora para seus três irmãos confusos e
murmurou uma única palavra que não dizia nada aos meninos
inexperientes. — Drow!
Drizzt parou a uma dúzia de passos da garota assustada, a
primeira mulher humana que ele tinha visto de perto, e a estudou.
Eleni era bonita pelos padrões de qualquer raça, com olhos
enormes e suaves, bochechas com covinhas e pele lisa e dourada.
Drizzt sabia que não haveria nenhuma luta ali. Ele sorriu para Eleni
e cruzou os braços suavemente sobre o peito.
— Drizzt — ele corrigiu, apontando para o peito. Um movimento a
seu lado o afastou da menina.
— Corre, Eleni! — Connor Thistledown gritou, sacudindo a
espada e indo na direção do drow. — É um elfo negro! Um drow!
Corre por sua vida!
De tudo o que Connor tinha gritado, Drizzt entendeu apenas a
palavra “drow”. A atitude e a intenção do jovem não poderiam ser
confundidas, porém, porque Connor investiu diretamente entre
Drizzt e Eleni, sua ponta de espada apontada na direção de Drizzt.
Eleni conseguiu ficar de pé atrás de seu irmão, mas não fugiu como
ele havia instruído. Ela também tinha ouvido falar dos elfos negros
malignos, e não deixaria Connor para encarar um sozinho.
— Pra trás, elfo negro — rosnou Connor. — Eu sou um
espadachim habilidoso e muito mais forte que você.
Drizzt estendeu as mãos impotente, sem entender uma palavra.
— Pra trás! — Connor gritou.
Por impulso, Drizzt tentou responder no código silencioso drow,
uma linguagem intrincada de gestos faciais e de mãos.
— Ele está lançando um feitiço! — Eleni gritou, e ela mergulhou
nas amoras. Connor gritou e investiu.
Antes que Connor percebesse o contra ataque, Drizzt agarrou-o
pelo antebraço, usou a outra mão para torcer o pulso do menino e
tirar a espada, girou a arma tosca três vezes sobre a cabeça de
Connor, virou-a em sua mão delgada e então a entregou, apontando
seu punho, de volta ao menino.
Drizzt afastou os braços e sorriu. Nos costumes drow, tal
demonstração de superioridade sem ferir o adversário deixava claro
um desejo de amizade. Para o filho mais velho do fazendeiro
Bartholemew Thistledown, a demonstração do drow inspirou apenas
mais terror.
Connor congelou, de boca escancarada, por um longo momento.
Sua espada caiu de sua mão, mas ele não notou; suas calças,
sujas, se agarraram às coxas, mas ele não percebeu.
Um grito surgiu de algum lugar dentro de Connor. Ele agarrou
Eleni, que se juntou ao seu grito, e eles fugiram de volta para o
bosque para reunir os outros, depois, correram até que cruzassem o
limiar de sua própria casa.
Drizzt foi deixado, com seu sorriso desaparecendo rapidamente e
seus braços abertos, de pé, sozinho na trilha de amoras.

Um conjunto de olhos vertiginosos e atrevidos observaram a


interação na trilha de amoras com um interesse mais do que casual.
A aparição inesperada de um elfo negro, particularmente um
vestindo um manto de gnoll, respondeu a muitas perguntas para
Tephanis. O detetive célere já havia examinado os cadáveres de
gnolls, mas simplesmente não conseguia reconciliar as feridas fatais
dos gnolls com as armas toscas normalmente empunhadas pelos
simples fazendeiros da aldeia. Ao ver as magníficas cimitarras
gêmeas tão casualmente presas aos quadris do elfo negro e a
facilidade com que o elfo negro havia despachado o fazendeiro,
Tephanis soube a verdade.
A trilha de poeira deixada pelo célere teria confundido os
melhores rangers dos Reinos. Tephanis, que nunca fora um sprite
direto, ziguezagueou pelas trilhas da montanha, fazendo alguns
circuitos ao redor de algumas árvores, subindo e descendo os lados
de outras, e basicamente dobrando, ou até triplicando, sua rota. A
distância nunca incomodou Tephanis; ele estava de pé diante do
filhote de barghest de pele roxa antes mesmo que Drizzt, refletindo
sobre as implicações da reunião desastrosa, deixasse a trilha de
amoras.
CAPÍTULO 4
Preocupações
A PERSPECTIVA DO FAZENDEIRO BARTHOLOMEW
Thistledown mudou consideravelmente quando Connor, seu filho
mais velho, falou que o “drizzit” de Liam era um elfo negro. O
fazendeiro Thistledown tinha passado seus quarenta e cinco anos
em Maldobar, uma vila a oitenta quilômetros do Rio Rauvin, ao norte
de Sundabar. O pai de Bartholomew vivera ali, e o pai de seu pai
antes dele. Em todo esse tempo, a única noticia que qualquer
fazendeiro Thistledown tinha ouvido dos elfos negros foram as
histórias de uma incursão drow suspeita em um pequeno
assentamento de elfos silvestres a uns cento e cinquenta
quilômetros ao norte, na Floresta Fria. Essa incursão, se foi mesmo
feita pelos drow, ocorrera há mais de uma década.
A falta de experiência pessoal com a raça drow não diminuiu os
medos do fazendeiro Thistledown ao ouvir de seus filhos sobre o
encontro no campo de amoras. Connor e Eleni, duas fontes
confiáveis e crescidas o suficiente para manter o juízo em um
momento de crise, tinham visto o elfo de perto, e não tinham
dúvidas sobre a cor de sua pele.
— Só não dá pra entender direito — Bartholomew disse a Benson
Delmo, o prefeito gordo e alegre de Maldobar e vários outros
fazendeiros que se reuniram em sua casa naquela noite — por que
este drow deixou as crianças irem embora. Não sou especialista nos
elfos negros, mas já ouvi muito sobre eles para esperar um tipo
diferente de ação.
— Talvez Connor tenha sido melhor no ataque do que achou —
Delmo tentou supor. Todos tinham ouvido sobre o desarmamento de
Connor; Liam e os outros irmãos Thistledown (exceto pelo pobre
Connor, é claro) gostaram particularmente de contar essa parte.
Por mais que ele apreciasse o voto de confiança do prefeito,
Connor balançou a cabeça com insistência ante a sugestão.
— Ele me pegou — admitiu Connor. — Acho que fiquei muito
surpreso vendo ele, mas ele me pegou — e me deixou escapar.
— O que não é fácil — disse Bartholomew, desviando possíveis
risos da multidão chucra. — Todo mundo aqui viu Connor lutar. No
inverno passado, ele derrubou três goblins e os lobos que estavam
montando!
— Acalme-se, meu bom fazendeiro Thistledown — disse o
prefeito. — Não duvidamos da habilidade do seu filho.
— Eu duvido do inimigo! — acrescentou Roddy McGristle, um
homem peludo do tamanho de um urso, o mais experiente no grupo.
Roddy passava mais tempo nas montanhas do que cuidando de sua
fazenda, um empreendimento recente do qual ele não gostava
muito, e sempre que alguém oferecia uma recompensa por orelhas
de orcs, Roddy invariavelmente pegava a maior parte das
recompensas, muitas vezes mais do que o resto da cidade toda
combinada.
— Sossega o facho — disse Roddy a Connor quando o menino
começou a se levantar, com um retrucar obviamente por vir. — Eu
sei o que cê diz que viu, e eu acho que cê viu o que disse ver. Mas
cê disse que é um drow, e esse “nome” traz mais do que cê pode
começar a imaginar. Se fosse mesmo um drow o que cê viu, meu
palpite é que ocê e toda sua família tivesse bem morta agora lá no
campo de amora. Não, não é um drow, pelo meu palpite, mas tem
mais coisa nas montanha que pode fazer o que cê diz que isso fez.
— Por exemplo… — disse Bartholomew de forma atravessada,
não apreciando as dúvidas que Roddy lançou sobre a história de
seu filho. Bartholomew não gostava muito de Roddy, de qualquer
forma. O fazendeiro Thistledown mantinha uma família respeitável, e
toda vez que Roddy McGristle, bruto e chucro, os visitava, levava a
Bartholomew e sua esposa muitos dias para lembrar as crianças,
especialmente Liam, sobre o que era um comportamento adequado.
Roddy simplesmente deu de ombros, não se ofendendo com o
tom de Bartholomew.
— Goblin, troll… pode ser um elfo que pegou sol demais — sua
risada, que irrompeu após a última declaração, ressoou pelo grupo,
menosprezando a sua seriedade.
— Então, como sabemos com certeza? — perguntou Delmo.
— A gente descobre achando — ofereceu Roddy. — Amanhã de
manhã — ele apontou para cada homem sentado na mesa de
Bartholomew — a gente sai e vê o que dá pra ver. — considerando
a reunião improvisada acabada, Roddy bateu as mãos na mesa e se
levantou. Ele olhou para trás antes de chegar à porta da fazenda,
porém, lançou uma piscadinha exagerada e um sorriso quase sem
dentes para o grupo. — E caras — ele disse —, não esquece as
arma!
A gargalhada de Roddy ainda alcançava o grupo muito depois
que o homem chucro havia partido.
— A gente podia chamar um ranger — um dos outros fazendeiros
sugeriu esperançosamente quando o grupo desanimado começou a
partir. — Ouvi dizer que tem uma em Sundabar, uma das irmãs de
Lady Alustriel.
— É um pouco cedo demais para isso — respondeu o prefeito
Delmo, derrotando quaisquer sorrisos otimistas.
— E tem “cedo demais” quando tem um drow no meio? —
Bartholomew rapidamente acrescentou.
O prefeito deu de ombros.
— Vamos com McGristle — ele respondeu. — Se alguém pode
descobrir a verdade sobre o que está nas montanhas, é ele — e se
voltou com tato para Connor. — Eu acredito em sua história,
Connor. Mesmo. Mas temos que saber com certeza antes de fazer
um chamado para uma ajuda tão distinta como uma irmã da
senhora de Lua Argêntea.
O prefeito e o resto dos fazendeiros partiram, deixando
Bartholomew, seu pai, Markhe e Connor sozinhos na cozinha dos
Thistledowns.
— Não era nenhum goblin nem um elfo da floresta — disse
Connor em um tom baixo que insinuava tanto raiva quanto
constrangimento.
Bartholomew bateu de leve nas costas de seu filho, nunca
duvidando dele.

Em uma caverna nas montanhas, Ulgulu e Kempfana, também,


passaram uma noite de preocupação pela aparição de um elfo
negro.
— Se ele é um drow, então é um aventureiro experiente —
Kempfana falou a seu irmão maior. — Experiente o suficiente,
talvez, para enviar Ulgulu para maturidade.
— E de volta a Gehena! — Ulgulu terminou para seu irmão
conivente. — Você faz questão de me ver partir.
— Você também espera pelo dia em que poderá voltar às fendas
fumegantes — lembrou Kempfana.
Ulgulu rosnou e não respondeu. A aparição de um elfo negro
levava a muitas considerações e medos além da lógica simples de
Kempfana. Os barghests, como todas as criaturas inteligentes em
quase todos os planos de existência, conheciam os drow e
mantinham um respeito saudável pela raça. Enquanto um drow
talvez não fosse um problema demais, Ulgulu sabia que um grupo
de ataque de elfos negros, talvez até um exército, poderia
representar um desastre. Os filhotes não eram invulneráveis. A
aldeia humana fornecia presas fáceis para os filhotes de barghest e
poderia continuar a fazê-lo por algum tempo se Ulgulu e Kempfana
fossem cuidadosos em seus ataques. Mas se um grupo de elfos
negros aparecesse, tais matanças fáceis poderiam desaparecer de
repente.
— Devemos lidar com esse drow — observou Kempfana. — Se
ele é um batedor, então não deve retornar para relatar suas
descobertas.
Ulgulu lançou um olhar gelado na direção de seu irmão e depois
chamou seu célere:
— Tephanis — ele gritou, e o célere estava sobre seu ombro
antes mesmo que terminasse de articular seu nome.
— Você-precisa-que-eu-vá-e-mate-o-drow-meu-mestre? — o
célere respondeu. — Eu-entendi-o-que-você-precisa-que-eu-faça!
— Não! — Ulgulu gritou imediatamente, sentindo que o célere
pretendia sair imediatamente. Tephanis estava a meio caminho da
porta quando Ulgulu terminou a sílaba, mas o célere estava de volta
ao ombro de Ulgulu antes que a última nota do grito tivesse
desaparecido.
— Não — disse Ulgulu novamente, com mais calma. — Podemos
ganhar algo com a aparição do drow.
Kempfana leu o sorriso malvado de Ulgulu e entendeu a intenção
de seu irmão.
— Um novo inimigo para as pessoas da cidade — argumentou o
filhote menor. — Um novo inimigo para cobrir os assassinatos de
Ulgulu?
— Todas as coisas podem ser aproveitadas — o grande barghest
de pele roxa respondeu com perversidade — até mesmo a aparição
de um elfo negro — Ulgulu tornou a se virar para Tephanis.
— Você-deseja-saber-mais-sobre-o-drow, meu-mestre —
Tephanis chilreou com entusiasmo.
— Ele está sozinho? — perguntou Ulgulu. — Ele é um batedor
para um grupo maior, como tememos, ou um guerreiro solitário?
Quais são as suas intenções em relação às pessoas da cidade?
— Ele-poderia-ter-matado-as-crianças — reiterou Tephanis. —
Eu-acho-que-ele-deseja-amizade.
— Eu sei — gritou Ulgulu. — Você já disse isso antes. Vá agora e
descubra mais! Eu preciso de mais do que o seu palpite, Tephanis,
e, de qualquer forma, as ações de um drow raramente sugerem sua
verdadeira intenção!
Tephanis saltou do ombro de Ulgulu e fez uma pausa, esperando
instruções adicionais.
— Na verdade, querido Tephanis — Ulgulu ronronou —, veja se
você pode se apropriar de uma das armas do drow para mim.
Poderia ser út-- — Ulgulu parou quando notou o farfalhar na cortina
pesada que bloqueava a sala de entrada.
— Um spritezinho empolgado — observou Kempfana.
— Mas tem sua utilidade — respondeu Ulgulu, e Kempfana teve
que concordar.

Drizzt os viu chegando a quase dois quilômetros de distância.


Dez fazendeiros armados seguiam o jovem que ele havia conhecido
no bosque de amoras no dia anterior.
Embora eles conversassem e brincassem, o seu avanço era
determinado e suas armas eram exibidas de forma proeminente,
obviamente prontas para ser usadas. Ainda mais insidioso,
caminhando ao lado do grupo principal vinha um homem troncudo
de rosto sombrio envolto em peles grossas, brandindo um machado
finamente trabalhado e levando dois cachorros amarelos grandes e
raivosos presos em correntes grossas.
Drizzt queria entrar em contato com os aldeões, queria continuar
os acontecimentos que havia iniciado no dia anterior e saber se
poderia, finalmente, encontrar um lugar que pudesse chamar de lar,
mas essa situação que se aproximava, ele percebeu, não era a
melhor para se obter tais coisas. Se os fazendeiros o encontrassem,
certamente haveria problemas e, enquanto Drizzt não estava muito
preocupado com sua própria segurança contra o bando esfarrapado,
mesmo considerando o homem troncudo de expressão sombria, ele
temia que um dos fazendeiros pudesse se machucar.
Drizzt decidiu que sua missão naquele dia seria evitar o grupo e
desviar sua curiosidade. O drow conhecia a distração perfeita para
atingir esses objetivos. Ele colocou a estatueta de ônix no chão
diante dele e chamou por Guenhwyvar.
Um ruído de zumbido ao seu lado, seguido do farfalhar de um
arbusto, distraiu o drow por um momento, enquanto a névoa
habitual rodopiava ao redor da estatueta. Drizzt não viu nada de
ameaçador se aproximando, e rapidamente se esqueceu da
distração. Ele tinha problemas mais urgentes, pensou.
Quando Guenhwyvar chegou, Drizzt e a gata seguiram a trilha
para além do bosque de amoras, onde Drizzt imaginou que os
fazendeiros começariam sua caça. Seu plano era simples: deixaria
os fazendeiros vasculharem a área por um tempo, deixando o filho
do fazendeiro contar sua história do encontro. Guenhwyvar então
faria uma aparição ao longo da borda do bosque e lideraria o grupo
em uma perseguição fútil. A pantera de pelo negro poderia lançar
algumas dúvidas sobre a história do menino da fazenda;
possivelmente os homens mais velhos suporiam que as crianças
haviam encontrado a gata e não um elfo negro e que a imaginação
deles havia fornecido o resto dos detalhes. Era uma aposta, Drizzt
sabia, mas, pelo menos, Guenhwyvar lançaria algumas dúvidas
sobre a existência do elfo negro e afastaria esse grupo de caça de
Drizzt por um tempo.
Os fazendeiros chegaram ao bosque de amoras no tempo
esperado, alguns com aparência sombria e prontos para a batalha,
mas a maioria do grupo falava casualmente em conversações
repletas de risadas. Eles encontraram a espada descartada, e Drizzt
observou, sacudindo a cabeça, enquanto o filho do fazendeiro
repassava os acontecimentos do dia anterior. Drizzt notou, também,
que o homem que empunhava o machado, ouvindo a história sem
rodeios, circulava o grupo com seus cachorros, apontando vários
pontos no bosque e mandando os cães farejá-los. Drizzt não tinha
experiência prática com cães, mas sabia que muitas criaturas
tinham sentidos superiores e poderiam ser usadas para ajudar na
caça.
— Vá, Guenhwyvar — o drow sussurrou, antes que os cães
conseguissem um aroma mais nítido.
A grande pantera deslizou silenciosamente pela trilha e ocupou
uma posição em uma das árvores no mesmo matagal onde os
meninos haviam se escondido no dia anterior. O rugido repentino de
Guenhwyvar silenciou a crescente conversa do grupo em um
instante, todas as cabeças girando para as árvores.
A pantera saltou para o bosque, disparou entre os humanos
atordoados e correu por entre as rochas ascendentes das encostas
da montanha. Os fazendeiros berraram e saíram em perseguição,
chamando o homem com os cães para que assumisse a liderança.
Logo, todo o grupo, com os cachorros ladrando
descontroladamente, afastou-se, e Drizzt entrou no matagal perto da
trilha de amoras para refletir sobre os eventos do dia e seu melhor
curso de ação.
Ele sentiu um zumbido agitado o seguindo, mas deixou passar,
supondo que fosse o zumbido de um inseto.

Pelas as ações confusas de seus cães, não demorou para que


Roddy McGristle descobrisse que a pantera não era a mesma
criatura que havia deixado o cheiro na trilha de amoras. Além disso,
Roddy percebeu que seus companheiros maltrapilhos,
particularmente o prefeito obeso, mesmo com sua ajuda, tinham
pouca chance de capturar a gata; a pantera poderia saltar sobre
ravinas que levariam aos fazendeiros muitos minutos para se
contornar.
— Vão em frente! — Roddy disse ao resto do grupo. — Sigam
essa coisa nesta trilha aqui. Vou levar meus cachorros até o outro
lado pra cercar essa coisa e fazer com que volte na direção de
vocês — os fazendeiros concordaram e se afastaram, e Roddy
puxou as correntes e os cachorros de volta.
Os cães, treinados para a caça, queriam continuar, mas seu
mestre tinha outra rota em mente. Muitos pensamentos perturbavam
a mente de Roddy naquele momento. Ele estivera por diversas
vezes naquelas montanhas em trinta anos, mas nunca havia visto,
ou ouvido falar, de tal felino. Além disso, embora a pantera pudesse
facilmente ter deixado seus perseguidores muito para trás, ela
sempre parecia se mostrar em campo aberto, não muito longe,
como se estivesse levando os fazendeiros a algum lugar. Roddy
sabia reconhecer uma distração quando via uma, e tinha um bom
palpite de onde o perpetrador poderia estar se escondendo. Ele pôs
uma focinheira nos cães para mantê-los em silêncio e voltou para o
caminho do qual havia vindo, de volta à trilha de amoras.

Drizzt descansava contra uma árvore nas sombras do matagal


fechado e se perguntava como poderia aumentar sua exposição aos
fazendeiros sem causar mais pânico entre eles. Em seus dias
observando uma única família na fazenda, Drizzt estava convencido
de que poderia encontrar um lugar entre os humanos, deste ou de
algum outro assentamento, se pudesse convencê-los de que suas
intenções não eram perigosas.
Um zunido à esquerda de Drizzt o arrancou abruptamente de
suas reflexões. Rapidamente, ele puxou suas cimitarras, então algo
passou por ele, rápido demais para que reagisse. Ele gritou com
uma dor súbita no pulso, e sua cimitarra foi arrancada de sua mão.
Confuso, Drizzt olhou para a ferida, esperando ver uma flecha ou
um virote preso em seu braço.
O ferimento estava limpo. Um riso agudo fez com que Drizzt
girasse para a direita. Lá estava o sprite, com a cimitarra de Drizzt
casualmente pendurada sobre um ombro, quase tocando o chão
atrás da diminuta criatura, e uma adaga, pingando sangue, na outra
mão.
Drizzt se manteve parado, tentando adivinhar o próximo passo da
criaturinha. Ele nunca havia visto um célere antes, ou mesmo ouvido
falar sobre aquelas criaturas incomuns, mas tinha uma boa ideia da
vantagem de seu adversário veloz. Antes que o drow pudesse
formar qualquer plano para derrotar o célere, porém, outro inimigo
mostrou-se.
Drizzt sabia, assim que ouviu o uivo, que seu grito de dor o
revelara. O primeiro dos cães vorazes de Roddy McGristle
atravessou o arbusto, investindo no drow por baixo. O segundo,
correndo a alguns passos do primeiro, atacou pelo alto, pulando em
direção à garganta de Drizzt.
Desta vez, no entanto, Drizzt foi mais rápido. Ele golpeou com a
cimitarra restante, acertando a cabeça do primeiro cão e batendo
em seu crânio. Sem hesitar, Drizzt se atirou para trás, invertendo
sua pegada na lâmina e levando-a acima de seu rosto, na direção
do cão que saltava. O punho da cimitarra se prendeu rapidamente
contra o tronco da árvore, e o cão, incapaz de mudar a direção do
seu salto, atingiu a outra extremidade da arma com força,
empalando-se através da garganta e do peito. O impacto arrancou a
cimitarra da mão de Drizzt, e o cão e a lâmina caíram dento de
algum arbusto ao lado da árvore.
Drizzt mal havia se recuperado quando Roddy McGristle
apareceu.
— Cê matou meu cachorro! — o enorme homem das montanhas
rugiu, levando Sangrador, seu machado grande e já marcado pelas
batalhas, na direção da cabeça do drow. O corte fora
enganosamente rápido, mas Drizzt conseguiu esquivar-se para o
lado. O drow não conseguia entender nenhuma palavra do jorro
contínuo de palavrões de McGristle, e sabia que o homem bruto não
entenderia nenhuma explicação que Drizzt pudesse tentar oferecer.
Ferido e desarmado, a única defesa de Drizzt era continuar a
esquivar-se. Outro golpe quase o pegou, cortando seu manto de
gnoll, mas ele encolheu sua barriga, e o machado passou direto por
sua cota de malha. Drizzt dançou para o lado, em direção a um
conjunto apertado de árvores menores, onde acreditava que sua
agilidade maior poderia dar-lhe alguma vantagem. Ele teria que
tentar cansar o humano enfurecido, ou pelo menos fazê-lo
reconsiderar seu ataque brutal. No entanto, a ira de McGristle não
diminuiu. Ele atacou indo logo atrás de Drizzt, rosnando e se
balançando a cada passo.
Drizzt agora via as deficiências de seu plano. Ainda que pudesse
se manter longe do grande corpo volumoso do humano entre as
árvores aglomeradas, o machado de McGristle poderia mergulhar
entre elas de forma bastante habilidosa.
A poderosa arma veio pela lateral, ao nível do ombro. Drizzt se
jogou no chão desesperadamente, evitando a morte por pouco.
McGristle não conseguiu retardar o seu movimento a tempo, e a
arma pesada — e fortemente empunhada —, se chocou no tronco
de dez centímetros de espessura de um jovem bordo, derrubando a
árvore.
O ângulo cada vez mais estreito do tronco em queda segurou o
machado de Roddy. Roddy grunhiu e tentou arrancar sua arma, e
não percebeu o perigo até o último minuto. Ele conseguiu se afastar
do peso principal do tronco, mas foi enterrado sob a copa do bordo.
Os ramos rasgaram seu rosto e o lado de sua cabeça, formando
uma teia ao redor dele e prendendo-o firmemente ao chão.
— Maldito seja, drow! — McGristle rugiu, se debatendo
inutilmente em sua prisão natural.
Drizzt se arrastou para longe dele, ainda agarrando o pulso ferido.
Ele encontrou a sua cimitarra restante, enterrada até o punho no
infeliz cachorro. A visão afetou Drizzt; conhecia o valor dos
companheiros animais. Levou vários momentos de coração partido
até finalmente puxar a lâmina, momentos tornados ainda mais
dramáticos pelo outro cão, que, meramente atordoado, estava
começando a se mexer novamente.
— Maldito seja, drow! — McGristle rosnou novamente.
Drizzt entendeu a referência a sua herança, e pôde imaginar o
resto. Ele queria ajudar o homem caído, imaginando que poderia
começar a abrir caminho em direção a estabelecer uma
comunicação mais civilizada, mas não acreditava que o cachorro
desperto estaria tão pronto para dar uma pata. Com um olhar final
em busca do sprite que tinha começado tudo isso, Drizzt se arrastou
para fora do bosque e fugiu para as montanhas.

— A gente já devia ter pegado a coisa! — Bartholomew


Thistledown resmungou quando a trupe voltou para a trilha de
amoras.
— Se McGristle tivesse aparecido onde disse que iria, a gente já
ia ter pegado o gato com certeza! Aliás, cadê o cara e os cachorros?
Um rugido de “Drow! Drow!” vindo do aglomerado de bordos
respondeu à pergunta de Bartholomew. Os fazendeiros se
precipitaram para encontrar Roddy ainda impotentemente preso
pela árvore de bordo derrubada.
— Maldito drow! — Roddy berrou. — Matou meu cachorro!
Maldito drow! — ele alcançou a orelha esquerda quando seu braço
estava livre, mas descobriu que a orelha não estava mais ali. —
Maldito drow! — rugiu de novo.
Connor Thistledown permitiu que todos vissem o retorno de seu
orgulho ante a confirmação de seu conto até então questionado,
mas o filho mais velho dos Thistledowns era o único satisfeito com a
proclamação inesperada de Roddy. Os outros fazendeiros eram
mais velhos do que Connor; eles perceberam as implicações
sombrias de ter um elfo negro assombrando a região.
Benson Delmo, limpando o suor de sua testa, fez pouco segredo
sobre como estava reagindo à notícia. Ele se virou imediatamente
para o fazendeiro ao seu lado, um homem mais novo conhecido por
sua proeza em criar e montar cavalos.
— Vá até Sundabar — ordenou o prefeito. — Encontre-nos um
ranger imediatamente!
Em poucos minutos, Roddy foi solto. A essa altura, seu cão ferido
havia se juntado a ele, mas saber que um dos seus preciosos
animais havia sobrevivido fazia pouco para acalmar o homem
áspero.
— Maldito drow! — Roddy rugiu pela talvez milésima vez,
limpando o sangue da bochecha. — Eu vou pegar esse drow
maldito! — e enfatizou seu ponto ao bater Sangrador, com uma
mão, no tronco de outro bordo próximo, quase derrubando aquele
também.
CAPÍTULO 5
A Perseguição Maldita
OS GUARDAS GOBLINS PULARAM PARA O LADO quando o
poderoso Ulgulu rasgou a cortina e saiu do complexo de cavernas.
O ar noturno da montanha gelada causou uma sensação agradável
no barghest, melhor ainda quando Ulgulu pensou na tarefa diante
dele. Ele olhou para a cimitarra que Tephanis tinha lhe entregado, a
arma forjada parecendo minúscula na mão imensa de Ulgulu.
Ulgulu inconscientemente deixou a arma cair no chão. Não queria
usá-la naquela noite, mas sim suas próprias armas mortíferas,
garras e dentes, provar suas vítimas e devorar sua essência vital
para se tornar mais forte. No entanto, Ulgulu era inteligente e sua
lógica anulou os instintos que desejavam o sabor do sangue. Havia
um propósito no trabalho daquela noite, um método que prometia
ganhos maiores e a eliminação da ameaça que a aparição
inesperada do elfo negro apresentava.
Com um grunhido gutural, um pequeno protesto primordial de
Ulgulu, o barghest agarrou a cimitarra novamente e pulou pela
montanha, cobrindo longas distâncias a cada passo. A fera parou na
beira de um barranco, onde uma única trilha estreita se desenrolava
ao longo do penhasco. Ele levaria muitos minutos para descer pela
trilha perigosa.
Mas Ulgulu estava com fome.
A consciência de Ulgulu recuou em si mesma, concentrando-se
naquele ponto do seu ser que flutuava com a energia mágica. Ele
não era uma criatura do Plano Material, e as criaturas extraplanares
inevitavelmente tinham poderes que pareciam mágicos para as
criaturas do plano em que estavam. Os olhos de Ulgulu brilhavam
em um tom laranja de empolgação quando emergiu de seu transe
apenas alguns minutos depois. Ele olhou para o penhasco,
visualizando um ponto no chão plano abaixo, talvez a uns
quatrocentos metros de distância.
Uma porta cintilante e multicolorida apareceu diante de Ulgulu,
suspensa no ar além da borda do barranco. Com um riso que se
parecia mais com um rugido, Ulgulu abriu a porta e encontrou, logo
adiante, o lugar que havia visualizado. Ele passou por ela,
contornando a distância do chão da ravina com um único passo
extradimensional.
Ulgulu se apressou, descendo a montanha em direção à aldeia
humana, correndo ansiosamente para pôr em movimento as
engrenagens de seu plano.
Quando o barghest aproximou-se das encostas mais baixas da
montanha, novamente entrou naquele canto mágico de sua mente.
O ritmo dos passos de Ulgulu diminuiu, então a criatura parou por
completo, se sacudindo espasmodicamente e gaguejando de forma
indecifrável. Ossos se fundiram com sons de explosão, sua pele se
rasgava e se colava, escurecendo até assumir um tom quase
completamente negro.
Quando Ulgulu tornou a andar, seus passos — os passos de um
elfo negro — não eram tão longos.

Bartholomew Thistledown estava sentado com seu pai Markhe e


seu filho mais velho naquela noite, na cozinha da fazenda solitária
nos arredores a oeste de Maldobar. A esposa e a mãe de
Bartholomew tinham ido ao celeiro para acomodar os animais
durante a noite, e os quatro filhos mais novos já estavam na
segurança de suas camas no pequeno quarto fora da cozinha.
Em uma noite normal, o resto da família Thistledown, as três
gerações, também estariam roncando aconchegados em suas
camas, mas Bartholomew temia que muitas noites se passariam
antes que qualquer aparência de normalidade voltasse para aquela
fazenda tranquila. Um elfo negro tinha sido visto na área e,
enquanto Bartholomew não estava convencido de que esse
estranho quisesse fazer mal a eles (o drow facilmente poderia ter
matado Connor e as outras crianças), sabia que a aparição do drow
causaria uma agitação em Maldobar por algum tempo.
— A gente podia voltar pra cidade — disse Connor. — Eles iam
encontrar algum lugar pra gente, e toda a Maldobar ia dar apoio.
— Dar apoio? — Bartholomew respondeu com sarcasmo. — E
eles iam sair de suas fazendas todo dia para vim aqui ajudar a gente
a continuar nosso trabalho? Quantos deles você acha que iam vir
aqui toda noite para cuidar dos animais?
A cabeça de Connor caiu ante a repreensão de seu pai. O jovem
deslizou uma mão para o punho de sua espada, lembrando-se de
que não era uma criança. Ainda assim, estava silenciosamente
grato pela mão de apoio que seu avô deixou cair casualmente sobre
seu ombro.
— Cê tem que pensar antes de falar essas coisas, garoto —
Bartholomew continuou, seu tom acalmando-se quando começou a
perceber o profundo efeito que suas duras palavras tinham sobre
seu filho. — A fazenda é sua vida, é tudo o que importa.
— A gente podia levar as crianças — Markhe acrescentou. — O
menino tem o direito de ficar com medo, com um elfo negro por
perto e coisa assim.
Bartholomew virou-se e deixou seu queixo cair na palma de sua
mão. Ele odiava pensar em separar a família. A família era sua fonte
de força, como tinha sido através de cinco gerações de
Thistledowns e além. No entanto, aqui estava Bartholomew,
repreendendo Connor, apesar de o menino ter falado apenas pelo
bem da família.
— Eu devia ter pensado melhor, pai — ele ouviu Connor
sussurrar, e sabia que seu próprio orgulho não poderia aguentar
contra a percepção da dor de Connor. — Me desculpa.
— Não precisa — respondeu Bartholomew, voltando para os
outros. — Eu que tinha que pedir desculpa. Todo mundo ficou de
cabelo em pé com esse elfo negro por aí. Cê tá certo no seu
pensamento, Connor. A gente tá muito longe de tudo aqui para tá
seguro.
Como se em resposta, fez-se ouvir um som alto de madeira se
quebrando e um grito abafado de fora da casa, vindo da direção do
celeiro. Naquele único momento horrível, Bartholomew Thistledown
percebeu que deveria ter tomado sua decisão mais cedo, quando a
reveladora luz do dia ainda oferecia à sua família alguma medida de
proteção.
Connor reagiu primeiro, correndo até a porta e a abrindo. O pátio
estava em um silêncio mortal; nem mesmo o som dos grilos
perturbava a cena surrealista. Uma lua silenciosa pendia no céu,
lançando longas e tortuosas sombras de cada cerca e árvore.
Connor observou, sem ousar respirar, por um longo segundo, que
mais parecia uma hora.
A porta do celeiro rangeu e caiu de suas dobradiças. Um elfo
negro entrou no pátio da fazenda.
Connor fechou a porta e recostou-se contra ela, precisando do
seu apoio tangível.
— Mãe — ofegou ante os rostos assustados de seu pai e avô. —
Drow.
Os homens Thistledowns hesitaram, suas mentes girando através
do tumulto de mil ideias horríveis. Eles simultaneamente pularam de
seus assentos, Bartholomew indo buscar uma arma e Markhe indo
em direção a Connor e à porta.
Sua ação repentina tirou Connor de sua paralisia. Ele puxou a
espada do cinto e abriu a porta, na intenção de correr e encarar o
intruso.
Um único salto de suas pernas poderosas trouxe Ulgulu até a
porta da fazenda. Connor correu às cegas pela escuridão, esbarrou
na criatura — que ainda se mostrava como um drow delgado —
ricocheteou e caiu, atordoado, na cozinha. Antes que qualquer um
dos homens pudesse reagir, a cimitarra bateu no topo da cabeça de
Connor com toda a força do barghest que a empunhava, quase
dividindo o jovem ao meio.
Ulgulu entrou desimpedido na cozinha. Ele viu o velho — o
inimigo mais fraco restante — vindo em sua direção e invocou sua
natureza mágica para acabar com o ataque. Uma onda de emoção
transmitida cobriu Markhe Thistledown, uma onda de desespero e
terror tão grande que ele não conseguia combater. Sua boca
enrugada se abriu em um grito silencioso e o velho cambaleou para
trás, encostando em uma parede e agarrando, impotente, seu peito.
A investida de Bartholomew Thistledown carregava o peso de
uma fúria desenfreada. O fazendeiro ofegava e rosnava sons
ininteligíveis enquanto abaixava seu forcado e atingia o intruso que
havia assassinado seu filho.
A aparência delgada que o barghest assumira não diminuiu a
força gigante de Ulgulu. À medida que as pontas do forcado se
aproximavam do peito da criatura, Ulgulu bateu uma única mão na
haste da arma. Bartholomew congelou, com a ponta da haste de
seu forcado o atingindo em cheio em sua barriga, roubando sua
respiração.
Ulgulu ergueu o braço rapidamente, levantando Bartholomew do
chão e batendo a cabeça do fazendeiro em uma viga do teto com
força suficiente para quebrar seu pescoço. O barghest jogou
Bartholomew e sua arma casualmente do outro lado da cozinha e se
dirigiu ao velho.
Talvez Markhe o tivesse visto se aproximando, talvez o velho
estivesse muito destruído pela dor e pela angústia para registrar
qualquer evento na sala. Ulgulu foi até ele e abriu a boca. Ele queria
devorar o velho, para se deleitar com a força vital dessa pessoa
como tinha feito com a mulher mais nova no celeiro. Ulgulu tinha
lamentado suas ações no celeiro assim que o êxtase da matança
desaparecera. Mais uma vez, o lado racional do barghest deslocou
seus impulsos básicos. Com um grunhido frustrado, Ulgulu dirigiu a
cimitarra no peito de Markhe, acabando com a dor do velho.
Ulgulu olhou ao redor para admirar seu trabalho sangrento,
lamentando não haver se banqueteado dos bons fazendeiros
jovens, mas lembrando-se dos ganhos maiores que suas ações
trariam. Um grito confuso o levou até o cômodo lateral, onde as
crianças dormiam.

Drizzt desceu das montanhas hesitantemente no dia seguinte.


Seu pulso, onde o sprite o havia esfaqueado, latejava, mas a ferida
estava limpa e Drizzt estava confiante de que iria se curar. Ele se
agachou em um arbusto na encosta atrás da fazenda Thistledown,
pronto para tentar outro encontro com as crianças. Drizzt tinha visto
muito da comunidade humana, e passado tempo demais sozinho,
para desistir. Era ali que pretendia fazer seu lar se pudesse
ultrapassar as óbvias barreiras do preconceito, personificadas mais
intensamente pelo grande homem com os cachorros furiosos.
Daquele ângulo, Drizzt não conseguia ver a porta do celeiro, e
tudo parecia estar como deveria na fazenda ante o brilho do pré-
amanhecer.
Os fazendeiros não saíram com o sol, no entanto, e em todas as
outras vezes eles saíam no mais tardar no momento do amanhecer.
Um galo cantou e vários animais se embaralharam ao redor do
celeiro, mas a casa continuou em silêncio. Drizzt sabia que isso era
incomum, mas acreditou que o encontro nas montanhas no dia
anterior houvesse feito com que os fazendeiros se escondessem.
Provavelmente, a família tinha deixado a fazenda completamente,
procurando o abrigo do maior conjunto de casas na aldeia
propriamente dita. Os pensamentos pesavam fortemente sobre
Drizzt; novamente, havia interrompido a vida daqueles ao seu redor
simplesmente mostrando seu rosto. Lembrou-se de Gruta das
Pedras Preciosas, a cidade dos gnomos svirfneblin, e o tumulto e o
potencial perigo que sua aparição trouxe para eles.
O dia ensolarado se iluminou, mas uma brisa gelada soprou nas
montanhas. Ninguém ainda se mostrou no pátio ou dentro da casa,
pelo que Drizzt pode notar. O drow observou a tudo, cada vez mais
preocupado a cada segundo que passava.
Um ruído de zumbido familiar arrancou Drizzt de suas
contemplações. Ele sacou sua cimitarra restante e olhou ao redor.
Ele desejou poder chamar Guenhwyvar, mas não havia passado
tempo suficiente desde a última visita da gata. A pantera precisava
descansar em sua casa astral por mais um dia antes de estar
suficientemente forte para andar ao lado de Drizzt. Não vendo nada
em sua área imediata, Drizzt caminhou entre os troncos de duas
grandes árvores, uma posição mais defensável contra a velocidade
estonteante do sprite.
O zumbido desapareceu um instante mais tarde, e o sprite não
estava em lugar algum. Drizzt passou o resto desse dia movendo-se
sob os arbustos, instalando armadilhas de fios e cavando fossos
rasos. Se ele e o sprite se encontrassem novamente, o drow estava
determinado a mudar o resultado.
As sombras que se alongavam e o céu ocidental carmesim
trouxeram a atenção de Drizzt de volta à fazenda Thistledown.
Nenhuma vela foi acesa dentro da fazenda para derrotar a
penumbra.
Drizzt ficou cada vez mais preocupado. O retorno do sprite
desagradável foi um lembrete pungente dos perigos da região e,
com a contínua inatividade no pátio da fazenda, um medo surgiu
dentro dele, se enraizou e rapidamente cresceu em um sentimento
de pavor.
O crepúsculo escureceu até tornar-se noite. A lua levantou-se e
continuou a subir no céu oriental.
Nenhuma vela ainda queimava na casa, e não surgiu um único
som através das janelas escuras.
Drizzt saiu dos arbustos e atravessou o pequeno campo caseiro.
Ele não tinha intenções de se aproximar da casa; só queria ver o
que poderia descobrir. Talvez os cavalos e a pequena carroça do
fazendeiro tivessem desaparecido, dando provas à suspeita anterior
de Drizzt de que os fazendeiros se refugiaram na aldeia.
Quando passou ao lado do celeiro e viu a porta quebrada, Drizzt
soube instintivamente que não era o caso. Seus medos cresciam a
cada passo. Ele olhou através da porta do celeiro e não ficou
surpreso ao ver a carroça parada no meio do celeiro e os estábulos
repletos de cavalos.
Ao lado da carroça, entretanto, estava a mulher mais velha,
destruída e coberta por seu próprio sangue seco. Drizzt foi até ela e
soube imediatamente que estava morta, assassinada por uma arma
afiada. Imediatamente seus pensamentos foram para o sprite
maligno e sua própria cimitarra desaparecida. Quando encontrou o
outro cadáver, atrás do vagão, sabia que algum outro monstro, algo
mais cruel e poderoso, estava envolvido. Drizzt nem conseguiu
identificar este segundo corpo meio devorado.
Drizzt correu do celeiro para a fazenda, jogando fora toda cautela.
Encontrou os corpos dos homens Thistledowns na cozinha e, para o
seu completo horror, as crianças mortas, ainda deitadas em suas
camas. Ondas de repulsa e culpa caíram sobre o drow quando
olhou para os corpos das crianças. A palavra “drizzit” resoou
dolorosamente em sua mente ao olhar para o menino de cabelos
cor de areia.
O tumulto das emoções de Drizzt era demais para ele. O elfo
cobriu seus ouvidos contra essa palavra condenatória, “drizzit”, mas
ela ecoava sem parar, perseguindo-o, lembrando-o.
Incapaz de encontrar a respiração, Drizzt correu da casa. Se
tivesse revirado a sala com mais cuidado, teria encontrado, debaixo
da cama, a cimitarra desaparecida, partida ao meio e deixada ali
para ser encontrada pelos aldeões.
PARTE 2
A Ranger
EXISTE ALGUMA FORÇA NO MUNDO que exerça peso maior
sobre os ombros do que a culpa? Eu já senti esse fardo
frequentemente. O carreguei comigo ao longo de muitos passos por
estradas longas.
A culpa se assemelha a uma espada com dois gumes. Por um
lado, corta pela justiça, impõe a prática moral a quem a teme. A
culpa, a consequência da consciência, é o que separa as pessoas
boas das más. Dada uma situação que prometa algum benefício, a
maioria dos drow pode vir a matar outro, seja um de seus familiares
ou não, e ir embora sem nenhum ônus emocional. O drow assassino
pode ter medo da retribuição, mas não derramará lágrima alguma
por sua vítima.
Para os seres humanos — e para os elfos da superfície, e para
todas as outras raças bondosas — o sofrimento imposto pela
consciência geralmente supera as ameaças externas. Alguns
concluiriam que a culpa, a consciência, é a principal diferença entre
as variadas raças dos Reinos. De tal forma, a culpa deve ser
considerada uma força positiva.
Mas há outro lado dessa emoção pesada. A consciência nem
sempre adere ao juízo racional. A culpa é sempre um fardo auto
imposto, mas nem sempre é corretamente imposta. E é o que
aconteceu comigo no percurso de Menzoberranzan até Vale do
Vento Gélido. Eu levei de Menzoberranzan a culpa por Zaknafein,
meu pai, sacrificado em meu nome. Eu levei para Gruta das Pedras
Preciosas a culpa por Belwar Dissengulp, o svirfneblin que meu
irmão tinha mutilado. Ao longo das muitas estradas, surgiram muitos
outros fardos: Estalo, morto pelo monstro que me perseguia; os
gnolls, mortos por minha própria mão; e os fazendeiros — mais
dolorosamente — aquela família simples da fazenda assassinada
pelo filhote de barghest.
Racionalmente, eu sabia que não era culpa minha, que as ações
estavam além da minha influência, ou em alguns casos, como com
os gnolls, que eu agira corretamente. Mas a racionalidade não ajuda
muito com o peso da culpa.
Com o tempo, reforçado pela confiança de amigos leais, consegui
me aliviar de muitos desses fardos. Outros permanecem e vão
continuar comigo para sempre. Aceito isso como inevitável, e uso tal
peso para guiar os meus passos futuros.
Esse, creio eu, é o verdadeiro propósito da consciência.
— Drizzt Do’Urden
CAPÍTULO 6
Sundabar
— AH, CHEGA, FRET — disse a mulher alta ao anão de vestes e
barba brancas, afastando as mãos dele. Ela passou os dedos pelos
cabelos grossos e castanhos, bagunçando-o consideravelmente.
— Tsc, tsc — o anão respondeu, levando imediatamente suas
mãos para o ponto sujo na capa da mulher. Ele a limpava
freneticamente, mas o contínuo deslocamento da ranger o impedia
de conseguir algum resultado. — Por que, Senhora Garra de
Falcão, eu acredito que você faria bem em consultar alguns livros
sobre o comportamento adequado?
— Eu acabei de chegar de Lua Argêntea — Columba Garra de
Falcão respondeu com indignação, lançando uma piscadela para
Gabriel, o outro guerreiro na sala, um homem alto de rosto severo.
— É normal pegar um pouco de poeira da estrada.
— Há quase uma semana! — reclamou o anão. — Você foi ao
banquete ontem à noite com essa mesma capa! — o anão então
notou que, em sua confusão com a capa de Columba, ele tinha
manchado suas vestes de seda, e essa catástrofe desviou sua
atenção da ranger.
— Querido Fret — disse Columba, lambendo um dedo e
esfregando-o sobre a sujeira em sua capa —, você é o mais
incomum dos criados.
O rosto do anão ficou vermelho como uma beterraba e ele bateu
um chinelo brilhante no chão de azulejos.
— Criado? — ele bufou. — Eu devo dizer...
— Então diga! — Columba riu.
— Eu sou o sábio mais bem sucedido — um dos sábios mais bem
sucedidos — do norte! Minha tese sobre a etiqueta adequada dos
banquetes raciais—
— Ou a falta de etiqueta adequada — Gabriel não pôde evitar
interromper. O anão se virou para ele com raiva. — Pelo menos,
quando os anões estão envolvidos — o guerreiro alto finalizou com
um dar de ombros inocente.
O anão tremia visivelmente e seus chinelos faziam uma
percussão respeitável no piso duro.
— Ah, querido Fret — ofereceu Columba, lançando uma mão
reconfortante no ombro do anão e correndo ao longo da sua barba
amarela perfeitamente aparada.
— Fred! — O anão retrucou bruscamente, afastando a mão da
ranger. — Fredegar!
Columba e Gabriel olharam um para o outro por um breve
momento de sintonia, depois gritaram o sobrenome do anão em
uma explosão de risadas.
— Esmaga-pedra!
— Fredegar Mergulhapena seria mais apropriado! — Gabriel
acrescentou.
Um olhar para o anão furioso disse ao homem que tinha passado
sua hora de partir, então pegou sua mochila e saiu do quarto,
parando apenas para lançar uma última piscadela na direção de
Columba.
— Eu só queria ajudar — o anão baixou as mãos nos bolsos
impossivelmente profundos e abaixou a cabeça.
— E você ajudou! — Columba gritou para confortá-lo. — Quer
dizer, você conseguiu mesmo uma audiência com Helm Amigo dos
Anões.
Fret continuou, recuperando um pouco de seu orgulho.
— Alguém precisa estar apropriada ao ver o Mestre de Sundabar.
— De fato, precisa mesmo — Columba prontamente concordou.
— No entanto, tudo o que tenho para vestir está diante de você,
querido Fret: manchado e sujo da estrada. Temo que não vou
causar uma boa impressão aos olhos do Mestre de Sundabar. Ele e
minha irmã se tornaram tão amigos... — foi a vez de Columba fingir
um beicinho vulnerável e, embora sua espada tivesse transformado
gigantes em comida de abutre, a ranger poderia jogar este jogo
melhor do que a maioria.
— O que devo fazer? — ela inclinou a cabeça com curiosidade
enquanto olhava para o anão. — Talvez — provocou. — Se ao
menos...
O rosto de Fret começou a se iluminar com a dica.
— Não — concluiu Columba com um suspiro pesado. — Eu
nunca poderia impor isso a você — Fret realmente saltou com
alegria, batendo palmas com suas mãos grossas.
— Com certeza você poderia, Senhora Garra de Falcão! Com
certeza você poderia!
Columba mordeu o lábio para evitar qualquer risada mais
humilhante quando o anão empolgado saltou para fora da sala.
Ainda que ela frequentemente provocasse Fret, Columba admitiria
prontamente que amava o pequeno anão. Fret havia passado
muitos anos em Lua Argêntea, onde a irmã de Columba governava,
e fez muitas contribuições para a famosa biblioteca de lá. Fret
realmente era um sábio notável, conhecido por sua extensa
pesquisa sobre os costumes de várias raças, tanto boas quanto
malignas, e era um especialista nas questões humanoides. Também
era um bom compositor. Quantas vezes, Columba se perguntou com
sincera humildade, tinha andado ao longo de uma trilha de uma
montanha qualquer, assobiando uma melodia alegre composta por
este mesmo anão?
— Querido Fret — a ranger sussurrou baixinho quando o anão
voltou, com um vestido de seda sobre um braço, mas
cuidadosamente dobrado para que não se arrastasse pelo chão,
joias diversas e um par de sapatos elegantes na outra mão com
uma dúzia de alfinetes presos entre seus lábios franzidos e uma
corda de medição sobre uma orelha. Columba escondeu seu sorriso
e decidiu dar ao anão essa batalha. Ela entraria na ponta dos pés
no salão de audiências de Helm Amigo dos Anões com um vestido
de seda, a imagem perfeita da elegância, com o sábio diminuto
resplandecendo orgulhosamente ao seu lado.
Enquanto isso, Columba sabia, os sapatos apertariam e
machucariam seus pés e o vestido encontraria algum lugar para
coçar onde não conseguiria alcançar. Tudo pelos deveres da sua
posição, Columba pensou enquanto olhava o vestido e os
acessórios. Olhou para o rosto radiante de Fret e percebeu que valia
a pena todo aquele trabalho.
Tudo pelos deveres de amizade, pensou.


O fazendeiro havia cavalgado sem parar por mais de um dia; a
visão de um elfo negro muitas vezes causava esses efeitos em
aldeões simples. Ele levou dois cavalos de Maldobar; um que havia
deixado alguns quilômetros atrás, a meio caminho entre as duas
cidades — e se tivesse sorte, encontraria o animal intacto durante a
viagem de volta — e o segundo cavalo, o precioso garanhão do
fazendeiro, que estava começando a se cansar. Ainda assim, o
fazendeiro se curvou baixo na sela, fazendo sua montaria seguir em
frente. As tochas do relógio noturno de Sundabar, no alto das
grossas paredes de pedra da cidade, estavam à vista.
— Pare e diga seu nome! — veio o grito formal do capitão dos
guardas do portão quando o cavaleiro se aproximou, meia hora
depois.

Columba inclinou-se sobre Fret buscando apoio enquanto


seguiam o criado de Helm pelo corredor longo e decorado até a sala
de audiências. A ranger poderia atravessar uma ponte de corda sem
corrimões, poderia disparar o arco com uma precisão mortal
montada sobre um corcel em galope, poderia subir uma árvore
vestindo uma cota de malha completa, com espada e escudo na
mão. Mas ela não podia, com toda a sua experiência e agilidade,
lidar com os sapatos sofisticados em que Fret tinha apertado seus
pés.
— E esse vestido — sussurrou Columba irritada, sabendo que a
roupa impraticável seria dividida em seis ou sete pedaços se tivesse
a oportunidade de brandir sua espada enquanto a usava, ou mesmo
inspirar com força.
Fret olhou para ela, magoado.
— Este vestido é certamente o mais bonito… — Columba gemeu,
com cuidado para não dar ao empertigado anão motivos para fazer
birra. — Realmente não consigo encontrar palavras adequadas à
minha gratidão, querido Fret.
Os olhos cinzentos do anão brilhavam, embora não estivesse
certa de que ele acreditasse em uma palavra do que ouvira. De
qualquer forma, Fret percebeu que Columba se preocupava o
suficiente com ele para seguir suas sugestões, e tal fato era tudo o
que realmente importava para ele.
— Eu peço mil perdões, minha senhora — veio uma voz por trás.
Toda a comitiva virou-se para ver o capitão do turno noturno, com
um fazendeiro ao seu lado, trotando pelo corredor sombrio.
— Bom capitão! — Fret protestou contra a violação do protocolo.
— Se deseja uma audiência com a senhora, deve fazer uma
apresentação no salão. Então, e somente então, e somente se o
mestre permitir, você pode...
Columba pousou uma mão no ombro do anão para silenciá-lo, por
reconhecer a urgência gravada nos rostos dos homens, um olhar
que a heroína aventureira já vira muitas vezes.
— Continue, capitão — ela sugeriu. Para acalmar Fret,
acrescentou — Nós temos alguns momentos antes que nossa
reunião comece. O Mestre Helm não ficará esperando.
O fazendeiro avançou corajosamente.
— Peço mil perdões, minha senhora — ele começou, remexendo
seu chapéu nervosamente nas mãos. — Eu sou apenas um
fazendeiro de Maldobar, uma pequena aldeia ao norte…
— Eu conheço Maldobar — informou Columba — Muitas vezes vi
o lugar das montanhas. Uma comunidade boa e robusta. — o
fazendeiro se iluminou com sua descrição. — Espero que nada de
ruim tenha acontecido em Maldobar.
— Ainda não, minha senhora — respondeu o fazendeiro — mas
temos problemas à vista, não devemos duvidar — fez uma pausa e
olhou para o capitão para obter apoio.
— Drow. — os olhos de Columba se arregalaram ante as notícias.
Mesmo Fret, batendo seu pé impacientemente durante toda a
conversa, parou para observar.
— Quantos? — Columba perguntou.
— Somente um, pelo que vimos. Tememos que seja um batedor
ou espião, e sem nenhuma boa intenção.
Columba concordou com a cabeça.
— Quem viu o drow?
— Crianças primeiro — respondeu o fazendeiro, arrancando um
suspiro de Fret e fazendo o pé do anão bater impaciente mais uma
vez.
— Crianças? — o anão bufou.
A determinação do fazendeiro não vacilou.
— Então McGristle o viu — ele disse, olhando diretamente para
Columba. — E McGristle já viu muita coisa!
— O que é um McGristle? — Fret bufou.
— Roddy McGristle — respondeu Columba, com um tom um
tanto azedo, antes que o fazendeiro pudesse explicar. — Um
caçador de recompensas e notável caçador de peles.
— O drow matou um dos cachorros de Roddy — o agricultor
acrescentou com entusiasmo — e quase cortou Roddy! Derrubou
uma árvore nele! Ele perdeu uma orelha no meio disso tudo.
Columba não entendia bem do que o fazendeiro estava falando,
mas realmente não precisava. Um elfo negro tinha sido visto e
confirmado na região, e tal fato sozinho fazia a ranger agir. Ela tirou
os sapatos sofisticados e os entregou a Fret, depois disse a um dos
criados para ir direto encontrar seus companheiros de viagem e, por
fim, disse ao outro para repassar seu pedido desculpas ao Mestre
de Sundabar.
— Mas senhora Garra de Falcão! — Fret gritou.
— Não há tempo para formalidades — respondeu Columba, e
Fret sabia por sua óbvia empolgação que não estava muito
decepcionada por cancelar sua audiência com Helm. Ela já estava
se remexendo, tentando abrir uma fenda na parte traseira de seu
vestido magnífico.
— Sua irmã não ficará satisfeita — Fret grunhiu alto sobre o som
do bater de sua bota.
— Minha irmã pendurou sua mochila há muito tempo — replicou
Columba —, mas a minha ainda se cobre da sujeira fresca da
estrada!
— Com certeza — o anão murmurou, de uma forma
evidentemente nada elogiosa.
— Você pretende vir, então? — o fazendeiro perguntou
esperançosamente.
— Claro — respondeu Columba. — Nenhum ranger respeitável
poderia ignorar a aparição de um elfo negro! Meus três
companheiros e eu partiremos para Maldobar nesta noite, embora
eu implore que você permaneça aqui, bom fazendeiro. Você viajou
bastante e com pressa — é óbvio — e precisa dormir.
Columba olhou ao redor curiosamente por um momento, depois
colocou um dedo sobre os lábios franzidos.
— O quê? — o anão irritado perguntou a ela.
O rosto de Columba iluminou-se quando seu olhar caiu em Fret.
— Eu tenho pouca experiência com elfos negros — começou —,
e meus companheiros, a meu ver, nunca lidaram com um — seu
sorriso, se alargando, fez Fret quase cair para trás. — Venha,
querido Fret — Columba ronronou para o anão. Com os pés
descalços batendo espontaneamente no chão de azulejos, ela levou
Fret, o capitão e o fazendeiro de Maldobar pelo corredor para a sala
de audiências de Helm.
Fret estava confuso — e esperançoso — por um momento graças
à súbita mudança de direção de Columba. Assim que Columba
começou a conversar com Helm, o mestre de Fret, pedindo
desculpas pelo inconveniente inesperado e pedindo a Helm que
enviasse alguém que poderia ajudar na missão a Maldobar, o anão
começou a entender.

No momento em que o sol encontrou o caminho acima do


horizonte oriental na manhã seguinte, o grupo de Columba, que
incluía um arqueiro elfo e dois poderosos guerreiros humanos,
estava a mais de quinze quilômetros do portão pesado de Sundabar.
— Ugh! — Fret gemeu quando a luz aumentou. Ele montava um
robusto pônei Adbar ao lado de Columba. — Veja como a lama
sujou minhas roupas! Certamente será o fim de todos nós! Morrer
imundo em uma estrada abandonada pelos deuses!
— Escreva uma música sobre isso — sugeriu Columba,
devolvendo os sorrisos alargados de seus outros três companheiros.
— A balada dos cinco aventureiros engasgados, será como
chamarei.
O olhar furioso de Fret durou apenas o momento em que levou
Columba para lembrá-lo de que Helm Amigo dos Anões, o próprio
Mestre de Sundabar, havia enviado Fret nessa viagem.
CAPÍTULO 7
Fúria Latente
NA MESMA MANHÃ QUE O GRUPO DE COLUMBA partiu para
Maldobar, Drizzt partiu em uma jornada própria. O horror de sua
descoberta macabra na noite anterior não diminuiu, e o drow temia
que nunca diminuiria, mas outra emoção entrou nos seus
pensamentos. Não poderia fazer nada pelos fazendeiros e seus
filhos, nada além de vingar suas mortes. E isso não era tão
agradável para Drizzt; ele tinha deixado o Subterrâneo para trás, e a
selvageria também, esperava. Com as imagens da carnificina ainda
claras em sua mente, e sozinho como estava, Drizzt podia recorrer
apenas a sua cimitarra em busca de justiça.
Drizzt tomou duas precauções antes de seguir o rastro do
assassino. Primeiro, se arrastou de volta para o pátio, na parte de
trás da casa, onde os fazendeiros haviam colocado um arado
quebrado. A lâmina de metal era pesada, mas o drow determinado a
ergueu e a carregou sem pensar no desconforto.
Drizzt então chamou Guenhwyvar. Assim que a pantera chegou e
notou a carranca de Drizzt, ficou em posição de alerta. Guenhwyvar
tinha estado com Drizzt tempo suficiente para reconhecer essa
expressão e entender que entraria em batalha antes de retornar à
sua casa astral.
Partiram antes do amanhecer, com Guenhwyvar seguindo
facilmente a pista clara do barghest, conforme Ulgulu esperava. Seu
ritmo era lento, com Drizzt sendo atrasado pelo arado, mas firme, e
assim que Drizzt ouviu o som de um zumbido distante, sabia que
tinha feito bem em levar o objeto inconveniente com ele.
Ainda assim, o resto da manhã passou sem incidentes. A trilha
levou a dupla a um barranco rochoso e à base de um penhasco alto
e assimétrico. Drizzt temia ter que escalar o penhasco e deixar o
arado para trás, mas logo viu uma trilha estreita que se escondia ao
longo da parede. O caminho ascendente permanecia plano,
enquanto se desenrolava ao redor das curvas escarpadas na face
do penhasco, com voltas cegas e perigosas. Querendo usar o
terreno como sua vantagem, Drizzt enviou Guenhwyvar muito à
frente e seguiu sozinho, arrastando o arado e se sentindo vulnerável
no penhasco aberto.
Tal sentimento não fez muito para apagar o fogo ardente nos
olhos de Drizzt, que se incendiavam claramente sob o capuz baixo
da capa de gnoll, grande demais para ele. Se a visão do barranco
se aproximando logo ao lado deixasse o drow nervoso, bastava a
Drizzt se lembrar dos fazendeiros. Pouco tempo depois, quando
Drizzt ouviu o ruído de zumbido esperado vindo de algum lugar mais
abaixo na trilha estreita, ele apenas sorriu.
O zumbido rapidamente se aproximou por trás. Drizzt recuou
contra a parede do penhasco e sacou sua cimitarra, monitorando
cuidadosamente o tempo que o sprite levava para se aproximar.
Tephanis brilhou ao lado do drow, o pequeno punhal do célere se
lançando e tentando provocar uma abertura nos movimentos
defensivos da cimitarra rodopiante. O sprite desapareceu em um
instante, subindo à frente de Drizzt, mas Tephanis havia conseguido
acertar, cortando Drizzt em um ombro.
Drizzt inspecionou a ferida e assentiu gravemente, aceitando-a
como um incômodo menor. Sabia que não poderia derrotar o ataque
terrivelmente rápido, e sabia, também, que permitir o primeiro golpe
era necessário para sua vitória final. Um grunhido no caminho à
frente colocou Drizzt em alerta. Guenhwyvar havia encontrado o
sprite, e a pantera, com suas patas ligeiras que podiam rivalizar com
a velocidade do célere, sem dúvida havia feito a criatura recuar.
Mais uma vez Drizzt se colocou de costas para a parede,
monitorando a aproximação do zumbido. Assim que viu o sprite
retornando, Drizzt saltou para o caminho estreito, com a cimitarra já
em prontidão. A outra mão do drow estava menos em evidência e
segurava firme um objeto metálico, pronto para incliná-lo e bloquear
a abertura.
O sprite acelerou em direção à parede, para facilmente, como
Drizzt imaginava, evitar a cimitarra. Mas, prestando atenção em seu
alvo, o sprite não percebeu a outra mão de Drizzt.
Drizzt quase não registrou os movimentos do sprite, mas o súbito
“bong!” e as vibrações em sua mão quando a criatura atingiu o
arado trouxeram um sorriso a seus lábios. Ele deixou cair o arado e
pegou o sprite inconsciente pela garganta, mantendo-o longe do
chão. Guenhwyvar apareceu ao redor da curva no momento em que
o sprite sacudia a tontura de sua cabeça de traços compridos, suas
orelhas longas e pontudas quase atingindo o outro lado da cabeça a
cada movimento.
— Que criatura você é? — Drizzt perguntou na língua goblin,
idioma que tinha funcionado com o bando de gnolls. Para sua
surpresa, descobriu que o sprite entendia, embora sua resposta
aguda e acelerada tenha chegado rápido demais para que Drizzt
começasse a compreender.
O drow sacudiu o sprite para silenciá-lo e depois grunhiu:
— Uma palavra por vez! Qual é o seu nome?
— Tephanis — o sprite disse com indignação. Tephanis podia
mover as pernas cem vezes por segundo, mas elas não podiam
ajudá-lo muito enquanto estava suspenso no ar. O sprite olhou para
a borda estreita e viu sua pequena adaga caída ao lado do arado
amassado.
A cimitarra de Drizzt se moveu perigosamente.
— Você matou os fazendeiros? — o elfo negro perguntou sem
rodeios. Quase o socou em resposta ao riso do sprite.
— Não — disse Tephanis rapidamente.
— Quem fez isso?
— Ulgulu! — proclamou o sprite. Tephanis apontou o caminho e
deixou escapar um fluxo de palavras empolgadas. Drizzt conseguiu
distinguir algumas, “Ulgulu”, “esperando” e “jantar” sendo as mais
perturbadoras delas.
Drizzt não sabia bem o que faria com o sprite capturado. Tephanis
era simplesmente rápido demais para Drizzt manusear com
segurança. Ele olhou para Guenhwyvar, sentada casualmente a
poucos metros do caminho, mas a pantera apenas bocejou e se
esticou.
Drizzt estava prestes a voltar com outra pergunta, a tentar
descobrir como Tephanis se encaixava nesse cenário todo, mas o
sprite arrogante decidiu que já havia sofrido o suficiente naquele
encontro. Com suas mãos movendo-se rápido demais para que
Drizzt reagisse, Tephanis alcançou a bota, sacou outra faca e cortou
o pulso já ferido de Drizzt.
Desta vez, no entanto, o sprite arrogante havia subestimado seu
oponente. Drizzt não conseguia igualar a velocidade do sprite, nem
sequer poderia acompanhar a pequena adaga. E, por mais
dolorosas que as feridas fossem, Drizzt estava repleto demais de
raiva para notar. Apenas aumentou a pressão no aperto no pescoço
do sprite e empurrou sua cimitarra à frente. Mesmo com uma
mobilidade tão limitada, Tephanis foi rápido e ágil o bastante para se
esquivar, rindo de forma selvagem o tempo todo.
O sprite contra-atacou, cavando um corte mais profundo no
antebraço de Drizzt. Finalmente Drizzt escolheu uma tática que
Tephanis não conseguiria rebater, uma que tirava a vantagem do
sprite. Bateu Tephanis na parede, depois jogou a criatura atordoada
do penhasco.

Algum tempo depois, Drizzt e Guenhwyvar se esconderam nos


arbustos na base de uma inclinação íngreme e rochosa. No topo,
por detrás de arbustos e galhos cuidadosamente colocados, havia
uma caverna e, de vez em quando, podiam se ouvir vozes de
goblins.
Ao lado da caverna, na lateral do terreno inclinado, havia uma
queda acentuada. Além da caverna, a montanha subia em um
ângulo ainda maior. Os rastros, ainda que às vezes fossem
escassos na pedra nua, levaram Drizzt e Guenhwyvar àquele lugar;
não havia dúvidas de que o monstro que matara os fazendeiros
estava na caverna.
Drizzt novamente lutou contra sua decisão de vingar a morte dos
fazendeiros. Ele teria preferido uma justiça mais civilizada, um
tribunal, mas o que poderia fazer? Certamente, o drow não poderia
ir até os aldeões humanos com suas suspeitas, nem até ninguém.
Escondido no mato, Drizzt pensou novamente nos fazendeiros, no
menino de cabelos cor de areia, na jovem garota bonita e no jovem
que ele desarmara na trilha de amoras. Drizzt lutou muito para
manter sua respiração firme. No Subterrâneo selvagem, às vezes se
entregava a seus impulsos instintivos, um lado mais sombrio de si
mesmo que lutava com uma eficiência brutal e mortal, e agora podia
sentir seu alter ego dentro de si mais uma vez. A princípio, tentou
sublimar a raiva, mas então se lembrou das lições que aprendeu.
Esse lado mais sombrio era uma parte dele, uma ferramenta para a
sobrevivência, e não era completamente mau.
Ele era necessário.
Drizzt entendia sua desvantagem na situação, no entanto. Não
tinha ideia de quantos inimigos encontraria, ou mesmo que tipo de
monstros poderiam ser. Ele ouviu goblins, mas a carnificina na
fazenda indicava que algo muito mais poderoso estava envolvido. O
bom senso de Drizzt lhe dizia para se sentar e observar, para
descobrir mais sobre seus inimigos.
Outro instante fugaz de lembrança, a cena na fazenda, descartou
esse bom senso. Com a cimitarra em uma mão e o punhal do sprite
em outra, Drizzt subiu a colina pedregosa. O elfo negro não diminuiu
quando se aproximou da caverna, mas simplesmente rasgou os
arbustos e caminhou direto.
Guenhwyvar hesitou e observou logo atrás, confusa com as
táticas diretas do drow.

Tephanis sentiu um ar fresco contra seu rosto e pensou por um


momento que estava em um sonho agradável. Porém, o sprite saiu
de seu delírio e percebeu que estava se aproximando rapidamente
do chão. Felizmente, Tephanis não estava longe do penhasco. Ele
fez as mãos e os pés girarem rápido o suficiente para produzir um
zumbido constante, e arranhou e chutou o penhasco, em um esforço
para retardar sua descida. Enquanto isso, começou os
encantamentos para um feitiço de levitação, provavelmente a única
coisa que poderia salvá-lo.
Alguns segundos agonizantes e lentos se passaram antes que o
sprite sentisse seu corpo impulsionado pelo feitiço. Ele ainda atingiu
o chão com força, mas percebeu que suas feridas eram menores do
que seriam caso caísse a toda velocidade.
Tephanis levantou-se relativamente devagar e tentou espanar a
poeira que o cobria. Seu primeiro pensamento foi o de ir e avisar
Ulgulu do drow que se aproximava, mas imediatamente mudou de
ideia. Ele não podia levitar até o complexo da caverna a tempo de
avisar o barghest, e havia apenas um caminho até o penhasco —
onde o drow estava.
Tephanis não estava com vontade alguma de enfrentar aquele lá
de novo.

