Estudos de Politica Externa
Estudos de Politica Externa
Estudos de Politica Externa
É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
LEMOS MÍDIA
Editora
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Organizadoras
Miriam Gomes Saraiva
Lorena Granja Hernández
LEMOS MÍDIA
Editora
Belo Horizonte
2023
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
LEMOS MÍDIA
Belo Horizonte - MG
CONSELHO EDITORIAL
Bárbara Gonçalves Mendes (UFMG)
Lucas Faial Soneghet (UFF)
Denise Lopes Salles (UCP)
Marco Aurélio Máximo Prado (UFMG)
Fernanda Nanci Gonçalves (Unilasalle-RJ)
Patricia Nasser de Carvalho (UFMG)
Guilherme Moreira Dias (ECEME)
Rafael Pinheiro de Araújo (UERJ)
Júlia Silva Vidal (UnB)
Rafaela Vasconcelos Freitas (UFRGS)
Leticia Simões (Unilasalle-RJ)
1ª edição – 2023
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-84991-06-4
CDD-320.98
23-143924 -327.81
Índices para catálogo sistemático:
Lista de Ilustrações
Prefácio
Agradecimentos
Apresentação
Capítulo 5: Populismo, discurso e política externa: uma análise do caso brasileiro durante a
gestão Bolsonaro-Araújo
Lucca Giannini Palermo Moreno Belfi e Beatriz Bandeira de Mello
Capítulo 8: O Vivir Bien enquanto plataforma política do governo MAS na agenda externa
de meio ambiente
Ana Lúcia de Lacerda Gonçalves
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Capítulo 9: O lugar da integração regional para o chavismo: operacionalização das ideias de
Simón Bolívar
Stéphanie Braun Clemente
Sobre os autores
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Tabela 2.1 — Comparativa das políticas externas de Argentina e Brasil durante o primeiro governo
civil pós-ditadura
Quadro 3.3 — Preferência dos Parlamentares dos Países do Mercosul pelo Tipo de Integração a ser
adotada
Gráfico 3.1 — Atribuições positivas e negativas nos discursos parlamentares por número de
referenciação
Gráfico 3.2 — Hierarquia de codificação das atribuições negativas por número de referências
Gráfico 3.3 — Hierarquia de codificação das atribuições positivas por número de referências
Figura 3.1/3.2 — Nuvens de palavras derivadas nas codificações de atribuições negativa (esquerda)
e positiva (direita)
Tabela 4.2 — Comércio bilateral do Brasil com a Argentina: da crise de 1999 até 2002
Gráfico 8.1 — Principais termos utilizados por Evo Morales nas COPs durante seus mandatos
PREFÁCIO
Sempre foi e sempre será fundamental pensar no Brasil e sua relação com a América do Sul,
a região da qual faz parte, e que tem influência direta na história e nas relações internacionais
do país. Esse livro direciona-se a essa conexão, com o foco na área de Política Externa. Mas, em
termos gerais, como o Brasil se coloca frente à região?
No período após as independências dos países sul-americanos, se por um lado o império
brasileiro buscava se aproximar de monarquias europeias, apresentando-se como Estado moderno,
por outro lado, interagia em suas fronteiras do Cone Sul através do apoio militar a líderes políticos
mais próximos ao Brasil. O Brasil imperial e monárquico diferenciava-se das repúblicas vizinhas
fragmentadas, como uma nação que se via como singular rodeada por rivais. Conexões políticas
com grupos aliados das Províncias Argentinas e do Uruguai foram uma marca da primeira metade
do século. O Brasil tinha o benefício de se consolidar como Estado nacional mais cedo que os
vizinhos. A sua participação na Guerra do Paraguai, em aliança com Argentina e Uruguai, trouxe
um novo cenário. Apesar de consolidar a posição do exército brasileiro como fator de influência,
a política externa brasileira foi marcada por iniciativas de projeção internacional do país e pela
construção progressiva de um país sem mais guerras. As relações com a República Argentina foram
sendo estruturadas nos padrões da cordialidade oficial.
Durante o período imperial o contato brasileiro com os países ao norte e a oeste foi reduzido.
O bolivarismo, que propunha a formação de uma confederação interamericana de Estados, foi
um fenômeno importante dos países nessa região, mas que não teve impacto relevante no Brasil,
cujo Estado não fez parte da iniciativa e nem esteve presente em seus congressos.
A mudança no perfil político brasileiro teve impactos sobre a política externa do país; ao
decretar a República, o Brasil passou a identificar-se como parte da América Latina e buscar
estreitar relações com as demais repúblicas do continente, enquanto a proximidade com a Europa
foi substituída pelo americanismo. Os países vizinhos ganharam destaque, mas nos marcos de
um projeto maior, que incluía às três Américas. As questões ainda pendentes de fronteiras foram
resolvidas, e o Acre foi adicionado ao território brasileiro através de negociações, tirando o tema
da agenda da política externa.
Durante a República Velha, o Brasil priorizava a manutenção das boas relações com os
Estados Unidos e descartava um pensamento alternativo ao americanismo. O Barão do Rio Branco
via os objetivos de política externa como expressão de “interesses nacionais”, entendidos, dentre
outros, como a supremacia brasileira na América do Sul e a ampliação do prestígio internacional
do país. A América do Sul compunha o panamericanismo, no qual o Brasil buscava uma posição
de destaque.
A década de 1930 foi marcada internacionalmente pela competição entre o liberalismo e
o nazismo — que buscavam estender e/ou consolidar suas respectivas áreas de influência na
América do Sul —, que acabaria por proporcionar maior autonomia para os países da região.
A crise da Grande Depressão afetou conjuntamente os países sul-americanos. No Brasil, o
novo equilíbrio de forças políticas que apoiou Getúlio Vargas, possibilitou a implementação da
industrialização por substituição de importações, suplantando o caráter estrito de país agrário-
exportador. A trajetória das reuniões interamericanas nos anos de 1930 até a Segunda Guerra
Mundial foi um espaço importante de interação diplomática entre os países sul-americanos.
Em 1933, foi assinado o Tratado Antibélico de Não-Agressão e de Conciliação, junto com a
Argentina, o Uruguai, o Paraguai e o México, confirmando o caráter pacifista da região. O Brasil
foi o único país a enviar soldados para a Segunda Guerra Mundial, embora a maioria deles tenha
feito declaração de guerra.
11
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Em um cenário de Guerra Fria, para a América do Sul, foram reforçados os vínculos dos
países ao princípio da solidariedade continental, momento este em que foi assinado o Tratado
de Assistência Recíproca e criada a Organização dos Estados Americanos. Em contraste,
o comportamento dos Estados Unidos com América Latina no campo econômico foi de
distanciamento. Enquanto se criava uma identidade importante em torno da CEPAL, os países
começaram a enxergar-se coletivamente como parte da periferia do capitalismo internacional e,
com maior ou menor intensidade, buscaram seguir os preceitos do desenvolvimentismo. Porém,
o Brasil, como exceção, insistia em seguir o panamericanismo e relutava em adotar qualquer
iniciativa que pudesse dividir o hemisfério.
O desenvolvimentismo de Juscelino Kubistchek, apesar de seu caráter nacional, abriu as
portas para construir uma complementariedade parcial entre o Brasil e os países vizinhos. Os
debates sobre política externa tiveram lugar, contrapondo a visão do panamericanismo à visão
neutralista, vinculada à ascensão do Terceiro Mundo. Nos anos 1960, esta visão se consolidou no
Brasil como paradigma globalista, enquanto na América Latina era criada a Associação Latino-
Americana de Livre Comércio. Embora tenha tido muitas limitações, foi a primeira iniciativa
relevante por fora do arco do panamericanismo.
A Política Externa Independente propôs uma aproximação do Brasil com os países
vizinhos. Apesar de tratar-se de uma política em que a questão Norte/Sul tinha mais peso e a
aproximação com países do Sul era bem vista, esta não se traduziu em uma iniciativa regional
formal. O interesse brasileiro foi o desenvolvimento econômico, nacional e autônomo, baseado
no desenvolvimentismo, em que a América do Sul tinha um papel instrumental.
O golpe de estado de 1964 e a instauração de um governo militar levou ao afastamento
da região, deslocando o foco das relações do Brasil com os vizinhos para as relações bilaterais.
A América do Sul envolvia interesses muito variados no espectro de atores brasileiros,
incluindo os militares, que temiam a expansão do modelo cubano no continente. A articulação
das forças armadas brasileiras com contrapartes vizinhas toma corpo anos depois. Nos anos
1970 o crescimento acelerado da indústria brasileira teve impacto na região, implicando em
um processo de incorporação do arco das relações externas do país como complementos do
desenvolvimento nacional. A preferência clara por relações bilaterais com os vizinhos foi a
tônica da centralidade que o Brasil buscava na região. A ALALC foi imobilizada por divergências
internas e empacou quando chegou a vez de reduzir tarifas de produtos industrializados. Em
1966, Brasil e Paraguai davam o primeiro passo para a construção da Usina de Itaipu. Em
1973, foi assinado o Tratado de Itaipu criando a usina. As divergências entre Brasil e Argentina
cresceram.
A ideia de Brasil Potência instalou-se no imaginário dos governantes brasileiros: a Argentina
não se colocava mais como rival à altura, o governo brasileiro apoiou um golpe de estado na
Bolívia, além de assinar diversos acordos envolvendo o fornecimento do gás natural boliviano, e
também apoiou o golpe militar no Chile. De forma complementar, participou de uma iniciativa
regional na área de segurança com vistas a perseguir opositores: a Operação Condor.
A política externa do governo de Ernesto Geisel significou uma mudança de prioridades e
ações concretas e apresentou-se como política “sem fronteiras ideológicas”. O Brasil reconheceu
o governo socialista de Angola e estabeleceu relações com a República Popular da China. Para
a América do Sul, porém, o conteúdo ideológico foi mantido articulado com o pensamento
geopolítico que, não fosse o único, teve um peso grande no comportamento para a região.
