03 - A Lenda de Drizzt - Refúgio - R. A. Salvatore
03 - A Lenda de Drizzt - Refúgio - R. A. Salvatore
03 - A Lenda de Drizzt - Refúgio - R. A. Salvatore
3 — Refúgio
©2004 Wizards of the Coast, LLC. Todos os direitos reservados.
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of Drizzt e seus respectivos logos são marcas registradas de Wizards of the Coast, LLC.
CRÉDITOS
Título Original: The Legend of Drizzt, Book 3: Sojourn
Tradução: Carine Ribeiro
Revisão: Rogerio Saladino e Rafael Dei Svaldi
Diagramação: Tiago H. Ribeiro
Ilustrações da Capa: Todd Lockwood
Ilustrações do Miolo: Dora Lauer e Walter Pax
Conversão para e-book: Vinicius Mendes
Editor-Chefe: Guilherme Dei Svaldi
Rua Coronel Genuíno, 209 • Porto Alegre, RS • CEP 90010-350 • Tel (51) 3391-0289 •
editora@jamboeditora.com.br • www.jamboeditora.com.br
Todos os direitos desta edição reservados à Jambô Editora. É proibida a reprodução total
ou parcial, por quaisquer meios existentes ou que venham a ser criados, sem autorização
prévia, por escrito, da editora.
1ª edição: agosto de 2018
Dramatis personae
Agorwal de Termalaine
Amigo de Drizzt.
Algazarra
Um urso marrom que mora perto do bosque de Montólio.
Bartholomew Thistledown
Pai dos irmãos Thistledown, Bartholomew viveu toda sua vida em
Maldobar.
Belwar Dissengulp
Um gnomo das profundezas que foi mutilado pelo irmão de Drizzt.
Benson Delmo
Prefeito de Maldobar.
Caroak
Um poderoso lobo invernal, veterano de mais de cem batalhas.
Cattibrie
Uma garota humana, filha adotiva de Bruenor.
Connor Thistledown
O mais velho dos irmãos Thistledown.
Calçalargas
Um gigante das colinas que serve a Ulgulu e Kempfana.
Columba Garra-de-Falcão
Uma das Sete Irmãs, Columba é uma ranger que já matou muitos
gigantes.
Darda
Um homem baixo e muito musculoso, com uma barba cerrada.
Dilamon
Uma ranger e antiga mentora de Montólio.
Dinin Do’Urden
Um dos irmãos de Drizzt.
Drizzt Do’Urden
Um elfo negro da cidade de Menzoberranzan, filho de Zaknafein e
da Matriarca Malícia Do’Urden.
Eleni Thistledown
Uma jovem que age como uma mãe para seus irmãos mais
novos.
Estalo
Um pech, amigo de Drizzt.
Flanny Thistledown
Irmã mais nova da família Thistledown.
Fredegar Esmaga-Pedra
O assistente anão de Columba Garra-de-Falcão.
Gabriel
Um guerreiro alto, de expressão severa, que viaja com Columba
Garra-de-Falcão.
Graul
O chefe orc da região do Estreito do Orc Morto.
Grudby, o Inepto
Um goblin que fingiu ser um arquimago.
Guenhwyvar
Uma estatueta mágica que pode se transformar em uma pantera.
Companheira leal de Drizzt.
Hephaestus
Um dragão vermelho venerável que vive nas cavernas perto de
Mirabar.
Irmão Jankin
Um dos Frades Penitentes.
Irmão Herschel
Outro Frade Penitente
Irmão Mateus
Líder dos Frades Penitentes.
Kellindil
Um arqueiro elfo que odeia os drow.
Kempfana
Irmão de Ulgulu, um filhote de barghest.
Lady Alustriel
Senhora de Lua Argêntea, uma das sete irmãs.
Liam Thistledown
Um menino obstinado de dez anos de idade e um notório
mentiroso.
Markhe Thistledown
Pai de Bartholemew Thistledown.
Masoj Hun’ett
Um drow que já foi dono de Guenhwyvar.
Matriarca Malícia
Mãe de Drizzt e a Matriarca da Casa Do’Urden.
Mergandevinasander de Chult
Um dragão negro.
Montólio DeBrouchee
Um cego recluso que ensinou a Drizzt os caminhos dos rangers.
Nalfein Do’Urden
Um dos irmãos de Drizzt.
Nathak
Um goblin.
Piante
Coruja que atua como batedora para Montólio.
Porta-Voz Cassius
Porta-voz de Bryn Shander e o Porta-Voz Principal do Conselho
Governante de Bez-Burgos.
Roddy McGristle
Um fazendeiro e caçador de recompensas.
Shawno Thistledown
O segundo irmão mais novo depois de Liam Thistledown.
Tephanis
Um célere que trabalha para Ulgulu e Kempfana.
Ulgulu
Uma terrível criatura da Gehenna que se alimenta da força vital
dos mortais.
Zaknafein
Pai, mentor e amigo mais querido de Drizzt.
Prelúdio
◆
Durante três dias, o drow se agachava nas sombras atrás da
fazenda, observando a família no trabalho e em suas brincadeiras. A
proximidade do grupo tornava-se cada vez mais evidente, e sempre
que uma verdadeira briga irrompia entre os filhos, o adulto mais
próximo rapidamente entrava e mediava o conflito até que
chegassem a algum nível de razoabilidade. Invariavelmente, os
combatentes voltavam a brincar juntos em um curto espaço de
tempo.
Todas as dúvidas haviam desaparecido de Drizzt.
— Temam minhas lâminas, malfeitores — ele sussurrou às
montanhas silenciosas uma noite.
O jovem drow renegado tinha decidido que, se algum gnoll ou
goblin — ou qualquer criatura de qualquer outra raça — tentasse
fazer mal a essa família de fazendeiros em particular, teriam antes
que lidar com as cimitarras dançantes de Drizzt Do’Urden.
Drizzt entendia o risco que estava assumindo ao observar a
família da fazenda. Se os fazendeiros o notassem — uma distinta
possibilidade —, entrariam em pânico. Mas, neste ponto de sua
vida, estava disposto a correr tal risco. Parte dele talvez até
quisesse ser descoberto.
No começo da manhã do quarto dia, antes que o sol tivesse
aparecido no céu a leste, Drizzt partiu em sua patrulha diária,
contornando as colinas e os bosques que cercavam a fazenda
solitária. Quando o drow voltou para sua tocaia, o dia do trabalho na
fazenda estava em pleno andamento. Drizzt sentou-se
confortavelmente em uma cama de musgo e espiou das sombras
para o brilho do dia sem nuvens.
Menos de uma hora depois, uma figura solitária se arrastou da
fazenda, na direção de Drizzt. Era o mais jovem dos filhos, o garoto
de cabelos cor de areia que parecia passar quase tanto tempo na
calha quanto fora dela, geralmente não por sua própria vontade.
Drizzt girou ao redor do tronco de uma árvore próxima, incerto da
intenção do rapaz. Logo percebeu que o jovem não o tinha visto,
porque o menino escorregou para dentro do matagal, depois bufou
por cima do ombro, de volta para a fazenda e se dirigiu para a
floresta montanhosa assobiando o tempo todo. Drizzt entendeu
então que o rapaz estava fugindo de suas tarefas, e Drizzt quase
aplaudiu a atitude despreocupada do menino. Apesar disso, Drizzt
não estava convencido da sabedoria da pequena criança em se
afastar de casa em terrenos tão perigosos. O menino não poderia
ter mais de dez anos de idade; parecia magro e delicado, com olhos
azuis e inocentes que espiavam por debaixo de seus cachos cor de
âmbar.
Drizzt esperou alguns instantes para permitir que o menino
assumisse a dianteira e para ver se alguém o estaria seguindo.
Então, seguiu a trilha, deixando que os assobios o guiassem.
O menino se afastou da casa da fazenda até as montanhas, e
Drizzt o seguiu a mais ou menos cem passos de distância,
determinado a manter o menino longe do perigo.
Nos túneis escuros do Subterrâneo, Drizzt poderia ter se
arrastado logo atrás do menino — ou atrás de um goblin, ou
praticamente qualquer outra coisa — e bater em seu ombro antes
de ser descoberto. Mas depois de apenas uma meia hora ou mais
dessa perseguição silenciosa, os movimentos e a mudança errática
de velocidade ao longo da trilha, juntamente com o fato dos
assobios terem cessado, disseram a Drizzt que o menino sabia que
estava sendo seguido.
Em dúvida se o menino tinha percebido alguma terceira pessoa,
Drizzt convocou Guenhwyvar da estatueta de ônix e enviou a
pantera à frente, caso precisassem flanquear alguém. Drizzt tornou
a caminhar em um ritmo cauteloso.