Ulgulu não tentou cobrir seus rastros. O elfo negro servia às


necessidades do barghest e agora ele planejava transformar Drizzt
em sua próxima refeição, que poderia levá-lo à maturidade e
permitir que voltasse para Gehena.
Os dois guardas goblins de Ulgulu não ficaram muito surpresos
com a entrada de Drizzt. Ulgulu havia dito a eles que esperassem o
drow e simplesmente o atrasassem na entrada até que o barghest
pudesse ir lidar com ele. Os goblins interromperam a conversa
abruptamente, deixaram cair suas lanças em uma cruz de bloqueio
sobre a cortina, e inflaram seus peitos magricelas, seguindo as
instruções do chefe enquanto Drizzt se aproximava.
— Ninguém pode entrar — começou um deles, mas, com um
único deslizar da cimitarra de Drizzt, o goblin e seu companheiro
cambalearam, agarrando-se às suas gargantas abertas. A barreira
de lanças caiu e Drizzt sequer desacelerou enquanto atravessava a
cortina.
No meio da sala interior, o drow viu seu inimigo. De pele escarlate
e tamanho gigante, o barghest esperava com os braços cruzados e
um sorriso perverso e confiante.
Drizzt jogou a adaga e investiu logo atrás dela. Esse lance salvou
a vida do drow, porque quando o punhal passou inofensivamente
pelo corpo de seu inimigo, Drizzt reconheceu a armadilha. Ele
investiu de qualquer maneira, incapaz de interromper seu impulso, e
sua cimitarra penetrou na imagem sem encontrar nada tangível para
cortar.
O verdadeiro barghest estava atrás do trono de pedra na parte de
trás da sala. Usando outro poder de seu considerável repertório
mágico, Kempfana enviou uma imagem de si mesmo para o meio da
sala para manter o drow no lugar.
Imediatamente, os instintos de Drizzt disseram que estava sendo
enganado. Aquele não era um monstro real que enfrentava, mas
uma aparição com a intenção de deixa-lo de guarda aberta e
vulnerável. A sala era escassamente decorada; nada nas
proximidades oferecia qualquer cobertura.
Ulgulu, levitando acima do drow, desceu rapidamente, pousando
suavemente atrás dele. O plano era perfeito e o alvo estava bem no
lugar.
Drizzt, tendo seus reflexos e músculos treinados e aperfeiçoados
para atingir a perfeição no combate, sentiram a presença e
mergulharam na imagem quando Ulgulu lançou um golpe pesado. A
grande mão do barghest apenas acertou os cabelos flutuantes de
Drizzt, mas apenas isso quase rasgou a cabeça do drow na lateral.
Drizzt fez um meio giro com o corpo enquanto mergulhava,
voltando a ficar de pé de frente para Ulgulu. Ele encontrou um
monstro ainda maior do que a imagem gigante, mas nem isso
conseguiu intimidar o drow enfurecido. Como um elástico, Drizzt
voltou imediatamente na direção do barghest. Quando Ulgulu se
recuperou de seu erro inesperado, a cimitarra solitária de Drizzt o
tinha acertado três vezes na barriga e tinha cavado um pequeno
buraco sob o seu queixo.
O barghest rugiu de raiva, mas não ficou muito ferido, porque a
arma de Drizzt perdeu a maior parte da sua magia no período que o
drow passara na superfície, e apenas as armas mágicas — como as
garras e os dentes de Guenhwyvar — poderiam realmente ferir uma
criatura das fendas de Gehena.
A enorme pantera bateu na parte de trás da cabeça de Ulgulu
com força suficiente para tombar o barghest de cara no chão. Ulgulu
jamais sentira dor como a que sentiu quando as garras de
Guenhwyvar rasgaram sua cabeça.
Drizzt se mexeu para se juntar a ela, quando ouviu um farfalhar
vindo da parte de trás da sala. Kempfana saiu de trás do trono,
berrando em protesto.
Foi a vez de Drizzt utilizar magia. Ele lançou um globo de
escuridão no caminho do barghest de pele escarlate e depois
mergulhou nele, agachado em suas mãos e joelhos. Incapaz de
desacelerar, Kempfana investiu, tropeçou no drow apoiado —
chutando Drizzt com força o suficiente para arrancar o ar de seus
pulmões — e caiu pesadamente do outro lado da escuridão.
Kempfana sacudiu a cabeça para se recuperar e plantou suas
mãos enormes no chão para se levantar. Drizzt estava sobre o
barghest em pouco tempo, enchendo-o descontroladamente de
cortes com sua cimitarra impiedosa. Os cabelos de Kempfana
estavam cobertos de sangue quando conseguiu se recuperar o
suficiente para jogar o drow longe. Ele se levantou cambaleante e
virou-se para encarar o drow.

Do outro lado da sala, Ulgulu rastejava e caia, rolava e se


contorcia. A pantera era rápida e esquivava demais para os contra-
ataques pesados da criatura gigante. Uma dúzia de cortes
marcavam o rosto de Ulgulu e agora Guenhwyvar tinha os dentes
presos na parte de trás do pescoço do monstro e as quatro patas
rasgando as costas do barghest.
Ulgulu tinha outra opção, no entanto. Ossos estalavam e se
fundiam. O rosto cicatrizado de Ulgulu se transformou em um
focinho alongado cheio de dentes caninos perversos. Pelo grosso
brotou em todo o barghest, afastando os ataques das garras de
Guenhwyvar. Os braços agitados tornaram-se patas que chutavam.
Guenhwyvar lutava agora contra um lobo gigantesco, e a
vantagem da pantera foi breve.

Kempfana o seguiu lentamente, mostrando um novo respeito a


Drizzt.
— Você matou todos eles — disse Drizzt na língua dos goblins,
com uma voz tão fria que fez o barghest de pele escarlate congelar.
Kempfana não era uma criatura estúpida. O barghest reconheceu
a raiva explosiva naquele drow e havia sentido a mordida afiada da
cimitarra.
Kempfana era inteligente demais para atacar de frente, então
voltou a evocar suas habilidades do outro mundo. No piscar de seus
olhos laranjas incandescentes, o barghest de pele escarlate tinha
desaparecido, atravessando uma porta extradimensional e
reaparecido atrás de Drizzt.
Assim que Kempfana desapareceu, Drizzt instintivamente pulou
para o lado. O golpe por trás foi mais rápido, porém, chocando-se
diretamente contra as costas de Drizzt e lançando-o do outro lado
da sala. Drizzt bateu na base de uma parede e caiu de joelhos,
arfando em busca de ar.
Kempfana, dessa vez, foi direto até ele; o drow tinha deixado sua
cimitarra cair a meio caminho da parede, longe do alcance de Drizzt.

O grande lobo-barghest, de quase duas vezes o tamanho de


Guenhwyvar, rolou sobre a pantera e a dominou. Sua grande
mandíbula estalava perto da garganta e do rosto de Guenhwyvar,
enquanto a pantera batalhava selvagemente para mantê-la à
distância. Ela não poderia esperar vencer uma luta contra o lobo. A
única vantagem que a pantera mantinha era a mobilidade. Como
uma flecha negra, Guenhwyvar lançou-se debaixo do lobo e em
direção à cortina.
Ulgulu uivou e começou a perseguição, arrancando a cortina e
investindo, em direção à luz evanescente do dia.
Guenhwyvar saiu da caverna quando Ulgulu rasgou a cortina,
girou instantaneamente e saltou diretamente para as encostas
acima da entrada. Quando o grande lobo saiu, a pantera novamente
caiu sobre as costas de Ulgulu e tornou a rasgá-lo e cortá-lo.

— Ulgulu matou os fazendeiros, não eu — gritou Kempfana


enquanto se aproximava. Ele chutou a cimitarra de Drizzt para o
outro lado da sala. — Ulgulu quer você, que matou seus gnolls. Mas
eu vou matar você, guerreiro drow. Eu vou me banquetear em sua
força vital para que possa ganhar força!
Drizzt, ainda tentando recuperar a respiração, mal ouviu as
palavras. Os únicos pensamentos que lhe ocorreram foram as
imagens dos fazendeiros mortos, imagens que davam coragem a
Drizzt. O barghest aproximou-se e Drizzt lançou um olhar vil sobre
ele, um olhar tão determinado que não fora nem um pouco
diminuído pela situação obviamente desesperadora do drow.
Kempfana hesitou ao ver aqueles olhos ardentes estreitados, e o
atraso do barghest deu a Drizzt o tempo que precisava. Ele já havia
lutado contra monstros gigantes, principalmente os ganchadores. As
cimitarras de Drizzt sempre encerravam aquelas batalhas, mas, nos
golpes iniciais, ele havia todas as vezes usado apenas seu próprio
corpo. A dor nas costas não era nada perto de sua raiva crescente.
Ele se afastou da parede, permanecendo agachado, e mergulhou
entre as pernas de Kempfana, girando e segurando por detrás do
joelho do barghest.
Kempfana, despreocupado, se abaixou para agarrar o drow, que
se contorcia. Drizzt evitou o alcance do gigante por tempo suficiente
para encontrar alguma alavanca. Ainda assim, Kempfana aceitou os
ataques como uma mera inconveniência. Quando Drizzt
desequilibrou o barghest, Kempfana caiu voluntariamente, na
intenção de esmagar o elfinho nervoso. Mais uma vez, Drizzt fora
rápido demais para o barghest. Se contorceu por debaixo do gigante
em queda, colocou os pés de volta debaixo dele e correu para a
extremidade oposta da câmara.
— Não, você não vai! — Kempfana berrou, rastejando e depois
correndo em perseguição. Assim que Drizzt pegou sua cimitarra,
braços gigantes se envolveram ao redor dele e facilmente o
levantaram do chão.
— Vou te esmagar e te devorar! — Kempfana rugiu e, de fato,
Drizzt escutou uma das suas costelas estalarem. Tentou se
contorcer para enfrentar seu inimigo, depois desistiu da ideia,
concentrando-se em liberar seu braço que empunhava a espada.
Outra costela quebrou; os grandes braços de Kempfana se
apertaram. O barghest não queria simplesmente matar o drow, no
entanto, percebendo os grandes ganhos para a maturidade que
poderia ter ao devorar um inimigo tão poderoso, alimentando-se da
força vital de Drizzt.
— Vou te comer, drow — o monstro riu. — Um banquete!
Drizzt agarrou sua cimitarra em ambas as mãos com uma força
inspirada pelas imagens da fazenda. Ele abriu caminho com a arma
e desferiu um golpe direto acima de sua cabeça. A lâmina entrou na
boca aberta e ansiosa de Kempfana e mergulhou na garganta do
monstro.
Drizzt torceu e girou.
Kempfana se debateu violentamente e os músculos e as
articulações de Drizzt quase se separaram sob a tensão. No
entanto, o drow achou seu foco, o punho da cimitarra, e continuou
torcendo e girando.
Kempfana desceu pesadamente, gargalhando, e rolou para
Drizzt, tentando arrancar a sua vida por esmagamento. A dor
começou a se infiltrar na consciência de Drizzt.
— Não! — gritou o elfo, se agarrando à imagem do garoto de
cabelos cor de areia, morto em sua cama. Drizzt continuou a torcer
e revirar a lâmina. O gorgolejar continuou, um som sibilante de ar
subindo através do sangue sufocante. Drizzt sabia que a batalha
havia sido vencida quando a criatura acima dele não se movia mais.
Drizzt queria apenas se enrolar em posição fetal e encontrar o
fôlego, mas disse a si mesmo que ainda não tinha terminado.
Arrastou-se para fora do abraço de Kempfana, limpou o sangue (seu
próprio sangue) de seus lábios, arrancou sua cimitarra sem
cerimônias da boca de Kempfana, e recuperou sua adaga.
Ele sabia que suas feridas eram graves, poderiam ser fatais se
não cuidasse imediatamente delas. Sua respiração continuou a
entrar em gemidos forçados e ensanguentados. No entanto, não se
preocupava com elas no momento, porque Ulgulu, o monstro que
havia matado os fazendeiros, ainda estava vivo.

Guenhwyvar saltou das costas do lobo gigante, encontrando


novamente um apoio tênue na inclinação íngreme acima da entrada
da caverna. Ulgulu girou, grunhindo, e saltou para a pantera,
arranhando e raspando as pedras em um esforço para subir mais.
Guenhwyvar saltou sobre o barghest, se virou imediatamente e
rasgou a parte traseira de Ulgulu. O lobo girou, mas Guenhwyvar
saltou novamente para a encosta.
O jogo de bate-e-volta continuou por vários momentos, com
Guenhwyvar atacando, depois fugindo. Finalmente, no entanto, o
lobo antecipou a esquiva da pantera. Ulgulu trouxe a pantera para
baixo no meio de seu salto, em suas mandíbulas enormes.
Guenhwyvar se contorceu e se soltou, mas aproximou-se do
desfiladeiro íngreme. Ulgulu pairava sobre a gata, bloqueando
qualquer fuga.
Drizzt saiu da caverna enquanto o grande lobo caía sobre ela,
empurrando Guenhwyvar para trás. Pedras rolavam até o
desfiladeiro, as pernas traseiras da pantera escorregavam e
arranhavam a pedra, tentando encontrar algo em que se segurar.
Mesmo a poderosa Guenhwyvar não conseguiria se manter firme
contra o peso e a força do lobo-barghest, Drizzt sabia.
Drizzt viu imediatamente que não conseguiria tirar o lobo de
Guenhwyvar a tempo. Ele puxou a estatueta de ônix e atirou-a perto
dos combatentes.
— Vá, Guenhwyvar! — ordenou.
Guenhwyvar normalmente não abandonaria seu mestre em um
momento tão perigoso, mas a pantera entendeu o que Drizzt tinha
em mente. Ulgulu empurrava poderosamente, conduzindo
decididamente Guenhwyvar na direção da borda.
Em seguida, a fera estava apenas empurrando uma fumaça
intangível. Ulgulu inclinou-se para a frente e revirou-se
violentamente, chutando mais pedras e a estatueta de ônix no
desfiladeiro. Com o desequilíbrio, o lobo não conseguiu se segurar,
e Ulgulu estava caindo.
Ossos estalaram novamente, e a pele canina diminuiu; Ulgulu não
podia conjurar um feitiço de levitação em sua forma canina.
Desesperado, o barghest se concentrou, alcançando sua forma
goblinoide. O focinho do lobo encurtou-se em uma cara plana, as
patas engrossaram e se refizeram em braços.
A criatura meio transformada não conseguiu fazer o feitiço — em
vez disso, se arrebentou contra a pedra.
Drizzt saiu da borda e entrou em um feitiço de levitação,
descendo lentamente perto da parede rochosa. Como antes, o
feitiço logo se dissipou. Drizzt saltou e se agarrou pelos últimos seis
metros da queda, chegando a uma aterrissagem difícil no fundo
rochoso. Ele viu o barghest se contorcendo a poucos metros de
distância e tentou se levantar em defesa, mas a escuridão o
dominou.

Drizzt não podia saber quantas horas se passaram quando um


estrondoso rugido o despertou algum tempo depois. Estava escuro
então, uma noite nublada. Lentamente, as lembranças do encontro
voltaram para o drow atordoado e ferido. Para seu alívio, viu que
Ulgulu estava imóvel na pedra ao lado dele, meio goblin e meio
lobo, obviamente bem morto.
Um segundo rugido, na direção da caverna, virou o drow em
direção à borda acima dele. Lá estava Calçalargas, o gigante da
colina, que havia voltado de uma caçada e estava indignado com a
carnificina que encontrou.
Drizzt soube, assim que conseguiu se forçar a ficar de pé, que
não conseguiria lutar outra batalha naquele dia. Procurou por um
momento, encontrou a estatueta de ônix e a deixou cair na bolsa.
Não estava muito preocupado com Guenhwyvar. Ele tinha visto a
pantera sobreviver a situações piores — apanhada na explosão de
uma varinha mágica, puxada para o Plano da Terra por um
elemental enfurecido, até mesmo derrubada em um lago de ácido. A
estatueta parecia intacta, e Drizzt estava certo de que Guenhwyvar
estava agora confortavelmente em repouso em sua casa astral.
Drizzt, no entanto, não podia se dar ao luxo de ter esse descanso.
O gigante já havia começado a abrir caminho pela encosta rochosa.
Com um olhar final para Ulgulu, Drizzt sentiu uma sensação de
vingança que pouco fez para derrotar as agonizantes e amargas
lembranças dos fazendeiros assassinados. Ele partiu, avançando
para as montanhas selvagens, fugindo do gigante e da culpa.
CAPÍTULO 8
Pistas e Enigmas
MAIS DE UM DIA HAVIA SE PASSADO desde o massacre
quando o primeiro dos vizinhos dos Thistledowns foi até a fazenda
isolada e sentiu o cheiro da morte.
Ele voltou uma hora depois com o prefeito Delmo e vários outros
fazendeiros armados. Eles foram até a casa dos Thistledowns e
atravessaram os terrenos com cautela, colocando um pano sobre
seus rostos para combater o cheiro terrível.
— Quem poderia ter feito isso? — o prefeito exigiu. — Que
monstro? — como se respondesse, um dos fazendeiros saiu do
quarto e entrou na cozinha, segurando uma cimitarra quebrada nas
mãos.
— Uma arma drow? — o fazendeiro perguntou. — Temos que
buscar McGristle — Delmo hesitou. Esperava que o grupo de
Sundabar chegasse a qualquer momento e achava que a famosa
ranger Columba Garra de Falcão seria mais capaz de lidar com a
situação do que o homem das montanhas volátil e incontrolável. O
debate nunca começou, porém, porque o rosnado de um cão alertou
a todos na casa que McGristle havia chegado. O homem corpulento
e sujo entrou na cozinha, com um lado do rosto horrivelmente
cicatrizado e coberto de sangue marrom e seco.
— Arma drow! — ele cuspiu, reconhecendo a cimitarra com muita
clareza. — A mesma que usou em mim!
— A ranger chegará logo — começou Delmo, mas McGristle
quase não ouviu. Ele se aproximou da sala e entrou no quarto
adjacente, batendo nos corpos com o pé e se curvando para
inspecionar alguns detalhes menores.
— Vi os rastro lá fora — declarou McGristle de repente. — Dois
par, com certeza.
— O drow tem um aliado — argumentou o prefeito. — Mais um
motivo para aguardarmos o grupo de Sundabar.
— Bah! Cê nem sabe se eles tão chegando! — McGristle bufou.
— Tenho que ir atrás do drow agora, que a trilha tá bem no nariz do
meu cachorro!
Vários dos fazendeiros reunidos concordaram com a cabeça, até
que Delmo lembrou-lhes exatamente o que poderiam enfrentar.
— Um único drow te derrubou, McGristle — disse o prefeito. —
Agora você acha que há dois deles, talvez mais, e você quer que a
gente saia pra caçar?
— Azar, foi isso que me derrubou! — Roddy rebateu. Olhou em
volta, apelando para os fazendeiros, agora menos ansiosos. — Eu
tava com esse drow na minha mão, já tava no jeito!
Os fazendeiros empalideceram nervosamente e sussurravam um
para o outro enquanto o prefeito levava Roddy pelo braço e o
conduzia ao lado da sala.
— Espere um dia — implorou Delmo. — Nossas chances serão
muito maiores se a ranger chegar.
Roddy não parecia convencido.
— Essa batalha é minha — grunhiu. — Ele matou meu cachorro e
me deixou feio.
— Você o quer, e o terá — prometeu o prefeito —, mas pode
haver mais em jogo aqui do que seu cão ou seu orgulho.
O rosto de Roddy se contorceu maliciosamente, mas o prefeito foi
inflexível. Se um grupo de ataque drow estava realmente operando
na área, toda Maldobar estava em perigo iminente. A maior defesa
do pequeno grupo até que a ajuda pudesse chegar de Sundabar era
a unidade, e tal defesa falharia se Roddy liderasse um grupo de
combatentes (que já eram escassos) em uma perseguição nas
montanhas. Benson Delmo era esperto o bastante para saber que
não poderia apelar a Roddy nesses termos. Ainda que o homem das
montanhas estivesse em Maldobar há alguns anos, era, em
essência, um caçador solitário e não devia fidelidade à cidade.
Roddy virou-se, decidindo que o encontro tinha acabado, mas o
prefeito o agarrou com força e o fez voltar. O cachorro de Roddy
arreganhou os dentes e grunhiu, mas tal ameaça era uma pequena
consideração para o homem gordo à luz da horrível carranca que
Roddy lhe lançou.
— Você terá o drow — disse o prefeito rapidamente — mas
espere a ajuda de Sundabar, eu imploro. — ele mudou para termos
que Roddy realmente poderia apreciar. — Não sou um homem de
poucas posses, McGristle, e você era um caçador de recompensas
antes de chegar aqui, e ainda é, eu imagino.
A expressão de Roddy rapidamente mudou de indignação para
curiosidade.
— Espere a ajuda, então vá atrás do drow — o prefeito fez uma
pausa, considerando sua próxima oferta. Ele realmente não tinha
experiência nesse tipo de coisa e, enquanto não queria oferecer um
valor muito baixo e estragar o interesse que tinha iniciado, não
queria abrir mão de muito mais do que necessário. — Mil peças de
ouro pela cabeça do drow.
Roddy já havia participado desse jogo de estabelecer preços
muitas vezes. Escondeu bem o deleite, a oferta do prefeito era cinco
vezes sua taxa normal e ele teria ido atrás do drow em qualquer
caso, com ou sem pagamento.
— Duas mil! — o homem das montanhas resmungou sem perder
um segundo, suspeitando de que poderia ter pedido mais por seus
problemas. O prefeito quase caiu para trás, mas lembrou-se várias
vezes de que a própria existência da cidade poderia estar em jogo.
— E nenhuma peça de cobre a menos! — Roddy acrescentou,
cruzando os braços fortes sobre o peito.
— Aguarde a senhorita Garra de Falcão — Delmo disse
mansamente — e você terá seus dois mil.

Durante toda a noite, Calçalargas seguiu a trilha do drow ferido. O


gigante das colinas ainda não estava certo do que sentia sobre a
morte de Ulgulu e Kempfana, os mestres não solicitados que haviam
ocupado sua cova e sua vida. E, ao mesmo tempo que Calçalargas
temia qualquer inimigo que pudesse vencer esses dois, o gigante
sabia que o drow estava gravemente ferido.
Drizzt percebeu que estava sendo seguido, mas pouco poderia
fazer para esconder seus rastros. Uma perna, ferida em sua descida
saltando no barranco, arrastava-se dolorosamente e Drizzt estava
fazendo o que podia para se manter à frente do gigante. Quando o
amanhecer veio, claro e brilhante, Drizzt sabia que sua
desvantagem aumentara. Não podia esperar escapar do gigante da
colina através da reveladora luz do dia.
A trilha mergulhou em um pequeno agrupamento de árvores de
vários tamanhos, brotando onde quer que pudessem encontrar
fissuras entre os numerosos pedregulhos. Drizzt queria passar
direto por elas — não via nenhuma opção além de continuar sua
fuga —, mas enquanto se inclinava para uma das árvores maiores
buscando apoio para recuperar o fôlego, um pensamento veio até
ele. Os ramos da árvore pendiam limpos, flexíveis como uma corda.
Drizzt olhou de volta pela trilha. Mais alto e cruzando uma
extensão nua de pedra, o implacável gigante da colina avançava.
Drizzt puxou sua cimitarra com o braço que ainda parecia funcionar
e cortou o ramo mais longo que conseguiu encontrar. Então,
procurou uma rocha adequada.
O gigante alcançou o bosque cerca de meia hora depois, o seu
enorme tacape balançando no final de um braço imenso.
Calçalargas parou abruptamente quando o drow apareceu por trás
de uma árvore, bloqueando o caminho.
Drizzt quase suspirou em voz alta quando o gigante parou
exatamente na área designada. Ele temia que o enorme monstro
continuasse e o atropelasse, uma vez que Drizzt, ferido como
estava, ofereceria pouca resistência. Aproveitando o momento da
hesitação do monstro, Drizzt gritou:
— Alto! — na língua goblin e conjurou um feitiço simples,
contornando o gigante em chamas púrpuras inofensivas.
Calçalargas se mexeu desconfortavelmente, mas não avançou na
direção deste inimigo estranho e perigoso. Drizzt olhou para os pés
do gigante com um interesse mais do que casual.
— Por que está me seguindo? — Drizzt exigiu saber. — Deseja
se juntar aos outros no sono da morte?
Calçalargas correu sua língua gorda sobre os lábios secos. Até
então, esse encontro não estava indo conforme o esperado. Agora,
o gigante pensou além dos primeiros impulsos instintivos que o
levaram até ali e tentou refletir sobre suas opções. Ulgulu e
Kempfana estavam mortos, Calçalargas tinha sua caverna de volta.
Mas os gnolls e goblins também tinham desaparecido, e aquele
pequeno e irritante sprite não aparecia fazia algum tempo. Um
pensamento repentino veio até o gigante.
— Amigos? — Calçalargas perguntou esperançosamente.
Embora estivesse aliviado por perceber que o combate poderia
ser evitado, Drizzt estava mais do que um pouco cético ante a
oferta. O grupo de gnolls tinha lhe feito uma oferta semelhante, para
fins desastrosos, e este gigante estava obviamente conectado com
os outros monstros que Drizzt acabara de matar, aqueles que
haviam assassinado a família na fazenda.
— Amigos para quê? — Drizzt perguntou hesitantemente,
esperando, contra todo o senso lógico, descobrir que essa criatura
fosse motivada por alguns princípios, e não apenas pela sede de
sangue.
— Para matar — respondeu Calçalargas, como se a resposta
fosse óbvia. Drizzt grunhiu e sacudiu a cabeça em uma negativa
irritada, sua crina branca voando descontroladamente. Ele soltou a
cimitarra de sua bainha, pouco se importando se o pé do gigante
estava no laço de sua armadilha.
— Vou te matar! — Calçalargas gritou ante a reviravolta súbita, e
o gigante ergueu o seu tacape e deu um enorme passo à frente, um
passo encurtado pelo ramo da videira, puxando firmemente seu
tornozelo.
Drizzt verificou seu desejo de se precipitar, lembrando-se de que
a armadilha tinha sido colocada em movimento e lembrando-se,
também, que em sua condição atual seria difícil superar o formidável
gigante.
Calçalargas olhou para o laço e rugiu com indignação. O galho
não era realmente um apoio adequado e o nó não estava tão
apertado. Se Calçalargas tivesse simplesmente tentado desamarrá-
la, o gigante facilmente poderia ter deslizado a corda do pé.
Gigantes das colinas, no entanto, nunca foram conhecidos por sua
inteligência.
— Vou te matar! — O gigante gritou novamente, e chutou forte
contra a tensão do ramo. Impulsionado pela força considerável do
chute, a grande rocha amarrada à outra extremidade do ramo, atrás
do gigante, avançou através do mato e teve seu trajeto interrompido
pelas costas de Calçalargas.
Calçalargas começou a gritar pela terceira vez, mas a ameaça
supostamente assustadora saiu como uma lufada de ar forçado. O
tacape pesado caiu no chão e o gigante, segurando a região dos
seus rins, caiu de joelhos.
Drizzt hesitou um momento, sem saber se deveria correr ou
terminar de matar o gigante. Não temia por si mesmo, o gigante não
iria trás dele tão cedo, mas não conseguiu esquecer a expressão
espalhafatosa no rosto do gigante quando o monstro havia dito que
eles poderiam matar juntos.
— Quantas outras famílias você vai matar? — Drizzt perguntou
na língua drow.
Calçalargas não conseguiu entender a língua. Apenas grunhiu e
rosnou através da dor ardente.
— Quantas? — perguntou Drizzt de novo, sua mão agarrando o
punho cimitarra e seus olhos estreitando-se ameaçadoramente.
Ele foi rápido e firme.

Para o alívio absoluto de Benson Delmo, o grupo de Sundabar —


Columba Garra de Falcão, seus três companheiros de luta e Fret, o
sábio anão — chegaram mais tarde naquele mesmo dia. O prefeito
ofereceu à trupe comida e descanso, mas, assim que Columba
ouviu falar do massacre na fazenda Thistledown, ela e seus
companheiros se puseram imediatamente em movimento, com o
prefeito, Roddy McGristle e vários fazendeiros curiosos logo atrás.
Columba ficou evidentemente desapontada quando chegaram à
fazenda isolada. Uma centena de rastros obscureciam pistas
críticas, e muitos dos objetos da casa, mesmo os corpos, tinham
sido manipulados e movidos. Ainda assim, Columba e seus
companheiros experientes se moviam metodicamente, tentando
decifrar o que podiam da cena horripilante.
— Pessoas insensatas! — Fret repreendeu os fazendeiros
quando Columba e os outros completaram a investigação. — Vocês
auxiliaram nossos inimigos!
Vários dos fazendeiros, até o prefeito, olharam ao redor com
desconforto, mas Roddy rosnou e se ergueu na direção do anão
almofadinhas. Columba intercedeu rapidamente.
— Sua presença anterior aqui prejudicou algumas pistas —
explicou Columba calmamente para o prefeito, enquanto se
posicionava prudentemente entre Fret e o corpulento homem da
montanha. Columba tinha ouvido muitas histórias de McGristle
antes, e sua reputação não era de ser previsível ou calmo.
— Nós não sabíamos — o prefeito tentou explicar.
— Claro — respondeu Columba. — Vocês reagiram como
qualquer um reagiria.
— Qualquer um inexperiente — observou Fret.
— Cala sua boca! — McGristle rosnou, assim como seu cachorro.
— Acalme-se, bom senhor — disse Columba. — Nós temos
muitos inimigos lá fora para precisarmos de inimigos aqui.
— Inexperiente? — McGristle latiu para ela. — Eu cacei uns cem
homens, e eu conheço bem esse maldito drow para encontrar ele.
— Nós sabemos que foi o drow? — Columba perguntou,
realmente duvidando.
Com um aceno de Roddy, um fazendeiro de pé do lado da sala
trouxe a cimitarra quebrada.
— Arma drow — disse Roddy com dureza, apontando para o
rosto com cicatrizes. — Eu vi de perto!
Um olhar para a ferida irregular do homem da montanha disse a
Columba que a cimitarra de borda fina não a havia causado, mas a
ranger deixou passar, não vendo nenhuma vantagem na discussão.
— E rastro de drow — insistiu Roddy. — As pegada são parecida
com as que a gente viu na trilha de amora, onde tava o drow!
O olhar de Columba levou todos os olhos para o celeiro.
— Algo poderoso quebrou aquela porta — ela raciocinou. — E a
mulher mais jovem lá dentro não foi morta por nenhum elfo negro.
Roddy continuou firme.
— O drow tem um bicho de estimação — insistiu. — uma pantera
preta grandona. Maldito gato gigante!
Columba continuou desconfiada. Não havia visto nenhum rastro
que correspondesse às patas de uma pantera, e a forma como uma
parte da mulher tinha sido devorada, com ossos e tudo, não se
encaixava com nada que conhecia sobre felinos grandes. Porém,
manteve seus pensamentos para si mesma, percebendo que o rude
homem da montanha não queria nenhum mistério nublando suas
conclusões já decididas.
— Agora, se cê já viu o que queria aqui, vamo seguir a trilha —
disse Roddy. — Meu cachorro pegou um cheiro, e o drow já tá com
vantagem demais!
Columba lançou uma expressão preocupada ao prefeito, que se
afastou, envergonhado, sob seu olhar penetrante.
— Roddy McGristle irá com você — explicou Delmo, mal
conseguindo cuspir as palavras, desejando que não tivesse feito
aquele acordo impulsivo com Roddy. Vendo a cabeça fria da jovem
ranger e seu grupo, tão drasticamente diferente do temperamento
violento de Roddy, o prefeito agora achava que seria melhor se
Columba e seus companheiros lidassem com a situação do seu
próprio jeito. Mas um acordo era um acordo.
— Será o único de Maldobar que irá se juntar à sua equipe —
continuou Delmo. — Ele é um caçador experiente e conhece esta
área melhor que qualquer um.
Novamente Columba, para a descrença de Fret, fez uma
concessão.
— O dia está prestes a acabar — disse Columba. E acrescentou
fortemente a McGristle — Nós sairemos com a primeira luz.
— O drow já tá muito na frente! — Roddy protestou. — A gente
tem que pegar ele agora!
— Você supõe que o drow está fugindo — respondeu Columba,
mais uma vez calma, mas agora com uma ponta severa em sua voz.
— Quantos homens mortos já supuseram o mesmo de seus
inimigos? — desta vez, Roddy, perplexo, não gritou de volta. — O
drow, ou o grupo de drow, poderia estar escondido nas
proximidades. Gostaria de esbarrar com eles de surpresa,
McGristle? Poderia você combater os elfos negros na escuridão da
noite?
Roddy apenas ergueu as mãos, rosnou e se afastou, com seu
cão logo atrás.
O prefeito ofereceu a Columba e seu grupo hospedagem em sua
própria casa, mas a ranger e seus companheiros preferiram ficar na
fazenda Thistledown. Columba sorriu quando os fazendeiros
partiram, e Roddy instalou um acampamento a uma curta distância,
obviamente para ficar de olho na ranger. Ela se perguntou o quanto
McGristle tinha a ganhar com tudo isso e suspeitava que era bem
mais do que se vingar de um rosto marcado e uma orelha perdida.
— Você realmente quer que esse homem bestial venha conosco?
— Fret perguntou mais tarde, enquanto o anão, Columba e Gabriel
sentavam-se ao redor da pequena fogueira no pátio da fazenda. O
elfo arqueiro e o outro integrante do grupo estavam de guarda no
perímetro.
— É a cidade deles, querido Fret — explicou Columba. — E não
posso refutar o conhecimento de McGristle sobre a região.
— Mas ele é tão sujo — o anão resmungou. Columba e Gabriel
trocaram sorrisos, e Fret, percebendo que não chegaria a lugar
algum com seu argumento, abriu seu saco de dormir e entrou,
girando propositalmente de costas para os outros.
— Bom e velho Mergulhapena — murmurou Gabriel, mas
observou que o sorriso resultante de Columba não conseguia
diminuir a preocupação sincera em seu rosto.
— Algum problema, Lady Garra de Falcão? — perguntou ele.
Columba encolheu os ombros.
— Algumas coisas não se encaixam corretamente na ordem das
coisas aqui — ela começou.
— Não foi uma pantera que matou a mulher no celeiro —
observou Gabriel, pois ele também havia notado algumas
discrepâncias.
— Também não foi um drow quem matou o fazendeiro, aquele
que chamaram de Bartholemew, na cozinha — disse Columba. — A
viga que quebrou o pescoço quase se quebrou junto. Apenas um
gigante possui tal força.
— Magia? — Gabriel perguntou.
Novamente, Columba deu de ombros.
— A magia dos drow é geralmente mais sutil, de acordo com
nosso sábio — disse, olhando para Fret, que já estava roncando
bastante alto. — E mais completa. Fret não acredita que a magia
drow tenha matado Bartholemew ou a mulher, ou destruído a porta
do celeiro. E há outro mistério sobre a questão dos rastros.
— Dois pares — disse Gabriel — e com quase um dia de
diferença.
— E de diferentes profundidades — acrescentou Columba. — Um
par, o segundo, poderia ter sido o de um elfo negro, mas o outro, o
par do assassino, é muito profundo para os passos leves de um elfo.
— Um agente do drow? — supôs Gabriel. — Um habitante dos
planos inferiores conjurado, talvez? Será que o elfo negro desceu
até aqui para conferir o trabalho de seu monstro? — desta vez,
Gabriel se juntou a Columba em seu dar de ombros confuso.
— É o que devemos descobrir — concluiu Columba.
Gabriel, então, acendeu um cachimbo, e Columba mergulhou no
sono.

— Oh-mestre, meu-mestre — Tephanis cantou, vendo a forma


grotesca do barghest quebrado, meio transformado. O célere
realmente não se importava tanto com Ulgulu ou seu irmão, mas
suas mortes deixavam algumas implicações graves para o futuro do
sprite. Tephanis juntou-se ao grupo de Ulgulu para obter ganhos
mútuos. Antes que os barghests chegassem, o pequeno sprite
passava seus dias em solidão, roubando sempre que podia nas
aldeias próximas. Ele tinha se saído bem sozinho, mas sua vida era
uma existência solitária e sem graça.
Ulgulu havia mudado isso. O exército dos barghest oferecia
proteção e companhia, e Ulgulu, sempre em busca de novas e mais
tortuosas matanças, fornecia a Tephanis uma infinidade de missões
importantes.
Agora, o célere tinha que se afastar de tudo, porque Ulgulu
estava morto e Kempfana estava morto, e nada que Tephanis
pudesse fazer mudaria esses fatos simples.
— Calçalargas? — o célere se perguntou de repente. Pensou que
o gigante da colina, o único membro que faltava na caverna, poderia
ser um excelente companheiro. Tephanis viu os rastros do gigante
com muita clareza, afastando-se da área da caverna e adentrando
nas trilhas mais profundas entre as montanhas. Bateu as mãos
empolgado, talvez cem vezes no segundo seguinte, depois parou,
acelerando em busca de seu novo amigo.

Ao longe nas montanhas, Drizzt Do’Urden olhou as luzes de


Maldobar pela última vez. Assim que desceu dos altos picos após
seu encontro desagradável com o gambá, o drow encontrou um
mundo de selvageria quase igual ao reino das trevas que havia
deixado para trás. Quaisquer esperanças que tenham nascido em
Drizzt durante seus dias observando a família de fazendeiros agora
estavam perdidas, enterradas sob o peso da culpa e das terríveis
imagens de carnificina que sabia que o perseguiriam para sempre.
A dor física do drow tinha diminuído um pouco; podia respirar
direito agora, embora o esforço o ferisse, e os cortes nos braços e
nas pernas haviam fechado. Ele sobreviveria.
Olhando para Maldobar, outro lugar que nunca poderia chamar de
lar, Drizzt se perguntou se isso poderia ser uma coisa boa.
CAPÍTULO 9
A Caçada
—O QUE É ISSO? — PERGUNTOU FRET, ficando
cautelosamente atrás das dobras da capa verde-floresta de
Columba.
Columba, e mesmo Roddy, também se aproximaram
hesitantemente, porque, ainda que a criatura parecesse morta,
nunca tinham visto nada parecido. Parecia ser uma mutação
estranha e de tamanho gigante entre um goblin e um lobo.
Eles ganharam coragem enquanto se aproximavam do corpo,
convencidos de que estava realmente morto. Columba abaixou-se e
tocou a criatura com a espada.
— Está morto há mais de um dia, pelo meu palpite — anunciou.
— Mas o que é isso? — Fret perguntou novamente.
— Mestiço — murmurou Roddy.
Columba inspecionou cuidadosamente as estranhas articulações
da criatura. Observou, também, as muitas feridas infligidas sobre a
coisa — rasgos, na verdade, como aqueles causadas pelo arranhão
de um grande felino.
— Metamorfo — adivinhou Gabriel, mantendo guarda ao lado da
área rochosa.
Columba assentiu com a cabeça.
— Morto no meio da transformação.
— Eu nunca ouvi falar de nenhum mago goblin — reclamou
Roddy.
— Ah, sim — começou Fret, alisando as mangas de sua túnica de
tecidos suaves. — Havia, é claro, Grubby, o Inepto, arquimago
impostor, que...
Um assobio vindo do alto parou o anão. Em cima da borda estava
Kellindil, o arqueiro elfo, balançando os braços.
— Tem mais aqui em cima — gritou o elfo quando conseguiu
chamar a atenção do grupo. — Dois goblins e uma criatura gigante
de pele vermelha, com uma aparência que nunca vi!
Columba examinou o penhasco. Acreditava que poderia escalá-
lo, mas um olhar para o pobre Fret disse-lhe que eles teriam que
voltar para a trilha, uma viagem de quase dois quilômetros.
— Você fica aqui — disse ela a Gabriel. O homem de rosto
severo assentiu com a cabeça e moveu-se para uma posição
defensiva entre alguns pedregulhos, enquanto Columba, Roddy e
Fret voltaram ao longo do barranco.
A meio caminho da única trilha sinuosa que se movia ao longo do
penhasco, eles encontraram Darda, o guerreiro restante do grupo.
Um homem baixo e extremamente musculoso, coçava a barba
enquanto examinava o que parecia ser um arado.
— Isso é dos Thistledown! — Roddy gritou. — Eu já vi lá na
fazenda, separado pra consertar!
— Por que está aqui? — Columba perguntou.
— E por que parece estar sujo de sangue? — acrescentou Darda,
mostrando-lhes as manchas no lado côncavo. O guerreiro olhou por
cima da borda no barranco, depois de volta ao arado. — Alguma
criatura infeliz bateu aqui com força — refletiu Darda —, então
provavelmente caiu no barranco.
Todos os olhos se concentraram em Columba enquanto a ranger
tirava seu cabelo grosso de seu rosto, colocava o queixo em sua
mão delicada, mas calejada, e tentava resolver esse novo enigma.
As pistas eram muito poucas, porém, e um momento depois,
Columba levantou as mãos em irritação e se dirigiu ao longo da
trilha. O caminho serpenteava e saía do penhasco quando se
aproximava do topo, mas Columba voltou para a borda, logo acima
de onde deixaram Gabriel. O guerreiro a viu imediatamente e seu
aceno disse à ranger que tudo estava calmo lá embaixo.
— Venham — Kellindil os chamou, e então, levou o grupo para a
caverna. Algumas respostas ficaram claras para Columba no
momento em que ela olhou para a carnificina na sala interna.
— Filhote de barghest! — exclamou Fret, olhando para o cadáver
gigante de pele escarlate.
— Barghest? — Roddy perguntou, perplexo.
— Claro — retrucou Fret. — Isso explica o lobo gigante no
desfiladeiro.
— Caiu no meio da transformação — concluiu Darda. — Suas
muitas feridas e o chão de pedra acabaram com ele antes que
pudesse completar a transição.
— Barghest? — Roddy perguntou novamente, desta vez com
raiva, não gostando nem um pouco de ser deixado fora de uma
discussão que não conseguia entender.
— Uma criatura de outro plano de existência — explicou Fret. —
Gehena, é o que se supõe. Barghests enviam seus filhotes para
outros planos, às vezes para o nosso, para se alimentar e crescer —
ele fez uma pausa para pensar. — Para se alimentar — disse
novamente, com o tom de voz incitando os outros a completar sua
conclusão.
— A mulher no celeiro. — Columba disse inexpressivamente.
Os membros do grupo de Columba assentiram com a cabeça
ante a revelação súbita, mas McGristle, de rosto sombrio, mantinha
obstinadamente a sua teoria original.
— Um drow matou eles! — rosnou.
— Você tem a cimitarra quebrada? — Columba perguntou. Roddy
sacou a arma de uma das muitas dobras das camadas de suas
roupas de peles.
Columba pegou a arma e inclinou-se para examinar o barghest
morto. A lâmina, inconfundivelmente, combinava com as feridas do
animal, especialmente a ferida fatal na garganta do barghest.
— Você disse que o drow empunhava um par, certo? — observou
Columba a Roddy enquanto segurava a cimitarra.
— O prefeito disse — corrigiu Roddy — por conta da história que
o filho do Thistledown contou. Quando eu vi o drow — ele retomou a
arma —, tava com só uma — a que usou pra matar o clã
Thistledown! — Roddy propositadamente não mencionou que o
drow, enquanto empunhava apenas uma arma, usava bainhas para
duas cimitarras no cinto.
Columba sacudiu a cabeça, duvidando da teoria.
— O drow matou este barghest — disse ela. — As feridas se
encaixam com a lâmina, a irmã da que você está segurando, creio
eu. E, se você verificar os goblins na sala da frente, vai ver que suas
gargantas foram cortadas por uma cimitarra curvada semelhante.
— Como os ferimentos dos Thistledowns! — Roddy rosnou.
Columba achou melhor ficar quieta sobre a hipótese que estava
construindo, mas Fret, que não gostava do grandão, ecoou os
pensamentos de todos, com exceção de McGristle.
— Mortos pelo barghest — proclamou o anão, se lembrando dos
dois conjuntos de pegadas no pátio. — na forma do drow!
Roddy olhou para ele com ódio e Columba lançou a Fret um olhar
de comando, desejando que o anão ficasse quieto. Fret interpretou
mal o olhar da ranger, no entanto, crendo que estava surpresa com
seu poder de raciocínio, e orgulhosamente continuou.
— Isso explica os dois conjuntos de pegadas, o conjunto mais
pesado, feito antes pelo bar--
— Mas e a criatura no desfiladeiro? — Darda perguntou a
Columba, entendendo o desejo de sua líder de calar Fret. — Será
que suas feridas, também, combinam com a lâmina curva?
Columba pensou por um momento e conseguiu sutilmente acenar
um agradecimento a Darda.
— Algumas, talvez — respondeu. — É mais provável que aquele
barghest tenha sido morto pela pantera — olhou diretamente para
Roddy — o gato que você que você disse que o drow mantinha
como um animal de estimação.
Roddy chutou o barghest morto.
— Foram os drow que mataram o clã Thistledown! — ele rosnou.
Roddy havia perdido um cão e uma orelha para o elfo negro e não
aceitava nenhuma conclusão que diminuísse suas chances de
reivindicar a recompensa de duas mil peças de ouro que o prefeito
tinha imposto.
Um grito de fora da caverna acabou com o debate — tanto
Columba quanto Roddy ficaram felizes com isso. Depois de liderar o
grupo até o covil, Kellindil voltou para fora, seguindo algumas pistas
adicionais que havia descoberto.
— Pegadas de bota — explicou o elfo, apontando para uma trilha
pequena e coberta de musgo, quando os outros saíram. — E olhem
aqui — ele mostrou-lhes arranhões na pedra, um sinal claro de uma
luta. — Eu acredito que o drow foi até a borda — explicou Kellindil.
— E além, talvez atrás do barghest e da pantera. Estou apenas
supondo.
Depois de um tempo seguindo a trilha que Kellindil havia
reconstruído, Columba e Darda, e até Roddy, concordaram com o
pressuposto.
— Devemos voltar para o barranco — sugeriu Columba. — Talvez
possamos encontrar uma trilha para além do desfiladeiro pedregoso
que nos conduzirá a respostas mais claras.
Roddy coçou as cascas da ferida em sua cabeça e mostrou a
Columba um olhar desdenhoso que lhe mostrava suas emoções.
Roddy não se importava nem um pouco com as “respostas mais
claras” da ranger, tendo tirado todas as conclusões que precisava
há muito tempo. Roddy estava determinado — além de qualquer
outra coisa, Columba sabia — a levar a cabeça do elfo negro.
Columba Garra de Falcão não estava tão certa sobre a identidade
do assassino. Muitas perguntas ainda martelavam na cabeça da
ranger e dos outros membros de seu grupo. Por que o drow não
havia matado as crianças Thistledowns quando se encontraram
mais cedo nas montanhas? Se a história que Connor havia contado
para o prefeito fosse verdade, então, por que o drow tinha devolvido
a arma para o garoto? Columba estava firmemente convencida de
que o barghest, e não o drow, tinha assassinado a família
Thistledown, mas por que o drow aparentemente tinha ido atrás do
barghest?
Será que o drow havia se aliado com os barghests, em uma
aliança que deu errado rapidamente? Ainda mais intrigante para a
ranger — que possuía como único interesse proteger os civis da
guerra infinita entre as raças bondosas e os monstros —, será que o
drow havia perseguido o barghest em busca de vingança pela
chacina da fazenda? Columba suspeitava que a última hipótese era
verdadeira, mas não conseguia entender os motivos do drow. Teria
o barghest, ao matar a família, posto os fazendeiros de Maldobar
em alerta, arruinando assim uma planejada invasão drow?
Mais uma vez, as peças não se encaixavam corretamente. Se os
elfos negros planejassem uma invasão a Maldobar, certamente
nenhum deles teria se revelado de antemão. Algo dentro de
Columba lhe dizia que esse único drow havia agido sozinho, que
havia vindo e vingado os agricultores mortos. Ela deu de ombros e
decidiu considerar como um truque de seu próprio otimismo,
lembrando-se de que os elfos negros raramente eram conhecidos
por atos tão altruístas.
No momento em que os cinco atravessaram o caminho estreito e
voltaram para analisar o cadáver maior, Gabriel já havia encontrado
a trilha, indo mais fundo nas montanhas. Dois conjuntos de rastros
eram evidentes, os do drow e os mais frescos pertencentes a uma
criatura gigante e bípede, possivelmente um terceiro barghest.
— O que aconteceu com a pantera? — Fret perguntou, se
sentindo um pouco sobrecarregado com sua primeira expedição de
campo em muitos anos.
Columba riu alto e sacudiu a cabeça impotente. Cada resposta
parecia trazer muitas outras perguntas.

Drizzt continuou em movimento durante noite, fugindo, como


vinha fazendo há tantos anos, de mais uma realidade sombria. Ele
não havia matado os fazendeiros — os salvara do grupo de gnolls
—, mas agora eles estavam mortos. Drizzt não conseguia escapar
desse fato. Ele tinha entrado em suas vidas, por sua própria
vontade, e agora estavam mortos.
Na segunda noite depois do encontro com o gigante da colina,
Drizzt viu uma fogueira distante nas trilhas sinuosas da montanha,
na direção do covil do barghest. Sabendo que essa visão não
poderia ser uma coincidência, o drow convocou Guenhwyvar para o
seu lado, depois mandou a pantera observar mais atentamente.
Incessantemente, a grande gata correu, sua forma lustrosa e
negra invisível nas sombras da noite enquanto rapidamente
alcançava o acampamento.

Columba e Gabriel descansavam ao lado da fogueira, se


divertindo com as contínuas travessuras de Fret, que estava
ocupado limpando seu colete caríssimo com uma escova firme e
resmungando durante todo o processo.
Roddy estava mais isolado do outro lado da trilha, seguramente
escondido em um nicho entre uma árvore caída e uma grande
rocha, com seu cachorro enrolado a seus pés.
— Ah, esta sujeira me incomoda! — Fret gemeu. — Nunca, nunca
vou conseguir limpar essa roupa! Terei que comprar uma nova —
olhou para Columba, que tentava futilmente segurar o riso. — Ria se
quiser, senhora Garra de Falcão — o anão advertiu. — O preço
sairá da sua bolsa, não duvide!
— Um dia triste é aquele quando se precisa comprar uma joia
para um anão — Gabriel mencionou, e, após ouvir essas palavras,
Columba começou a rir.
— Ria se quiser! — Fret disse novamente, e então esfregou mais
forte com a escova, rasgando um buraco no tecido. — Raios e
trovões!— ele xingou, então jogou a escova no chão.
— Cala a boca! — Roddy resmungou para eles, roubando a
alegria do momento. — Cês querem trazer o drow pra cá?
O olhar fulminante de Gabriel era intransigente, mas Columba
percebeu que o conselho do homem da montanha, embora
rudemente dado, era apropriado.
— Vamos descansar, Gabriel — a ranger disse a seu
companheiro de batalhas. — Darda e Kellindil chegarão e será
nossa vez de montar guarda. Eu imagino que a estrada de amanhã
não será menos cansativa — Columba olhou para Fret e piscou —
nem menos suja do que hoje.
Gabriel deu de ombros, pendurou o cachimbo na boca e apertou
as mãos atrás da cabeça. Esta era a vida que ele e seus
companheiros de aventura gostavam, acampando sob as estrelas
com a música do vento da montanha nos ouvidos.
Fret, porém, se revirava no chão duro, resmungando e rosnando
enquanto se movia por cada posição desconfortável.
Gabriel não precisava olhar para Columba para saber que ela
compartilhava seu sorriso. Ele também não precisava olhar para
Roddy para saber que o homem da montanha se irritava com o
ruído contínuo. Sem dúvida, parecia imperceptível para os ouvidos
de um anão da cidade, mas soava inconfundível para aqueles mais
acostumados à estrada.
Um assovio vindo da escuridão soou ao mesmo tempo em que o
cachorro de Roddy eriçou os pelos e rosnou.
Columba e Gabriel estavam de pé e na extremidade do
acampamento em um segundo, buscando o perímetro da luz da
fogueira em direção ao chamado de Darda. Da mesma forma,
Roddy, puxando o cachorro, se esgueirou ao longo da grande rocha,
fugindo da luz direta para que seus olhos pudessem se ajustar à
escuridão.
Fret, envolvido demais seu próprio desconforto, finalmente notou
os movimentos.
— O quê? — o anão perguntou com curiosidade. — O quê?
Depois de uma conversa breve e sussurrada com Darda,
Columba e Gabriel se separaram, circulando no acampamento em
direções opostas para garantir a integridade do perímetro.
— A árvore — veio um sussurro suave, e Columba se agachou.
Em um momento, notou Roddy, habilmente escondido entre a rocha
e alguns arbustos. O homem enorme, também, tinha sua arma em
prontidão, enquanto a outra mão segurava firmemente o focinho de
seu cão, mantendo o animal em silêncio.
Columba seguiu o aceno de Roddy para os galhos espalhados de
um olmeiro solitário. A princípio, a ranger não conseguiu discernir
nada incomum entre os ramos frondosos, mas depois viu o brilho
amarelo dos olhos felinos.
— A pantera do drow — sussurrou Columba. Roddy concordou
com a cabeça. Eles sentaram-se quietos e observaram, sabendo
que o menor movimento poderia alertar a gata. Poucos segundos
depois, Gabriel se juntou a eles, ficando em uma posição silenciosa
e seguindo os olhos para o mesmo ponto mais escuro no olmeiro.
Todos os três entenderam que o tempo era seu aliado; naquele
mesmo momento, Darda e Kellindil estavam sem dúvida se
posicionando.
Sua armadilha seguramente teria pego Guenhwyvar, mas um
momento depois, o anão saiu do acampamento, tropeçando na
direção de Roddy. O homem da montanha quase caiu, e quando
ele, por reflexo, jogou a mão sem armas para a frente para aparar a
queda, o cachorro dele correu, latindo violentamente.
Como uma flecha negra, a pantera se afastou da árvore e fugiu
para a noite. A sorte de Guenhwyvar havia se esgotado, porém,
porque ela cruzou diretamente pela posição de Kellindil, e o arqueiro
elfo, com sua visão superior, a viu claramente.
Kellindil ouviu os latidos e gritos na distância, de volta ao
acampamento, mas não tinha como saber o que havia acontecido.
Qualquer hesitação que o elfo tinha, no entanto, foi rapidamente
dissipada quando uma voz gritou claramente.
— Mata essa coisa assassina! — Roddy gritou.
Crendo então que a pantera ou seu companheiro drow houvesse
atacado o acampamento, Kellindil deixou sua flecha voar. O projétil
encantado enterrou-se profundamente no flanco de Guenhwyvar
enquanto a pantera corria.
Então veio o grito de Columba, contradizendo Roddy.
— Não! — gritou a ranger. — A pantera não fez nada para
merecer nossa ira!
Kellindil correu para a trilha da pantera. Com seus olhos élficos
sensíveis enxergando no espectro infravermelho, ele viu claramente
o calor do sangue se espalhando a partir do local em que fora
atingida e afastando-se do acampamento.
Columba e os outros o alcançaram um momento depois. Os
traços élficos de Kellindil, sempre angulosos e belos, pareciam
afiados quando seu olhar irritado caiu sobre Roddy.
— Você manipulou meu tiro, McGristle — disse com raiva. — Por
suas palavras, eu atirei em uma criatura que não merecia uma
flechada! Avisarei uma vez, uma única vez, para nunca mais fazê-lo
— depois de um último olhar raivoso para mostrar ao homem da
montanha a força do significado de suas palavras, Kellindil começou
a seguir a trilha de sangue.
Um fogo de fúria queimava em Roddy, mas ele o sublimou,
entendendo que estava sozinho contra o formidável quarteto e o
anão almofadinhas. Roddy deixou que seu olhar irritado caísse
sobre Fret, porém, sabendo que nenhum dos outros poderia
discordar de seu julgamento.
— Guarda a língua na boca quando tiver perigo! — Roddy
rosnou. — E fica com essas bota fedida longe das minhas costas.
Fret olhou em volta incrédulo quando o grupo começou a sair
atrás de Kellindil.
— Fedidas? — o anão perguntou em voz alta. Ele olhou para
baixo, magoado, para suas botas cuidadosamente polidas. —
Fedidas — ele disse para Columba, que parou por um minuto para
oferecer um sorriso reconfortante.
— Sujas pelas costas daquele lá, provavelmente!

Guenhwyvar voltou para Drizzt assim que os primeiros raios do


amanhecer começaram a se esgueirar das montanhas a leste.
Drizzt sacudiu a cabeça impotente, muito pouco surpreso pela
flecha cravada no flanco de Guenhwyvar. Relutantemente, mas
sabendo que era o melhor a se fazer, Drizzt tirou o punhal que havia
tomado do célere e arrancou a flecha.
Guenhwyvar resmungou suavemente durante o procedimento,
mas ficou quieta e não ofereceu resistência. Então, Drizzt, embora
quisesse manter Guenhwyvar ao seu lado, permitiu que a pantera
voltasse para sua casa astral, onde a ferida iria se curar mais
rápido. A flecha tinha dito ao drow tudo o que precisava saber sobre
seus perseguidores, e Drizzt acreditava que precisaria da pantera
novamente o quanto antes. Ele subiu em um afloramento rochoso e
olhou através do crescente brilho para as trilhas mais baixas,
esperando a aproximação de mais um inimigo.
Ele não viu nada, é claro; mesmo ferida, Guenhwyvar tinha
facilmente se afastado de seus perseguidores e, para um homem ou
qualquer ser similar, o acampamento ficava a horas de distância.
Mas eles viriam, Drizzt sabia, forçando-o a lutar outra batalha que
não queria. Drizzt olhou ao redor, se perguntando sobre quais
armadilhas poderia fazer, quais vantagens que poderia ganhar
quando o encontro chegasse ao combate, como vinha acontecendo
com todos os encontros.
As lembranças de seu último encontro com os humanos, do
homem com os cães e os outros fazendeiros, invadiram
abruptamente os pensamentos de Drizzt. Naquela ocasião, a
batalha tinha sido inspirada por um mal entendido, uma barreira que
Drizzt duvidava que pudesse superar. Drizzt não tivera nenhum
desejo de lutar contra os humanos naquele momento, e ainda não o
tinha, mesmo com o ferimento de Guenhwyvar.
A luz estava crescendo, e o drow, ainda ferido, apesar de ter
descansado durante a noite, queria encontrar um buraco escuro e
confortável. Mas Drizzt não podia se dar ao luxo de se atrasar, não
se quisesse escapar da próxima batalha.
— Até onde vocês vão me seguir? — Drizzt sussurrou para a
brisa da manhã, prometendo em um tom sombrio, mas determinado.
— Veremos.
CAPÍTULO 10
Uma Questão de Honra
— A PANTERA ENCONTROU O DROW — concluiu Columba,
depois que ela e seus companheiros passaram algum tempo
inspecionando a região perto do afloramento rochoso. A flecha de
Kellindil estava quebrada no chão, quase no mesmo ponto onde os
rastros da pantera terminavam. — E a pantera desapareceu.
— É o que parece — Gabriel concordou, coçando a cabeça e
olhando para os rastros confusos.
— Gato do inferno — rosnou Roddy McGristle. — Voltou praquele
lugar imundo!
Fret queria perguntar: “A sua casa?”, mas manteve sabiamente o
pensamento sarcástico para si mesmo.
Os outros, também, deixam passar a afirmação do homem da
montanha. Eles não tinham respostas para este enigma, e o palpite
de Roddy era tão bom quanto o de qualquer um deles no momento.
A pantera ferida e a trilha de sangue fresco desapareceram, mas o
cachorro de Roddy logo encontrou o cheiro de Drizzt. Latindo com
entusiasmo, o cão os conduziu, e Columba e Kellindil, ambos
rastreadores especializados, muitas vezes encontraram outras
evidências que confirmavam a direção.
A trilha ia ao longo do lado da montanha, mergulhava através de
árvores muito juntas, e continuava em uma extensão de pedra nua,
terminando abruptamente em outro barranco. O cachorro de Roddy
se moveu diretamente para a borda e até o primeiro passo em uma
descida rochosa e traiçoeira.
— Maldita magia drow — resmungou Roddy. Ele olhou ao redor e
deu um soco na própria coxa, imaginando que levaria muitas horas
para contornar a parede íngreme.
— A luz do dia está diminuindo — lembrou Columba. — Vamos
acampar aqui e encontrar o caminho para baixo de manhã.
Gabriel e Fret concordaram com a cabeça, mas Roddy discordou.
— A trilha tá fresca agora! — o homem da montanha argumentou.
— É bom a gente pelo menos descer com o cachorro e voltar antes
de montar acampamento.
— Isso pode levar horas… — Fret começou a reclamar, mas
Columba silenciou o anão almofadinha.
— Venha — a ranger chamou os outros, e caminhou para o
oeste, onde o chão inclinava-se em um declive íngreme, mas
escalável.
Columba não concordava com o raciocínio de Roddy, mas não
queria mais discussões com o representante designado por
Maldobar.
No fundo do barranco, encontraram apenas mais enigmas. Roddy
fez seu cachorro esquadrinhar em todas as direções, mas não
conseguiu encontrar nenhum vestígio do drow evasivo. Depois de
vários minutos de contemplação, a verdade despertou na mente de
Columba e seu riso revelou tudo a seus outros companheiros
experientes.
— Ele nos enganou! — Gabriel riu, adivinhando a fonte do riso de
Columba. — Ele nos levou até o penhasco, sabendo que nós
suporíamos que teria usado alguma magia para descer!
— Do que cê tá falando? — Roddy perguntou com raiva, embora
o caçador de recompensas experiente entendesse exatamente o
que aconteceu.
— Você quer dizer que temos que escalar todo o caminho de
volta? — Fret perguntou, se queixando.
Columba riu novamente, mas ficou sóbria rápido ao olhar para
Roddy e disse:
— De manhã.
Desta vez, o homem da montanha não ofereceu objeções.
No momento em que o próximo amanhecer chegou, o grupo
subiu ao topo do barranco e Roddy fez seu cachorro encontrar
novamente o cheiro de Drizzt, voltando na direção do afloramento
rochoso onde encontraram a flecha. O truque tinha sido simples o
suficiente, mas a mesma pergunta incomodava a todos os
rastreadores experientes: como o drow se afastou de sua pista de
forma limpa o suficiente para enganar completamente o cachorro?
Quando eles voltaram para as árvores próximas, Columba sabia a
resposta.
Ela assentiu com a cabeça para Kellindil, que já estava largando
sua mochila pesada. O elfo ágil escolheu um ramo baixo e foi para o
meio das árvores, procurando por possíveis rotas que o drow
pudesse ter seguido em escalada. Os galhos de várias árvores se
entrelaçavam, então as opções pareciam muitas, mas Kellindil
corretamente guiou Roddy e seu cão para a nova trilha, saindo para
o lado de um matagal e dando voltas na lateral da montanha, de
volta na direção de Maldobar.
— A cidade! — gritou Fret angustiado, mas os outros não
pareciam preocupados.
— Não a cidade — sugeriu Roddy, intrigado demais para manter
o tom irritado em sua voz. Como um caçador de recompensas,
Roddy gostava de um oponente digno, pelo menos durante a
perseguição. — O córrego — explicou Roddy, acreditando que
agora havia entendido a mentalidade do drow. — O drow foi pro
córrego, para andar lá dentro por um tempo e sair limpo, de volta
prum lugar mais selvagem.
— O drow é um adversário astuto — observou Darda,
concordando de todo o coração com as conclusões de Roddy.
— E agora ele tem pelo menos um dia de vantagem sobre nós —
observou Gabriel.
Depois que o suspiro enojado de Fret finalmente desapareceu,
Columba ofereceu ao anão uma certa esperança:
— Não tema — disse. — Estamos bem abastecidos, mas o drow
não. Ele deve parar para caçar ou colher alimentos, mas podemos
continuar.
— A gente agora só vai dormir quando precisar! — Roddy
acrescentou, determinado a não ser atrasado pelos outros membros
do grupo. — E só por pouco tempo!
Fret tornou a suspirar pesadamente.
— E começaremos a racionar nossos suprimentos imediatamente
— acrescentou Columba, tanto para aplacar Roddy quanto por
achar prudente. — Vamos seguir com intensidade o suficiente para
nos aproximarmos do drow. Não quero atrasos.
— Racionar — Fret murmurou em voz baixa. Ele suspirou pela
terceira vez e colocou uma mão reconfortante em sua barriga. Não
havia palavras para definir o quanto o anão desejava estar de volta
ao seu pequeno quarto no castelo de Helm em Sundabar!

A intenção de Drizzt era continuar se embrenhando entre as


montanhas até que a parte perseguidora tivesse perdido o interesse
pela empreitada. Continuou usando suas táticas para despistá-los,
muitas vezes voltando e indo até as árvores para começar uma
segunda trilha em uma direção completamente diferente. Muitos
córregos proporcionavam mais barreiras ao cheiro, mas os
perseguidores de Drizzt não eram novatos, e o cachorro de Roddy
era tão bom quanto qualquer cão de caça. Não só o grupo manteve-
se na pista de Drizzt, mas também se aproximaram nos dias
seguintes.
Drizzt ainda acreditava que poderia confundi-los, mas sua
aproximação contínua trazia outras preocupações ao drow. Não
tinha feito nada para merecer uma perseguição tão obstinada; havia
até mesmo vingado as mortes da família de fazendeiros. E, apesar
do voto irritado de Drizzt de que iria sozinho, que não traria mais
perigo para ninguém, conhecia a solidão por tempo demais. Não
podia deixar de olhar por cima do ombro, por curiosidade, não
medo, e seu desejo não diminuía.
Assim, Drizzt não podia negar seu interesse em relação ao grupo
que o perseguia. Tal curiosidade cresceu com Drizzt estudando as
figuras ao redor da fogueira em uma noite escura, e aquilo poderia
ser sua ruína. Ainda assim, a percepção, e sua autorrepreensão,
chegaram tarde demais para que o drow fizesse alguma coisa
quanto a isso. Suas necessidades o tinham atrasado, e agora o
acampamento de seus perseguidores se achava a apenas vinte
metros de distância.
As brincadeiras entre Columba, Fret e Gabriel apertavam o
coração de Drizzt, embora não conseguisse entender suas palavras.
Qualquer desejo que o drow sentisse de entrar no acampamento era
reduzido, no entanto, sempre que Roddy e seu cão nervoso
passavam pela luz da fogueira. Aqueles dois nunca parariam para
ouvir nenhuma explicação, Drizzt sabia.
O grupo havia designado dois guardas, um elfo e um humano
alto. Drizzt passou furtivamente pelo humano, adivinhando
corretamente que o homem não seria tão acostumado à escuridão
quanto o elfo. No entanto, o drow, novamente contra toda cautela,
seguiu caminho para o outro lado do campo, em direção do
sentinela élfico.
Apenas uma vez, Drizzt havia encontrado seus primos da
superfície. Fora uma ocasião desastrosa. O grupo de incursão para
o qual Drizzt fora um batedor havia abatido todos os integrantes de
uma reunião de elfos da superfície, exceto por uma única menina
elfa, que Drizzt conseguiu esconder. Levado por aquelas memórias
assustadoras, Drizzt precisava ver um elfo novamente, um elfo vivo
e saudável.
A primeira indicação de que Kellindil teve de que alguém estava
na área veio quando uma pequena adaga assobiou próxima a seu
peito, cortando cuidadosamente a corda de seu arco. O elfo girou
imediatamente e olhou nos olhos cor de lavanda do drow. Drizzt
estava a poucos passos de distância.
O brilho vermelho dos olhos de Kellindil mostrava que ele estava
vendo Drizzt no espectro infravermelho. O drow cruzou as mãos
sobre o peito no sinal de paz do Subterrâneo.
— Finalmente nos encontramos, meu primo negro — Kellindil
sussurrou com dureza na língua dos drow, com sua voz marcada
por uma raiva evidente e seus olhos brilhantes se estreitando
perigosamente. Rápido como um gato, Kellindil sacou uma espada
finamente trabalhada, com uma lâmina brilhando em uma chama
vermelha ardente, de seu cinto.
Drizzt ficou espantado e esperançoso quando soube que o elfo
podia falar sua língua, e com o simples fato de que o elfo não falara
alto o suficiente para alertar os outros no acampamento. O elfo da
superfície era do tamanho de Drizzt, e tinha as mesmas feições
delicadas, mas seus olhos eram mais estreitos e seus cabelos
dourados não eram tão longos ou grossos quanto a crina branca de
Drizzt.
— Eu sou Drizzt Do’Urden — Drizzt começou hesitantemente.
— Eu não me importo com o seu nome! — Kellindil revidou. —
Você é um drow. Isso é tudo que preciso saber! Venha então, drow.
Venha e vamos descobrir quem é o mais forte!
Drizzt ainda não tinha sacado sua lâmina e não tinha intenção de
fazê-lo.
— Eu não quero de lutar com você… — a voz de Drizzt sumiu no
momento em que percebeu que suas palavras eram inúteis contra o
ódio intenso que o elfo da superfície tinha contra ele.
Drizzt queria explicar tudo para o elfo, contar sua história por
inteiro e ser perdoado por uma voz diferente da sua. Se outro ser —
particularmente um elfo de superfície — soubesse sobre suas
provações e concordasse com suas decisões, concordasse que
agira corretamente ao longo de sua vida diante de tais horrores,
então a culpa sairia dos ombros de Drizzt. Se ao menos ele pudesse
encontrar aceitação entre aqueles que o odiavam tanto — como ele
mesmo odiava — os caminhos de seu povo sombrio, então Drizzt
Do’Urden estaria em paz.
Mas a ponta da espada do elfo não se abaixou nenhum
centímetro, nem a carranca diminuiu em seu claro rosto élfico, um
rosto mais acostumado a sorrisos.
Drizzt não encontraria nenhuma aceitação ali, não naquele
momento e provavelmente nunca. Ele se perguntou se seria sempre
julgado assim. Ou ele, talvez, julgasse mal aos que estavam ao seu
redor, dando aos humanos e a este elfo mais crédito pela justiça do
que mereciam?
Eram duas noções perturbadoras com as quais Drizzt teria que
lidar outro dia, porque a paciência de Kellindil havia chegado ao fim.
O elfo foi até o drow com a ponta da espada abrindo o caminho.
Drizzt não ficou surpreso — como poderia? Pulou para trás, fora
do alcance imediato, e invocou sua magia inata, deixando cair um
globo de escuridão impenetrável sobre o elfo que avançava.
Já acostumado com magia, Kellindil entendeu o truque do drow.
O elfo inverteu a direção, mergulhando pela parte de trás do globo e
subindo, com a espada a postos.
Os olhos cor de lavanda tinham desaparecido.
— Drow! — Kellindil gritou alto, e aqueles no acampamento
imediatamente explodiram em movimento. O cachorro de Roddy
começou a uivar, e aquele som ansioso e ameaçador seguiu Drizzt
de volta às montanhas, condenando-o a seu contínuo exílio.
Kellindil recostou-se contra uma árvore, alerta, mas não
preocupado que o drow ainda estivesse na área. Drizzt não podia
saber naquela época, mas suas palavras e as ações que se
seguiram — fugir ao invés de lutar — tinham realmente posto um
pouco de dúvida na mente não tão fechada do amável elfo.