No Pragmatismo Responsável, o caminho do desenvolvimento foi buscado sobretudo em
Prefácio
relações com países de outros continentes. O Acordo Nuclear com a Alemanha contribuiu para o
desenvolvimento da amizade entre Brasil e Argentina, uma vez que a Argentina sofreu as mesmas
pressões por parte dos Estados Unidos por também ter um projeto nuclear autônomo. No final
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
de seu governo, Ernesto Geisel abria uma nova frente de cooperação com países vizinhos: foi
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
assinado o Tratado de Cooperação Amazônica, que marcou uma orientação da política externa
brasileira também para os países ao norte e oeste.
A política externa de João Figueiredo representou uma virada para a América Latina em
termos gerais, e, em particular, para o Cone Sul. Se, por um lado, manteve linhas do Pragmatismo
Responsável, por outro lado, o projeto de Brasil potência emergente não teve continuidade. A
conjuntura internacional e o contexto interno no Brasil incentivaram o abandono do projeto, e
optou-se pelo aprofundamento do universalismo, sobretudo em direção à América Latina. Com
exceção do caso de Cuba, a visão geopolítica e ideológica para a região perdeu espaços no
processo de formulação da política externa e o reforço da dimensão regional colocou-se como
fundamental para a inserção internacional do país. A ideia de latino-americanização da política
externa brasileira ganhou espaços, articulando-se à visão instrumental da importância dos países
vizinhos para o desenvolvimento brasileiro.
Os mecanismos multilaterais regionais passaram a ocupar no arco da política externa um
lugar como canais de atuação. Foi criada a ALADI, com vistas a incentivar o comércio e com
um perfil adaptado às necessidades sub-regionais. A identificação com os países vizinhos no
problema da dívida externa foi uma área de aproximação com o continente: o Brasil participou
do Consenso de Cartagena, defendendo um enfoque político para a dívida. O modelo de
crescimento brasileiro não livrou o país da crise da dívida externa ou do seu retrocesso na
década, mas criou um grau de complexidade da economia muito alto, e um parque industrial
amplo, uma estrutura produtiva diversificada que facilitaria a perspectiva de interação comercial
com os países vizinhos.
A ascensão de um novo governo civil no Brasil teve impactos relativos na política externa,
embora as razões de mudança já viessem sendo gestadas. Frente à América Latina, a diplomacia
brasileira buscou assumir compromissos que não haviam podido ser assumidos durante o
governo militar: foram reatadas as relações com Cuba, o Brasil entrou formalmente para o Grupo
de Apoio a Contadora e foram assinadas as convenções internacionais de direitos humanos. A
formação do Grupo do Rio, em 1986, foi um passo importante, e um ganho significativo para a
dimensão regional.
Mas o grande passo da diplomacia brasileira foi a articulação de um processo de
integração com a Argentina. Durante os governos de José Sarney e Raúl Alfonsín, os dois países
mantiveram perfis próximos em torno de um padrão autônomo de política externa, enfrentando
temas comuns e com afinidades na percepção do contexto internacional. Na política doméstica,
a consolidação democrática teve um papel fundamental no processo, na qual a integração
serviria como fortalecedor da democracia e garantidora das novas instituições democráticas
nos dois países. Em relação à economia brasileira, os problemas decorrentes da dívida externa
aproximaram ambos os países e a integração começou a caminhar.
A década de 1990 foi um momento marcado pela conformação de uma nova ordem
internacional que apontava para a necessidade de todas as sociedades partilharem de normas
comuns do pluralismo democrático como forma legítima de organização. Na economia, o
paradigma neoliberal tornou-se marco de referência, enquanto, simultaneamente, no Brasil, era
eleito o primeiro presidente através do voto direto após a ditadura militar. Os dois fenômenos
contribuíram para o processo de integração com a região. A América do Sul vivenciava os
problemas decorrentes da crise da dívida externa e dificuldades de inserção na economia
internacional, todavia, experimentava regionalmente pontos de convergência através das
transições para a democracia e dos projetos de ajuste econômico comprometidos com a
abertura das economias nacionais. O novo modelo de integração do regionalismo aberto
foi visto pelos sul-americanos como forma de aumentar a capacidade de enfrentar desafios
12
13
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
e pressões resultantes da economia globalizada. Tiveram lugar iniciativas de integração de
caráter sub-regional.
O mandato de Collor de Mello foi curto e marcado pela crise que levou ao seu
impeachment, mas, ao longo do período, o governo brasileiro buscou seguir um processo de
abertura da economia com vistas ao crescimento da produção articulado com os mercados
externos. E, à medida em que a agenda de política externa se tornou objeto de interesse de
diferentes setores da sociedade, o monopólio do Itamaraty e a ideia de “interesses nacionais”
perdiam força. Junto com a abertura econômica, que resultou de forma clara em perdedores
e ganhadores, a consolidação democrática fomentou preferências sobre temas da agenda
internacional na sociedade civil.
Durante o mandato de Collor foi assinado o Tratado de Assunção, criando o MERCOSUL.
Marcado por preceitos do regionalismo aberto, o bloco orientou-se inicialmente para a dimensão
comercial. Enquanto isso, na dimensão política, o MERCOSUL foi percebido como instrumento
de reforço da capacidade negociadora brasileira, proporcionando-lhe mais peso na arena
internacional. O processo de integração trouxe novo cenário para a região, sobretudo no Cone
Sul. O governo de Itamar Franco buscou ampliar o bloco formando uma área de livre comércio
na América do Sul. Entretanto, o projeto não prosperou, mas ficaram plantadas as raízes de uma
América do Sul separada do restante da América Latina.
Com a eleição de Fernando Henrique Cardoso à presidência, ascende também no
Itamaraty a corrente institucionalista, que sugeria a construção de uma liderança brasileira
moderada na América do Sul com base na estabilidade democrática e no desenvolvimento de
infraestrutura. A estratégia regional ganhou força e se entrelaçou com a estratégia de projeção
global, configuração em que os países da América do Sul seriam parceiros necessários para o
fortalecimento da atuação brasileira nas instituições multilaterais, assim como receptores da
expansão do desenvolvimento brasileiro. Com base nos valores ocidentais, a diplomacia buscou
construir sua liderança na área a partir de um equilíbrio entre a integração no MERCOSUL, a
segurança regional vinculada à estabilidade democrática, e o desenvolvimento da infraestrutura
regional. Em 1999, o MERCOSUL viveu grave crise em função da desvalorização da moeda
brasileira e o comércio, base de equilíbrio do bloco, que entrou em rota de incertezas. Ademais,
as negociações para a formação da Área de Livre Comércio Americana (ALCA) mostravam seus
limites, somando-se à existência de forte interesse do governo de Cardoso em aumentar o
comércio com os países vizinhos (mercados de industrializados brasileiros), mas que enfrentava
o desafio da falta de infraestrutura regional.
Cardoso convocou então uma reunião de todos os presidentes da região em Brasília,
recuperando a ideia de América do Sul levantada alguns anos antes. Os destaques da cúpula
foram a integração econômica e de infraestrutura, junto com a defesa dos regimes democráticos.
Foi criada a Iniciativa para Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana, assim como
lançado o processo de formação da comunidade sul-americana de nações. O chanceler Celso
Lafer refletiu a posição de Cardoso na época ao dizer: “América do Sul é a nossa circunstância”.
Diz-se que quem indica o líder são os liderados. Mas, mesmo excluindo-se o termo do
discurso diplomático, o esforço de construção de uma liderança na América do Sul foi um
traço importante da política externa de Lula da Silva. A eleição de Lula trouxe novo perfil
para a política externa brasileira com base em ações proativas com vistas a modificar as
instituições multilaterais e com táticas de persuasão em favor dos países do Sul global. Junto
à ascensão do Brasil na arena global, a liderança regional na América do Sul tornou-se a outra
Prefácio
prioridade, com perfis complementares. A aproximação com os países vizinhos foi percebida
como instrumento para a realização do desenvolvimento brasileiro e para a formação de
um bloco capaz de exercer maior influência internacional. A diplomacia brasileira priorizou
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
a construção de um ordenamento da América do Sul onde o Brasil teria um papel decisivo
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
14
15
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
nos ataques à Venezuela e em uma tímida aproximação com Chile e Colômbia, em função de
seus governantes.
O governo de Bolsonaro encontrou na região um novo ciclo político favorável à
implementação de suas ideias, mas isso não levou a um envolvimento com a governança
regional — ao contrário, as organizações regionais foram desprezadas pelo governo brasileiro.
O presidente brasileiro apoiou a criação do PROSUL, projeto chileno-colombiano para substituir
a UNASUL e, ainda em 2019, seu governo denunciou o tratado da organização. Por outro lado,
o PROSUL nunca chegou a ocupar um papel relevante para o governo brasileiro: Bolsonaro
demonstrou preferência por aliar-se a governos, não a Estados e rompeu com a tradição da
diplomacia brasileira de não comentar assuntos internos a outras nações. Com alguma frequência,
o presidente discursa para as redes sociais sem compromisso com seu cargo, e, muitas vezes,
com comentários agressivos. Frente a campanhas presidenciais em outros países, Bolsonaro
fez críticas antecipadas a Alberto Fernández, Pedro Castillo e Gabriel Boric. Ainda, estabeleceu
um comportamento pouco harmônico com os vizinhos da Floresta Amazônica e o comércio
com a região, que vinha sofrendo uma progressiva redução, teve uma queda significativa.
Em relação ao MERCOSUL, foi assinado o acordo comercial do bloco com a União Europeia,
mas que não viria a ser validado em função de problemas políticos vinculados à destruição da
Amazônia. E, em relação à Argentina, desde a ascensão de Fernández. As relações atingiram um
distanciamento que não ocorria desde os anos 1980. A parceria estratégica que tanto contribuiu
para a estabilidade regional foi rompida.