Um momento depois, quando a voz da criança gritou de medo, o
drow sacou suas cimitarras e desistiu de qualquer cautela. Drizzt
não conseguiu entender nenhuma das palavras do menino, mas o
tom desesperado já dizia o suficiente.
— Guenhwyvar! — o drow chamou, tentando trazer a pantera
distante de volta ao seu lado. Drizzt não podia parar e esperar pela
gata, então seguiu correndo o som.
A trilha seguia uma subida íngreme, saía das árvores de repente,
e terminava na borda de um grande desfiladeiro, de cerca de seis
metros de diâmetro. Um único tronco atravessava a fenda, e
pendurado nele, perto do outro lado, estava o menino. Seus olhos
se arregalaram consideravelmente à vista do elfo de pele de ébano,
com cimitarras nas mãos. Ele balbuciou algumas palavras que
Drizzt não conseguiu decifrar.
Uma onda de culpa inundou Drizzt à vista da criança em perigo; o
garoto só tinha ficado nesta situação por causa da perseguição de
Drizzt. O desfiladeiro era tão profundo quanto amplo, e a queda
terminava em rochas irregulares e arvores. A princípio, Drizzt
hesitou, pego de surpresa pelo encontro repentino e suas
implicações inevitáveis, então o drow rapidamente esqueceu seus
próprios problemas. Ele pôs suas cimitarras de volta em suas
bainhas e cruzou os braços sobre o peito no sinal dos drow para a
paz, então colocou um pé no tronco.
O menino tinha outras ideias. Assim que se recuperou do choque
de ver o elfo estranho, se sacudiu até uma borda no banco de pedra
em frente a Drizzt e empurrou o tronco de seu poleiro. Drizzt recuou
rapidamente do tronco no momento em que ele caiu na fenda. O
drow entendeu então que o menino nunca esteve em perigo real,
mas tinha fingido estar em perigo para tirar seu perseguidor de seu
esconderijo. E, Drizzt presumiu, se o perseguidor tivesse sido
alguém da família do menino, como ele sem dúvida havia
suspeitado, o perigo poderia ter desviado qualquer pensamento de
punição.
Agora era Drizzt quem estava em uma situação difícil. Ele havia
sido descoberto. Tentou pensar em uma maneira de se comunicar
com o menino, para explicar sua presença e impedir o pânico. O
garoto não esperou por nenhuma explicação. De olhos arregalados
e aterrorizados, ele escalou o banco — por um caminho que ele
obviamente conhecia bem — e se lançou para os arbustos.
Drizzt olhou em volta impotente.
— Espere! — ele gritou na língua drow, embora soubesse que o
menino não entenderia e não teria parado, ainda que entendesse.
Uma forma felina negra correu ao lado do drow e saltou no ar,
ultrapassando facilmente a fenda. Guenhwyvar aterrissou
suavemente do outro lado e desapareceu no mato.
— Guenhwyvar! — Drizzt gritou, tentando parar a pantera. Drizzt
não tinha ideia de como Guenhwyvar reagiria à criança. Pelo que
Drizzt sabia, a pantera havia encontrado apenas outro humano
antes, o mago que os companheiros de Drizzt mataram logo em
seguida. Drizzt olhou ao redor buscando um jeito de segui-la. Ele
poderia escalar a lateral do desfiladeiro, atravessar o fundo e subir
de volta, mas isso levaria muito tempo.
Drizzt correu de volta alguns passos, então investiu na direção do
desfiladeiro e saltou no ar, convocando seus poderes inatos de
levitação no meio do salto. Drizzt ficou realmente aliviado quando
sentiu seu corpo se livrar da gravidade do solo. Ele não havia usado
seu feitiço de levitação desde que chegara à superfície. O feitiço
não servia para um drow escondido sob o céu aberto.
Gradualmente, o impulso inicial de Drizzt levou-o perto do banco
distante. Ele começou a se concentrar em deslizar até a pedra, mas
o feitiço terminou abruptamente e Drizzt caiu diretamente no chão.
Ignorando as contusões no joelho e as perguntas de por que seu
feitiço tinha falhado, Drizzt saiu correndo, gritando
desesperadamente para que Guenhwyvar parasse.
Drizzt ficou aliviado quando encontrou a gata. Guenhwyvar estava
calmamente sentada em uma clareira, com uma pata casualmente
prendendo o menino deitado com o rosto contra o chão. A criança
estava gritando de novo — pedindo socorro, pelo que Drizzt
supunha —, mas parecia ileso.
— Venha, Guenhwyvar — Drizzt disse baixinho, calmamente. —
Deixe a criança em paz — Guenhwyvar bocejou preguiçosamente e
obedeceu, passeando pela clareira até ficar ao lado de seu mestre.
O menino continuou deitado por um longo momento. Então,
reunindo sua coragem, se moveu de repente, se levantando em um
salto e girando para enfrentar o elfo negro e a pantera. Seus olhos
pareciam ainda mais largos, quase uma caricatura de terror,
espreitando de seu rosto agora sujo.
— O que é você? — o menino perguntou na linguagem humana
comum. Drizzt estendeu seus braços para os lados para indicar que
ele não estava entendendo. Por impulso, cutucou um dedo em seu
peito e respondeu:
— Drizzt Do’Urden — notou que o menino estava se mexendo
sutilmente, deixando secretamente um pé cair atrás do outro e
deslizando o outro de volta ao lugar.
Drizzt não ficou surpreso — e assegurou-se de que Guenhwyvar
estivesse sob sua observação desta vez — quando o menino girou
nos calcanhares e correu, gritando:
— Socorro! É um drizzit! — a cada passo.
Drizzt olhou para Guenhwyvar e deu de ombros, e a gata parecia
dar de ombros de volta.
CAPÍTULO 3
Os Filhotes
NATHAK, UM GOBLIN MAGRICELA, ABRIU CAMINHO
lentamente sobre a inclinação íncreme e rochosa, com cada passo
medido pelo medo. O goblin precisava relatar suas descobertas —
cinco gnolls mortos não podiam ser ignorados —, mas a criatura
infeliz duvidava seriamente que Ulgulu ou Kempfana aceitassem a
notícia de boa vontade. Ainda assim, quais outras opções Nathak
tinha? Ele poderia correr, fugir pelo outro lado da montanha e sair
para os ermos. Parecia um curso ainda mais desesperado, no
entanto, uma vez que o goblin conhecia bem o gosto que Ulgulu
tinha pela vingança. O grande mestre de pele púrpura poderia
arrancar uma árvore do chão com as mãos nuas, arrancar punhados
de pedra da parede da caverna e facilmente arrancar a garganta de
um goblin desertor.
Cada passo trazia um tremor pelo corpo de Nathak enquanto o
goblin caminhava além do matagal que ocultava a pequena sala de
entrada do complexo de cavernas de seu mestre.
— Já passô da hora de voltá, mermão — um dos outros dois
goblins no quarto bufou. — Tu meteu o pé tem dois dia.
Nathak apenas assentiu e respirou fundo.
— Eaê? — o terceiro goblin perguntou. — Tu achou os gnoll? — o
rosto de Nathak empalideceu, e não havia respiração profunda que
poderia aliviar o aperto que veio sobre o peito do goblin.
— Ulgulu taí? — ele perguntou, reticente. Os dois guardas goblins
olharam curiosamente um para o outro, e depois de volta para
Nathak.
— Ele achô os gnoll — chutou um deles, adivinhando o problema.
— Gnoll morrero.
— Ulgulu vai ficá puto — o outro concluiu antes de se separar do
outro sentinela, um deles levantando a pesada cortina que separava
a sala de entrada da câmara de audiências.
Nathak hesitou e começou a olhar para trás, como se fosse
reconsiderar todo esse curso. Talvez a fuga fosse preferível, pensou
ele. Os guardas goblins agarraram seu companheiro magricela e o
empurraram para a câmara de audiências, cruzando suas lanças
atrás de Nathak para evitar qualquer recuo.
Nathak conseguiu encontrar algum resquício de compostura
quando viu que era Kempfana, não Ulgulu, quem estava sentado na
enorme cadeira do outro lado da sala. Kempfana havia ganhado
uma reputação entre as fileiras goblins como o mais calmo dos
irmãos governantes, embora Kempfana, também, houvesse
devorado impulsivamente o bastante de seus lacaios para ganhar
seu respeito saudável. Kempfana quase não notou a entrada do
goblin, mais preocupado em conversar com Calçalargas, o gigante
das colinas gordo que anteriormente reivindicava o complexo de
cavernas como seu.
Nathak tropeçou pela sala, atraindo os olhos tanto do gigante da
colina quanto do enorme — quase tão grande quanto o gigante —
goblinoide de pele escarlate.
— Sim, Nathak — induziu Kempfana, silenciando a reclamação
do gigante das colinas com a mão, antes mesmo que começasse a
ser pronunciada. — O que você tem a declarar?