— Ele perderá sua vantagem com a luz do amanhecer —


Columba disse com esperança depois de várias horas infrutíferas
tentando acompanhar o ritmo do drow. Eles estavam em um vale
rochoso em formato de cratera, e a trilha do drow conduzia para o
lado oposto em uma subida alta e bastante íngreme.
Fret, quase tropeçando de exaustão ao seu lado, foi rápido ao
responder:
— Vantagem? — O anão gemeu. Ele olhou para a próxima
parede da montanha e balançou a cabeça. — Morreremos de
cansaço antes de encontrar este drow infernal!
— Se não dá conta de acompanhar, então cai morto logo! —
Roddy rosnou. — Não vou deixar esse drow fedido escapar de
novo!
Não foi Fret, no entanto, mas outro membro do grupo, quem caiu
inesperadamente. Uma grande rocha despencou de repente no
grupo, acertando o ombro de Darda com força suficiente para tirar o
homem do chão e atirá-lo no ar. Ele nunca teve a chance de gritar
antes de cair de bruços na poeira.
Columba agarrou Fret e rolou para uma rocha próxima, Roddy e
Gabriel fazendo o mesmo. Outra pedra, e várias outras mais,
trovejaram ao redor deles.
— Avalanche? — o anão atordoado perguntou quando se
recuperou do choque.
Columba, também preocupada com Darda, não perdeu tempo de
responder, embora soubesse a verdade sobre sua situação — e
sabia que não era uma avalanche.
— Ele está vivo — Gabriel gritou por trás de sua pedra protetora,
a uma dúzia de metros da de Columba. Outra pedra passou,
errando por pouco a cabeça de Darda.
— Droga — murmurou Columba. Ela espiou por sobre sua rocha,
examinando ambos os lados da montanha e os penhascos inferiores
em sua base. — Agora, Kellindil — sussurrou para si mesma —,
ganhe algum tempo para nós.
Como se em resposta, ouviu-se o som do arco restaurado do elfo,
seguido por um rugido irritado. Columba e Gabriel olharam um para
o outro e sorriram severamente.
— Gigantes de pedra! — Roddy gritou, reconhecendo o timbre
profundo e rasgado da voz que rugia.
Columba agachou-se e esperou, de costas para a rocha e com
sua bolsa aberta na mão. As pedras pararam, em vez disso, sons de
pancadas trovejantes se fizeram ouvir à frente deles, perto da
posição de Kellindil. Columba correu para Darda e gentilmente virou
o homem.
— Isso doeu — Darda sussurrou, esforçando-se para sorrir de
seu eufemismo óbvio.
— Não fale — respondeu Columba, procurando um frasco de
poção em sua bolsa. Mas a ranger ficou sem tempo. Os gigantes,
vendo-a em campo aberto, retomaram seu ataque.
— Volte para trás da pedra! — Gabriel gritou. Columba deslizou o
braço debaixo do ombro do homem caído para apoiar Darda
enquanto, tropeçando a cada movimento, rastejava até a rocha.
— Depressa! Depressa! — Fret gritou, observando-os
ansiosamente com as costas grudadas contra a pedra grande.
Columba inclinou-se repentinamente sobre Darda, achatando-o
no chão enquanto outra rocha voava logo acima de suas cabeças.
Fret começou a roer as unhas, depois percebeu o que estava
fazendo e parou, com um olhar enojado.
— Depressa! — ele gritou novamente para seus amigos. Outra
rocha caiu, perto demais.
Pouco antes de Columba e Darda chegarem a Fret, uma pedra se
chocou diretamente contra a parte de trás da rocha. Fret, com as
costas apertadas contra a barreira de pedra, voou
descontroladamente, abrindo caminho para seus companheiros
rastejantes. Columba colocou Darda atrás da rocha, depois se virou,
imaginando que teria que sair novamente e buscar o anão caído.
Mas Fret já estava de volta, xingando e resmungando, e mais
preocupado com um novo buraco em sua roupa luxuosa do que com
qualquer lesão corporal.
— Vem pra cá! — Columba gritou para ele.
— Raios e trovões! Gigantes estúpidos! — foi tudo o que Fret
respondeu, pisando com força de volta para trás da pedra, com os
punhos apertados de raiva contra seus quadris.
O ataque continuou, tanto à frente dos companheiros presos
quanto ao redor deles. Então Kellindil mergulhou até eles,
deslizando para a rocha ao lado de Roddy e seu cachorro.
— Gigantes de pedra — explicou o elfo. — Uma dúzia no mínimo
— então, apontou para uma crista a meio caminho da montanha.
— O drow nos trouxe pra cá — rosnou Roddy, batendo o punho
na pedra. Kellindil não estava convencido, mas decidiu manter a
boca fechada.

No alto do afloramento rochoso, Drizzt observou o


desdobramento da batalha. Ele passou pelos caminhos mais baixos
uma hora antes, antes do amanhecer. No escuro, os gigantes à
espreita não haviam sido obstáculo para o drow furtivo; Drizzt
passara por eles sem maiores problemas.
Agora, olhando para a luz da manhã, Drizzt perguntou-se sobre
seu curso de ação. Quando passou pelos gigantes, esperava que
seus perseguidores tivessem problemas. Se perguntou se deveria
ter tentado avisá-los… Ou deveria ter se afastado da região,
levando os humanos e o elfo para fora do caminho dos gigantes?
Novamente, Drizzt não entendia onde se encaixava nesse mundo
estranho e brutal.
— Deixe que lutem entre eles — disse com dureza, como se
tentasse se convencer. Drizzt relembrou de propósito o encontro da
noite anterior. O elfo tinha atacado apesar de ele ter declarado que
não queria lutar. Lembrou também da flecha que havia tirado do
flanco de Guenhwyvar.
— Deixe que eles todos se matem — disse Drizzt logo antes de
se virar para ir embora. Olhou por cima do ombro uma última vez e
notou que alguns dos gigantes estavam em movimento. Um grupo
permaneceu no cume, banhando o fundo do vale com um
suprimento aparentemente infinito de rochas, enquanto dois outros
grupos, um à esquerda e outro à direita, desciam, movendo-se para
cercar o grupo aprisionado.
Drizzt sabia então que seus perseguidores não escapariam.
Assim que os gigantes os flanqueassem, não teriam nenhuma
proteção no fogo cruzado.
Algo aconteceu dentro do drow naquele momento, as mesmas
emoções que o levaram à ação contra o grupo de gnolls. Não podia
saber com certeza, mas, como com os gnolls e seus planos para
atacar a fazenda, Drizzt suspeitava que os gigantes eram os
malignos nesta luta.
Outros pensamentos suavizaram a expressão determinada de
Drizzt, as memórias das crianças humanas brincando na fazenda,
do menino de cabelos cor de areia sendo jogado na calha de água
do chiqueiro.
Drizzt largou a estatueta de ônix no chão.
— Venha, Guenhwyvar — ele ordenou. — Somos necessários.

— Estamos sendo flanqueados! — Roddy McGristle rosnou,


vendo os grupos de gigantes movendo-se pelas trilhas mais altas.
Columba, Gabriel e Kellindil olharam um para o outro, procurando
por alguma saída. Eles haviam lutado contra gigantes muitas vezes
em suas viagens, juntos e com outros grupos. Em todas as outras
vezes, haviam entrado em batalha ansiosamente, felizes em aliviar
o mundo de alguns monstros incômodos. Desta vez, todos
suspeitavam que o resultado pudesse ser diferente. Os gigantes de
pedra tinham a reputação de serem os melhores lançadores de
rocha em todos os reinos e um único golpe poderia matar o mais
forte dos homens. Além disso, Darda, embora vivo, não tinha
condições de fugir, e nenhum dos outros tinha intenções de deixá-lo
para trás.
— Fuja, homem da montanha — disse Kellindil a Roddy. — Você
não nos deve nada.
Roddy olhou para o arqueiro com incredulidade:
— Eu não fujo, elfo — rosnou ele — De nada!
Kellindil assentiu e encaixou uma flecha no arco.
— Se eles chegarem ao lado, estamos condenados — explicou
Columba a Fret. — Peço seu perdão, querido Fret. Eu não deveria
ter te tirado da sua casa. — Fret deu de ombros. Ele alcançou sob
suas vestes e sacou um pequeno, mas robusto, martelo de prata.
Columba sorriu à vista, pensando no quão estranho o martelo
parecia nas mãos suaves do anão, mais acostumadas a segurar
uma pena.

Na parte superior do cume, Drizzt e Guenhwyvar seguiram os


movimentos do grupo de gigantes de pedra que circulavam no
flanco esquerdo do grupo preso. Drizzt estava determinado a ajudar
os humanos, mas não tinha certeza de quão eficaz seria contra os
gigantes de pedra. Ainda assim, ele achou que, com Guenhwyvar
ao seu lado, poderia encontrar alguma maneira de interromper o
grupo de gigantes por tempo suficiente para que o grupo pudesse
ter tempo de respirar.
O vale ia ficando mais largo quando se avançava, e Drizzt
percebeu que o grupo de gigantes que ia para outra direção, para o
flanco direito do grupo preso, provavelmente estava fora do alcance
das rochas.
— Venha, minha amiga — Drizzt sussurrou para a pantera logo
antes de puxar sua cimitarra e começar a descer em uma pedra
quebrada e irregular. Um momento depois, porém, assim que notou
o terreno a uma curta distância à frente do grupo de gigantes, Drizzt
agarrou Guenhwyvar pelo pescoço e levou a pantera de volta ao
cume superior.
Ali, o chão estava irregular e rachado, mas inegavelmente
estável. Logo à frente, no entanto, grandes pedregulhos e centenas
de rochas pequenas e soltas estavam espalhadas pelo terreno
inclinado. Drizzt não tinha tanta experiência na dinâmica de uma
montanha, mas mesmo ele podia ver que a paisagem íngreme e
frouxa estava a ponto de desabar.
O drow e a gata correram para a frente, ficando acima do grupo
de gigantes novamente. Os gigantes estavam quase em posição;
alguns começaram a lançar pedras no grupo. Drizzt se arrastou até
uma grande rocha e empurrou-se contra ela, derrubando-a. As
táticas de Guenhwyvar eram muito menos sutis. A pantera correu
pela lateral da montanha, desalojando as pedras com todos os
grandes passos, pulando na parte de trás das rochas e saltando
quando começavam a cair.
Pedregulhos caíam e se soltavam. Pequenas pedras passavam
entre elas, tomando impulso. Drizzt, comprometido com a ação,
correu para o meio da avalanche em ascensão, jogando pedras, se
empurrando contra outras — o que quer que pudesse fazer para
aumentar a precipitação. Logo, o próprio chão sob os pés do drow
estava deslizando e toda a parte do lado da montanha parecia estar
descendo.
Guenhwyvar correu à frente da avalanche, um sinal de perdição
para os gigantes pegos de surpresa. A pantera surgiu, mas eles
repararam na grande gata apenas por instantes, porque toneladas
de pedras se chocaram contra eles.
Drizzt sabia que tinha problemas; não era tão rápido e ágil quanto
Guenhwyvar e não podia esperar escapar do deslizamento ou sair
do caminho dele. Então, o drow saltou alto, próximo à crista de um
pequeno cume, e conjurou um feitiço de levitação no meio do salto.
Drizzt lutou muito para manter sua concentração no esforço. O
feitiço havia falhado duas vezes antes, e se não pudesse mantê-lo
agora, se caísse entre as pedras, sabia que certamente morreria.
Apesar de sua determinação, Drizzt sentia-se cada vez mais
pesado no ar. Agitou os braços com força inutilmente, procurou
aquela energia mágica dentro de seu corpo drow — mas ele
continuava descendo.

— Os que conseguem nos acertar tão na frente! — Roddy gritou


quando um pedregulho jogado saltou inofensivamente longe pelo
flanco direito. — Os da direita tão longe demais pra atirar, e os da
esquerda…
Columba seguiu a lógica de Roddy e dirigiu seu olhar para a
crescente nuvem de poeira no flanco esquerdo. Ela olhou fixamente
as pedras em cascata e viu o que poderia ter sido uma forma élfica
coberta por uma capa escura. Quando olhou para Gabriel, sabia que
ele também tinha visto o drow.
— Nós temos que ir agora — Columba gritou para o elfo.
Kellindil assentiu com a cabeça e girou para o lado da rocha que
usava como barreira, com o arco inclinado.
— Rápido — Gabriel acrescentou —, antes que o grupo à direita
se aproxime.
O arco de Kellindil disparou outra vez. Em frente, um gigante
uivou de dor.
— Fique aqui com Darda — Columba disse a Fret, então ela,
Gabriel e Roddy — segurando seu cão em uma coleira apertada —
saíram da cobertura e investiram nos gigantes à frente. Rolaram de
pedra em pedra, cortando seu caminho em ziguezagues confusos
para evitar que os gigantes antecipassem seus movimentos.
Durante todo o tempo, as flechas de Kellindil voavam acima deles,
mantendo os gigantes mais preocupados em se abaixar do que em
lançar as pedras.
Rochedos marcavam as encostas mais baixas da montanha, com
fendas que ofereciam cobertura, mas que separavam os três
guerreiros. Eles também não podiam ver os gigantes, mas sabiam a
direção em geral e escolheram seus caminhos separados da melhor
maneira possível.
Ao virar uma curva fechada entre duas paredes de pedra, Roddy
encontrou um dos gigantes. Imediatamente, o homem da montanha
soltou seu cachorro, e o cão feroz investiu sem medo e saltou alto,
mal alcançando a cintura do colosso de seis metros de altura.
Pego de surpresa pelo ataque repentino, o gigante soltou seu
enorme tacape e agarrou o cachorro no meio do salto. Ele teria
esmagado o vira-lata problemático em um instante, exceto que
Sangrador, o machado cruel de Roddy, cortou sua coxa com toda a
força que o corpulento homem da montanha conseguia reunir. O
gigante soltou o cachorro de Roddy, que foi escalando e arranhando
e depois mordendo o rosto e o pescoço do gigante. Abaixo, Roddy
cortava, derrubando o monstro como se fosse uma árvore.


Meio flutuando e meio dançando no alto das pedras saltitantes,
Drizzt seguia deslizando. Viu um gigante emergir, tropeçando, do
tumulto, apenas para ser encontrado por Guenhwyvar. Ferido e
atordoado, o gigante caiu.
Drizzt não teve tempo para saborear o sucesso de seu plano
desesperado. O feitiço de levitação continuava de alguma forma,
mantendo-o leve o suficiente para que pudesse continuar surfando
pela avalanche. Mesmo acima do deslizamento principal, no
entanto, algumas pedras acertavam com força o drow e a poeira o
engasgava e feria seus olhos sensíveis. Quase cego, conseguiu
detectar um cume que poderia fornecer algum abrigo, mas a única
maneira de chegar lá seria cancelando seu feitiço de levitação e
escalando.
Outra pedra acertou Drizzt, quase girando-o no ar. Ele podia
sentir o feitiço falhar e sabia que tinha apenas uma chance.
Recuperou seu equilíbrio, dispersou seu feitiço e caiu no chão
correndo.
Ele rolou e se virou, correndo o mais rápido que pôde. Uma rocha
acertou o joelho da perna já ferida, forçando-o paralelamente ao
chão. Drizzt estava rodando de novo, tentando como podia chegar à
segurança do cume.
Seu impulso acabou muito cedo. Ele voltou a ficar de pé, na
intenção de se jogar na última distância, mas a perna de Drizzt não
teve forças e se dobrou naquele instante, deixando-o preso e
exposto.
Ele sentiu o impacto nas costas e achou que sua vida estava no
fim. Um momento depois, atordoado, Drizzt percebeu apenas que,
de alguma forma, estava atrás do cume e que fora enterrado por
alguma coisa, mas não com pedras ou terra.
Guenhwyvar estava em cima de seu mestre, protegendo Drizzt
até que a última das rochas saltitantes tivesse parado.

À medida que os penhascos deram lugar a um terreno mais


aberto, Columba e Gabriel voltaram à vista um do outro. Eles
perceberam algum movimento diretamente à frente, atrás de uma
parede solta de pedregulhos empilhados de cerca de três metros de
altura e quinze metros de comprimento.
Um gigante apareceu no topo da parede, rugindo e segurando
uma rocha acima de sua cabeça, pronto para lançá-la. O monstro
tinha várias flechas cravadas em seu pescoço e peito, mas parecia
não se importar.
O próximo tiro de Kellindil certamente chamou a atenção do
gigante, no entanto, uma vez que o elfo cravou uma flecha
diretamente no cotovelo do monstro. O gigante uivou e apertou o
braço, aparentemente esquecendo-se da sua rocha, que
rapidamente caiu com um baque na sua cabeça. O gigante ficou
imóvel, atordoado, e mais duas flechas atingiram seu rosto. Ele se
balançou por um momento, depois caiu sobre a terra.
Columba e Gabriel trocaram sorrisos rápidos, compartilhando sua
apreciação pelo hábil elfo arqueiro, depois continuaram a ofensiva,
indo para extremidades opostas da parede.
Columba pegou um gigante de surpresa ao virar sua curva. O
monstro alcançou seu tacape, mas a espada de Columba foi mais
rápida e cortou sua mão. Gigantes de pedra eram inimigos
formidáveis, com punhos que podiam lançar uma pessoa
diretamente para o chão e uma pele quase tão dura quanto a pedra
que lhes dava o nome. Mas ferido, surpreso, e sem seu tacape, o
gigante não era páreo para a ranger experiente. Ela pulou no alto da
parede, que a colocou cara a cara com o gigante, e pôs sua espada
para trabalhar.
Em duas estocadas, o gigante foi cegado. A terceira, uma
deslizada lateral deslumbrante, cortou um sorriso na garganta do
monstro. Então, Columba entrou na defensiva, esquivando-se
cuidadosamente e bloqueando os últimos movimentos
desesperados do monstro moribundo.
Gabriel não teve tanta sorte quanto sua companheira. O gigante
restante não estava perto do canto da parede de pedra empilhada.
Embora Gabriel surpreendesse o monstro enquanto avançava, o
gigante teve tempo suficiente — e uma pedra na mão — para reagir.
Gabriel pegou sua espada para desviar o projétil, e o ato salvou
sua vida. A pedra arrancou a espada do guerreiro de suas mãos e
ainda veio com força suficiente para jogar Gabriel no chão. Gabriel
era um veterano, e a principal razão pela qual ainda estava vivo
depois de tantas batalhas era o fato de que sabia quando recuar.
Ele se forçou a passar por aquele momento de dor estonteante e
conseguiu ficar de pé, depois correu de volta ao outro lado da
parede.
O gigante, com seu tacape pesado na mão, veio logo atrás. Uma
flecha cumprimentou o monstro quando este se revelou, mas ele
afastou o dardo irritante como se não fosse mais do que um
incômodo e caiu sobre o guerreiro.
Gabriel logo ficou sem espaço. Ele tentou voltar para os caminhos
quebrados, mas o gigante o cortou, prendendo-o em uma pequena
fenda entre pedras enormes. Gabriel puxou a adaga e amaldiçoou
seu azar.
Columba já havia despachado o seu gigante a essa altura e
correu ao redor do muro de pedra, vendo imediatamente Gabriel e o
gigante.
Gabriel viu a ranger, também, mas apenas deu de ombros, quase
se desculpando, sabendo que Columba não poderia chegar até ele
a tempo de salvá-lo. O gigante, grunhindo, deu um passo em frente,
na intenção de acabar com o homem insignificante, mas então se
fez ouvir um “crack” agudo e o monstro parou abruptamente. Seus
olhos varreram o local por um momento ou dois, então caiu aos pés
de Gabriel, morto.
Gabriel olhou para o lado, para o alto da parede de pedras, e
quase riu alto.
O martelo de Fret não era uma arma grande — sua cabeça tinha
apenas cinco centímetros de diâmetro —, mas era bem sólida, e em
um único golpe, o anão o tinha cravado através do espesso crânio
do gigante de pedra em um golpe limpo.
Columba aproximou-se, embainhando a espada, também não
entendendo nada. Olhando para suas expressões chocadas, Fret
não ficou feliz.
— Eu ainda sou um anão, afinal!— desabafou para eles,
cruzando os braços, indignado. A ação trouxe o martelo manchado
de cérebro em contato com a túnica de Fret, e o anão perdeu sua
animação para um ataque de pânico. Lambeu os dedos sujos e
apagou a mancha horrível, então olhou a sanguinolência em sua
mão com um horror ainda maior.
Columba e Gabriel riram em voz alta.
— Saiba que você vai pagar pela túnica! — Fret ralhou com
Columba. — Ah, você certamente vai!
Um grito ao lado os tirou de seu alívio momentâneo. Os quatro
gigantes restantes, tendo visto um grupo de seus companheiros
enterrados em uma avalanche e outro grupo derrotado tão
eficientemente, perderam o interesse na emboscada e começaram a
fugir.
Logo atrás deles ia Roddy McGristle e seu cão uivante.

Um único gigante escapou tanto da avalanche quanto das


terríveis garras da pantera. Ele corria descontroladamente agora em
toda a parte da montanha, buscando o cume mais alto.
Drizzt mandou Guenhwyvar em uma busca rápida, depois
encontrou um galho para usar como bengala e conseguiu se
levantar. Dolorido, empoeirado e ainda se curando das feridas da
batalha contra os barghests — e agora de mais algumas de sua
pequena aventura na montanha — Drizzt começou a andar. Um
movimento no fundo da inclinação, no entanto, chamou sua atenção
e o fez parar. Ele virou-se para encarar o elfo e, mais
especificamente, a flecha encaixada no arco.
Drizzt olhou em volta, mas não tinha onde buscar cobertura.
Poderia conjurar um globo de escuridão em algum lugar entre ele e
o elfo, possivelmente, mas acreditava que o arqueiro habilidoso, já
tendo mirado, não erraria mesmo com tal obstáculo. Drizzt
estabilizou os ombros e virou lentamente, diretamente de frente para
o elfo, com orgulho.
Kellindil afrouxou a corda de seu arco e removeu a flecha.
Kellindil, também, tinha visto a forma coberta com uma capa escura
flutuando acima do deslizamento de pedras.
— Os outros estão de volta com Darda — disse Columba, indo
até o elfo naquele momento — e McGristle está perseguindo...
Kellindil não respondeu nem olhou para a ranger. Ele assentiu
bruscamente, levando o olhar de Columba para cima da encosta até
a forma escura, que se moveu de novo para a montanha.
— Deixe-o ir — sugeriu Columba. — Aquele lá nunca foi nosso
inimigo.
— Eu tenho medo de deixar um drow sair livre — respondeu
Kellindil.
— Eu também — respondeu Columba — mas temo mais as
consequências se McGristle encontrar o drow.
— Voltaremos a Maldobar e nos livraremos desse homem —
Kellindil sugeriu — então você e os outros podem retornar a
Sundabar para sua reunião. Tenho parentes nessas montanhas;
juntos iremos vigiar nosso amigo de pele escura e ver se ele não
causa nenhum mal.
— Concordo — disse Columba.
Ela se virou e começou a andar, e Kellindil, sem precisar de mais
nada para convencê-lo, virou-se para seguir.
O elfo fez uma pausa e olhou para trás uma última vez. Então,
alcançou sua mochila e sacou um frasco, depois pousou-o em
campo aberto no chão. Quase como uma reflexão tardia, Kellindil
sacou um segundo item, este de seu cinto, e deixou cair no chão ao
lado do frasco. Satisfeito, se virou e seguiu a ranger.

Quando Roddy McGristle voltou de sua perseguição selvagem e


infrutífera, Columba e os outros já tinham guardado tudo e estavam
preparados para sair.
— Vamos atrás do drow — proclamou Roddy. — Ele ganhou um
pouco de tempo, mas dá pra alcançar rápido.
— O drow se foi — disse Columba bruscamente. — Não devemos
persegui-lo mais.
O rosto de Roddy se enrugou em descrença e parecia estar à
beira de uma explosão.
— Darda precisa urgentemente de descanso! — Columba rosnou,
sem pensar em retroceder. — As flechas de Kellindil estão quase
esgotadas, assim como nossos suprimentos.
— Não vou esquecer tão facilmente os Thistledowns! — Roddy
declarou.
— Nem o drow — Kellindil colocou.
— Os Thistledowns já foram vingados — acrescentou Columba —
e você sabe que é verdade, McGristle. O drow não os matou, mas
definitivamente matou seus assassinos!
Roddy rosnou e se virou. Era um caçador de recompensas
experiente e, portanto, um investigador experiente. Ele havia
descoberto a verdade há muito tempo, mas não podia ignorar a
cicatriz no rosto ou a perda de sua orelha — ou a alta recompensa
pela cabeça do drow.
Columba antecipou e entendeu seu raciocínio silencioso.
— O povo de Maldobar não estará tão ansioso para ver o drow
morto quando souberem a verdade sobre o massacre — disse —, e
nem tão disposto a pagar, eu acho.
Roddy lançou um olhar furioso sobre ela, mas, novamente, não
podia contestar sua lógica. Quando o grupo de Columba começou a
voltar para Maldobar, Roddy McGristle foi com eles.

Drizzt voltou a descer a montanha mais tarde naquele dia,


procurando por algo que lhe dissesse o paradeiro de seus
perseguidores. Ele encontrou o frasco de Kellindil e aproximou-se
hesitantemente, depois relaxou quando notou o outro item ao lado
dele, a pequena adaga que havia tirado do sprite, a mesma que
usara para cortar a corda do arco élfico em seu primeiro encontro.
O líquido dentro do frasco tinha um cheiro doce, e o drow, com a
garganta ainda seca do pó da rocha, deu um gole com prazer. Uma
série de calafrios dormentes correu pelo corpo de Drizzt,
refrescando-o e revitalizando-o. Ele quase não comeu por vários
dias, mas a força que tinha escoado de sua forma, até então frágil,
retornou em uma explosão repentina. Sua perna rasgada ficou
entorpecida por um momento, e Drizzt sentiu que ela, também, se
fortalecia.
Uma onda de tontura cobriu Drizzt então, e ele cambaleou até a
sombra de uma rocha próxima e sentou-se para descansar.
Quando acordou, o céu estava escuro e cheio de estrelas, e ele
se sentia muito melhor. Mesmo sua perna, tão rasgada por deslizar
pela avalanche, havia tornado a conseguir suportar seu peso. Drizzt
sabia quem tinha deixado o frasco e a adaga para ele e, agora que
entendeu a natureza da poção de cura, sua confusão e indecisão só
cresciam.
PARTE 3
Montólio
PARA OS DIVERSOS POVOS DO MUNDO, nada é tão fora de
alcance, e ao mesmo tempo tão pessoal, quanto o conceito de
deuses. Minha experiência em minha pátria havia me mostrado
pouco sobre os seres sobrenaturais além das influências da
divindade vil dos drow, a Rainha Aranha, Lolth.
Depois de testemunhar a carnificina a serviço de Lolth, demorei a
aceitar o conceito de qualquer deus, de qualquer ser que pudesse
ditar códigos de comportamento de toda uma sociedade. A moral
não é uma força interna? E se ela é, os princípios são ditados ou
percebidos?
Então, a próxima pergunta seria sobre os próprios deuses: tais
entidades seriam, na verdade, seres reais ou manifestações de
crenças compartilhadas? Os elfos negros são maus porque seguem
os preceitos da Rainha Aranha ou seria Lolth um ponto culminante
da conduta naturalmente maligna dos drow?
Da mesma forma, quando os bárbaros de Vale do Vento Gélido
atravessam a tundra para a guerra, gritando o nome de Tempus, o
Senhor das Batalhas, eles estão seguindo os preceitos de Tempus,
ou Tempus é apenas o nome que eles dão às suas ações?
Isso, eu não posso responder. Nem, pelo que percebi, qualquer
outra pessoa. No fim, para a tristeza de um pregador, a escolha de
um deus é pessoal. Um missionário pode coagir e enganar os
futuros discípulos, mas nenhum ser racional pode realmente seguir
as ordens determinadas por qualquer figura divina se tais ordens
forem contrárias aos seus próprios princípios. Nem eu, Drizzt
Do’Urden, nem meu pai, Zaknafein, jamais poderíamos nos tornar
discípulos da Rainha Aranha. E Wulfgar de Vale do Vento Gélido,
meu amigo nos últimos anos, embora ainda possa gritar para o
Deus da Batalha, não agrada a tal entidade chamada Tempus,
exceto nas ocasiões em que usa seu poderoso martelo de guerra.
Eu não sei qual é a opção correta — e não me importo.
— Drizzt Do’Urden
CAPÍTULO 11
Inverno
DRIZZT ESCOLHEU TRILHAR ENTRE AS MONTANHAS altas e
rochosas por dias, abrindo tanto espaço entre ele e a aldeia de
fazendeiros — e as horríveis lembranças — quanto podia. A decisão
de fugir não tinha sido consciente; se Drizzt estivesse menos fora de
si, poderia ter visto a caridade nos presentes do elfo, a poção de
cura e a adaga devolvida, como uma possível dica de uma amizade
futura.
Mas as lembranças de Maldobar e a culpa que pesava nos
ombros do drow não seriam facilmente descartadas. A aldeia
agrícola tornou-se simplesmente mais uma parada na busca para
encontrar um lar, uma busca que acreditava ser cada vez mais inútil.
Drizzt perguntou-se como poderia até mesmo ir para a próxima
aldeia que encontrasse. O potencial de tragédia tinha ficado bem
claro. Ele não parou para pensar que a presença dos barghests
poderia ter sido uma circunstância incomum, e que, talvez, na
ausência de tais demônios, seu encontro poderia ter sido diferente.
Neste ponto baixo de sua vida, todos os pensamentos de Drizzt
concentraram-se em uma única palavra que ecoava
interminavelmente em sua cabeça e cortava seu coração: “drizzit”.
A trilha de Drizzt eventualmente levou-o a uma passagem larga
nas montanhas e a um desfiladeiro íngreme e rochoso preenchido
com a névoa de um rio que rugia muito abaixo. O ar estava ficando
mais frio, algo que Drizzt não entendia, e o vapor úmido parecia
agradável ao drow. Ele desceu o penhasco rochoso, uma jornada
que levou a maior parte do dia, e encontrou a margem do rio em
cascata.
Drizzt tinha visto rios no Subterrâneo, mas nenhum deles poderia
rivalizar com esse. O Rauvin saltava através das pedras, espirrando
gotículas de água. Ele se aglomerava entre grandes pedregulhos,
passava por campos de pedras menores e mergulhava de repente
em quedas de cinco vezes a altura do drow. Drizzt ficou encantado
com a visão e o som, mas, mais do que isso, também viu as
possibilidades de manter aquele lugar como um santuário. Muitas
calhas margeavam o rio, em piscinas estáticas onde a água tinha se
desviado da corrente do fluxo principal. Lá também se reuniam
peixes, descansando de suas lutas contra a corrente forte.
A visão causou um nó na barriga de Drizzt. Ele se ajoelhou sobre
uma piscina, com sua mão preparada para atacar. Levou muitas
tentativas para entender a refração da luz solar através da água,
mas o drow foi rápido e esperto o bastante para aprender esse jogo.
A mão de Drizzt mergulhou de repente e voltou segurando
firmemente uma truta de trinta centímetros de comprimento.
Drizzt jogou o peixe longe da água, deixando-o saltar sobre as
pedras, e logo pegou outro. Ele comeria bem naquela noite, pela
primeira vez desde que fugiu da região da aldeia de fazendeiros, e
tinha bastante água clara e fria para satisfazer sua sede.
Aquele lugar era chamado de Estreito do Orc Morto por aqueles
que conheciam a região. No entanto, o título era um pouco errado,
porque, embora centenas de orcs houvessem mesmo morrido
naquele vale rochoso em inúmeras batalhas contra legiões
humanas, milhares mais ainda viviam ali, espreitando nas muitas
cavernas das montanhas, prestes a atacar os intrusos. Poucas
pessoas iam ali, e nenhuma delas com bom senso.
Para Drizzt, ingênuo, com o abastecimento fácil de comida e água
e a névoa confortável para combater o ar surpreendentemente
gelado, esse desfiladeiro parecia o refúgio perfeito.
O drow passou seus dias amontoado nas sombras seguras das
muitas rochas e pequenas cavernas, preferindo pescar e colher
alimentos nas horas escuras da noite. Ele não via esse estilo
noturno como um retorno a qualquer coisa que já tenha sido.
Quando saiu do Subterrâneo, determinou que viveria entre os
moradores da superfície como um morador da superfície, e se
esforçou para acostumar-se ao sol durante o dia. Drizzt não tinha
mais tais ilusões. Escolheu as noites para suas atividades porque
eram menos dolorosas para seus olhos sensíveis e porque sabia
que quanto menos expusesse sua cimitarra ao sol, mais sua mágica
duraria.
No entanto, não levou muito tempo para Drizzt entender o por quê
de os habitantes da superfície parecerem preferir a luz do dia. Sob
os raios quentes do sol, o ar ainda era tolerável, ainda que um
pouco frio. Durante a noite, Drizzt descobriu que geralmente tinha
que se refugiar da brisa gelada que escorria pelas bordas íngremes
do desfiladeiro repleto de névoa. O inverno estava se aproximando
do norte, mas o drow, criado no mundo sem estações do
Subterrâneo, não tinha como saber disso.
Em uma dessas noites, com o vento soprando brutalmente a
noroeste, tão gelado que adormecia as mãos do drow, Drizzt chegou
a uma conclusão importante. Mesmo com Guenhwyvar ao lado dele,
amontoada sob uma saliência baixa, Drizzt sentia uma dor severa
crescendo em suas extremidades. O nascer do sol estava a muitas
horas de distância, e Drizzt se perguntava seriamente se iria
sobreviver para vê-lo.
— Muito frio, Guenhwyvar — ele gaguejou através de seus
dentes que se chocavam. — Muito frio.
Ele flexionou seus músculos e se moveu vigorosamente, tentando
restaurar a circulação perdida. Então se preparou mentalmente,
pensando nos tempos passados quando estava quente, tentando
derrotar o desespero e enganar seu próprio corpo para esquecer o
frio. Um único pensamento se destacou claramente, uma lembrança
das cozinhas na academia de Menzoberranzan. No Subterrâneo
sempre quente, Drizzt nunca havia considerado o fogo como uma
fonte de calor. Até então, Drizzt tinha visto o fogo como apenas um
método de cozinhar, um meio de produzir luz e uma arma ofensiva.
Agora, assumiu uma importância ainda maior para o drow. Como os
ventos continuando a soprar cada vez mais frios, Drizzt percebeu,
com horror, que só o calor do fogo poderia mantê-lo vivo.
Ele olhou ao redor para procurar algo que pudesse acender. No
Subterrâneo, queimava hastes de cogumelos, mas nenhum
cogumelo era grande o bastante na superfície. Havia plantas,
porém, árvores que eram ainda maiores do que os fungos do
Subterrâneo.
— Pega uma… haste — Drizzt gaguejou para Guenhwyvar, sem
conhecer nenhuma palavra para madeira ou árvore. A pantera o
olhou com curiosidade.
— Fogo — implorou Drizzt. Ele tentou se levantar, mas percebeu
que suas pernas e pés estavam dormentes. Então, a pantera
entendeu. Guenhwyvar rosnou uma vez e correu para a noite. A
grande gata quase tropeçou sobre uma pilha de ramos e galhos que
tinham sido deixados — por quem, Guenhwyvar não sabia — logo
do lado de fora da entrada. Drizzt, preocupado com sua
sobrevivência no momento, sequer questionou o retorno súbito da
gata.
Drizzt tentou, sem sucesso, acender uma fogueira durante muitos
minutos, golpeando sua adaga contra uma pedra. Finalmente,
entendeu que o vento impedia que as faíscas caíssem, então levou
a madeira para uma área mais protegida. Agora suas pernas doíam,
e sua própria saliva congelava ao longo de seus lábios e queixo.
Então uma faísca atingiu a pilha seca. Drizzt abanou
cuidadosamente a pequena chama, mantendo-a entre suas mãos
para evitar que a atingisse com muita força.

— A fogueira foi acesa — disse um elfo ao companheiro.


Kellindil assentiu com gravidade, sem saber ao certo se ele e
seus companheiros élficos haviam agido certo ao ajudar o drow.
Kellindil havia retornado de Maldobar, enquanto Columba e os
outros partiram para Sundabar, e encontrou-se com uma pequena
família élfica, parentes seus, que morava nas montanhas perto do
Estreito do Orc Morto. Com a ajuda especializada, o elfo teve pouca
dificuldade em localizar o drow e, juntos, ele e os seus vinham
observando-o curiosamente ao longo das últimas semanas.
O estilo de vida inocente de Drizzt não dissipou todas as duvidas
do elfo cauteloso, uma vez que Drizzt era um drow, afinal, de pele
negra aos olhos e de coração negro por reputação.
Ainda assim, o suspiro de Kellindil foi de alívio quando também
notou o brilho leve e distante. O drow não congelaria, e Kellindil
acreditava que este drow não merecia tal destino.

Depois da refeição naquela noite, Drizzt recostou-se em


Guenhwyvar — e a pantera aceitou alegremente o calor do corpo
compartilhado — e olhou para as estrelas, brilhando intensamente
no ar frio.
— Você se lembra de Menzoberranzan? — perguntou à pantera.
— Você lembra de quando nos conhecemos?
Se Guenhwyvar o entendeu, a gata não deu nenhuma indicação.
Com um bocejo, Guenhwyvar se enrolou em Drizzt e colocou a
cabeça entre duas patas estendidas.
Drizzt sorriu e esfregou grosseiramente a orelha da pantera. Ele
havia conhecido Guenhwyvar em Magace, a escola de magia da
Academia, quando a pantera estava sob a posse de Masoj Hun’ett,
o único drow que Drizzt já havia matado. Drizzt tentou
deliberadamente não pensar nesse incidente agora. Com o fogo
queimando vivamente, aquecendo os dedos dos pés, aquela não
era uma noite para memórias desagradáveis. Apesar dos muitos
horrores que enfrentara na cidade onde tinha nascido, Drizzt
encontrou alguns prazeres lá e aprendeu muitas lições úteis. Mesmo
Masoj ensinou-lhe coisas que agora o ajudavam mais do que jamais
teria acreditado. Tornando a olhar para as chamas crepitantes,
Drizzt pensou que, se não fosse por suas tarefas de aprendiz de
acender velas, sequer teria sabido como fazer uma fogueira.
Inegavelmente, tal conhecimento o salvou de uma morte gelada.
O sorriso de Drizzt foi de curta duração à medida que seus
pensamentos continuavam por essas vias. Não tantos meses depois
daquela lição particularmente útil, Drizzt fora forçado a matar Masoj.
Drizzt recostou-se novamente e suspirou. Sem perigo e nem
nenhuma companhia hostil aparentemente iminente, este talvez
fosse o período mais simples de sua vida, mas nunca antes as
complexidades de sua existência o dominaram tanto.
Ele foi arrancado de sua tranquilidade um momento depois,
quando um grande pássaro, uma coruja com penas fofas, de
formato semelhante a chifres em sua cabeça arredondada, correu
repentinamente por cima. Drizzt riu de sua própria incapacidade de
relaxar; no segundo que levara para reconhecer o pássaro como
algo nada ameaçador, já tinha se levantado e sacado sua cimitarra e
sua adaga. Guenhwyvar também reagiu ao pássaro, mas de uma
maneira muito diferente. Com Drizzt de repente de pé e fora do
caminho, a pantera se aproximou do calor do fogo, esticou-se
languidamente e bocejou de novo.

A coruja voou silenciosamente em brisas invisíveis, levantando-se


com a névoa do vale do rio oposto à parede que Drizzt
originalmente havia descido. O pássaro deslizou durante a noite até
um espesso bosque de abetos ao lado de uma montanha, chegando
a descansar em uma ponte de madeira e corda construída através
dos galhos mais altos de três árvores. Depois de alguns instantes, o
pássaro tocou um pequeno sino de prata, preso à ponte para essas
ocasiões.
Um momento depois, o pássaro tocou o sino novamente.
— Já estou indo — veio uma voz de baixo. — Paciência, Piante.
Deixe um homem cego andar em um ritmo confortável!
Como se compreendesse, e desfrutasse da brincadeira, a coruja
tocou o sino pela terceira vez.
Um homem velho com um enorme bigode cinzento similar a uma
escova e olhos leitosos apareceu na ponte. Ele tropeçou e quicou
até chegar ao pássaro. Montólio costumava ser um ranger de
grande fama, que agora vivia seus últimos anos, por escolha
própria, isolado nas montanhas e cercado pelas criaturas que ele
mais amava (não considerava humanos, elfos, anões ou qualquer
uma das outras raças inteligentes parte delas). Apesar de sua idade
considerável, Montólio permanecia alto e ereto, ainda que os anos
tivessem deixado suas marcas no eremita, enrugando uma mão que
agora mais parecia as garras do pássaro do qual ele se aproximava.
— Paciência, Piante — murmurou repetidamente. Alguém que o
observasse abrindo caminho com tanta facilidade sobre a ponte
traiçoeira nunca teria adivinhado que ele era cego, e aqueles que
conheciam Montólio certamente não o descreveriam assim. Em vez
disso, poderiam ter dito que seus olhos não funcionavam, mas
rapidamente acrescentariam que ele não precisava deles. Com suas
habilidades e conhecimento, e com seus muitos amigos animais, o
velho ranger “via” mais do mundo ao seu redor do que a maioria
daqueles com visão normal.
Montólio estendeu o braço, e a grande coruja pousou sobre ele,
encontrando um apoio firme na pesada manga de couro do homem.
— Você viu o drow? — Montólio perguntou.
A coruja respondeu com um piado, depois fez uma complicada
série de bufões e pios que Montólio absorveu, pesando todos os
detalhes. Com a ajuda de seus amigos, particularmente essa coruja
bastante tagarela, o ranger havia monitorado o drow por vários dias,
curioso sobre o porquê de um elfo negro vagar pelo vale. A
princípio, Montólio supusera que o drow estava de alguma forma
conectado com Graul, o chefe dos orcs da região, mas com o
passar do tempo, o ranger começou a criar suspeitas diferentes.
— Um bom sinal — observou Montólio quando a coruja
assegurou-lhe que o drow ainda não tinha entrado em contato com
as tribos de orcs. Graul já era maligno o suficiente sem ter aliados
tão poderosos quanto os elfos negros!
Ainda assim, o ranger não conseguia descobrir por que os orcs
não haviam procurado o drow. Provavelmente ainda não o tinham
visto; o drow se esforçava para permanecer discreto, sem acender
nenhuma fogueira (até esta noite) e saindo apenas após o pôr do
sol. Ou, mais provavelmente, Montólio pensou enquanto refletia
mais sobre o assunto, os orcs haviam visto o drow, mas ainda não
haviam tido coragem de entrar em contato.
De qualquer forma, toda a situação estava se provando uma
distração bem-vinda para o ranger, enquanto seguia as rotinas
diárias de preparar sua casa para o próximo inverno. Ele não temia
a aparição do drow. Montólio não temia muita coisa — e se o drow e
os orcs não fossem aliados, o conflito resultante poderia valer a
pena assistir.
— Pode ir — o ranger disse para aplacar a coruja queixosa. — Vá
e cace alguns ratos!
A coruja saiu de imediato, rodeou uma vez por baixo, e depois por
cima da ponte, e dirigiu-se para a noite.
— Só tome cuidado para não comer nenhum dos ratos que eu
mandei para vigiar o drow! — Montólio gritou para o pássaro e riu,
sacudindo seus longos cachos cinzentos, então voltou para a
escada no final da ponte. Ele prometeu, ao descer, que logo pegaria
sua espada e descobriria o que esse elfo negro em particular
poderia desejar na região.
O velho ranger fazia muitas promessas assim.

Os disparos de aviso do outono deram lugar rapidamente ao


ataque do inverno. Não demorou muito para Drizzt descobrir o
significado das nuvens cinzentas, mas quando a tempestade caiu,
daquela vez na forma de neve em vez de chuva, o drow ficou
realmente espantado. Ele tinha visto a brancura ao longo das partes
altas das montanhas, mas nunca tinha chegado suficientemente alto
para inspecioná-la e simplesmente supôs que fosse uma coloração
das rochas. Agora, Drizzt observava os flocos brancos descerem no
vale; eles desapareciam nas corredeiras do rio, mas se acumulavam
nas pedras.
Quando a neve começou a se acumular e as nuvens ficaram cada
vez mais baixas no céu, Drizzt chegou a uma conclusão terrível.
Rapidamente convocou Guenhwyvar para o lado dele.
— Devemos encontrar um abrigo melhor — explicou à pantera
cansada. Guenhwyvar só havia sido liberada para sua casa astral
no dia anterior. — E devemos estocar madeira para nossas
fogueiras.
Várias cavernas se espalhavam pelo vale daquele lado do rio.
Drizzt encontrou uma, não só profunda e escura, mas também
protegida do vento por uma crista alta de pedra. Ele entrou, parando
ainda do lado de dentro para deixar seus olhos se adaptarem ao
brilho cegante da neve.
O chão da caverna era irregular e seu teto não era alto. Grandes
pedregulhos estavam espalhados de forma aleatória e, ao lado,
perto de um deles, Drizzt notou uma sombra mais escura, indicando
uma segunda câmara. Ele colocou sua braçada de madeira no chão
e começou a ir em direção a ela, então parou de repente: tanto ele
quanto Guenhwyvar haviam sentido outra presença.
Drizzt sacou sua cimitarra, deslizou para trás do pedregulho e
olhou em volta. Com sua infravisão, o outro habitante da caverna,
uma bola quente e brilhante, consideravelmente maior do que o
drow, não era difícil de detectar. Drizzt soube imediatamente o que
era, embora ainda não tivesse nenhum nome para a criatura. Ele
havia visto essa criatura de longe várias vezes, observando-a
enquanto, com habilidade — e uma velocidade surpreendente,
considerando o seu tamanho — pegava os peixes no rio.
Seja lá como se chamasse, Drizzt não desejava lutar pela
caverna; havia outros buracos na área, mais facilmente alcançáveis.
O grande urso marrom, no entanto, parecia ter um desejo
diferente. A criatura agitou-se de repente e se elevou nas patas
traseiras, seu rugido de avalanche ecoou por toda a caverna e suas
garras e dentes se tornaram bem visíveis.
Guenhwyvar, a entidade astral da pantera, conhecia o urso como
um antigo rival, e um que os gatos sábios faziam o possível para
evitar. Ainda assim, a pantera corajosa saltou bem na frente de
Drizzt, disposta a enfrentar a criatura maior para que seu mestre
pudesse escapar.
— Não, Guenhwyvar! — Drizzt comandou, e agarrou a gata e
puxou-a para trás de si até estar novamente na dianteira.
O urso, outro dos muitos amigos de Montólio, não se moveu para
atacar, mas manteve sua posição com ferocidade, não apreciando a
interrupção do sono tão aguardado.
Drizzt sentiu algo ali que não podia explicar — não uma amizade
com o urso, mas uma compreensão estranha do ponto de vista da
criatura. Ele se achou tolo ao embainhar sua lâmina, mas não podia
negar a empatia que sentia, quase como se estivesse vendo a
situação pelos olhos do urso.
Cautelosamente, Drizzt aproximou-se, atraindo o urso para seu
olhar. O urso parecia quase surpreso, mas gradualmente baixou as
garras e a careta de seu rosnado tornou-se uma expressão que
Drizzt entendeu como curiosidade.
Drizzt alcançou lentamente a bolsa e tirou um peixe que estava
guardando para o jantar. Atirou-o para o urso, que o cheirou uma
vez, depois engoliu, praticamente sem mastigar.
Outro longo momento de observação se seguiu, mas a tensão
desapareceu. O urso arrotou uma vez, recuou e logo estava
roncando, satisfeito.
Drizzt olhou para Guenhwyvar e deu de ombros impotentemente,
sem ter ideia de como havia se comunicado tão profundamente com
o animal. A pantera havia aparentemente entendido as conotações
da troca, também, porque o pelo de Guenhwyvar já não estava mais
eriçado.
Durante o resto do tempo que Drizzt passou naquela caverna, fez
questão de, sempre que tivesse comida extra, deixar cair um
bocado para o urso adormecido. Às vezes, especialmente se Drizzt
tivesse jogado um peixe, o urso sentia o cheiro e despertava por
tempo suficiente para engolir a refeição. Mais frequentemente, no
entanto, o animal ignorava a comida, roncava ritmicamente e
sonhava com mel, frutas e ursas, e tudo o que os ursos sonhavam.

— Ele está morando com Algazarra? — Montólio ofegou quando


descobriu por intermédio de Piante que o drow e o urso genioso
estavam dividindo a caverna de duas câmaras. Montólio quase caiu
— e teria caído, se não estivesse tão perto do tronco da árvore de
apoio. O velho ranger se recostou ali, atordoado, coçando a barba
por fazer e cofiando o bigode. Conhecia o urso há vários anos, e até
mesmo ele não estava certo se estaria disposto a partilhar uma
moradia com ele. Algazarra era uma criatura facilmente irritável,
como muitos dos orcs estúpidos de Graul tinham aprendido ao longo
dos anos.
— Eu acho que Algazarra está cansado demais para discutir —
Montólio racionalizou, mas sabia que algo mais estava acontecendo.
Se um orc ou um goblin tivesse entrado naquela caverna, Algazarra
teria esmagado a criatura sem pensar duas vezes. No entanto, o
drow e sua pantera estavam lá, dia após dia, acendendo sua
fogueira na câmara externa, enquanto Algazarra roncava satisfeito.
Como um ranger, e conhecendo muitos outros rangers, Montólio
viu e ouviu falar sobre coisas estranhas. Até agora, porém, ele
sempre considerou a habilidade inata de se conectar mentalmente
com animais selvagens como sendo algo de domínio exclusivo dos
elfos da superfície, sprites, halflings, gnomos e humanos que
haviam treinado no caminho da floresta.
— Como um elfo negro saberia sobre um urso? — Montólio
perguntou em voz alta, ainda coçando a barba. O ranger considerou
duas possibilidades: ou havia mais na raça drow do que ele sabia,
ou este elfo negro em particular não era semelhante aos seus. Dado
o comportamento já estranho do elfo, Montólio supôs que fosse a
última opção, embora desejasse descobrir com certeza. Sua
investigação teria que esperar, no entanto. A primeira neve já havia
caído, e o ranger sabia que a segunda, e a terceira, e muitas outras,
não tardariam. Nas montanhas ao redor do Estreito do Orc Morto
havia pouco movimento, uma vez que as neves começaram.

Guenhwyvar provou ser a salvação de Drizzt através das


semanas seguintes. Naquelas ocasiões em que a pantera estava no
Plano Material, Guenhwyvar saía entre as nevascas geladas e
profundas, caçando e, mais importante, trazendo de volta madeira
para o fogo.
Ainda assim, as coisas não eram fáceis para o drow deslocado.
Todos os dias, Drizzt teve que ir até o rio e quebrar o gelo que se
formava nas partes mais lentas, as piscinas de pesca de Drizzt, ao
longo de sua margem. Não era uma caminhada longa, mas a neve
logo estava profunda e traiçoeira, muitas vezes deslizando pela
encosta atrás de Drizzt para enterrá-lo em um abraço congelado.
Várias vezes, Drizzt cambaleava de volta para sua caverna, incapaz
de sentir qualquer coisa em suas mãos e pernas. Ele aprendeu
rapidamente a deixar o fogo aceso antes de sair, porque após seu
retorno, não tinha forças para segurar a adaga e a pedra para
acender uma faísca.
Mesmo quando a barriga de Drizzt estava cheia e estava cercado
pelo brilho do fogo e pela pele de Guenhwyvar, estava com frio e
completamente miserável. Pela primeira vez em muitas semanas, o
drow questionou sua decisão de deixar o Subterrâneo e, à medida
que seu desespero crescia, questionou sua decisão de deixar
Menzoberranzan.
— Certamente, sou um sem teto infeliz — muitas vezes queixava-
se naqueles momentos não mais tão raros de autopiedade. — E
com certeza vou morrer aqui, com frio e sozinho.
Drizzt não tinha ideia do que estava acontecendo no mundo
estranho à sua volta. Será que o calor que encontrou quando
chegou ao mundo da superfície retornaria em algum momento? Ou
seria uma maldição vilanesca, talvez dirigida a ele pelos seus
inimigos de Menzoberranzan? Essa confusão levou Drizzt a um
dilema problemático: deveria permanecer na caverna e tentar
aguardar o fim da tempestade (porque como mais poderia chamar o
inverno)? Ou deveria sair do vale do rio e procurar um clima mais
quente?
Ele teria saído, e a jornada pelas montanhas certamente o
mataria, mas notou outro evento coincidindo com o clima severo. As
horas de luz do dia diminuíram e as horas da noite aumentaram.
Será que o sol desapareceria completamente, engolindo a superfície
em uma escuridão e frio eternos? Drizzt duvidou dessa
possibilidade, então, usando um pouco de areia e um frasco vazio
que tinha em sua bolsa, começou a medir o tempo da luz e da
escuridão.
Suas esperanças afundavam cada vez que seus cálculos
mostravam um pôr do sol mais rápido e, à medida que a estação se
aprofundava, o desespero de Drizzt também. Sua saúde também
diminuiu. Ele realmente parecia uma coisa infeliz, magro e trêmulo,
quando percebeu pela primeira vez o ponto de reviravolta da
estação, o solstício de inverno. Ele mal acreditava em suas
descobertas — suas medidas não eram tão precisas —, mas,
depois dos próximos dias, Drizzt não podia negar o que a areia
caindo dizia a ele.
Os dias estavam durando mais tempo.
A esperança de Drizzt voltou. Ele suspeitava de uma variação
sazonal desde que os primeiros ventos frios começaram a soprar
meses antes. Havia visto os ursos pescando mais diligentemente à
medida que o tempo piorava, e agora acreditava que a criatura tinha
antecipado o frio e tinha armazenado a gordura para dormir.
Essa crença, e suas descobertas sobre a luz do dia,
convenceram a Drizzt de que tal desolação congelada não duraria.
No entanto, o solstício não trouxe nenhum alívio imediato. O
vento soprava mais e a neve continuava a se acumular. Mas Drizzt
estava determinado novamente, e seria preciso mais do que um
inverno para derrotar o drow indomável.
Então aconteceu — quase da noite para o dia, pelo que parecia.
As neves diminuíram, o rio correu com menos gelo, e o vento
deslocou-se para trazer um ar mais quente. Drizzt sentiu uma onda
de vitalidade e esperança, uma libertação do sofrimento e da culpa
que ele não podia explicar. Drizzt não conseguia perceber que
impulsos eram esses que se agarravam a ele, não tinha nome ou
conceito para tais, mas estava tão imerso na primavera atemporal
como todas as criaturas naturais do mundo da superfície.
Uma manhã, quando Drizzt terminou a refeição e preparou-se
para a cama, seu companheiro de quarto adormecido se afastou da
câmara lateral, visivelmente mais delgado, mas ainda formidável.
Drizzt observou com atenção o urso cambaleando, se perguntando
se deveria convocar Guenhwyvar ou sacar sua cimitarra. O urso, no
entanto, não lhe deu atenção alguma. Ele se arrastou na direção
dele, parou para cheirar e lamber a pedra achatada que Drizzt
usava como prato, e entrou na luz do sol quente, parando na saída
da caverna para dar um bocejo e uma espreguiçada tão profunda
que Drizzt entendeu que a soneca do inverno estava no fim. Drizzt
também entendeu que a caverna ficaria lotada muito rapidamente
com o animal perigoso vagando, e decidiu que, talvez, com o clima
mais hospitaleiro, não valesse a pena lutar por ela.
Drizzt partiu antes que o urso voltasse, mas, para o prazer do
urso, ele havia deixado uma última refeição de peixe. Pouco tempo
depois, Drizzt estava se instalando em uma caverna mais rasa e
menos protegida a poucas centenas de metros abaixo da parede do
vale.
CAPÍTULO 12
Conhecer Seus Inimigos
O inverno se foi tão rápido quanto chegara. A neve diminuía a
cada dia e o vento do sul trouxe um ar que não era gelado. Drizzt
logo se instalou em uma rotina confortável; o maior problema que
enfrentou foi o brilho do sol que se refletia no chão ainda coberto de
neve. O drow tinha se adaptado bastante ao sol nos seus primeiros
meses na superfície, caminhando — e até mesmo combatendo — à
luz do dia. Agora, porém, com a neve branca lançando aquele
reflexo cegante em seu rosto, Drizzt mal conseguia enxergar.
Ele saia apenas à noite e deixava o dia para os ursos e outras
criaturas. Drizzt não estava muito preocupado; a neve logo
desapareceria, ou ao menos é o que imaginava, e poderia voltar
para a vida fácil que havia marcado os últimos dias antes do
inverno.
Uma noite, bem alimentado, bem descansado e sob a suave luz
de uma lua fascinante, Drizzt olhou para o outro lado do rio, até a
parede do vale.
— O que tem ali? — o drow sussurrou para si mesmo. Embora a
correnteza do rio estivesse forte com o derretimento da primavera,
mais cedo naquela noite, Drizzt encontrara um possível caminho
através dele, uma série de pedras grandes e não muito afastadas
que se elevavam acima da água.
A noite mal havia começado; a lua ainda não havia chegado ao
seu ápice no céu. Repleto do espírito de aventura e bom humor tão
típicos da estação, Drizzt decidiu dar uma olhada. Ele saltou para a
margem do rio e pulou levemente e agilmente pelas pedras. Para
um humano ou um orc — ou a maioria das outras raças do mundo
— atravessar as pedras molhadas, desigualmente espaçadas e,
muitas vezes, arredondadas, poderia ter parecido muito difícil e
traiçoeiro para sequer tentar, mas o drow ágil conseguiu passar com
bastante facilidade.
Ele desceu na outra margem correndo, saltando sobre ou ao
redor das muitas rochas e pedras sem pensar ou se importar. Quão
diferente seria seu comportamento se soubesse que estava agora
do lado do vale pertencente a Graul, o grande chefe dos orcs!

Uma patrulha orc viu o drow antes que chegasse a meio caminho
da parede do vale. Os orcs tinham visto o drow antes, em ocasiões
em que Drizzt estava pescando no rio. Por temer elfos negros, Graul
ordenou que seus lacaios mantivessem distância, imaginando que a
nevasca acabasse expulsando o intruso. Mas o inverno tinha
passado e o tal drow solitário tinha permanecido, e agora ele havia
atravessado o rio.
Graul torceu suas mãos de dedos grossos quando lhe deram a
notícia. O orc grande ficou um pouco aliviado pela crença de que o
drow estava sozinho e não era integrante de um grupo maior. Ele
poderia ser um batedor ou um renegado; Graul não podia saber com
certeza, e as implicações de ambas as possibilidades não
agradavam ao chefe dos orcs. Se o drow fosse um batedor, mais
elfos negros poderiam aparecer a seguir, e se o drow fosse um
renegado, poderia considerar os orcs como possíveis aliados.
Graul era o chefe por muitos anos, um mandato estranhamente
longo para os orcs caóticos. O grande orc tinha sobrevivido por não
se arriscar, e Graul não queria começar a se arriscar agora. Um elfo
negro poderia usurpar a liderança da tribo, uma posição que Graul
estimava muito. Isso, Graul não permitiria. Duas patrulhas orcs
saíram de buracos escuros logo depois, com ordens explícitas para
matar o drow.

Um vento frio soprava acima da parede do vale, e a neve estava


mais profunda ali, mas Drizzt não se importava. Grandes manchas
de abetos se lançavam diante dele, escurecendo os vales
montanhosos e convidando-o, depois de um inverno encurralado na
caverna, a explorar.
Ele já havia deixado quase um quilômetro e meio atrás de si
quando percebeu que estava sendo seguido. Não chegou a ver
nada, exceto talvez uma sombra fugaz pela visão periférica, mas
seus sentidos intangíveis de guerreiro deixavam claro, sem dúvida
alguma, de que havia mais gente ali. O drow foi para o lado de uma
inclinação íngreme, passou sobre um monte de árvores grossas e
correu para o cume alto. Quando chegou lá, deslizou atrás de uma
rocha e se virou para observar.
Sete formas escuras, seis humanoides e uma canina, grande,
saíram das árvores atrás dele, seguindo sua trilha com cuidado e
metodicamente. Daquela distância, Drizzt não conseguia notar a
raça, embora suspeitasse que fossem humanos. Olhou ao redor em
busca da melhor rota de fuga, ou da melhor área defensável.
Drizzt notou que sua cimitarra estava em uma mão, sua adaga na
outra. Quando percebeu plenamente que havia sacado as armas, e
que o grupo que o perseguia estava chegando desconfortavelmente
perto, o drow fez uma pausa e refletiu.
Ele poderia encarar os perseguidores ali e acertá-los enquanto
escalavam os últimos metros traiçoeiros da subida escorregadia.
— Não — grunhiu Drizzt, descartando tal possibilidade assim que
pensou nela. Poderia atacar, e provavelmente vencer, mas então,
que fardo de culpa carregaria por causa desse combate? Drizzt não
queria lutar, nem desejava nenhum contato. Ele já carregava toda a
culpa que podia suportar.
Ele ouviu as vozes de seus perseguidores, puxões guturais
semelhantes à língua goblin.
— Orcs — disse o drow silenciosamente, combinando o idioma
com o tamanho humano das criaturas.
Porém, tal reconhecimento não fez muito para mudar as atitudes
do drow. Drizzt não tinha amor por orcs —já tinha visto o suficiente
daquelas criaturas malcheirosas em Menzoberranzan —, mas
também não tinha nenhum motivo ou justificativa para lutar contra
esse bando. Ele se virou, escolheu um caminho, e fugiu pela noite.
A perseguição era obstinada; os orcs estavam perto demais para
que Drizzt os afastasse. Ele viu um problema se desenrolando,
porque se os orcs fossem hostis (e por seus gritos e grunhidos,
Drizzt acreditava que era o caso) então Drizzt havia perdido sua
oportunidade de combatê-los em um terreno favorável. A lua já
havia se posto há muito tempo e o céu tinha assumido a coloração
azulada do antes do amanhecer. Orcs não gostavam da luz do sol,
mas com o brilho da neve ao seu redor, Drizzt ficaria quase
impotente nela.
Teimosamente, o drow ignorou a opção da batalha e tentou
escapar da perseguição, voltando na direção do vale. Foi quando
Drizzt cometeu seu segundo erro, uma vez que outro bando de orcs,
acompanhado por um lobo e uma forma muito maior, um gigante de
pedra, estava à espera.
A trilha era bem nivelada, um lado dela caindo abruptamente por
uma encosta rochosa à esquerda do drow e o outro subindo tão
íngreme e tão rochoso quanto, à sua direita. Drizzt sabia que seus
perseguidores teriam poucos problemas para segui-lo em uma trilha
tão predeterminada, mas confiava apenas na velocidade agora,
tentando voltar para sua caverna defensável antes que o sol
cegante surgisse.
Um grunhido o alertou um momento antes que um enorme lobo
de pelos grossos, chamado de worg, pulasse sobre as rochas logo
acima dele e parasse à sua frente. O worg saltou em sua direção,
com as mandíbulas se fechando, tentando acertar sua cabeça.
Drizzt se abaixou imediatamente, sob o ataque, e sua cimitarra saiu
em um instante, num corte para alargar ainda mais a bocarra do
animal. O worg despencou com força atrás do drow, ainda girando,
sua língua cobrindo o sangue que jorrava.
Drizzt o golpeou novamente, deixando-o cair, mas os seis orcs
entraram correndo, brandindo lanças e porretes. Drizzt virou-se para
fugir e, em seguida, abaixou-se novamente, bem a tempo, quando
uma rocha arremessada passou, rolando ladeira abaixo.
Sem pensar duas vezes, Drizzt trouxe um globo de escuridão
sobre sua própria cabeça.
Os quatro orcs à frente mergulharam no globo sem perceber. Os
dois companheiros restantes pararam, agarrando suas lanças e
olhando nervosamente ao redor. Não podiam ver nada dentro da
escuridão mágica, mas pelos golpes de lâminas e os gritos
selvagens, parecia que havia todo um exército lutando lá dentro. Em
seguida, outro som se ouviu do escuro, o som do rosnado de um
felino.
Os dois orcs recuaram, olhando por cima dos ombros e
desejando que o gigante de pedra se apressasse e chegasse logo.
Um de seus companheiros orc, e depois outro, saiu fugindo da
escuridão, gritando de terror. O primeiro passou correndo por seus
semelhantes assustados, mas o segundo sequer conseguiu chegar
até eles.
Guenhwyvar jogou-se sobre o orc infeliz e atirou-o ao chão,
arrancando sua vida. A pantera mal desacelerou, pulando e
derrubando um dos dois que estavam do lado de fora, enquanto
tropeçava freneticamente para fugir. Os que sobraram do lado de
fora do globo cambaleavam sobre as pedras, e Guenhwyvar, depois
de terminar a segunda matança, pulou atrás deles.
Drizzt saiu do outro lado do globo ileso, com sua cimitarra e
adaga escorrendo sangue de orc. O gigante, enorme e de ombros
quadrados, com pernas tão grandes quanto troncos das árvores,
chegou para encará-lo, e Drizzt sequer hesitou. Saltou para uma
pedra grande, então saltou novamente, com sua cimitarra
apontando o caminho.
Sua agilidade e velocidade surpreenderam o gigante de pedra; o
monstro nunca chegou a conseguir levantar seu tacape ou sua mão
livre para bloquear. Mas a sorte não estava com o drow desta vez.
Sua cimitarra, encantada com a magia do Subterrâneo, tinha visto
muito da luz da superfície. Ela, ao ser pressionada contra a pele
dura como pedra do gigante de mais de quatro metros de altura, se
dobrou a quase noventa graus, e quebrou na altura do punho.
Drizzt recuou, traído pela primeira vez por sua arma de confiança.
O gigante uivou e levantou seu tacape, sorrindo maliciosamente até
uma forma negra se elevar sobre sua vítima pretendida e se chocar
no seu peito, rasgando com suas quatro garras violentas.
Guenhwyvar salvou Drizzt novamente, mas o gigante estava
longe de ter sido derrotado. Ele bateu e se debateu até que a
pantera voou para longe dele. Guenhwyvar tentou girar e voltar, mas
a pantera pousou no declive e seu impulso derrubou a cobertura de
neve. A gata deslizou e caiu, e finalmente libertou-se do escorregão,
ilesa, mas bem abaixo na montanha, longe de Drizzt e da batalha.
O gigante não sorria desta vez. O sangue jorrava de uma dúzia
de cortes fundos em seu peito e rosto. Atrás dele, na trilha, o outro
grupo orc, liderado por um segundo worg uivante, se aproximava
rapidamente.
Como qualquer guerreiro sábio obviamente superado em número,
Drizzt virou-se e correu.
Se os dois orcs que haviam fugido de Guenhwyvar tivessem
voltado ao declive, poderiam ter derrotado o drow. Os orcs, no
entanto, não eram famosos por sua coragem, e esses dois já
estavam do outro lado do declive e ainda estavam correndo, sem
sequer olhar para trás.
Drizzt correu pela trilha, procurando por algum jeito de poder
descer e se juntar à pantera. Nenhuma parte da encosta parecia
promissora, porque ele teria que seguir o caminho lentamente e com
cuidado, e com um gigante fazendo chover pedras na cabeça dele.
Subir parecia igualmente inútil com o monstro tão perto, então o
drow continuou correndo ao longo da trilha, esperando que ela não
terminasse tão cedo.
O sol começou a se mostrar no horizonte, só mais um problema
— um dos muitos, naquele momento — para o drow desesperado.
Compreendendo que a sorte estava contra ele, Drizzt de alguma
forma sabia, mesmo antes de virar a última curva fechada da trilha,
que tinha chegado ao fim da estrada. Um deslizamento de pedras
há muito tempo havia bloqueado a trilha. Drizzt parou e puxou sua
bolsa, sabendo que estava ficando sem tempo.
O grupo de orcs liderado pelo worg alcançou o gigante, ambos
ganhando confiança na presença do outro. Juntos, seguiram em
frente, com o worg maligno acelerando para assumir a liderança.
A criatura acelerou ao redor de uma curva fechada, tropeçando e
tentando parar quando se enroscou de repente em um laço de
corda. Worgs não eram criaturas estúpidas, mas ele não entendeu
completamente as terríveis implicações quando o drow empurrou
uma pedra arredondada sobre a borda do barranco. O worg não
havia entendido até que a corda se esticou e a pedra puxou a fera,
voando, para trás.
A armadilha simples tinha funcionado de forma perfeita, mas era
a única vantagem que Drizzt poderia esperar. Atrás dele, a trilha
estava totalmente bloqueada, e, aos lados, as encostas subiam e
caíam abruptamente demais para fugir por lá. Quando os orcs e o
gigante viraram a curva, hesitantes após verem seu worg ser levado
para um passeio bastante acidentado, Drizzt se firmou para
enfrentá-los com apenas uma adaga na mão.
O drow tentou conversar usando a língua goblin, mas os orcs não
o ouviriam. Antes que a primeira palavra deixasse a boca de Drizzt,
um deles já havia atirado sua lança.
A arma veio como um borrão para o drow cego, mas era uma
haste recurvada lançada por uma criatura desajeitada. Drizzt
facilmente esquivou-se e devolveu o lance com a adaga. O orc
podia ver melhor do que o drow, mas não era tão rápido. Ele pegou
a adaga facilmente — com a sua garganta. Gorgolejando, a criatura
caiu, e seu companheiro mais próximo agarrou a faca e a arrancou,
não para salvar o outro orc, mas apenas para colocar as mãos em
uma arma tão bem forjada.
Drizzt pegou a lança tosca e plantou os pés firmemente enquanto
o gigante de pedra se aproximava.
Uma coruja voou de repente sobre o gigante e deu um pio, mal
distraindo o monstro determinado. Um momento depois, porém, o
gigante caiu para frente, movido pelo peso de uma flecha que de
repente atingiu suas costas.
Drizzt viu a haste de plumas negras ainda balançando quando o
gigante irritado se virou. O drow não questionou a ajuda inesperada.
Dirigiu sua lança com todas as suas forças diretamente na parte
traseira do monstro.
O gigante teria se voltado para contra-atacar, mas a coruja deu
outro rasante e piou, e outra flecha assobiou, esta cravando no peito
do gigante. Outro pio, e outra flecha encontrou o alvo.
Os orcs atordoados pareciam desnorteados graças ao atacante
invisível, mas o brilho do sol da manhã na neve oferecia pouca
ajuda às criaturas noturnas. O gigante, atingido no coração,
continuou de pé com o olhar vazio, sem perceber que sua vida
estava no fim. O drow atacou com sua lança novamente por trás,
mas tal ação só serviu para derrubar o monstro para longe de Drizzt.
Os orcs olharam um para o outro e ao redor, perguntando-se
como poderiam fugir.
A coruja estranha mergulhou novamente, desta vez acima de um
orc, e deu um quarto pio. O orc, entendendo as implicações, acenou
com os braços e gritou, depois ficou em silêncio com uma flecha
cravada em seu rosto.
Os quatro orcs restantes fugiram, um subindo a encosta, outro
correndo de volta por onde tinha vindo e dois correndo em direção a
Drizzt.
Uma rotação hábil da lança fez sua haste bater no rosto do orc,
então Drizzt completou o movimento de rotação para desviar a
ponta da lança do outro orc para o chão. O orc deixou cair a arma,
percebendo que não conseguiria recuperá-la a tempo de parar o
drow.