Assim, a interação do Brasil com a América do Sul passou por diversas etapas, com
variações, mas a ambiguidade na identificação com a região esteve sempre presente. A criação
do MERCOSUL, a ascensão do conceito América do Sul e a construção da governança regional
junto da regionalização do período de Lula incentivaram diversas obras acadêmicas que viam
a identificação do Brasil com seus vizinhos como um estágio alcançado, sem possibilidade de
retrocesso. Mas não. Do declínio à perda de relevância da região na política externa de Bolsonaro
mostra que a identidade regional do Brasil segue ambígua; mobiliza sentimentos, variedade de
interesses, percepções descasadas, identidades/divergências políticas e contatos intersocietais.
A interação do Brasil com os vizinhos fica então sensível a mudanças e refém de ideologias e
preferências do universo da política.
A política externa brasileira e a interação entre o Brasil e a região serão objeto dessa
coletânea.
Os estudos de Política Externa têm crescido no Brasil, incorporando tanto novos atores
e novas agendas, ganhando densidade analítica, como a dimensão teórica da Análise da
Política Externa. Dentro do arco de temas estudados, a política externa brasileira tem destaque,
sobretudo em se tratando da agenda multilateral. Por outro lado, as políticas externas de países
sul-americanos são pouco conhecidas, o que deixa uma lacuna uma vez que a América do Sul é
nossa circunstância (como disse Celso Lafer) e do continente somos parte.
O LeRPE (Laboratório de Estudos sobre Regionalismo e Política Externa), vinculado ao
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, articula e apoia pesquisas sobre a política externa brasileira com foco na América do Sul,
as políticas externas sul-americanas, e as diversas iniciativas de regionalismo sul-americano que,
em sua maioria, incluem o Brasil. Aglutina pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, mas também de outras instituições que trabalham com o tema.
Com vistas a contribuir para o desenvolvimento dos estudos sobre as políticas externas
brasileira e de outros países sul-americanos, este livro busca mapear algumas dimensões das
políticas externas do Brasil e de parceiros da América do Sul, desde a década de 1980 até os dias
de hoje, a partir de capítulos representativos da comunidade do LeRPE, incluindo pesquisadores
sêniores e júniores.
A coletânea é regida por algumas indagações: Como é possível entender os tantos
meandros da política externa na região sul-americana? A política exterior brasileira dialoga
com políticas exteriores de países vizinhos? Que se pode esperar da inserção internacional
do Brasil no decorrer desde os anos 1980 até a atualidade? A política externa brasileira viveu
múltiplas etapas, assim como teve paradigmas diferentes, mas, a partir da democratização
e consequente instauração do regime democrático que tiveram lugar no período inicial da
globalização na arena internacional, a complexidade e a presença de mudanças passaram a ser
elementos frequentes.
A primeira parte temática concentra-se na política externa brasileira. Em termos históricos,
a coletânea se detém às décadas de 1980 e 1990, período da construção da parceria estratégica
entre Argentina e Brasil, enfocando dois temas que marcam a aproximação posterior entre
Brasil e Argentina nos marcos do MERCOSUL. Primeiramente, em “As Relações Econômicas
Internacionais do Governo Figueiredo (1979–1985)”, Ana Paula Reis trata da política econômica
do presidente João Figueiredo. A autora examina como o governo lidou com os problemas
econômicos que o Brasil enfrentou após o segundo choque do petróleo, de 1979. Ela analisa
a incorporação de novos atores na formulação e nas negociações de política externa com
participação, junto do Itamaraty, do Ministério da Fazenda, da Secretaria de Planejamento da
Presidência da República e do Banco Central do Brasil. O capítulo apresenta os acontecimentos
em ordem cronológica, para demonstrar os avanços nas negociações da dívida, apresentando
quem são os atores envolvidos e suas ações em busca da solução da crise econômica
enfrentada.
Em “Argentina e Brasil em uma perspectiva comparada: analisando o papel da transição
de regime para as políticas externas em direitos humanos dos governos de Raúl Alfonsín
(1983–1989) e José Sarney (1985–1990)”, Guilherme Ramos faz uma comparação entre um
tema fundamental para a reinserção dos dois países no cenário internacional e renovação das
respectivas credenciais: a política externa de direitos humanos. O capítulo analisa as implicações
das mudanças dadas pela transição de regime político nas políticas externas de Argentina e Brasil
no período imediatamente subsequente à retomada do poder pelos civis após as ditaduras mais
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
recentes que acometeram ambos os países. Através do recurso ao método comparado, o autor
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
busca responder, por intermédio da comparação entre as políticas externas em questão com o
foco no papel conferido aos direitos humanos, à seguinte questão: de que maneira a transição
para a democracia impactou as políticas externas de Argentina e Brasil?
Guilherme Macedo, Alexandre Leite e Beatriz Henriques analisam, em “Integração Sul-
Americana e Congresso Nacional: Uma Análise de Conteúdo dos Discursos Parlamentares
Brasileiros Sobre a Criação do Mercosul”, o apoio discursivo dos parlamentares brasileiros a
respeito da criação do MEROCSUL a partir da assinatura do Tratado de Assunção (1991) até
a aprovação do texto final pelo Congresso Nacional. Utilizando a análise de conteúdo, e por
meio do software NVivo 12, os autores avaliaram um total de 45 discursos, entre monólogos e
diálogos, de 33 parlamentares, contidos em 37 documentos do Diário do Congresso Nacional.
Os resultados demonstram que, a nível discursivo, embora as atribuições dos parlamentares
se caracterizem como majoritariamente positivas, não houve um consenso automático do
Congresso Nacional diante da criação do bloco.
Caminhando para o final da década e início do século XXI, Leandro Gavião, em “O governo
de Fernando Henrique Cardoso e as origens da América do Sul” examina como o continente sul-
americano entrou no foco da política externa brasileira em lugar do conceito de América Latina.
Identificar a América do Sul como a primeira referência externa para o Brasil foi uma inflexão
que marca a política externa brasileira até a atualidade. Para tanto, analisa a Reunião de Brasília
de 2000 em seus detalhes a partir sobretudo do Comunicado de Brasília. Como pano de fundo,
Leandro Gavião reflete sobre a relação entre o fenômeno e a construção de uma identidade
supranacional na região.
Dentro do tema da política externa brasileira, mas trazendo o olhar para a atualidade, dois
capítulos tratam da política externa do governo de Jair Bolsonaro. “Populismo, discurso e política
externa: uma análise do caso brasileiro durante a gestão Bolsonaro-Araújo” examina um tema
muito relevante na atualidade que é a relação entre populismo e política externa, uma vez que
a figura do presidente é associada frequentemente à emergência de um populismo de extrema-
direita. Nele, Beatriz Bandeira de Mello e Lucca Giannini Belfi partem de um debate sobre a
relação entre pós-estruturalismo e política externa, mediada pelos escritos de Ernesto Laclau
sobre o Populismo e sua Teoria do Discurso, para identificar como a política externa de Jair
Bolsonaro, especificamente durante a gestão do Ministro de Relações Exteriores Ernesto Araújo,
responde a este fenômeno político, tendo como fundamento os discursos realizados por ambos
os representantes e as categorias por eles mobilizadas com destaque para o “antiglobalismo”.
Em “Os mercadores da dúvida e a diplomacia brasileira: o negacionismo climático na política
externa do governo Bolsonaro”, Nathan Morais analisa o fenômeno do negacionismo climático
e a sua adesão por parte dos formuladores da política externa brasileira durante o governo
de Jair Bolsonaro e, principalmente durante as gestões de Ernesto Araújo e Ricardo Salles nos
Ministérios das Relações Exteriores e do Meio Ambiente entre 2019 e 2021. A partir da análise
das ações e discursos dos atores da política externa brasileira para esta temática, o autor busca
identificar as inflexões na diplomacia brasileira no tema das mudanças climáticas em relação
aos governos anteriores, dando atenção ao papel das ideias e a sua penetração no processo
decisório diante da questão. Verifica-se que se desenrolou um processo de ideologização da
questão, em detrimento do pragmatismo que antes predominava. A atuação brasileira diante
da agenda climática passou a ser guiada por visões de mundo e princípios dos tomadores de
decisão, em vez de crenças causais.
A segunda parte temática, fundamental para completar o livro, diz respeito à América do
Sul, desde sua dimensão do regionalismo até casos de políticas externas de países vizinhos. Sobre
o regionalismo, em “A reforma institucional do Mercosul (2015–2022): eficiência ou desmonte?”,
18
19
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Lorena Granja dedica a atenção ao MERCOSUL situando as reformas institucionais ocorridas no
bloco desde 2015. O capítulo mostra como a dimensão ideológica tem se mostrado relevante
para a construção de governança regional ao longo do tempo; nesse sentido, a construção
e desmonte de capacidades institucionais dentro do MERCOSUL respondem aos padrões
de convergência e divergência ideológica entre os governos dos Estados Partes. No período
estudado pela autora, entre os anos de 2015 e 2022, é evidenciado um processo de desmonte
institucional dentro do bloco que atinge as capacidades construídas durante o período anterior
de convergência ideológica (2003–2013).
Sobre as políticas externas sul-americanas, o primeiro caso de estudo que recebe atenção
é a Bolívia, durante o governo de Evo Morales. Em “O Vivir Bien enquanto plataforma política
do governo MAS na agenda externa de meio ambiente”, Ana Lúcia de Lacerda examina a pauta
política de Morales durante seus governos com base na sabedoria ancestral aimará, o Vivir Bien.
No capítulo, Ana de Lacerda mostra como a agenda de meio ambiente foi marcada pelo Vivir Bien
através de iniciativas com vistas a internacionalizar os princípios estabelecidos pelos direitos da
Mãe Terra. Assim, busca compreender a incidência da cosmovisão originária na política externa
de meio ambiente partindo da composição ideacional do Movimiento Al Socialismo (MAS),
durante os dois primeiros governos de Morales. Enquadrando-se nos estudos que investigam
como as ideias se vinculam à política externa, o capítulo argumenta que a cosmovisão originária
está intrinsecamente ligada à episteme do MAS.