— Eu . . . eu — Nathak gaguejou.
Os grandes olhos de Kempfana brilharam em uma luz laranja, um
claro sinal de empolgação perigosa.
— Eu encontrô os gnoll! — Nathak soltou de uma vez. — Tudo
morto. Morte matada. — Calçalargas emitiu um grunhido baixo e
ameaçador, mas Kempfana apertou o braço do gigante das colina
firmemente, lembrando-o de quem estava no comando.
— Mortos? — o goblinoide de pele escarlate perguntou
calmamente.
Nathak assentiu.
Kempfana lamentou a perda de escravos tão confiáveis, mas os
pensamentos do filhote de barghest estavam mais centrados na
reação inevitavelmente volátil de seu irmão às notícias. Kempfana
não teve que esperar muito tempo.
— Mortos! — surgiu um rugido que quase rachou a pedra. Todos
os três monstros na sala instintivamente abaixaram-se e viraram-se
para o lado, apenas a tempo de ver uma rocha enorme, a porta
grossa para outra sala, explodir e sair voando para o lado.
— Ulgulu! — Nathak gritou, e o pequeno goblin caiu de cara pro
chão, sem ousar olhar para ele.
A enorme criatura goblinoide de pele roxa invadiu a câmara de
audiências, com os olhos incandescentes em raiva alaranjada. Três
grandes passos levaram Ulgulu bem ao lado do gigante das colinas,
e Calçalargas de repente pareceu bem pequeno e vulnerável.
— Mortos! — Ulgulu rugiu de novo com raiva. Como sua tribo
goblin havia diminuído, morta pelos humanos da aldeia ou por
outros monstros — ou comida por Ulgulu durante seus ataques
habituais de raiva —, o pequeno bando de gnolls tornara-se a
principal força de captura para o covil.
Kempfana lançou um olhar furioso a seu irmão maior. Eles
haviam chegado ao plano material juntos, dois filhotes de barghest
lindos, para comer e crescer. Ulgulu reivindicara o domínio
imediatamente, devorando a mais forte de suas vítimas e, assim,
crescendo e ficando mais forte. Pela cor da pele de Ulgulu, e por
seu tamanho e força, era evidente que o filhote logo poderia retornar
às fendas fétidas do vale de Gehenna.
Kempfana esperava que este dia estivesse perto. Quando Ulgulu
se fosse, ele governaria; ele comeria e ficaria mais forte. Então,
Kempfana também poderia escapar de seu interminável período de
desmame neste plano amaldiçoado, poderia retornar para competir
entre os barghests em seu legítimo plano de existência.
— Morto — grunhiu Ulgulu de novo. — Levante-se, goblin infeliz,
e me diga como! O que fez isso com meus gnolls?
Nathak estremeceu por mais um minuto, e então conseguiu
levantar-se e ficar de joelhos.
— Eu não sabo — o goblin gemeu. — Gnoll matados, cortados e
rasgados.
Ulgulu apoiou-se nos calcanhares de seus pés molengas e
enormes. Os gnolls haviam saído para atacar uma fazenda, com
ordens para retornar com o fazendeiro e seu filho mais velho.
Aquelas duas refeições humanas robustas teriam reforçado o
grande barghest consideravelmente, talvez até levando Ulgulu ao
nível de maturação que precisava para retornar a Gehenna.
Agora, à luz do relatório de Nathak, Ulgulu teria que enviar
Calçalargas, ou talvez até ir ele mesmo, e a visão ou do gigante ou
da monstruosidade de pele púrpura poderia levar o assentamento
humano a uma ação organizada e perigosa.
— Tephanis! — Ulgulu rugiu de repente.
Em cima da parede mais distante, em frente a onde Ulgulu tinha
feito a sua entrada, uma pequena pedrinha desalojou-se e caiu. A
queda foi de apenas alguns metros, mas, quando a pedrinha atingiu
o chão, um sprite esbelto tinha deslizado para fora do pequeno
cubículo que usava como quarto, atravessado os seis metros da
sala de audiências e corrido até o lado de Ulgulu para sentar-se
confortavelmente no topo do imenso ombro do barghest.
—Você-me-chamou, sim-você-chamou, meu-mestre — Tephanis
zumbiu, rápido demais. Os outros nem sequer perceberam que o
sprite de meio metro de altura havia entrado na sala. Kempfana se
virou, sacudindo a cabeça em assombro.
Ulgulu rugiu uma gargalhada; ele adorava testemunhar o
espetáculo de Tephanis, seu servo mais valoroso. Tephanis era um
célere, um sprite diminuto, que se movia em uma dimensão que
transcendia o conceito normal de tempo. Possuindo energia
ilimitada e uma agilidade que humilharia o halfling ladino mais
proficiente, os céleres podiam realizar muitas tarefas que nenhuma
outra raça poderia sequer tentar. Ulgulu tinha feito amizade com
Tephanis no início de seu mandato no Plano Material — Tephanis
era o único membro dos diversos inquilinos do covil sobre o qual o
barghest não reivindicava soberania — e esse vínculo tinha dado ao
jovem filhote uma vantagem distinta sobre seu irmão. Com Tephanis
encontrando potenciais vítimas, Ulgulu sabia exatamente quais
devorar e quais deixar para Kempfana, e sabia exatamente como
vencer contra os aventureiros que fossem mais poderosos do que
ele.
— Caro Tephanis — Ulgulu ronronou com um som estranho e
áspero. — Nathak, o pobre Nathak — o goblin não deixou passar as
implicações dessa referência —, informou-me que meus gnoll
encontraram-se com um desastre.
— E-você-quer-que-eu-vá-ver-o-que-aconteceu-com-eles, meu-
mestre — Tephanis respondeu. Ulgulu levou um momento para
decifrar o fio de palavras quase ininteligível, então assentiu
ansiosamente.
— Agora-mesmo, meu-meste. Volto-já.
Ulgulu sentiu um ligeiro tremor em seu ombro, mas, quando ele,
ou qualquer um dos outros, percebeu o que Tephanis havia dito, a
cortina pesada que separava a câmara da sala de entrada estava
voltando à sua posição pendurada. Um dos goblins tocou a cabeça
por apenas um momento, para ver se Kempfana ou Ulgulu o havia
chamado, depois voltou para seu posto, crendo que o movimento da
cortina fosse algum truque do vento.
Ulgulu rugiu em uma risada novamente; Kempfana lançou-lhe um
olhar enojado. Kempfana odiava o sprite e o teria matado há muito
tempo, mas não podia ignorar os benefícios em potencial caso
Tephanis trabalhasse para ele no momento em que Ulgulu voltasse
a Gehenna.
Nathak deslizou um pé atrás do outro, na intenção de recuar
silenciosamente da sala. Ulgulu parou o goblin com um olhar.
— Seu relatório me serviu bem — começou o barghest.
Nathak relaxou, mas só pelo tempo que a mão de Ulgulu levou
para disparar, pegar o goblin pela garganta e levantar Nathak do
chão.
— Mas teria me servido melhor se você tivesse parado um minuto
para descobrir o que aconteceu com meus gnolls!
Nathak suou frio e quase desmaiou, e quando a metade de seu
corpo tinha sido enfiado na boca ansiosa de Ulgulu, o goblin de
braços magricelas desejou que tivesse desmaiado de fato.
◆
O fazendeiro havia cavalgado sem parar por mais de um dia; a
visão de um elfo negro muitas vezes causava esses efeitos em
aldeões simples. Ele levou dois cavalos de Maldobar; um que havia
deixado alguns quilômetros atrás, a meio caminho entre as duas
cidades — e se tivesse sorte, encontraria o animal intacto durante a
viagem de volta — e o segundo cavalo, o precioso garanhão do
fazendeiro, que estava começando a se cansar. Ainda assim, o
fazendeiro se curvou baixo na sela, fazendo sua montaria seguir em
frente. As tochas do relógio noturno de Sundabar, no alto das
grossas paredes de pedra da cidade, estavam à vista.
— Pare e diga seu nome! — veio o grito formal do capitão dos
guardas do portão quando o cavaleiro se aproximou, meia hora
depois.
◆
Meio flutuando e meio dançando no alto das pedras saltitantes,
Drizzt seguia deslizando. Viu um gigante emergir, tropeçando, do
tumulto, apenas para ser encontrado por Guenhwyvar. Ferido e
atordoado, o gigante caiu.
Drizzt não teve tempo para saborear o sucesso de seu plano
desesperado. O feitiço de levitação continuava de alguma forma,
mantendo-o leve o suficiente para que pudesse continuar surfando
pela avalanche. Mesmo acima do deslizamento principal, no
entanto, algumas pedras acertavam com força o drow e a poeira o
engasgava e feria seus olhos sensíveis. Quase cego, conseguiu
detectar um cume que poderia fornecer algum abrigo, mas a única
maneira de chegar lá seria cancelando seu feitiço de levitação e
escalando.