O orc que subia a encosta percebeu sua desgraça quando a


coruja de sinalização se aproximou dele. A criatura aterrorizada
mergulhou atrás de uma pedra ao ouvir um pio, mas se fosse mais
inteligente, teria percebido seu erro. Pelo ângulo dos tiros que
haviam derrubado o gigante, o arqueiro deveria estar em algum
lugar naquele declive.
Uma flecha acertou sua coxa enquanto se agachava, fazendo
com que caísse, se retorcendo, de costas no chão íngreme. Com o
rosnado e os movimentos do orc, o arqueiro invisível (e que não via)
não precisava do último pio da coruja para mirar seu segundo tiro,
este atingindo o orc diretamente no peito e o silenciando para
sempre.

Drizzt inverteu sua direção imediatamente, atingindo o segundo


orc com a parte de trás da lança. Em um piscar de olhos, o drow
inverteu sua pegada pela terceira vez e dirigiu a ponta da lança na
garganta da criatura, cravando para cima, em direção a seu cérebro.
O primeiro orc que Drizzt tinha acertado cambaleou e sacudiu a
cabeça violentamente, tentando reorientar-se para a batalha. Ele
sentiu as mãos do drow agarrarem na frente de sua túnica suja de
pele de urso, e então sentiu uma lufada de ar enquanto voava sobre
a borda, seguindo a mesma rota do worg que havia sido pego antes
na armadilha.

Ao ouvir os gritos de seus companheiros moribundos, o orc na


trilha abaixou a cabeça e acelerou, acreditando piamente que
estava realmente sendo muito esperto por escolher aquela rota. No
entanto, mudou de ideia abruptamente quando virou uma curva e
correu diretamente para as patas de uma enorme pantera negra.

Drizzt recostou-se, exausto, contra a pedra, segurando sua lança


pronta para um ataque enquanto a coruja estranha flutuava de volta
para a lateral da montanha. A coruja manteve sua distância, porém,
descendo sobre o afloramento que forçava a curva fechada de uma
trilha a uma dúzia de passos de distância.
O movimento acima chamou a atenção do drow. Ele quase não
podia enxergar na luz ofuscante, mas conseguiu perceber uma
forma humanoide escolhendo um caminho cuidadoso em sua
direção.
A coruja partiu novamente, circulando acima do drow e piando, e
Drizzt agachou-se, alerta e nervoso, quando o homem escorregou
para uma posição atrás do esporão rochoso. No entanto, nenhuma
flecha seguiu a direção do pio da coruja. Em vez disso, veio o
arqueiro.
Ele era alto, ereto e muito velho, com um enorme bigode cinza e
cabelos grisalhos selvagens. O mais curioso de tudo eram seus
olhos leitosos brancos e sem pupilas. Se Drizzt não tivesse
testemunhado a exibição de arquearia do homem, teria acreditado
que o homem fosse cego. Os membros do velho também pareciam
frágeis, mas Drizzt não deixou as aparências enganá-lo. O arqueiro
especialista mantinha seu arco longo curvado e pronto, com uma
flecha firmemente presa, sem quase nenhum esforço. O drow não
precisava pensar muito para ver a eficiência mortal com a qual o
humano poderia usar aquela arma.
O velho disse algo em um idioma que Drizzt não conseguiu
entender, então em uma segunda língua, depois em goblin, o que
Drizzt entendia.
— Quem é você?
— Drizzt Do’Urden — o drow respondeu uniformemente, tendo
alguma esperança no fato de que poderia pelo menos se comunicar
com aquele adversário.
— Isso é um nome? — perguntou o velho. Ele riu e deu de
ombros. — Seja o que for, e quem quer que seja, e por que você
pode estar aqui, é de menor importância.
A coruja, percebendo o movimento, começou a piar e lançar-se
em rasantes, mas era tarde demais para o velho. Atrás dele,
Guenhwyvar surgiu ao redor de uma curva e se aproximou em uma
corrida, com as orelhas achatadas e os dentes descobertos.
Aparentemente inconsciente do perigo, o velho terminou o
pensamento.
— Você é meu prisioneiro agora.
Guenhwyvar emitiu um grunhido baixo e gutural e o drow sorriu
amplamente.
— Eu acho que não — respondeu Drizzt.
CAPÍTULO 13
Montólio
— AMIGO SEU? — O Velho Humano Perguntou Calmamente.
— Guenhwyvar — explicou Drizzt.
— É um gato grande?
— Ah, é — respondeu Drizzt.
O velho ranger aliviou a pressão na corda do arco e deixou a
flecha escorregar lentamente, apontando para baixo. Fechou os
olhos, inclinou a cabeça para trás e pareceu cair dentro de si
mesmo. Um momento depois, Drizzt percebeu que as orelhas de
Guenhwyvar se levantaram de repente, e o drow entendeu que esse
estranho humano estava de alguma forma fazendo um vínculo
telepático com a pantera.
— Mas é uma boa gata — disse o velho um momento depois.
Guenhwyvar saiu do afloramento, fazendo a coruja se afastar
voando em frenesi, e casualmente passou pelo velho, indo para o
lado de Drizzt. Aparentemente, a pantera havia abandonado todas
as preocupações de que o velho fosse um inimigo.
Drizzt considerou curiosas as ações de Guenhwyvar, vendo-as da
mesma forma que viu seu próprio acordo empático com o urso
naquela caverna na estação anterior.
— Boa gata — o velho disse novamente.
Drizzt recostou-se contra a pedra e relaxou sua mão na lança.
— Eu sou Montólio — o velho explicou com orgulho, como se o
nome significasse algo para o drow. — Montólio DeBrouchee
— É um prazer conhecê-lo e adeus — disse Drizzt sem rodeios.
— Se terminarmos a nossa reunião, então podemos seguir os
nossos próprios caminhos.
— Nós podemos — concordou Montólio — se nós dois assim
quisermos.
— Eu sou seu… prisioneiro… de novo? — perguntou Drizzt com
um pouco de sarcasmo na voz.
A sinceridade do riso resultante de Montólio trouxe um sorriso ao
rosto do drow apesar do seu cinismo.
— Meu? — o velho perguntou com incredulidade. — Não, não,
acredito que resolvemos essa questão. Mas você matou alguns
lacaios de Graul no dia de hoje, uma ação que o rei orc vai querer
punir. Deixe-me oferecer-lhe um quarto no meu castelo. Os orcs não
se aproximarão do lugar — mostrou um sorriso irônico e inclinou-se
para Drizzt para sussurrar, como se estivesse revelando um
segredo. — Eles não se aproximarão de mim, sabe? — Montólio
apontou para seus olhos estranhos. — Eles acreditam que sou um
mago maligno por que… — Montólio se esforçou para encontrar
pela palavra que transmitiria o pensamento, mas a linguagem
gutural era limitada e ele logo ficou frustrado.
Drizzt relembrou silenciosamente o curso da batalha, então o
maxilar dele abriu-se com uma surpresa inegável quando percebeu
a verdade do que havia suposto. O velho realmente era cego! A
coruja, circundando os inimigos e piando, conduzira seus disparos.
Drizzt olhou ao redor para o gigante e o orc mortos e sua mandíbula
não fechou; o velho não havia errado.
— Você vem? — Montólio perguntou. — Eu gostaria de saber
os... — novamente teve que procurar um termo apropriado —
“propósitos”… que um elfo negro teria pra passar um inverno em
uma caverna com Algazarra, o urso.
Montólio se envergonhou de sua inabilidade em conversar com o
drow, mas, pelo contexto, Drizzt pôde muito bem entender o que o
velho queria dizer, até mesmo ter uma ideia do significado de termos
estranhos como “inverno” e “urso”.
— Graul, o rei orc, tem mais dez mil guerreiros para enviar contra
você — observou Montólio, percebendo que o drow estava
demorando para aceitar a oferta.
— Eu não irei com você — declarou Drizzt por fim. O drow
realmente queria ir, queria aprender algumas coisas sobre este
homem notável, mas muitas tragédias haviam encontrado aqueles
que haviam cruzado o caminho de Drizzt.
O rosnado baixo de Guenhwyvar disse a Drizzt que a pantera não
aprovava sua decisão.
— Eu atraio problemas — Drizzt tentou explicar ao velho, à
pantera e a si mesmo. — Você ficaria melhor, Montólio DeBrouchee,
se ficasse longe de mim.
— Isso é uma ameaça?
— Um aviso — respondeu Drizzt. — Se você me levar, se você
me permitir ficar perto de você, então você estará condenado, assim
como os fazendeiros da aldeia.
Montólio ficou imediatamente alerta ante a menção da aldeia
agrícola distante. Ele tinha ouvido que uma família em Maldobar
tinha sido brutalmente assassinada e que uma ranger, Columba
Garra de Falcão, tinha sido chamada para ajudar.
— Eu não tenho medo da desgraça — disse Montólio, forçando
um sorriso. — Eu vivi por muitas… lutas, Drizzt Do’Urden. Eu lutei
em uma dúzia de guerras sangrentas e passei um inverno inteiro
preso na encosta de uma montanha com uma perna quebrada.
Matei um gigante com apenas uma adaga e… fiz amizade com cada
animal por cinco mil passos em qualquer direção. Não tema por mim
— mais uma vez veio aquele sorriso irônico e consciente. — Mas
então — Montólio disse lentamente —, não é por mim que você
teme.
Drizzt sentiu-se confuso e um pouco insultado.
— Você teme por si mesmo — continuou Montólio, sem medo. —
Autopiedade? Não combina com alguém com sua habilidade. Deixa
ela pra lá e venha comigo.
Se Montólio tivesse visto a carranca de Drizzt, teria adivinhado a
próxima resposta. Guenhwyvar, no entanto, percebeu, e a pantera
se chocou com força na perna de Drizzt.
Pela reação de Guenhwyvar, Montólio entendeu a intenção do
drow.
— A gata quer que você venha — ele observou. — Será melhor
do que uma caverna — prometeu —, e a comida é melhor do que
peixe meio cozido.
Drizzt olhou para Guenhwyvar e, novamente, a pantera bateu
nele, desta vez, com um grunhido mais alto e insistente.
Drizzt permaneceu inflexível, lembrando-se incisivamente da
imagem da carnificina naquela fazenda distante.
— Eu não vou — disse com firmeza.
— Então eu devo declarar você como um inimigo e um
prisioneiro! — Montólio rosnou, esticando a corda de seu arco em
prontidão. — Sua gata não o ajudará desta vez, Drizzt Do’Urden! —
Montólio inclinou-se, sorriu e sussurrou. — A gata concorda comigo.
Era demais para Drizzt. Ele sabia que o velho não dispararia, mas
o encanto traiçoeiro de Montólio rapidamente derrubou as defesas
mentais do drow, por mais firmes que fossem.
O que Montólio descreveu como um castelo acabou por ser uma
série de cavernas de madeira escavadas em torno das raízes de
abetos gigantes e bem próximas. Alpendres de galhos entrelaçados
aumentavam a proteção e, de alguma forma, conectavam as
cavernas, e uma parede baixa de pedras empilhadas rodeava todo o
complexo. Quando Drizzt se aproximou do lugar, notou várias
pontes de corda e madeira que cruzavam de árvore em árvore em
várias alturas, com escadas de cordas que levavam até o nível do
solo e com bestas montadas seguramente em intervalos bem
regulares.
O drow não se queixou de que o castelo era feito de madeira.
Drizzt havia passado três décadas em Menzoberranzan vivendo em
um maravilhoso castelo de pedra e cercado por muitas estruturas de
tirar o fôlego de tão belas, mas nenhuma delas parecia tão
acolhedora quanto a casa de Montólio.
Os pássaros chilrearam suas boas vindas à aproximação do
velho ranger. Os esquilos, até mesmo um guaxinim, pulavam
animados entre os galhos das árvores para se aproximarem dele —
embora continuassem à distância quando perceberam que uma
enorme pantera acompanhava Montólio.
— Eu tenho muitos quartos — explicou Montólio a Drizzt —,
muitos cobertores e muita comida.
Montólio odiava a língua limitada dos goblins. Ele tinha tantas
coisas que queria dizer, e tantas coisas que queria aprender com o
drow. Isso parecia impossível, se não excessivamente tedioso, em
uma linguagem tão básica e negativa por natureza, não projetada
para pensamentos ou conceitos complexos. A língua goblin tinha
mais de cem palavras para matar e para ódio, mas nenhuma para
emoções mais nobres, como a compaixão. A palavra goblin para
amizade poderia ser traduzida para o significado de uma aliança
militar temporária ou servidão a um goblin mais forte, e nenhuma
definição cabia às intenções de Montólio em relação ao elfo negro
solitário.
A primeira tarefa, então, o ranger decidiu, seria ensinar a este
drow a língua comum.
— Nós não podemos falar — não havia palavra para
“apropriadamente” em goblin, então Montólio teve que improvisar —
... bem... neste idioma — explicou a Drizzt —, mas terá que servir
enquanto eu ensinar a língua dos seres humanos — se você quiser
aprender.
Drizzt permaneceu hesitante em aceitar. Quando se afastou da
aldeia agrícola, havia decidido que o seu papel na vida seria o de
um eremita, e até agora tinha se saído muito bem, melhor do que
esperava. A oferta era tentadora, porém, e, em um nível prático,
Drizzt sabia que conhecer o idioma comum da região poderia
mantê-lo longe de problemas. O sorriso de Montólio quase alcançou
as orelhas do ranger quando o drow aceitou.
Piante, a coruja, no entanto, não parecia tão satisfeita. Com o
drow — ou, mais particularmente, com a pantera do drow — por
perto, a coruja passaria menos tempo no conforto dos galhos
inferiores dos abetos.

— Primo, Montólio DeBrouchee levou o drow pra casa! — um elfo


gritou com entusiasmo para Kellindil. Todo o grupo estava
procurando a trilha de Drizzt desde o fim do inverno. Quando viram
que o drow não estava mais no Estreito do Orc Morto, os elfos,
principalmente Kellindil, temiam problemas, temiam que o drow
talvez tivesse se aliado a Graul e seus lacaios orcs.
Kellindil levantou-se de um salto, incapaz de entender as notáveis
notícias. Ele sabia sobre Montólio, o lendário ranger (ainda que um
pouco excêntrico), e sabia também que Montólio, com todos os seus
contatos animais, poderia julgar os intrusos com bastante precisão.
— Quando? Como? — perguntou Kellindil, mal sabendo por onde
começar. Se o drow o confundira nos meses anteriores, o elfo da
superfície estava completamente abalado agora.
— Há uma semana — respondeu o outro elfo. — Não sei como
isso aconteceu, mas o drow agora anda no bosque de Montólio
abertamente e com sua pantera ao seu lado.
— E Montólio está...
O outro elfo interrompeu Kellindil, vendo onde sua linha de
preocupação estava indo.
— Montólio está ileso e no controle da situação — assegurou a
Kellindil. — Pelo visto, acolheu o drow por vontade própria, e agora
achamos que o velho ranger está ensinando ao elfo negro a língua
comum.
— Incrível — foi tudo o que Kellindil conseguiu responder.
— Nós poderíamos vigiar o bosque de Montólio — ofereceu o
outro elfo. — Se teme pela segurança do velho ranger—
— Não — respondeu Kellindil. — Não. O drow, mais uma vez,
provou não ser um inimigo. Eu suspeitei de suas intenções
amigáveis desde que o encontrei perto de Maldobar. Agora estou
satisfeito. Vamos seguir com nossas vidas e deixar o drow e o
ranger com as deles.
Os outros elfos assentiram com a cabeça, mas uma diminuta
criatura que escutava fora da tenda de Kellindil não tinha tanta
certeza.
Tephanis entrava no acampamento dos elfos todas as noites para
roubar alimentos e outros itens que o deixariam mais confortável. O
sprite tinha ouvido falar do elfo negro alguns dias antes, quando os
elfos haviam retomado sua busca por Drizzt, e ele tinha se
esforçado para ouvir suas conversas desde então, tão curioso
quanto qualquer outro sobre o paradeiro daquele que havia
destruído Ulgulu e Kempfana.
Tephanis sacudiu violentamente sua cabeça de orelhas imensas.
— Maldito-o-dia-em-que-aquele-lá-voltou! — ele sussurrou,
soando um pouco como um zangão agitado. Então, o sprite correu,
seus pés pequenos mal tocando o chão. Tephanis havia feito outro
contato nos meses que se passaram desde que Ulgulu tinha
morrido, outro aliado poderoso que ele não queria perder.
Em poucos minutos, encontrou Caroak, o grande lobo invernal de
pelos prateados, no pico alto que chamavam de casa.
— O-drow-está-com-o-ranger — Tephanis tagarelou, e a fera
canina parecia entender — Cuidado-com-aquele-lá, vai-por-mim.
Foi-ele-quem-matou-meus-antigos-mestres. Mortos!
Caroak olhou para a grande extensão da montanha na qual ficava
o bosque de Montólio. O lobo invernal conhecia bem aquele lugar, e
conhecia bem o suficiente para ficar longe de lá. Montólio
DeBrouchee era amigo de todos os tipos de animais, mas os lobos
invernais eram mais monstros do que animais e longe de serem
amigos dos rangers.
Tephanis, também, olhou na direção de Montólio, com medo de
voltar a enfrentar o drow sorrateiro. O simples pensamento de
encontrar aquele lá novamente fez com que a cabeça do pequeno
sprite doesse (e o ferimento do arado nunca havia se curado
totalmente).

À medida que o inverno abriu espaço para a primavera durante as


semanas seguintes, também Drizzt e Montólio abriram espaço para
a amizade. A língua comum da região não era muito diferente da
língua goblin, era mais uma mudança de inflexão do que de
palavras completas, e Drizzt a aprendeu rapidamente, chegando até
a ler e escrever. Montólio mostrou-se um excelente professor, e, na
terceira semana, já falava com Drizzt exclusivamente na língua
comum e franzia o cenho impaciente toda vez que Drizzt voltava a
usar o goblin para dar uma resposta.
Para Drizzt, este foi um momento divertido, um tempo de vida
fácil e prazeres compartilhados. A coleção de livros de Montólio era
extensa, e o drow se via absorto nas aventuras da imaginação, nas
histórias dos dragões e nos relatos de batalhas épicas. Qualquer
dúvida que Drizzt poderia ter tido se fora há muito tempo, assim
como suas dúvidas sobre Montólio. O abrigo nos abetos era, de
fato, um castelo, e o velho, o melhor anfitrião que Drizzt já
conhecera.
Drizzt aprendeu muitas outras coisas com Montólio durante essas
primeiras semanas, aulas práticas que o ajudariam pelo resto de
sua vida. Montólio confirmou as suspeitas de Drizzt sobre uma
mudança sazonal do tempo, e ele mesmo ensinou Drizzt a antecipar
o clima do dia a dia observando os animais, o céu e o vento.
Isso, também, Drizzt pegou rapidamente, como Montólio havia
suspeitado que faria. Montólio nunca teria acreditado até que tivesse
testemunhado pessoalmente, mas esse drow incomum possuía o
comportamento de um elfo da superfície, talvez até o coração de um
ranger.
— Como você acalmou o urso? — Montólio perguntou um dia,
uma dúvida que o incomodara desde o primeiro dia em que
descobriu que Drizzt e Algazarra estavam compartilhando uma
caverna.
Drizzt honestamente não sabia como responder, porque ainda
não entendia o que havia acontecido naquela reunião.
— Da mesma forma que você acalmou Guenhwyvar quando nos
conhecemos — o drow disse por fim.
O sorriso de Montólio disse a Drizzt que o velho entendia melhor
do que ele.
— Coração de um ranger — sussurrou Montólio enquanto se
afastava. Com seus ouvidos excepcionais, Drizzt ouviu o
comentário, mas não o compreendeu completamente.
As aulas de Drizzt vieram mais rápido à medida que os dias se
passavam. Agora, Montólio concentrava-se na vida à sua volta, os
animais e as plantas. Ele mostrou a Drizzt como juntar provisões e
entender as emoções de um animal simplesmente observando seus
movimentos. O primeiro teste real veio logo depois, quando Drizzt,
remexendo os ramos externos de um arbusto frutífero, encontrou a
entrada de uma cova pequena e foi prontamente confrontado por
um texugo irritado.
Piante, no céu acima, emitiu uma série de pios para alertar
Montólio, e o primeiro instinto do ranger foi ajudar seu amigo drow.
Os texugos eram, possivelmente, as piores criaturas da região, mais
até que os orcs, mais fáceis de se irritar do que Algazarra, o urso, e
muito dispostas a assumir a ofensiva contra qualquer oponente, por
maior que seja. Montólio ficou de fora, no entanto, ouvindo as
descrições contínuas da cena por intermédio de Piante.
O primeiro instinto de Drizzt foi levar imediatamente sua mão até
sua adaga. O texugo recuou e mostrou suas garras e presas cruéis,
sibilando e cuspindo mil reclamações.
Drizzt recuou, e até mesmo colocou a adaga de volta a sua
bainha. De repente, viu o encontro do ponto de vista do texugo,
sabia que o animal sentia-se excessivamente ameaçado. De alguma
forma, Drizzt então se deu conta de que o texugo tinha escolhido
essa cova como um lugar para criar a ninhada de filhotes que se
aproximava.
O texugo parecia confuso com os movimentos deliberados do
drow. No final da gravidez, a mãe prenhe não queria brigar e,
quando Drizzt cuidadosamente colocou o arbusto de volta a seu
lugar para esconder a toca, o texugo voltou a ficar sobre suas quatro
patas, cheirou o ar para que pudesse se lembrar do cheiro do elfo
negro, e voltou para o seu buraco.
Quando Drizzt virou-se, encontrou Montólio sorrindo e
aplaudindo.
— Mesmo um ranger teria dificuldades em acalmar um texugo
irritado — explicou o velho.
— O texugo tinha filhotes — respondeu Drizzt. — Ela queria lutar
menos do que eu.
— Como você sabe disso? — Montólio perguntou, embora não
duvidasse das percepções do drow.
Drizzt começou a responder, então percebeu que não podia.
Olhou de volta para o arbusto, depois para Montólio, impotente.
Montólio riu alto e voltou ao seu trabalho. Ele, que seguia os
caminhos da deusa Mielikki por tantos anos, sabia o que estava
acontecendo, mesmo que Drizzt não.
— O texugo poderia ter te rasgado, você sabe — o ranger disse
com ironia quando Drizzt foi para o lado dele.
— Ela estava com filhotes — lembrou Drizzt —, e não era um
inimigo tão grande.
O riso de Montólio zombou dele.
— Não era tão grande? — o ranger ecoou. — Confie em mim,
Drizzt, você preferiria se engalfinhar com o Algazarra do que com
uma mamãe texugo!
Drizzt apenas deu de ombros em resposta, sem argumentos
contra o homem mais experiente.
— Você realmente acredita que essa faca insignificante teria sido
alguma defesa contra ela? — Montólio perguntou, agora querendo
levar a discussão para uma direção diferente.
Drizzt parou para pensar na adaga, a que tirara do sprite.
Novamente não podia argumentar; a faca era realmente
insignificante. Ele riu tanto dela quanto de si mesmo.
— É tudo o que tenho, temo eu — respondeu.
— Nós vamos resolver isso — prometeu o ranger, depois não
falou mais sobre o assunto. Montólio, apesar de toda a sua calma e
confiança, conhecia bem os perigos da região selvagem e
montanhosa.
O ranger havia passado a confiar em Drizzt sem reservas.

Montólio despertou Drizzt pouco antes do pôr do sol e levou o


drow a uma árvore enorme no extremo norte do bosque. Um buraco
grande, quase uma caverna, estava na base da árvore, muito bem
escondido por arbustos e um manto colorido para se assemelhar ao
tronco da árvore. Assim que Montólio o afastou, Drizzt entendeu o
segredo.
— Um arsenal? — o drow perguntou com espanto.
— Você gosta de cimitarras — respondeu Montólio, lembrando-se
da arma que Drizzt tinha quebrado no gigante de pedra. — Eu tenho
uma boa.
Ele rastejou pra dentro e remexeu por um tempo, depois voltou
com uma lâmina curva e bem forjada. Drizzt entrou no buraco para
examinar a maravilhosa exibição de armas quando o ranger saiu.
Montólio possuía uma grande variedade de armas, desde punhais
ornamentais e berdiches a bestas, leves e pesadas, todas polidas e
meticulosamente bem cuidadas. Na parte de trás do tronco interno
da árvore, havia uma variedade de lanças, incluindo um ranseur de
metal, uma arma de haste de três metros de comprimento com uma
lâmina longa e pontiaguda e duas farpas menores saindo para os
lados perto da ponta.
— Você prefere um escudo, ou talvez um punhal, para sua outra
mão? — Montólio perguntou quando o drow, murmurando para si
mesmo com sincera admiração, reapareceu. — Você pode ficar com
o que quiser, exceto aqueles que têm a coruja com garras
engastada. Aquele escudo, espada e elmo são meus.
Drizzt hesitou um momento, tentando imaginar o ranger cego tão
equipado para o combate corpo a corpo.
— Uma espada — disse por fim — ou outra cimitarra, se você
tiver uma.
Montólio olhou-o com curiosidade.
— Duas lâminas longas para lutar — observou — Você
provavelmente se embolaria nelas, eu acho.
— Não é um estilo de luta tão incomum entre os drow — disse
Drizzt.
Montólio deu de ombros, não duvidando, e voltou.
— Esta é mais para exibição, temo eu — disse ele quando voltou,
com uma lâmina excessivamente ornamentada. — Você pode usá-la
se quiser, ou pegar uma espada. Eu tenho muitas espadas.
Drizzt pegou a cimitarra para medir o equilíbrio. Era um pouco
leve demais e talvez um pouco frágil demais. O drow decidiu mantê-
la, no entanto, acreditando que sua lâmina curva seria um
complemento melhor para sua outra cimitarra do que uma espada
lisa e pesada.
— Eu vou cuidar delas tão bem quanto você — prometeu Drizzt,
percebendo o quão grande presente o humano lhe havia dado. — E
vou usá-las — acrescentou, sabendo o que Montólio realmente
queria ouvir — apenas quando realmente precisar.
— Então ore para que nunca precise delas, Drizzt Do’Urden —
respondeu Montólio. — Eu vi a paz e eu vi a guerra, e posso dizer-
lhe que prefiro a primeira! Venha agora, amigo. Há tantas coisas
mais que desejo mostrar!
Drizzt observou as cimitarras uma última vez, depois as colocou
nas bainhas no cinto e seguiu Montólio.
Com o verão que se aproximava rapidamente e com uma
companhia tão agradável e empolgante, tanto o professor quanto
seu estudante incomum estavam de bom humor, antecipando uma
temporada de lições valiosas e eventos maravilhosos.
Quão menores ficariam seus sorrisos se soubessem que certo rei
orc, irritado com a perda de dez soldados, dois worgs e um precioso
aliado gigante, tinha seus olhos amarelados e sanguinários
examinando a região, procurando o drow. O grande orc estava
começando a se perguntar se Drizzt teria voltado para o
Subterrâneo ou tinha se juntado a algum outro grupo, talvez com os
pequenos grupos élficos que se sabiam estar na região, ou com o
maldito ranger cego, Montólio. Se o drow ainda estivesse na área,
Graul pretendia encontrá-lo. O chefe dos orcs não corria riscos, e a
mera presença do drow constituía-se em um risco.
CAPÍTULO 14
O Teste de Montólio
— BOM, JÁ ESPEREI O SUFICIENTE! — Montólio disse com
seriadade numa tarde.
Ele deu ao drow outra sacudida.
— Esperou? — perguntou Drizzt, limpando o sono de seus olhos.
— Você é um guerreiro ou um mago? — Montólio continuou. —
Ou os dois? Um desses tipos multitalentosos? Os elfos da superfície
são conhecidos por isso.
A expressão de Drizzt retorceu-se em confusão.
— Eu não sou um mago — disse com uma risada.
— Guardando segredos, né? — Montólio repreendeu, embora
seu sorriso continuasse diminuindo sua fachada de severidade. Ele
claramente se endireitou fora do buraco do quarto de Drizzt e cruzou
os braços sobre o peito. — Isso não leva a nada. Eu te acolhi, e se
você é um mago, devo ser informado!
— Por que você está falando isso? — perguntou o drow,
perplexo. — Onde você…
— Piante me disse! — Montólio soltou. Drizzt estava realmente
confuso. — Na luta, quando nos conhecemos — explicou Montólio
—, você escureceu a área ao redor de si e de alguns orcs. Não
negue, mago. Piante me disse!
— Aquilo não foi nenhum feitiço — Drizzt reclamou impotente — e
não sou um mago.
— Não foi um feitiço? — ecoou Montólio. — Então, um
dispositivo? Bem, deixe-me vê-lo!
— Não é um dispositivo — respondeu Drizzt. — É uma
habilidade. Todos os drow, mesmo os mais baixos na hierarquia,
podem criar globos de escuridão. Não é tão difícil.
Montólio pensou na revelação por um momento. Ele não tinha
experiência com elfos negros antes de Drizzt ter entrado em sua
vida.
— Quais outras “habilidades” você possui?
— Fogo das fadas — respondeu Drizzt. — É uma linha de…
— Eu conheço o feitiço — disse Montólio. — É muito usado pelos
sacerdotes da floresta. Todos os drow também podem criar isso?
— Eu não sei — Drizzt respondeu honestamente. — Além disso,
eu sou — ou era — capaz de levitar. Somente os drow nobres
podem fazer isso. Temo que o poder esteja perdido para mim, ou
logo estará. Essa habilidade começou a falhar desde que vim para a
superfície, como minha piwafwi, minhas botas e minhas cimitarras
feitas pelos drow me falharam.
— Experimente — sugeriu Montólio.
Drizzt concentrou-se por um longo momento. Sentiu-se cada vez
mais leve, então se afastou do chão. Assim que se levantou, no
entanto, seu peso voltou e seus pés voltaram a tocar a terra. Não
chegou a subir dez centímetros.
— Impressionante — murmurou Montólio.
Drizzt apenas riu e sacudiu sua crina branca.
— Posso voltar a dormir agora? — perguntou, voltando para o
saco de dormir…
Montólio tinha outros planos. Ele havia testado o companheiro,
para encontrar os limites das habilidades de Drizzt, magias e outras
coisas. Um novo plano chegou ao ranger, mas tinha que colocá-lo
em ação antes que o sol caísse.
— Espere — ele chamou Drizzt. — Você pode descansar mais
tarde, depois do pôr do sol. Eu preciso de você agora, e de suas
“habilidades”. Você poderia convocar um globo de escuridão, ou
você precisa de tempo para contemplar o feitiço?
— Alguns segundos — respondeu Drizzt.
— Então pegue sua armadura e armas — disse Montólio — e
venha comigo. E rápido. Não quero perder a vantagem da luz do
dia.
Drizzt deu de ombros e vestiu-se, depois seguiu o ranger até a
ponta norte do bosque, uma parte pouco usada do complexo da
floresta.
Montólio ficou de joelhos e puxou Drizzt para baixo ao lado dele,
apontando um pequeno buraco ao lado de um pequeno monte com
grama.
— Um javali passou a viver ali — explicou o velho ranger. — Não
quero machuca-lo, mas tenho receio de chegar perto o suficiente
para fazer contato. Javalis são imprevisíveis, na melhor das
hipóteses.
Um longo momento de silêncio se passou. Drizzt se perguntou se
Montólio simplesmente queria esperar que o javali surgisse.
— Vá em frente, então — comandou o ranger.
Drizzt virou-se para ele incrédulo, imaginando que Montólio
esperava que caminhasse até ali e cumprimentasse seu convidado
imprevisível e não convidado.
— Anda — continuou o ranger. — Faça seu globo de escuridão.
Bem em frente ao buraco, se puder.
Drizzt entendeu, e seu suspiro aliviado fez Montólio morder o
lábio para esconder sua risada reveladora. Um momento depois, a
área à frente do pequeno monte desapareceu na escuridão.
Montólio fez um gesto para Drizzt esperar e entrou.
Drizzt ficou tenso, observando e ouvindo. Vários gritos agudos
surgiram de repente, então Montólio gritou em perigo. Drizzt
levantou-se de um salto e investiu de cabeça, quase tropeçando na
forma prostrada de seu amigo.
O velho ranger gemia e se contorcia e não respondia a nenhum
dos chamados silenciosos do drow. Sem ouvir nenhum javali por
perto, Drizzt se abaixou para descobrir o que aconteceu e recuou
quando encontrou Montólio encolhido, agarrando seu peito.
— Montólio — Drizzt sussurrou, pensando que o velho estava
gravemente ferido. Se inclinou para falar diretamente no rosto do
ranger, depois se esticou mais rápido do que pretendia quando o
escudo de Montólio bateu no lado de sua cabeça.
— É Drizzt! — gritou o drow, esfregando o futuro hematoma.
Ouviu Montólio pular diante dele, então ouviu a espada do ranger
sair de sua bainha.
— Claro que é. — Montólio explodiu em gargalhadas.
— Mas e o javali?
— Javali? — Montólio ecoou. — Não tem nenhum javali, seu drow
bobo. Nunca houve um. Nós somos os oponentes aqui. Chegou a
hora de se divertir!
Agora, Drizzt entendia plenamente. Montólio o manipulou para
usar sua escuridão apenas para tirar a sua vantagem da visão.
Montólio estava desafiando-o, em termos justos.
— Sem usar o corte da lâmina! — Drizzt respondeu, muito
disposto a brincar. Como Drizzt adorava tais testes de habilidade em
Menzoberranzan com Zaknafein!
— Pelo seu próprio bem! — Montólio retrucou com um riso que
veio direto da barriga. O ranger mandou sua espada em um arco e a
cimitarra de Drizzt a rebateu de forma inofensiva.
Drizzt contra-atacou com dois golpes rápidos e curtos no meio,
um ataque que teria derrotado a maioria dos inimigos, mas não fez
mais do que tocar uma melodia de duas notas no escudo bem
colocado de Montólio. Certo da localização de Drizzt, o escudo do
ranger correu para a frente.
Drizzt foi empurrado para trás antes que conseguisse sair do
caminho. A espada de Montólio entrou novamente no lado, e Drizzt
a bloqueou. O escudo do velho bateu em frente novamente, e Drizzt
desviou seu impulso, plantando os calcanhares de forma obstinada.
O ranger criativo puxou o escudo até o alto, tomando uma das
lâminas de Drizzt e boa parte do equilíbrio do drow, e, ao mesmo
tempo, enviou sua espada direto na direção do tronco de Drizzt.
Drizzt sentiu de alguma forma o ataque. Saltou de volta nos
dedos dos pés, encolheu a barriga e jogou seu quadril para trás.
Para seu desespero, ainda sentiu o deslocamento de ar da espada
passando perto dele.
Drizzt foi à ofensiva, lançando várias rotinas astutas e intrincadas
que, acreditava, iriam acabar com o combate. Montólio antecipou
cada uma, porém, uma vez que todos os esforços de Drizzt foram
recompensados com o mesmo som da cimitarra atingindo o escudo.
O ranger veio então e Drizzt foi pressionado com força. O drow não
era um novato na luta às cegas, mas Montólio vivia cada hora de
todos os dias como um cego e funcionava tão facilmente quanto a
maioria dos homens com visão perfeita.
Logo Drizzt percebeu que não poderia ganhar no globo. Ele
pensou em afastar o ranger da área do feitiço, mas a situação
mudou de repente quando a escuridão expirou. Achando que a
brincadeira havia acabado, Drizzt recuou vários passos, sentindo
seu caminho com os pés em uma raiz ascendente de uma árvore.
Montólio observou seu oponente com curiosidade por um
momento, observando a mudança na postura de luta, então se
aproximou, abaixado e com força.
Drizzt se achou muito esperto enquanto mergulhava de cabeça
sobre o ranger, com a intenção de pousar de pé atrás de Montólio e
voltar de um lado ou outro enquanto o humano confuso girasse,
desorientado.
Drizzt não conseguiu o que esperava, no entanto. O escudo de
Montólio encontrou o rosto do drow enquanto ele estava a meio
caminho, e Drizzt gemeu e caiu com força no chão. Quando
conseguiu sair da tontura, percebeu que Montólio estava sentado
confortavelmente nas suas costas, com a espada descansando nos
ombros de Drizzt.
— Como… — Drizzt começou a perguntar.
A voz de Montólio era tão afiada quanto Drizzt já havia ouvido.
— Você me subestimou, drow. Você me considerou cego e
indefeso. Nunca mais faça isso!
Drizzt se perguntou honestamente, por apenas uma fração de
segundo, se Montólio queria matá-lo, de tão irritado que o ranger
estava. Sabia que sua condescendência havia ferido o homem, e
percebeu então que Montólio DeBrouchee, tão confiante e capaz,
carregava seu próprio peso sobre seus velhos ombros. Pela
primeira vez desde que conheceu o ranger, Drizzt parou para pensar
no quão doloroso devia ter sido para ele perder a visão. O que mais,
pensou Drizzt, Montólio havia perdido?
— Tão óbvio — disse Montólio depois de uma pequena pausa.
Sua voz suavizou novamente. — Comigo atacando por baixo, como
eu fiz.
— Óbvio, apenas se você percebesse que o feitiço da escuridão
havia terminado — respondeu Drizzt, perguntando-se sobre o quão
deficiente era Montólio. — Eu nunca teria tentado a manobra de
mergulho na escuridão, sem meus olhos para me guiar, mas como
um cego poderia saber que o feitiço não estava mais ativo?
— Você me disse! — Montólio protestou, ainda não fazendo
nenhum movimento para sair das costas de Drizzt. — Com sua
postura. Com o barulho repentino de seus pés, leve demais para ser
feito na escuridão absoluta. E com seu suspiro, drow! Aquele
suspiro entregou seu alívio, como se você soubesse naquele
momento que não poderia me derrotar sem sua visão.
Montólio levantou-se de cima de Drizzt, mas o drow permaneceu
de bruços, digerindo as revelações. Ele percebeu o quão pouco
sabia sobre seu companheiro, o quanto tinha tomado como certo em
relação a Montólio.
— Venha, então — disse Montólio. — A primeira lição desta noite
foi encerrada. Foi valiosa, mas há outras coisas que devemos fazer.
— Você disse que eu poderia dormir — Drizzt lembrou.
— Eu achei que você fosse mais competente — respondeu
Montólio imediatamente, lançando um sorriso na direção do drow
ainda deitado.
Enquanto Drizzt absorvia ansiosamente as muitas lições que
Montólio o ensinava, naquela noite e nos dias que se seguiram, o
antigo ranger reuniu suas próprias informações sobre o drow. Seu
trabalho estava mais focado no presente, com Montólio ensinando a
Drizzt sobre o mundo ao seu redor e como sobreviver nele.
Invariavelmente, um ou outro, geralmente Drizzt, deixava passar
algum comentário sobre seu passado. Tornou-se quase uma
brincadeira entre os dois, lembrar-se de algum evento distante, mais
para medir a expressão chocada do outro do que para dizer
qualquer coisa relevante. Montólio tinha algumas boas histórias de
seus muitos anos na estrada, histórias de batalhas valorosas contra
goblins e pegadinhas engraçadas que os rangers, geralmente
sérios, muitas vezes faziam uns com os outros. Drizzt permaneceu
um pouco reservado sobre seu próprio passado, mas, ainda assim,
suas histórias sobre Menzoberranzan, sobre a sinistra e insidiosa
Academia e sobre as guerras selvagens que jogavam família contra
família, foram muito além de qualquer coisa que Montólio jamais
imaginara.
No entanto, tão intenso quanto as histórias do drow, era, e
Montólio sabia que Drizzt estava guardando isso para si, o fardo que
o drow carregava nos ombros. O ranger, a princípio, não pressionou
Drizzt. Manteve sua paciência, satisfeito de que ele e Drizzt
compartilhavam princípios e — como veio a perceber com a drástica
melhora das habilidades de ranger de Drizzt — uma maneira similar
de ver o mundo.
Uma noite, sob a luz prateada da lua, Drizzt e Montólio se
recostavam em cadeiras de madeira que o ranger tinha construído
no alto, em galhos de um grande abeto. O brilho da lua minguante,
mergulhando e se esquivando do movimento rápido das nuvens
dispersas, encantava o drow.
Montólio não conseguia ver a lua, é claro, mas o velho ranger,
com Guenhwyvar confortavelmente deitada no colo, não apreciava
menos a brisa noturna. Ele passava a mão distraidamente no pelo
grosso do pescoço musculoso de Guenhwyvar e ouvia os muitos
sons carregados pela brisa, as conversa de mil criaturas que o drow
nunca percebia, mesmo que a audição de Drizzt fosse superior à de
Montólio. O velho ranger ria de vez em quando, por ouvir um rato do
campo guinchar com raiva de uma coruja — Piante provavelmente
— por interromper sua refeição e forçá-lo a fugir para o seu buraco.
Olhando para o ranger e Guenhwyvar, tão à vontade e aceitando
um ao outro, Drizzt sentiu uma pontada de culpa e amizade.
— Talvez eu nunca devesse ter vindo —sussurrou, voltando o
olhar para a lua.
— Por quê? — perguntou Montólio baixinho. — Você não gosta
da minha comida?
Seu sorriso desarmou Drizzt quando o drow se voltou para ele
com seriedade.
— Para a superfície, quero dizer — explicou Drizzt, conseguindo
dar uma risada apesar de sua melancolia. — Às vezes eu acho que
minha escolha foi um ato egoísta.
— A sobrevivência geralmente é — respondeu Montólio. — Eu
mesmo me senti assim em algumas ocasiões. Uma vez fui forçado a
cravar minha espada no coração de um homem. A dureza do mundo
traz um grande remorso, mas felizmente é um lamento passageiro e
certamente não é um sentimento para se levar para a batalha.
— Como eu gostaria que isso passasse! — observou Drizzt, mais
para si mesmo ou para a lua do que para Montólio.
Mas a observação atingiu Montólio em cheio. Quanto mais
próximos ele e Drizzt se tornavam, mais o ranger compartilhava o
fardo desconhecido de Drizzt. O drow era jovem pelos padrões dos
elfos, mas já era sábio e habilidoso na batalha além da maioria dos
soldados profissionais. Inegavelmente, alguém da raça de Drizzt
encontraria barreiras no mundo intolerante da superfície. Porém,
pela estimativa de Montólio, Drizzt conseguiria superar tais
preconceitos e viver uma vida longa e próspera, diante de seus
consideráveis talentos. O que era, Montólio se perguntou, o fardo
que esse elfo carregava? Drizzt sofria mais do que sorria e
castigava-se mais do que deveria.
— O seu lamento é sincero? — Montólio perguntou. — A maioria
não é, sabe? A maioria dos fardos autoimpostos baseia-se em
percepções erradas. Nós, que temos caráter sincero, nos julgamos
por padrões mais estritos do que impomos aos outros. É uma
maldição, suponho, ou uma benção, dependendo de como se vê —
ele dirigiu seu olhar sem visão na direção de Drizzt. — Tome isso
como uma benção, meu amigo, um chamado interior que o obriga a
se forçar na direção de alturas inacessíveis.
— Uma benção frustrante — respondeu Drizzt de forma casual.
— Somente quando você não para pra pensar nos avanços que
tal esforço te trouxe — Montólio respondeu rápido, como se tivesse
esperando aquela resposta do drow. — Aqueles que aspiram a
menos conseguem menos. Disso, não há dúvida. É melhor, acho,
tentar alcançar as estrelas do que ficar frustrado porque você sabe
que não pode alcançá-las. — lançou para Drizzt seu típico sorriso
irônico. — Pelo menos aquele que se esticar consegue um bom
alongamento, uma boa visão, e talvez até uma maçã num galho
baixo pelo seu esforço!
— E talvez também uma flecha voando baixo disparada por
algum agressor não visto. — observou Drizzt com raiva.
Montólio inclinou sua cabeça impotente contra o incessante fluxo
de pessimismo de Drizzt. Era doloroso para ele ver aquele drow
bondoso tão ferido.
— Sim, é possível. — disse Montólio, um pouco mais duramente
do que pretendia — Mas a perda da vida só é grandiosa para
aqueles que conseguem viver! Deixe sua flecha vir baixa e pegar
quem está agachado no chão. Sua morte não seria tão trágica!
Drizzt não podia negar a lógica, nem o conforto que o velho
ranger lhe dera. Durante as últimas semanas, as filosofias informais
de Montólio e sua forma de olhar para o mundo —
pragmaticamente, mas com fortes marcas de uma exuberância
juvenil, deixaram Drizzt mais à vontade do que ele havia estado
desde aqueles primeiros dias de treinamento no ginásio de
Zaknafein. Mas Drizzt também não podia negar o inevitavelmente
curto tempo de vida desse conforto. As palavras podiam acalmar,
mas não podiam apagar as lembranças assustadoras do passado
de Drizzt, as vozes distantes de Zaknafein, Estalo e dos
fazendeiros, todos agora mortos. Um único eco mental de “drizzit”
inutilizou todas as horas do conselho bem intencionado de Montólio.
— Chega dessa brincadeira torta — Montólio continuou,
parecendo perturbado. — Eu te considero meu amigo, Drizzt
Do’Urden, e espero que você me considere da mesma forma. Que
tipo de amigo posso ser contra esse peso que oprime seus ombros,
sem saber mais sobre ele? Ou eu sou seu amigo, ou não sou. A
decisão é sua, mas, se eu não for, não vejo nenhum propósito em
compartilhar as noites tão maravilhosas quanto essa ao seu lado.
Diga-me, Drizzt, ou saia da minha casa!
Drizzt dificilmente podia acreditar que Montólio, normalmente tão
paciente e relaxado, o tivesse colocado contra a parede. A primeira
reação do drow foi recuar, construir uma parede de raiva diante das
presunções do velho e se apegar àquilo que considerava pessoal.
Conforme os momentos passaram, porém, e Drizzt ultrapassou sua
surpresa inicial e levou um tempo para examinar a declaração de
Montólio, ele entendeu uma verdade básica que desculpava esses
pressupostos: ele e Montólio realmente se tornaram amigos,
principalmente graças aos esforços do ranger.
Montólio queria compartilhar o passado de Drizzt, para que
melhor entendesse e confortasse seu novo amigo.
— Sabe Menzoberranzan, a cidade do meu nascimento e dos
meus semelhantes? — perguntou Drizzt suavemente. Até mesmo
falar aquele nome o afligia. — E você conhece o comportamento do
meu povo ou os decretos da Rainha Aranha?
A voz de Montólio era sombria quando respondeu.
— Conte-me tudo, por favor.
Drizzt assentiu com a cabeça — Montólio sentiu o movimento,
mesmo que não pudesse ver — e relaxou contra a árvore. Seu olhar
estava voltado na direção da lua, mas na verdade olhava além dela.
Sua mente vagou por suas aventuras, de volta a Menzoberranzan, à
Academia e à Casa Do’Urden. Manteve seus pensamentos por ali
por um tempo, persistindo nas complexidades da vida familiar dos
drow e na simplicidade bem-vinda de seus tempos na sala de
treinamento com Zaknafein.
Montólio observou pacientemente, imaginando que Drizzt
estivesse procurando por onde começar. Pelo que aprendeu com os
comentários de Drizzt, a vida de Drizzt fora cheia de aventuras e
turbulências, e Montólio sabia que não seria fácil para Drizzt, com
seu comando ainda limitado da língua comum, contar tudo com
precisão. Além disso, levando em conta os fardos, a culpa e a
tristeza que o drow obviamente carregava, Montólio suspeitava que
Drizzt poderia estar hesitante.
— Eu nasci em um dia importante na história da minha família —
começou Drizzt. — Naquele dia, a Casa Do’Urden eliminou a Casa
DeVir.
— Eliminou?
— Massacrou — explicou Drizzt. Os olhos cegos de Montólio não
revelavam nada, mas a expressão do ranger era claramente de
repulsa, como Drizzt esperava. Drizzt queria que seu companheiro
entendesse os aspectos mais profundos do horror da sociedade
drow, então acrescentou:
— E, nesse dia também, meu irmão, Dinin, cravou a espada no
coração de nosso outro irmão, Nalfein.
Um calafrio percorreu a espinha de Montólio e ele balançou a
cabeça. Percebeu que estava apenas começando a entender os
fardos que Drizzt carregava.
— É a tradição dos drow — disse Drizzt calmamente, tentando
transmitir a atitude casual dos elfos negros em relação ao
assassinato. — Existe uma estrutura de classificação estrita em
Menzoberranzan. Para escalá-la, para alcançar uma posição mais
elevada, seja como indivíduo ou família, você simplesmente elimina
aqueles acima de você.
Um leve tremor na voz de Drizzt o entregou para o ranger.
Montólio entendeu que Drizzt jamais aceitara aquelas práticas
malignas.
Drizzt continuou com sua história, contando-a por inteiro e com
precisão, pelo menos em relação aos mais de quarenta anos que
passou no Subterrâneo. Falou de seus dias sob a tutela estrita de
sua irmã Vierna, limpando a capela da casa sem parar e
aprendendo seus poderes inatos e seu lugar na sociedade drow.
Drizzt passou muito tempo explicando essa peculiar estrutura social
a Montólio, as hierarquias baseadas em uma classificação estrita e
a hipocrisia da “lei” dos drow, uma fachada cruel que espelhava uma
cidade completamente caótica. O ranger se encolheu quando ouviu
falar sobre as guerras entre famílias. Eram conflitos brutais que não
permitiam sobreviventes nobres, nem mesmo crianças. Montólio se
encolheu ainda mais quando Drizzt lhe contou sobre a “justiça”
drow, sobre a destruição causada em uma casa que falhasse na
tentativa de erradicar outra família.
O relato foi menos sombrio quando Drizzt contou sobre
Zaknafein, seu pai e amigo mais querido. Claro, as lembranças
felizes de Drizzt de seu pai tornaram-se apenas um curto indulto, um
prelúdio para os horrores da morte de Zaknafein.
— Minha mãe matou meu pai — Drizzt explicou com sobriedade,
com sua dor profunda evidente. — O sacrificou a Lolth por meus
crimes, depois animou seu cadáver e o enviou para me matar, para
me punir por trair a família e a Rainha Aranha.
Demorou um pouco para Drizzt retomar a história, mas quando
retomou, voltou a falar com sinceridade, até mesmo revelando seus
próprios fracassos em seus dias sozinhos no Subterrâneo
selvagem.
— Eu temi ter perdido a mim mesmo e a meus princípios para
algum monstro instintivo e selvagem — disse Drizzt, à beira do
desespero.
Mas então, a onda emocional que tinha sido sua existência
aumentou de novo, e um sorriso encontrou seu rosto enquanto
contou de seu tempo ao lado de Belwar, o Mais Honrado dos
Mestres de Escavações svirfneblin, e Estalo, o pech que tinha sido
transformado em um ganchador. Conforme esperado, o sorriso não
durou muito, uma vez que o relato de Drizzt o levou até o momento
em que Estalo caiu sob o ataque do monstro desmorto de Malícia.
Outro amigo havia morrido em nome de Drizzt.
Apropriadamente, quando Drizzt chegou à sua saída do
Subterrâneo, o amanhecer brotou nas montanhas a leste. Agora,
Drizzt escolheu suas palavras com mais cuidado, nem um pouco
pronto para divulgar a tragédia da família de fazendeiros por medo
de que Montólio o julgasse e o culpasse, destruindo seu novo
vínculo. Racionalmente, Drizzt poderia lembrar a si mesmo que não
havia matado os fazendeiros, e até vingara suas mortes, mas a
culpa raramente era uma emoção racional, e Drizzt simplesmente
não conseguia encontrar as palavras — não ainda.
Montólio, envelhecido e sábio e com batedores animais em toda a
região, sabia que Drizzt estava escondendo algo. Quando eles se
conheceram pela primeira vez, o drow havia mencionado uma
família de fazendeiros condenada, e Montólio tinha ouvido falar de
uma família massacrada na aldeia de Maldobar. Montólio não
acreditou por um minuto que Drizzt pudesse ter feito aquilo, mas
suspeitava que o drow estivesse de alguma forma envolvido. Porém,
não pressionou Drizzt. O elfo negro tinha sido mais honesto e mais
completo do que Montólio esperava, e o ranger estava confiante de
que o drow preencheria os buracos óbvios em seu próprio tempo.
— É uma boa história! — Montólio respondeu por fim. — Você
passou por mais coisas em suas poucas décadas do que a maioria
dos elfos poderia imaginar em trezentos anos. Mas as cicatrizes são
poucas, e elas curarão.
Drizzt, não tão certo, lançou um olhar lamentável sobre ele, e
Montólio só podia oferecer um tapinha reconfortante no ombro ao se
levantar e se dirigir para a cama.
Drizzt ainda estava dormindo quando Montólio despertou Piante e
amarrou uma nota grosseira à perna da coruja. Piante não estava
tão satisfeito com as instruções do ranger; a jornada poderia levar
uma semana, um período de tempo valioso e agradável a esta altura
da temporada de caça a ratos e acasalamento. Apesar de todos os
seus piados de reclamações, no entanto, a coruja não
desobedeceria.
Piante arrumou as penas, pegou a primeira rajada de vento e
subiu sem esforço na faixa coberta de neve para as correntes que a
levariam a Maldobar — e além disso para Sundabar, se necessário.
Uma certa ranger de fama considerável, uma irmã da senhora de
Lua Argêntea, ainda estava na região, pelo que Montólio soube por
seus contatos animais, e ele incumbiu Piante de procurá-la.


— Será-que-nunca-vai-acabar? — o sprite gemeu, observando o
humano corpulento passar ao longo da trilha. — Primeiro-o-drow-
chato-e-agora-esse-bruto. Será-que-nunca-vou-me-livrar-desses-
problemáticos? — Tephanis bateu sua cabeça e tamborilou com os
pés com tanta rapidez que cavou um pequeno buraco.
Na trilha, o cão amarelo grande e coberto de cicatrizes rosnou e
mostrou os dentes, e Tephanis, percebendo que sua reclamação
tinha sido muito alta, correu em um largo semicírculo, cruzando a
trilha muito atrás do viajante e subindo no outro flanco. O cão
amarelo, ainda olhando na direção oposta, inclinou a cabeça e ganiu
confuso.
CAPÍTULO 15
Uma Sombra Sobre o Santuário
DRIZZT E MONTÓLIO NÃO DISSERAM NADA sobre a história
do drow nos dias seguintes. Drizzt refletiu sobre suas lembranças
dolorosamente reavivadas, e Montólio, por sensibilidade, lhe deu
todo o tempo que precisava. Eles seguiram suas rotinas diárias
metodicamente, um pouco distantes e com menos entusiasmo, mas
a distância era uma coisa passageira, o que ambos perceberam.
Gradualmente, se reaproximaram, deixando Drizzt com a
esperança de ter encontrado um amigo tão verdadeiro quanto
Belwar ou mesmo Zaknafein. Uma manhã, porém, o drow foi
acordado por uma voz que reconhecia muito bem, e Drizzt supôs
imediatamente que seu tempo com Montólio tinha acabado.
Ele se arrastou até a parede de madeira que protegia sua toca e
escutou:
— Um elfo drow, Monshi — disse Roddy McGristle, segurando
uma cimitarra quebrada para que o velho ranger visse. O corpulento
homem da montanha, que parecia ainda maior sob a grossa
camada de peles que vestia, estava em cima de um cavalo
pequeno, mas musculoso, do lado de fora da parede de pedras ao
redor do bosque. — Cê viu ele?
— Ver? — Montólio ecoou sarcasticamente, dando uma piscadela
exagerada com seus olhos brancos leitosos. Roddy não achou
engraçado.
— Cê sabe do que eu tô falando! — ele rosnou. — Cê vê mais
que o resto de nós, então não se faz de besta!
O cachorro de Roddy, que ostentava uma cicatriz horrenda onde
Drizzt o atingira, percebeu um cheiro familiar e começou a farejar
com entusiasmo e a correr de um lado para o outro ao longo das
trilhas do bosque.
Drizzt agachou-se em prontidão, com uma cimitarra em uma mão
e um olhar de medo e confusão no rosto. Ele não tinha vontade de
lutar — não queria nem atacar o cachorro novamente.
— Traga seu cão de volta ao seu lado! — Montólio bufou.
A curiosidade de McGristle era óbvia.
— Cê viu o elfo negro, Monshi? — ele perguntou novamente,
desta vez com desconfiança.
— Pode ser que eu tenha visto — respondeu Montólio. Ele virou-
se e soltou um assobio agudo, mal audível. Imediatamente, o
cachorro de Roddy, ouvindo a clara ira do ranger em termos
inequívocos, colocou a cauda entre as pernas e recostou-se para
ficar ao lado do cavalo do mestre.
— Eu tenho uma ninhada de filhotes de raposa lá dentro — o
ranger mentiu com raiva. — Se o seu cão chegar até ela… —
Montólio deixou a ameaça em aberto, e aparentemente Roddy ficou
impressionado. Colocou um laço na cabeça do cão e puxou-o para o
seu lado.
— Um drow, deve ser o mesmo, veio aqui antes das primeiras
neves — prosseguiu Montólio.
— Você terá uma caçada difícil com aquele lá, caçador de
recompensas — ele riu. — Ele teve algum problema com Graul, pelo
que eu soube, então foi embora, voltou para sua casa escura, eu
acho. Você quer seguir o drow no Subterrâneo? Certamente sua
reputação cresceria, caçador de recompensas, embora sua própria
vida possa ser o preço!
Drizzt relaxou com as palavras; Montólio mentira por ele! Podia
ver que o ranger não gostava de McGristle, e tal fato, também,
trouxe conforto para Drizzt. Então, Roddy voltou com força,
colocando a história da tragédia em Maldobar de uma maneira
contundente e distorcida que colocou a amizade de Drizzt e
Montólio sob uma prova difícil.
— O drow matou os Thistledowns! — Roddy rugiu para o sorriso
presunçoso do ranger, que desapareceu em um piscar de olhos. —
Matou eles, e sua pantera comeu um deles. Cê conhecia
Bartholemew Thistledown, ranger. Que vergonha falar tão calmo do
seu assassino!
— O drow os matou? — perguntou Montólio sombriamente.
Roddy estendeu a cimitarra quebrada mais uma vez.
— Fatiou eles — ele resmungou. — Tem duas mil peças de ouro
pela cabeça dele; te dou quinhentas se cê conseguir descobrir
alguma coisa pra mim.
— Não preciso do seu ouro — respondeu Montólio rapidamente.
— Mas cê precisa ver o assassino preso? — Roddy rebateu —
Cê lamenta pelas mortes do clã Thistledown, uma família como
qualquer outra?
A pausa seguinte de Montólio levou Drizzt a acreditar que o
ranger poderia entregá-lo. Drizzt decidiu então que não iria correr,
qualquer que fosse a decisão de Montólio. Poderia negar a raiva do
caçador de recompensas, mas não a de Montólio. Se o ranger o
acusasse, Drizzt teria que enfrentá-lo e ser julgado.
— Um dia triste — murmurou Montólio. — Uma boa família, de
verdade. Pegue o drow, McGristle. Será a melhor recompensa que
você já ganhou.
— Onde começo? — Roddy perguntou calmamente,
aparentemente pensando que havia conquistado Montólio. Drizzt
também pensou, especialmente quando Montólio se virou e olhou
para o bosque.
— Você já ouviu falar da Caverna de Morueme? — Montólio
perguntou.
A expressão de Roddy desmontou visivelmente ao ouvir a
pergunta. A caverna de Morueme, à beira do grande deserto de
Anauroch, recebeu tal nome graças à família de dragões azuis que
morava lá.
— Duzentiquarenta quilômetro — McGristle rosnou. —
Atravessano as Terras Baixas. Um trecho difícil.
— O drow foi para lá, ou para perto de lá, no início do inverno —
mentiu Montólio.
— O drow foi até os dragão? — Roddy perguntou, surpreso.
— É mais provável que o drow tenha ido para algum outro buraco
naquela região — respondeu Montólio. — Os dragões de Morueme
provavelmente já devem saber sobre ele. Você deveria perguntar
por lá.
— Não gosto muito da ideia de barganhar com dragão — disse
Roddy sombriamente. — Arriscado demais, e até ir pra lá... Bom, é
caro!
— Então parece que Roddy McGristle perdeu sua primeira
captura — disse Montólio. — Mas foi uma boa tentativa, contra um
elfo negro.
Roddy puxou as rédeas de seu cavalo para dar meia volta.
— Melhor não contar comigo falhando, Monshi! — ele rugiu por
cima do ombro. — Eu não vou deixar esse aí escapar, nem que eu
tenha que revirar tudo quanto é buraco das Terras Baixas.
— Parece trabalho demais por duas mil peças de ouro —
observou Montólio, nada impressionado.
— O drow me tirou meu cachorro, minha orelha e me deu essa
cicatriz! — Roddy rebateu, apontando para seu rosto rasgado. O
caçador de recompensas percebeu o absurdo de suas ações —
claro, o ranger cego não poderia vê-lo — e girou de volta, fazendo
seu cavalo galopar para longe do bosque.
Montólio acenou enojado com uma mão às costas de McGristle,
depois se virou para encontrar o drow. Drizzt encontrou-o na borda
do bosque, quase não sabendo como agradecer a Montólio.
— Nunca gostei daquele lá — explicou Montólio.
— A família Thistledown foi assassinada — admitiu Drizzt sem
rodeios. Montólio assentiu. — Você sabia?
— Eu sabia antes de você chegar aqui — respondeu o ranger. —
Honestamente, no começo me perguntei se você tinha feito aquilo.
— Não fui eu — disse Drizzt. Novamente, Montólio assentiu.
Chegou a hora de Drizzt contar os detalhes de seus primeiros
meses na superfície. Toda a culpa voltou quando contou sua batalha
contra o grupo de gnolls, e toda a dor o atingiu em cheio, focada na
palavra “drizzit”, quando ele falou sobre os Thistledowns e sua
descoberta horrível. Montólio identificou o sprite rápido como sendo
um célere, mas teve muita dificuldade em explicar as criaturas
goblinoides gigantes e o lobo com o qual Drizzt lutara na caverna.
— Você fez certo matando os gnolls — disse Montólio quando
Drizzt terminou. — Liberte sua culpa por esse ato e deixe-o cair no
vazio.
— Como eu poderia saber? — Drizzt perguntou honestamente. —
Tudo o que aprendi foi em Menzoberranzan e ainda não aprendi a
separar a verdade das mentiras.
— Foi uma jornada confusa — disse Montólio, e seu sorriso
sincero aliviou consideravelmente a tensão. — Venha, e deixe-me
falar sobre as raças e por que suas cimitarras foram instrumentos da
justiça quando derrubaram os gnolls.
Como um ranger, Montólio dedicara sua vida à luta interminável
entre as raças boas — humanos, elfos, anões, gnomos e halflings
sendo as mais proeminentes — e os malignos goblinoides e
gigantes, que viviam apenas para destruir como uma desgraça para
os inocentes.
— Orcs são meus inimigos favoritos — explicou Montólio. —
Então agora me contento em ficar de olho — um olho de coruja, pra
ser mais preciso — em Graul e seus parentes malcheirosos.
Tudo então entrou em perspectiva para Drizzt. O conforto inundou
o drow, porque os instintos de Drizzt provaram ser corretos e agora
ele finalmente poderia ficar livre da culpa — por algum tempo, pelo
menos.
— E o caçador de recompensas e aqueles como ele? — Drizzt
perguntou. — Não parecem se encaixar tão bem nas suas
descrições das raças.
— Há bons e maus em todas as raças — explicou Montólio. — Eu
falei apenas sobre a conduta geral, e não duvide que a conduta
geral dos goblinoides e dos gigantes seja maligna!
— Como é possível saber? — pressionou Drizzt.
— Basta observar as crianças — respondeu Montólio. Ele
explicou as diferenças não tão sutis entre as crianças das raças
bondosas e as crianças das raças malignas. Drizzt o ouviu, mas
distante, sem precisar de esclarecimentos. Tudo sempre parecia
levar às crianças. Drizzt sentiu-se melhor em relação a suas ações
contra os gnolls quando viu as crianças Thistledowns brincando. E,
de volta a Menzoberranzan, o que parecia ter sido há apenas um dia
e há mil anos, ao mesmo tempo, o pai de Drizzt expressava crenças
semelhantes. “Será que todas as crianças drow são malignas?”
Zaknafein se perguntara, e em toda a sua vida enclausurada,
Zaknafein tinha sido assombrado pelos gritos de crianças
moribundas, drows nobres presos no fogo cruzado entre as famílias
em conflito.
Um momento longo e silencioso se seguiu quando Montólio
terminou, ambos os amigos aproveitando o tempo para digerir as
muitas revelações do dia. Montólio sabia que Drizzt estava
confortado quando o drow, de forma bastante inesperada, virou-se
para ele, sorriu amplamente, e desviou abruptamente do assunto
sombrio.
— Monshi? — Drizzt perguntou, lembrando o nome pelo qual
McGristle tinha chamado Montólio perto do muro de pedra.
— Montólio DeBrouchee — O velho ranger cacarejou, lançando
uma piscadela grotesca na direção de Drizzt. — Monshi, para meus
amigos e para aqueles como McGristle, que têm dificuldades em
falar palavras mais complexas que “cuspir”, “urso” ou “matar!”
— Monshi — Drizzt murmurou em voz baixa, se divertindo um
pouco às custas de Montólio.
— Você não tem tarefas para fazer, drizzit? — O velho ranger
bufou.
Drizzt assentiu com a cabeça e saiu, caminhando bem rápido.
Desta vez, o som de “drizzit” não doeu tanto.