Em “O lugar da integração regional para o chavismo: operacionalização das ideias de Simón
Bolívar”, Stephanie Clemente examina o papel da integração regional na política externa de Hugo
Chávez. Especificamente, a autora busca identificar traços das ideias de Simon Bolívar — na
versão bolivariana — na política externa da Venezuela durante os governos de Hugo Chávez que
levaram o país a se comportar como líder regional na América do Sul e no Caribe. Para tanto, a
autora utiliza lentes teóricas da Análise de Política Externa que abordam os efeitos causais que
as ideias ocasionam na conformação de políticas externas e o impacto delas na consecução de
papéis, com destaque para o uso da Role Theory.
Para o êxito dessa coletânea, nos marcos do LeRPE, tiveram lugar contribuições às diferentes
pesquisas, sugestões e críticas. Entre todos — e sendo difícil listá-los sem arriscar que alguém
não seja mencionado — chamamos a atenção para a equipe do LeRPE como um todo e para
aqueles que, de uma forma ou de outra, contribuíram para os avanços de seus trabalhos. Este
livro visa trazer para o debate, dentro e fora da comunidade acadêmica, fenômenos importantes
da política externa brasileira e sua interação com o continente sul-americano.
Este capítulo tem como objetivo analisar a literatura sobre as Relações Econômicas
Internacionais do Governo Figueiredo (1979–1985), levando em consideração o grave cenário de
crise econômica e de aumento de sua dívida externa. O país encontrava-se no último governo da
Ditadura Militar, começando um processo de abertura política. A literatura sobre o tema aponta
que este era um momento de incorporação de novos atores na política externa, principalmente
na área econômica, com participação do Itamaraty, do Ministério da Fazenda, da Secretaria de
Planejamento da Presidência da República (SEPLAN)2 e do Banco Central do Brasil (BCB).
O capítulo apresenta os acontecimentos em ordem cronológica para demonstrar os
avanços nas negociações da dívida. Aplica-se a teoria sobre unidades de decisão de Hermann
et al. (1989), compreendendo que a política externa é formulada, principalmente, em questões
econômicas, por múltiplos atores autônomos neste período. Apresenta-se quem são esses atores,
os momentos em que eles estiveram presentes no governo e suas ações em busca da solução da
crise econômica enfrentada.
O governo de João Batista Figueiredo teve início em 15 de março de 1979, logo após a
deflagração da Revolução Iraniana de fevereiro, que gerou uma diminuição da produção mundial
de petróleo com consequente alta de preços. A economia mundial passou a ter uma queda em
seu ritmo de crescimento, afetando as exportações dos países em desenvolvimento, que foram
perdendo mercados. A liquidez internacional passou a ser escassa, o que fez com que países
em desenvolvimento não conseguissem financiar suas contas e equilibrar seus balanços de
pagamento (FERREIRA, 2021, p. 336-337; SILVA, 2021, p. 83-85).
Ainda em 1979, em 4 de maio, Margareth Thatcher foi eleita primeira-ministra do Reino
Unido com um discurso voltado à redução da intervenção estatal na economia como forma de
combater a crise econômica britânica. No ano seguinte, em 3 de novembro, Ronald Reagan é
eleito presidente dos Estados Unidos (EUA), afirmando em seu discurso de posse, em 1981, que:
“o governo não é a solução para os nossos problemas, o governo é o nosso problema” (BRASIL,
2022a, sp.).
A eleição desses dois políticos foi um marco importante para a construção de união
entre duas das grandes economias do mundo, EUA e Reino Unido, com políticas em prol de
uma reversão do keynesianismo, aplicado desde o pós-II Guerra Mundial em ambos os países,
assim como em outros países desenvolvidos. A ação contra os problemas econômicos agravados
pela segunda crise do petróleo foi posta em prática com a implementação de desestatização,
Visentini (2004, p. 283) afirma que a abertura para a democracia que o país vivia “ampliava
o número de atores domésticos capazes de influir na formulação da política externa”. Esta visão
de Visentini segue a mesma lógica de Pinheiro (2000, p. 451 e 456) ao pensar a formulação de
política externa neste momento. A autora compreende que a política externa desse período não
é formulada por um Estado como ator unitário e monolítico em busca do “interesse nacional”,
mas formulada por múltiplos atores autônomos, ou seja, por um conjunto de indivíduos ou
grupos com existência razoavelmente autônoma e que não conseguem separadamente tomar
decisões sem o apoio dos demais.
Pinheiro (2000) segue a teoria de Hermann et al. (1989, p. 309-311) para dividir às unidades
de decisão em três tipos: “líder predominante”, “único grupo” e “múltiplos atores autônomos”.
Para os autores, compreender como as decisões são tomadas pode ser uma fonte importante
de informação que nos faça entender mais o comportamento em política externa dos Estados. A
aplicação da ideia de unidade de decisão pode ser por cada tipo de problema enfrentado pelo
governo, ou seja, se é uma discussão econômica a decisão é tomada de uma forma, podendo
ser por múltiplos atores autônomos, entretanto, se for uma discussão militar, a decisão pode
ser tomada por um único grupo. É possível, ainda, compreender as temáticas de política externa
como um todo e perceber uma tendência em direção a um tipo específico de unidade de decisão
na maior parte delas.
Além dessas divisões em unidades de decisão, Hermann et al. (1989, p. 312) explicam que,
para cada tipo, há uma peça-chave de informação que o analista de política externa precisa
compreender com o objetivo de identificar se a natureza da decisão de política externa vem
especificamente da unidade de decisão, mantendo o foco exclusivo nela, ou se deve olhar
para fora da unidade de decisão e compreender outros fatores que a influenciam. Os autores
chamam isso de “variáveis de controle chave”3 porque elas determinam quanto outros elementos
podem entrar no cálculo da decisão para cada uma das unidades. No caso dos múltiplos atores
autônomos, temos como variável de controle as relações entre os grupos e as possibilidades são
duas: (a) soma zero ou (b) não soma zero.
Na lógica de soma zero, cada um dos atores segue uma ideia de diminuição/destruição do
outro, buscando beneficiar-se em detrimento do outro, a relação é permeada de impasses4, de
dificuldades para prosseguir, só sendo resolvidos quando algo externo com poder o bastante
intervém na situação e força um acordo entre os grupos. Por existir múltiplos grupos autônomos,
um grupo pode dificultar as iniciativas de outro grupo formalmente, através do poder de veto
em uma reunião, ou de maneira informal, ameaçando o fim da coalizão formada para decidir,
tomar totalmente o poder de decisão para si ou dificultando o acesso aos recursos necessários
(HERMANN et al., 1989, p. 316-318).
Para que uma política externa seja organizada por múltiplos atores autônomos e tenha
coerência, os atores devem conseguir estabelecer acordos entre si. Muitas vezes, esses atores
não conseguem elaborar tais acordos, chegando a um impasse. Os impasses fazem parte da
própria dinâmica das relações, já que eles demonstram que nenhum grupo sozinho consegue
resolver a situação, ou seja, precisa haver uma negociação para a tomada de decisão. Isto
também demonstra que, nessa unidade de decisão, um ou mais grupos sempre poderão exercer
seu poder de bloquear as iniciativas dos outros. No caso da soma zero, como relatado acima, a
relação é permeada de diversos impasses (HERMANN et al., 1989, p. 317).
22
23
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Vale ressaltar que, mesmo em situações em que os múltiplos atores autônomos estejam em
impasses, com alguns grupos bloqueados, isso não quer dizer que estão estagnados e nada mais
em política externa terá andamento, ou que estes grupos bloqueados não possuem espaço para
serem ativos. E, ainda, é possível que eles tenham visões comuns em alguns temas, que façam
com que acordos sejam feitos em relação a estes pontos. Há também, contudo, a possibilidade
de um dos grupos ameaçar o uso da força, obrigando todos a concordar por meio de coerção,
ou realizar um golpe e tomar o poder, mudando a natureza da unidade de decisão (HERMANN
et al, 1989, p. 323-324).
Enquanto isso, na não soma zero, que poderíamos chamar também de jogo win-win, há
regras institucionalizadas que incentivam os atores a cooperar, barganhar e interagir para resolver
eventuais problemas e questões. Aqueles que estiverem na posição de desfavorável perante às
regras irão barganhar, aqueles que estão em posição e favorecimento perante as regras irão
cooperar. Essas “regras do jogo” podem não ser explícitas, mas acordadas informalmente entre
os atores. A própria coexistência entre eles, dando legitimidade uns aos outros para discutir a
temática que estiver em questão, é uma demonstração de uma regra informal do relacionamento
recíproco (HERMANN et al., 1989, p. 318 e 331).
Essa forma de unidade de decisão, com múltiplos atores autônomos, é comum em
democracias presidencialistas, nas quais o processo decisório envolve muitos grupos, mesmo
país (SILVA, 2021, p. 15). Essas empresas brasileiras, contudo, não são consideradas como atores
que organizam a política externa quanto à temática econômica e sim atores internos brasileiros
que participam da dinâmica econômica do país e que seus interesses podem ser considerados
pelos múltiplos atores autônomos quando forem decidir algo nesta temática.
Em relação ao Governo Figueiredo, Pinheiro (2000, p. 467-468) afirma que este foi um
período com uma política externa com dubiedade, produto de divergências entre diversos
decisores e “da ausência de um elemento que funcionasse como fiel da balança”. A autora
comenta que, em relação às questões econômicas, há uma “gradual perda do prestígio do
Itamaraty”, principalmente no pós-1982. Como a pauta econômica passa a ser de extrema
importância com o agravamento da crise, o Itamaraty, além de não conseguir se inserir no
espaço de solução do problema, também passa a ter dificuldades de formulação da política
externa como um todo. A autora salienta, contudo, que o Itamaraty, com sua grande capacidade
de adaptação, consegue inserir-se em questões comerciais.