Outra pedra acertou Drizzt, quase girando-o no ar. Ele podia
sentir o feitiço falhar e sabia que tinha apenas uma chance.
Recuperou seu equilíbrio, dispersou seu feitiço e caiu no chão
correndo.
Ele rolou e se virou, correndo o mais rápido que pôde. Uma rocha
acertou o joelho da perna já ferida, forçando-o paralelamente ao
chão. Drizzt estava rodando de novo, tentando como podia chegar à
segurança do cume.
Seu impulso acabou muito cedo. Ele voltou a ficar de pé, na
intenção de se jogar na última distância, mas a perna de Drizzt não
teve forças e se dobrou naquele instante, deixando-o preso e
exposto.
Ele sentiu o impacto nas costas e achou que sua vida estava no
fim. Um momento depois, atordoado, Drizzt percebeu apenas que,
de alguma forma, estava atrás do cume e que fora enterrado por
alguma coisa, mas não com pedras ou terra.
Guenhwyvar estava em cima de seu mestre, protegendo Drizzt
até que a última das rochas saltitantes tivesse parado.
Uma patrulha orc viu o drow antes que chegasse a meio caminho
da parede do vale. Os orcs tinham visto o drow antes, em ocasiões
em que Drizzt estava pescando no rio. Por temer elfos negros, Graul
ordenou que seus lacaios mantivessem distância, imaginando que a
nevasca acabasse expulsando o intruso. Mas o inverno tinha
passado e o tal drow solitário tinha permanecido, e agora ele havia
atravessado o rio.
Graul torceu suas mãos de dedos grossos quando lhe deram a
notícia. O orc grande ficou um pouco aliviado pela crença de que o
drow estava sozinho e não era integrante de um grupo maior. Ele
poderia ser um batedor ou um renegado; Graul não podia saber com
certeza, e as implicações de ambas as possibilidades não
agradavam ao chefe dos orcs. Se o drow fosse um batedor, mais
elfos negros poderiam aparecer a seguir, e se o drow fosse um
renegado, poderia considerar os orcs como possíveis aliados.
Graul era o chefe por muitos anos, um mandato estranhamente
longo para os orcs caóticos. O grande orc tinha sobrevivido por não
se arriscar, e Graul não queria começar a se arriscar agora. Um elfo
negro poderia usurpar a liderança da tribo, uma posição que Graul
estimava muito. Isso, Graul não permitiria. Duas patrulhas orcs
saíram de buracos escuros logo depois, com ordens explícitas para
matar o drow.
◆
— Será-que-nunca-vai-acabar? — o sprite gemeu, observando o
humano corpulento passar ao longo da trilha. — Primeiro-o-drow-
chato-e-agora-esse-bruto. Será-que-nunca-vou-me-livrar-desses-
problemáticos? — Tephanis bateu sua cabeça e tamborilou com os
pés com tanta rapidez que cavou um pequeno buraco.
Na trilha, o cão amarelo grande e coberto de cicatrizes rosnou e
mostrou os dentes, e Tephanis, percebendo que sua reclamação
tinha sido muito alta, correu em um largo semicírculo, cruzando a
trilha muito atrás do viajante e subindo no outro flanco. O cão
amarelo, ainda olhando na direção oposta, inclinou a cabeça e ganiu
confuso.
CAPÍTULO 15
Uma Sombra Sobre o Santuário
DRIZZT E MONTÓLIO NÃO DISSERAM NADA sobre a história
do drow nos dias seguintes. Drizzt refletiu sobre suas lembranças
dolorosamente reavivadas, e Montólio, por sensibilidade, lhe deu
todo o tempo que precisava. Eles seguiram suas rotinas diárias
metodicamente, um pouco distantes e com menos entusiasmo, mas
a distância era uma coisa passageira, o que ambos perceberam.
Gradualmente, se reaproximaram, deixando Drizzt com a
esperança de ter encontrado um amigo tão verdadeiro quanto
Belwar ou mesmo Zaknafein. Uma manhã, porém, o drow foi
acordado por uma voz que reconhecia muito bem, e Drizzt supôs
imediatamente que seu tempo com Montólio tinha acabado.
Ele se arrastou até a parede de madeira que protegia sua toca e
escutou:
— Um elfo drow, Monshi — disse Roddy McGristle, segurando
uma cimitarra quebrada para que o velho ranger visse. O corpulento
homem da montanha, que parecia ainda maior sob a grossa
camada de peles que vestia, estava em cima de um cavalo
pequeno, mas musculoso, do lado de fora da parede de pedras ao
redor do bosque. — Cê viu ele?
— Ver? — Montólio ecoou sarcasticamente, dando uma piscadela
exagerada com seus olhos brancos leitosos. Roddy não achou
engraçado.
— Cê sabe do que eu tô falando! — ele rosnou. — Cê vê mais
que o resto de nós, então não se faz de besta!
O cachorro de Roddy, que ostentava uma cicatriz horrenda onde
Drizzt o atingira, percebeu um cheiro familiar e começou a farejar
com entusiasmo e a correr de um lado para o outro ao longo das
trilhas do bosque.
Drizzt agachou-se em prontidão, com uma cimitarra em uma mão
e um olhar de medo e confusão no rosto. Ele não tinha vontade de
lutar — não queria nem atacar o cachorro novamente.
— Traga seu cão de volta ao seu lado! — Montólio bufou.
A curiosidade de McGristle era óbvia.
— Cê viu o elfo negro, Monshi? — ele perguntou novamente,
desta vez com desconfiança.
— Pode ser que eu tenha visto — respondeu Montólio. Ele virou-
se e soltou um assobio agudo, mal audível. Imediatamente, o
cachorro de Roddy, ouvindo a clara ira do ranger em termos
inequívocos, colocou a cauda entre as pernas e recostou-se para
ficar ao lado do cavalo do mestre.
— Eu tenho uma ninhada de filhotes de raposa lá dentro — o
ranger mentiu com raiva. — Se o seu cão chegar até ela… —
Montólio deixou a ameaça em aberto, e aparentemente Roddy ficou
impressionado. Colocou um laço na cabeça do cão e puxou-o para o
seu lado.
— Um drow, deve ser o mesmo, veio aqui antes das primeiras
neves — prosseguiu Montólio.
— Você terá uma caçada difícil com aquele lá, caçador de
recompensas — ele riu. — Ele teve algum problema com Graul, pelo
que eu soube, então foi embora, voltou para sua casa escura, eu
acho. Você quer seguir o drow no Subterrâneo? Certamente sua
reputação cresceria, caçador de recompensas, embora sua própria
vida possa ser o preço!
Drizzt relaxou com as palavras; Montólio mentira por ele! Podia
ver que o ranger não gostava de McGristle, e tal fato, também,
trouxe conforto para Drizzt. Então, Roddy voltou com força,
colocando a história da tragédia em Maldobar de uma maneira
contundente e distorcida que colocou a amizade de Drizzt e
Montólio sob uma prova difícil.
— O drow matou os Thistledowns! — Roddy rugiu para o sorriso
presunçoso do ranger, que desapareceu em um piscar de olhos. —
Matou eles, e sua pantera comeu um deles. Cê conhecia
Bartholemew Thistledown, ranger. Que vergonha falar tão calmo do
seu assassino!
— O drow os matou? — perguntou Montólio sombriamente.
Roddy estendeu a cimitarra quebrada mais uma vez.
— Fatiou eles — ele resmungou. — Tem duas mil peças de ouro
pela cabeça dele; te dou quinhentas se cê conseguir descobrir
alguma coisa pra mim.
— Não preciso do seu ouro — respondeu Montólio rapidamente.
— Mas cê precisa ver o assassino preso? — Roddy rebateu —
Cê lamenta pelas mortes do clã Thistledown, uma família como
qualquer outra?
A pausa seguinte de Montólio levou Drizzt a acreditar que o
ranger poderia entregá-lo. Drizzt decidiu então que não iria correr,
qualquer que fosse a decisão de Montólio. Poderia negar a raiva do
caçador de recompensas, mas não a de Montólio. Se o ranger o
acusasse, Drizzt teria que enfrentá-lo e ser julgado.
— Um dia triste — murmurou Montólio. — Uma boa família, de
verdade. Pegue o drow, McGristle. Será a melhor recompensa que
você já ganhou.
— Onde começo? — Roddy perguntou calmamente,
aparentemente pensando que havia conquistado Montólio. Drizzt
também pensou, especialmente quando Montólio se virou e olhou
para o bosque.
— Você já ouviu falar da Caverna de Morueme? — Montólio
perguntou.