— Caverna de Morueme — disse Roddy. — Maldita Caverna de


Morueme!
Uma fração de segundo depois, um pequeno sprite parou no
topo do cavalo de Roddy, encarando o caçador de recompensas
atordoado. Tephanis assistiu a conversa no bosque de Montólio e
havia amaldiçoado sua sorte quando o ranger havia dispensado o
caçador de recompensas. Se Roddy pudesse pegar Drizzt, o célere
imaginava, ambos estariam fora do seu caminho, um fato que não
alarmava Tephanis.
— Você-não-é-burro-o-bastante-pra-acreditar-naquele-velho, né?
— Tephanis soltou.
— Aqui. — Roddy gritou, agarrando desajeitadamente o sprite,
que simplesmente pulou para baixo, recuou, passou pelo cachorro
assustado e escalou o cavalo até sentar-se atrás de Roddy.
— O que diabos é você? — o caçador de recompensas rugiu. —
E fique quieto!
— Eu sou um amigo — Tephanis disse tão devagar quanto podia.
Roddy olhou-o cautelosamente por cima do ombro. — Se-você-
quer-o-drow-você-está-indo-na-direção-errada — disse o sprite
presunçosamente.
Pouco tempo depois, Roddy estava agachado nos altos
penhascos ao sul do bosque de Montólio e viu o ranger e seu
convidado de pele escura fazendo suas tarefas.
— Boa-caçada. — Tephanis desejou, então se foi, de volta a
Caroak, o grande lobo que cheirava melhor do que aquele humano
em particular.
Roddy, com os olhos fixos na cena distante, quase não notou a
partida do célere.
— Cê vai pagar pela mentira, ranger — ele murmurou em voz
baixa. Um sorriso maligno se espalhou em seu rosto enquanto
pensava em uma maneira de chegar aos companheiros. Seria algo
delicado. Mas, até então, lidar com Graul sempre fora.

O mensageiro de Montólio retornou dois dias depois com uma


carta de Columba Garra de Falcão. Piante tentou contar a resposta
da ranger, mas a coruja empolgada estava completamente incapaz
de transmitir relatos tão longos e intrincados. Abalado e sem outra
opção, Montólio entregou a carta a Drizzt e pediu ao drow para lê-la
em voz alta e rapidamente. Por ainda não ser um leitor experiente,
Drizzt tinha lido várias linhas do papel enrugado antes de perceber o
que era. A carta detalhava o relato de Columba sobre o que
aconteceu em Maldobar e a perseguição subsequente. A versão de
Columba chegou perto da verdade, inocentando Drizzt e culpando
os filhotes de barghest como sendo os assassinos.
O alívio de Drizzt era tão grande que mal poderia pronunciar as
palavras à medida que a carta continuava para expressar o prazer e
a gratidão de Columba de o “drow digno” estar sob os cuidados do
velho ranger.
— Você conseguiu o que merecia por fim, meu amigo — era tudo
o que Montólio precisava dizer.
PARTE 4
Deliberações
EU AGORA VEJO MINHA LONGA ESTRADA como uma busca
pela verdade — a verdade sobre meu coração, sobre o mundo que
me rodeia e sobre as maiores questões a respeito de propósito e
existência. Como se define o bem e o mal?
Eu carreguei um código interno de moral comigo em minha
jornada, e se nasci com ele ou se ele me foi passado por Zaknafein
— ou se simplesmente se desenvolveu a partir de minhas
percepções — nunca saberei. Tal código me forçou a deixar
Menzoberranzan, porque, apesar de eu não ter certeza do que
essas verdades poderiam ter sido, eu sabia sem dúvida que não
seriam encontradas nos domínios de Lolth.
Depois de muitos anos no Subterrâneo fora de Menzoberranzan e
depois de minhas primeiras experiências terríveis na superfície,
cheguei a duvidar da existência de qualquer verdade universal,
cheguei a me perguntar se existia, no final das contas, qualquer
propósito para a vida. No mundo dos drow, a ambição era o único
propósito, a busca de ganhos materiais que vinham com um posto
mais alto na hierarquia. Mesmo assim, me parecia algo muito
pequeno, embora fosse algo que muitos pudessem considerar um
motivo para existir.
Eu te agradeço, Montólio DeBrouchee, por confirmar minhas
suspeitas. Aprendi que a ambição daqueles que seguem preceitos
egoístas não passa de um desperdício caótico, um ganho finito cujo
preço é uma perda infinita. Porque existe sim uma harmonia no
universo, um canto consonante de bem comum. Para se juntar a
essa melodia, é preciso encontrar uma harmonia interior, deve-se
encontrar as notas que soam verdadeiras.
Há outra coisa a ser acrescentada sobre essa verdade: criaturas
malignas não sabem cantar.
— Drizzt Do’Urden
CAPÍTULO 16
Sobre Deuses e Propósitos
AS AULAS CONTINUARAM INDO BEM. O velho ranger havia
diminuído a carga emocional intensa do drow, e Drizzt aprendia a
seguir os caminhos do mundo natural melhor do que qualquer um
que Montólio já tinha visto. Mas ele sentia que algo ainda
incomodava o drow, embora não tivesse ideia do que poderia ser.
— Todos os seres humanos possuem uma audição tão boa? —
Drizzt perguntou-lhe de repente enquanto arrastavam um enorme
galho caído para fora do bosque. — Ou a sua é uma benção, talvez,
para compensar sua cegueira?
A franqueza da pergunta surpreendeu Montólio apenas pelo
momento que levou para reconhecer a frustração do drow, uma
inquietação causada pelo fracasso de Drizzt em entender as
habilidades do homem.
— Ou seria a sua cegueira, talvez, um ardil, uma artimanha que
você usa para ganhar vantagem? — Drizzt pressionou
implacavelmente.
— E se for? — Montólio respondeu abertamente.
— Então é um ardil muito bom, Montólio DeBrouchee —
respondeu Drizzt. — Certamente, te ajuda contra inimigos… e
amigos também — as palavras tinham um gosto amargo para Drizzt,
e ele suspeitava que estava deixando seu orgulho trazer o seu pior
à tona.
— Não é comum você ser superado em batalha — respondeu
Montólio, reconhecendo seu breve combate como a origem das
frustrações de Drizzt. Se ele pudesse ter visto o drow naquele
momento, a expressão de Drizzt teria revelado muito.
— Você pega pesado demais consigo mesmo — continuou
Montólio depois de um silêncio desconfortável. — Eu não te derrotei
de verdade.
— Você me deixou caído e indefeso.
— Você se derrotou sozinho — explicou Montólio. — Eu sou cego
de verdade, mas não tão indefeso quanto você parece achar. Você
me subestimou. Eu também sabia que você me subestimaria,
embora quase não acreditasse que você pudesse ser tão cego.
Drizzt parou abruptamente, e Montólio parou em seguida, ao
perceber o atrito do galho aumentar repentinamente. O velho ranger
sacudiu a cabeça e gargalhou. Ele então puxou uma adaga, girou-a
no ar, pegou e gritou:
— Bétula! — e lançou-a diretamente em uma das poucas bétulas
do bosque. — Poderia um cego fazer isso? — Montólio perguntou
retoricamente.
— Então você pode ver — afirmou Drizzt.
— É claro que não — Montólio retrucou bruscamente. — Meus
olhos não funcionam há cinco anos. Mas também não sou cego,
Drizzt, principalmente neste lugar, que chamo de lar!
— No entanto, você achou que eu estava cego — continuou o
ranger, sua voz ainda calma. — Em nossa luta, quando seu feitiço
de escuridão expirou, você acreditou ter conseguido uma vantagem.
Você achou que todas as minhas ações — ações eficazes, devo
dizer — tanto na batalha contra os orcs quanto na nossa luta foram
simplesmente preparadas e ensaiadas? Se eu estivesse tão aleijado
quanto Drizzt Do’Urden acreditava que estou, como poderia
sobreviver um dia nessas montanhas?
— Eu não… — começou Drizzt, mas seu constrangimento o
silenciou. O que Montólio disse era verdade, e Drizzt sabia disso.
Ele, pelo menos em um nível inconsciente, havia acreditado que o
ranger era menos do que inteiro desde seu primeiro encontro. Drizzt
sentia que não demonstrava a seu amigo nenhum desrespeito — na
verdade, achava o homem incrível —, mas havia feito pouco de
Montólio e achado que as limitações do ranger eram maiores do que
as suas.
— Você achou — corrigiu Montólio —, e eu te perdoo por isso.
Para o seu crédito, você me tratou de forma mais justa do que
qualquer um que me conhecia antes, inclusive aqueles que haviam
viajado ao meu lado por incontáveis campanhas. Agora sente-se —
disse a Drizzt. — É minha vez de contar minha história, como você
contou a sua. Por onde começar?
Montólio meditou, coçando o queixo.
Tudo parecia tão distante para ele agora, outra vida que deixara
para trás. Porém, ele mantinha uma ligação com o seu passado: seu
treinamento como um ranger da deusa Mielikki. Drizzt, igualmente
instruído por Montólio, entenderia.
— Eu dei minha vida à floresta, à ordem natural, desde que era
muito jovem — começou Montólio. — Eu aprendi, como eu comecei
a te ensinar, os caminhos do mundo selvagem e logo decidi que
defenderia tal perfeição, essa harmonia de ciclos vasta e
maravilhosa demais para ser entendida. É por isso que eu gosto
tanto de lutar contra orcs e similares. Como já falei antes, eles são
os inimigos da ordem natural, inimigos das árvores e dos animais
tanto quanto dos homens e das raças bondosas. Criaturas
inflexíveis, em tudo, e não sinto culpa em cortá-las!
Montólio passou muitas horas contando algumas de suas
campanhas, expedições nas quais atuou sozinho ou como batedor
para grandes exércitos. Contou a Drizzt sobre sua própria instrutora,
Dilamon, uma ranger tão habilidosa com um arco que ele nunca a
tinha visto errar, nem uma vez em dez mil disparos.
— Ela morreu em batalha — explicou Montólio — defendendo
uma fazenda de uma invasão de um bando de gigantes. Não chore
pela senhora Dilamon, no entanto: nenhum fazendeiro foi ferido e
nenhum dos poucos gigantes que se arrastaram para longe mostrou
seu rosto feio naquela região novamente!
A voz de Montólio caiu notavelmente quando ele chegou ao seu
passado mais recente. Ele falou sobre os Rangers Vigilantes, seu
último grupo de aventureiros, e sobre como eles lutaram contra um
dragão vermelho que vinha saqueando as aldeias. O dragão foi
morto, assim como três dos Rangers Vigilantes, e Montólio teve seu
rosto queimado.
— Os clérigos me arrumaram direitinho — disse Montólio
sombriamente. — Não ficou nenhuma cicatriz pra mostrar minha dor
— ele fez uma pausa, e Drizzt viu, pela primeira vez desde que
conheceu o velho ranger, uma nuvem de dor atravessar o rosto de
Montólio. — No entanto, não conseguiram fazer nada pelos meus
olhos. As feridas estavam além de suas habilidades.
— Você veio aqui para morrer — disse Drizzt, com um tom mais
acusatório do que pretendia.
Montólio não refutou a acusação.
— Eu sofri o sopro de dragões, as lanças dos orcs, a ira dos
homens malignos e a ganância daqueles que violariam a terra para
o seu próprio benefício — disse o ranger. — Nenhuma dessas
coisas feriu tão profundamente quanto a pena. Mesmo os meus
companheiros dos Rangers Vigilantes, que haviam lutado ao meu
lado tantas vezes, sentiram pena de mim. Até você.
— Eu não… — Drizzt tentou negar.
— Você sim — retrucou Montólio. — Em nossa batalha, você se
considerou superior. É por isso que você perdeu! A força de
qualquer ranger é a sabedoria, Drizzt. Um ranger entende a si
mesmo, seus inimigos e seus amigos. Você achou que eu era
deficiente, senão você nunca teria tentado uma manobra tão
impetuosa quanto pular sobre mim. Mas eu entendi você e antecipei
o movimento — aquele sorriso irônico mostrou-se perversamente.
— Sua cabeça ainda está doendo?
— Sim — admitiu Drizzt, esfregando o hematoma — embora
meus pensamentos pareçam estar clareando.
— Quanto à sua pergunta original — disse Montólio, convencido
de que seu argumento já tinha sido provado — não há nada
excepcional em minha audição, nem em nenhum dos meus outros
sentidos. Eu apenas presto mais atenção ao que eles me contam do
que as outras pessoas, e eles me guiam bem, como você entende
agora. Realmente, eu não sabia dessas habilidades quando vim pra
cá a princípio, e você está correto no seu palpite sobre o motivo de
eu ter vindo. Sem os meus olhos, achei que fosse um homem morto,
e queria morrer aqui, neste bosque que aprendi a conhecer e amar
nas minhas viagens anteriores.
— Talvez fosse graças a Mielikki, a Senhora da Floresta —
embora mais provavelmente fosse Graul, um inimigo próximo daqui
—, mas não demorou muito para mudar minhas intenções em
relação à minha própria vida. Encontrei um propósito aqui, sozinho e
aleijado — e estava aleijado nesses primeiros dias. Com esse
propósito veio uma renovação em minha vida, e isso, por sua vez,
me levou a perceber meus limites novamente. Agora estou velho,
cansado e cego. Se tivesse morrido cinco anos atrás, como
pretendia, teria morrido com a minha vida incompleta. Nunca
saberia até onde poderia ir. Somente na adversidade, além de
qualquer coisa que Montólio DeBrouchee jamais imaginou, poderia
ter conhecido tão bem a mim mesmo e à minha deusa.
Montólio parou para prestar atenção em Drizzt. Ele ouviu um
farfalhar com a menção de sua deusa, e tomou isso como um
movimento desconfortável. Querendo explorar tal revelação,
Montólio alcançou dentro de sua túnica e sua cota de malha e sacou
um pingente no formato da cabeça de um unicórnio.
— Não é bonito? — perguntou sem rodeios.
Drizzt hesitou. O unicórnio era trabalhado perfeitamente e tinha
um desenho maravilhoso, mas as conotações do pingente não se
acomodavam facilmente no coração do drow. Em Menzoberranzan,
Drizzt havia testemunhado a loucura de se seguir os comandos das
divindades, e não gostou do que tinha visto.
— Quem é o seu deus, drow? — Montólio perguntou. Em todas
as semanas em que ele e Drizzt estiveram juntos, não tinham
chegado a falar sobre religião.
— Não tenho um deus — respondeu Drizzt com ousadia —, e
também não quero um.
Era a vez de Montólio fazer uma pausa.
Drizzt levantou-se e caminhou alguns passos.
— Meu povo segue a Lolth — ele começou. — Ela, se não a
causa, certamente é a continuação de sua maldade, como esse
Gruumsh é para os orcs, e como outros deuses são para outros
povos. Seguir um deus é loucura. Em vez disso, devo seguir meu
coração.
A risada tranquila de Montólio roubou o poder da proclamação de
Drizzt.
— Você tem um deus, Drizzt Do’Urden — disse ele.
— Minha divindade é meu coração — declarou Drizzt, voltando-se
para ele.
— Como a minha.
— Você chamou sua divindade de Mielikki — retrucou Drizzt.
— E você ainda não encontrou um nome para seu deus —
rebateu Montólio. — Isso não significa que você não tenha uma
divindade. Seu deus é o seu coração, e o que o seu coração lhe
diz?
— Eu não sei — admitiu Drizzt depois de refletir sobre aquela
pergunta complicada.
— Pense, então! — gritou Montólio. — O que seus instintos lhe
falaram sobre o bando de gnolls ou sobre os fazendeiros em
Maldobar? Lolth não é sua divindade — isso é certo. Que deus ou
deusa então se adapta ao que está no coração de Drizzt Do’Urden?
Montólio quase conseguiu ouvir os dar de ombros contínuos de
Drizzt.
— Você não sabe? — perguntou o velho ranger. — Mas eu sei.
— Você presume muito — respondeu Drizzt, ainda não
convencido.
— Eu observo muito — disse Montólio com uma risada. — Você
tem um coração similar ao de Guenhwyvar?
— Nunca duvidei desse fato — respondeu Drizzt com
honestidade.
— Guenhwyvar segue Mielikki.
— Como pode saber? — Drizzt argumentou, ficando um pouco
perturbado. Ele não se importava com os palpites de Montólio sobre
ele, mas Drizzt considerou tal rótulo um ataque à pantera. De
alguma forma, para Drizzt, Guenhwyvar parecia estar acima dos
deuses e todas as implicações de seguir um.
— Como posso saber? — Montólio ecoou com incredulidade. —
A gata me disse, é claro! Guenhwyvar é a entidade da pantera, uma
criatura do domínio de Mielikki.
— Guenhwyvar não precisa de seus rótulos — respondeu Drizzt
com raiva, movendo-se rapidamente para sentar-se novamente ao
lado do ranger.
— É claro que não — concordou Montólio. — Mas isso não muda
o fato de ela ser. Você não entende, Drizzt Do’Urden. Você cresceu
cercado pela perversidade de uma divindade.
— E a sua é a verdadeira? — Drizzt perguntou sarcasticamente.
— Todos são verdadeiros, e todos são um só, temo eu —
respondeu Montólio.
Drizzt teve que concordar com a observação anterior de Montólio:
ele não entendia.
— Você vê os deuses como entidades externas — Montólio
tentou explicar. — Você os vê como seres físicos tentando controlar
nossas ações para seus próprios fins, e assim, você, na sua
independência teimosa, os rejeita. Os deuses são internalizados,
digo eu, quer alguém o tenha nomeado como próprio ou não. Você
seguiu Mielikki por toda sua vida, Drizzt. Você simplesmente nunca
teve um nome para colocar em seu coração.
De repente, Drizzt ficou mais intrigado do que cético.
— O que você sentiu assim que saiu pela primeira vez do
Subterrâneo? — Montólio perguntou. — O que seu coração lhe
disse quando olhou pela primeira vez para o sol ou as estrelas, ou o
verde da floresta?
Drizzt pensou naquele dia distante, quando ele e sua patrulha
drow saíram do Subterrâneo para atacar uma reunião de elfos.
Aquelas eram memórias dolorosas, mas dentro delas surgia uma
sensação de conforto, uma lembrança de uma exaltação
maravilhosa com a sensação do vento e dos aromas das flores
recentemente abertas.
— E como você falou com Algazarra? — Montólio continuou. —
Não é uma façanha simples, compartilhar a caverna com aquele
urso! Admita ou não, você tem o coração de um ranger. E o coração
de um ranger é um coração de Mielikki.
Então uma conclusão formal trouxe de volta uma parte das
dúvidas de Drizzt.
— E o que a sua deusa exige? — ele perguntou, com um tom
levemente irritado de volta a sua voz. Começou a se levantar
novamente, mas Montólio bateu uma mão sobre suas pernas e o
segurou.
— Exige? — o ranger riu. — Eu não sou um missionário
proclamando palavras empoladas e impondo regras de
comportamento! Eu não acabei de dizer que os deuses estão dentro
da pessoa? Você conhece as regras de Mielikki assim como eu.
Você tem seguido elas a vida toda. Estou te oferecendo um nome
pra elas, só isso, e um ideal de comportamento personificado, um
exemplo que você pode seguir nos tempos em que se afastar do
que você sabe que é verdade.
Com isso, Montólio pegou o galho e Drizzt seguiu.
Drizzt refletiu sobre as palavras por um longo tempo. Ele não
dormiu naquele dia, embora tenha ficado em sua toca, pensando.
— Eu desejo saber mais sobre sua… nossa… deusa — disse
Drizzt na próxima noite, quando encontrou Montólio cozinhando o
jantar.
— E eu desejo te ensinar — respondeu Montólio.

Cem conjuntos de olhos amarelados e injetados de sangue se


viraram para encarar o humano corpulento quando ele atravessou o
acampamento, levando seu cão amarelo ao seu lado. Roddy não
gostava de ir ali, até o forte do rei orc, Graul, mas não tinha
intenções de deixar o drow fugir desta vez. Roddy tinha tratado
várias vezes com Graul nos últimos anos; o rei orc, com tantos olhos
nas montanhas selvagens, provou ser um aliado inestimável,
embora caro, em suas caçadas.
Vários grandes orcs cruzaram propositalmente o caminho de
Roddy, empurrando-o e provocando seu cachorro. Roddy
sabiamente manteve seu animal de estimação sob controle, embora
ele, também, quisesse atacar os orcs malcheirosos. Eles faziam isso
toda vez que ele chegava, esbarrando, cuspindo, fazendo qualquer
coisa para provocar uma briga. Orcs sempre se mostravam
corajosos quando estavam em número maior que seus inimigos.
Geralmente de cem pra um.
Todo o grupo se pôs atrás de McGristle e seguiu-o de perto
enquanto cobria os últimos cinquenta metros, subindo uma encosta
rochosa, até a entrada da caverna de Graul. Dois orcs grandes
saíram da entrada, brandindo lanças, para interceptar o intruso.
— Por que cê aqui? — um deles perguntou em sua língua nativa.
O outro estendeu a mão como se esperasse pagamento.
— Não pagar esta vez — respondeu Roddy, imitando
perfeitamente seu dialeto. — Desta vez, Graul paga!
Os orcs olharam um para o outro em descrença, depois viraram
para Roddy e emitiram grunhidos que de repente foram cortados
quando um orc ainda maior surgiu da caverna.
Graul disparou e empurrou os guardas para o lado, caminhando
até colocar seu focinho escorrendo a um centímetro do nariz de
Roddy.
— Graul paga? — ele fungou, seu hálito quase derrubando
Roddy.
O riso de Roddy era puramente por causa dos orcs plebeus
empolgados que estavam mais próximos. Ele não podia mostrar
nenhuma fraqueza ali; como cães ferozes, os orcs atacavam
rapidamente qualquer um que não se mantivesse firme diante deles.
— Tenho informação, rei Graul — disse o caçador de
recompensas com firmeza. — Informação que Graul gostaria de
saber.
— Fala — gritou Graul.
— Paga? — Roddy perguntou, embora suspeitasse de que
estava abusando da sorte.
— Fala! — Graul rosnou novamente. — Se sua palavra ter valor,
Graul vai deixar você vivo.
Roddy silenciosamente lamentou que sempre parecia funcionar
assim com Graul. Era difícil fazer qualquer negócio favorável com
aquele chefe fedorento quando ele estava cercado por uma centena
de guerreiros armados. Roddy, porém, continuou firme. Ele não
tinha ido até ali pelo ouro — embora esperasse que pudesse
conseguir algum —, mas pela vingança. Roddy não atacaria Drizzt
abertamente enquanto o drow estivesse com Monshi. Nessas
montanhas, cercadas por seus amigos animais, Monshi era uma
força formidável, e mesmo se Roddy conseguisse passar por ele e
chegar até o drow, muitos aliados de Monshi, veteranos como
Columba Garra de Falcão, certamente vingariam a ação.
— Ter um elfo negro em seu domínio, poderoso rei orc! — Roddy
proclamou. Ele não viu o choque que esperava.
— Renegado — explicou Graul.
— Cê sabe? — os olhos arregalados de Roddy traíram sua
descrença.
— Drow mata guerreiros de Graul — disse o chefe dos orcs,
sombriamente. Todos os orcs reunidos começaram a bater o pé e
cuspir, xingando o elfo negro.
— Então, por que drow vive? — Roddy perguntou sem rodeios.
Os olhos do caçador de recompensas se estreitaram quando
suspeitou que Graul não sabia ainda a localização do drow. Talvez
ainda tivesse algo com que negociar.
— Meus batedores não consegue achar! — Graul rugiu, e era
verdade. Mas qualquer frustração que o rei orc mostrava era uma
atuação bem planejada. Graul sabia onde Drizzt estava, mesmo que
seus batedores não soubessem.
— Eu achar! — Roddy rugiu, e todos os orcs pularam e gritaram
em alegria faminta. Graul ergueu os braços para silenciá-los. Esta
era a parte crítica, o rei orc sabia. Ele olhou em volta em busca do
xamã, o líder espiritual da tribo, e achou o orc de vestes vermelhas
observando e ouvindo atentamente, conforme Graul esperava.
Sob o conselho desse xamã, Graul evitou qualquer ação contra
Montólio durante todos esses anos. O xamã acreditava que o
aleijado que não era tão aleijado fosse um presságio de magia ruim,
e, com as advertências de seu líder religioso, toda a tribo orc se
encolhia quando Montólio estava por perto. Mas, ao se aliar com o
drow, e, se as suspeitas de Graul estivessem corretas, ao ajudá-lo a
vencer a batalha na cordilheira, Montólio havia se metido onde não
devia, tinha violado o domínio de Graul tão seguramente quanto o
drow renegado. Agora, convencido de que o drow era realmente um
renegado — já que nenhum outro elfo negro estava na região —, o
rei orc só esperava alguma desculpa que pudesse incitar seus
lacaios à ação contra o bosque. Roddy, Graul tinha sido informado,
agora poderia fornecer essa desculpa.
— Fala! — Graul gritou no rosto de Roddy, para interceptar as
próximas tentativas de pagamento.
— Drow tá com ranger — respondeu Roddy. — Ele senta no
bosque do ranger cego! — Se Roddy tivesse esperado que sua
proclamação inspirasse outra erupção de maldições, saltos e
cuspidas, certamente ficou desapontado. A menção do ranger cego
lançou uma palidez massiva sobre a reunião, e agora todos os orcs
comuns olhavam do xamã para Graul em busca de alguma
orientação.
Era hora de Roddy tecer um conto de conspiração, como Graul
tinha dito que ele faria.
— Vocês tem que ir e pegar! — Roddy gritou. — Eles não são...
Graul ergueu os braços para silenciar ambos os murmúrios e
Roddy.
— É o ranger cego que mata gigante? — o rei orc perguntou
maliciosamente a Roddy. — E ajuda drow a matar guerreiro?
Roddy, é claro, não tinha ideia do que o Graul estava falando,
mas foi rápido o suficiente para pegar a intenção do rei orc.
— Foi! — declarou alto. — E agora o drow e o ranger tá contra
todo mundo! Vocês ter que acertar e esmagar eles antes que eles
vem e acerta vocês! O ranger vai trazer seus animais e elfoses —
muitos e muitos elfoses e os anãos também — contra Graul!
A menção dos amigos de Montólio, em particular os elfos e os
anões, que o povo de Graul odiava acima de tudo no mundo,
trouxeram expressões azedas em cada face e fizeram mais de um
orc olhar nervosamente por cima do ombro, como se estivesse
esperando o exército do ranger vir cercar o acampamento naquele
instante.
Graul olhou diretamente para o xamã.
— Aquele-Que-Vigia deve abençoar o ataque — o xamã
respondeu à pergunta silenciosa. — Na lua nova! — Graul assentiu
com a cabeça e o orc de vestes vermelhas virou-se, convocou uma
série de plebeus a seu lado, e se pôs a fazer os preparativos.
Graul pegou uma bolsa e sacou um punhado de moedas de prata
para Roddy. Roddy não havia fornecido nenhuma informação
verdadeira que o rei ainda não sabia, mas a declaração do caçador
de recompensas de uma conspiração contra a tribo orc prestou
assistência considerável a Graul em sua tentativa de despertar seu
xamã supersticioso contra o ranger cego.
Roddy aceitou o pagamento lamentável sem reclamar,
acreditando já ter conseguido o suficiente para o seu propósito e se
virou para sair.
— Você fica — disse Graul de repente.
Com um movimento do rei orc, vários guardas orcs se
posicionaram ao lado do caçador de recompensas. Roddy olhou
desconfiado para Graul.
— Convidado — o rei orc explicou calmamente. — Vem pra luta
— Roddy não ficou com muitas opções.
Graul acenou para os guardas e voltou para dentro da caverna.
Os guardas orcs apenas deram de ombros e sorriram um para o
outro, sem vontade de voltar e encarar os convidados do rei,
particularmente o enorme lobo de pelo prateado.
Quando Graul voltou para seu lugar, se virou para falar com o
outro convidado.
— Você certo — disse Graul ao diminuto sprite.
— Eu-sou-muito-bom-em-conseguir-informações — Tephanis
sorriu e, silenciosamente, acrescentou — e-criar-situações-
favoráveis!
Tephanis achou-se inteligente naquele momento, porque não só
havia sido ele quem informara a Roddy de que o drow estava no
bosque de Montólio, mas também arranjou com o rei Graul para que
Roddy ajudasse os dois. Graul não tinha amor pelo ranger cego,
Tephanis sabia, e com a presença do drow servindo de desculpa,
Graul poderia finalmente persuadir seu xamã a abençoar o ataque.
— Caroak ajuda na luta? — perguntou Graul, olhando com
desconfiança para o enorme e imprevisível lobo prateado.
— Claro — disse Tephanis imediatamente. — É-do-nosso-
interesse-ver-esses-inimigos-destruídos!
Caroak, compreendendo cada palavra que os dois trocaram,
levantou-se e saiu da caverna. Os guardas na entrada não tentaram
bloquear seu caminho.
— Caroak-vai-incitar-os-worgs — explicou Tephanis. — Uma-
força-poderosa-vai-se-unir-contra-o-ranger-cego. Há-muito-tempo-
ele-é-um-inimigo-de-Caroak.
Graul assentiu com a cabeça e meditou em particular sobre as
semanas vindouras. Se ele pudesse se livrar tanto do ranger quanto
do drow, seu vale seria mais seguro do que havia sido em muitos
anos — desde antes da chegada de Montólio. O ranger raramente
lutava contra os orcs pessoalmente, mas Graul sabia que eram os
espiões animais do ranger que sempre alertavam as caravanas que
passavam. Graul não conseguia se lembrar da última vez que seus
guerreiros haviam apanhado uma caravana desprevenida, o método
orc preferido. Se o ranger se fosse, no entanto…
Com o verão, o auge da temporada de negócios, se aproximando
rapidamente, os orcs se dariam bem este ano.
Tudo o que Graul precisava agora era a confirmação do xamã,
que Aquele-Que-Vigia, Gruumsh Caolho, o deus orc, abençoaria o
ataque.
A lua nova, um tempo sagrado para os orcs e um momento em
que o xamã acreditava que poderia conhecer as vontades dos
deuses, estava a mais de duas semanas. Ansioso e impaciente,
Graul resmungou pela demora, mas sabia que simplesmente teria
que esperar. Graul, muito menos religioso do que outros
acreditavam, tinha a intenção de atacar independentemente da
decisão do xamã, mas o rei orc não desafiaria abertamente o líder
espiritual da tribo, a menos que fosse absolutamente necessário.
A lua nova não estava tão longe, Graul disse a si mesmo. Então
ele se livraria tanto do ranger cego quanto do drow misterioso.
CAPÍTULO 17
Em Desvantagem
— VOCÊ PARECE PREOCUPADO — disse Drizzt a Montólio
quando viu o ranger em uma ponte de corda na manhã seguinte.
Piante estava pousado em um galho acima dele.
Montólio, perdido em pensamentos, não respondeu
imediatamente. Drizzt deu de ombros e se virou, respeitando a
privacidade do ranger, e tirou a estatueta de ônix do bolso.
— Guenhwyvar e eu vamos sair para uma breve caçada —
explicou Drizzt por cima do ombro — antes que o sol suba muito.
Então, vou descansar e a pantera vai passar o resto do dia com
você.
Ainda assim, Montólio quase não ouviu o drow, mas quando o
ranger notou que Drizzt colocou a estatueta de ônix na ponte de
corda, as palavras do drow se registraram mais claramente e ele
saiu de suas contemplações.
— Espere — disse Montólio, estendendo a mão. — Deixe a
pantera continuar descansando.
Drizzt não entendeu:
— Guenhwyvar está fora há mais de um dia — disse ele.
— Talvez precisemos em breve de Guenhwyvar para algo mais
importante do que caçar — Montólio começou a explicar.
— Qual é o problema? — perguntou Drizzt, de repente sério. — O
que Piante viu?
— Ontem à noite foi lua nova — disse Montólio. Drizzt, com sua
nova compreensão dos ciclos lunares, assentiu com a cabeça. —
Um dia sagrado para os orcs — continuou Montólio. — O
acampamento deles está a quilômetros de distância, mas ouvi seus
gritos na noite passada.
Novamente Drizzt assentiu com a cabeça em reconhecimento.
— Ouvi os uivos de suas canções, mas me perguntei se não seria
mais do que a voz do vento.
— Foi o uivo dos orcs — assegurou Montólio. — Todos os meses
eles se reúnem e grunhem e dançam descontroladamente em seu
estupor típico. Os orcs não precisam de poções para induzir isso,
você sabe. Não pensei nisso, embora eles parecessem muito
barulhentos. Geralmente, não podem ser ouvidos aqui. Um vento
favorável... desfavorável... trouxe a música, eu suponho.
— Você descobriu então que havia algo mais na música? —
Drizzt supôs.
— Piante também os ouviu — explicou Montólio. — Sempre
cuidando de mim, essa coisinha — ele se virou na direção da coruja
— foi dar mais uma olhada.
Drizzt também olhou para o pássaro maravilhoso, sentado
inchado e orgulhoso como se compreendesse os elogios de
Montólio. Apesar das sérias preocupações do ranger, Drizzt teve
que se perguntar o quão completamente Montólio podia entender
Piante, e o quão completamente a coruja podia compreender os
acontecimentos ao seu redor.
— Os orcs formaram uma festa de guerra — disse Montólio,
coçando a barba eriçada. — Graul despertou do longo inverno com
uma sede de vingança, ao que parece.
— Como pode saber? — Drizzt perguntou. — Piante pode
entender suas palavras?
— Não, claro que não. — Montólio respondeu, achando a ideia
engraçada.
— Então, como você pode saber?
— Uma matilha de worgs surgiu, isso Piante me contou —
explicou Montólio. — Orcs e worgs não são os melhores amigos,
mas se juntam quando há algum problema chegando. A celebração
dos orcs ontem à noite foi selvagem, e com a presença de worgs,
pode haver poucas dúvidas.
— Existe alguma aldeia próxima? — Drizzt perguntou.
— Nada mais perto do que Maldobar — respondeu Montólio. —
Eu duvido que os orcs iriam tão longe, mas a neve já está quase
completamente derretida e as caravanas irão atravessar o estreito
de Sundabar para a Cidadela Adbar e vice-versa. Deve haver uma
que vem de Sundabar, embora eu não acredite que Graul seja
ousado o suficiente, ou estúpido, para atacar uma caravana de
anões fortemente armados vinda de Adbar.
— Quantos guerreiros tem o rei orc?
— Graul poderia reunir milhares se tivesse tempo e vontade de
fazê-lo — disse Montólio —, mas isso levaria semanas, e Graul
nunca foi conhecido por sua paciência. Além disso, não teria trazido
os worgs tão cedo se quisesse esperar para reunir suas legiões. Os
orcs têm o hábito de desaparecer enquanto os worgs estão por
perto, e os worgs têm o hábito de ficar preguiçosos e gordos com
tantos orcs ao redor, se é que você me entende.
O tremor de Drizzt mostrou que ele realmente entendia.
— Eu acho que Graul tem cerca de uma centena de guerreiros —
disse Montólio —, talvez de dez a vinte worgs, pela contagem de
Piante, e provavelmente um gigante ou dois.
— Uma força considerável para atacar uma caravana — disse
Drizzt, mas tanto o drow quanto o ranger tinham outras suspeitas
em mente. Quando se conheceram, dois meses antes, fora à custa
de Graul.
— Levará um dia ou dois para se prepararem — disse Montólio
depois de uma pausa desconfortável. — Piante vai vigiá-los mais de
perto esta noite, e eu também chamarei outros espiões.
— Eu irei espiar os orcs — acrescentou Drizzt. Ele viu a
preocupação cruzar o rosto de Montólio, mas rapidamente a
descartou. — Muitas vezes essa era a minha obrigação, ser um
batedor das patrulhas de Menzoberranzan — disse. — É uma tarefa
que eu me sinto bastante seguro em fazer. Não tenha medo.
— Aquilo foi no Subterrâneo — lembrou Montólio.
— A noite é tão diferente? — Drizzt respondeu maliciosamente,
lançando uma piscadela e um sorriso reconfortante na direção de
Montólio. — Nós teremos nossas respostas.
Drizzt disse seus “bons dias” então e saiu para descansar.
Montólio ouviu os passos em retirada de seu amigo, quase
inaudíveis entre as árvores densamente aglomeradas, com
admiração sincera, e achou o plano de Drizzt um bom plano. O dia
se passou lentamente e sem mais nenhuma ocorrência para o
ranger. Ele ocupou-se o melhor que pôde ao considerar seus planos
de defesa para o bosque. Montólio nunca havia defendido o lugar
antes, exceto uma vez quando um bando de ladrões tolos havia ido
parar ali, mas havia passado muitas horas formulando e testando
diferentes estratégias, achando inevitável que algum dia Graul
ficaria cansado da interferência do ranger e encontraria a coragem
de atacar.
Se esse dia tivesse chegado, Montólio estava confiante de que
estaria pronto. Porém, pouco poderia ser feito agora: as defesas não
poderiam ser levantadas antes de Montólio ter certeza da intenção
de Graul, e o ranger descobriu que a espera parecia interminável.
Finalmente, Piante informou a Montólio que o drow estava se
mexendo.
— Eu partirei, então — observou Drizzt assim que encontrou o
ranger, observando o sol que já estava a oeste. — Vamos descobrir
o que nossos vizinhos hostis estão planejando.
— Tenha cuidado, Drizzt — disse Montólio, e a preocupação
genuína em sua voz tocou o drow. — Graul pode ser um orc, mas é
esperto. Ele pode muito bem esperar que um de nós vá dar uma
olhada nele.
Drizzt sacou suas cimitarras ainda estranhas e as fez girar para
ganhar confiança em seus movimentos. Em seguida, voltou a
encaixá-las no cinto e deixou cair uma mão no bolso, sentindo mais
conforto com a presença da estatueta de ônix. Com um tapinha final
nas costas do ranger, o batedor partiu.
— Piante estará por perto! — Montólio gritou para ele. — E outros
amigos que você pode não esperar. Dê um grito se encontrar mais
problemas do que pode lidar!

O acampamento dos orcs não era difícil de encontrar, marcado


por uma enorme fogueira que ardia no céu noturno. Drizzt viu as
formas, incluindo a de um gigante, dançando ao redor das chamas e
ouviu os grunhidos e os rosnados de grandes lobos, worgs, de
acordo com Montólio. O acampamento ficava em um pequeno vale,
em uma clareira cercada por grandes bordos e paredes de pedra.
Drizzt podia ouvir as vozes dos orcs muito bem naquela noite
tranquila, então decidiu não chegar muito perto. Ele escolheu uma
enorme árvore e selecionou um ramo inferior, convocando sua
habilidade de levitação inata para elevá-lo.
O feitiço falhou completamente, então Drizzt, não muito surpreso,
enfiou as cimitarras em seu cinto e subiu. O tronco se ramificava
várias vezes, e chagava a uns seis metros de altura. Drizzt foi até a
bifurcação mais alta e estava prestes a começar a subir um ramo
longo e sinuoso quando ouviu uma respiração. Cautelosamente,
Drizzt olhou ao redor do grande tronco.
No lado oposto a ele, aninhado confortavelmente no vão entre o
canto do tronco e outro ramo, se reclinava um sentinela orc com as
mãos cruzadas atrás de sua cabeça e uma expressão vazia e
entediada no rosto. Aparentemente, a criatura não tinha notado o
elfo negro silencioso, a menos de um metro de distância.
Drizzt agarrou o punho de uma cimitarra, então, ganhando
confiança de que a criatura estúpida estava confortável demais para
olhar ao redor, mudou de ideia e ignorou o orc. Em vez disso,
concentrou-se nos eventos na clareira.
A linguagem orc era parecida com a língua dos goblins na
estrutura e inflexão, mas Drizzt, não sendo um mestre mesmo em
goblin, só conseguia distinguir algumas palavras dispersas. Os orcs,
no entanto, eram uma raça bastante demonstrativa. Dois modelos,
imagens de um elfo negro e um humano magro e de bigode, logo
mostraram a Drizzt a intenção do clã. O maior orc da reunião, o rei
Graul, provavelmente, xingava e cuspia nos modelos. Então, os
soldados orcs e os worgs se revezaram em estraçalhar os bonecos,
para a euforia dos espectadores frenéticos, uma euforia que se
transformou em êxtase puro quando o gigante de pedra caminhou e
esmagou o falso elfo negro no chão.
Aquilo continuou por horas, e Drizzt suspeitava que continuaria
até o amanhecer. Graul e vários outros orcs grandes se afastaram
da hoste principal e começaram a desenhar no chão,
aparentemente organizando os planos de batalha. Drizzt não podia
se aproximar o suficiente para entender suas conversas
embaralhadas e não tinha intenção de ficar na árvore com a luz
reveladora do amanhecer se aproximando rapidamente.
Ele observou o sentinela orc do outro lado do tronco, agora
roncando profundamente em seu sono, antes de começar a descer.
Os orcs pretendiam atacar a casa de Montólio, Drizzt sabia; não
deveria agora dar o primeiro golpe?
A consciência de Drizzt o traiu. Ele desceu do enorme bordo e
fugiu do acampamento, deixando o orc adormecido em seu recanto
confortável.

Montólio, com Piante em seu ombro, sentou-se em uma das


pontes de corda, esperando o retorno de Drizzt.
— Eles estão vindo para cá — declarou o velho ranger quando o
drow finalmente entrou. — Graul está furioso com alguma coisa,
provavelmente um incidente na Escarpa de Rogee. — Montólio
apontou para o oeste, em direção à alta cordilheira onde ele e Drizzt
se encontraram.
— Você tem um lugar seguro para situações assim? — Drizzt
perguntou. — Os orcs virão esta noite, creio eu, quase uma centena
de guerreiros fortes e com aliados poderosos.
— Fugir? — gritou Montólio. Ele agarrou uma corda próxima e a
jogou para ficar ao lado do drow, enquanto Piante apertava sua
túnica e se preparava para o passeio. — Fugir de orcs? Eu não
disse que os orcs são minha paixão especial? Nada em todo o
mundo soa mais doce do que uma lâmina abrindo uma barriga de
orc!
— Eu devo perder meu tempo te lembrando dos números? —
Drizzt disse, sorrindo apesar de sua preocupação.
— Você deveria lembrar a Graul! — riu Montólio. — O velho orc
perdeu a inteligência, ou ficou extremamente mais resistente, para
vir até aqui com uma desvantagem numérica tão grande!
A única resposta de Drizzt, a única possível a uma declaração tão
escandalosa quanto esta, veio como uma explosão de riso.
— Mas então — prosseguiu Montólio, sem sequer hesitar —, vou
apostar um balde de trutas recém-apanhadas e três bons garanhões
que o velho Graul não virá para a luta. Ele vai ficar escondido atrás
das árvores, observando e torcendo suas mãos gordas e, quando
destruirmos suas tropas, será o primeiro a fugir! Ele nunca teve
colhões para uma batalha de verdade, não desde que se tornou rei.
Ele está muito confortável, eu acho, com muito a perder. Bem,
vamos abaixar um pouco a bola dele!
Novamente Drizzt não conseguiu encontrar as palavras para
responder, e ele não poderia ter parado de rir do absurdo de
qualquer maneira. Ainda assim, Drizzt teve que admitir o efeito
empolgante e reconfortante que a divagação de Montólio lhe
conferia.
— Você vai descansar um pouco — disse Montólio, coçando seu
queixo barbado e olhando ao redor, novamente analisando seu
entorno. — Vou começar os preparativos — você ficará
impressionado, eu prometo — e te acordo em algumas horas.
Os últimos murmúrios que o drow ouviu quando se arrastou para
dentro de seu cobertor em seu refúgio escuro colocaram tudo em
perspectiva.
— Sim, Piante, espero por isso há muito tempo — disse Montólio
empolgado, e Drizzt não duvidou nem um pouco disso.

Tinha sido uma primavera pacífica para Kellindil e seus parentes


elfos. Eles eram um grupo nômade, vagando por toda a região e
parando onde encontrassem abrigo, nas árvores ou nas cavernas.
Seu amor era o mundo aberto, dançar sob as estrelas, cantar em
sintonia com os rios velozes das montanhas, caçar veados e javalis
entre as árvores das montanhas.
Kellindil reconheceu o medo, uma emoção raramente vista entre
o grupo despreocupado, no rosto de seu primo, assim que o outro
elfo entrou no acampamento bem tarde uma noite.
Todos os outros se reuniram.
— Os orcs estão agitados — explicou o elfo.
— Graul achou uma caravana? — perguntou Kellindil.
Seu primo sacudiu a cabeça e pareceu confuso.
— É muito cedo para os comerciantes — respondeu. — Graul
tem outra presa em mente.
— O bosque do ranger — disseram vários dos elfos juntos. O
grupo inteiro voltou-se para Kellindil, então, aparentemente
considerando o drow sua responsabilidade.
— Eu não acredito que o drow esteja aliado a Graul — Kellindil
respondeu imediatamente à pergunta não pronunciada. — Com
todos os seus batedores, Montólio teria descoberto. Se o drow é um
amigo do ranger, então ele não é inimigo para nós.
— O bosque está a muitos quilômetros daqui — mencionou um
dos outros. — Se desejamos olhar mais de perto os movimentos do
rei orc, e chegar a tempo para ajudar o velho ranger, então devemos
partir imediatamente.
Sem uma palavra de discordância, os elfos nômades reuniram os
suprimentos necessários, principalmente seus grandes arcos longos
e flechas extras. Poucos minutos depois, eles partiram,
atravessando as matas e seguindo as trilhas da montanha, não
fazendo mais barulho do que uma brisa suave.

Drizzt despertou no início da tarde para uma visão surpreendente.


O dia escureceu com nuvens cinzentas, mas ainda parecia claro
para o drow enquanto ele se arrastava para fora de seu refúgio e se
espreguiçava. Acima dele, Drizzt viu o ranger, rastejando sobre os
galhos superiores de um pinheiro alto. A curiosidade de Drizzt
transformou-se em horror quando Montólio, uivando como um lobo
selvagem, pulou de braços e pernas abertas da árvore.
Montólio usava um arreio de corda preso ao tronco fino do
pinheiro. Quando ele disparou, seu impulso inclinou a árvore, e o
ranger desceu levemente, quase dobrando o pinheiro ao meio.
Assim que Montólio chegou no chão, se levantou e colocou o arreio
de corda ao redor de algumas raízes espessas.
À medida que a cena se desenrolava na frente de Drizzt, ele
percebeu que vários pinheiros haviam sido dobrados dessa
maneira, todos apontando para o oeste e todos amarrados por
cordas interligadas. Enquanto abria caminho cuidadosamente até
Montólio, Drizzt passou por uma rede, vários fios de armadilhas e
um conjunto particularmente desagradável feito de cordas e mais de
uma dezena de facas de lâminas duplas. Quando a armadilha fosse
suspensa e as árvores voltassem à vertical, esta corda também
seria suspensa, para o terror de qualquer criatura que parasse por
perto.
— Drizzt? — Montólio perguntou, ouvindo os passos leves. —
Cuidado onde pisa. Eu não gostaria de ter que dobrar todas essas
árvores de novo, embora eu admita que seja um pouco divertido.
— Você parece ter os preparativos bem encaminhados — disse
Drizzt enquanto se aproximava do ranger.
— Eu vinha esperando por esse dia há muito tempo — respondeu
Montólio. — Repassei essa batalha cem vezes em minha mente e
sei o curso que vai levar — ele se agachou e desenhou uma forma
oval alongada no chão, aproximadamente a forma do pinhal. —
Deixa eu te mostrar — ele explicou, e começou a desenhar a
paisagem ao redor do bosque com tanto detalhe e precisão que
Drizzt balançou a cabeça e olhou novamente para se certificar de
que o velho ranger era mesmo cego.
O arvoredo consistia em várias dúzias de árvores, correndo de
norte a sul por cerca de cinquenta metros de comprimento e menos
da metade em largura. O chão caía em uma inclinação suave, mas
notável, com a extremidade norte do bosque sendo metade da
altura de uma árvore mais baixa que o extremo sul. Mais ao norte, o
chão estava quebrado e coberto de pedregulhos, com trilhas
estreitas de grama e quedas súbitas, e atravessava trilhas
bruscamente tortuosas.
— Sua força principal virá do oeste — explicou Montólio,
apontando para além da parede da rocha e através do pequeno
prado para alguns matagais densos entre as muitas bordas de rocha
e beiras de penhascos. — Essa é a única maneira deles entrarem
juntos.
Drizzt fez uma rápida observação da área circundante e não
discordou. Do outro lado do bosque ao leste, o terreno era áspero e
desigual. Um exército investindo dessa direção entraria no campo
de grama alta quase de uma vez, direto entre os dois montes altos
de pedra, e seria um alvo fácil para o arco mortal de Montólio. A sul,
além do bosque, a inclinação era mais íngreme, um lugar perfeito
para orcs arqueiros e arremessadores de lança, exceto pelo fato de
que, logo após o cume mais próximo, surgia um barranco profundo
com uma parede praticamente impossível de se escalar.
— Nós não teremos nenhum problema vindo do sul — Montólio
vocalizou, quase como se tivesse lido os pensamentos de Drizzt. —
E, se eles vierem do norte, terão que subir correndo para chegar até
nós. Eu conheço Graul. Com números tão favoráveis, ele fará toda
sua hoste investir diretamente a oeste, tentando nos derrubar de
uma vez.
— Por isso as árvores — observou Drizzt com admiração. — E o
conjunto da corda, da rede e das facas.
— Astuto — Montólio se congratulou. — Mas lembre-se, eu tive
cinco anos para me preparar para isso. Venha comigo agora. As
árvores são apenas o começo. Eu tenho tarefas para você enquanto
eu termino as armadilhas das árvores.
Montólio levou Drizzt até outra toca secreta escondida por detrás
de um cobertor. Lá dentro, estavam penduradas fileiras de itens
estranhos de ferro, parecidos com mandíbulas de animais com uma
forte corrente conectada às suas bases.
— Armadilhas — explicou Montólio. — Os caçadores de peles as
colocam nas montanhas. Coisas perversas. Eu as encontro —
Piante é particularmente habilidoso em detectá-las — e pego.
Gostaria de ter olhos para ver o caçador coçando a cabeça quando
ele vai até elas uma semana depois!
— Esta aqui pertencia a Roddy McGristle — continuou Montólio,
puxando a mais próxima. O ranger colocou-a no chão e manobrou
cuidadosamente os pés para afastar as mandíbulas até que
ficassem estáveis. — Isso deve atrasar um orc — disse Montólio,
agarrando uma vara próxima e batendo com ela até acertar o
êmbolo.
As mandíbulas de ferro da armadilha se fecharam, a força do
golpe quebrando a vara de forma limpa e arrancando a metade
restante da mão de Montólio.
— Eu tenho mais de vinte delas — disse Montólio sombriamente,
se encolhendo com o som maligno das mandíbulas de ferro. —
Nunca pensei em usá-las (coisas perversas), mas contra Graul e
seu clã as armadilhas podem apenas amenizar alguns dos danos
que causarem.
Drizzt não precisava de mais instruções. Ele levou as armadilhas
até o prado ocidental, as colocou e as escondeu, e jogou as
correntes a vários metros de distância. Ele colocou algumas logo do
lado de dentro da parede da pedra, também, pensando que a dor
que elas poderiam causar aos primeiros orcs que chegassem
certamente retardaria aqueles atrás.
A essa altura, Montólio já havia acabado com as árvores; ele
havia dobrado e amarrado mais de uma dúzia delas. Agora, o
ranger estava em uma ponte de corda que corria de norte a sul,
armando uma fileira de bestas ao longo dos apoios a oeste. Assim
que estivessem armadas e carregadas, Montólio ou Drizzt poderiam
simplesmente apertar os gatilhos, disparando enquanto passassem.
Drizzt planejou ir e ajudar, mas primeiro tinha um outro truque em
mente. O drow voltou para o depósito de armas e pegou o alto e
pesado ranseur que havia visto anteriormente. Ele encontrou uma
raiz resistente na área onde planejou manter sua posição e cavou
um pequeno buraco atrás dela. Então, colocou a arma de metal
sobre a raiz, com apenas trinta centímetros aproximadamente da
haste sobre o buraco, e cobriu toda a parte com grama e folhas.
Ele havia acabado de terminar quando o ranger o chamou
novamente.
— Isso aqui é melhor ainda — disse Montólio, abrindo seu sorriso
malicioso. Ele levou Drizzt até uma tora dividida ao meio, oca, e
coberta de piche para selar qualquer rachadura. — É um bom barco
para quando o rio está alto e lento — explicou Montólio. — E bom
para conter conhaque de Adbar — acrescentou com outro sorriso.
Drizzt, sem entender, olhou-o com curiosidade. Montólio tinha
mostrado a Drizzt seus barris da bebida forte há mais de uma
semana, um presente que o ranger havia recebido por alertar uma
caravana de Sundabar sobre a intenção de emboscada de Graul,
mas o elfo negro não viu nenhum propósito em derramar a bebida
em uma tora oca.
— O conhaque de Adbar é poderoso — explicou Montólio. —
Queima com mais luz do que qualquer coisa, exceto os melhores
óleos.
Agora, Drizzt entendeu. Juntos, ele e Montólio levaram a tora e
colocaram-na no final da única passagem a leste. Eles derramaram
o conhaque dentro, então o cobriram com folhas e grama.
Quando voltaram para a ponte de corda, Drizzt viu que Montólio
já havia feito os preparativos para tal fim. Uma única besta foi
colocada voltada para o leste, com seu virote, já carregado,
enrolado em um pano embebido em óleo e uma pederneira nas
proximidades.
— Você terá que acender — explicou Montólio. — Sem Piante,
não posso ter certeza e, mesmo com o pássaro, às vezes a altura
do meu alvo está errada.
A luz do dia já havia praticamente desaparecido a essa altura, e a
visão noturna de Drizzt logo localizou a tora dividida. Montólio tinha
construído os apoios ao longo da ponte de corda muito bem e com
apenas este propósito em mente, e com alguns pequenos ajustes,
Drizzt tinha a arma com a mira travada em seu alvo.
As principais defesas estavam prontas, e Drizzt e Montólio
estavam finalizando suas estratégias. De vez em quando, Piante ou
alguma outra coruja entrava, tagarelando as notícias. Uma delas
entrou com a confirmação esperada: o rei Graul e seu bando
estavam em marcha.
— Você pode chamar Guenhwyvar agora — disse Montólio. —
Eles chegarão esta noite.
— Burros — disse Drizzt. — A noite nos favorece. Você é cego de
qualquer maneira, e não precisa da luz do dia, e eu certamente
prefiro a escuridão.
A coruja piou novamente.
— A horda principal virá do oeste — disse Montólio a Drizzt com
presunção — como eu disse que viriam. Dezenas de orcs, além de
um gigante! Piante está vendo outro grupo menor que se separou
do primeiro.
A menção do gigante causou um calafrio na espinha de Drizzt,
mas ele tinha todas as intenções e um plano já definido para
combater aquele lá.
— Eu quero atrair o gigante para mim — disse ele.
Montólio virou-se para ele com curiosidade.
— Vamos ver como vai ser a batalha — respondeu o ranger. —
Há apenas um gigante — ou você ou eu vamos lidar com ele.
— Eu quero atrair o gigante para mim — disse Drizzt novamente,
com mais firmeza. Montólio não conseguiu ver o maxilar tenso do
drow ou o fogo ardente nos olhos lavanda de Drizzt, mas o ranger
não podia negar a determinação na voz de Drizzt.
— Mangura bok woklok — ele disse, e sorriu novamente,
sabendo que essa expressão estranha tinha pegado o drow de
surpresa.
— Mangura bok woklok — Montólio declarou novamente. —
“Imbecil cabeça-dura”, numa tradução livre. Gigantes de pedra
odeiam essa expressão — vão pra cima de você imediatamente.
— Mangura bok woklok — Drizzt falou calmamente. Ele teria que
se lembrar.
CAPÍTULO 18
A Batalha do Bosque de Monshi
DRIZZT NOTOU QUE MONTÓLIO PARECIA MAIS do que um
pouco preocupado depois que Piante, de volta com mais notícias,
partiu.
— A divisão das forças de Graul? — ele indagou.
Montólio assentiu, sua expressão sombria.
— Orcs montando worgs, apenas um punhado, circulando a
oeste.
Drizzt olhou para além da parede da rocha, para o estreito
garantido por sua calha de conhaque.
— Nós podemos detê-los — disse ele.
Ainda assim, a expressão do ranger era sombria.
— Outro grupo de worgs — vinte ou mais — vem do sul — Drizzt
não deixou o medo do ranger passar quando Montólio acrescentou.
— Caroak os está liderando. Nunca pensei que aquele lá iria se aliar
a Graul.
— Um gigante? — Drizzt perguntou.
— Não. Lobo invernal— respondeu Montólio.
Ao ouvir as palavras, Guenhwyvar abaixou as orelhas e grunhiu
com raiva.
— A pantera sabe — disse Montólio enquanto Drizzt olhava com
espanto. — Um lobo invernal é uma perversão da natureza, uma
praga contra criaturas que seguem a ordem natural e, portanto,
inimigo de Guenhwyvar.
A pantera negra rosnou novamente.
— É uma criatura grande — prosseguiu Montólio — e muito mais
inteligente que um lobo comum. Eu já lutei contra Caroak antes.
Sozinho, já poderia nos dar trabalho! Com os worgs ao seu redor, e
nós ocupados lutando contra os orcs, ele conseguiria vencer.
Guenhwyvar rosnou pela terceira vez e rasgou o chão com suas
grandes garras.
— Guenhwyvar vai cuidar de Caroak — observou Drizzt.
Montólio se aproximou e agarrou a pantera pelas orelhas,
prendendo o olhar de Guenhwyvar com sua própria expressão sem
visão.
— Cuidado com o hálito do lobo — disse o ranger. — Um cone de
gelo, que irá congelar seus músculos em seus ossos. Eu vi um
gigante ser derrubado por isso!
Montólio virou-se para Drizzt e sabia que o drow ostentava uma
expressão preocupada.
— Guenhwyvar tem que mantê-los longe de nós até que
possamos afastar Graul e seu grupo — disse o ranger ,— então
poderemos fazer nossos arranjos para lidar com Caroak. — ele
soltou as orelhas da pantera e afagou Guenhwyvar com força no
pescoço.
Guenhwyvar rugiu pela quarta vez e atravessou o bosque, como
uma flecha preta apontada para o coração da desgraça.

A principal força de ataque de Graul veio, conforme esperado, do


oeste, gritando e berrando e pisoteando os arbustos em seu
caminho. As tropas se aproximaram em dois grupos, um em cada
um dos matagais densos.
— Mire no grupo a sul! — Montólio gritou para Drizzt, em posição
na ponte de corda carregada de bestas. — Nós temos amigos no
outro!
Como em confirmação às palavras do ranger, o matagal a norte
irrompeu de repente com gritos de orcs que soavam mais como
berros aterrorizados do que como gritos de batalha. Um coro de
rosnados guturais acompanhou os gritos. Algazarra, o urso, tinha
respondido ao chamado de Montólio, Drizzt sabia, e pelos sons no
matagal, havia trazido vários amigos.
Drizzt não iria questionar sua boa sorte. Ele se posicionou atrás
da besta mais próxima e fez o primeiro virote alçar voo quando os
primeiros orcs emergiram do bosque a sul. O drow correu
imediatamente para a próxima da fila, disparando seus tiros em
rápida sucessão. Logo abaixo, Montólio atirou algumas flechas por
sobre o muro.
No súbito enxame de orcs, Drizzt não conseguia dizer quantos
tiros realmente acertaram, mas eles certamente diminuíram a
velocidade da investida e dispersaram suas fileiras. Vários orcs
caíam de bruços; alguns se viravam e voltavam para dentro das
árvores. Mas a maior parte do grupo, e mais alguns vindo do outro
matagal que correram para se juntar a eles, continuava vindo.
Montólio disparou uma última vez, e sentiu seu caminho de volta
para uma área protegida atrás do centro de suas armadilhas de
árvores dobradas, onde estaria protegido por três lados por paredes
de madeira e árvores. Com seu arco em uma mão, verificou sua
espada e aproximou-se para tocar uma corda do outro lado.
Drizzt percebeu o ranger entrando em posição a seis metros
abaixo dele e para o lado, e achou que esta poderia ser sua última
oportunidade. Ele buscou um objeto pendurado acima da cabeça de
Montólio e deixou cair um feitiço sobre ele.
Os virotes causaram um caos mínimo na tropa de orcs em
investida, mas as armadilhas se mostraram mais eficazes. Primeiro
um, depois outro, orc caiu nela, seus gritos se destacando em meio
ao barulho da corrida. À medida que outros orcs viam a dor e o
sofrimento de seus companheiros, diminuíam consideravelmente a
velocidade ou paravam de vez.
Com a agitação crescente no campo, Drizzt fez uma pausa e
mirou cuidadosamente seu disparo final. Ele notou um orc grande,
cuidadosamente equipado, observando dos ramos mais próximos
do matagal a norte. Drizzt sabia que aquele era Graul, mas sua
atenção se deslocou imediatamente para quem estava parado ao
lado do rei orc.
— Droga — murmurou o drow, reconhecendo McGristle. Agora
estava abalado, e moveu a besta de um lado para o outro entre os
adversários. Drizzt queria atirar em Roddy, queria acabar com seu
tormento pessoal, aqui e agora. Mas Roddy não era um orc, e Drizzt
se viu repelido pelo pensamento de matar um ser humano.
— Graul é o alvo mais importante — disse o drow a si mesmo,
mais para remover seu tormento interior do que por qualquer outro
motivo. Rapidamente, antes que pudesse encontrar mais
argumentos, apontou e atirou. O virote assobiou no seu trajeto,
batendo no tronco de uma árvore, a apenas alguns centímetros
acima da cabeça de Graul.
Roddy imediatamente agarrou o rei orc e puxou-o de volta para
as sombras mais profundas. Em seu lugar veio um gigante de pedra
rugindo, com uma pedra na mão.
A rocha acertou as árvores ao lado de Drizzt, sacudindo os ramos
e a ponte. Um segundo projétil se seguiu imediatamente, acertando
uma viga de apoio diretamente e fazendo a metade da frente da
ponte cair.
Drizzt já imaginava que isso aconteceria, embora estivesse
espantado e horrorizado com a estranha precisão mesmo de tão
longe. Quando a metade da frente da ponte caiu abaixo dele, Drizzt
saltou, se segurando em um emaranhado de ramos. Quando o drow
finalmente se localizou, enfrentou um novo problema. A leste,
vinham os cavaleiros de worgs, brandindo tochas.
Drizzt olhou para a armadilha da tora, depois para a besta. Ela e
a viga que a sustentava tinham sobrevivido ao golpe de pedra, mas
o drow não podia confiar na ponte vacilante.

Os líderes do grupo principal, agora atrás de Drizzt, chegaram ao


muro de pedras naquele momento. Felizmente, o primeiro orc que
pulou aterrissou diretamente em outra das armadilhas, e seus
companheiros não quiseram segui-lo de perto.
Guenhwyvar saltava ao redor e entre os muitos picos quebrados
de pedra marcando a descida para o norte. A pantera ouviu os
primeiros gritos de batalha distantes vindos do bosque, mas, mais
atentamente, Guenhwyvar ouviu os uivos que se seguiam da
matilha que se aproximava. A pantera pulou para uma borda baixa e
esperou.
Caroak, o enorme monstro canino prateado, liderava a investida.
Focado no bosque distante, o lobo invernal foi completamente
surpreendido quando Guenhwyvar caiu sobre ele, arranhando e
rasgando violentamente.
Tufos de pelo prateado voavam sob o ataque. Ganindo, Caroak
mergulhou em um rolamento lateral. Guenhwyvar se manteve sobre
o lobo como um lenhador de pé sobre um tronco na água, cortando
e rasgando a cada golpe. Mas Caroak era um lobo velho e sábio,
um veterano de centenas de batalhas. Enquanto o monstro rolava,
uma explosão de gelo veio na direção da pantera.
Guenhwyvar esquivou-se, tanto da geada quanto da investida de
vários worgs. Porém, a explosão de frio pegou a pantera na lateral
do rosto, adormecendo o queixo de Guenhwyvar. A perseguição
agora estava de volta, com Guenhwyvar pulando e caindo ao redor
da matilha, e os worgs, e um Caroak irritado, tentando morder a
pantera.

O tempo estava acabando para Drizzt e Montólio. Acima de tudo,


o drow sabia que deveria proteger seu flanco traseiro. Em
movimentos síncronos, Drizzt tirou as botas, pegou a pederneira
com uma mão, colocou um pedaço de aço na boca e saltou para um
ramo que o levaria para a besta solitária.
Ele estava acima dela um momento depois. Se segurando com
uma mão, bateu a pederneira. Faíscas rolaram, perto do alvo. Drizzt
bateu de novo, repetidas vezes, e, finalmente, uma faísca atingiu os
trapos encharcados com óleo na ponta do virote o suficiente para
engolfá-la em chamas.
Em seguida, o drow não teve tanta sorte. Se balançou e retorceu,
mas não conseguia aproximar o pé do gatilho.
Montólio não podia ver nada, é claro, mas entendia bem a
situação geral. Ouviu os worgs que se aproximavam na parte de trás
do bosque e sabia que aqueles na frente tinham passado pela
parede. Ele enviou outro tiro de arco através da espessa copa de
árvores dobradas, apenas para medir a distância, e piou alto três
vezes.
Em resposta, um grupo de corujas saiu dos pinheiros, atacando
os orcs ao longo da parede da rocha. Como as armadilhas, os
pássaros só podiam causar um dano real mínimo, mas a confusão
ganhou um pouco mais de tempo para os defensores.


Nessa altura do combate, a única vantagem clara para os
defensores do bosque estava no matagal a norte, onde Algazarra e
três de seus mais próximos e maiores amigos ursos tinham
derrubado uma dezena de orcs e feito mais uns vinte fugirem
correndo às cegas. Um orc, fugindo de um urso, virou ao redor de
uma árvore e quase esbarrou em Algazarra. O orc ainda teve bom
senso o suficiente para empurrar a lança à frente, mas a criatura
não tinha a força necessária para conduzir a arma tosca através da
pele espessa de Algazarra, que respondeu com um golpe pesado
que lançou a cabeça do orc voando pelas árvores.
Outro grande urso passou por perto, com seus enormes braços
cruzados. A única pista de que o urso segurava um orc em seu
abraço esmagador eram os pés do orc, que pendiam e chutavam
descontroladamente abaixo do monte de pelos que o engolfavam.
Algazarra viu outro inimigo, menor e mais rápido que um orc. O
urso rugiu e atacou, mas a diminuta criatura já havia desaparecido
antes que chegasse perto.
Tephanis não tinha nenhuma intenção de se juntar à batalha. Ele
tinha vindo com o grupo ao norte principalmente para se manter fora
da visão de Graul, e tinha planejado o tempo todo permanecer nas
árvores e aguardar o fim da luta. As árvores já não pareciam mais
seguras, então o sprite correu, na intenção de adentrar o matagal a
sul.
No meio do caminho, os planos do sprite foram frustrados
novamente. Sua velocidade imensa quase o fez passar direto pela
armadilha antes que as mandíbulas de ferro se fechassem, mas os
dentes perversos pegaram seu pé. O tranco subsequente roubou
seu fôlego e o deixou atordoado, caído de bruços na grama.

Drizzt sabia o quão revelador seria esse pequeno fogo no virote,


então não ficou surpreso quando outra rocha foi lançada pelo
gigante. Ela atingiu o galho em que Drizzt se segurava, e, com uma
série de estalos, o galho se dobrou ainda mais.
Drizzt enganchou a besta com o pé enquanto caía, e ativou o
gatilho imediatamente, antes que a arma fosse desviada demais.
Então manteve sua posição obstinadamente e observou.
O virote ardente alcançou a escuridão além da parede de pedras
a leste. Lá, derrapou baixo, saltando faíscas sobre a grama alta,
depois acertou na lateral — no lado de fora — da tora cheia de
conhaque.
A primeira metade dos cavaleiros de worg atravessou a
armadilha, mas os três restantes não tiveram tanta sorte, se
aproximando no momento em que as chamas lamberam acima da
lateral da embarcação. O conhaque e as chamas saltaram enquanto
os cavaleiros atravessavam. Worgs e orcs caíram na grama alta,
criando outros focos de incêndio.
Aqueles que já haviam passado se viraram abruptamente na
direção do fulgor repentino. Um cavaleiro orc foi lançado do lombo
de seu worg, caindo sobre sua própria tocha, e os outros dois mal
se mantiveram em seus assentos. Acima de tudo, os worgs odiavam
o fogo, e a visão de três dos seus rolando no chão, bolas de pelo e
chamas, fez pouco para fortalecer sua determinação para a batalha.