No que diz respeito à análise sobre esta ser uma situação de relação de soma zero entre
os múltiplos atores autônomos ou de não soma zero, Pinheiro (2000, p. 468) compreende
que se faz necessário um estudo mais detalhado da questão, para compreender se havia
aceitação da existência legítima entre os grupos, ou seja, não soma zero, ou se havia uma
situação de disputa e choque entre os atores, em uma situação soma zero. Destaca-se que na
análise que a autora faz sobre a política externa ter pontos de dubiedade há uma tendência a
compreender que sua interpretação pode ser mais para a possibilidade de soma zero do que
de não soma zero.
Sonia Camargo (1988 apud Visentini, 2004, p.227) afirma que Figueiredo ampliou
dentro do Executivo a presença institucional do MRE como reflexo do aumento da atividade
externa do país. A autora concorda com Almeida (2020), afirmando que os funcionários do
Itamaraty passaram a lidar mais com questões econômicas e financeiras, e adiciona que isto
se intensificou após a declaração de moratória do México em 1982 e o agravamento da
situação econômica do Brasil. Só que ela faz um adendo, informando que, de 1982 até 1984,
os ministros da área econômica “disputaram o monopólio das negociações”. O Itamaraty
queria politizar as questões econômicas e as ações dos outros ministérios dificultaram essa
intenção do MRE.
Cabe salientar também que Camargo e Ocampo (1988, p.125-126) comentam que Saraiva
Guerreiro se posicionou em relação à importância política da solução dos problemas econômicos5,
além de colocar o MRE como aquele que poderia centralizar as negociações econômicas do
Brasil no sistema internacional, enfatizando a unidade e a globalidade que a ação externa
brasileira poderia ter se acontecesse desta maneira. No entanto, as intenções não se refletiram
em práticas, já que organismos militares e de informação, assim como as agências econômicas,
aumentaram suas influências e ações internacionais, dividindo tarefas com o MRE. Podemos
dizer, portanto, que Camargo e Ocampo concordam com Pinheiro (2000), compreendendo que
era uma situação permeada por múltiplos atores autônomos.
Cervo e Bueno (2015, p. 466), por sua vez, tem posição bastante crítica quanto à atuação
do MRE nas questões econômicas e financeiras, compreendendo que, apesar da dívida ser o
grande problema enfrentado no período, o Itamaraty não pôde fazer parte do processo para
5 Visentini (2004, p.350) comenta que apesar desse enfoque político da crise da dívida feito por Saraiva Guerreiro
nas reuniões de ministros de relações exteriores do continente sobre o problema comum da dívida externa, o
Brasil não concordou com a ideia da Argentina, Venezuela e Equador de constituir um “clube dos devedores”, ou
seja, não queria negociar em conjunto, compreendendo que cada país deveria solucionar seu problema da dívida
individualmente, ressaltando que era um problema político.
24
25
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
a busca de seu equacionamento ou rolagem. Os autores afirmam que a negociação foi feita
somente pelos economistas dos ministérios “da Fazenda, do Planejamento e do Banco Central, à
revelia da sociedade e de outros órgãos que a representavam”.
Por sua vez, Camargo e Ocampo (1988, p. 126) afirmam o contrário: com o decorrer do
governo Figueiredo, o processo foi se modificando e o MRE passou a ter um papel relevante nas
discussões com os EUA, buscando apoio deste país nas negociações brasileiras com o Fundo
Monetário Internacional (FMI), diferente do início do governo, quando os ministros Delfim
Netto (SEPLAN) e Ernane Galvêas (Fazenda) encontravam-se nesse espaço de negociação, mas
passaram a atuar como assessores de Saraiva Guerreiro.
de um novo Brasil, com mudanças internas relevantes caminhando para a democracia. O Brasil
também queria demonstrar nos posicionamentos externos que os países do Sul e os países do
Norte estavam interligados no sistema econômico internacional, o que gerava uma relação de
interdependência, mas também de grande desequilíbrio e desigualdade, e que havia necessidade
de mudança desse cenário (CAMARGO; OCAMPO, 1988, p. 127).
O governo brasileiro, com o intuito de garantir a sua competitividade nas exportações,
iniciou em 1979 uma série de maxidesvalorizações cambiais do Cruzeiro. A primeira foi feita
no final de 1979, que não teve um efeito inicial esperado, já que as exportações foram de
US$15.244 milhões e as importações de US$18.084 milhões, resultando em saldo negativo de
US$2.839 milhões. No ano seguinte o país permanece com saldo negativo similar, dessa vez de
US$2.823 milhões, pois apesar da alta significativa nas exportações (foram US$20.132 milhões),
as importações também aumentaram (US$22.955 milhões) (BRASIL, 2022a, sp.).
A partir de 1981, o Brasil consegue reverter o saldo da balança comercial, e tem superávit
de US$1.202 milhões, revertendo a situação complicada dos anos anteriores (Brasil, 2022b, sp.).
Só que a escalada das taxas de juros internacionais em 1981 fez com que fosse adicionada à
dívida externa mais US$3 bilhões, o que absorvia cerca de 40% dessa receita de exportações
(CARNEIRO NETTO; MODIANO, 2020, p. 266).
Deve-se salientar, contudo, que também foi no ano de 1981 que aconteceu o primeiro
declínio do Produto Interno Bruto (PIB) real brasileiro pós-II Guerra Mundial, como resultado
das políticas restritivas que o governo implementava desde outubro de 1980, com uma
modificação na política salarial que resultou em queda acentuada do salário real para as faixas
de renda mais altas. Além disso, o governo limitou o crescimento nominal dos investimentos
das empresas estatais, centralizou pelo Tesouro a administração dos recursos orçamentários
dos órgãos da administração direta e passou a controlar semanalmente o saldo das contas
dos diferentes órgãos governamentais. Outro ponto relevante foi o aumento dos impostos
sobre operações financeiras nas operações de câmbio para importação em conjunto com
o retorno do incentivo fiscal do crédito-prêmio para a exportação de manufaturados (tinha
sido extinto em dezembro de 1979) (CARNEIRO NETTO; MODIANO, 2020, p. 264-265). Tais
ações do governo mantinham foco na contenção da demanda interna em conjunto com a
expansão das exportações. Só que essas políticas acabaram tendo efeito nulo sobre a inflação,
reforçando a ideia de que tinha um forte componente inercial (CARNEIRO NETTO; MODIANO,
2020, p. 266).
Buscando melhorar a situação econômica do país, o ministro do Planejamento, Delfim
Netto, fez uma viagem ao Japão, Alemanha e EUA, em dezembro de 1981, viagem na qual
conseguiu obter alguns empréstimos e o compromisso da participação japonesa no projeto
de minas de ferro em Carajás. Em conjunto, o governo restringiu importações por meio de
normas internas da Cacex (Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil), atingindo o
setor privado, e determinou corte nas importações das empresas estatais (VISENTINI, 2004, p.
352).
O ano de 1982 é um ponto chave para esta reflexão sobre as relações econômicas do
Brasil nesse período. Foi o ano de ápice da guerra comercial entre Brasil e EUA, momento
em que ocorreram a Guerra das Malvinas, o retorno das eleições gerais brasileiras e o início
das negociações com o FMI. Muitos desses acontecimentos estão interligados e afetaram o
andamento dos demais.
26
27
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
As dificuldades enfrentadas pelo Brasil em embates comerciais e financeiros com os EUA
antecediam o ano de 1982, mas viram seu ápice nesse período. Em divergências de posições
diplomáticas ou financeiras, como foi o caso das discussões sobre as Malvinas, o governo
Reagan reagia com ameaças de cortes a créditos no Banco Mundial e no Banco Interamericano
de Desenvolvimento, ou de retirar o Brasil do Sistema Geral de Preferências do GATT. Os EUA,
que mantinham uma política comercial flexível e pragmática, não concordavam com as ações
brasileiras, de protecionismo às indústrias nascentes e ao mercado interno em conjunto com
subsídios aos exportadores de manufaturados, e, portanto, reduziram suas cotas de importação
de açúcar brasileiro pela metade por não. A justificativa brasileira para tais comportamentos
estava no esforço contínuo em melhorar seus resultados comerciais, produzindo os maiores
superávits possíveis (VISENTINI, 2004, p. 285-286).
Ao decorrer do ano em questão, os EUA perderam algumas disputas externas comerciais
com o Brasil e passaram a concordar com a assinatura de novos acordos. Essas medidas
estadunidenses de apaziguamento das relações têm como fundo uma preocupação de que a
situação econômica do Brasil piorasse e que o país se tornasse um novo México, um devedor
insolvente. Tais ações são chamadas por Visentini como uma troca de um “diálogo de surdos”
para “negociações mais específicas e construtivas”. E uma das causas também é o decorrer da
Guerra das Malvinas (VISENTINI, 2004, p. 287).
Cabe ressaltar que Hermann (2021) deixa claro que, desde 1981, com o aumento dos
juros internacionais, a situação estava ficando cada vez mais complexa, com as despesas anuais
de rendas alcançando em US$10,3 bilhões e, no ano seguinte, se elevando a US$13,5 bilhões.
Carneiro Netto e Modiano (2020, p. 264-267) chamam o ano de 1981 como o de “Recessão sem
Fundo”, uma recessão enfrentada sem nenhum apoio, e explicam que o país não recorreu ao
FMI neste momento por temor de que fosse necessário implementar mudanças econômicas
drásticas para obter o apoio externo e perder sua liberdade em políticas monetárias e fiscais.
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Levando em consideração que este era um governo que se apresentava como transição para
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
uma democracia plena, havia nos militares certo receio de buscar socorro do FMI e o governo
ser visto como frágil.
A moratória mexicana ocorreu entre agosto e setembro de 1982, e, ainda em setembro,
a equipe econômica brasileira foi a Toronto (Canadá) para iniciar a negociação com a diretoria
do FMI e com bancos privados, buscando uma maior disponibilidade de recursos para
o país, só que isso não ocorreu. As eleições gerais para governadores dos estados e para
os representantes no novo Congresso e do Colégio Eleitoral estavam marcadas para 15 de
novembro e o discurso do governo federal para os eleitores era de que não havia necessidade
de auxílio do FMI. Dessa forma, o governo Federal buscou acalmar os eleitores, para que
conseguissem a maioria no Congresso e no Colégio Eleitoral, que em breve escolheriam o
próximo Presidente da República em eleição indireta, e o comando dos estados. O governo
somente fez anúncio oficial de que enviaria ao FMI um projeto de ajuste externo cinco dias
depois das eleições, em 20 de novembro. Todavia, o adiamento do anúncio e a aparência
de instabilidade causada pela falta de informação compartilhada com a população resultou
no partido do governo não alcançando a vitória eleitoral que almejava (CARNEIRO NETTO;
MODIANO, 2020, p. 267-269).