A expressão de Roddy desmontou visivelmente ao ouvir a
pergunta. A caverna de Morueme, à beira do grande deserto de
Anauroch, recebeu tal nome graças à família de dragões azuis que
morava lá.
— Duzentiquarenta quilômetro — McGristle rosnou. —
Atravessano as Terras Baixas. Um trecho difícil.
— O drow foi para lá, ou para perto de lá, no início do inverno —
mentiu Montólio.
— O drow foi até os dragão? — Roddy perguntou, surpreso.
— É mais provável que o drow tenha ido para algum outro buraco
naquela região — respondeu Montólio. — Os dragões de Morueme
provavelmente já devem saber sobre ele. Você deveria perguntar
por lá.
— Não gosto muito da ideia de barganhar com dragão — disse
Roddy sombriamente. — Arriscado demais, e até ir pra lá... Bom, é
caro!
— Então parece que Roddy McGristle perdeu sua primeira
captura — disse Montólio. — Mas foi uma boa tentativa, contra um
elfo negro.
Roddy puxou as rédeas de seu cavalo para dar meia volta.
— Melhor não contar comigo falhando, Monshi! — ele rugiu por
cima do ombro. — Eu não vou deixar esse aí escapar, nem que eu
tenha que revirar tudo quanto é buraco das Terras Baixas.
— Parece trabalho demais por duas mil peças de ouro —
observou Montólio, nada impressionado.
— O drow me tirou meu cachorro, minha orelha e me deu essa
cicatriz! — Roddy rebateu, apontando para seu rosto rasgado. O
caçador de recompensas percebeu o absurdo de suas ações —
claro, o ranger cego não poderia vê-lo — e girou de volta, fazendo
seu cavalo galopar para longe do bosque.
Montólio acenou enojado com uma mão às costas de McGristle,
depois se virou para encontrar o drow. Drizzt encontrou-o na borda
do bosque, quase não sabendo como agradecer a Montólio.
— Nunca gostei daquele lá — explicou Montólio.
— A família Thistledown foi assassinada — admitiu Drizzt sem
rodeios. Montólio assentiu. — Você sabia?
— Eu sabia antes de você chegar aqui — respondeu o ranger. —
Honestamente, no começo me perguntei se você tinha feito aquilo.
— Não fui eu — disse Drizzt. Novamente, Montólio assentiu.
Chegou a hora de Drizzt contar os detalhes de seus primeiros
meses na superfície. Toda a culpa voltou quando contou sua batalha
contra o grupo de gnolls, e toda a dor o atingiu em cheio, focada na
palavra “drizzit”, quando ele falou sobre os Thistledowns e sua
descoberta horrível. Montólio identificou o sprite rápido como sendo
um célere, mas teve muita dificuldade em explicar as criaturas
goblinoides gigantes e o lobo com o qual Drizzt lutara na caverna.
— Você fez certo matando os gnolls — disse Montólio quando
Drizzt terminou. — Liberte sua culpa por esse ato e deixe-o cair no
vazio.
— Como eu poderia saber? — Drizzt perguntou honestamente. —
Tudo o que aprendi foi em Menzoberranzan e ainda não aprendi a
separar a verdade das mentiras.
— Foi uma jornada confusa — disse Montólio, e seu sorriso
sincero aliviou consideravelmente a tensão. — Venha, e deixe-me
falar sobre as raças e por que suas cimitarras foram instrumentos da
justiça quando derrubaram os gnolls.
Como um ranger, Montólio dedicara sua vida à luta interminável
entre as raças boas — humanos, elfos, anões, gnomos e halflings
sendo as mais proeminentes — e os malignos goblinoides e
gigantes, que viviam apenas para destruir como uma desgraça para
os inocentes.
— Orcs são meus inimigos favoritos — explicou Montólio. —
Então agora me contento em ficar de olho — um olho de coruja, pra
ser mais preciso — em Graul e seus parentes malcheirosos.
Tudo então entrou em perspectiva para Drizzt. O conforto inundou
o drow, porque os instintos de Drizzt provaram ser corretos e agora
ele finalmente poderia ficar livre da culpa — por algum tempo, pelo
menos.
— E o caçador de recompensas e aqueles como ele? — Drizzt
perguntou. — Não parecem se encaixar tão bem nas suas
descrições das raças.
— Há bons e maus em todas as raças — explicou Montólio. — Eu
falei apenas sobre a conduta geral, e não duvide que a conduta
geral dos goblinoides e dos gigantes seja maligna!
— Como é possível saber? — pressionou Drizzt.
— Basta observar as crianças — respondeu Montólio. Ele
explicou as diferenças não tão sutis entre as crianças das raças
bondosas e as crianças das raças malignas. Drizzt o ouviu, mas
distante, sem precisar de esclarecimentos. Tudo sempre parecia
levar às crianças. Drizzt sentiu-se melhor em relação a suas ações
contra os gnolls quando viu as crianças Thistledowns brincando. E,
de volta a Menzoberranzan, o que parecia ter sido há apenas um dia
e há mil anos, ao mesmo tempo, o pai de Drizzt expressava crenças
semelhantes. “Será que todas as crianças drow são malignas?”
Zaknafein se perguntara, e em toda a sua vida enclausurada,
Zaknafein tinha sido assombrado pelos gritos de crianças
moribundas, drows nobres presos no fogo cruzado entre as famílias
em conflito.
Um momento longo e silencioso se seguiu quando Montólio
terminou, ambos os amigos aproveitando o tempo para digerir as
muitas revelações do dia. Montólio sabia que Drizzt estava
confortado quando o drow, de forma bastante inesperada, virou-se
para ele, sorriu amplamente, e desviou abruptamente do assunto
sombrio.
— Monshi? — Drizzt perguntou, lembrando o nome pelo qual
McGristle tinha chamado Montólio perto do muro de pedra.
— Montólio DeBrouchee — O velho ranger cacarejou, lançando
uma piscadela grotesca na direção de Drizzt. — Monshi, para meus
amigos e para aqueles como McGristle, que têm dificuldades em
falar palavras mais complexas que “cuspir”, “urso” ou “matar!”
— Monshi — Drizzt murmurou em voz baixa, se divertindo um
pouco às custas de Montólio.
— Você não tem tarefas para fazer, drizzit? — O velho ranger
bufou.
Drizzt assentiu com a cabeça e saiu, caminhando bem rápido.
Desta vez, o som de “drizzit” não doeu tanto.
◆
Nessa altura do combate, a única vantagem clara para os
defensores do bosque estava no matagal a norte, onde Algazarra e
três de seus mais próximos e maiores amigos ursos tinham
derrubado uma dezena de orcs e feito mais uns vinte fugirem
correndo às cegas. Um orc, fugindo de um urso, virou ao redor de
uma árvore e quase esbarrou em Algazarra. O orc ainda teve bom
senso o suficiente para empurrar a lança à frente, mas a criatura
não tinha a força necessária para conduzir a arma tosca através da
pele espessa de Algazarra, que respondeu com um golpe pesado
que lançou a cabeça do orc voando pelas árvores.
Outro grande urso passou por perto, com seus enormes braços
cruzados. A única pista de que o urso segurava um orc em seu
abraço esmagador eram os pés do orc, que pendiam e chutavam
descontroladamente abaixo do monte de pelos que o engolfavam.
Algazarra viu outro inimigo, menor e mais rápido que um orc. O
urso rugiu e atacou, mas a diminuta criatura já havia desaparecido
antes que chegasse perto.
Tephanis não tinha nenhuma intenção de se juntar à batalha. Ele
tinha vindo com o grupo ao norte principalmente para se manter fora
da visão de Graul, e tinha planejado o tempo todo permanecer nas
árvores e aguardar o fim da luta. As árvores já não pareciam mais
seguras, então o sprite correu, na intenção de adentrar o matagal a
sul.
No meio do caminho, os planos do sprite foram frustrados
novamente. Sua velocidade imensa quase o fez passar direto pela
armadilha antes que as mandíbulas de ferro se fechassem, mas os
dentes perversos pegaram seu pé. O tranco subsequente roubou
seu fôlego e o deixou atordoado, caído de bruços na grama.
Dois orcs e três worgs, tudo o que restava dos que carregavam
as tochas, reagruparam-se e foram silenciosamente em direção à
borda leste do bosque. Se pudessem chegar por trás do inimigo,
eles acreditavam que a batalha ainda poderia ser vencida.
O orc mais ao norte nunca viu a forma negra correndo.
Guenhwyvar o derrubou e continuou correndo, confiante de que
aquele nunca mais voltaria a se levantar.
Um worg era o próximo da fila. Mais rápido para reagir do que o
orc, o worg girou e encarou a pantera, com presas à mostra e
mandíbulas batendo.