Guenhwyvar tinha chegado a uma pequena área nivelada


dominada por um único bordo. Se alguém estivesse assistindo a
corrida da pantera teria piscado com incredulidade, perguntando-se
se o tronco da árvore vertical não era na verdade um tronco caído,
tamanha a velocidade de Guenhwyvar ao subir nele.
A matilha de worgs veio logo depois, farejando ao redor, certos de
que a gata estava acima da árvore, mas incapaz de discernir a
forma negra de Guenhwyvar entre os galhos escuros.
Mas a pantera se revelou logo, voltando a cair fortemente nas
costas do lobo invernal, desta vez tomando o cuidado de travar sua
mandíbula na orelha de Caroak.
O lobo invernal se debatia e gania enquanto as garras de
Guenhwyvar faziam seu trabalho. Caroak conseguiu se virar e
Guenhwyvar ouviu a respiração aguda, igual à que precedeu a
explosão de gelo anterior.
Os músculos pesados do pescoço de Guenhwyvar se
flexionaram, forçando as mandíbulas abertas de Caroak para o lado.
O sopro maligno saiu de qualquer maneira, acertando três worgs
que investiam diretamente no focinho.
Os músculos de Guenhwyvar de repente se flexionaram
novamente, e a pantera ouviu o pescoço de Caroak estalar. O lobo
invernal caiu direto, com Guenhwyvar ainda sobre ele.
Aqueles três worgs mais próximos de Guenhwyvar, os três que
haviam sido atingidos pelo sopro gelado de Caroak, não
representavam ameaça. Um estava caído de lado, ofegante,
tentando inalar algum ar, que não se movia dentro de seus pulmões
congelados, outro girava em círculos apertados, totalmente cego, e
o último permaneceu perfeitamente imóvel, olhando para as pernas
dianteiras, que, por algum motivo, não o obedeciam.
O resto da matilha, porém, com quase vinte worgs fortes, se
aproximou metodicamente, cercando a pantera em um círculo
mortal. Guenhwyvar olhou ao redor em busca de uma rota de fuga,
mas os worgs chegaram sem pressa, não deixando nenhuma
abertura.
Eles trabalharam em harmonia, ombro a ombro, apertando o
círculo.

Os orcs brotaram sobre o emaranhado de árvores dobradas,


procurando por algum caminho através delas. Alguns começaram a
fazer algum progresso, mas toda a armadilha estava interconectada,
e qualquer uma das dúzias de fios no chão levariam todos os
pinheiros a se desdobrar.
Então, um dos orcs encontrou a rede de Montólio, da maneira
mais difícil. Ele tropeçou sobre uma corda, caiu de bruços na rede, e
foi puxado para cima, levando um dos companheiros ao seu lado.
Nenhum deles poderia ter imaginado o quão melhor estavam do que
aqueles que haviam deixado para trás, principalmente o orc que,
sem suspeitar, acionou as cordas com as facas. Quando as árvores
subiram, a armadilha diabólica surgiu, estripando a criatura e
levantando-a sobre os calcanhares no ar.
Até mesmo aqueles orcs que não foram pegos pelas armadilhas
secundárias não se deram bem. Os ramos emaranhados, eriçados
com agulhas de pinheiros espinhosos, dispararam sobre eles,
jogando alguns longe e causando coceira e desorientando os
outros.
Pior ainda para os orcs, Montólio usou o som das árvores se
desdobrando como sinal para abrir fogo. Flecha atrás de flecha
cruzava as árvores, a maioria atingindo seu alvo. Um orc levantou
sua lança para atirar, então foi atingido por uma flecha no rosto e
outra no peito. Outro se virou e fugiu, gritando “Magia ruim!”
freneticamente.
Para aqueles que cruzavam a parede de pedra, o orc aos brados
parecia voar, seus pés chutando acima do chão. Seus
companheiros assustados entenderam quando o orc desmoronou
no chão, com a pena de uma flecha trêmula em suas costas.
Drizzt, ainda em seu tênue poleiro, não teve tempo de se
maravilhar com a execução eficiente dos planos bem colocados de
Montólio. A oeste, o gigante estava vindo e, do outro lado, os dois
cavaleiros de worg restantes se recuperaram o suficiente para
retomar suas investidas, com as tochas em punho.

O círculo dos worgs rosnando se apertou. Guenhwyvar podia


sentir o cheiro fedorento do hálito deles. A pantera não poderia
atacar através das fileiras espessas, nem poderia pular sobre eles
rápido o bastante para fugir.
Guenhwyvar encontrou outra rota. As patas traseiras pisotearam
o corpo ainda agonizante de Caroak e a pantera se atirou
diretamente no ar, a mais de seis metros. Guenhwyvar pegou o
ramo mais baixo do bordo com suas garras dianteiras, enganchou-
se e puxou-se para cima. Então a pantera desapareceu nos ramos,
deixando a matilha frustrada uivando e rosnando.
Guenhwyvar reapareceu rapidamente, saindo pela lateral e
pousando no chão, logo antes da matilha retomar a perseguição.
Nessas últimas semanas, a pantera tinha passado a conhecer muito
bem o terreno local, e agora Guenhwyvar sabia exatamente para
onde levar os lobos.
Eles correram ao longo de uma escarpa, com um vazio escuro e
inquietante no flanco esquerdo. Guenhwyvar marcou bem as rochas
e as poucas árvores dispersas. A pantera não podia ver o banco
oposto do abismo e tinha que confiar plenamente em sua memória.
Incrivelmente rápida, Guenhwyvar girou de repente e saltou para a
noite, descendo levemente através do caminho largo e acelerando
em direção ao bosque. Os worgs teriam um salto longo — longo
demais para a maioria deles — ou um longo caminho de volta se
quisessem segui-la.
Eles avançaram rosnando e arranhando o chão. Um parou na
beirada e fez menção de tentar um salto, mas uma flecha apareceu
em seu flanco e acabou com sua determinação.
Worgs não eram criaturas estúpidas, e a visão da flecha os
colocou na defensiva. As flechas vindas de Kellindil e dos seus
parentes foi mais do que eles esperavam. Dezenas delas
mergulharam, tombando vários worgs. Apenas alguns escaparam
daquela saraivada, e eles rapidamente se espalharam para os
cantos da noite.

Drizzt convocou outro truque mágico para deter os portadores das


tochas. O fogo das fadas, chamas dançantes inofensivas, apareceu
de repente abaixo das chamas da tocha, rolando pelo instrumento
de madeira até lamber as mãos dos orcs. O fogo das fadas não
queimava — sequer era quente —, mas quando os orcs viram
chamas engolindo suas mãos, estavam longe de ser racionais.
Um deles jogou a tocha longe, e o movimento custou-lhe a
montaria. Ele caiu na grama, e o worg virou-se outra vez e grunhiu
em frustração.
O outro orc simplesmente deixou cair sua tocha, que caiu sobre a
cabeça da sua montaria. As faíscas e as chamas irromperam sobre
os pelos grossos do worg, ferindo os olhos e as orelhas, e a fera
ficou louca. Ele caiu e rolou no chão de cabeça, se jogando
diretamente sobre o orc assustado.
O orc cambaleou até se levantar, atordoado e machucado e
mantendo os braços abertos como se estivesse pedindo desculpas.
No entanto, o worg chamuscado não estava interessado em ouvir
desculpa alguma. Ele saltou imediatamente e travou suas
poderosas mandíbulas no rosto do orc.
Drizzt não viu nada daquilo. O drow só podia esperar que seu
truque tivesse funcionado, porque, assim que lançou o feitiço, ele
soltou seu pé da besta e deixou o galho destruído levá-lo até o
chão.
Dois orcs, finalmente vendo um alvo, correram até o drow quando
ele aterrissou, mas, assim que as mãos de Drizzt estavam livres do
galho, elas sacaram suas cimitarras.
Os orcs se aproximaram, sem suspeitar de nada, e Drizzt, com
um movimento com as armas para os lados, os cortou. O drow
passou por mais outros invasores espalhados enquanto abria
caminho para o local preparado. Um sorriso sombrio encontrou seu
rosto quando finalmente sentiu o eixo metálico do ranseur sob seus
pés descalços. Ele se lembrou dos gigantes em Maldobar que
mataram a família inocente, e se consolou que agora mataria outro
de seus parentes doentios.
— Mangura bok woklok! — Drizzt gritou, colocando um pé no
ponto de apoio da raiz e o outro na ponta da arma escondida.

Montólio sorriu quando ouviu o chamado do drow, ganhando


confiança na proximidade de seu poderoso aliado. Seu arco soou
mais algumas vezes, mas o ranger sentiu que os orcs estavam
chegando até ele de forma indireta, usando as árvores grossas
como cobertura. O ranger esperou, usando a si mesmo de isca.
Então, pouco antes de o cercarem, Montólio deixou cair o arco,
sacou a espada e cortou a corda ao seu lado, logo abaixo de um
enorme nó. A corda arrebentada enrolou-se no ar, o nó se
prendendo em uma bifurcação em um galho mais baixo, e o escudo
de Montólio, aprimorado sob o efeito de um dos feitiços da
escuridão de Drizzt, caiu dependurado precisamente na altura certa
para receber o braço à espera do ranger.
A escuridão não fazia muita diferença para o ranger cego, mas os
poucos orcs que vieram na direção de Montólio encontraram-se em
uma posição precária. Eles se empurravam e balançavam de forma
selvagem — um acertou seu próprio irmão — enquanto Montólio
calmamente resolveu a luta e voltou ao trabalho metódico. Em
questão de um minuto, quatro dos cinco que entraram ali estavam
mortos ou morrendo e o quinto tinha fugido.
Longe de estar saciado, o ranger e sua bola portátil de escuridão
seguiram, procurando por vozes ou sons que o levariam a mais
orcs. Novamente veio o grito que fez Montólio sorrir.

— Mangura bok woklok! — Drizzt gritou novamente. Um orc jogou


uma lança no drow, da qual Drizzt imediatamente desviou. O orc
distante estava agora desarmado, mas Drizzt não o perseguiria,
mantendo sua posição com determinação.
— Mangura bok woklok! — Drizzt gritou de novo. — Vem, seu
imbecil cabeça-dura! — desta vez, o gigante, aproximando-se da
parede na direção de Montólio, ouviu as palavras. O monstro
enorme hesitou um momento, olhando o drow com curiosidade.
Drizzt não perdeu a oportunidade:
— Mangura bok woklok!
Com um rosnado e um pisão que sacudiram a terra, o gigante
chutou um buraco no muro de pedra e caminhou em direção a
Drizzt.
— Mangura bok woklok! — Drizzt repetiu só pra garantir,
arrumando os pés para ficarem no ângulo certo.
O gigante começou a correr desenfreadamente, espalhando orcs
aterrorizados à sua frente e batendo sua pedra e seu porrete um no
outro com raiva. Ele cuspiu mil maldições em Drizzt naqueles
poucos segundos, palavras que o drow nunca decifraria. Com três
vezes a altura do drow e muitas vezes seu peso, o gigante se jogou
sobre Drizzt, e, em sua pressa, realmente pareceu que certamente
enterraria Drizzt onde ele estava calmamente parado.
Quando o gigante estava a apenas dois longos passos, Drizzt,
comprometido totalmente com seu curso de colisão, deixou cair todo
seu peso em seu pé traseiro. A haste da ranseur caiu no buraco.
Sua ponta subiu.
Drizzt saltou para trás no momento em que o gigante se chocou
contra o ranseur. A ponta da arma e as farpas recurvadas
desapareceram na barriga do gigante, e foram para cima através de
seu diafragma, direto para o seu coração e pulmões. A haste
metálica se curvou e pareceu que iria quebrar quando sua
extremidade traseira afundou quase meio metro.
A ranseur aguentou, e o gigante foi parado. Ele largou o seu
porrete e sua pedra, alcançou impotente a haste de metal com mãos
que já não tinham mais força para segurá-la. Seus olhos imensos se
arregalaram em negação, em terror e em absoluta surpresa. A
grande boca abriu-se largamente e se contorceu estranhamente,
mas não conseguia sequer achar fôlego para gritar.
Drizzt, também, quase gritou, mas segurou as palavras antes de
proferi-las.
— Incrível — disse, olhando para trás para onde Montólio estava
lutando, porque o grito que quase bradou foi um louvor à deusa
Mielikki. Drizzt sacudiu a cabeça impotente e sorriu, atordoado pelas
percepções apuradas de seu companheiro não tão cego.
Com esses pensamentos na cabeça e uma sensação de certeza
em seu coração, Drizzt acompanhou a haste e cortou a garganta do
gigante com ambas as armas. Ele continuou, pisando no ombro e na
cabeça do gigante e pulando em direção a um grupo de orcs que
observava, gritando durante o percurso.
A visão do gigante, que os humilhava, tremendo e ofegante, já
havia enervado os orcs, mas quando o tal monstro drow de pele de
ébano e olhar selvagem saltou sobre eles, os orcs abandonaram a
posição por completo. O ataque de Drizzt levou-o até os dois mais
próximos, e ele rapidamente os cortou e continuou seu ataque.
Seis metros à esquerda do drow, uma bola de escuridão rolou
para fora das árvores, levando uma dúzia de orcs amedrontados
diante dela. Os orcs sabiam que entrar nesse mundo impenetrável
era cair no alcance do eremita cego e morrer.

Dois orcs e três worgs, tudo o que restava dos que carregavam
as tochas, reagruparam-se e foram silenciosamente em direção à
borda leste do bosque. Se pudessem chegar por trás do inimigo,
eles acreditavam que a batalha ainda poderia ser vencida.
O orc mais ao norte nunca viu a forma negra correndo.
Guenhwyvar o derrubou e continuou correndo, confiante de que
aquele nunca mais voltaria a se levantar.
Um worg era o próximo da fila. Mais rápido para reagir do que o
orc, o worg girou e encarou a pantera, com presas à mostra e
mandíbulas batendo.
Guenhwyvar rosnou, se abaixando logo diante dele. Suas garras
foram se alternando em uma série de bofetadas. O worg não
conseguiu igualar a velocidade da gata. Ele balançou as mandíbulas
de um lado para o outro, sempre um momento muito tarde para
apanhar as patas velozes. Depois de apenas cinco tapas, o worg foi
derrotado. Um olho tinha fechado para sempre, sua língua, meio
rasgada, se pendurava impotente de um lado de sua boca, e sua
mandíbula inferior já não estava alinhada com a superior. Apenas a
presença de outros alvos salvou o worg, porque quando ele se virou
e fugiu pelo mesmo caminho que tinha vindo, Guenhwyvar, vendo
presas mais próximas, não o seguiu.
Drizzt e Montólio haviam espantado a maior parte da força
invasora de volta ao muro de pedra. “Mágica ruim!” veio o grito geral
dos orcs, com as vozes marcadas pelo desespero. Piante e as
outras corujas ajudaram no frenesi crescente, se jogando de repente
nos rostos dos orcs, beliscando com uma garra ou bico, e voltando
novamente aos céus. Ainda assim, outro orc descobriu uma das
armadilhas enquanto tentava fugir. Ele caiu uivando e gritando, seus
gritos apenas aumentando o terror dos companheiros.
— Não! — Roddy McGristle gritou com descrença. — Você
deixou dois cara derrotar toda sua força!
O olhar de Graul se instalou no homem corpulento.
— Nós podemos fazer com que voltem — disse Roddy. — Se te
verem, vão voltar pra a luta.
A avaliação do homem da montanha não estava errada. Se Graul
e Roddy tivessem feito sua entrada, os orcs, então, ainda em mais
de cinquenta, poderiam se reagrupar. Com a maioria de suas
armadilhas utilizadas, Drizzt e Montólio ficariam em uma situação
bem desagradável! Mas o rei orc havia visto outro problema
surgindo a norte e havia decidido, apesar dos protestos de Roddy,
que o velho e o elfo negro simplesmente não valiam o esforço.
A maioria dos orcs no campo ouviu o perigo mais novo antes de
vê-lo, uma vez que Algazarra e seus amigos eram um grupo
barulhento. O maior obstáculo que os ursos encontraram à medida
que rolavam pelas fileiras dos orcs era apenas escolher um alvo no
meio daquela corrida enlouquecida. Os ursos golpeavam os orcs
enquanto passavam por eles, então os perseguiam no bosque e
além, até seus buracos na beira do rio. Era o meio da primavera; o
ar estava carregado de energia e animação, e como esses ursos
brincalhões adoravam bater em orcs!

Toda a horda de corpos apressados passou direto pelo célere


caído. Quando Tephanis acordou, descobriu que ele era o único vivo
no campo cheio de sangue.
Grunhidos e gritos brotaram do oeste, o bando em fuga e os sons
de batalha ainda soavam no bosque do ranger. Tephanis sabia que
seu papel na batalha, por menor que tenha sido, acabara. Uma dor
imensa subia pela perna do sprite, mais dor do que jamais sentira.
Ele olhou para seus pés rasgados e, para seu horror, percebeu que
a única saída possível da armadilha perversa era completar o
horrendo corte, perder a ponta de seu pé e os cinco dedos no
processo. Não era um trabalho difícil — o pé estava pendurado por
um fino pedaço de pele — e Tephanis não hesitou, temendo que o
drow saísse a qualquer momento e o encontrasse.
O célere sufocou seu grito e cobriu a ferida com sua camisa
rasgada, depois avançou — lentamente — para dentro das árvores.

O orc se arrastou silenciosamente, feliz por ter quaisquer sons


abafados pelos ruídos da luta entre a pantera e um worg. Todos os
pensamentos de matar o velho ou o drow haviam fugido deste orc;
ele vira seus companheiros perseguidos por um bando de ursos.
Agora, o orc só queria encontrar uma saída, e não era algo fácil no
espesso e baixo emaranhado de ramos de pinheiro.
Ele pisou em algumas folhas secas quando entrou em uma área
limpa e congelou ante o estalo barulhento. O orc olhou para a
esquerda, depois lentamente voltou para a direita. De repente,
saltou e girou, esperando um ataque da retaguarda. Mas estava
tudo vazio pelo que podia notar e, exceto pelos rosnados da pantera
e ganidos dos worgs, silencioso. O orc soltou um profundo suspiro
de alívio e procurou a trilha mais uma vez.
Então parou de repente por instinto e virou a cabeça para trás
para olhar. Uma forma escura estava agachada em um galho logo
acima de sua cabeça, e o brilho prateado disparou antes que o orc
pudesse começar a reagir. A curva da lâmina da cimitarra revelou-se
perfeita para deslizar ao redor do queixo do orc e mergulhar na sua
garganta.
O orc ficou imóvel, com os braços abertos e convulsionando, e
tentou gritar, mas sua laringe estava destruída. A cimitarra saiu
rapidamente e o orc caiu pra trás, nos braços da morte.
Não tão longe, outro orc finalmente se soltou da rede em que
estava pendurado e rapidamente libertou seu amigo. Os dois,
enfurecidos e não tão ansiosos para fugir sem uma briga,
caminharam em silêncio.
— No escuro — o primeiro explicou quando passaram por uma
moita e encontraram a paisagem obscurecida por um globo
impenetrável. — No fundo.
Juntos, os orcs levantaram suas lanças e jogaram, grunhindo
selvagemente com isso. As lanças desapareceram no globo de
escuridão, bem no centro, uma batendo em um objeto metálico, mas
a outra atingindo algo mais macio.
Os gritos de vitória dos orcs foram cortados por duas notas de
uma corda de arco. Uma das criaturas caiu para a frente, morta
antes mesmo de atingir o chão, mas a outra, obstinadamente se
mantendo de pé, conseguiu olhar para o peito, para a pena
protuberante de uma flecha. Ele viveu por tempo o suficiente para
ver Montólio casualmente passar e desaparecer na escuridão para
recuperar seu escudo.
Drizzt observou o velho à distância, balançando a cabeça e
refletindo.

— Acabou — o batedor elfo contou aos outros quando os


alcançou entre os pedregulhos ao sul do bosque de Montólio.
— Eu não estou tão certo — respondeu Kellindil, olhando para o
oeste e ouvindo os ecos de rosnados de urso e gritos de orcs.
Kellindil suspeitava que algo além de Graul estava por trás desse
ataque e, se sentindo um pouco responsável pelo drow, queria
saber o que poderia ser.
— O ranger e drow ganharam o bosque — explicou o batedor.
— Concordo — disse Kellindil. — E assim o papel de vocês
terminou. Voltem, todos, para o acampamento.
— Você vai se juntar a nós? — perguntou um dos elfos, embora
já tivesse adivinhado a resposta.
— Se o destino assim desejar — respondeu Kellindil. — Por
enquanto, tenho outros assuntos a tratar.
Os outros não questionaram Kellindil. Raramente ele chegava à
região deles e nunca permanecia por muito tempo. Kellindil era um
aventureiro; a estrada era seu lar. Ele partiu de vez, correndo para
alcançar os orcs que fugiam, então se emparelhando com seus
movimentos.

— Cê deixou dois deles te derrotar! — Roddy se queixou quando


ele e Graul tiveram um momento para recuperar o fôlego. — Dois!
A resposta de Graul veio no balanço de um porrete pesado.
Roddy bloqueou parcialmente o golpe, mas seu peso o jogou para
trás.
— Cê vai pagar por isso! — o homem da montanha rosnou,
arrancando Sangrador do cinto. Uma dúzia de servos de Graul
apareceu ao lado do rei orc e ele imediatamente entendeu a
situação.
— Cê nos trouxe a ruína! — Graul gritou irritado para Roddy.
Então, para seus orcs, gritou — Mata!
O cachorro de Roddy tropeçou até chegar mais perto do grupo e
Roddy não esperou que os outros o alcançassem. Ele se virou e
correu para o meio da noite, usando cada truque que conhecia para
conseguir distância do bando que o perseguia.
Seus esforços rapidamente tiveram sucesso — os orcs realmente
não queriam mais batalhas naquela noite — e Roddy deveria ter
sido esperto o bastante para não ficar olhando para trás.
Ele ouviu um farfalhar à sua frente e se virou bem a tempo de
pegar a empunhadura de uma espada diretamente com o rosto. O
peso do golpe, multiplicado pelo próprio impulso de Roddy, fez o
homem da montanha cair inconsciente no chão.
— Não estou surpreso — disse Kellindil sobre o corpo caído.
CAPÍTULO 19
Caminhos Distintos
OITO DIAS NÃO HAVIAM FEITO NADA PARA ALIVIAR a dor no
pé de Tephanis. O sprite andava o melhor que podia, mas sempre
que tentava correr, inevitavelmente se inclinava para um lado e se
chocava contra um arbusto, ou pior, o tronco duro de uma árvore.
— Pode-por-favor-parar-de-rosnar-pra-mim, cachorro-idiota!? —
Tephanis brigou com o cão amarelo com quem havia estado desde
o dia seguinte à batalha. Nenhum dos dois se sentia confortável
perto um do outro. Tephanis muitas vezes lamentava que o vira-
latas feio não fosse de forma alguma parecido com Caroak.
Mas Caroak estava morto; o célere tinha encontrado o corpo
rasgado do lobo invernal. Outro companheiro se fora, e agora o
sprite estava sozinho novamente.
— Sozinho-exceto-por-você, cachorro-estúpido — lamentou.
O cachorro mostrou os dentes e grunhiu.
Tephanis queria cortar sua garganta, queria correr para cima e
para baixo ao longo do animal sarnento, cortando e rasgando a
cada centímetro. Ele viu o sol descendo bem no céu, e sabia que o
animal provavelmente se mostraria valioso.
— Hora-de-ir! — o célere proclamou. Mais rápido do que o cão
poderia reagir, Tephanis se lançou sobre ele, agarrou a corda
pendurada no pescoço do cachorro e amarrou três circuitos
completos ao redor de uma árvore próxima. O cão foi atrás dele,
mas Tephanis facilmente se manteve fora de alcance, até que a
corda se esticou, mantendo o cão à distância.
— Já-volto, criatura-estúpida!
Tephanis correu ao longo das trilhas da montanha, sabendo que a
noite talvez fosse sua última chance. As luzes de Maldobar
queimavam à distância, mas era uma luz diferente, uma fogueira
que guiava o célere. Ele chegou no pequeno acampamento apenas
alguns minutos depois, feliz por ver que o elfo não estava por perto.
Ele encontrou Roddy McGristle sentado na base de uma enorme
árvore, com seus braços presos atrás dele e seus pulsos amarrados
ao redor de uma árvore. O homem da montanha parecia uma coisa
miserável — tão miserável quanto o cão —, mas Tephanis estava
sem opções. Ulgulu e Kempfana estavam mortos, Caroak estava
morto, e Graul, após o desastre no bosque, tinha chegado ao ponto
de colocar uma recompensa pela cabeça do célere.
Então, sobrou apenas Roddy — não seria sua primeira escolha,
mas Tephanis não tinha vontade de sobreviver por conta própria
novamente. Ele acelerou, despercebido, pela parte de trás da árvore
e sussurrou na orelha do homem da montanha.
— Você-estará-em-Maldobar-amanhã.
Roddy congelou com a voz inesperada e estridente.
— Você estará em Maldobar amanhã — disse Tephanis
novamente, tão devagar quanto conseguia.
— Vai embora — Roddy rosnou, achando que o sprite o estava
provocando.
— Você-deveria-ser-mais-gentil-comigo, ah-deveria-sim! —
Tephanis rebateu. — O-elfo-quer-te-prender, você-sabe-né? Por-
crimes-contra-o-ranger-cego.
— Cala sua boca — grunhiu McGristle, mais alto do que
pretendia.
— O que você está fazendo? — veio o grito de Kellindil de não
tão longe.
— Pronto. Você-conseguiu, homem-besta! — Tephanis sussurrou.
— Eu falei procê ir embora! — Roddy respondeu.
— Eu-posso. E-então, onde-você-iria-parar? Na-prisão? —
Tephanis disse com raiva. — Eu-posso-ajudar-você-agora-se-você-
quiser-minha-ajuda.
Roddy estava começando a entender.
— Desamarra minhas mão — ele ordenou.
— Elas-já-estão-desamarradas — Tephanis respondeu, e Roddy
percebeu que as palavras do sprite eram verdadeiras. Começou a
se levantar, mas mudou de ideia quando Kellindil entrou no
acampamento.
— Fica-parado — informou Tephanis. — Eu-vou-distrair-seu-
captor — Tephanis saiu enquanto falava e Roddy ouviu apenas um
murmúrio ininteligível. Ele manteve as mãos atrás dele, porém, sem
pensar em mais nada a fazer com o elfo fortemente armado se
aproximando.
— Nossa última noite na estrada — observou Kellindil, deixando
cair perto do fogo o coelho que tinha caçado para ser sua refeição.
Ele foi para a frente de Roddy e curvou-se. — Vou mandar uma
carta à senhora Garra de Falcão assim que chegarmos a Maldobar
— disse. — Ela considera Montólio DeBrouchee um amigo, e estará
interessada em saber o que aconteceu no bosque.
— O que cê sabe? — Roddy cuspiu para ele. — O ranger
também era um amigo meu.
— Se você é um amigo do rei orc Graul, então você não é amigo
do ranger no bosque — retrucou Kellindil.
Roddy não teve nenhuma refutação imediata, mas Tephanis
forneceu uma. Um som de zumbido veio por trás do elfo e Kellindil,
deixando uma mão cair sobre a espada, girou.
— Que tipo de ser você é? — perguntou ao célere, com os olhos
arregalados de espanto.
Kellindil nunca soube a resposta, porque Roddy apareceu de
repente por trás dele, derrubando-o no chão. Kellindil era um lutador
experiente, mas não chegava perto de superar o braço forte de
Roddy McGristle. As mãos enormes e sujas de Roddy se fecharam
na garganta delgada do elfo.
— Estou-com-seu-cachorro — Tephanis disse a Roddy quando
ele terminou o que tinha que fazer. — Amarrado-em-uma-árvore.
— Quem é você? — Roddy perguntou, tentando esconder sua
exaltação, tanto pela liberdade quanto pelo conhecimento de que
seu cachorro ainda vivia. — E o que cê quer comigo?
— Eu-sou-uma-criatura-pequena, como-pode-ver — explicou
Tephanis. — Eu-gosto-de-ter-amigos-grandes.
Roddy parou para pensar na oferta por um momento.
— Bem, cê merece — ele disse com uma risada. Ele encontrou
Sangrador, seu machado, entre os pertences do elfo morto e
levantou-se com uma expressão sombria. — Vem comigo, então.
Bora voltar pras montanha. Tenho um drow para apagar.
Uma expressão azeda cruzou as características delicadas do
célere, mas Tephanis a escondeu antes que Roddy percebesse.
Tephanis não queria chegar perto do bosque do ranger cego. Além
do fato de o rei orc ter colocado uma recompensa por sua cabeça,
ele sabia que os outros elfos poderiam desconfiar de algo se Roddy
aparecesse sem Kellindil. Mais do que isso, Tephanis sentiu sua
cabeça e seu pé doerem ainda mais ante a ideia de encarar o elfo
negro novamente.
— Não! — o sprite deixou escapar. Roddy, não acostumado a ser
desobedecido, olhou-o perigosamente.
— Não-é-necessário — Tephanis mentiu. — O-drow-está-morto.
Um-worg-matou.
Roddy não parecia convencido.
— Eu-já-te-levei-ao-drow-uma-vez — Tephanis lembrou-lhe.
Roddy estava genuinamente desapontado, mas já não duvidava
do célere. Se não fosse por Tephanis, Roddy sabia, nunca teria
localizado Drizzt e estaria a mais de 160 quilômetros de distância,
fuçando a Caverna de Morueme e gastando todo o seu ouro em
mentiras de dragões.
— E o ranger cego? — Roddy perguntou.
— Ele-vive, mas-deixe-ele-vivo — respondeu Tephanis. —
Muitos-amigos-poderosos-se-juntaram-a-ele. — ele dirigiu o olhar de
Roddy para o corpo de Kellindil. — Elfos, muitos-elfos.
Roddy concordou com a cabeça. Ele não tinha nenhum rancor
verdadeiro contra Monshi e não tinha vontade de enfrentar os
parentes de Kellindil.
Eles enterraram Kellindil e todos os suprimentos que não podiam
levar, encontraram o cachorro de Roddy e partiram mais tarde
naquela mesma noite para as grandes terras a oeste.

De volta ao bosque de Monshi, o verão passou de forma pacífica


e produtiva, com Drizzt conhecendo os caminhos e métodos de um
ranger ainda mais facilmente do que Montólio, já otimista, havia
imaginado. Drizzt aprendeu o nome de cada árvore ou arbusto na
região, e de cada animal — e mais importante: aprendeu a
aprender, a observar as pistas que Mielikki lhe dava. Quando
encontrava um animal que havia encontrado antes, descobriu que,
simplesmente, observando seus movimentos e ações, poderia
discernir rapidamente sua intenção, comportamento e humor.
— Vá e sinta o pelo da cauda — Montólio sussurrou para ele um
dia no crepúsculo cinza e pálido. O velho ranger apontou para um
campo, para a linha das árvores e para o movimento branco de uma
cauda de cervo. Mesmo na luz fraca, Drizzt tinha dificuldades em
ver o cervo, mas sentiu sua presença, como Montólio obviamente
havia sentido.
— Ele vai deixar? — Drizzt sussurrou. Montólio sorriu e deu de
ombros. Drizzt se esgueirou silenciosamente, seguindo as sombras
ao longo da borda do prado. Ele escolheu uma aproximação pelo
norte, a favor do vento, mas para chegar a norte do veado, teria que
vir a leste. Reconheceu seu erro quando estava a dez metros do
cervo. O animal levantou a cabeça de repente, farejou, e sacudiu
sua cauda branca.
Drizzt congelou e esperou por um longo momento enquanto o
cervo retomava seu pasto. A criatura esquiva estava em alerta
agora, e assim que Drizzt tomou outro passo medido, o cervo correu
para longe.
Mas não antes de Montólio, chegando pelo sul, aproximar-se o
suficiente para acariciar seu traseiro enquanto corria.
Drizzt piscou com espanto.
— O vento me favorecia! — reclamou com o ranger convencido.
Montólio sacudiu a cabeça.
— Somente nos últimos vinte metros, quando você veio ao norte
do cervo — ele explicou. — O oeste era melhor que o leste até
então.
— Mas você não conseguiu chegar ao norte do veado pelo oeste
— disse Drizzt.
— Eu não precisava — respondeu Montólio. — Tem uma
ribanceira alta lá atrás — ele apontou para o sul. — Ela corta o
vento nesse ângulo — e gira de volta.
— Eu não sabia.
— Você tem que saber — disse Montólio levemente. — Esse é o
truque. Você tem que ver como um pássaro e olhar para toda a
região antes de escolher o seu curso.
— Eu não aprendi a voar — respondeu Drizzt sarcasticamente.
— Nem eu! — rugiu o velho ranger. — Olhe acima de você.
Drizzt estreitou os olhos quando os voltou para o céu cinzento.
Ele notou uma forma solitária, deslizando facilmente com grandes
asas abertas para pegar a brisa.
— Um falcão — disse o drow.
— Seguiu a brisa do sul — explicou Montólio —, então inclinou-se
para o oeste, sobre as correntes que se quebraram ao redor da
ribanceira. Se você tivesse observado seu voo, você poderia ter
suspeitado da mudança no terreno.
— Isso é impossível — Drizzt disse impotente.
— É? — Montólio perguntou, e começou a se afastar para
esconder o sorriso. Era claro que o drow estava correto; não se
podia dizer a topografia de um terreno pelos padrões de voo de um
falcão. Montólio tinha descoberto sobre o vento que se deslocava
com uma certa coruja furtiva que tinha falado com o ranger assim
que Drizzt começou a andar pelo prado, mas Drizzt não precisava
saber disso. Deixe o drow acreditar na lorota por um tempo, o velho
ranger decidiu. A reflexão, repassando tudo o que aprendeu, seria
uma lição valiosa.
— Piante te contou — Drizzt disse uma meia hora depois, na
trilha de volta ao bosque. — Piante te falou do vento e sobre o
falcão.
— Você parece decidido.
— Eu estou — Drizzt disse com firmeza. — O falcão não gritou, já
estou atento o suficiente para saber disso. Você não podia ver o
pássaro, e eu sei que você não ouviu o farfalhar do vento sobre
suas asas, não importa o que você diga!
O riso de Montólio trouxe um sorriso de confirmação ao rosto do
drow.
— Você se saiu bem hoje — disse o velho ranger.
— Não cheguei perto do cervo — lembrou Drizzt.
— Esse não foi o teste — respondeu Montólio. — Você confiou no
seu conhecimento para contestar minhas afirmações. Você tem
certeza das lições que aprendeu. Agora ouça um pouco mais. Me
deixe te ensinar alguns truques para quando for se aproximar de um
cervo esquivo.
Eles conversaram por todo o caminho de volta até o bosque e até
tarde da noite depois disso. Drizzt ouviu ansiosamente, absorvendo
todas as palavras, enquanto deixava entrar mais dos maravilhosos
segredos do mundo.
Uma semana depois, em um campo diferente, Drizzt colocou uma
mão no traseiro de uma corça, a outra no traseiro de seu filhote
coberto de manchas. Ambos os animais fugiram com o toque
inesperado, mas Montólio pôde “ver” o sorriso de Drizzt a uma
centena de metros de distância.
As aulas de Drizzt estavam longe de estar completas quando o
verão estava perto de acabar, mas Montólio já não passava muito
tempo instruindo o drow. Drizzt tinha aprendido o suficiente para sair
e aprender por conta própria, ouvindo e observando as vozes
silenciosas e sinais sutis das árvores e dos animais. Drizzt estava
tão absorto em suas revelações intermináveis, que mal notou as
mudanças profundas em Montólio. O ranger sentia-se muito mais
velho agora. Suas costas dificilmente se endireitavam nas manhãs
geladas e suas mãos muitas vezes ficavam dormentes. Montólio
permaneceu com uma postura estoica quanto a isso, e não se
entregava à autopiedade e mal lamentava o que estava por vir.
Ele havia vivido muito e plenamente, tinha cumprido muito, e tinha
experimentado a vida mais vividamente do que a maioria dos
homens jamais sonharia.
— Quais são seus planos? — ele disse inesperadamente a Drizzt
uma noite durante o jantar, um ensopado de vegetais que Drizzt
inventara.
A pergunta atingiu a Drizzt com força. Ele não tinha planos para
além do presente — e por que deveria, com a vida tão fácil e
agradável, mais do que jamais fora para o renegado drow
enclausurado? Drizzt realmente não queria pensar muito sobre isso,
então jogou um biscoito para Guenhwyvar para mudar o assunto. A
pantera estava ficando um pouco confortável demais na cama de
Drizzt, se enrolando nos cobertores até o ponto em que Drizzt tinha
começado a se preocupar que a única maneira de remover
Guenhwyvar do emaranhado seria enviá-la de volta ao Plano Astral.
Montólio era persistente.
— Quais são seus planos, Drizzt Do’Urden? — o velho ranger
disse novamente com firmeza. — Onde e como você vai viver?
— Você está me despejando? — Drizzt perguntou.
— Claro que não.
— Então vou morar com você — respondeu Drizzt calmamente.
— Quero dizer depois — disse Montólio, ficando nervoso.
— Depois do que? — perguntou Drizzt, acreditando que Monshi
sabia de algo que ele não sabia.
O riso de Montólio zombou de suas suspeitas.
— Eu sou um homem velho — explicou o ranger — e você é um
elfo jovem. Eu sou mais velho do que você, mas mesmo que eu
fosse um bebê, seus anos superariam os meus. Para onde irá Drizzt
Do’Urden quando Montólio DeBrouchee não estiver mais por aqui?
Drizzt virou-se.
— Eu não... — ele começou hesitantemente. — Eu vou ficar
aqui.
— Não — respondeu Montólio com seriedade. — Você tem muito
mais diante de você, eu acho. Esta vida não seria o bastante.
— Serviu pra você — Drizzt respondeu com mais intensidade do
que pretendia.
— Por cinco anos — disse Montólio calmamente, não se
ofendendo. — Cinco anos depois de uma vida de aventura e
emoção.
— Minha vida não foi tão calma — Drizzt lembrou.
— Mas você ainda é uma criança — disse Montólio. — Cinco
anos não são quinhentos, e você tem mais quinhentos pela frente.
Prometa-me que irá reconsiderar seus planos quando eu não estiver
mais aqui. Há um mundo enorme lá fora, meu amigo, cheio de dor,
mas cheio de alegria também. A primeira te mantém no caminho do
crescimento e a última torna a jornada tolerável. Prometa-me agora
— disse Montólio — que quando Monshi não estiver mais aqui, você
vai encontrar seu lugar.
Drizzt queria discutir, perguntar ao ranger como ele poderia ter
tanta certeza de que o bosque não era o “lugar” de Drizzt. Uma
balança mental mergulhou e se nivelou, depois mergulhou
novamente dentro de Drizzt naquele momento. Ela pesava as
memórias de Maldobar, as mortes dos fazendeiros e todas as
lembranças antes das provações que enfrentara e os males que o
seguiram tão persistentemente. Contra isso, Drizzt considerou seu
desejo sincero de voltar ao mundo. Quantos outros Monshis
encontraria? Quantos amigos? E quão vazio seria este bosque
quando ele e Guenhwyvar estivessem sozinhos ali?
Montólio aceitou o silêncio, conhecendo a confusão do drow.
— Prometa que, quando chegar a hora, você vai, pelo menos,
pensar no que eu disse.
Confiando em Drizzt, Montólio não precisou ver o aceno de
afirmação de seu amigo.

A primeira neve chegou cedo naquele ano, apenas uma leve


varredura de nuvens quebradas que brincavam de esconde-
esconde com a lua cheia. Drizzt, com Guenhwyvar, se deliciou com
a mudança de estações, apreciando a reafirmação do ciclo
interminável. Ele estava de bom humor quando voltou para o
bosque, sacudindo a neve dos espessos ramos de pinheiro
enquanto se aproximava.
A fogueira queimava baixa; Piante estava imóvel em um ramo
baixo e mesmo o vento parecia não fazer um som. Drizzt olhou para
Guenhwyvar em busca de alguma explicação, mas a pantera
apenas sentou-se junto ao fogo, sombria e imóvel.
O pavor é uma emoção estranha, um ponto culminante de pistas
tênues e sutis que traz tanta confusão quanto o medo.
— Monshi? — Drizzt chamou suavemente, aproximando-se do
refúgio do velho ranger. Ele afastou o cobertor e o usou para cobrir
a luz das brasas da fogueira moribunda, deixando seus olhos
mudarem para o espectro infravermelho.
Ele permaneceu ali por muito tempo, observando as últimas gotas
de calor se desvanecerem do corpo do ranger. Mas se Monshi
estava frio, seu sorriso contente emanava calor.
Drizzt lutou contra muitas lágrimas nos próximos dias, mas
sempre que se lembrava desse último sorriso, a paz final que havia
inundado o velho, lembrava-se de que as lágrimas eram por sua
própria perda e não por Monshi.
Drizzt enterrou o ranger sob um monte de pedras ao lado do
bosque, depois passou o inverno em silêncio, cuidando de suas
tarefas diárias e refletindo. Piante passou a vir com menos
frequência, e em uma ocasião, o olhar de despedida que Piante
lançou para Drizzt disse ao drow que a coruja nunca mais retornaria
ao bosque.
Na primavera, Drizzt entendeu os sentimentos de Piante. Por
mais de uma década, ele procurou por um lar, e encontrou um com
Montólio. Mas agora que o ranger se foi, o bosque não parecia mais
tão hospitaleiro. Este era o lugar de Monshi, e não o de Drizzt.
— Como prometi — murmurou Drizzt uma manhã. Montólio
pediu-lhe que considerasse seu curso com cuidado quando o ranger
não estivesse mais ali, e Drizzt agora manteve sua palavra. Ele se
sentia confortável no bosque e ainda era aceito ali, mas o bosque
não era mais seu lar. Sua casa estava lá fora, ele sabia, em todo o
mundo que Montólio assegurara que estava “cheio de dor, mas
também cheio de alegria”.
Drizzt empacotou alguns itens — suprimentos e alguns dos livros
mais interessantes do ranger —, embainhou suas cimitarras e
pendurou o arco longo sobre o ombro. Então, deu uma última
caminhada ao redor do bosque, olhando uma última vez para as
pontes de corda, o arsenal, o barril de conhaque e a calha, a raiz da
árvore onde deteve o gigante no meio do ataque, a área protegida
onde Monshi tinha mantido sua posição. Ele chamou Guenhwyvar, e
a pantera entendeu assim que chegou.
Eles não olharam para trás enquanto caminhavam pela trilha da
montanha, em direção ao amplo mundo de dores e alegrias.
PARTE 5
Refúgio
QUÃO DIFERENTE ME PARECEU A TRILHA quando saí do
bosque de Monshi comparada com a estrada que me levou até lá.
Eu estava sozinho novamente, exceto quando Guenhwyvar
respondia ao meu chamado. Nessa estrada, porém, eu estava
sozinho só em corpo. Em minha mente, carregava um nome, a
encarnação dos meus valiosos princípios. Monshi havia chamado
Mielikki de deusa; para mim, ela era uma maneira de viver.
Ela sempre caminhava ao meu lado ao longo das muitas estradas
da superfície que atravessei. Ela me levou à segurança e lutou
contra o meu desespero quando fui perseguido e caçado pelos
anões da Cidadela Adbar, uma fortaleza a nordeste do bosque de
Monshi. Mielikki, e minha crença em meu próprio valor, me deram a
coragem de me aproximar de cidade após cidade em todo o norte.
As recepções sempre foram as mesmas: choque e medo que
rapidamente se transformavam em raiva. Os mais generosos
daqueles que encontrei me diziam simplesmente para ir embora;
outros me perseguiam com armas à mostra. Em duas ocasiões, fui
forçado a lutar, embora tivesse conseguido escapar sem que
ninguém fosse gravemente ferido.
Os pequenos cortes e arranhões eram um pequeno preço a
pagar. Monshi tinha me pedido para não viver como ele, e as
percepções do velho ranger, como sempre, se tornaram
verdadeiras. Nas minhas viagens ao longo do norte, mantive algo —
esperança — que nunca teria mantido se tivesse permanecido como
um eremita no bosque perene. À medida que cada nova aldeia se
mostrava no horizonte, uma sensação de ansiedade acelerava
meus passos. Um dia, eu estava determinado, encontraria aceitação
e encontraria meu lar.
Isso aconteceria de repente, imaginei. Eu me aproximaria de um
portão, falaria uma saudação formal e depois me revelaria como um
elfo negro. Até a minha fantasia era temperada pela realidade,
porque o portão não se abriria com minha chegada. Em vez disso,
permitiriam minha entrada acompanhado de guardas, e passaria por
um período de teste muito parecido com o que eu passei em Gruta
das Pedras Preciosas, a cidade dos svirfneblin. As suspeitas
permaneceriam sobre mim por muitos meses, mas no final, os
princípios seriam vistos e aceitos pelo que eram; o caráter da
pessoa superaria a cor de sua pele e a reputação de sua herança.
Repassei essa fantasia inúmeras vezes ao longo dos anos. Cada
palavra de cada reunião na minha cidade imaginada tornou-se uma
litania contra as rejeições contínuas. Não teria sido suficiente, mas
Guenhwyvar sempre esteve ali para mim, e agora havia Mielikki.
— Drizzt Do’Urden
CAPÍTULO 20
Anos e Quilômetros
A ESTALAGEM DA COLHEITA EM PONTE OESTE era um ponto
de encontro favorito para viajantes da Longa Estrada que se
estende entre Águas Profundas e Mirabar, as duas grandes cidades
do norte. Além de quartos confortáveis, a Estalagem da Colheita
incluía a Taverna e Comedoria do Derry, um famoso bar de troca de
histórias, onde, em qualquer noite, um hóspede encontraria
aventureiros de regiões tão variadas quanto Luskan e Sundabar. A
lareira era grande e quente, as bebidas eram abundantes, e as
histórias contadas na Comedoria eram aquelas que seriam contadas
e recontadas em todos os Reinos.
Roddy manteve o capuz de seu desgastado manto de viagem
puxado sobre seu rosto, escondendo suas cicatrizes, enquanto
comia seu carneiro. O velho cão amarelo sentava-se no chão ao
lado dele, rosnando, e de vez em quando Roddy deixava cair um
pedaço de carne.
O faminto caçador de recompensas raramente levantava a
cabeça do seu prato, mas os olhos vermelhos de Roddy espiavam
de forma suspeita, das sombras de seu capuz. Ele conhecia alguns
dos rufiões reunidos naquela noite na Comedoria, pessoalmente ou
por reputação, e não confiava neles mais do que eles, se fossem
sábios, confiariam nele.
Um homem alto reconheceu o cachorro de Roddy quando passou
pela mesa e parou, pensando em cumprimentar o caçador de
recompensas. Porém, o homem alto se afastou silenciosamente,
percebendo que o miserável McGristle não valia o esforço. Ninguém
sabia exatamente o que tinha acontecido naqueles anos, nas
montanhas perto de Maldobar, mas Roddy tinha saído dessa região
com cicatrizes profundas, físicas e emocionais. Sempre mal-
humorado, McGristle passava mais tempo rosnando do que
falando.
Roddy mordeu a carne um pouco mais, então deixou cair o osso
grosso para o cachorro e limpou as mãos gordurosas sobre o
manto, inadvertidamente afastando o lado do capuz que escondia
suas terríveis cicatrizes. Roddy rapidamente puxou o capuz de volta,
seu olhar se dirigindo para quem pudesse ter notado. Um único
olhar enojado com as cicatrizes de Roddy já havia custado a vida
para vários homens.
Ninguém pareceu notar, no entanto. Não desta vez. A maioria
daqueles que não estavam ocupados comendo, estavam no bar,
discutindo alto.
— Nunca foi! — um homem rosnou.
— Eu te disse o que vi! — outro rebateu. — E disse certo!
— Só na tua cabeça! — o primeiro gritou de volta, e outro ainda
colocou:
— Você não reconheceria nem se visse um! — várias pessoas se
aproximaram, encostando-se umas nas outras.
— Fiquem quietos! — sobressaiu-se uma voz. Um homem
afastou-se da multidão e apontou diretamente para Roddy. Este, por
sua vez, sem reconhecer o homem, baixou instintivamente a mão
para Sangrador, seu machado bem gasto.
— Pergunte a McGristle! — o homem gritou. — Roddy McGristle!
Ele sabe mais sobre elfos negros do que qualquer um.
Uma dúzia de conversas brotou de uma só vez quando o grupo
inteiro avançou até Roddy. A mão do caçador de recompensas já
estava longe de Sangrador novamente. Agora, ele cruzava os dedos
de ambas as mãos na mesa à frente dele.
— Cê é o McGristle, né? — o homem perguntou a Roddy,
mostrando ao caçador de recompensas uma boa medida de
respeito.
— Talvez eu seja — respondeu Roddy calmamente, apreciando a
atenção. Ele não esteve cercado por um grupo tão interessado no
que ele tinha a dizer desde quando o clã Thistledown foi
assassinado.
— Ah — uma voz descontente surgiu de algum lugar ao fundo —,
o que ele sabe sobre os elfos negros?
O olhar de Roddy fez os da frente recuarem um passo, e ele
percebeu o movimento. Ele gostou disso, gostou de ser importante
novamente, respeitado.
— O elfo drow matou meu cachorro — disse bruscamente. Ele se
aproximou e puxou a cabeça do velho cão amarelo, mostrando a
cicatriz. — E machucou a cabeça deste aqui. O maldito elfo negro
— disse deliberadamente, puxando o capuz do rosto — me deu
isso.
Normalmente, Roddy escondia as cicatrizes horríveis, mas os
engasgos e os murmúrios da multidão pareciam imensamente
satisfatórios para o miserável caçador de recompensas. Ele virou-se
para o lado, deu-lhes uma visão completa e saboreou a reação o
máximo de tempo possível.
— De pele preta e de cabelos brancos? — perguntou um homem
atarracado de barriga protuberante, aquele que havia começado o
debate no bar com seu próprio conto de um elfo negro.
— Tem que ser pra ser um elfo negro — Roddy resmungou. O
homem olhou ao redor triunfante.
— Foi isso o que eu tentei dizer pra eles — ele disse a Roddy. —
Eles falam que eu vi um elfo sujo, ou um orc talvez, mas eu sabia
que era um drow!
— Se cê vê um drow — Roddy disse com severidade e
deliberação, pesando cada palavra com importância —, então cê
sabe que viu um drow. E você não vai esquecer que viu um drow! E
que qualquer um que duvida de suas palavras tenta encontrar ele o
próprio drow. Ele vai voltar para você pedindo desculpa!
— Bem, eu vi um elfo negro — proclamou o homem. — Estava
acampando na Floresta Oculta, ao norte de Grunwald. Noite
tranquila, pensei, então deixei o fogo aceso um pouco mais, para
vencer o vento frio. Bem, então apareceu esse estranho sem aviso,
sem uma palavra!
Todos os homens do grupo estavam presos à narrativa agora,
ouvindo-a ante uma luz diferente agora que o estranho com
cicatrizes feitas por um drow tinha confirmado o conto.
— Sem uma palavra, ou um piado, nada! — o homem de barriga
protuberante continuou. — Ele tinha sua capa puxada para baixo, de
forma suspeita, então eu disse pra ele “O que você está fazendo?”.
Ele respondeu “Procurando por um lugar onde meus companheiros
e eu possamos acampar à noite”, muito calmo. Parecia razoável o
suficiente para mim, mas ainda não gostava daquele capuz
abaixado. “Puxe o seu capuz então”, eu disse pra ele. “Eu não
compartilho nada sem ver o rosto da pessoa”. Ele considerou
minhas palavras por um minuto, então levou as mãos para cima,
muito devagar — o homem imitou o movimento dramaticamente,
olhando para garantir que tivesse a atenção de todos.
— Eu não precisava ver mais nada! — o homem gritou de
repente, e todos, apesar de terem ouvido a mesma história, contada
da mesma forma só um momento antes, pularam de surpresa. —
Suas mãos eram tão pretas quanto o carvão e tão esbeltas quanto
as de um elfo. Eu sabia então, mas não sei como eu sabia com
tanta certeza, que era um drow diante de mim. Um drow, eu digo, e
que qualquer um que duvida das minhas palavras que tente
encontrar o próprio drow!
Roddy assentiu com a cabeça, enquanto o homem de barriga
protuberante olhava seus antigos duvidosos.
— Parece que ouvi falar muito sobre elfos negros ultimamente —
resmungou o caçador de recompensas.
— Eu ouvi apenas sobre esse — outro homem entrou. — Até que
falamos com você, quero dizer, e ouvimos falar de sua batalha. Isso
faz dois drows em seis anos.
— Como eu disse — Roddy comentou sombriamente — parece
que eu ouvi falar demais sobre elfos negros...
Roddy nunca terminou sua frase enquanto o grupo explodiu em
uma risada exagerada à sua volta. Parecia os bons e velhos tempos
para o caçador de recompensas, os dias em que todos prestavam
atenção a cada palavra dele.
O único homem que não estava rindo era o contador de histórias,
abalado demais de seu próprio relato do encontro com o drow.
— Ainda assim — ele disse acima da agitação — quando penso
naqueles olhos roxos me olhando debaixo daquele capuz…
O sorriso de Roddy desapareceu em um piscar de olhos.
— Olhos roxos? — ele mal conseguiu engasgar. Roddy tinha
encontrado muitas criaturas que usavam infravisão, a visão sensível
ao calor mais comum entre os habitantes do Subterrâneo, e sabia
que normalmente esses olhos se mostravam como pontos
vermelhos. Roddy ainda se lembrava vividamente dos olhos púrpura
olhando para ele quando estava preso debaixo da árvore de bordo.
Ele soube então, e sabia agora, que essa cor era rara, mesmo entre
os elfos negros.
Aqueles no grupo mais próximo de Roddy pararam de rir,
pensando que a pergunta do caçador de recompensas prejudicava a
verdade do conto do homem.
— Eles eram roxos — insistiu o homem de barriga protuberante,
embora houvesse pouca convicção em sua voz instável. Os homens
ao seu redor aguardavam o acordo ou refutação de Roddy, sem
saber se riam ou não do narrador.
— Que armas ele tava carregando? — Roddy perguntou
sombriamente, levantando-se lentamente.
O homem pensou por um momento.
— Espadas curvas — ele falou.
— Cimitarras?
— Cimitarras — o outro concordou.
— O drow disse o nome dele? — Roddy perguntou e, quando o
homem hesitou, Roddy agarrou-o pelo colarinho e puxou-o sobre a
mesa. — O drow disse o nome dele? — o caçador de recompensas
disse novamente, sua respiração quente no rosto do homem
barrigudo.
— Não... er, hã, Driz...
— Drizzit?
O homem deu de ombros impotente, e Roddy o lançou de volta a
seus pés.
— Onde? — o caçador de recompensas rugiu. — E quando?
— Floresta Oculta — disse o homem barrigudo, tremendo. —
Três semanas atrás. O drow está indo para Mirabar com os Frades
Penitentes, eu acho.
A maioria da multidão gemeu com a menção do grupo religioso
fanático. Os Frades Penitentes eram um bando esfarrapado de
mendigos sofredores que acreditavam — ou diziam acreditar — que
havia uma quantidade finita de dor no mundo. Quanto mais
sofrimento tomassem sobre eles, segundo os frades, menos
permanecia para o resto do mundo suportar. Quase todos
desprezavam a ordem. Alguns eram sinceros, mas alguns
imploravam por bugigangas, prometendo sofrer horrivelmente pelo
bem do doador.
— Eram os companheiros do drow — continuou o homem de
barriga protuberante. — Eles sempre vão para Mirabar. Vão
encontrar o frio quando o inverno chega.
— É um caminho longo — observou alguém.
— Bem longo — disse outro. — Os Frades Penitentes sempre
seguem a rota do túnel.
— Quase quinhentos quilômetros — o primeiro homem que
reconheceu Roddy acrescentou, tentando acalmar o agitado
caçador de recompensas. Mas Roddy nunca o ouviu. Puxando seu
cão, ele se afastou e saiu da Comedoria, batendo a porta atrás dele
e deixando todo o grupo murmurando um com outro em absoluta
surpresa.
— Foi Drizzit quem pegou o cachorro e a orelha de Roddy — o
homem continuou, agora voltando sua atenção para o grupo. Ele
não tinha conhecimento prévio do nome do estranho drow;
simplesmente fez uma suposição baseada na reação de Roddy.
Agora, o grupo fluía ao redor dele, segurando sua respiração
coletiva para ele contar-lhes a história de Roddy McGristle e o drow
de olhos roxos. Como qualquer cliente adequado da Comedoria, o
homem não deixou que a falta de conhecimento real o impedisse de
contar a história. Ele enfiou os polegares no cinto e começou,
preenchendo os consideráveis espaços em branco com o que fosse
apropriado.
Mais de dez suspiros e aplausos de apreciação e prazer surpreso
ecoaram na rua fora da Comedoria naquela noite, mas Roddy
McGristle e seu cão amarelo, com suas rodas de carroça já grossas
da lama da Longa Estrada, não ouviram nenhum deles.
— Ei, o-que-você-está-fazendo? — veio uma reclamação
cansada de um saco atrás do banco de Roddy. Tephanis rastejou
para fora. — Por-que-estamos-indo-embora?
Roddy se curvou e o atacou, mas Tephanis, mesmo com sono,
não teve problemas para se desviar do golpe.
— Você mentiu para mim, seu primo de um kobold! — rosnou
Roddy. — Você me disse que o drow estava morto. Mas não está!
Ele tá na estrada para Mirabar, e eu vou pegá-lo!
— Mirabar? — Tephanis gritou. — Muito-longe-muito-longe! — O
célere e Roddy passaram por Mirabar na primavera anterior.
Tephanis achou aquele lugar perfeitamente miserável, cheio de
anões sombrios, homens de olhos afiados e um vento frio demais
para o seu gosto. — Temos-que-ir-para-o-sul-para-o-inverno. No-
sul-é-quente!
O olhar resultante de Roddy silenciou o sprite.
— Eu vou esquecer o que você fez comigo — ele grunhiu, então
acrescentou um aviso ameaçador — se pegarmos o drow.
Ele virou-se de costas para Tephanis então, e o sprite rastejou de
volta ao seu saco, sentindo-se miserável e se perguntando se
Roddy McGristle valia a pena.
Roddy atravessou a noite, curvando-se para incitar seu cavalo e
murmurando “seis anos!” repetidas vezes.

Drizzt se encolheu perto do fogo que ardia em um antigo barril de


minério que o grupo havia encontrado. Esse seria o sétimo inverno
do drow na superfície, mas ainda assim se incomodava com o frio.
Ele passou décadas, e seu povo vivia por milênios, no Subterrâneo
morno e sem estações. Embora o inverno ainda estivesse a alguns
meses de distância, sua aproximação era evidente nos ventos
gelados que caíam das montanhas da Espinha do Mundo. Drizzt
usava apenas um cobertor antigo, fino e rasgado, sobre suas
roupas, cota de malha e cinto de armas.
O drow sorriu quando percebeu que seus companheiros se
mexiam e se enrolavam sobre quem conseguia o próximo gole de
uma garrafa de vinho que haviam pedido enquanto o último bebedor
havia tomado. Drizzt estava sozinho no barril agora; os Frades
Penitentes, ainda que não chegassem a afastar o drow, muitas
vezes não se aproximavam dele. Drizzt aceitava isso e sabia que os
fanáticos apreciavam sua companhia por razões práticas, se não
estéticas. Alguns do grupo realmente gostavam de ser atacados
pelos vários monstros da região, os vendo como oportunidades para
algum sofrimento verdadeiro, mas os mais pragmáticos do grupo
apreciavam ter o habilidoso drow armado por perto, oferecendo
proteção.
O relacionamento era aceitável para Drizzt, se não satisfatório.
Ele havia deixado o bosque de Monshi anos atrás cheio de
esperança, mas uma esperança temperada pelo realismo de sua
existência. De vez em quando, Drizzt se aproximava de uma aldeia
apenas para ser posto atrás de uma parede de palavras ásperas,
maldições e armas sacadas. Toda vez, Drizzt ignorava o desprezo.
Fiel ao seu espírito ranger — porque Drizzt era realmente um ranger
agora, tanto em treinamento quanto em coração —, ele aceitou seu
sofrimento de forma estoica.
Porém, a última rejeição mostrou a Drizzt que sua determinação
estava se desgastando. Ele tinha sido afastado de Luskan, na Costa
da Espada, mas não por nenhum guarda, porque nunca chegou a
se aproximar do lugar. Os próprios medos de Drizzt o mantiveram
longe, e tal fato o assustou mais do que as espadas que já
enfrentara. Na estrada fora da cidade, Drizzt tinha se encontrado
com esse grupo de Frades Penitentes, e eles o aceitaram
hesitantemente, até porque eles não tinham motivos para afastá-lo,
uma vez que estavam muito envolvidos em sua própria miséria para
se preocupar com quaisquer diferenças raciais. Dois do grupo até se
jogaram aos pés de Drizzt, implorando-lhe que libertasse seus
“terrores dos elfos negros” e os fizesse sofrer.
Durante a primavera e o verão, o relacionamento evoluiu com
Drizzt servindo como um guardião silencioso enquanto os frades
seguiam seus caminhos de mendicância e sofrimento. Em suma,
era bastante desagradável, às vezes até mesmo enganoso, para o
drow de princípios, mas Drizzt não encontrou outras opções.
Drizzt olhou para as chamas saltitantes e refletiu sobre seu
destino. Ele ainda tinha Guenhwyvar e usou bem suas cimitarras e
seu arco muitas vezes. Todos os dias dizia a si mesmo que, ao lado
dos fanáticos um tanto desamparados, ele estava servindo a Mielikki
e a seu próprio bom coração. Ainda assim, não levava os frades em
grande consideração e não os chamava de amigos. Observando os
cinco homens agora, bêbados e caindo um sobre o outro, Drizzt
suspeitava que nunca o faria.
— Me bata! Me corte! — um dos frades gritou de repente, e
correu na direção do barril, tropeçando em Drizzt, que o pegou e o
segurou, mas apenas por um momento.
— Solte sua malignanidade drow na minha cabeça! — o frade
sujo e barbudo implorou, e seu corpo magrelo caiu em uma pilha
angulosa.
Drizzt virou-se, balançou a cabeça e, inconscientemente, deixou
cair a mão na bolsa para sentir a estatueta de ônix, precisando do
toque para lembrá-lo de que não estava realmente sozinho. Estava
sobrevivendo, lutando uma eterna batalha solitária, mas estava
longe de se contentar. Havia encontrado um lugar, talvez, mas não
um lar.
— Como o bosque sem Montólio — pensou o drow. — Nunca um
lar.
— Você disse algo? — perguntou um frade imponente, irmão
Mateus, se aproximando para coletar seu companheiro bêbado. —
Por favor, desculpe o irmão Jankin, meu amigo. Ele bebeu demais,
temo eu.
O sorriso impotente de Drizzt revelou que não havia se ofendido,
mas suas próximas palavras pegaram o irmão Mateus, o líder e o
membro mais racional (se não o mais honesto) do grupo,
desprevenido.
— Vou completar a viagem a Mirabar com vocês — explicou
Drizzt —, e então vou embora.
— Embora? — perguntou Mateus, preocupado.
— Este não é o meu lugar — explicou Drizzt.
— Dez-Burgos é o lugar! — Jankin deixou escapar.
— Se alguém te ofendeu... — Mateus disse a Drizzt, sem prestar
atenção ao homem bêbado.
— Ninguém — Drizzt disse e sorriu de novo. — Há mais para mim
nesta vida, irmão Mateus. Não fique com raiva, eu imploro, mas vou
embora. Não foi uma decisão que tomei com facilidade.
Mateus parou por um momento para pensar nas palavras.
— Como quiser — disse ele — mas você pode, pelo menos,
acompanhar-nos pelo túnel até Mirabar?
— Dez-Burgos! — Jankin insistiu. — Lá é lugar de sofrer! Você
vai gostar também, drow. Terra de ladrões, onde um renegado pode
achar seu lugar!
— Tem coisas que ficam nas sombras e que se alimentam de
frades desarmados — interrompeu Mateus, dando a Jankin uma
sacudida áspera.
Drizzt parou um momento, paralisado pelas palavras de Jankin.
Porém, ele tinha caído, e o drow olhou para Mateus.
— Não é por isso que vocês seguem a rota do túnel para a
cidade? — Drizzt perguntou ao frade imponente. O túnel era
normalmente reservado para carrinhos de minas, vindos da Espinha
do Mundo, mas os frades sempre passavam por lá, mesmo em
situações como essa, quando tinham que fazer um circuito completo
da cidade apenas para chegar à entrada da rota. — Para ser uma
vítima e sofrer? — Drizzt continuou — Certamente, a estrada está
mais limpa e é mais conveniente com o inverno há meses de
distância.
Drizzt não gostava do túnel para Mirabar. Todos os andarilhos que
encontrariam naquela estrada estariam perto demais para o drow
esconder sua identidade. Drizzt foram abordado lá em suas duas
viagens anteriores.
— Os outros insistem em que atravessemos o túnel, embora
esteja a muitos quilômetros do nosso caminho — respondeu
Mateus, uma ponta afiada em seu tom. — Mas eu prefiro mais
formas pessoais de sofrimento e agradeceria sua companhia até
Mirabar.
Drizzt queria gritar com o frade espúrio. Mateus considerava ter
perdido uma única refeição um sofrimento severo e só usava sua
fachada porque muitas pessoas crédulas entregavam moedas aos
fanáticos cobertos, normalmente apenas para se livrar dos homens
malcheirosos.
Drizzt assentiu com a cabeça e observou enquanto Mateus
arrastava Jankin.
— Então vou embora — sussurrou em voz baixa. Ele podia dizer
a si mesmo repetidas vezes que estava servindo a sua deusa e seu
coração, protegendo o bando aparentemente indefeso, mas seu
comportamento muitas vezes cuspia na cara dessas palavras.
— Drow! Drow! — o irmão Jankin balbuciou enquanto Mateus o
arrastava até os outros.
CAPÍTULO 21
Hephaestus
TEPHANIS VIU O GRUPO DE SEIS — os cinco frades e Drizzt —
seguirem seu lento caminho até o túnel que levava à entrada leste
de Mirabar. Roddy tinha enviado o célere para explorar a região,
dizendo a Tephanis para atrair o drow, se ele encontrasse o drow,
até Roddy.
— Sangrador vai cuidar daquele lá — Roddy tinha grunhido,
batendo seu formidável machado na palma da sua mão.
Tephanis não tinha tanta certeza. O sprite tinha visto Ulgulu, um
mestre mais poderoso do que Roddy McGristle, ser despachado
pelo drow, e outro mestre poderoso, Caroak, ser despedaçado pela
pantera negra do drow. Se Roddy tivesse seu desejo concedido e
enfrentasse o drow em batalha, Tephanis logo teria que procurar
outro mestre.
— Não-desta-vez, drow — o sprite sussurrou de repente, após
uma ideia vir à sua mente. — Dessa-vez-eu-te-pego! — Tephanis
conhecia o túnel para Mirabar — ele e Roddy o tinham usado no
penúltimo inverno, quando a neve tinha enterrado a estrada
ocidental — e tinha aprendido muitos de seus segredos, incluindo
um que o sprite agora planejava usar em sua vantagem.
Ele fez um circuito largo ao redor do grupo, não querendo alertar
o drow de ouvidos aguçados, e ainda assim chegou na entrada do
túnel muito antes dos outros. Poucos minutos depois, o sprite estava
a mais de um quilômetro e meio de distância da entrada,
arrombando uma fechadura intrincada, uma que parecia desajeitada
para o célere habilidoso, no portão de grade.