De acordo com Almeida (2007, p. 77), o problema da dívida enfrentado pelos países em
desenvolvimento tem relação direta com o erro cometido pelos bancos privados ao conceder
empréstimos sobre empréstimos aos governos desses países, supondo que Estados soberanos
não iriam à bancarrota e não declarariam moratória, o que o autor chama de “suposição
absurdamente anti-histórica”. Ainda que cogitassem a possibilidade de uma moratória, havia
a expectativa de que os EUA ou o FMI iriam garantir esses empréstimos, ou ao menos os juros
referentes a eles. O problema é que o FMI “estava apenas equipado para tratar de desequilíbrios
temporários de balanço de pagamentos, não para administrar um processo prolongado de
renegociação de dívidas soberanas e comerciais”.
Carneiro Netto e Modiano (2020, p. 268) afirmam que o FMI inicialmente fez uma
operação de emergência com o objetivo de evitar que o Brasil suspendesse unilateralmente os
pagamentos de divisas estrangeiras, no mesmo molde que havia sido feito com o México. Os
autores explicam que:
28
29
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
um de novos empréstimos em moeda, outro de planejamento de amortização da dívida em
1983, um terceiro de linhas de crédito de curto prazo relacionadas ao comércio e um quarto de
linhas de crédito para bancos brasileiros no exterior (CERQUEIRA, 2003, p. 26).
Em janeiro e fevereiro daquele ano, a economia brasileira já dava alertas de que não seria
possível colocar em prática as intenções da primeira carta. A balança comercial brasileira não
demonstrava uma reversão razoável, com melhoria de exportação e diminuição de importações.
Em 21 de fevereiro de 1983, quando o FMI ainda estava examinando a primeira carta, o governo
brasileiro desvalorizou o cruzeiro de forma drástica, contrariando a afirmação anterior de que a
realizaria de forma gradual (CARNEIRO NETTO; MODIANO, 2020, p. 270).
Como dito anteriormente, o país já tinha feito maxidesvalorizações desde 1979, e a política
permaneceu, como é possível observar a seguir:
6 Extended facility.
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
A taxa de câmbio oficial, que era de 179,4 em 1982, passou para 576,2 em
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
30
31
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Parte significativa da melhora nas transações correntes do Brasil a partir de 1983 ocorreu
em decorrência dos fatores externos já mencionados, como o aquecimento da economia
estadunidense, mas também como reflexo do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND). As
importações caíram durante todo o governo e parte dessa queda possuía relação com o sucesso
da política de substituições de importações, assim como o aumento de exportações estava
relacionado com as medidas tomadas pelo governo no incentivo às indústrias exportadoras no II
PND (FERREIRA, 2021, p. 350-351).
O FMI chegou a fechar um acordo com o Brasil em 1983 que incluía a aprovação formal de
um programa de estabilização, apoiado na necessidade de o Brasil reduzir seus déficits nominais.
O Brasil não cumpriu com o acordo devido a sua inflação acelerada, o que fez com que o FMI
suspendesse o envio de US$2 bilhões. O país e o FMI voltaram a negociar, tentando adaptar às
imposições do órgão com as complexidades do setor público financeiro brasileiro. A inflação era
o grande problema da operação, já que pesava muito no cálculo do FMI ao avaliar a situação
fiscal do país (CARNEIRO NETTO; MODIANO, 2020, p. 272).
A terceira carta de intenções brasileira foi enviada em setembro, e tinha por base um
decreto-lei de desindexação salarial que não passou pelo Congresso, o que tornou necessário o
28 de setembro de 1984 (CARNEIRO NETTO; MODIANO, 2020, p. 275). Ernane Galvêas, ministro da
Fazenda, foi quem negociou com o FMI, em setembro de 1984, as novas metas a serem cumpridas e
que fundamentaram posteriormente essa sexta carta. O ministro “projetou uma inflação de 194% até
o mês de dezembro, além de um PIB de 380 bilhões de dólares”. Pouco tempo depois, em dezembro
deste ano, Delfim Netto fechou outro acordo com o FMI — que, apesar de seu caráter sigiloso,
foi divulgado pela imprensa — com alteração das metas do governo sobre salto operacional e o
compromisso da redução de subsídios. No mês seguinte, janeiro de 1985, Afonso Celso Pastore, o
presidente do BCB, foi quem renegociou a dívida externa com o FMI (VISENTINI, 2004, p. 353).
Alguns fatores contribuíram para a melhora econômica do país em 1984. A produção brasileira
de petróleo aumentou e o preço internacional do produto diminuiu, reduzindo de forma substancial
a importação deste produto. A indústria de transformação brasileira teve um impulso inicial e no
segundo semestre assistiu um aumento da demanda de seus produtos, em decorrência da melhora
da renda rural e da renda da classe média urbana. Essas retomadas de produção atingiram outros
setores industriais, com efeito em cadeia, e têm relação com a melhoria da produção agrícola, que
havia passado por problemas no ano anterior, resultando em um aumento real do PIB do país em
5,4% em 1984 (CARNEIRO NETTO; MODIANO, 2020, p. 275-276).
A situação da inflação permaneceu grave em 1984, mas demonstrou certa estabilidade:
em 1983, tinha acumulado variação de 211%, e, em 1984, de 223,8%. Isto foi possível, de acordo
com Carneiro Netto e Modiano (2020, p. 277), pois houve ação direta do governo no controle
de preços e baixo nível de atividade econômica, o que não seria suficiente para baixar a inflação
graças ao efeito inercial que ocorria naquele momento. Com o decorrer do ano, já nos meses
finais, a inflação começou a apresentar sinais de aceleração:
32
33
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Considerações Finais
Referências
ALMEIDA, Paulo Roberto de. As relações econômicas internacionais do Brasil dos anos 1950 aos
80. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 50, n. 2, 2007, p. 60-79.
______. As relações internacionais do Brasil na era militar (1964–1985). In: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano: O tempo do regime autoritário:
Ditadura militar e redemocratização–Quarta República (1964–1985). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 10ª ed, 2020.
BRASIL. Algumas curiosidades e fatos históricos relacionados ao comércio exterior no Brasil
(1971–1980). Siscomex, 10 jun. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/siscomex/pt-br/servicos/
aprendendo-a-exportarr/curiosidades-e-fatos-historicos/1971-a-1980. Acesso em 10 ago. 2022.
______. Algumas curiosidades e fatos históricos relacionados ao comércio exterior no Brasil
(1981–1990). Siscomex, 10 jun. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/siscomex/pt-br/servicos/
aprendendo-a-exportarr/curiosidades-e-fatos-historicos/1981-a-1990. Acesso em 10 ago. 2022.
CAMARGO, Sonia de; OCAMPO, José Maria Vasquez. Autoritarismo e democracia na Argentina e
Brasil: uma década de política exterior, 1973–1984. Editora Convívio, 1988.
CARNEIRO NETTO, Dionísio Dias; MODIANO, Eduardo Marco. Ajuste externo e desequilíbrio
interno (1980–1984). In: ABREU, Marcelo. A Ordem do Progresso: Dois Séculos de Política
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Econômica no Brasil. São Paulo: Editora Atlas, 2ª ed., 2020.
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
CERQUEIRA, Ceres Aires. Dívida Externa Brasileira. Brasília: Banco Central do Brasil, 2ª ed., 2003.
Disponível em: https://www.bcb.gov.br/content/publicacoes/Documents/outras_pub_alfa/
D%C3%ADvida_Externa_Brasileira_-_Segunda_Edi%C3%A7%C3%A3o_Revisada_Ampliada.pdf.
Acesso em 10 ago. 2022.
CERVO, Amado; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 5ª ed., 2015.
FERREIRA, Luciana da Silva. A política econômica do governo Figueiredo, o endividamento
externo e seus impactos macroeconômicos”. In: ARAUJO, Victor Leonardo de; MATTOS, Fernando
Augusto Mansor de. A economia brasileira de Getúlio a Dilma – novas interpretações. São Paulo:
Hucitec, 2021.
Hermann, Jennifer. Auge e Declínio do Modelo de Crescimento com Endividamento: O II
PND e a Crise da Dívida Externa (1974–1984). In: GIAMBIAGI, Fabio et al. Economia brasileira
contemporânea (1945–2015). Rio de Janeiro: Editora Atlas, 3ª ed., 2021.
HERMANN, Margaret G. et al. How Decision Units Shape Foreign Policy Behavior. In: HERMANN,
Charles et al. (eds). New Directions in the Study of Foreign Policy. Boston: Unwin Hyman, 4ª ed.,
1989, p. 309-336.
KRUGMAN, Paul R.; OBSTFELD, Maurice. Economia Internacional – Teoria e Política. São Paulo:
Pearson Education do Brasil, 5ª ed., 2001.
PINHEIRO, Letícia. Unidades de decisão e processo de formulação de política externa durante o
regime militar. In: ALBUQUERQUE, J. A. G. de. Sessenta anos de política externa brasileira (1930–
1990), v. 4 – Prioridades, Atores e Políticas. São Paulo: Annablume/Nupri, 2000.
SALOMÃO, Ivan. Do estrangulamento externo à moratória: a negociação brasileira com o FMI no
governo Figueiredo (1979–1985). Revista de Economia Contemporânea [online]. 2016, v. 20, n. 1,
p. 5-27.
SILVA, Nathan Morais Pinto da. Diplomacia à prova de choque: as relações com países exportadores
de petróleo e a busca pela segurança energética na política externa brasileira durante os governos
Geisel e Figueiredo (1974–1985). Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.
VISENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime miliar brasileiro. Multilateralização,
desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre: Editora UFRGS,
2ª ed., 2004.
34
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
CAPÍTULO 2
Introdução
Argentina e Brasil são dois países independentes localizados na América do Sul. Ambos
foram antigas colônias de Estados ibéricos e são considerados países em desenvolvimento.
Possuem, desde logo, diversas similitudes. Contudo, diferenciam-se em vários aspectos. A
primeira foi uma antiga colônia da Espanha, ao passo que o Brasil foi colonizado por Portugal.
À independência argentina seguiu-se de imediato o estabelecimento de uma República; o Brasil
independente organizar-se-ia inicialmente a partir de um Império. Esses são apenas alguns
exemplos retidos a partir de um rápido exercício comparativo.
A comparação entre Argentina e Brasil decerto possibilita a identificação de inúmeras
similitudes e diferenças entre esses países que, a sua vez, permitem a aferição de graus
diferenciados de interveniência de variáveis em alguma medida compartilhadas para geração
de resultados substancialmente diversos. A título exemplificativo, a já referida colonização,
partilhada por ambos, produziu, em um primeiro momento, sistemas políticos diferentes. Por
intermédio da comparação, é possível articular um elemento comum às particularidades de
ambos para se chegar a uma explicação satisfatória aos desenlaces diferentes malgrado o ponto
de partida comum.
Admitindo o valor da comparação para o entendimento das vicissitudes que ora aproximam
os países, ora os distanciam, o presente capítulo objetiva testar a hipótese de que, apesar de
ambos, Brasil e Argentina, atravessarem processos de transição democrática em um mesmo
período histórico, a variável regime político aportou mudanças consideravelmente diversas para
a política externa de ambos os países no plano mais imediato, aqui representado pelo primeiro
governo civil pós-ditadura em cada um deles. A política externa do governo brasileiro de José
Sarney (1985–1990) será comparada com a política externa de Raúl Alfonsín (1983–1989) com
o objetivo de avaliar a importância da variável regime político para o delineamento da política
externa de ambos os países na sua redemocratização, comparações pontuais com diretrizes
e manifestações das políticas externas pregressas, postas em práticas pelo regime ditatorial,
também serão empreendidas. A pergunta que se buscará responder é a seguinte: de que
maneira a transição para a democracia impactou as políticas externas de Argentina e Brasil? A
democracia (regime político) cumprirá a função de variável independente (causa); já a política
externa assumirá a condição de variável dependente (decisão, resultado ou comportamento que
se busca explicar), em observância às caracterizações citadas abaixo:
In foreign policy analysis, causes are called independent variables. The effect (or
the set of options considered, the decision, the behavior, or the outcome) that we
seek to explain is call the dependent variable. The effect, or dependent variable,
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
would not have occurred if the independent variables had not been present. In
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
addition, the dependent variable would have taken a different shape if different
independent variables had been present or if the independent variables had
been of different relative strength (BREUNING, 2007, p. 18).
1 Escolhida devido à sua própria natureza envolver, mais provavelmente, uma inflexão de política em virtude da
transição de um regime ditatorial, violador de direitos, a um regime democrático, formalmente garantidor de direitos.
36
37
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
à consolidação da Política Externa Comparada (PEC). Surgida durante a segunda metade do
século XX, a PEC está originalmente associada “com a emergência de um projeto científico, sob
liderança de James Rosenau, na década de 1960, cujo objetivo era construir uma teoria geral
de política externa, que fosse multinível e sujeita a rigorosos testes empíricos e que permitisse
comparar os Estados (HUDSON, 2007, apud GONÇALVES; PINHEIRO, 2020, p. 193). A Política
Externa Comparada partilhava com a Análise de Política Externa (APE), sub-área de estudo em
Relações Internacionais em cuja égide se originou, a percepção de que o entendimento da
política externa demandava uma compreensão holística e que integrasse diferentes níveis de
análise — individual, estatal e internacional. A valorização do método comparado, contudo, seria
o seu traço mais distintivo.
O advento da Política Externa Comparada mantém estreito vínculo com a Política
Comparada, um campo da Ciência Política surgido nos Estados Unidos no século XIX (MUNCK,
2007, p. 32). Em um esforço de distanciamento da Ciência Política em relação à História, a
Academia estadunidense rechaçou a incorporação de meta-teorias ou teorias de amplo alcance
na Ciência Política em favor de estudos mais parcimoniosos acerca de governos e instituições
políticas formais. Nesse contexto, favoreciam-se os estudos de caso e os estudos comparados
que se centravam em um número reduzido de casos em comparação (Small-N cases) (idem,
p. 40). A Ciência Política norte-americana, portanto, lançaria as bases da Política Comparada, a
qual teria subsequentemente notória influência sobre as Relações Internacionais, de modo geral,
e sobre estudos de política externa, de maneira mais direcionada. A incorporação do método
comparado como ferramenta para se construir um conhecimento solidificado sobre política
externa seria a principal delas.
É importante destacar que a Política Externa Comparada possui um caráter normativo que
lhe é indelével. Com efeito, o recurso ao método comparado atendia ao objetivo de constituir
um corpo de conhecimentos solidificado que transcendesse análises conjunturais e/ou ad hoc
e lograsse antecipar as ações externas dos Estados. Ambicionava-se ampliar o rol de países
em comparação a fim de que, progressivamente, se fosse constituindo uma ampla base de
dados sobre política externa que permitisse às lideranças mundiais anteverem determinados
2 A prescrição associa-se ao caráter normativo da política externa comparada: o intento de melhorar as políticas
externas postas em prática pelos Estados-Nacionais tendo por base os conhecimentos aferidos pela via da
comparação (SMITH, 1989, p. 204).
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
a importância da variável regime político para a definição da política externa e, ainda, fomentar
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
pesquisas vindouras sobre o impacto de tal variável para a região da América do Sul, inclusive
potenciais estudos comparativos com aumento do número de casos (N) e alargamento do
escopo temporal. Nesse sentido, embora aparentemente modesto em seu intento, o estudo
aqui empreendido traduz grandes potenciais de pesquisa.
Feitas essas breves considerações de ordem teórica/metodológica, convém finalmente
proceder à comparação em si. Em um primeiro momento, serão feitas comparações pontuais
entre as ditaduras de ambos os países, com foco na condução do processo de transição política.
Considera-se oportuna essa comparação pois a comparação das políticas externas alude a
especificidades de cada uma das ditaduras e dos processos de transição que se sucederam a elas.
Em sequência, então, serão comparadas as políticas externas com base nos atributos destacados.
38
39
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
politicamente a transição de regime. De um lado, tem-se uma transição intempestiva, na qual os
militares, desprestigiados, tiveram poucas condições de interveniência; do outro, uma transição
planejada com ao menos uma década de antecedência por Forças Armadas que, à diferença de
seus pares argentinos, não se encontrava em semelhante situação de desprestígio e lograram
influir sobremaneira na condução do processo de transição, inclusive impondo condições para a
transição como a realização de pleitos indiretos na primeira eleição presidencial pós-ditadura e a
vedação a quaisquer mecanismos de punição ou justiça transicional.
Conquanto comentários pontuais sejam efetuados em relação às ditaduras argentina e
brasileira em momentos posteriores, considerou-se oportuno proceder a essa ambientação
elementar prévia justamente para enfatizar que a maneira como cada uma das ditaduras findou
decerto reverberou no processo de transição. E, em igual medida, repercutirá sobre as políticas
externas de cada um desses países após a mudança de regime. Afinal, cada país terá necessidades
diferenciadas a traduzir pela via da política externa, uma vez que o ponto de partida de cada
democracia será consideravelmente diverso: a Argentina, isolada e derrotada na Guerra das
Malvinas, necessitará perseguir novas credenciais de inserção internacional a fim de romper o
isolamento e aproximar-se do concerto de nações ocidentais; já a democracia brasileira começará
de um ponto de partida comparativamente mais confortável, e a política externa do Brasil
democrático apoiar-se-á em uma função que assume contornos mais continuístas, prestando-se
ao papel de perpetuar e incrementar um modelo de inserção internacional já iniciado em períodos
anteriores. A seção a seguir tratará em pormenores da comparação entre Argentina e Brasil.
40
41
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
1) que la política exterior tenga como meta fundamental incrementar la
independencia política y económica del país (obtener grados crecientes
de autonomía); 2) la búsqueda permanente de la paz y el resguardo de
los derechos humanos fundamentales; 3) el impulso a la integración
latinoamericana para fortalecer la capacidad regional, política y económica
del país (JIMÉNEZ, 2010, p. 115).
Infere-se que o novo paradigma de política externa da Argentina, para além de enfatizar
a filiação do país ao Ocidente, também adquiria contornos autonomistas. Isso se torna claro na
análise da autora Anabella Busso, que resume a política externa de Alfonsín da seguinte forma:
É importante enfatizar essa recuperação do caráter autonomista pois ela explicará, em ampla
medida, as inflexões de política externa em algumas das esferas das quais se discorre a seguir.
Conclui-se, portanto, que a transição para a democracia mudou o paradigma de política
externa na Argentina. Tendo por base uma literatura que enfatiza a filiação ao mundo ocidental e
a celebração de valores associados ao ocidentalismo, optou-se por caracterizar esse paradigma
como ocidentalista. É importante destacar que há, contudo, diferentes denominações. Russell
e Toklatian (2003), por exemplo, cunham o termo “globalista”. Trata-se de um paradigma que
traduz, grosso modo, uma tentativa de diversificação dos vínculos internacionais do país e a
defesa do multilateralismo. Contudo, acredita-se que o termo “paradigma ocidentalista” traduz
melhor as inflexões advindas da transição para a democracia, uma vez que tal conceituação
alude a uma identificação cultural e à mobilização dos valores ocidentais quando da deflagração
de novas estratégias de inserção internacional da Argentina, ao passo que a mera caracterização
como “globalista” secundariza ou omite a importância de valores como democracia, direitos
humanos e liberdades para a definição e priorização de novas agendas internacionais, que se
Esse paradigma dominante de política externa tinha, para além do pragmatismo como um de
seus elementos mais fundamentais, o universalismo/ecumenismo, traduzido como a diversificação
de relacionamentos internacionais do Brasil. O universalismo correspondia a uma leitura do sistema
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
internacional segundo a qual o país, para adquirir maior autonomia e capacidade de agência
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
externa, necessitaria incrementar e diversificar os seus vínculos com outros países, inclusive com
os antes rechaçados por razões ideológicas. Combinados, os traços pragmáticos e ideológicos
do paradigma dominante da política externa brasileira, que atravessou o período ditatorial e o
democrático, resultaram na aproximação do Brasil com países centrais, em desenvolvimento, com
o entorno da América do Sul e América Latina, com a periferia do sistema internacional e ainda
com países associados ao bloco socialista, a exemplo de China e Angola.