Guenhwyvar rosnou, se abaixando logo diante dele. Suas garras
foram se alternando em uma série de bofetadas. O worg não
conseguiu igualar a velocidade da gata. Ele balançou as mandíbulas
de um lado para o outro, sempre um momento muito tarde para
apanhar as patas velozes. Depois de apenas cinco tapas, o worg foi
derrotado. Um olho tinha fechado para sempre, sua língua, meio
rasgada, se pendurava impotente de um lado de sua boca, e sua
mandíbula inferior já não estava alinhada com a superior. Apenas a
presença de outros alvos salvou o worg, porque quando ele se virou
e fugiu pelo mesmo caminho que tinha vindo, Guenhwyvar, vendo
presas mais próximas, não o seguiu.
Drizzt e Montólio haviam espantado a maior parte da força
invasora de volta ao muro de pedra. “Mágica ruim!” veio o grito geral
dos orcs, com as vozes marcadas pelo desespero. Piante e as
outras corujas ajudaram no frenesi crescente, se jogando de repente
nos rostos dos orcs, beliscando com uma garra ou bico, e voltando
novamente aos céus. Ainda assim, outro orc descobriu uma das
armadilhas enquanto tentava fugir. Ele caiu uivando e gritando, seus
gritos apenas aumentando o terror dos companheiros.
— Não! — Roddy McGristle gritou com descrença. — Você
deixou dois cara derrotar toda sua força!
O olhar de Graul se instalou no homem corpulento.
— Nós podemos fazer com que voltem — disse Roddy. — Se te
verem, vão voltar pra a luta.
A avaliação do homem da montanha não estava errada. Se Graul
e Roddy tivessem feito sua entrada, os orcs, então, ainda em mais
de cinquenta, poderiam se reagrupar. Com a maioria de suas
armadilhas utilizadas, Drizzt e Montólio ficariam em uma situação
bem desagradável! Mas o rei orc havia visto outro problema
surgindo a norte e havia decidido, apesar dos protestos de Roddy,
que o velho e o elfo negro simplesmente não valiam o esforço.
A maioria dos orcs no campo ouviu o perigo mais novo antes de
vê-lo, uma vez que Algazarra e seus amigos eram um grupo
barulhento. O maior obstáculo que os ursos encontraram à medida
que rolavam pelas fileiras dos orcs era apenas escolher um alvo no
meio daquela corrida enlouquecida. Os ursos golpeavam os orcs
enquanto passavam por eles, então os perseguiam no bosque e
além, até seus buracos na beira do rio. Era o meio da primavera; o
ar estava carregado de energia e animação, e como esses ursos
brincalhões adoravam bater em orcs!
— Por que você veio até mim? — Hephaestus rugiu com raiva.
Drizzt deslizou para trás sob a força, mas conseguiu manter seu
equilíbrio desta vez.
— Eu imploro, poderoso Hephaestus! — Drizzt clamou. — Eu não
tenho escolha. Eu viajei para Menzoberranzan, a cidade dos drow,
mas o feitiço desse mago era poderoso, me disseram, e não podiam
fazer nada para dissipá-lo. Então eu venho até você, grande e
poderoso Hephaestus, conhecido por suas habilidades em feitiços
de transmutação. Talvez um dos meus...
— Um dragão negro? — veio o rugido estrondoso, e desta vez,
Drizzt caiu. — Um dos seus?
— Não, não, um dragão — disse Drizzt rapidamente, retraindo o
aparente insulto e tornando a se levantar, visto que poderia ter que
sair correndo em breve. O grunhido contínuo de Hephaestus disse a
Drizzt que precisava de uma distração, e ele a encontrou atrás do
dragão, nas marcas profundas de queimado ao longo das paredes e
atrás de uma alcova retangular. Drizzt percebeu que era ali que
Hephaestus ganhava seu pagamento considerável derretendo
minérios. O drow não podia deixar de estremecer quando se
perguntou quantos comerciantes ou aventureiros infelizes
encontraram seu fim entre aquelas paredes destruídas.
— O que causou tal cataclisma? — Drizzt gritou com admiração.
Hephaestus não ousou se virar, suspeitando de traição. Um
momento depois, porém, o dragão percebeu o que o elfo negro tinha
notado e o rugido desapareceu.
— Que deus veio até você, poderoso Hephaestus, e o abençoou
com tal poder espetacular? Em nenhum lugar em todos os reinos há
pedra tão destruída! Não desde os incêndios que formaram o
mundo...
— Basta! — Hephaestus retumbou. — Você, que é tão estudado,
não conhece o sopro de um vermelho?
— Certamente, o fogo é o meio de um vermelho — respondeu
Drizzt, nunca tirando o olhar da alcova —, mas quão intensas as
chamas podem ser? Certamente não para causar tal devastação!
— Gostaria de ver? — veio a resposta do dragão em um silvo
sinistro e fumegante.
— Sim! — Drizzt gritou, então — Não! — disse, caindo em
posição fetal. Ele sabia que estava trilhando um caminho perigoso,
mas sabia que era uma aposta necessária. — Realmente eu
gostaria de testemunhar uma explosão tão grande, mas
verdadeiramente temo sentir o seu calor.
— Então assista, Mergandevinasander de Chult! — Hephaestus
rugiu. — Contemple um dragão melhor que você! — a ingestão
brusca da respiração do dragão puxou Drizzt dois passos para a
frente, levou o cabelo branco a seus olhos e quase arrancou sua
capa de suas costas. No montículo atrás dele, as moedas caíram
para a frente em uma corrida ruidosa.
Então o pescoço serpentino do dragão balançou em um longo
arco, colocando a grande cabeça vermelha alinhada com a alcova.
A explosão resultante roubou o ar da câmara; os pulmões de
Drizzt queimaram e seus olhos arderam, tanto por causa do calor
quanto do brilho. Ele continuou a olhar, no entanto, enquanto o fogo
do dragão consumia a alcova em uma explosão trovejante. Drizzt
observou, também, que Hephaestus fechava os olhos com força
quando soprava o fogo.
Quando a conflagração terminou, Hephaestus voltou triunfante.
Drizzt, ainda olhando a alcova, a rocha fundida escorrendo pelas
paredes e pingando do teto, não precisou fingir admiração.
— Pelos deuses!— o drow sussurrou. Ele conseguiu olhar para a
expressão presunçosa do dragão. — Pelos deuses — disse Drizzt
novamente. — Mergandevinasander de Chult, que se considerava
supremo, foi humilhado.
— E bem, ele deveria ser! — Hephaestus retumbou. — Nenhum
dragão negro se iguala a um vermelho! Saiba isso agora,
Mergandevinasander. É um fato que poderia salvar sua vida, se
alguma vez um vermelho chegar à sua porta!
— Certamente — Drizzt prontamente concordou. — Mas temo
que eu não tenha porta — mais uma vez, olhou para sua forma e
franziu o cenho de desdém. — Nenhuma porta além de uma na
cidade dos elfos negros!
— Esse é o seu destino, não o meu — disse Hephaestus. — Mas
eu tenho pena de você. Devo deixar você sair vivo, embora isso seja
mais do que você merece por perturbar meu sono!
Aquele era o momento crítico, Drizzt sabia. Ele poderia ter
aceitado a oferta de Hephaestus; naquele momento, não queria
nada além de sair dali. Mas seus princípios e a memória de Monshi
não o deixariam ir. “E quanto aos seus companheiros no túnel?” ele
lembrou. E as aventuras dos livros dos bardos?
— Devore-me, então — disse ao dragão, embora mal pudesse
acreditar nas palavras enquanto falava. — Eu, que conheci a glória
dracônica, não posso me contentar com a vida como um elfo negro.
A boca enorme de Hephaestus avançou.
— Ai de todos os dragões! — Drizzt lamentou. — Nossos
números sempre diminuem, enquanto os humanos se multiplicam
como parasitas. Ai dos tesouros dos dragões, roubados por magos
e paladinos! — o jeito que ele cuspiu na última palavra fez com que
Hephaestus desse uma pausa.
— E ai de Mergandevinasander — Drizzt continuou
dramaticamente —, por ser abatido assim por um mago humano
cujo poder ofusca até mesmo o de Hephaestus, o mais poderoso
dos dragões.
— Ofusca! — Hephaestus gritou, e toda a câmara tremeu sob o
poder daquele rugido.
— No que eu devo acreditar? — Drizzt gritou de volta, de forma
um pouco patética se comparada ao volume do dragão. —
Hephaestus se recusaria a ajudar um dos seus a caminho da
extinção? Não, nisso eu não acredito, nisso o mundo jamais deveria
acreditar! — Drizzt apontou um dedo para o teto acima dele,
pregando como se sua vida dependesse disso. Ele não precisava se
lembrar do preço do fracasso. — Eles dirão, todos de todos os
reinos, que Hephaestus não ousou tentar dissipar a magia do mago,
que o grande vermelho não ousou revelar sua fraqueza contra um
feitiço tão poderoso pelo medo de que sua fraqueza convidasse
aquele mesmo grupo do mago a vir para o norte para saquear outro
dragão!