Irmão Mateus liderou o caminho pelo túnel, com outro frade ao


seu lado e os três restantes completando um círculo protetor ao
redor de Drizzt. Drizzt pediu que fizessem isso para que pudesse
permanecer discreto se alguém por acaso passasse pelo grupo. Seu
capuz estava baixo, seus ombros encurvados e se manteve
abaixado no meio do grupo.
Eles não encontraram nenhum outro viajante e caminharam pela
passagem iluminada por tochas a um ritmo constante. Chegaram a
uma encruzilhada e Mateus parou abruptamente, vendo o portão
levantado para uma passagem no lado direito. Uma dúzia de passos
à frente, uma porta de ferro balançava, e a passagem além dela
estava completamente escura, não iluminada por tochas como o
túnel principal.
— Que curioso — comentou Mateus.
— Imprudente — outro corrigiu. — Rezemos para que outros
viajantes, que não conheçam o caminho tão bem quanto nós, não
acabem passando por aqui e peguem o caminho errado.
— Talvez devamos fechar a porta — outro ainda sugeriu.
— Não — Mateus rapidamente interveio. — Pode haver alguém lá
embaixo, mercadores talvez, que não ficariam muito satisfeitos se
fizéssemos isso.
— Não! — Irmão Jankin gritou de repente e correu para a frente
do grupo. — É um sinal! Um sinal divino! Nós somos chamados,
meus irmãos, a Phaestus, o sofrimento final!
Jankin virou-se para correr pelo túnel, mas Mateus e um outro,
nem um pouco surpresos com a explosão selvagem rotineira de
Jankin, pularam imediatamente sobre ele e o derrubaram.
— Phaestus! — Jankin gritava descontroladamente, com seus
longos cabelos pretos desgrenhados voando sobre seu rosto. — Eu
estou indo!
— O que está havendo? — Drizzt teve que perguntar, sem ter
ideia do que os frades estavam falando, embora achasse ter
reconhecido a referência. — Quem, ou o que, é Phaestus?
— Hephaestus — corrigiu o irmão Mateus.
Drizzt conhecia aquele nome. Um dos livros que levou do bosque
de Monshi era de história dracônica, e Hephaestus, um venerável
dragão vermelho que vivia nas montanhas a noroeste de Mirabar,
era mencionado lá.
— Esse não é o nome verdadeiro do dragão, é claro — Mateus
continuou entre grunhidos enquanto lutava com Jankin. — Eu não
sei qual é, nem mais ninguém — Jankin se contorceu de repente,
jogando o outro monge de lado, e rapidamente pisou na sandália de
Mateus.
— Hephaestus é um antigo dragão vermelho que viveu nas
cavernas a oeste de Mirabar por mais tempo que qualquer um, até
mesmo os anões, consegue se lembrar — explicou outro frade,
Irmão Herschel, um menos engajado do que Mateus. — A cidade o
tolera porque ele é um preguiçoso e um estúpido, embora eu não
diria isso a ele. A maioria das cidades, eu presumo, escolheria
tolerar um vermelho se isso significasse não precisar lutar contra
ele. Mas Hephaestus não é muito chegado em pilhagem — ninguém
se lembra da última vez que ele chegou a sair do seu buraco —, e
ele ainda derrete algum minério em troca de pagamento, embora
seja muito alto.
— Alguns pagam, porém — acrescentou Mateus, tendo Jankin de
volta ao controle — especialmente no final da temporada, para se
juntarem à última caravana no sul. Nada pode separar o metal tão
bem quanto o sopro de um dragão vermelho! — sua risada
desapareceu rapidamente quando Jankin se chocou contra ele, o
derrubando no chão.
Jankin escapou, por apenas um momento. Mais rápido que
qualquer um poderia reagir, Drizzt arrancou o manto e correu até o
monge fugitivo, pegando-o logo do lado de dentro da pesada porta
de ferro. Um único passo e uma manobra de torção fizeram Jankin
cair de costas com força e tiraram o fôlego do frade de olhos
arregalados.
— Vamos passar por esta região logo — o drow sugeriu, olhando
fixamente para o frade atordoado. — Eu estou cansado das
travessuras de Jankin — talvez eu devesse deixa-lo correr até o
dragão!
Dois dos outros vieram e levantaram Jankin, então todo o grupo
virou-se para partir.
— Socorro! — chegou um grito que vinha mais além no túnel
escuro.
As cimitarras de Drizzt já estavam em suas mãos. Todos os
frades se reuniram ao seu redor, olhando para a escuridão.
— Você está vendo alguma coisa? — Mateus perguntou ao drow,
sabendo que a visão noturna de Drizzt era muito mais precisa do
que a sua.
— Não, mas o túnel faz uma curva logo ali — respondeu Drizzt.
“Socorro!” veio o grito novamente. Atrás do grupo, ao redor da
curva do túnel principal, Tephanis tinha que segurar seu riso. Os
céleres eram adeptos do ventriloquismo, e o maior problema que
Tephanis tinha para enganar o grupo era manter seus gritos lentos o
suficiente para serem entendidos.
Drizzt deu um passo cauteloso, e os frades, mesmo Jankin, agora
de cabeça fria após o grito de socorro, seguiram logo atrás. Drizzt
fez sinal para que voltassem assim que, de repente, percebeu o
potencial de uma armadilha.
Mas Tephanis era rápido demais. A porta bateu com um baque
ressoante e, antes que o drow, a dois passos de distância, pudesse
passar pelos frades assustados, o sprite já tinha trancado a porta.
Um momento depois, Drizzt e os frades ouviram um segundo baque
quando o portão de grades desceu.
Tephanis voltou para a luz do dia alguns minutos depois, se
achando muito esperto e lembrando-se de manter uma expressão
intrigada quando explicou a Roddy que o grupo do drow não estava
em nenhum lugar.

Os frades se cansaram de gritar assim que Drizzt lhes lembrou


que seus gritos poderiam despertar o ocupante na outra
extremidade do túnel.
— Mesmo que alguém passe pelo portão, não vai te ouvir do
outro lado desta porta — disse o drow, inspecionando a porta
pesada com a única vela que Mateus acendeu. Uma combinação de
ferro, pedra e couro, e perfeitamente encaixada, a porta tinha sido
criada por anões. Drizzt tentou bater nela com o punho de uma
cimitarra, mas isso produziu apenas um baque abafado que não iria
mais longe do que os gritos.
— Estamos perdidos — gemeu Mateus. — Não temos saída, e
nossos suprimentos não são muito abundantes.
— Outro sinal! — Jankin explodiu de repente, mas dois dos frades
o derrubaram e sentaram-se em cima dele antes que pudesse fugir
para o covil do dragão.
— Talvez haja alguma lógica no pensamento do irmão Jankin —
disse Drizzt depois de uma longa pausa.
Mateus olhou para ele com desconfiança.
— Você está pensando que nossos suprimentos durariam mais se
o Irmão Jankin fosse encontrar Hephaestus? — perguntou.
Drizzt não conseguiu segurar o riso.
— Não tenho a intenção de sacrificar ninguém — disse e olhou
para Jankin lutando sob os frades. — Não importa o quanto ele
queira! Mas nós temos apenas uma saída, ao que parece.
Mateus seguiu o olhar de Drizzt pelo túnel escuro.
— Se você não planeja sacrificar ninguém, então está olhando
para o lado errado — disse o frade imponente. — Certamente não
está pensando em passar pelo dragão!
— Veremos — foi tudo o que o drow respondeu. Ele acendeu
outra vela com a chama da primeira e andou por uma curta distância
pelo túnel. O bom senso de Drizzt discutia com a inegável
empolgação que sentiu ante a possibilidade de enfrentar
Hephaestus, mas era uma discussão que ele esperava que a
necessidade vencesse. Montólio havia lutado contra um dragão,
lembrou Drizzt, perdeu os olhos para um vermelho. As lembranças
do ranger da batalha, apesar de seus ferimentos, não eram tão
terríveis. Drizzt estava começando a entender o que o ranger cego
havia dito sobre a diferença entre sobrevivência e realização. Quão
valiosos seriam os quinhentos anos que Drizzt ainda teria de vida?
Pela segurança dos frades, Drizzt esperava que alguém viesse e
abrisse o portão e a porta. Mas os dedos do drow tremiam com a
promessa da emoção quando ele alcançou sua mochila e tirou um
livro de história dracônica que havia trazido do bosque.
Os olhos sensíveis do drow precisavam de pouca luz, e
conseguia distinguir as letras com uma dificuldade mínima. Como
suspeitava, havia uma parte falando do venerável vermelho que
vivia a oeste de Mirabar. O livro confirmava que Hephaestus não era
o nome verdadeiro do dragão, mas sim um nome dado a ele em
referência a algum deus obscuro dos ferreiros.
A parte do livro não era extensa, eram mais histórias de alguns
comerciantes que entraram para contratar o dragão para usar seu
sopro, e outras histórias de comerciantes que aparentemente
disseram a coisa errada ou barganharam demais sobre o custo —
ou talvez o dragão estivesse apenas com fome ou de mau humor —
e que nunca mais voltaram. Mais importante para Drizzt, o livro
confirmou a descrição do frade da criatura como sendo preguiçosa e
um pouco estúpida. De acordo com as notas, Hephaestus era
excessivamente orgulhoso, como os dragões costumavam ser, e
capaz de falar a língua comum, mas “deficiente em se tratando da
percepção de coisas suspeitas, característica normalmente
associada à raça, particularmente aos vermelhos veneráveis”.
— O irmão Herschel está tentando arrombar a fechadura — disse
Mateus, indo até Drizzt. — Seus dedos são ágeis. Gostaria de
tentar?
— Nem Herschel nem eu conseguiremos arrombar aquela
fechadura — disse Drizzt distraidamente, sem deixar de olhar para o
livro.
— Pelo menos Herschel está tentando — rosnou Mateus —, e
não se aconchegando sozinho desperdiçando velas e lendo um
tomo inútil.
— Não é tão inútil para qualquer um de nós que pretenda sair
daqui vivo — disse Drizzt, ainda não olhando para cima. Ele
conseguiu a atenção do frade.
— O que é isso? — perguntou Mateus, inclinando-se sobre o
ombro de Drizzt, embora não soubesse ler.
— Fala sobre vaidade — respondeu Drizzt.
— Vaidade? O que a vaidade tem haver com...
— Vaidade de dragão — explicou Drizzt. — Um ponto muito
importante, talvez. Todos os dragões a possuem em excesso, os
malignos mais do que os bondosos.
— Quando se tem garras afiadas como espadas e um sopro que
pode derreter pedra, bem, deveriam — resmungou Mateus.
— Talvez — admitiu Drizzt — mas a vaidade é uma fraqueza, não
duvide, até mesmo para um dragão. Vários heróis exploraram tal
característica para matar uma dessas bestas.
— Agora você está pensando em matar a coisa — Mateus
retrucou, admirado.
— Se for preciso — disse Drizzt, distraidamente. Mateus levantou
as mãos e se afastou, balançando a cabeça para responder os
olhares interrogativos dos outros.
Drizzt sorriu para si mesmo e voltou à sua leitura. Seus planos
estavam tomando forma agora. Ele relera a parte referente várias
vezes, tentando memorizar cada palavra.
Três velas depois, Drizzt ainda estava lendo e os frades estavam
ficando cada vez mais impacientes e famintos. Eles cutucaram
Mateus, que se levantou, ajeitou o cinto sobre a barriga e caminhou
em direção a Drizzt.
— Mais vaidade? — ele perguntou sarcasticamente.
— Já acabei essa parte — respondeu Drizzt. Ele ergueu o livro,
mostrando a Mateus um esboço de um enorme dragão negro
enrolado em torno de várias árvores caídas em um pântano
espesso. — Estou aprendendo agora sobre o dragão que pode
ajudar nossa causa.
— Hephaestus é um vermelho — Mateus observou com desdém
— não desse tipo.
— Este é um dragão diferente — explicou Drizzt —
Mergandevinasander de Chult, possivelmente um visitante para
conversar com Hephaestus.
O irmão Mateus estava completamente perdido.
— Os vermelhos e os negros não se dão bem — ele cortou, com
ceticismo óbvio. — qualquer imbecil sabe disso.
— Eu raramente dou ouvidos a imbecis — respondeu Drizzt, e
novamente o frade se virou e se afastou, balançando a cabeça.
— Há algo mais que você não sabe, mas que Hephaestus
provavelmente saberá — disse Drizzt calmamente, baixo demais
para que alguém ouvisse. — Mergandevinasander tem olhos roxos!
Drizzt fechou o livro, confiante de que tinha aprendido o suficiente
para fazer sua tentativa. Se já tivesse testemunhado o esplendor
terrível de um venerável vermelho antes, não estaria sorrindo
naquele momento. Mas a ignorância e as lembranças de Montólio
criaram coragem no jovem guerreiro drow que tinha tão pouco a
perder, e Drizzt não tinha intenção de morrer de fome por medo de
algum perigo desconhecido. Também não avançaria, ainda não.
Não até que tivesse tempo de praticar sua melhor voz de dragão.

De todos os esplendores que Drizzt tinha visto em sua vida


aventureira, nenhum — nem as grandes casas de Menzoberranzan,
nem a caverna dos illithids, nem mesmo o lago de ácido —
poderiam chegar perto do espetáculo deslumbrante do covil do
dragão. Montes de ouro e pedras preciosas preenchiam a enorme
câmara em curvas ondulantes, como a aproximação de algum navio
gigante no mar. Armas e armaduras, de brilho magnífico, estavam
empilhadas, e a abundância de itens artesanais — cálices, taças e
similares — poderia ter abastecido completamente os tesouros de
cem reis ricos.
Drizzt teve que se lembrar de respirar enquanto olhava para o
esplendor. Não eram as riquezas que o deixavam assim, ele se
importava pouco com as coisas materiais, mas as aventuras que
tais itens maravilhosos e riqueza insinuavam é que puxavam Drizzt
em uma centena de direções diferentes. Olhar para o covil do
dragão desvalorizou sua simples sobrevivência na estrada com os
Frades Penitentes e seu simples desejo de encontrar um lugar
tranquilo e silencioso para chamar de lar. Ele pensou novamente na
história do dragão de Montólio e em todas as outras histórias de
aventuras que o ranger cego lhe contara. De repente, precisava
viver essas aventuras por si mesmo.
Drizzt queria um lar e queria encontrar aceitação, mas percebeu
então, olhando para os espólios, que também desejava um lugar
nos livros dos bardos. Ele esperava viajar por estradas perigosas e
emocionantes e até mesmo escrever suas próprias histórias.
A câmara em si era imensa e desigual, recuando em torno de
cantos cegos. Ela estava sutilmente iluminada em um brilho dourado
avermelhado. Estava quente em um nível desconfortável quando
Drizzt e os outros resolveram parar para pensar na fonte daquele
calor.
Drizzt voltou-se para os frades que esperavam e piscou, depois
apontou para a esquerda, para a única saída.
— Vocês conhecem o sinal — ele articulou silenciosamente.
Mateus assentiu hesitantemente, ainda se perguntando se tinha
sido inteligente confiar no drow. Drizzt tinha sido um aliado valioso
para o frade pragmático na estrada nos últimos meses, mas um
dragão era um dragão.
Drizzt examinou a câmara novamente, desta vez olhando para
além dos tesouros. Entre duas pilhas de ouro, vislumbrou seu alvo,
e não era menos esplêndido do que as joias e pedras. Deitado no
meio desses montículos havia uma enorme cauda escamosa,
vermelho-dourada, como a tonalidade da luz, se mexendo leve e
ritmicamente de um lado para o outro, cada deslizar empilhando o
ouro mais profundamente ao redor dela.
Drizzt tinha visto imagens de dragões antes; um dos mestres de
magia na Academia até criou ilusões dos vários tipos de dragões
para os estudantes inspecionarem. Nada, no entanto, poderia ter
preparado o drow para tal momento, sua primeira visão de um
dragão vivo. Em todos os reinos conhecidos, não havia nada mais
impressionante, e de todos os tipos de dragões, os enormes
vermelhos eram talvez os mais imponentes.
Quando Drizzt finalmente conseguiu arrancar seu olhar da cauda,
seguiu caminho para dentro da câmara. O túnel saía num ponto alto
ao lado de uma parede, mas uma trilha clara conduzia ao chão.
Drizzt o estudou por um longo momento, memorizando cada passo.
Então enfiou dois punhados de terra em seus bolsos, tirou uma
flecha de sua aljava e colocou um feitiço de escuridão nela. De
forma cuidadosa e silenciosa, Drizzt deu seus os passos cegos na
trilha, guiados pelo contínuo balançar da cauda escamosa. Ele
quase tropeçou quando alcançou a primeira pilha de pedras e ouviu
a cauda parar bruscamente.
— Aventura — Drizzt lembrou silenciosamente, e continuou,
concentrando-se na imagem mental de seu entorno. Ele imaginou o
dragão erguendo-se diante dele, vendo através de seu disfarce do
globo de escuridão. Ele estremeceu instintivamente, esperando que
um raio de fogo o engolfasse e o fritasse ali mesmo. Mas ele
continuou, e quando finalmente chegou à pilha de ouro, ficou
contente de ouvir a respiração fácil e trovejante do dragão
adormecido.
Drizzt começou a subir o segundo monte lentamente, deixando
um feitiço de levitação se formar em seus pensamentos. Ele não
esperava realmente que o feitiço funcionasse direito — ele vinha
falhando cada vez mais a cada nova tentativa, mas qualquer ajuda
que conseguisse aumentaria o efeito de sua artimanha. A meio
caminho do montículo, Drizzt começou a correr, espalhando moedas
e pedras a cada passo. Ele ouviu o dragão despertar, mas não
desacelerou, sacando seu arco enquanto corria.
Quando alcançou o cume, saltou e conjurou a levitação, ficando
imóvel no ar por uma fração de segundo antes que o feitiço
falhasse. Então Drizzt caiu, disparando o arco e enviando o globo de
escuridão para o outro lado da câmara.
Ele nunca teria acreditado que um monstro daquele tamanho
pudesse ser tão ágil, mas quando bateu pesadamente sobre uma
pilha de cálices e pedras preciosas, se viu olhando para a cara de
uma fera muito irritada.
Aqueles olhos! Como feixes duplos de condenação, seu olhar se
encaixava em Drizzt, passando através dele, impelindo-o a cair de
bruços implorando por misericórdia e a revelar todas as falcatruas, a
confessar todos os pecados a Hephaestus, aquela coisa divina. O
grande pescoço serpentino do dragão inclinou-se ligeiramente para
o lado, mas o olhar nunca deixou o drow, prendendo-o tão
firmemente quanto um dos abraços de Algazarra, o urso.
Uma voz soou suavemente, mas firmemente, nos pensamentos
de Drizzt: a voz de um ranger cego que contava histórias de batalha
e heroísmo. A princípio, Drizzt mal a ouvia, mas era uma voz
insistente, lembrando a Drizzt de uma maneira especial que outros
cinco homens dependiam dele agora. Se falhasse, os frades
morreriam.
Esta parte do plano não era muito difícil para Drizzt, porque ele
realmente acreditava em suas palavras.
— Hephaestus! — ele gritou na língua comum. — Seria possível,
finalmente? Ah, o mais magnífico! Mais magnífico que as histórias
contam, de longe. — a cabeça do dragão recuou a uns três metros
de Drizzt, e uma expressão confusa veio àqueles olhos
supostamente sábios, revelando a fachada.
— Você sabe sobre mim? — Hephaestus retumbou, a respiração
quente do dragão soprando a crina branca de Drizzt para trás.
— Todos sabem sobre você, poderoso Hephaestus! — Drizzt
gritou, se pondo de joelhos, mas não ousando ficar de pé. — Era
você a quem eu procurava, e agora o encontrei e não estou
desapontado!
Os olhos terríveis do dragão se estreitaram suspeitosamente.
— Por que um elfo negro procuraria Hephaestus, Destruidor de
Cockleby, Devorador de Dez Mil Cabeças de Gado, Aquele Que
Esmagou Angalander, o Estúpido de Prata, Aquele... — aquilo
continuou por muitos minutos, com Drizzt suportando o hálito
desagradável estoicamente, fingindo encantamento com a listagem
dos diversos feitos malignos do dragão. Quando Hephaestus
acabou, Drizzt teve que parar um momento para se lembrar da
pergunta inicial.
Sua confusão real só aprimorou seu logro naquele momento.
— Elfo negro? — perguntou como se não entendesse. Ele olhou
para o dragão e repetiu as palavras, ainda mais confuso. — Elfo
negro?
O dragão olhou ao redor, seu olhar caindo como faróis gêmeos
em todos os montes de tesouro, depois permanecendo por algum
tempo no globo de escuridão de Drizzt, a meio caminho da sala.
— Estou falando de você! — Hephaestus rugiu de repente, e a
força do grito jogou Drizzt para trás. — Elfo negro!
— Drow? — Drizzt disse, recuperando-se rapidamente e se
atrevendo agora a ficar de pé. — Não, não eu-- se examinou e
assentiu com súbito reconhecimento. — Sim, é claro — disse ele. —
Muitas vezes me esqueço desse manto que visto!
Hephaestus emitiu um grunhido longo, grave, cada vez mais
impaciente e Drizzt sabia que era melhor se mexer rapidamente.
— Não sou um drow — disse. — Embora em breve eu possa ser
se Hephaestus não puder me ajudar! — Drizzt só podia esperar que
tivesse aguçado a curiosidade do dragão. — Você já ouviu falar de
mim, tenho certeza, poderoso Hephaestus. Eu sou, ou era e espero
ser novamente, Mergandevinasander de Chult, um velho dragão
negro de fama nada pequena.
— Mergandevin...? — Hephaestus começou, mas o dragão
deixou a palavra morrer. Hephaestus tinha ouvido falar do dragão, é
claro; os dragões conheciam os nomes da maioria dos outros
dragões em todo o mundo. Hephaestus também sabia, como Drizzt
esperava que soubesse, que Mergandevinasander tinha olhos
púrpuras.
Para ajudá-lo através da explicação, Drizzt lembrou-se de suas
experiências com Estalo, o infeliz pech que havia sido transformado
por um mago na forma de um ganchador.
— Um mago me derrotou — começou sombriamente. — Um
grupo de aventureiros entrou no meu covil. Ladrões! Eu peguei um
deles, um paladino!
Hephaestus parecia gostar desse pequeno detalhe, e Drizzt, que
acabara de pensar nisso, se parabenizou em silêncio.
— Como sua armadura prateada foi pulverizada sob o ácido do
meu sopro!
— É uma pena ter desperdiçado assim — interveio Hephaestus.
— Paladinos são refeições tão boas!
Drizzt sorriu para esconder sua inquietação ao pensar naquilo.
Como seria o gosto de um elfo negro? Ele não podia deixar de
pensar nisso com a boca do dragão tão perto.
— Eu teria matado todos eles, e teria feito adições boas ao meu
tesouro… se não fosse aquele mago miserável! Foi ele quem me fez
essa coisa terrível! — Drizzt olhou sua forma drow de forma
reprovadora.
— Metamorfose? — Hephaestus perguntou, e Drizzt notou um
pouco de empatia , ele esperava, na voz.
Drizzt assentiu solenemente.
— Um feitiço maligno. Tomou minha forma, minhas asas e meu
sopro. No entanto, continuei sendo Mergandevinasander em meu
pensamento, embora... — Hephaestus alargou os olhos ante a
pausa, e o olhar lamentável e confuso que Drizzt deu realmente
tocou o dragão.
— Eu desenvolvi essa súbita afinidade com as aranhas —
murmurou Drizzt. — Uma vontade de acariciá-las e beijá-las... —
então, é assim que um dragão enojado se parece, Drizzt pensou
enquanto voltava a olhar para a criatura. Moedas e bugigangas
tilitaram em toda a câmara enquanto um tremor involuntário
percorria a espinha do dragão.

Os frades no túnel baixo não podiam ver a conversa, mas podiam


distinguir as palavras bem o bastante para entender o que o drow
tinha em mente. Pela primeira vez que qualquer um deles se
lembrava, irmão Jankin estava completamente sem palavras, mas
Mateus conseguiu sussurrar algumas palavras, ecoando seus
sentimentos compartilhados.
— Aquele lá tem colhões! — o frei imponente riu, e então bateu
uma mão em sua própria boca, temendo que tivesse falado alto
demais.

— Por que você veio até mim? — Hephaestus rugiu com raiva.
Drizzt deslizou para trás sob a força, mas conseguiu manter seu
equilíbrio desta vez.
— Eu imploro, poderoso Hephaestus! — Drizzt clamou. — Eu não
tenho escolha. Eu viajei para Menzoberranzan, a cidade dos drow,
mas o feitiço desse mago era poderoso, me disseram, e não podiam
fazer nada para dissipá-lo. Então eu venho até você, grande e
poderoso Hephaestus, conhecido por suas habilidades em feitiços
de transmutação. Talvez um dos meus...
— Um dragão negro? — veio o rugido estrondoso, e desta vez,
Drizzt caiu. — Um dos seus?
— Não, não, um dragão — disse Drizzt rapidamente, retraindo o
aparente insulto e tornando a se levantar, visto que poderia ter que
sair correndo em breve. O grunhido contínuo de Hephaestus disse a
Drizzt que precisava de uma distração, e ele a encontrou atrás do
dragão, nas marcas profundas de queimado ao longo das paredes e
atrás de uma alcova retangular. Drizzt percebeu que era ali que
Hephaestus ganhava seu pagamento considerável derretendo
minérios. O drow não podia deixar de estremecer quando se
perguntou quantos comerciantes ou aventureiros infelizes
encontraram seu fim entre aquelas paredes destruídas.
— O que causou tal cataclisma? — Drizzt gritou com admiração.
Hephaestus não ousou se virar, suspeitando de traição. Um
momento depois, porém, o dragão percebeu o que o elfo negro tinha
notado e o rugido desapareceu.
— Que deus veio até você, poderoso Hephaestus, e o abençoou
com tal poder espetacular? Em nenhum lugar em todos os reinos há
pedra tão destruída! Não desde os incêndios que formaram o
mundo...
— Basta! — Hephaestus retumbou. — Você, que é tão estudado,
não conhece o sopro de um vermelho?
— Certamente, o fogo é o meio de um vermelho — respondeu
Drizzt, nunca tirando o olhar da alcova —, mas quão intensas as
chamas podem ser? Certamente não para causar tal devastação!
— Gostaria de ver? — veio a resposta do dragão em um silvo
sinistro e fumegante.
— Sim! — Drizzt gritou, então — Não! — disse, caindo em
posição fetal. Ele sabia que estava trilhando um caminho perigoso,
mas sabia que era uma aposta necessária. — Realmente eu
gostaria de testemunhar uma explosão tão grande, mas
verdadeiramente temo sentir o seu calor.
— Então assista, Mergandevinasander de Chult! — Hephaestus
rugiu. — Contemple um dragão melhor que você! — a ingestão
brusca da respiração do dragão puxou Drizzt dois passos para a
frente, levou o cabelo branco a seus olhos e quase arrancou sua
capa de suas costas. No montículo atrás dele, as moedas caíram
para a frente em uma corrida ruidosa.
Então o pescoço serpentino do dragão balançou em um longo
arco, colocando a grande cabeça vermelha alinhada com a alcova.
A explosão resultante roubou o ar da câmara; os pulmões de
Drizzt queimaram e seus olhos arderam, tanto por causa do calor
quanto do brilho. Ele continuou a olhar, no entanto, enquanto o fogo
do dragão consumia a alcova em uma explosão trovejante. Drizzt
observou, também, que Hephaestus fechava os olhos com força
quando soprava o fogo.
Quando a conflagração terminou, Hephaestus voltou triunfante.
Drizzt, ainda olhando a alcova, a rocha fundida escorrendo pelas
paredes e pingando do teto, não precisou fingir admiração.
— Pelos deuses!— o drow sussurrou. Ele conseguiu olhar para a
expressão presunçosa do dragão. — Pelos deuses — disse Drizzt
novamente. — Mergandevinasander de Chult, que se considerava
supremo, foi humilhado.
— E bem, ele deveria ser! — Hephaestus retumbou. — Nenhum
dragão negro se iguala a um vermelho! Saiba isso agora,
Mergandevinasander. É um fato que poderia salvar sua vida, se
alguma vez um vermelho chegar à sua porta!
— Certamente — Drizzt prontamente concordou. — Mas temo
que eu não tenha porta — mais uma vez, olhou para sua forma e
franziu o cenho de desdém. — Nenhuma porta além de uma na
cidade dos elfos negros!
— Esse é o seu destino, não o meu — disse Hephaestus. — Mas
eu tenho pena de você. Devo deixar você sair vivo, embora isso seja
mais do que você merece por perturbar meu sono!
Aquele era o momento crítico, Drizzt sabia. Ele poderia ter
aceitado a oferta de Hephaestus; naquele momento, não queria
nada além de sair dali. Mas seus princípios e a memória de Monshi
não o deixariam ir. “E quanto aos seus companheiros no túnel?” ele
lembrou. E as aventuras dos livros dos bardos?
— Devore-me, então — disse ao dragão, embora mal pudesse
acreditar nas palavras enquanto falava. — Eu, que conheci a glória
dracônica, não posso me contentar com a vida como um elfo negro.
A boca enorme de Hephaestus avançou.
— Ai de todos os dragões! — Drizzt lamentou. — Nossos
números sempre diminuem, enquanto os humanos se multiplicam
como parasitas. Ai dos tesouros dos dragões, roubados por magos
e paladinos! — o jeito que ele cuspiu na última palavra fez com que
Hephaestus desse uma pausa.
— E ai de Mergandevinasander — Drizzt continuou
dramaticamente —, por ser abatido assim por um mago humano
cujo poder ofusca até mesmo o de Hephaestus, o mais poderoso
dos dragões.
— Ofusca! — Hephaestus gritou, e toda a câmara tremeu sob o
poder daquele rugido.
— No que eu devo acreditar? — Drizzt gritou de volta, de forma
um pouco patética se comparada ao volume do dragão. —
Hephaestus se recusaria a ajudar um dos seus a caminho da
extinção? Não, nisso eu não acredito, nisso o mundo jamais deveria
acreditar! — Drizzt apontou um dedo para o teto acima dele,
pregando como se sua vida dependesse disso. Ele não precisava se
lembrar do preço do fracasso. — Eles dirão, todos de todos os
reinos, que Hephaestus não ousou tentar dissipar a magia do mago,
que o grande vermelho não ousou revelar sua fraqueza contra um
feitiço tão poderoso pelo medo de que sua fraqueza convidasse
aquele mesmo grupo do mago a vir para o norte para saquear outro
dragão!
— Ah! — Drizzt gritou, de olhos arregalados. — Mas essa
rendição de Hephaestus também não daria ao mago e seus amigos
ladrões desagradáveis a esperança de tal saque? E o que o dragão
possui mais para roubar do que Hephaestus, o vermelho da rica
Mirabar?
O dragão estava sem saber o que fazer. Hephaestus gostava de
seu modo de vida, dormindo em tesouros cada vez maiores de
comerciantes que pagavam bem. Ele não precisava do tipo de
aventureiros heroicos se metendo em seu covil! Era exatamente
com isso que Drizzt contava.
— Amanhã. — o dragão rugiu. — No dia de hoje eu contemplarei
o feitiço e amanhã Mergandevinasander voltará a ser um dragão
negro! Então ele deve partir, com a cauda em chamas, caso se
atreva a pronunciar mais uma palavra blasfema! Agora devo
descansar para lembrar o feitiço. Você não deve se mexer, dragão
de forma drow. Eu farejo onde você está e ouço melhor do que
qualquer um no mundo. Eu não durmo tão pesado quanto muitos
ladrões gostariam!
Drizzt não duvidava de uma única palavra, é claro, mas enquanto
as coisas tinham ido tão bem quanto esperava, ele estava
encrencado. Não podia esperar um dia para retomar sua conversa
com o vermelho, nem seus amigos. Como iria o orgulhoso
Hephaestus reagir, Drizzt se perguntou, quando o dragão tentasse
remover um feitiço que sequer existia? E o que, Drizzt perguntou a
si mesmo, à beira de entrar em pânico, ele faria se Hephaestus
realmente o transformasse em um dragão negro?
— Claro, o sopro de um negro tem vantagens sobre o de um
vermelho — Drizzt deixou escapar quando Hephaestus se afastou.
O vermelho se voltou para ele com velocidade e fúria
assustadoras.
— Você gostaria de sentir meu sopro? — Hephaestus rosnou. —
Como vai ficar sua ostentação então, eu me pergunto?
— Não, não é isso — respondeu Drizzt. — Não se ofenda,
poderoso Hephaestus. Realmente o espetáculo de seu fogo roubou
meu orgulho! Mas o sopro de um negro não pode ser subestimado.
Tem qualidades além mesmo do poder do fogo de um vermelho!
— Como assim?
— Ácido, oh, Hephaestus, o Incrível, Devorador de Dez Mil
Cabeças de Gado — respondeu Drizzt. — O ácido se gruda à
armadura de um cavaleiro, cava seu caminho em um tormento
duradouro.
— Como metal derretido? — Hephaestus perguntou
sarcasticamente. — Metal derretido pelo fogo de um vermelho?
— Acho que por mais tempo, temo eu — admitiu Drizzt,
abaixando o olhar. — O sopro de um vermelho vem em uma
explosão de destruição, mas o de um negro permanece, para o
desespero do inimigo.
— Uma explosão? — Hephaestus rosnou. — Por quanto tempo
seu sopro pode durar, verme miserável? Posso soprar por mais
tempo, tenho certeza!
— Mas... — Drizzt começou, indicando a alcova. Desta vez, a
ingestão repentina do dragão puxou Drizzt vários passos para a
frente e quase o tombou. O drow manteve o juízo suficiente para
gritar o sinal designado: “Fogo dos Nove Infernos!” quando
Hephaestus balançou a cabeça para trás, na direção da alcova.
— O sinal! — Mateus disse acima do tumulto. — Corram por suas
vidas! Corram!
— Nunca! — gritou o aterrorizado Irmão Herschel, e os outros,
com exceção de Jankin, não discordaram.
— Oh, sofrer tanto assim! — o fanático dos cabelos
desgrenhados lamentou, pisando fora do túnel.
— Temos que correr! Por nossas vidas! — Mateus lembrou-os,
pegando Jankin pelos cabelos para evitar que ele fosse para o lado
errado.
Eles lutaram na saída do túnel por vários segundos e os outros
frades, percebendo que talvez sua única esperança, em breve,
estaria diante deles, saíram correndo do túnel e todo o grupo caiu
pelo caminho inclinado da parede. Quando se recuperaram,
estavam com certeza encrencados, e dançaram sem rumo, sem ter
certeza se subiam para o túnel ou corriam para a saída. Sua luta
desesperada quase não avançou na inclinação, especialmente com
Mateus ainda tentando controlar Jankin, então a saída era o único
caminho. Tropeçando em si mesmos, os frades fugiram pela sala.
Mesmo seu terror não impediu que cada um deles, mesmo
Jankin, pegasse um punhado de ouro enquanto corriam.

Nunca houve uma explosão tão longa de fogo de dragão!


Hephaestus, com os olhos fechados, rugia sem parar, desintegrando
a pedra na alcova. Grandes gotas de chamas explodiam na sala —
Drizzt foi quase derrotado pelo calor —, mas o dragão irritado não
cedeu, determinado a humilhar o visitante irritante de uma vez por
todas.
O dragão espiou uma vez, para testemunhar os efeitos de sua
exibição. Os dragões conheciam seus tesouros melhor do que
qualquer coisa no mundo, e Hephaestus não deixou passar a
imagem de cinco figuras fugazes que atravessavam a câmara
principal em direção à saída.
O sopro parou abruptamente e o dragão se virou.
— Ladrões! — ele rugiu, rachando a pedra com sua voz
estrondosa.
Drizzt sabia que o plano fora exposto.
A mandíbula enorme e afiada se fechou na direção do drow.
Drizzt deu um passo para o lado e saltou, sem ter outro lugar para
onde ir. Agarrou um dos chifres do dragão e subiu na cabeça do
monstro. Drizzt conseguiu se arrumar em cima dele e se segurou
como se sua vida dependesse disso enquanto o dragão ultrajado
tentava atirá-lo pra longe. Drizzt tentou sacar uma cimitarra, mas
encontrou um bolso e puxou um punhado de terra. Sem a menor
hesitação, o drow jogou a terra no olho maligno do dragão.
Hephaestus ficou furioso, sacudindo a cabeça violentamente,
para cima e para baixo e para todas as direções. Drizzt se segurou
obstinadamente, e o dragão esperto escolheu um método melhor.
Drizzt entendeu a intenção de Hephaestus quando a cabeça
subiu a toda velocidade. O teto não era tão alto, não comparado ao
pescoço serpentino de Hephaestus. Foi uma longa queda, mas, de
longe, um destino preferível, e Drizzt caiu logo antes da cabeça do
dragão bater na rocha.
Drizzt levantou-se vertiginosamente enquanto Hephaestus, mal
desacelerado pelo choque, sugou o ar. A sorte salvou o drow, não
pela primeira nem pela última vez, quando um pedaço de pedra
despencou do teto maltratado e caiu na cabeça do dragão. O sopro
de Hephaestus explodiu em uma bufada inofensiva e Drizzt correu
com toda a velocidade sobre o montículo do tesouro, mergulhando
logo atrás.
Hephaestus rugiu e soltou o resto do sopro direto para o monte
de tesouro. As moedas derreteram; pedras preciosas racharam sob
a pressão. O monte tinha seis metros de espessura e estava bem
aglomerado, mas Drizzt, no lado oposto, sentiu suas costas
queimarem. Ele saltou da pilha, largando seu manto fumegante e
coberto de ouro fundido.
Então Drizzt surgiu, com as cimitarras em mãos, à medida que o
dragão recuava. O drow correu diretamente com bravura,
estupidamente, golpeando com toda sua força. Ele parou,
atordoado, depois de apenas dois golpes, ambas cimitarras
vibrando dolorosamente em suas mãos; sentiu-se como se tivesse
golpeado um muro de pedra!
Hephaestus, de cabeça erguida, sequer notara o ataque.
— Meu ouro! — o dragão lamentou. Então a fera olhou para
baixo, o olhar luminoso passando através do drow mais uma vez. —
Meu ouro! — Hephaestus disse novamente, perversamente.
Drizzt deu de ombros inocentemente, então correu.
Hephaestus bateu com sua cauda, acertando mais um monte de
tesouros e fazendo chover moedas e pedras preciosas na câmara.
— Meu ouro! — o dragão rugiu repetidamente enquanto abria
caminho através das pilhas apertadas.
Drizzt foi para trás de outro montículo.
— Me ajude, Guenhwyvar — ele implorou, deixando cair a
estatueta.
— Sinto seu cheiro, ladrão! — O dragão ronronou, como se um
trovão pudesse ronronar, não muito longe do montículo de Drizzt.
Em resposta, a pantera chegou ao topo do montículo, rugiu em
desafio, depois saltou. Drizzt, no fundo, ouvia atentamente, medindo
os passos, quando Hephaestus correu para a frente.
— Vou te mastigar, metamorfo! — o dragão berrou, e sua boca
aberta abriu-se para Guenhwyvar.
Mas os dentes, mesmo os dentes do dragão, não faziam efeito na
névoa insubstancial que Guenhwyvar de repente se tornou.
Drizzt conseguiu pegar um pouco do tesouro enquanto corria, sua
retirada coberta pelo rosnado frustrado do dragão. A câmara era
grande e Drizzt não tinha saído por completo quando Hephaestus se
recuperou e o viu. Confuso, mas não menos enraivecido, o dragão
rugiu e voltou a perseguir Drizzt.
Na língua goblin, sabendo graças ao livro que Hephaestus falava,
mas esperando que o dragão não soubesse que ele sabia, Drizzt
gritou:
— Quando a besta estúpida me seguir, saia e pegue o resto!
Hephaestus parou e girou, olhando para o túnel baixo que levava
às minas. O dragão estúpido estava no meio de um acesso
espantoso, querendo devorar o drow, mas temendo um ataque por
trás. Hephaestus dirigiu-se ao túnel e bateu sua cabeça escamosa
na parede acima dele, apenas para garantir, então voltou para
refletir sobre o que aconteceu.
Os ladrões já haviam alcançado a saída àquela altura, o dragão
sabia; teria que sair a céu aberto se quisesse pegá-los — não era
uma ideia inteligente nesta época do ano, considerando o lucrativo
negócio do dragão. No final, Hephaestus resolveu o dilema como
resolvia todos os problemas: prometeu devorar por inteiro o próximo
grupo de mercadores que se aproximasse. Com seu orgulho
restaurado graças a essa resolução, que iria esquecer logo que
voltasse ao sono, o dragão voltou para o fundo de sua câmara,
arrumando o ouro e recuperando o que conseguiu dos montes que,
inadvertidamente, tinha derretido.
CAPÍTULO 22
Sujeito ao Retorno
— VOCÊ NOS TIROU DE LÁ! — Irmão Herschel gritou. Todos os
frades, exceto Jankin, deram um grande abraço em Drizzt assim
que o drow os alcançou em um vale rochoso a oeste da entrada do
covil do dragão.
— Se houver alguma forma de te pagar por isso...
Drizzt esvaziou seus bolsos em resposta, e cinco conjuntos de
olhos ansiosos se arregalaram quando moedas e objetos de ouro se
desdobraram, brilhando no sol da tarde. Uma pedra em particular,
um rubi de cinco centímetros, prometia riquezas além de qualquer
coisa que os frades conhecessem.
— Para vocês — explicou Drizzt. — Tudo isso. Não preciso de
tesouros.
Os frades olharam ao redor se sentindo culpados, nenhum deles
disposto a revelar a quantidade armazenada em seus próprios
bolsos.
— Talvez você devesse ficar com um pouco — sugeriu Mateus
—, se você ainda pretende seguir em frente sozinho.
— Eu vou — Drizzt disse com firmeza.
— Você não pode ficar aqui — argumentou Mateus. — Pra onde
você vai?
Drizzt realmente não tinha pensado muito nisso. Tudo o que
realmente sabia era que seu lugar não estava entre os Frades
Penitentes. Ele refletiu um pouco, lembrando as muitas estradas
pelas quais havia viajado. Um pensamento surgiu em sua cabeça.
— Você disse — comentou Drizzt a Jankin. — Você falou de um
lugar uma semana antes de entrarmos no túnel.
Jankin olhou para ele com curiosidade, mal conseguindo se
lembrar.
— Dez-Burgos — disse Drizzt. — Terra de ladrões, onde um
renegado pode encontrar seu lugar.
— Dez-Burgos? — Mateus relutou. — Certamente você deve
reconsiderar seu curso, amigo. Vale do Vento Gélido não é um lugar
acolhedor, nem os assassinos brutos de Dez-Burgos.
— O vento está sempre soprando — Jankin acrescentou com um
olhar melancólico em seus olhos escuros e vazios —, repleto de
areia e com um frio que corta. Eu vou com você!
— E os monstros! — acrescentou um dos outros, dando uma
bofetada na nuca de Jankin. — Yeti da tundra e ursos brancos, e
bárbaros ferozes! Não, eu não irei para Dez-Burgos mesmo se o
próprio Hephaestus tentasse me perseguir até lá!
— Bem, o dragão poderia — disse Herschel, olhando
nervosamente para o covil não tão distante. — Existem algumas
fazendas nas proximidades. Talvez possamos ficar lá à noite e voltar
para o túnel amanhã.
— Eu não irei com vocês — disse Drizzt novamente. — Você diz
que Dez-Burgos é um lugar hostil, mas eu teria qualquer recepção
mais gentil em Mirabar?
— Nós iremos aos fazendeiros esta noite — respondeu Mateus,
reconsiderando suas palavras. — Nós vamos comprar um cavalo
para você lá, e os suprimentos que você precisará. Não desejo que
você vá embora — disse —, mas Dez-Burgos parece ser uma boa
escolha — ele olhou para Jankin — para um drow. Muitos
encontraram seu lugar lá. Realmente é um lar para aquele que não
tem nenhum.
Drizzt entendeu a sinceridade na voz do frade e apreciou a graça
de Mateus.
— Como eu chego lá? — perguntou.
— Siga as montanhas — respondeu Mateus. — Mantenha
sempre ao alcance da sua mão direita. Quando você chegar no
final, você entrou em Vale do Vento Gélido. Um único pico marca o
terreno plano ao norte da Espinha do Mundo. As cidades são
construídas em torno dela. Que seja tudo o que você espera!
Com isso, os frades se prepararam para ir. Drizzt apertou as
mãos atrás da cabeça e recostou-se contra a parede do vale. Na
verdade, era hora de se separar dos frades, ele sabia, mas não
podia negar a culpa e a solidão que a perspectiva oferecia. As
pequenas riquezas que tinham tirado do covil do dragão mudariam
enormemente a vida de seus companheiros, lhes forneceria abrigo e
todas as necessidades, mas a riqueza não poderia fazer nada para
alterar as barreiras que Drizzt enfrentava.
Dez-Burgos, a terra que Jankin tinha chamado de lar para os que
não têm nenhum, um lugar de encontro para aqueles que não
tinham para onde ir, trazia ao drow alguma esperança. Quantas
vezes o destino o chutara? De quantos portões ele se aproximou,
esperançoso, apenas para ser afastado pela ponta de uma lança?
Desta vez seria diferente, Drizzt disse a si mesmo, porque, se não
conseguisse encontrar um lugar na terra dos ladrões, para onde
então ele poderia recorrer?
Para o drow atormentado, que passara tanto tempo correndo da
tragédia, culpa e preconceitos dos quais não conseguia escapar, a
esperança não era uma emoção confortável.

Drizzt acampou em um pequeno bosque naquela noite enquanto


os frades entravam na pequena aldeia agrícola. Eles voltaram na
manhã seguinte trazendo um bom cavalo, mas com um membro de
seu grupo visivelmente ausente.
— Onde está Jankin? — Drizzt perguntou, preocupado.
— Amarrado em um celeiro — respondeu Mateus. — Ele tentou
fugir na noite passada, para voltar--
— Para Hephaestus — Drizzt terminou para ele.
— Se ele continuar assim pelo resto do dia, podemos
simplesmente deixá-lo ir — acrescentou um Herschel enojado.
— Aqui está o seu cavalo — disse Mateus —, se a noite não te
fez mudar de ideia.
— E aqui está um novo cobertor — ofereceu Herschel. Ele
entregou a Drizzt uma capa de boa qualidade, revestida de peles.
Drizzt sabia o quão estranhamente generosos os frades estavam
sendo, e quase mudou de ideia. Ele não podia ignorar suas outras
necessidades, porém, e não as satisfaria entre esse grupo.
Para mostrar a sua determinação, o drow foi direto até o animal,
na intenção de subir nele naquele instante. Drizzt tinha visto um
cavalo antes, mas nunca de tão perto. Estava impressionado com a
força absoluta da criatura, com os músculos ondulando ao longo do
pescoço do animal, e também ficou espantado pela altura das
costas do cavalo.
Ele passou um momento olhando nos olhos do cavalo,
comunicando sua intenção o melhor que podia. Então, para o
choque de todos, até mesmo de Drizzt, o cavalo se inclinou,
permitindo que o drow subisse facilmente na sela.
— Você tem um jeito com cavalos — observou Mateus. — Você
nunca mencionou que era um bom cavaleiro.
Drizzt apenas assentiu e fez o melhor que pode para ficar na sela
quando o cavalo começou a trotar. Levou ao drow vários momentos
para descobrir como controlar a criatura e ele já tinha ido muito para
o leste — o caminho errado — antes que conseguisse voltar. Ao
longo do circuito, Drizzt esforçou-se por manter sua fachada, e os
frades, também nem um pouco acostumados com cavalos, apenas
assentiram e sorriram.
Horas depois, Drizzt estava galopando rápido a oeste, seguindo a
borda sul da Espinha do Mundo.

— Os Frades Penitentes — sussurrou Roddy McGristle, olhando


para baixo de uma ribanceira pedregosa na direção do bando
enquanto seguiam o caminho até o túnel de Mirabar.
— O quê? — Tephanis gritou, correndo de sua sacola para se
juntar a Roddy. Pela primeira vez, a velocidade do sprite provou ser
uma desvantagem. Antes mesmo de perceber o que estava
dizendo, Tephanis cuspiu:
— Não-pode-ser. O-dragão...
O olhar de Roddy caiu sobre Tephanis como a sombra de uma
nuvem que prenuncia a tempestade.
—Quer-dizer, eu-supus... — Tephanis explodiu, mas ele percebeu
que Roddy, que conhecia o túnel melhor do que ele e sabia,
também, o jeito que o sprite tinha com fechaduras, tinha adivinhado
o que ele fez.
— Cê tentou matar o drow sozinho — disse Roddy calmamente.
— Por-favor, meu-mestre — respondeu Tephanis. — Eu-não-
queria... Eu-temi-por-você. O-drow-é-um-demônio! Eu-os-mandei-
pelo-túnel-do-dragão. Eu-achei-que-você...
— Esquece — rosnou Roddy. — Cê fez o que fez, e chega de
falar disso. Agora volta pro saco. Depois a gente arruma o que cê
fez, se o drow não morreu.
Tephanis assentiu com a cabeça, aliviado, e voltou ao saco.
Roddy recolheu o saco e chamou seu cachorro para seu lado.
—Eu vou fazer os frade falar — prometeu o caçador de
recompensas —, mas primeiro...
Roddy girou o saco, batendo no muro de pedra.
— Mestre! — veio o grito abafado do sprite.
— Seu... ladrão... de... drow... — Roddy bufou e bateu o saco
impiedosamente contra a pedra inflexível. Tephanis se contorceu
nos primeiros golpes, até conseguiu começar a fazer um rasgo com
sua pequena adaga. Mas então o saco se ensopou de algo escuro e
o sprite não se contorcia mais.
— Seu mutante ladrão de drow — murmurou Roddy, jogando o
pacote sangrento longe. — Vem, cachorro. Se o drow tá vivo, os
frade vão saber onde ele tá.

Os Frades Penitentes eram uma ordem dedicada ao sofrimento, e


alguns deles, particularmente Jankin, haviam sofrido muito em suas
vidas. Nenhum deles, no entanto, jamais imaginou o nível de
crueldade que encontrariam nas mãos de Roddy McGristle, de olhos
selvagens, e antes de uma hora se passar, Roddy também estava
correndo para o oeste ao longo da borda sul da serra.

O vento frio a leste enchia seus ouvidos com sua canção sem fim.
Drizzt tinha ouvido a cada segundo, já que tinha circulado a borda
ocidental da Espinha do Mundo e virado para o norte e para o leste,
no pedaço estéril de terra que recebeu seu nome em homenagem a
seu vento, Vale do Vento Gélido. Ele aceitou o gemido lúgubre e o
corte congelante do vento de bom grado, porque, para Drizzt, a
rajada de ar vinha como uma lufada de liberdade.
Outro símbolo dessa liberdade, a vista do amplo mar, veio quando
o drow circulou a cordilheira. Drizzt havia visitado o litoral uma vez,
em sua passagem para Luskan, e agora queria parar e percorrer os
poucos quilômetros que faltavam para a costa novamente. Mas o
vento frio o lembrou do inverno iminente, e ele entendeu a
dificuldade que teria para viajar pelo vale assim que a primeira neve
caísse.
Drizzt viu o Sepulcro de Kelvin, a montanha solitária na tundra ao
norte da grande cordilheira, no primeiro dia após ter entrado no vale.
Ele a seguiu ansioso, visualizando seu pico singular como o ponto
de marcação para a terra que chamaria de lar. Ele sentia uma
esperança hesitante sempre que se concentrava naquela montanha.
Ele passou por vários pequenos grupos, carroças solitárias ou um
punhado de homens a cavalo, enquanto se aproximava da região de
Dez-Burgos ao longo da rota da caravana, pela entrada sudoeste. O
sol estava baixo no oeste e fraco, e Drizzt manteve o capuz de sua
capa puxado para baixo, escondendo sua pele de ébano. Acenava
sutilmente com a cabeça quando cada viajante passava.
Três lagos dominavam a região, assim como o pico do rochoso
Sepulcro de Kelvin, que subia a trezentos metros da planície
quebrada e vivia coberta de neve mesmo durante o curto verão. Das
dez cidades que davam nome à região, apenas a principal, Bryn
Shander, se destacava dos lagos. Ela ficava acima da planície, em
uma pequena colina, sua bandeira chicoteando desafiadoramente
contra o vento feroz. A rota da caravana, a trilha de Drizzt, levava a
esta cidade, o principal mercado da região.
Drizzt podia notar pela crescente fumaça de fogueiras distantes
que várias outras comunidades estavam a poucos quilômetros da
cidade na colina. Ele considerou seu curso por um momento,
perguntando-se se deveria ir a uma dessas cidades menores e mais
isoladas em vez de continuar direto para a cidade principal.
— Não — disse o drow com firmeza, deixando cair a mão em sua
bolsa para sentir a estatueta de ônix. Drizzt incitou o cavalo para a
frente, subindo a colina até os portões proibidos da cidade forjada.
— Mercador? — perguntou um dos dois guardas que estavam
entediados diante do portão de ferro. — Você tá um pouco atrasado
pra negociar.
— Não sou um comerciante — respondeu Drizzt suavemente,
perdendo uma boa medida de sua coragem agora que a hora
derradeira havia chegado. Ele estendeu a mão lentamente para o
capuz, tentando manter sua mão trêmula em movimento.
— De que cidade, então? — perguntou o outro guarda. Drizzt
deixou cair a mão, sua coragem desviada pela pergunta
contundente.
— De Mirabar — ele respondeu honestamente, e antes que
pudesse parar e antes que os guardas fizessem outra pergunta que
o distraísse, ele estendeu a mão e puxou o capuz.
Quatro olhos se arregalaram e as mãos imediatamente foram
para as espadas embainhadas.
— Não! — Drizzt retrucou de repente. — Não, por favor. — um
cansaço se mostrou tanto em sua voz quanto em sua postura que
os guardas não conseguiram entender. Drizzt não tinha mais forças
para tais batalhas insensatas de mal-entendidos. Contra uma horda
de goblins ou um gigante invasor, as cimitarras do drow vinham
facilmente às suas mãos, mas contra alguém que apenas lutava
contra ele por causa de percepções errôneas, suas lâminas
pesavam muito.
— Eu vim de Mirabar — continuou Drizzt, sua voz ficando cada
vez mais firme a cada sílaba —até Dez-Burgos para viver em paz.
O drow manteve as mãos abertas, não oferecendo nenhuma
ameaça.
Os guardas mal sabiam como reagir. Nenhum deles havia visto
um elfo negro antes — embora soubessem sem dúvida que Drizzt
era um — ou sabia mais sobre a raça além das histórias à beira da
fogueira sobre uma antiga guerra que separou os povos élficos.
— Espere aqui — um dos guardas sussurrou para o outro, que
não parecia apreciar a ordem. — Vou informar o porta-voz Cassius.
O guarda bateu no portão de ferro e deslizou para dentro assim
que estava aberto o suficiente para deixá-lo passar. O guarda
restante observava Drizzt sem piscar, sua mão nunca deixando o
punho da espada.
— Se você me matar, uma centena de bestas irá derrubá-lo — ele
declarou, tentando, mas falhando em soar confiante.
— Por que eu faria isto? — Drizzt perguntou inocentemente,
mantendo suas mãos estendidas e sua postura não ameaçadora. O
encontro fora bem até agora, ele acreditava. Em todas as outras
aldeias das quais se atreveu a se aproximar, os primeiros que o
viam ou fugiam em terror ou o perseguiam com as armas à mostra.
O outro guarda retornou pouco tempo depois com um homem
pequeno e delgado, barbeado e com olhos azuis brilhantes que o
analisavam continuamente, observando cada detalhe. Ele usava
roupas de alta qualidade, e, pelo respeito que os dois guardas
mostraram a ele, Drizzt soube imediatamente que era alguém de
hierarquia alta.
Ele estudou Drizzt por um longo tempo, analisando cada
movimento e cada característica.
— Eu sou Cassius — disse ele após uma longa pausa —, Porta-
voz de Bryn Shander e Porta-Voz Principal do Conselho Governante
de Dez-Burgos.
Drizzt mergulhou em uma pequena reverência.
— Eu sou Drizzt Do’Urden — disse ele —, de Mirabar e além,
agora vindo para Dez-Burgos.
— Por quê? — Cassius perguntou bruscamente, tentando pegá-lo
desprevenido. Drizzt deu de ombros.
— É preciso um motivo?
— Para um elfo negro, talvez — Cassius respondeu
honestamente.
O sorriso de aceitação de Drizzt desarmou o porta-voz e acalmou
os dois guardas, que agora estavam parados de forma protetora ao
lado dele.
— Não posso oferecer nenhuma razão para vir, além do meu
desejo de vir — continuou Drizzt. — A minha estrada foi longa,
porta-voz Cassius. Estou cansado e preciso descansar. Dez-Burgos
é o lugar dos renegados, pelo que me disseram, e não duvido que
um elfo negro seja um renegado entre os moradores da superfície.
Parecia lógico o suficiente, e a sinceridade de Drizzt se mostrou
claramente para o porta-voz observador. Cassius apoiou o queixo
na palma da mão e pensou por um longo tempo. Ele não temia o
drow, nem duvidava das palavras do elfo, mas não tinha intenção de
permitir a agitação que um drow causaria em sua cidade.
— Bryn Shander não é o seu lugar — Cassius disse sem rodeios,
e os olhos cor de lavanda de Drizzt se estreitaram com a
proclamação injusta. Sem se deixar intimidar, Cassius apontou para
o norte. — Vá para Bosque Solitário, na floresta às margens a norte
de Maer Dualdon — sugeriu. Ele moveu o olhar para o sudeste. —
Ou para Bom-Prado ou Toca de Dougan no lago do sul, Águas
Rubras. Estas são cidades menores, onde você causará menos
agitação e encontrará menos problemas.
— E quando eles recusarem minha entrada? — Drizzt perguntou.
— Onde então, bom porta-voz? Para o lado de fora, no vento, para
morrer na planície vazia?
— Você não tem como saber...
— Eu sei — interrompeu Drizzt. — Passei por isso muitas vezes.
Quem receberá um drow, mesmo aquele que abandonou o seu povo
e seus caminhos e que não deseja nada além de paz? — A voz de
Drizzt era severa e não mostrava autocompaixão, e Cassius
novamente entendeu que as palavras eram verdadeiras.
Cassius realmente sentiu empatia. Ele próprio tinha sido um
renegado uma vez e tinha sido forçado até os confins do mundo,
indo em vão para o Vale do Vento Gélido, para encontrar um lar.
Não havia mais lugares além disso; Vale do Vento Gélido era última
parada de um renegado. Outro pensamento veio então a Cassius,
uma possível solução para o dilema que não irritaria sua
consciência.
— Por quanto tempo você viveu na superfície? — Cassius
perguntou, sinceramente interessado.
Drizzt parou para pensar na pergunta por um momento, se
perguntando onde o porta-voz queria chegar.
— Sete anos — respondeu.
— No norte?
— Sim.
— No entanto, você não encontrou nenhum lar, nenhuma aldeia
para acolhê-lo — disse Cassius. — Você sobreviveu a invernos
hostis e, sem dúvida, a inimigos mais diretos. Você é habilidoso com
essas lâminas no seu cinto?
— Sou um ranger — disse Drizzt uniformemente.
— Uma profissão incomum para um drow — observou Cassius.
— Eu sou um ranger — disse Drizzt novamente, com mais força
— bem treinado nos caminhos da natureza e no uso de minhas
armas.
— Não duvido — refletiu Cassius. Ele fez uma pausa e disse —
Existe um lugar que oferece abrigo e isolamento — o porta-voz
levou o olhar de Drizzt para o norte, até as encostas rochosas de
Sepulcro de Kelvin. — Além do vale anão está a montanha —
Cassius explicou —, e além disso, a tundra aberta. Seria bom para
Dez-Burgos ter um batedor nas encostas ao norte da montanha. O
perigo sempre parece vir dessa direção.
— Eu vim encontrar um lar — interrompeu Drizzt. — Você me
oferece um buraco em uma pilha de pedras e um dever para com
quem eu não devo nada — na verdade, a sugestão apelava ao
espírito ranger de Drizzt.
— Você quer que eu diga que as coisas são diferentes? —
Cassius respondeu. — Não deixarei um drow errante entrar em Bryn
Shander.
— Um homem teria que se provar digno?
— Um homem não teria uma reputação tão sombria — respondeu
Cassius de forma uniforme, sem hesitação. — Se eu fosse tão
magnânimo, se te acolhesse com base apenas em suas palavras e
abrisse meus portões para você, você encontraria seu lar? Nós dois
sabemos que não, drow. Nem todos em Bryn Shander têm um
coração tão aberto, eu prometo. Você causaria um alvoroço onde
quer que fosse e independentemente de sua intenção, seria forçado
a entrar em batalhas.
— Seria o mesmo em qualquer uma das cidades — Cassius
prosseguiu, adivinhando que suas palavras tinham atingido um
acorde de verdade no coração do drow expatriado. — Eu lhe
ofereço um buraco em uma pilha de rocha, dentro das fronteiras de
Dez-Burgos, onde suas ações, boas ou más, forjarão sua reputação
além da cor da sua pele. A minha oferta parece tão fútil agora?
— Preciso de suprimentos — disse Drizzt, aceitando a verdade
nas palavras de Cassius. — E quanto ao meu cavalo? Não acho
que as encostas de uma montanha sejam um lugar apropriado para
uma criatura tão grande.
— Troque seu cavalo então — Cassius sugeriu. — Meu guarda
receberá um preço justo e retornará aqui com os suprimentos de
que você precisará.
Drizzt pensou na sugestão por um momento, depois entregou as
rédeas para Cassius.
O porta-voz saiu então, se achando bem esperto. Não só evitou
qualquer problema imediato, como convenceu Drizzt a proteger
suas fronteiras, tudo em um lugar onde Bruenor Martelo-de-Batalha
e seu clã de anões soturnos certamente poderiam impedir o drow de
causar algum problema.

Roddy McGristle puxou sua carroça em uma pequena aldeia


aninhada nas sombras do extremo oeste da cordilheira. A neve viria
em breve, o caçador de recompensas sabia, e não tinha vontade de
ser pego na metade do caminho pelo vale quando começasse. Ele
ficaria ali com os fazendeiros e aguardaria o inverno.
Nada poderia deixar o vale sem passar por aquela área, e se
Drizzt tivesse ido para lá, como os frades revelaram, não teria para
onde fugir.

Drizzt partiu dos portões naquela noite, preferindo a escuridão


para a jornada, apesar do frio. Sua abordagem direta para a
montanha o levou ao longo da borda oriental do desfiladeiro rochoso
que os anões haviam reivindicado como seu lar. Drizzt tomou muito
cuidado para evitar os guardas que o povo barbudo poderia ter por
ali. Ele já havia encontrado anões antes, quando passou pela
Cidadela Adbar em suas primeiras andanças após deixar o bosque
de Monshi, e não foi uma experiência agradável. As patrulhas anãs
o perseguiram sem esperar por explicações, e o perseguiram
durante muitos dias pelas montanhas.
Por toda a sua prudência em passar do vale, Drizzt não podia
ignorar um monte alto de rochas que encontrou, uma escalada com
passos apoiados nas pedras empilhadas. Ele estava a menos da
metade da montanha, com vários quilômetros e horas da noite à
frente, mas Drizzt subiu o desvio, passo a passo, encantado pelo
panorama alargado das luzes da cidade sobre ele.
A escalada não era alta, apenas cinquenta metros ou mais, mas
com a tundra plana e a noite clara, Drizzt tinha uma visão de cinco
cidades: duas às margens do lago a leste, duas a oeste no lago
maior e Bryn Shander, em sua colina, alguns quilômetros ao sul.
Quantos minutos se passaram, Drizzt não sabia, porque as vistas
provocavam muitas esperanças e fantasias para lembrar. Ele estava
em Dez-Burgos há apenas um dia, mas já se sentia confortável com
a vista, com o conhecimento de que milhares de pessoas sobre a
montanha ouviriam sobre ele e talvez o aceitassem.
Uma voz revoltada e grave arrancou Drizzt de suas
contemplações. Ele caiu em um agachamento defensivo e circulou
atrás de uma rocha. O fluxo de reclamações marcou claramente a
figura que vinha. Ele tinha ombros largos e era cerca de trinta
centímetros mais baixo do que Drizzt, embora obviamente mais
pesado do que o drow. Drizzt sabia que era um anão antes mesmo
que a figura parasse para ajustar seu elmo — batendo a cabeça em
uma pedra.
— Maldito Dagnaggit —, murmurou o anão, “ajustando” o
capacete pela segunda vez.
Drizzt estava certamente intrigado, mas também era inteligente o
suficiente para perceber que um anão que resmungava
provavelmente não receberia de braços abertos um drow não
convidado no meio de uma noite escura. À medida que o anão se
movia para outro ajuste, Drizzt saiu, correndo levemente e
silenciosamente pelo lado da trilha. Ele passou perto do anão, mas
depois desapareceu sem mais agitação do que a sombra de uma
nuvem.
— Hã? — o anão murmurou quando voltou, desta vez satisfeito
com o ajuste de seu elmo. — Quem é? O que você quer? — disse
ele entre uma série de pulos curtos e giratórios, com seus olhos se
movendo com atenção.
Havia apenas a escuridão, as pedras e o vento.
CAPÍTULO 23
Uma Memória Materializada
A PRIMEIRA NEVE DA ESTAÇÃO CAIU sobre Vale do Vento
Gélido. Grandes flocos à deriva desciam em uma dança
hipnotizante, tão diferentes das tempestades de vento mais comuns
na região. A jovem, Cattibrie, observava a tudo com um
encantamento óbvio da entrada da caverna que era sua casa, o tom
de seus olhos azuis parecendo ainda mais puro no reflexo do
cobertor branco do chão.
— Chegou tarde, mas forte — resmungou Bruenor Martelo-de-
Batalha, um anão de barba vermelha, quando apareceu atrás de
Cattibrie, sua filha adotiva. — Certeza que vai ser uma estação
difícil, assim como tudo neste lugar pra dragões brancos!
— Ah, papai! — respondeu severamente Cattibrie. — Para de
reclamar! Foi só uma nevezinha bonita, e inofensiva, sem vento nem
nada.
— Humanos — bufou o anão de forma ridícula, ainda atrás da
menina. Cattibrie não conseguia ver sua expressão, suave para ela,
enquanto ele resmungava, mas não precisava. Bruenor era 90%
diversão e 10% reclamação, segundo a estimativa de Cattibrie.
Cattibrie girou de repente na direção do anão, com seus cabelos
castanho-avermelhados, na altura do ombro, batendo em seu rosto.
— Posso sair para brincar? — ela perguntou, com um sorriso
esperançoso em seu rosto. — Ah, por favor, papai!
Bruenor forçou sua melhor careta.
— Só um tolo consideraria o inverno de Vale do Vento Gélido
como um bom lugar para brincar! Mostre algum bom senso, garota!
A estação vai congelar seus ossos!
O sorriso de Cattibrie desapareceu, mas ela se recusou a se
render tão facilmente.
— Bem dito pra um anão — ela retrucou, para o horror de
Bruenor. — Você se dá bem o suficiente com os buracos e quanto
menos vê o céu, mais feliz você fica. Mas eu tenho um longo
inverno à frente, e essa pode ser a minha última chance de ver o
céu. Por favor, papai?
Bruenor não conseguiu segurar seu rosto fechado contra o
charme de sua filha, mas não queria que ela saísse.
— Acho que tem alguma coisa rondando lá fora — ele explicou,
tentando parecer autoritário. — Percebi na escalada faz algumas
noites, mesmo não tendo visto. Pode ser um leão branco ou um
urso. É melhor... — Bruenor nunca terminou, porque o olhar
desanimado de Cattibrie destruiu completamente os medos
imaginários do anão.
Cattibrie não era inexperiente quanto aos perigos da região. Vivia
com Bruenor e seu clã há mais de sete anos. Um bando de goblins
assassinou os pais de Cattibrie quando ela era apenas uma criança,
e, embora fosse humana, Bruenor a tomou como sua filha.
— Você é difícil — disse Bruenor em resposta à expressão
desamparada de Cattibrie. — Sai, então, mas não vai longe! Dê sua
palavra, pestinha, que vai onde pode ver as cavernas, e leva uma
espada e um chifre.
Cattibrie correu e plantou um beijo na bochecha de Bruenor, que
o anão taciturno rapidamente limpou, resmungando às costas da
menina enquanto ela desaparecia no túnel. Bruenor era o líder do
clã, tão duro quanto a pedra que mineravam. Mas toda vez que
Cattibrie plantava um beijo em sua bochecha, o anão percebia que
tinha cedido a ela.
— Humanos! — o anão resmungou novamente, e então tomou o
túnel para a mina, pisando duro, achando melhor bater em alguns
pedaços de ferro, apenas para se lembrar de sua dureza.

Foi fácil para a menina espirituosa racionalizar sua desobediência


quando olhou de volta pelo vale das encostas mais baixas de
Sepulcro de Kelvin, a quase cinco quilômetros da entrada. Bruenor
disse a Cattibrie para manter as cavernas à vista, e elas estavam,
ou pelo menos o terreno mais extenso ao redor delas estava, a
partir daquele ponto alto.
Mas Cattibrie, deslizando alegremente por uma extensão
acidentada, logo encontrou uma falha em não atender às
advertências do pai experiente. Ela tinha chegado ao fundo, um
passeio delicioso, e estava esfregando rapidamente suas mãos em
busca de calor, quando ouviu um grunhido baixo e sinistro.
— Leão branco — Cattibrie disse bem baixo, lembrando-se das
suspeitas de Bruenor. Quando olhou para cima, viu que o palpite de
seu pai não estava totalmente errado, nem certo. Era realmente um
grande felino que a menina via olhando para ela de um monte
pedregoso, mas era preto, não branco, e uma enorme pantera, não
um leão.
De forma desafiadora, Cattibrie tirou a faca da bainha.
— Fica longe, gato! — ela disse, com apenas um mínimo de
tremor em sua voz, porque sabia que o medo convidava o ataque de
animais selvagens.
Guenhwyvar abaixou as orelhas e se sentou, depois emitiu um
rugido longo e ressonante que ecoou em toda a região pedregosa.
Cattibrie não conseguiu responder ao poder nesse rugido, nem
aos dentes longos que a pantera mostrava. Procurou por uma rota
de fuga, mas sabia que, não importava para que lado corresse, não
poderia ir além da distância que a pantera cobriria com seu primeiro
salto.
— Guenhwyvar! — veio um chamado acima. Cattibrie tornou a
olhar para a expansão coberta de neve para ver uma forma esbelta
e encapuzada, escolhendo uma rota cuidadosa em sua direção. —
Guenhwyvar! — o recém-chegado gritou novamente. — Saia!
A pantera grunhiu uma resposta gutural, depois afastou-se,
pulando os pedregulhos cobertos de neve e saltando sobre
pequenos penhascos tão facilmente como se estivesse
atravessando um campo liso e plano.
Apesar de seus contínuos medos, Cattibrie observou a pantera
partir com sincera admiração. Ela sempre amou animais e
frequentemente os estudara, mas a interação dos músculos
elegantes de Guenhwyvar era mais majestosa do que qualquer
coisa que já havia imaginado. Quando finalmente saiu de seu
transe, ela percebeu que a figura esbelta estava logo atrás dela.
Cattibrie então girou, com a faca ainda na mão.
A lâmina caiu de sua mão e sua respiração parou abruptamente
assim que ela olhou para o drow.
Drizzt, também, ficou surpreso com o encontro. Ele queria ter
certeza de que a garota estava bem, mas quando olhou para
Cattibrie, todos os pensamentos de seu propósito desapareceram
em uma onda de lembranças.
Ela tinha aproximadamente a mesma idade que o garoto de
cabelos cor de areia da fazenda, Drizzt observou inicialmente, e tal
pensamento inevitavelmente trouxe as agonizantes lembranças de
Maldobar. Quando Drizzt olhou mais de perto, nos olhos de
Cattibrie, seus pensamentos foram enviados ainda mais longe em
seu passado, até os dias em que marchara ao lado de seus
parentes sombrios. Os olhos de Cattibrie possuíam o mesmo brilho
alegre e inocente que Drizzt tinha visto nos olhos de uma criança
elfa, uma garota que ele havia resgatado das lâminas selvagens de
seus parentes invasores. A memória sobrecarregou Drizzt, enviou-o
de volta para aquela escuridão sangrenta no bosque élfico, onde
seu irmão e seus companheiros haviam brutalmente chacinado um
grupo de elfos. No conflito, Drizzt quase matara a criança élfica,
quase se colocou para sempre na mesma estrada sombria que seus
parentes tão voluntariamente seguiam.
Drizzt sacudiu a cabeça para afastar as lembranças e lembrou-se
de que esta era uma criança diferente de uma raça diferente. Ele
queria falar uma saudação, mas a menina tinha ido embora.
Aquela palavra condenatória, “drizzit”, ecoou nos pensamentos do
drow várias vezes enquanto voltava para a caverna que decidira
usar como casa na face norte da montanha.