— Ah! — Drizzt gritou, de olhos arregalados. — Mas essa
rendição de Hephaestus também não daria ao mago e seus amigos
ladrões desagradáveis a esperança de tal saque? E o que o dragão
possui mais para roubar do que Hephaestus, o vermelho da rica
Mirabar?
O dragão estava sem saber o que fazer. Hephaestus gostava de
seu modo de vida, dormindo em tesouros cada vez maiores de
comerciantes que pagavam bem. Ele não precisava do tipo de
aventureiros heroicos se metendo em seu covil! Era exatamente
com isso que Drizzt contava.
— Amanhã. — o dragão rugiu. — No dia de hoje eu contemplarei
o feitiço e amanhã Mergandevinasander voltará a ser um dragão
negro! Então ele deve partir, com a cauda em chamas, caso se
atreva a pronunciar mais uma palavra blasfema! Agora devo
descansar para lembrar o feitiço. Você não deve se mexer, dragão
de forma drow. Eu farejo onde você está e ouço melhor do que
qualquer um no mundo. Eu não durmo tão pesado quanto muitos
ladrões gostariam!
Drizzt não duvidava de uma única palavra, é claro, mas enquanto
as coisas tinham ido tão bem quanto esperava, ele estava
encrencado. Não podia esperar um dia para retomar sua conversa
com o vermelho, nem seus amigos. Como iria o orgulhoso
Hephaestus reagir, Drizzt se perguntou, quando o dragão tentasse
remover um feitiço que sequer existia? E o que, Drizzt perguntou a
si mesmo, à beira de entrar em pânico, ele faria se Hephaestus
realmente o transformasse em um dragão negro?
— Claro, o sopro de um negro tem vantagens sobre o de um
vermelho — Drizzt deixou escapar quando Hephaestus se afastou.
O vermelho se voltou para ele com velocidade e fúria
assustadoras.
— Você gostaria de sentir meu sopro? — Hephaestus rosnou. —
Como vai ficar sua ostentação então, eu me pergunto?
— Não, não é isso — respondeu Drizzt. — Não se ofenda,
poderoso Hephaestus. Realmente o espetáculo de seu fogo roubou
meu orgulho! Mas o sopro de um negro não pode ser subestimado.
Tem qualidades além mesmo do poder do fogo de um vermelho!
— Como assim?
— Ácido, oh, Hephaestus, o Incrível, Devorador de Dez Mil
Cabeças de Gado — respondeu Drizzt. — O ácido se gruda à
armadura de um cavaleiro, cava seu caminho em um tormento
duradouro.
— Como metal derretido? — Hephaestus perguntou
sarcasticamente. — Metal derretido pelo fogo de um vermelho?
— Acho que por mais tempo, temo eu — admitiu Drizzt,
abaixando o olhar. — O sopro de um vermelho vem em uma
explosão de destruição, mas o de um negro permanece, para o
desespero do inimigo.
— Uma explosão? — Hephaestus rosnou. — Por quanto tempo
seu sopro pode durar, verme miserável? Posso soprar por mais
tempo, tenho certeza!
— Mas... — Drizzt começou, indicando a alcova. Desta vez, a
ingestão repentina do dragão puxou Drizzt vários passos para a
frente e quase o tombou. O drow manteve o juízo suficiente para
gritar o sinal designado: “Fogo dos Nove Infernos!” quando
Hephaestus balançou a cabeça para trás, na direção da alcova.
— O sinal! — Mateus disse acima do tumulto. — Corram por suas
vidas! Corram!
— Nunca! — gritou o aterrorizado Irmão Herschel, e os outros,
com exceção de Jankin, não discordaram.
— Oh, sofrer tanto assim! — o fanático dos cabelos
desgrenhados lamentou, pisando fora do túnel.
— Temos que correr! Por nossas vidas! — Mateus lembrou-os,
pegando Jankin pelos cabelos para evitar que ele fosse para o lado
errado.
Eles lutaram na saída do túnel por vários segundos e os outros
frades, percebendo que talvez sua única esperança, em breve,
estaria diante deles, saíram correndo do túnel e todo o grupo caiu
pelo caminho inclinado da parede. Quando se recuperaram,
estavam com certeza encrencados, e dançaram sem rumo, sem ter
certeza se subiam para o túnel ou corriam para a saída. Sua luta
desesperada quase não avançou na inclinação, especialmente com
Mateus ainda tentando controlar Jankin, então a saída era o único
caminho. Tropeçando em si mesmos, os frades fugiram pela sala.
Mesmo seu terror não impediu que cada um deles, mesmo
Jankin, pegasse um punhado de ouro enquanto corriam.
O vento frio a leste enchia seus ouvidos com sua canção sem fim.
Drizzt tinha ouvido a cada segundo, já que tinha circulado a borda
ocidental da Espinha do Mundo e virado para o norte e para o leste,
no pedaço estéril de terra que recebeu seu nome em homenagem a
seu vento, Vale do Vento Gélido. Ele aceitou o gemido lúgubre e o
corte congelante do vento de bom grado, porque, para Drizzt, a
rajada de ar vinha como uma lufada de liberdade.
Outro símbolo dessa liberdade, a vista do amplo mar, veio quando
o drow circulou a cordilheira. Drizzt havia visitado o litoral uma vez,
em sua passagem para Luskan, e agora queria parar e percorrer os
poucos quilômetros que faltavam para a costa novamente. Mas o
vento frio o lembrou do inverno iminente, e ele entendeu a
dificuldade que teria para viajar pelo vale assim que a primeira neve
caísse.
Drizzt viu o Sepulcro de Kelvin, a montanha solitária na tundra ao
norte da grande cordilheira, no primeiro dia após ter entrado no vale.
Ele a seguiu ansioso, visualizando seu pico singular como o ponto
de marcação para a terra que chamaria de lar. Ele sentia uma
esperança hesitante sempre que se concentrava naquela montanha.
Ele passou por vários pequenos grupos, carroças solitárias ou um
punhado de homens a cavalo, enquanto se aproximava da região de
Dez-Burgos ao longo da rota da caravana, pela entrada sudoeste. O
sol estava baixo no oeste e fraco, e Drizzt manteve o capuz de sua
capa puxado para baixo, escondendo sua pele de ébano. Acenava
sutilmente com a cabeça quando cada viajante passava.
Três lagos dominavam a região, assim como o pico do rochoso
Sepulcro de Kelvin, que subia a trezentos metros da planície
quebrada e vivia coberta de neve mesmo durante o curto verão. Das
dez cidades que davam nome à região, apenas a principal, Bryn
Shander, se destacava dos lagos. Ela ficava acima da planície, em
uma pequena colina, sua bandeira chicoteando desafiadoramente
contra o vento feroz. A rota da caravana, a trilha de Drizzt, levava a
esta cidade, o principal mercado da região.
Drizzt podia notar pela crescente fumaça de fogueiras distantes
que várias outras comunidades estavam a poucos quilômetros da
cidade na colina. Ele considerou seu curso por um momento,
perguntando-se se deveria ir a uma dessas cidades menores e mais
isoladas em vez de continuar direto para a cidade principal.
— Não — disse o drow com firmeza, deixando cair a mão em sua
bolsa para sentir a estatueta de ônix. Drizzt incitou o cavalo para a
frente, subindo a colina até os portões proibidos da cidade forjada.
— Mercador? — perguntou um dos dois guardas que estavam
entediados diante do portão de ferro. — Você tá um pouco atrasado
pra negociar.
— Não sou um comerciante — respondeu Drizzt suavemente,
perdendo uma boa medida de sua coragem agora que a hora
derradeira havia chegado. Ele estendeu a mão lentamente para o
capuz, tentando manter sua mão trêmula em movimento.
— De que cidade, então? — perguntou o outro guarda. Drizzt
deixou cair a mão, sua coragem desviada pela pergunta
contundente.
— De Mirabar — ele respondeu honestamente, e antes que
pudesse parar e antes que os guardas fizessem outra pergunta que
o distraísse, ele estendeu a mão e puxou o capuz.
Quatro olhos se arregalaram e as mãos imediatamente foram
para as espadas embainhadas.
— Não! — Drizzt retrucou de repente. — Não, por favor. — um
cansaço se mostrou tanto em sua voz quanto em sua postura que
os guardas não conseguiram entender. Drizzt não tinha mais forças
para tais batalhas insensatas de mal-entendidos. Contra uma horda
de goblins ou um gigante invasor, as cimitarras do drow vinham
facilmente às suas mãos, mas contra alguém que apenas lutava
contra ele por causa de percepções errôneas, suas lâminas
pesavam muito.