Na mesma noite, a estação veio com toda sua força. O vento frio
do leste que soprava da Geleira Reghed empurrava a neve em
sopros fortes e impenetráveis.
Cattibrie observou a neve desesperadamente, temendo que
muitas semanas pudessem se passar antes que ela pudesse voltar
para o Sepulcro de Kelvin. Não contou a Bruenor ou a nenhum dos
outros anões sobre o drow, por medo de ser punida e de que
Bruenor afastasse o drow. Olhando para a neve, Cattibrie desejava
ter sido mais corajosa, ter permanecido e conversado com o elfo
estranho. Cada uivo do vento aumentou esse desejo e fez a garota
se perguntar se tinha perdido sua única chance.

“Vou para Bryn Shander”, Bruenor anunciou mais de dois meses


depois, pela manhã. Um intervalo inesperado surgiu no inverno que
normalmente durava sete meses em Vale do Vento Gélido, um raro
degelo em janeiro. Bruenor olhou sua filha com desconfiança.
— Você quer sair sozinha hoje? — perguntou ele.
— Se eu puder — Cattibrie respondeu. — Tá muito apertado aqui
e o vento não tá tão frio.
— Vou pegar um anão ou dois para ir com você — ofereceu
Bruenor.
Cattibrie, pensando que agora poderia ser sua chance de voltar a
investigar o drow, hesitou com a ideia.
— Eles estão todos consertando suas portas! — ela retrucou,
mais bruscamente do que pretendia. — Não quero incomodar
ninguém com meus caprichos!
Os olhos de Bruenor se estreitaram.
— Você tem muita teimosia em você.
— Puxei do meu pai — disse Cattibrie com uma piscadela que
derrubou quaisquer argumentos futuros.
— Tome cuidado, então — começou Bruenor —, e mantenha--
— As cavernas à vista! — Cattibrie terminou por ele.
Bruenor girou e saiu da caverna, resmungando impotente e
amaldiçoando o dia em que decidiu adotar um ser humano como
filha. Cattibrie apenas ria da fachada resmungona.
Mais uma vez, foi Guenhwyvar quem primeiro encontrou a
menina de cabelos castanho-avermelhados. Cattibrie havia se
dirigido para a montanha e estava seguindo ao redor das trilhas
mais ocidentais quando viu a pantera negra acima dela,
observando-a de um esporão de pedra.
— Guenhwyvar — a garota chamou, lembrando o nome que o
drow usara. A pantera grunhiu baixo e pulou do esporão,
aproximando-se.
— Guenhwyvar? — Cattibrie disse novamente, mais incerta,
porque a pantera estava a poucas dezenas de passos de distância.
As orelhas de Guenhwyvar subiram com a segunda menção do
nome e os músculos tensos da gata relaxaram visivelmente.
Cattibrie aproximou-se lentamente, um passo deliberado de cada
vez.
— Onde está o elfo negro, Guenhwyvar? — ela perguntou em voz
baixa. — Pode me levar até ele?
— E por que você quer ir até ele? — veio uma pergunta por trás.
Cattibrie congelou, lembrando-se da voz suave e melódica, então
se virou lentamente para encarar o drow. Ele estava a apenas três
passos atrás dela, o olhar de olhos lavanda travado nela assim que
se encontraram. Cattibrie não tinha ideia do que dizer, e Drizzt,
absorvido novamente pelas memórias, ficou quieto, observando e
esperando.
— Cê é um drow? — Cattibrie perguntou depois que o silêncio
tornou-se insuportável. Assim que ouviu suas próprias palavras, se
repreendeu silenciosamente por fazer uma pergunta tão estúpida.
— Eu sou — respondeu Drizzt. — O que isso significa para você?
Cattibrie deu de ombros ante a estranha resposta.
— Ouvi dizer que os drow são maus, mas você não me parece
ser mau.
— Você assumiu um grande risco em vir aqui sozinha —
observou Drizzt. — Mas não tenha medo — ele acrescentou, vendo
o súbito desconforto da menina. — Não sou mau e não vou te fazer
mal.
Após os meses sozinho em sua caverna confortável, mas
solitária, Drizzt não queria que esta reunião terminasse
rapidamente.
Cattibrie assentiu, acreditando em suas palavras.
— Meu nome é Cattibrie — disse ela. — Meu papai é Bruenor,
Rei do Clã Martelo-de-Batalha.
Drizzt inclinou a cabeça com curiosidade.
— Os anões — explicou Cattibrie, apontando para o vale. Ela
entendeu a confusão de Drizzt assim que terminou de falar. — Ele
não é meu pai de sangue — disse. — Bruenor me adotou quando
eu era só um bebê, quando meus pais de sangue...
Ela não conseguiu terminar, e Drizzt não precisava que
terminasse, compreendendo sua expressão dolorida.
— Eu sou Drizzt Do’Urden — o drow interveio. — É um prazer,
Cattibrie, filha de Bruenor. É bom ter outra pessoa com quem
conversar. Durante todas essas semanas de inverno, eu só tive
Guenhwyvar, quando a gata está por perto, e minha amiga não é
muito de falar, é claro…
O sorriso de Cattibrie quase chegou às orelhas. Ela olhou por
cima do ombro para a pantera, agora deitada preguiçosamente no
caminho.
— Ela é uma gata linda — observou Cattibrie.
Drizzt não duvidou da sinceridade no tom da menina, ou no olhar
de admiração que ela deixou cair em Guenhwyvar.
— Venha aqui, Guenhwyvar — disse Drizzt, e a pantera esticou-
se e levantou-se lentamente.
Guenhwyvar caminhou ao lado de Cattibrie, e Drizzt assentiu com
a cabeça para responder a seu desejo não dito, mas óbvio.
Hesitantemente no início, mas depois com firmeza, Cattibrie
acariciou o pelo elegante da pantera, sentindo o poder e a perfeição
do animal. Guenhwyvar aceitou o carinho sem queixa, até se
encostou no lado de Cattibrie quando ela parou por um momento,
empurrando-a, pedindo para continuar.
— Você está sozinha? — Drizzt perguntou.
Cattibrie assentiu.
— Meu pai disse para manter as cavernas à vista — ela riu. — Eu
posso vê-las bem o suficiente, pelo meu ponto de vista!
Drizzt olhou de volta para o vale, até a parede de pedra distante a
vários quilômetros de distância.
— Seu pai não ficaria satisfeito. Esta terra não é tão gentil. Estive
na montanha por apenas dois meses, e já lutei duas vezes contra
umas feras brancas desgrenhadas que não conhecia.
— Yeti da tundra — respondeu Cattibrie. — Você deve estar no
lado do norte. Os yetis da tundra não vêm ao redor da montanha.
— Você tem certeza? — Drizzt perguntou sarcasticamente.
— Eu nunca vi um — Cattibrie respondeu —, mas não tenho
medo deles. Eu vim te encontrar, e agora eu achei.
— É, achou — disse Drizzt. — E agora?
Cattibrie deu de ombros e voltou a acariciar Guenhwyvar.
— Venha — sugeriu Drizzt. — Vamos encontrar um lugar mais
confortável para conversar. O brilho da neve machuca meus olhos.
— Você está acostumado com os túneis escuros? — Cattibrie
perguntou esperançosamente, ansiosa para ouvir histórias de terras
além das fronteiras de Dez-Burgos, o único lugar que Cattibrie já
conheceu.
Drizzt e a menina passaram um dia maravilhoso juntos. Drizzt
contou a Cattibrie sobre Menzoberranzan e Cattibrie respondeu
seus relatos com histórias do Vale do Vento Gélido, de sua vida com
os anões. Drizzt estava interessado em ouvir sobre Bruenor e seus
parentes, já que os anões eram seus vizinhos mais próximos e mais
temidos.
— Bruenor fala duro como pedra, mas eu o conheço e sei que é
bem mais do que isso! — Cattibrie assegurou ao drow. — Ele é
bom, assim como o resto do clã.
Drizzt ficou contente por ter ouvido isso e, também, satisfeito por
ter feito essa conexão, tanto pelas implicações de uma amiga
quanto, principalmente, pelo fato de realmente ter apreciado a
companhia agradável e espirituosa da garota. A energia e o gosto
de Cattibrie pela vida borbulhavam. Em sua presença, o drow não
conseguia se lembrar de suas lembranças assustadoras, só podia
se sentir bem com sua decisão de salvar a criança elfa, muitos anos
antes. A voz melodiosa de Cattibrie e a maneira descuidada com
que lançava seus cabelos flutuantes sobre os ombros levantavam a
carga de culpa das costas de Drizzt, tão certamente quanto um
gigante poderia levantar uma rocha.
Seus relatos poderiam ter continuado por todo o dia e toda a
noite, e por muitas semanas depois, mas quando Drizzt percebeu
que o sol se punha no horizonte a oeste, percebeu que chegou a
hora da garota voltar para sua casa.
— Vou te levar lá — ofereceu Drizzt.
— Não — Cattibrie respondeu. — É melhor não. Bruenor não
entenderia e você me arrumaria uma montanha de problemas. Eu
posso voltar, não se preocupe! Eu conheço essas trilhas melhor que
você, Drizzt Do’Urden, e você não poderia me acompanhar mesmo
se tentasse!
Drizzt riu da ostentação, mas quase acreditou. Ele e a garota
partiram imediatamente, indo até o extremo do sul da montanha e
dizendo suas despedidas com promessas de que se encontrariam
novamente durante o próximo degelo, ou na primavera, se nenhum
acontecesse antes.
Verdadeiramente, a menina estava pulando levemente quando
entrou no complexo dos anões, mas um olhar para o seu pai roubou
uma medida de seu deleite. Bruenor fora para Bryn Shander
naquela manhã a negócios com Cassius. O anão não estava feliz
por saber que um elfo negro tinha escolhido um lar tão perto de sua
porta, mas ele adivinhou que sua filha curiosa, curiosa demais,
acharia isso incrível.
— Fica longe da montanha — disse Bruenor assim que notou
Cattibrie, e ela ficou desesperada.
— Mas, papai... — ela tentou reclamar.
— Dê sua palavra, garota! — o anão exigiu. — Você não vai botar
o pé naquela montanha novamente sem minha permissão! Tem um
elfo negro ali, pelo que Cassius disse. Dê sua palavra!
Cattibrie assentiu impotente, depois seguiu Bruenor de volta ao
complexo dos anões, sabendo que teria dificuldade em fazer seu pai
mudar de ideia, mas sabendo, também, que as preocupações de
Bruenor em relação a Drizzt Do’Urden estavam longe de ser
justificadas.

Mais um degelo ocorreu um mês depois e Cattibrie cumpriu sua


promessa. Ela nunca colocou um pé em Sepulcro de Kelvin, mas,
das trilhas pelo vale ao redor, ela chamou Drizzt e Guenhwyvar.
Drizzt e a pantera, procurando pela garota assim que o clima ficou
mais ameno, estavam logo ao lado dela, no vale desta vez,
compartilhando mais histórias e um almoço de piquenique que
Cattibrie tinha embalado.
Quando Cattibrie voltou às minas naquela noite, Bruenor
suspeitava muito e perguntou apenas uma vez se ela tinha mantido
sua palavra. O anão sempre confiou na sua filha, mas quando
Cattibrie respondeu que não estava no Sepulcro de Kelvin, suas
suspeitas não diminuíram.
CAPÍTULO 24
Revelações
BRUENOR PASSOU PELAS ENCOSTAS MAIS BAIXAS do
sepulcro de kelvin pela maior parte da manhã. A neve tinha
derretido em boa parte, graças à primavera, mas alguns bolsões
teimosos ainda tornavam as trilhas difíceis de se cruzar. Com o
machado em uma mão e o escudo, entalhado com o estandarte de
caneca espumante do Clã Martelo-de-Batalha, na outra, Bruenor
seguia jornada, cuspindo maldições a cada área escorregadia, a
cada obstáculo de pedra e a elfos negros em geral.
Ele circulou o esporão a nordeste da montanha, com seu nariz
longo e vermelho-cereja por causa do vento mordaz, com a
respiração dificultada.
— Hora de descansar — murmurou o anão, vendo uma alcova de
pedra protegida por paredes altas do vento implacável.
Bruenor não era o único que notara o local confortável. Pouco
antes de alcançar a fenda de três metros de largura na parede da
pedra, um bater súbito de asas coriáceas trouxe uma enorme
cabeça insetoide se elevando diante dele. O anão recuou,
assustado e cauteloso. Ele reconheceu o animal como um
remorhaz, um verme polar, e não estava tão ansioso para lutar com
ele.
O remorhaz saiu do cubículo em perseguição, com seu corpo
serpenteante de doze metros de comprimento se desenrolando
como um laço azul-gélido por detrás dele. Olhos de insetos
multifacetados, luzindo em um branco brilhante, se focaram no
anão. As asas curtas e coriáceas mantinham a metade dianteira da
criatura ereta e pronta para atacar enquanto dezenas de pernas
inquietas impulsionavam o restante do longo tronco. Bruenor sentiu
o aumento do calor quando as costas da criatura agitada
começaram a brilhar, primeiro em um marrom apagado, depois em
um vermelho incandescente.
— Isso vai parar o vento um pouco! — o anão riu, percebendo
que não conseguiria fugir da criatura. Ele parou e sacudiu seu
machado ameaçadoramente.
O remorhaz investiu, sua formidável bocarra grande o suficiente
para engolir o alvo diminuto inteiro, descendo com voracidade sobre
ele.
Bruenor saltou de lado e inclinou o escudo e o corpo para evitar
que a bocarra atingisse suas pernas, enquanto batia o machado
entre os chifres do monstro.
As asas bateram ferozmente, tornando a levantar a cabeça. O
remorhaz, apenas levemente ferido, estava pronto para atacar
rapidamente, mas Bruenor foi mais rápido. Ele agarrou seu
machado com sua mão do escudo, sacou uma adaga longa e
mergulhou para frente, bem entre o primeiro conjunto de pernas do
monstro.
A grande cabeça caiu com pressa, mas Bruenor já havia
escorregado sob a barriga baixa, o ponto mais vulnerável do animal.
— Você entendeu? — Bruenor repreendeu, cravando a adaga
entre as escamas.
Bruenor era resistente demais e estava muito bem equipado para
ser gravemente ferido pelas sacudidas do verme, mas a criatura
começou a rolar, na intenção de jogar suas costas incandescentes
sobre o anão.
— Não, você não vai fazer isso, seu dragão-verme-pássaro-inseto
esquisito! — Bruenor uivou, lutando para se manter longe do calor.
Ele chegou ao lado da criatura e puxou com todas as suas forças,
desequilibrando o remorhaz.
A neve derreteu e chiou quando as costas ardentes a tocaram.
Bruenor chutou e percorreu as pernas, que se debatiam, até chegar
à base vulnerável. O machado entalhado do anão se chocou contra
ela, então, abrindo um corte largo e profundo.
O remorhaz se enrolou e estalou seu longo corpo de um lado
para o outro, jogando Bruenor para o lado. O anão estava de pé em
um instante, mas não foi rápido o suficiente, porque o verme polar
estava rolando sobre ele. As costas ardentes atingiram Bruenor na
coxa enquanto ele tentava se afastar, e o anão saiu mancando,
agarrando suas calças de couro fumegantes.
Então eles voltaram a se enfrentar, ambos mostrando muito mais
respeito pelo outro.
A boca se escancarou; com um golpe rápido, o machado de
Bruenor arrancou uma presa e a jogou longe. A perna ferida do
anão flexionou-se com o golpe, no entanto, e, tropeçando, Bruenor
não conseguiu sair do caminho. Um chifre longo enganchou Bruenor
sob o braço e o atirou longe para o lado.
Ele caiu em meio a um pequeno campo de rochas, recuperou-se,
e bateu intencionalmente a cabeça contra uma pedra grande para
ajustar seu capacete e afastar a tontura.
O remorhaz deixou uma trilha de sangue, mas não cedeu. A
bocarra se abriu e a criatura sibilou, e Bruenor imediatamente
lançou uma pedra diretamente em sua garganta.

Guenhwyvar alertou Drizzt sobre a confusão no esporão a


noroeste. O drow nunca tinha visto um verme polar antes, mas
assim que viu os combatentes a partir de um cume logo acima,
sabia que o anão estava com problemas. Lamentando que tivesse
deixado seu arco na caverna, Drizzt puxou as cimitarras e seguiu a
pantera para baixo da montanha tão rápido quanto as trilhas
escorregadias permitiriam.

— Vem, então! — o anão teimoso rugiu para o remorhaz, e o


monstro realmente investiu. Bruenor se preparou, na intenção de
desferir apenas mais um bom golpe antes de se tornar comida de
verme polar.
A grande cabeça foi até ele, mas depois o remorhaz, ouvindo um
rugido por trás, hesitou e desviou o olhar.
— Burrice! — o anão gritou de alegria, e Bruenor cortou o maxilar
do monstro com seu machado, dividindo-o de forma limpa entre dois
grandes incisivos. O remorhaz gritou de dor; suas asas coriáceas se
agitavam descontroladamente, tentando tirar a cabeça do alcance
do anão perverso.
Bruenor bateu novamente, e uma terceira vez, cada golpe
cortando grandes vincos na boca e puxando a cabeça para baixo.
— Achou que ia me morder, né? — o anão gritou. Ele atacou com
a mão de seu escudo e agarrou um chifre quando a cabeça do
remorhaz começou a subir de novo. Uma sacudida rápida virou a
cabeça do monstro em um ângulo vulnerável e os músculos firmes
do braço de Bruenor se contraíram cruelmente, cravando seu
poderoso machado no crânio do verme polar.
A criatura estremeceu e se debateu por mais um segundo, depois
ficou quieta, com suas costas ainda brilhando calorosamente.
Um segundo rugido de Guenhwyvar tirou os olhos do anão
orgulhoso de sua vítima. Bruenor, ferido e hesitante, olhou para ver
Drizzt e a pantera se aproximando rapidamente, o drow com as
cimitarras sacadas.
— Pode vir! — Bruenor rugiu para ambos, compreendendo mal o
motivo da corrida deles. Ele bateu seu machado contra seu escudo
pesado. — Vem e sinta meu machado! — Drizzt parou
abruptamente e pediu que Guenhwyvar fizesse o mesmo. A pantera
continuou, no entanto, com as orelhas achatadas.
— Vá, Guenhwyvar! — Drizzt ordenou.
A pantera rosnou indignada uma última vez e saltou para longe.
Satisfeito pelo fato de a gata ter ido embora, Bruenor pousou o olhar
sobre Drizzt, de pé na outra extremidade do verme polar caído.
— Você e eu, então? — cuspiu o anão. — Você tem colhões para
encarar meu machado, drow, ou prefere garotinhas?
A referência óbvia a Cattibrie trouxe uma luz irritada aos olhos de
Drizzt, e sua pegada em suas armas apertou.
Bruenor balançou o machado com facilidade.
— Vem — ele repreendeu com raiva. — Você tem colhões para
vir brincar com um anão?
Drizzt queria gritar para todo o mundo ouvir. Ele queria correr
sobre o monstro morto e esmagar o anão, negar as palavras do
anão com força pura e brutal, mas ele não podia. Drizzt não podia
negar Mielikki e não poderia trair Monshi. Ele teve que sublimar sua
raiva mais uma vez, teve que engolir os insultos estoicamente e com
a percepção de que ele e sua deusa conheciam a verdade do que
estava em seu coração.
As cimitarras giraram para dentro de suas bainhas e Drizzt se
afastou, com Guenhwyvar aproximando-se dele.
Bruenor viu a dupla se afastar com curiosidade. No começo, ele
pensou que o drow era um covarde, mas então, à medida que a
empolgação da batalha diminuía gradualmente, Bruenor começou a
se perguntar sobre a intenção do drow. Ele teria aparecido para
finalizar ambos os combatentes, conforme Bruenor supusera? Ou
ele, talvez, tivesse descido para socorrer Bruenor?
— Não… — o anão murmurou, descartando a possibilidade. —
Não um elfo negro!
A caminhada de volta era longa para o anão, que mancava,
dando a Bruenor muitas oportunidades para repassar os eventos ao
redor do esporão a noroeste. Quando ele finalmente chegou de
volta às minas, o sol havia se posto por muito tempo, e Cattibrie e
vários anões estavam reunidos, prontos para sair em sua busca.
— Você está ferido — observou um dos anões. Cattibrie
imediatamente imaginou uma luta entre Drizzt e seu pai.
— Verme polar — explicou o anão casualmente. — Acabei com
ele, mas acabei ficando um pouco chamuscado pelo meu esforço.
Os outros anões assentiram admirados com a habilidade de
batalha de seu líder — um verme polar não era fácil de matar — e
Cattibrie suspirou audivelmente.
— Eu vi o drow! — Bruenor rosnou para ela, suspeitando do
motivo daquele suspiro. O anão continuou confuso sobre o encontro
com o elfo negro e confuso, também, sobre onde Cattibrie se
encaixaria naquilo tudo. Será que Cattibrie realmente havia
encontrado o elfo negro? ele se perguntou.
— Eu o vi, vi sim! — Bruenor continuou, agora falando mais para
os outros anões. — O drow e a maior e mais negra gata que meus
olhos já viram. Ele desceu até mim, assim que eu tombei o verme.
— Drizzt não faria isso! — Cattibrie interrompeu-se antes que seu
pai pudesse entrar em seu frenesi costumeiro de contar histórias.
— Drizzt? — Bruenor perguntou, e a menina se virou, se
percebendo descoberta. Bruenor deixou passar… naquele
momento.
— Ele desceu, eu digo! — o anão continuou. — Veio até mim com
as duas lâminas sacadas! Eu espantei ele e a gata!
— Nós poderíamos caçá-lo — sugeriu um dos anões. — Expulsá-
lo da montanha!
Os outros assentiram com a cabeça e murmuraram seu acordo,
mas Bruenor, ainda incerto sobre a intenção do drow, cortou-os:
— Ele tem a montanha — Bruenor disse a eles. — Cassius deu a
ele, e não precisamos de problemas com Bryn Shander. Enquanto o
drow ficar quieto e fora do nosso caminho, vamos deixá-lo em paz
— Mas — continuou Bruenor, olhando diretamente para Cattibrie
— você não deve falar, nem se aproximar, daquele lá de novo!
— Mas... — Cattibrie começou inutilmente.
— Nunca! — Bruenor rugiu. — Eu vou ter sua palavra agora,
garota, ou, por Moradin, eu vou conseguir a cabeça daquele elfo
negro!
Cattibrie hesitou, horrivelmente presa.
— Diga! — Exigiu Bruenor.
— Você tem minha palavra — a menina murmurou, e fugiu para o
abrigo escuro da caverna.

— Cassius, o porta-voz de Bryn Shander, me mandou até você —


explicou o homem bruto. — Disse que cê saberia do drow, se
alguém soubesse.
Bruenor olhou ao redor de sua sala de audiências formal para os
muitos outros anões presentes, nenhum deles muito impressionado
pelo estranho rude. Bruenor deixou cair o queixo barbado em sua
palma e deu um bocejo amplo, determinado a permanecer fora
desse aparente conflito. Ele poderia ter contado uma mentira para o
homem grosseiro e seu cachorro fedido ficarem fora dos corredores
sem maiores problemas, mas Cattibrie, sentada ao lado de seu pai,
se remexia desconfortável.
Roddy McGristle não deixou passar o movimento revelador.
— Cassius diz que cê deve ter visto o drow, porque ele tá bem
perto.
— Se alguém de meu povo o viu — respondeu Bruenor
distraidamente —, eles não disseram nada sobre o assunto. Se seu
drow está por aqui, ele não incomodou ninguém.
Cattibrie olhou com curiosidade para o pai e respirou com mais
facilidade.
— Não incomodou? — Roddy murmurou, com um olhar malicioso
chegando a seus olhos. — Nunca é assim, com aquele lá — Lenta e
dramaticamente, o homem da montanha abaixou o capuz, revelando
suas cicatrizes. — Nunca incomoda, até que não esperem o que ele
dá!
— O drow te deu isso? — Bruenor perguntou, não muito
alarmado ou impressionado. — Excelentes cicatrizes — melhor do
que a maioria das que já vi.
— Ele matou meu cachorro! — rosnou Roddy.
— Não parece morto para mim — zombou Bruenor, arrancando
risos de todos os cantos.
— Meu outro cachorro — rosnou Roddy, entendendo a que pé
estava com aquele anão teimoso. — Cê não se importa comigo,
nem deveria. Mas nem é por mim que tô caçando esse aí, e nem
pela recompensa pela cabeça dele. Cê já ouviu falar de Maldobar?
Bruenor deu de ombros.
— Norte de Sundabar — explicou Roddy. — Lugar pequeno,
pacífico... Só fazendeiro. Uma família, os Thistledowns, morava do
lado da cidade, três gerações em uma única casa, como as boas
famílias. Bartholemew Thistledown era um homem bom, como o seu
pai, os seus filhos, três rapazes e duas moças — que nem a sua —
de cabeça em pé e com um coração leve e um amor pelo mundo.
Bruenor suspeitava aonde o homem corpulento queria chegar, e
pelo jeito incômodo que Cattibrie se remexia ao lado dele, percebeu
que sua filha esperta também sabia.
— Boa família — pensou Roddy, fingindo uma expressão distante
e contemplativa. — Nove na casa — o rosto do homem da
montanha endureceu de repente e ele olhou diretamente para
Bruenor. — Nove morreram na casa — declarou ele. — Rasgado
pelo seu drow, e um comido por aquele gato dos infernos!
Cattibrie tentou responder, mas suas palavras saíram em um grito
confuso. Bruenor ficou contente por sua confusão, pois, se ela
tivesse falado claramente, seu argumento teria dado ao homem da
montanha mais do que Bruenor queria revelar. O anão colocou uma
mão nos ombros da sua filha, então respondeu a Roddy
calmamente:
— Você veio até nós com uma história sombria. Você assustou
minha filha, e eu não gosto quando minha filha fica assustada.
— Peço seus perdão, anão real — disse Roddy com uma
reverência —, mas cê tem que saber do perigo na sua porta. O drow
é mau, que nem aquele gato-demônio. Eu não quero que a tragédia
de Maldobar se repita.
— E não terá nenhuma repetição em meus salões — assegurou
Bruenor. — Não somos fazendeiros, leve isso com você. O drow
não vai incomodar mais do que já incomodou.
Roddy não estava surpreso com o fato de Bruenor não o ajudar,
mas sabia bem que o anão, ou pelo menos a garota, sabia mais
sobre o paradeiro de Drizzt do que tinham dito.
— Se não for por mim, então, por Bartholemew Thistledown, eu
imploro, bom anão. Diz se sabe onde vou achar o elfo demônio. Ou,
se você não sabe, então me dê alguns soldados para me ajudar a
caçar ele.
— Meus anões têm muito a fazer com o derretimento — explicou
Bruenor. — Não posso ceder ninguém para caçar os inimigos dos
outros.
Bruenor realmente não se importava nem um pouco com a queixa
de Roddy sobre o drow, mas a história do homem da montanha
confirmou a crença do anão de que o elfo negro deveria ser evitado,
principalmente por sua filha. Bruenor realmente poderia ter ajudado
Roddy e ter acabado logo com isso, mais para tirá-los do vale do
que por qualquer motivo moral, mas não podia ignorar o desespero
óbvio de Cattibrie.
Roddy tentou sem sucesso esconder sua raiva, procurando por
outra opção.
— Pronde cê iria, se tivesse fungindo, Rei Bruenor? — perguntou.
— Cê conhece a montanha melhor que qualquer um vivo, pelo que
Cassius disse. Onde tenho que olhar?
Bruenor descobriu que gostava de ver o humano desagradável
tão angustiado.
— Grande vale — ele disse enigmático. — Montanha grande.
Muitos buracos. — o rei ficou quieto por um longo momento,
balançando a cabeça.
A fachada de Roddy desmoronou completamente.
— Cê vai ajudar o drow assassino? — ele rosnou. — Cê diz que é
rei, mas cê....
Bruenor saltou de seu trono de pedra, e Roddy recuou um passo
cauteloso e deixou cair uma mão no punho de Sangrador.
— Eu tenho a palavra de um vilão contra outro! — Bruenor rosnou
para ele. — Um é tão ruim quanto o outro, é o que eu acho!
— Não é o que um Thistledown acha! — Roddy gritou, e seu
cachorro, sentindo sua indignação, mostrou os dentes e grunhiu.
Bruenor olhou a fera estranha e amarela com curiosidade. Estava
chegando perto da hora do jantar e discussões deixavam Bruenor
com fome! Como um cachorro amarelo poderia preencher sua
barriga? Ele se perguntou.
— Cê não tem mais nada para me dar? — Roddy exigiu.
— Eu poderia te dar minha bota — Bruenor rosnou de volta.
Vários soldados anões bem armados se aproximaram para se
certificar de que o humano volátil não faria nada idiota. — Eu te
chamaria para jantar — prosseguiu Bruenor —, mas você cheira
muito mal para minha mesa, e você não parece o tipo que tomaria
um banho.
Roddy puxou a corda de seu cão e disparou para fora, pisando
duro com suas botas pesadas e batendo cada porta que encontrou.
Ao aceno de Bruenor, quatro soldados seguiram o homem da
montanha para garantir que ele partisse sem incidentes infelizes. Na
sala de audiência formal, os outros riram e uivaram sobre o modo
como o rei tinha tratado o humano.
Cattibrie não se juntou à alegria, observou Bruenor, e o anão
achava que sabia o porquê. A história de Roddy, verdadeira ou não,
tinha criado algumas dúvidas na menina.
— Então, agora, você sabe — Bruenor disse a ela de forma rude,
tentando pressioná-la sobre o assunto. — O drow é um assassino
caçado. Agora você vai confiar nos meus avisos, garota!
Os lábios de Cattibrie desapareceram com uma mordida amarga.
Drizzt não tinha falado sobre sua vida na superfície, mas não podia
acreditar que este drow que ela veio a conhecer fosse capaz de
assassinar alguém. Tampouco Cattibrie negaria o óbvio: Drizzt era
um elfo negro e, para seu pai mais experiente, pelo menos, tal fato
sozinho conferia credibilidade ao conto de McGristle.
— Você tá ouvindo, menina? — Bruenor rosnou.
— Você precisa juntar todos eles — disse Cattibrie de repente. —
O drow e Cassius, e o feioso do Roddy McGristle. Você precisa...
— Não é problema meu! — Bruenor rugiu, cortando-a.
Lágrimas chegaram rapidamente aos olhos suaves de Cattibrie
diante da raiva súbita de seu pai. Todo o mundo parecia desmoronar
diante dela. Drizzt estava em perigo, e mais ainda a verdade sobre
seu passado. E, igualmente doloroso para Cattibrie, seu pai, a quem
ela amava e admirava por toda a vida lembrada, parecia agora não
dar ouvidos aos apelos à justiça.
Naquele momento horrível, Cattibrie fez a única coisa que uma
garota de onze anos poderia fazer contra tais probabilidades — ela
se virou de costas para Bruenor e fugiu.

Cattibrie realmente não sabia o que ela queria fazer quando se


encontrou correndo pelas trilhas mais baixas de Sepulcro de Kelvin,
quebrando sua promessa a Bruenor. Cattibrie não podia recusar o
desejo de vir, embora tivesse pouco para oferecer a Drizzt além de
uma advertência de que McGristle estava procurando por ele.
Ela não conseguiu resolver todas as preocupações, mas então
ficou diante do drow e entendeu a verdadeira razão pela qual se
aventurara. Não era por Drizzt que tinha vindo, embora desejasse
que ele ficasse seguro. Era por sua própria paz.
— Você nunca falou dos Thistledowns de Maldobar — ela disse
friamente em saudação, roubando o sorriso do drow. A expressão
sombria que atravessava o rosto de Drizzt mostrava claramente sua
dor.
Pensando que Drizzt, por sua melancolia, aceitasse a culpa pela
tragédia, a menina ferida girou e tentou fugir. Drizzt pegou-a pelo
ombro, porém, virou-a, e a segurou. Ele seria uma coisa maldita, de
fato, se essa menina, que o aceitava de todo o coração, acreditasse
nas mentiras.
— Eu não matei ninguém — sussurrou Drizzt acima dos soluços
de Cattibrie —, exceto os monstros que mataram os Thistledowns.
Tem minha palavra! — ele recontou a história, então, na íntegra, até
mesmo contando sua fuga do grupo de Columba Garra de Falcão.
— E agora estou aqui — concluiu — querendo deixar aquilo tudo
para trás, embora nunca, tem minha palavra, vá me esquecer!
— São duas histórias diferentes — respondeu Cattibrie. — A sua
e a de McGristle, quer dizer.
— McGristle? — Drizzt ofegou como se seu fôlego tivesse sido
arrancado de seu corpo. Drizzt não tinha visto o homem corpulento
há anos e achava que Roddy era uma coisa de seu passado
distante.
— Veio hoje — explicou Cattibrie. — Homem grande com um
cachorro amarelo. Tá te caçando.
A confirmação sobrecarregou Drizzt. Será que algum dia
escaparia de seu passado? Ele se perguntou. Se nunca
acontecesse, como poderia sequer esperar encontrar aceitação?
— McGristle disse que você os matou — continuou Cattibrie.
— Então você só tem nossas palavras — argumentou Drizzt —, e
não há evidência para provar qualquer uma das histórias — o
silêncio que se seguiu pareceu durar horas.
— Nunca gostei daquele bruto feio — Cattibrie fungou, e
conseguiu seu primeiro sorriso desde que conheceu McGristle.
A afirmação de sua amizade tocou Drizzt profundamente, mas
não conseguiu esquecer o problema que agora pairava sobre ele.
Ele teria que lutar contra Roddy, e talvez outros, se o caçador de
recompensas pudesse despertar o ressentimento — o que não era
difícil, considerando a herança de Drizzt. Ou Drizzt teria que fugir,
novamente aceitar a estrada como sua casa.
— O que você vai fazer? — Cattibrie perguntou, sentindo sua
angústia.
— Não tema por mim — Drizzt assegurou-lhe, e lhe deu um
abraço enquanto falava, um que ele sabia que poderia ser sua
maneira de dizer adeus. — O dia está avançando. Você deve voltar
para sua casa agora.
— Ele vai te achar — Cattibrie respondeu de forma sombria.
— Não — Drizzt disse calmamente. — Não tão cedo, pelo menos.
Com Guenhwyvar ao meu lado, vamos manter Roddy McGristle
longe até que eu consiga descobrir o que é o melhor a se fazer.
Agora, vai! A noite está chegando e não acredito que seu pai
apreciaria sua vinda aqui.
O lembrete de que teria que enfrentar Bruenor novamente
colocou Cattibrie em movimento. Ela se despediu de Drizzt e virou-
se, então correu de volta para o drow e o envolveu em um abraço.
Seus passos estavam mais leves enquanto voltava para a
montanha. Ela não resolveu nada para Drizzt, pelo menos até onde
sabia, mas os problemas do drow pareciam distantes em
comparação com seu próprio alívio de que seu amigo não era o
monstro que diziam ser.
A noite seria realmente obscura para Drizzt Do’Urden. Ele achava
que McGristle era um problema muito distante, mas a ameaça
estava aqui agora, e ninguém além de Cattibrie saiu em sua defesa.
Ele estaria sozinho — novamente — se quisesse lutar. Ele não
tinha aliados além de Guenhwyvar e suas próprias cimitarras, e as
perspectivas de combater McGristle — ganhando ou perdendo —
não eram nada atraentes.
— Isso não é um lar — murmurou Drizzt ao vento gélido. Ele
puxou a estatueta de ônix e chamou sua companheira pantera. —
Venha, minha amiga — ele disse à gata —, vamos embora antes
que nosso adversário nos alcance.
Guenhwyvar manteve uma guarda alerta quando Drizzt
empacotava suas posses, enquanto o drow cansado da estrada
esvaziava sua casa.
CAPÍTULO 25
Provocação de Anão
CATTIBRIE OUVIU O CACHORRO ROSNANDO, mas não teve
tempo de reagir quando o homem enorme saltou de trás de uma
rocha e a agarrou bruscamente pelo braço.
— Eu sabia que cê sabia! — McGristle gritou, soprando seu mau
hálito no rosto da menina.
Cattibrie o chutou na canela.
— Me solta! — ela retrucou.
Roddy ficou surpreso ao notar que ela não havia medo em sua
voz. Ele deu uma boa sacudida quando ela tentou chutá-lo
novamente.
— Cê foi pra montanha por algum motivo — disse Roddy de
maneira uniforme, sem relaxar — Cê foi ver o drow. Sabia que cê
era amiga daquele lá. Vi no seu olho!
— Você não sabe nada! — Cattibrie cuspiu na cara dele. — Você
só fala mentiras.
— Então o drow contou sua história dos Thistledowns, né? —
Roddy respondeu, adivinhando facilmente o que menina quis dizer.
Cattibrie sabia então que tinha errado em sua raiva, tinha dado a
confirmação de seu destino.
— O drow? — Cattibrie disse distraidamente. — Não sei do que
você está falando.
O riso de Roddy zombou dela.
— Cê tava com o drow, menina. Cê já disse o tudo. E agora cê
vai me levar até ele.
Cattibrie zombou dele, sendo sacudida de novo em resposta.
A careta de Roddy suavizou então, de repente, e Cattibrie gostou
ainda menos do olhar que lhe veio no rosto.
— Cê é uma menina braba, né? — Roddy rosnou, agarrando o
outro ombro de Cattibrie e virando-a para encará-lo diretamente. —
Cheia de vida, né? Cê vai me levar pro drow, menina. Mas deve ter
outras coisa pra gente fazer antes, coisa pra mostrar procê que não
é pra contrariar o Roddy McGristle.
Sua carícia na bochecha de Cattibrie parecia ridiculamente
grotesca, mas horrível e inegavelmente ameaçadora, e Cattibrie
achou que fosse vomitar.
Cattibrie precisou de toda sua força para encarar Roddy naquele
momento. Era apenas uma garotinha, mas tinha sido criada entre os
anões do Clã Martelo-de-Batalha, um grupo orgulhoso e inabalável.
Bruenor era um guerreiro, assim como a filha dele. O joelho de
Cattibrie encontrou a virilha de Roddy, e quando o aperto dele
relaxou, a garota levou a mão para arranhar seu rosto. Ela deu uma
segunda joelhada, com menos efeito, mas o recuo de Roddy
permitiu que se afastasse, quase livre.
O punho de ferro de Roddy apertou em torno de seu pulso, e eles
lutaram por apenas um momento. Então Cattibrie sentiu uma
pegada igualmente firme em sua mão livre e, antes que pudesse
entender o que aconteceu, foi puxada de Roddy e uma forma escura
passou por ela.
— Então, cê veio encontrar seu destino — Roddy gritou
alegremente para Drizzt.
— Corra — disse Drizzt a Cattibrie. — Isso não é problema seu.
Cattibrie, apavorada, não discutiu.
As mãos nodosas de Roddy apertaram o cabo de Sangrador. O
caçador de recompensas tinha enfrentado o drow em batalha antes
e não tinha a intenção de tentar acompanhar os passos e as voltas
ágeis daquele lá. Com um aceno de cabeça, soltou o cachorro.
O cachorro chegou a meio caminho de Drizzt, e estava prestes a
pular sobre ele, quando Guenhwyvar o atingiu, rolando para a
lateral. O cão voltou a ficar de pé, não muito ferido, mas recuando
vários passos cada vez que a pantera rugia em seu rosto.
— Basta disso — disse Drizzt, de repente sério. — Você me
perseguiu durante anos e eras. Saúdo sua persistência, mas sua ira
está mal colocada, eu te digo. Eu não matei os Thistledowns. Nunca
teria levantado uma lâmina contra eles!
— Pros nove infernos com os Thistledowns! — Roddy rugiu de
volta. — Cê acha que é por isso?
— Minha cabeça não te daria sua recompensa — retrucou Drizzt.
— Pros infernos com o ouro! — Roddy gritou. — Você levou meu
cachorro, drow, e minha orelha! — ele bateu um dedo sujo no lado
de seu rosto com cicatrizes.
Drizzt queria argumentar, queria lembrar a Roddy que foi ele
quem havia iniciado a luta, e que seu próprio machado havia
derrubado a árvore que havia rasgado seu rosto. Mas Drizzt
entendia a motivação de Roddy e sabia que meras palavras não
aliviariam. Drizzt tinha ferido o orgulho de Roddy e, para um homem
como Roddy, isso superava qualquer dor física.
— Eu não quero lutar — ofereceu Drizzt com firmeza. — Pegue o
seu cão e vá embora, com apenas sua palavra de que não me
seguirá.
O riso zombeteiro de Roddy fez um calafrio subir pela espinha de
Drizzt.
— Vou te caçar até os confins do mundo, drow! — Roddy rugiu.
— E vou te encontrar todas as vezes. Num tem buraco fundo o
bastante pra me afastar de você. Num tem mar grande o bastante!
Vou te pegar, drow. Pego agora ou, se cê fugir, te pego depois!
Roddy lançou um sorriso de dentes amarelos e cautelosamente
seguiu na direção de Drizzt.
— Vou te pegar, drow — o caçador de recompensas rosnou
novamente, baixinho. Uma corrida súbita o trouxe para perto e
Sangrador foi sacudido em um movimento feroz. Drizzt saltou para
trás.
Um segundo ataque prometeu resultados semelhantes, mas
Roddy, ao invés de continuar o movimento, deu um golpe enganoso
com as costas da mão direto no queixo de Drizzt.
Ele estava engajado contra Drizzt em um instante, seu machado
passando furiosamente de cada lado.
— Fica quieto! — Roddy gritou enquanto Drizzt esquivava-se
habilmente, saltando ou abaixando a cada golpe. Drizzt sabia que
estava usando uma estratégia perigosa em não contra-atacar os
golpes terríveis, mas esperava que, se pudesse cansar o homem
corpulento, ainda pudesse encontrar uma solução mais pacífica.
Roddy era ágil e rápido para um homem grande, mas Drizzt era
muito mais rápido, e o drow acreditava que poderia jogar aquele
jogo por bem mais tempo.
Sangrador veio em um golpe lateral, mergulhando no peito de
Drizzt. O ataque era uma finta, com Roddy querendo que Drizzt se
abaixasse tanto que ele poderia chutar o drow no rosto.
Drizzt percebeu a finta. Ele saltou em vez de abaixar, virou um
salto mortal sobre o machado e desceu levemente, ainda mais perto
de Roddy. Desta vez Drizzt fez algo, golpeando com os punhos das
cimitarras diretamente no rosto de Roddy. O caçador de
recompensas cambaleou para trás, sentindo o sangue quente se
espalhando de seu nariz.
— Vá embora — Drizzt disse com sinceridade. — Leve o seu cão
de volta para Maldobar, ou onde quer que você chame de lar.
Se Drizzt acreditava que Roddy se renderia diante de uma
humilhação maior, estava terrivelmente enganado. Roddy gritou de
raiva e investiu, jogando o ombro em uma tentativa de enterrar o
drow.
Drizzt bateu com o punho de sua arma na cabeça inclinada de
Roddy e lançou-se em um salto sobre as costas do homem da
montanha. O caçador de recompensas caiu com força, mas
rapidamente se ajoelhou, sacando e atirando uma adaga em Drizzt
assim que o drow se virou.
Drizzt viu o cintilar prateado no último instante e sacou uma
lâmina para desviar a arma. Outra adaga se seguiu, e depois outra,
e, a cada vez, Roddy avançava um passo em direção ao drow
distraído.
— To aprendendo seus truque, drow — disse Roddy com um
sorriso maligno. Dois passos rápidos o levaram até Drizzt e
Sangrador entrou em ação novamente.
Drizzt rolou lateralmente e se levantou a poucos metros de
distância. A contínua confiança de Roddy começou a incomodar
Drizzt; ele tinha atingido o caçador de recompensas com golpes que
teriam tombado a maioria dos homens, e agora se perguntava
quanto dano o humano robusto poderia suportar. Tal pensamento
levou Drizzt à conclusão inevitável de que deveria ter que começar a
bater em Roddy com mais do que os punhos de sua cimitarra.
Mais uma vez, Sangrador veio pelo lado. Desta vez, Drizzt não
esquivou. Ele entrou no arco da lâmina do machado e bloqueou com
uma arma, deixando Roddy aberto para um ataque com a outra
cimitarra. Três socos rápidos fecharam um dos olhos de Roddy, mas
o caçador de recompensas apenas sorriu e atacou, agarrando Drizzt
e jogando o combatente mais leve no chão.
Drizzt se contorceu e se deu um tapa, entendendo que sua
consciência o traíra. Em um combate tão perto, não conseguiria se
igualar à força de Roddy, e seus movimentos limitados destruíram
sua vantagem da velocidade. Roddy manteve sua posição no topo e
manobrou um braço para cortar com Sangrador.
Um ganido de seu cão amarelo foi o único aviso que recebeu, e
isso não se registrou o suficiente para evitar o ataque da pantera.
Guenhwyvar jogou Roddy para longe de Drizzt, lançando-o no chão.
O homem corpulento manteve sua consciência o suficiente para
atacar a pantera enquanto ela chegava, cortando Guenhwyvar no
flanco traseiro.
O cão teimoso entrou correndo, mas Guenhwyvar se recuperou,
girou ao redor de Roddy e o afastou.
Quando Roddy voltou para Drizzt, foi recebido por uma onda
selvagem de golpes de cimitarra que ele não conseguia
acompanhar e não conseguia contra-atacar. Drizzt tinha visto o
ataque à pantera e as chamas em seus olhos lavanda já não
indicavam nenhuma concessão. Uma empunhadura esmagou o
rosto de Roddy, seguido do lado chato da outra lâmina. Um pé
chutou seu estômago, seu peito e sua virilha no que parecia um
único movimento. Sem sentir nada, Roddy aceitou a tudo com um
grunhido, mas o drow enfurecido pressionou. Uma cimitarra pegou
novamente sob a cabeça do machado, e Roddy se moveu para
atacar, com a intenção de levar Drizzt ao chão mais uma vez.
A segunda arma de Drizzt atingiu primeiro, porém, fazendo um
corte no antebraço de Roddy. O caçador de recompensas recuou,
segurando seu membro ferido enquanto Sangrador caía no chão.
Drizzt sequer desacelerou. Sua velocidade pegou Roddy
desprevenido e vários chutes e socos deixaram o homem
cambaleante. Drizzt então saltou alto e chutou com os dois pés,
acertando o maxilar de Roddy e fazendo-o cair. Ainda assim, Roddy
se sacudiu e tentou se levantar, mas desta vez, o caçador de
recompensas sentiu as bordas de duas cimitarras descansando em
lados opostos da sua garganta.
— Eu disse para você ir embora — Drizzt disse sombriamente,
não movendo suas lâminas um centímetro, mas deixando Roddy
sentir o metal frio.
— Me mata — disse Roddy calmamente, sentindo uma fraqueza
em seu oponente — se tiver colhões pra isso!
Drizzt hesitou, mas sua carranca não se suavizou.
— Vá embora — disse ele com tanta calma quanto conseguiu,
calma que negava as provações que sabia que enfrentaria.
Roddy riu dele.
— Me mata, seu demônio de pele preta! — ele rugiu, oprimindo
até o fim, embora permanecesse de joelhos em frente a Drizzt. —
Me mata ou te pego! Não duvida, drow. Vou te caçar até os confins
do mundo e até embaixo, se precisar!
Drizzt empalideceu e olhou para Guenhwyvar em busca de apoio.
— Me mata! — Roddy gritou, à beira da histeria. Ele agarrou os
pulsos de Drizzt e puxou-os para a frente. Linhas de sangue
brilhante apareceram em ambos os lados do pescoço do homem. —
Me mata que nem cê matou meu cachorro!
Horrorizado, Drizzt tentou se afastar, mas o aperto de Roddy era
como ferro.
— Cê não tem colhões para isso? — o caçador de recompensas
berrou. — Então eu te ajudo! — ele empurrou os pulsos
bruscamente contra as espadas de Drizzt, cortando linhas mais
profundas e, se o homem enlouquecido sentiu dor, não mostrou
nada através de seu sorriso inflexível.
Ondas de emoções confusas assaltaram Drizzt. Queria matar
Roddy naquele momento, mais por frustração do que vingança, e
ainda assim sabia que não podia. Pelo que Drizzt sabia, o único
crime de Roddy era uma caçada injustificada contra ele, e isso não
era motivo o suficiente. Por tudo o que estimava, Drizzt tinha que
respeitar uma vida humana, até uma tão miserável quanto a de
Roddy McGristle.
— Me mata! — Roddy gritou repetidamente, tendo um prazer
lúgubre no crescente nojo do drow.
— Não! — Drizzt gritou no rosto de Roddy com força suficiente
para silenciar o caçador de recompensas. Enfurecido a ponto de
não conseguir conter seu tremor, Drizzt não esperou para ver se
Roddy retomaria seu grito insano. Ele chutou o joelho do homem
bruto, puxou os pulsos para longe do alcance de Roddy e depois
bateu as armas em simultâneo nas têmporas do caçador de
recompensas.
Os olhos de Roddy se cruzaram, mas ele não desmaiou,
afastando teimosamente o golpe. Drizzt bateu de novo e de novo,
finalmente o desmaiando, chocado com suas próprias ações e o
contínuo desafio do caçador de recompensas.
Quando a raiva esfriou, Drizzt ficou de pé sobre o homem
corpulento, tremendo e com lágrimas escorrendo de seus olhos de
lavanda.
— Leva esse cachorro pra longe! — ele gritou para Guenhwyvar.
Então, largou suas lâminas ensanguentadas em horror e se abaixou
para se certificar de que Roddy não estivesse morto.

Roddy acordou com seu cachorro amarelo em cima dele. A noite


caiu rapidamente e o vento castigava mais uma vez. Sua cabeça e
seu braço doíam, mas ele ignorou a dor, querendo apenas retomar
sua caçada, confiante agora de que Drizzt nunca teria forças para
matá-lo. Seu cão encontrou o cheiro, levando de volta ao sul, e
partiram. A coragem de Roddy se dissipou quando viraram ao redor
de um afloramento rochoso e encontraram um anão de barba
vermelha e uma garota esperando por ele.
— Você não tinha que tocar na minha menina — disse Bruenor.
— Ela tá aliada com o drow! — Roddy protestou. — Ela disse pro
demônio assassino que eu tava chegando!
— Drizzt não é um assassino! — Cattibrie gritou de volta. — Ele
nunca matou os fazendeiros! Ele disse que você só tá falando isso
pros outros te ajudarem a pegar ele!
Cattibrie percebeu de repente que acabara de admitir a seu pai
que tinha se encontrado com o drow. Quando Cattibrie encontrou
Bruenor, havia lhe dito apenas o que McGristle tinha feito.
— Você foi até ele — disse Bruenor, ferido. — Você mentiu para
mim, e foi até o drow! Eu disse pra não ir. Você disse que não ia...
O lamento de Bruenor feriu Cattibrie profundamente, mas ela se
agarrou às suas crenças. Bruenor a criou para ser honesta, mas
isso incluía ser honesta com o que sabia que estava certo.
— Uma vez você me disse que todos tem o que merecem —
Cattibrie respondeu. — Me disse que cada um é diferente e cada
um deve ser visto pelo que é. Eu vi Drizzt, e vi de verdade. Ele não
é assassino! E ele — apontou para McGristle — é um mentiroso!
Não me orgulho de minha própria mentira, mas não podia deixar
Drizzt ser pego por esse aí!
Bruenor refletiu sobre palavras por um momento, depois envolveu
um braço em sua cintura e a abraçou fortemente. A mentira de sua
filha ainda doía, mas o anão estava orgulhoso de que ela tivesse
defendido o que acreditava. Na verdade, Bruenor tinha saído não
para procurar por Cattibrie, que ele acreditava estar enfurecida nas
minas, mas para encontrar o drow. Quanto mais recontava sua luta
com o remorhaz, mais Bruenor ficava convencido de que Drizzt
tinha vindo para ajudá-lo, não para lutar contra ele. Agora, à luz dos
acontecimentos recentes, poucas dúvidas permaneciam.
— Drizzt veio e me soltou daquele lá — Cattibrie continuou. —
Ele me salvou.
— O drow confundiu ela — disse Roddy, sentindo a atitude
crescente de Bruenor e sem querer lutar contra o anão. — É um cão
assassino, eu digo, e Bartholemew Thistledown diria, se um morto
falasse.
— Bah! — Bruenor bufou. — Você não conhece minha menina ou
ia pensar duas vezes antes de chamá-la de mentirosa. E te falei
antes, McGristle, que não gosto quando minha filha fica assustada!
Acho que você tem que sair do meu vale. Acho que você tem que
sair agora.
Roddy rosnou, assim como o seu cão, que surgiu entre o homem
da montanha e o anão, e arreganhou os dentes para Bruenor, que
deu de ombros, sem se preocupar, e grunhiu de volta para o bicho,
provocando-o ainda mais.
O cachorro investiu no tornozelo do anão e Bruenor colocou
prontamente uma bota pesada em sua boca e prendeu a mandíbula
no chão.
— E leva seu cão fedido com você!
Bruenor rugiu, apesar de que, ao admirar o flanco carnudo do
cão, estava pensando novamente que poderia fazer um uso muito
melhor daquela fera grosseira.
—Eu vou pra onde quiser, anão! — Roddy retrucou. — Vou pegar
o drow, e se o drow tiver no seu vale, então eu fico!
Bruenor reconheceu a clara frustração na voz do homem, e então
viu melhor as contusões no rosto de Roddy e o corte no braço.
— O drow escapou de você — disse o anão, e sua risada feriu
profundamente a Roddy.
— Não por muito tempo — prometeu Roddy. — E nenhum anão
vai ficar no meu caminho!
— Volte para as minas — disse Bruenor a Cattibrie. — Diga aos
outros que posso me atrasar um pouco para o jantar. — o machado
desceu do ombro de Bruenor.
— Pega ele — murmurou Cattibrie, sem duvidar nem um pouco
da habilidade de seu pai.
Ela beijou Bruenor em cima de seu elmo, e correu alegremente.
Seu pai confiava nela; nada em todo o mundo poderia dar errado.

Roddy McGristle e seu cachorro de três pernas deixaram o vale


mais tarde. Roddy tinha visto uma fraqueza em Drizzt e pensou que
poderia contra o drow, mas não viu tais sinais em Bruenor Martelo-
de-Batalha. Quando Bruenor derrubara Roddy, algo que não
demorou muito, Roddy não duvidou por um segundo que, se tivesse
pedido ao anão para matá-lo, Bruenor teria feito isso com prazer.
Do topo da subida do sul, onde tinha ido para olhar pela última
vez para Dez-Burgos, Drizzt viu a carroça sair do vale, suspeitando
que era o caçador de recompensas. Não sabendo o que tudo
significava, mas certamente não acreditando que Roddy tivesse
mudado de ideia, Drizzt olhou para seus pertences empacotados e
se perguntou para onde poderia ir em seguida.
As luzes das cidades estavam aparecendo, e Drizzt as observou
sob um turbilhão de emoções. Ele esteve naquele ponto alto várias
vezes, encantado por seu entorno e acreditando que havia
encontrado seu lar. Quão diferente agora era essa visão! A aparição
de McGristle deu uma pausa a Drizzt e lembrou-lhe que sempre
seria um pária.
— Drizzit — ele murmurou para si mesmo, uma palavra realmente
condenatória. Naquele momento, Drizzt não acreditava que iria
encontrar uma casa, não acreditava que um drow que não tivesse o
coração de um drow teria algum lugar nos reinos. A esperança,
sempre fugaz no coração cansado de Drizzt, tinha sumido
completamente.
— Elevado de Bruenor, é como chamam esse lugar — disse uma
voz grosseira por trás de Drizzt. Ele girou, pensando em fugir, mas o
anão de barba vermelha estava perto demais para isso.
Guenhwyvar correu para o lado do drow, com os dentes à mostra.
— Afaste seu animal de estimação, elfo — disse Bruenor. — Se
um gato tem gosto tão ruim quanto um cachorro, não vou querer
nada disso!
— É meu lugar, isso aqui — o anão prosseguiu —, sendo eu
Bruenor e esse o Elevado de Bruenor!
— Não vi nenhum sinal de propriedade — respondeu Drizzt com
indignação, tendo sua paciência esgotada pela longa estrada que
agora parecia crescer mais. — Mas conheço sua reivindicação
agora, então vou sair. Fique tranquilo, anão. Não vou voltar.
Bruenor levantou a mão, tanto para silenciar o drow quanto para
impedi-lo de sair.
— É só uma pilha de pedras — disse, o mais perto de um pedido
de desculpas que Bruenor já tinha oferecido. — Eu o nomeei como
se fosse meu, mas isso faz alguma diferença? É só um monte de
pedra!
Drizzt inclinou a cabeça ante a divagação inesperada do anão.
— Nada é o que parece, drow! — Bruenor declarou. — Nada!
Você tenta seguir o que sabe, sabe? Mas então descobre que não
sabia o que achava que sabia! Achei que o cachorro tivesse um
gosto bom, mas agora a barriga está me amaldiçoando a cada
passo!
A segunda menção ao cão provocou uma repentina revelação
sobre a partida de Roddy McGristle.
— Você o mandou embora — disse Drizzt, apontando para a rota
do vale. — Você fez McGristle parar de me perseguir.
Bruenor quase não o ouviu, e certamente não teria admitido a boa
ação, de qualquer forma.
— Nunca confiei nos humanos — ele disse de forma uniforme. —
Nunca se sabe o que estão aprontando, e quando você descobre, já
é tarde demais pra consertar! Mas sempre tive meus pensamentos
sobre os outros povos. Um elfo é um elfo, afinal, e o mesmo vale
para um gnomo. E os orcs são todos burros e feios. Nunca encontrei
um diferente, e eu encontrei alguns! — Bruenor acariciou seu
machado, e Drizzt não deixou o significado passar batido.
— O mesmo vale pros drow — continuou Bruenor. — Nunca
conheci um — nunca quis. Por que ia querer? Eles têm coração
cruel, foi o que ouvi de meu pai, e do pai de meu pai — ele olhou
para as luzes de Termalaine em Maer Dualdon no oeste, sacudiu a
cabeça e chutou uma pedra. — Então ouço que tem um drow
perambulando pelo meu vale, e o que um rei pode fazer? Então
minha filha vai até ele! — uma chama surgiu nos olhos de Bruenor,
mas suavizou rapidamente, quase como se estivesse
envergonhado, assim que olhou para Drizzt. — Ela mentiu na minha
cara! Nunca fez isso antes e nunca mais fará, se for inteligente!
— Não foi culpa dela — começou Drizzt, mas Bruenor acenou
violentamente para descartar tudo aquilo.
— Achei que soubesse o que sabia — continuou Bruenor depois
de uma pausa, sua voz quase um lamento. — Achava que sabia
sobre o mundo. É fácil achar isso quando se está enfiado no próprio
buraco.
Ele olhou de volta para Drizzt, diretamente no brilho dos olhos cor
lavanda do drow.
— Elevado de Bruenor? — perguntou o anão com um dar de
ombros resignado. — O que isso significa, drow, colocar um nome
em uma pilha de pedras? Eu achei que sabia, e achei que um
cachorro tinha um gosto bom — Bruenor esfregou uma mão sobre a
barriga e franziu a testa. — Chame de uma pilha de pedras, se
quiser, e não sou mais dono delas do que você. Chame de Elevado
de Drizzt, e você estaria me despejando!
— Eu não faria isso — respondeu Drizzt calmamente. — Não sei
se poderia, mesmo que quisesse.
— Chame do que quiser — Bruenor gritou, de repente
angustiado. — E chame um cachorro de vaca, isso não muda o
gosto que vai ter! — Bruenor levantou as mãos, nervoso, e se virou,
pisando duro ao longo da trilha rochosa, resmungando a cada
passo.
— E você fica de olho na minha garota — Drizzt ouviu Bruenor
grunhir acima de seus resmungos padrão —, já que ela é tão
cabeça de orc que vai continuar indo pra essa montanha cheia de
vermes e yetis fedorentos! E fique sabendo que te considero... — o
resto se esvaneceu quando Bruenor desapareceu ao redor de uma
curva.
Drizzt não conseguia nem começar a organizar aquele diálogo
divagante, mas logo percebeu que não precisava colocar o discurso
de Bruenor em ordem. Ele deixou cair uma mão em Guenhwyvar,
esperando que a pantera compartilhasse a visão panorâmica, de
repente maravilhosa. Drizzt sabia então que iria sentar-se no
elevado, o Elevado de Bruenor, muitas vezes e ver as luzes se
acendendo, porque, somando tudo o que o anão havia dito, Drizzt
concluiu uma única frase. As palavras que Drizzt esperara tantos
anos para ouvir:
Bem-vindo ao lar.
Epílogo

DE TODAS AS RAÇAS nos reinos conhecidos, nenhuma é mais


confusa do que os humanos. Monshi me convenceu de que os
deuses, em vez de serem entidades externas, são personificações
do que está em nossos corações. Se isso é verdade, então, os
muitos e variados deuses das seitas humanas — deidades de
comportamentos muito diferentes — revelam muito sobre a raça.
Se você abordar um halfling, ou um elfo, ou um anão, ou qualquer
uma das outras raças, boas e ruins, terá uma ideia justa do que
esperar. Há, com certeza, exceções; com bastante fervor, eu estou
entre elas! Mas um anão provavelmente será grosseiro, embora
justo, e nunca encontrei um elfo, nem mesmo ouvi falar de um, que
preferia uma caverna ao céu aberto. A preferência de um humano,
porém, apenas ele pode saber — se é que ele próprio tenha como
saber.
Em termos de bem e mal, então, a raça humana deve ser julgada
com mais cuidado. Já lutei contra vis assassinos humanos,
testemunhei magos humanos tão apanhados em seu poder que
destruíram implacavelmente todos os outros seres em seu caminho,
e vi cidades onde grupos de seres humanos exploravam os infelizes
de sua própria raça, vivendo em palácios reais enquanto outros
homens e mulheres, e até mesmo crianças, morriam de fome e
morriam nos becos das ruas enlameadas. Mas conheci outros
humanos — Cattibrie, Monshi, Wulfgar, Agorwal de Termalaine —
cuja honra não pode ser questionada e cujas contribuições para o
bem dos reinos em seus curtos períodos de vida superam as da
maioria dos anões e elfos que possam viver meio milênio ou mais.
Eles são realmente uma raça confusa, e o destino do mundo está
cada vez mais em suas mãos sempre estendidas. Pode se provar
um equilíbrio delicado, mas certamente não é entediante. Os seres
humanos abrangem o espectro do caráter mais completamente do
que qualquer outro ser; eles são a única raça “boa” que guerreira
entre si — com uma frequência alarmante.
Os elfos da superfície mantém a esperança no final. Aqueles que
viveram por mais tempo e viram o nascimento de muitos séculos
acreditam que a raça humana amadurecerá para o bem, que o mal
nela diminuirá até chegar a nada, deixando o mundo para aqueles
que permanecerem.
Na cidade do meu nascimento, testemunhei as limitações do mal,
a autodestruição e a incapacidade de alcançar metas mais
elevadas, até mesmo metas baseadas na aquisição de poder. Por
tal razão, também tenho esperança nos humanos e nos Reinos.
Assim como são muito variados, os humanos também são os mais
maleáveis, os mais capazes de discordar com o que há dentro de si
mesmos que descobrem ser falso.
Minha própria sobrevivência baseou-se na minha crença de que
há uma finalidade maior para esta vida: tais princípios são uma
recompensa em si mesmos. Não posso, portanto, olhar para frente
com desespero, mas sim com esperanças maiores e com a
determinação de que poderei ajudar a alcançar essas alturas.
Esta é minha história, então, contada tão completamente quanto
posso me lembrar e tão completamente quanto escolhi divulgar.
Minha estrada foi longa, cheia de barreiras, e só agora, que coloquei
tanta coisa atrás de mim, sou capaz de contá-la de forma honesta.
Nunca vou olhar para trás, para aqueles dias, e rir; o preço era
alto demais para que eu encontrasse algum humor nisso. Porém,
muitas vezes me lembro de Zaknafein e Belwar e Monshi, e todos
os outros amigos que deixei para trás.
Muitas vezes me perguntei sobre os muitos inimigos que
enfrentei, sobre as muitas vidas que minhas lâminas arrancaram.
Tive uma vida violenta em um mundo violento, cheio de inimigos
para mim e para tudo o que valorizo. Fui elogiado pelo corte perfeito
de minhas cimitarras, pelas minhas habilidades na batalha, e devo
admitir que muitas vezes me permito sentir-me orgulhoso por essas
habilidades em que trabalhei tão duro.
Sempre que me retiro da empolgação e penso no conjunto maior,
porém, me pego lamentando pelas coisas não terem sido diferentes.
Me dói lembrar de Masoj Hun’ett, o único drow que já matei; foi ele
quem iniciou nossa batalha e ele certamente teria me matado se eu
não tivesse me provado mais forte. Posso justificar minhas ações
naquele dia, mas nunca ficarei confortável com o fato de ter tido a
necessidade delas. Deveria haver uma solução melhor do que a
espada.
Em um mundo tão repleto de perigo, onde orcs e trolls aparecem,
aparentemente, ao redor de cada curva da estrada, aquele que sabe
lutar é mais frequentemente saudado como um heroi e recebe o
aplauso generoso. Há mais no manto de “heroi”, digo eu, do que a
força do braço ou a habilidade em batalha. Monshi era um heroi de
verdade, porque superou a adversidade, porque nunca titubeava
mesmo diante de chances desfavoráveis, e principalmente porque
atuava dentro de um código de princípios claramente definidos.
Pode-se dizer menos sobre Belwar Dissengulp, o gnomo das
profundezas sem mãos que fez amizade com um drow renegado?
Ou de Estalo, que ofereceu sua própria vida em vez de trazer perigo
para seus amigos?
Da mesma forma, Wulfgar de Vale do Vento Gélido, um heroi, que
aderiu ao princípio acima da sede pela batalha. Wulfgar superou as
percepções erradas de sua infância selvagem, aprendeu a ver o
mundo como um lugar de esperança em vez de um campo de
conquistas potenciais. E Bruenor, o anão que ensinou a Wulfgar
essa diferença importante, é um dos reis mais justos de todos os
reinos. Ele incorpora os princípios que o seu povo tem mais em
conta, e eles vão defender alegremente Bruenor com suas próprias
vidas, cantando uma canção em seu nome, mesmo sob suas
respirações moribundas.
No fim, quando encontrou a força para renegar Matriarca Malícia,
meu pai também foi um heroi. Zaknafein, que perdeu sua batalha
por princípios e identidade durante a maior parte de sua vida,
venceu no final.
Nenhum desses guerreiros, no entanto, supera uma jovem que
conheci quando viajei por Dez-Burgos. De todas as pessoas que já
conheci, ninguém se manteve a padrões mais elevados de honra e
decência do que Cattibrie. Ela viu muitas batalhas, mas seus olhos
brilham claramente com inocência e seu sorriso brilha intocado.
Triste será o dia, e todo o mundo irá lamentar, quando um tom
discordante de cinismo estragar a harmonia de sua voz melodiosa.
Muitas vezes, aqueles que me chamam de heroi falam
unicamente da minha capacidade de batalha e não sabem nada dos
princípios que guiam minhas lâminas. Eu aceito o cumprimento, de
qualquer forma, para a satisfação deles, não para a minha. Quando
Cattibrie me chamar assim, então, permitirei que meu coração se
infle com a satisfação de saber que fui julgado pelo meu coração e
não pelo braço da minha espada; apenas então eu ousarei acreditar
que o manto é justificado.
E assim, minha história termina. Sento-me agora confortável ao
lado do meu amigo, o legítimo rei do Salão de Mithral, e tudo é
silencioso, pacífico e próspero. Finalmente, este drow encontrou sua
casa e seu lugar. Mas sou jovem, devo me lembrar. Talvez tenha
dez vezes mais anos do que aqueles que já se foram. E para minha
alegria, o mundo continua sendo um lugar perigoso, onde um ranger
deve manter seus princípios, mas também suas armas.
Ouso acreditar que minha história realmente acabou? Acho que
não.
— Drizzt Do’Urden
DRIZZT DO’URDEN VAI VOLTAR
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Table of Contents
Capa
Orelhas
Créditos
Dramatis personae
Prelúdio
Parte 1 — Aurora
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Parte 2 — A Ranger
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Parte 3 — Montólio
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Parte 4 — Deliberações
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Parte 5 — Refúgio
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Epílogo
Contracapa

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