— Eu vim de Mirabar — continuou Drizzt, sua voz ficando cada
vez mais firme a cada sílaba —até Dez-Burgos para viver em paz.
O drow manteve as mãos abertas, não oferecendo nenhuma
ameaça.
Os guardas mal sabiam como reagir. Nenhum deles havia visto
um elfo negro antes — embora soubessem sem dúvida que Drizzt
era um — ou sabia mais sobre a raça além das histórias à beira da
fogueira sobre uma antiga guerra que separou os povos élficos.
— Espere aqui — um dos guardas sussurrou para o outro, que
não parecia apreciar a ordem. — Vou informar o porta-voz Cassius.
O guarda bateu no portão de ferro e deslizou para dentro assim
que estava aberto o suficiente para deixá-lo passar. O guarda
restante observava Drizzt sem piscar, sua mão nunca deixando o
punho da espada.
— Se você me matar, uma centena de bestas irá derrubá-lo — ele
declarou, tentando, mas falhando em soar confiante.
— Por que eu faria isto? — Drizzt perguntou inocentemente,
mantendo suas mãos estendidas e sua postura não ameaçadora. O
encontro fora bem até agora, ele acreditava. Em todas as outras
aldeias das quais se atreveu a se aproximar, os primeiros que o
viam ou fugiam em terror ou o perseguiam com as armas à mostra.
O outro guarda retornou pouco tempo depois com um homem
pequeno e delgado, barbeado e com olhos azuis brilhantes que o
analisavam continuamente, observando cada detalhe. Ele usava
roupas de alta qualidade, e, pelo respeito que os dois guardas
mostraram a ele, Drizzt soube imediatamente que era alguém de
hierarquia alta.
Ele estudou Drizzt por um longo tempo, analisando cada
movimento e cada característica.
— Eu sou Cassius — disse ele após uma longa pausa —, Porta-
voz de Bryn Shander e Porta-Voz Principal do Conselho Governante
de Dez-Burgos.
Drizzt mergulhou em uma pequena reverência.
— Eu sou Drizzt Do’Urden — disse ele —, de Mirabar e além,
agora vindo para Dez-Burgos.
— Por quê? — Cassius perguntou bruscamente, tentando pegá-lo
desprevenido. Drizzt deu de ombros.
— É preciso um motivo?
— Para um elfo negro, talvez — Cassius respondeu
honestamente.
O sorriso de aceitação de Drizzt desarmou o porta-voz e acalmou
os dois guardas, que agora estavam parados de forma protetora ao
lado dele.
— Não posso oferecer nenhuma razão para vir, além do meu
desejo de vir — continuou Drizzt. — A minha estrada foi longa,
porta-voz Cassius. Estou cansado e preciso descansar. Dez-Burgos
é o lugar dos renegados, pelo que me disseram, e não duvido que
um elfo negro seja um renegado entre os moradores da superfície.
Parecia lógico o suficiente, e a sinceridade de Drizzt se mostrou
claramente para o porta-voz observador. Cassius apoiou o queixo
na palma da mão e pensou por um longo tempo. Ele não temia o
drow, nem duvidava das palavras do elfo, mas não tinha intenção de
permitir a agitação que um drow causaria em sua cidade.
— Bryn Shander não é o seu lugar — Cassius disse sem rodeios,
e os olhos cor de lavanda de Drizzt se estreitaram com a
proclamação injusta. Sem se deixar intimidar, Cassius apontou para
o norte. — Vá para Bosque Solitário, na floresta às margens a norte
de Maer Dualdon — sugeriu. Ele moveu o olhar para o sudeste. —
Ou para Bom-Prado ou Toca de Dougan no lago do sul, Águas
Rubras. Estas são cidades menores, onde você causará menos
agitação e encontrará menos problemas.
— E quando eles recusarem minha entrada? — Drizzt perguntou.
— Onde então, bom porta-voz? Para o lado de fora, no vento, para
morrer na planície vazia?
— Você não tem como saber...
— Eu sei — interrompeu Drizzt. — Passei por isso muitas vezes.
Quem receberá um drow, mesmo aquele que abandonou o seu povo
e seus caminhos e que não deseja nada além de paz? — A voz de
Drizzt era severa e não mostrava autocompaixão, e Cassius
novamente entendeu que as palavras eram verdadeiras.
Cassius realmente sentiu empatia. Ele próprio tinha sido um
renegado uma vez e tinha sido forçado até os confins do mundo,
indo em vão para o Vale do Vento Gélido, para encontrar um lar.
Não havia mais lugares além disso; Vale do Vento Gélido era última
parada de um renegado. Outro pensamento veio então a Cassius,
uma possível solução para o dilema que não irritaria sua
consciência.
— Por quanto tempo você viveu na superfície? — Cassius
perguntou, sinceramente interessado.
Drizzt parou para pensar na pergunta por um momento, se
perguntando onde o porta-voz queria chegar.
— Sete anos — respondeu.
— No norte?
— Sim.
— No entanto, você não encontrou nenhum lar, nenhuma aldeia
para acolhê-lo — disse Cassius. — Você sobreviveu a invernos
hostis e, sem dúvida, a inimigos mais diretos. Você é habilidoso com
essas lâminas no seu cinto?
— Sou um ranger — disse Drizzt uniformemente.
— Uma profissão incomum para um drow — observou Cassius.
— Eu sou um ranger — disse Drizzt novamente, com mais força
— bem treinado nos caminhos da natureza e no uso de minhas
armas.
— Não duvido — refletiu Cassius. Ele fez uma pausa e disse —
Existe um lugar que oferece abrigo e isolamento — o porta-voz
levou o olhar de Drizzt para o norte, até as encostas rochosas de
Sepulcro de Kelvin. — Além do vale anão está a montanha —
Cassius explicou —, e além disso, a tundra aberta. Seria bom para
Dez-Burgos ter um batedor nas encostas ao norte da montanha. O
perigo sempre parece vir dessa direção.
— Eu vim encontrar um lar — interrompeu Drizzt. — Você me
oferece um buraco em uma pilha de pedras e um dever para com
quem eu não devo nada — na verdade, a sugestão apelava ao
espírito ranger de Drizzt.
— Você quer que eu diga que as coisas são diferentes? —
Cassius respondeu. — Não deixarei um drow errante entrar em Bryn
Shander.
— Um homem teria que se provar digno?
— Um homem não teria uma reputação tão sombria — respondeu
Cassius de forma uniforme, sem hesitação. — Se eu fosse tão
magnânimo, se te acolhesse com base apenas em suas palavras e
abrisse meus portões para você, você encontraria seu lar? Nós dois
sabemos que não, drow. Nem todos em Bryn Shander têm um
coração tão aberto, eu prometo. Você causaria um alvoroço onde
quer que fosse e independentemente de sua intenção, seria forçado
a entrar em batalhas.
— Seria o mesmo em qualquer uma das cidades — Cassius
prosseguiu, adivinhando que suas palavras tinham atingido um
acorde de verdade no coração do drow expatriado. — Eu lhe
ofereço um buraco em uma pilha de rocha, dentro das fronteiras de
Dez-Burgos, onde suas ações, boas ou más, forjarão sua reputação
além da cor da sua pele. A minha oferta parece tão fútil agora?
— Preciso de suprimentos — disse Drizzt, aceitando a verdade
nas palavras de Cassius. — E quanto ao meu cavalo? Não acho
que as encostas de uma montanha sejam um lugar apropriado para
uma criatura tão grande.
— Troque seu cavalo então — Cassius sugeriu. — Meu guarda
receberá um preço justo e retornará aqui com os suprimentos de
que você precisará.
Drizzt pensou na sugestão por um momento, depois entregou as
rédeas para Cassius.
O porta-voz saiu então, se achando bem esperto. Não só evitou
qualquer problema imediato, como convenceu Drizzt a proteger
suas fronteiras, tudo em um lugar onde Bruenor Martelo-de-Batalha
e seu clã de anões soturnos certamente poderiam impedir o drow de
causar algum problema.
Na mesma noite, a estação veio com toda sua força. O vento frio
do leste que soprava da Geleira Reghed empurrava a neve em
sopros fortes e impenetráveis.
Cattibrie observou a neve desesperadamente, temendo que
muitas semanas pudessem se passar antes que ela pudesse voltar
para o Sepulcro de Kelvin. Não contou a Bruenor ou a nenhum dos
outros anões sobre o drow, por medo de ser punida e de que
Bruenor afastasse o drow. Olhando para a neve, Cattibrie desejava
ter sido mais corajosa, ter permanecido e conversado com o elfo
estranho. Cada uivo do vento aumentou esse desejo e fez a garota
se perguntar se tinha perdido sua única chance.