A perpetuação das diretrizes básicas da política externa brasileira, malgrado a transição
de regime político, pode ser resumidamente atribuída a dois fatores: 1) o relativo consenso em
relação a essa proposta de política externa nos meios econômicos, políticos e militares (RUSSELL;
HIRST, 1987, p. 465); a solidez do Ministério das Relações Exteriores (MRE) como instituição
profissional (idem, p. 469) e burocracia especializada. Destarte, conforme aponta Amado Cervo,
“A transição do regime militar para o civil, em 1985, afetou superficialmente a política exterior
e o modelo de inserção internacional” (2008, p. 50), o que o conduz a denominar o período
de “transição sem mudança” (idem, p. 50). Não houve alterações profundas em termos de
paradigma dominante de política externa: a leitura do sistema internacional continuava a ser
a mesma, e a prescrição em termos de ação, ancoradas no pragmatismo e no universalismo,
mantiveram-se a despeito da transição de regime.
42
43
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
tenderia a explicar traços de continuidade na política externa brasileira, ao passo que o congênere
argentino seria mais suscetível a interferências de ordem política. De fato, conforme resume
Russell (1990, apud Arbilla, 2000, p. 348), o Ministerio de las Relaciones Exteriores y Culto possui
uma cúpula integrada essencialmente por funcionários de origem política, e não por servidores de
carreira, o que aumenta a probabilidade de mudanças substanciais quando da troca de governo.
No caso da Argentina, a transição para a democracia trouxe inovações para o processo
decisório em política externa. Enquanto Conquanto o Poder Executivo tenha se mantido como
ator central, perde-se o monopólio das juntas militares. A chancelaria recupera o papel de ator
central no processo de elaboração e execução da política externa (RUSSELL; HIRST, 1987, p. 455),
do qual havia sido destituído durante a ditadura. O núcleo decisório mais fundamental passou a
incluir o presidente Alfonsín, o ministro das relações exteriores, Dante Caputo, e, sobretudo após
o chamado “giro realista” ocorrido em 1985, quando há maior entrelaçamento entre agendas de
política externa e agendas econômicas, também o ministro da economia, Juan Vital Sourrouille
(idem, p. 455). A restauração democrática, contudo, não se traduziu em maior participação
do Congresso no processo de formulação de política externa (idem, p. 457). Quanto às Forças
Armadas, elas perderam influência em um primeiro momento, devido a circunstâncias derivadas
da própria transição de regime em si, com perda relativa de prestígio e poder político dos
militares. Não obstante, passam progressivamente a conquistar espaço de atuação em temas de
seu interesse. A título exemplificativo, pode-se citar a participação da Força Aérea argentina na
negociação de convênios firmados com a Itália visando a cooperação na indústria aeronáutica,
civil e militar (idem, p. 458).
Uma inovação digna de menção aportada pela democratização no que tange ao processo
decisório de política externa na Argentina é a participação do setor privado, mormente o
empresariado. Com efeito, a nova política externa implementada por Alfonsín privilegiou
a participação de setores do empresariado em missões diplomáticas e viagens presidenciais.
Como resultado, diversos acordos bilaterais foram firmados por intermédio da participação
ativa de setores privados (RUSSELL; HIRST, 1987, p. 456). Decerto, a transição para a democracia
44
45
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
multilateral que reunia Argentina, Brasil, Peru e Uruguai em um esforço de proteção contra
eventuais ações intervencionistas dos Estados Unidos na América Latina; e o restabelecimento da
paz com o Chile mediante a assinatura de um Tratado de Paz e Amizade (ZURITA, 2010, p . 5-6).
Essas ações evidenciam o quanto a Argentina logrou transcender a visão meramente mercantilista
para a região, além de abandonar a postura intervencionista manifesta pelo país em incursões
promovidas durante a ditadura. A América Latina passava a despontar como eixo prioritário para o
país não só em termos comerciais, mas no âmbito da cooperação internacional tomada em termos
mais amplos e do concerto de posições em órgãos multilaterais para defesa de temas comuns.
Em se tratando das relações entre o Brasil e a América Latina, a transição para a democracia
não engendrou mudanças mais disruptivas. A região já figurava como área estratégica consoante
o paradigma do Pragmatismo Responsável e Ecumênico que pautava a inserção internacional do
Brasil desde a década de 1970, e o país já havia logrado incrementar as ações cooperativas na região,
tanto no âmbito multilateral quanto no âmbito bilateral, além de fomentar o comércio internacional
com países da região (Cervo e Bueno, 2011, p. 482). Com efeito, o universalismo característico do
paradigma dominante da política externa brasileira, o qual logrou subsistir à transição de regime,
já havia resultado em uma aproximação com a América Latina e com o Caribe. Com a ascensão
do primeiro governo civil pós-ditadura, considera-se que não houve uma reformulação da política
externa para a região, senão mudanças comparativamente menos significativas se relacionadas às
mudanças que ocorreram no caso argentino. A primeira delas é de caráter tático: ao assumir, José
Sarney, ao invés de lançar um projeto de política externa de caráter global, optou por adotar uma
estratégia de “passo a passo”, priorizando, em um primeiro momento, as relações com os países
da América Latina (e, dentre eles, mais particularmente com a Argentina) (RUSSELL; HIRST, 1987,
p. 478); a segunda já envolve repercussões mais consideráveis sobre a agenda de cooperação
internacional na região, uma vez que alude ao incremento na participação de novos temas de
cooperação, sobretudo com a incorporação da agenda da segurança coletiva e com a superação
dos litígios e das desconfianças em relação à Argentina e demais países do Cone Sul. Decerto,
avalia-se que uma das mais significativas repercussões da democratização do país para a sua
política externa em relação aos países latino-americanos se refere à distensão e restabelecimento
3 Wilton Barbosa e Isaque Portilho, por exemplo, destacam como episódios que evidenciaram uma cooperação entre
Argentina e Brasil ainda durante a vigência dos governos militares: a Guerra das Malvinas, imbróglio no qual o Brasil,
apesar de manter-se formalmente neutro, proveu ajuda material, inclusive militar, à Argentina; a assinatura de um acordo
de cooperação e aplicação da energia nuclear para fins pacíficos, em 1980; e a assinatura do Acordo Tripartido sobre
Corpus e Itaipu, em 1979, a respeito da produção de energia hidrelétrica (BARBOSA; PORTILHO, 2016, p. 120-121).
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Es indubitable que la simultaneidad de la transición a la democracia en
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
Assim sendo, a democracia teria sido determinante para alterar a substância da política
externa argentina para o Brasil, e vice-versa. A variável regime político, desse modo, atendeu ao
propósito de não apenas tornar as relações bilaterais um ponto prioritário de política externa
no âmbito de um redirecionamento estratégico, conforme definido nas políticas externas de
Alfonsín e Sarney, como também criou as condições que possibilitaram a sustentação desse
novo padrão de relacionamento bilateral. Atributos básicos da democracia, mormente a
publicidade de informações, a prestação de contas (accountability) e a criação de mecanismos de
controle intra e entre os Poderes, facilitam a superação das desconfianças e aumentam o poder
preditivo do comportamento externo de um país. Desse modo, avalia-se que a transição para a
democracia foi essencial para que Argentina e Brasil pudessem edificar suas relações em novas
bases, as quais se sustentariam na década seguinte e se aprofundariam inclusive na forma de
uma integração regional mais ampla. Esse aspecto decerto evidencia uma das mais veementes
contribuições da variável regime político para a definição da política externa. Afinal, como resume
o autor Christopher Hill, a natureza do regime influencia na disposição de países em trabalharem
juntos (2003, p. 239). Sendo assim, a reconquista da democracia teria sido fundamental para
o restabelecimento das relações bilaterais em termos mais cooperativos e amistosos, abrindo
possibilidades futuras de cooperação bilateral e mesmo multilateral, a exemplo do Mercosul,
projeto de integração regional cuja existência decerto demandou a aproximação entre Argentina
e Brasil ocorrida na década de 1980.
Do ponto de vista argentino, as relações com o Brasil objetivavam, essencialmente:
consolidar o processo democrático em ambos os países; modificar qualitativamente as relações
bilaterais político-estratégicas e comerciais; fortalecer e ampliar as condições favoráveis ao
projeto de modernização do país; e concertar posições em defesa de interesses comuns, tanto
de ordem política quanto econômica (Russell e Hirst, 1987, p. 461). Já para o Brasil, conforme
referido anteriormente, a América Latina despontava como região prioritária no âmbito da tática
do “passo a passo”, ocupando a relação bilateral com a Argentina uma posição de destaque.
Conforme resume Alessandro Candeas:
46
47
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
5) Quanto ao papel conferido aos direitos humanos.
Finalmente, cumpre discorrer sobre o papel dos direitos humanos na política externa de
Argentina e Brasil pós-redemocratização. A escolha desta issue area, conforme argumentado
anteriormente, justifica-se à medida que a democracia pressupõe o acesso a um conjunto
elementar de direitos. Sendo assim, seria natural supor que a posição de ambos os países
frente aos direitos humanos se alteraria diante da transição de um regime ditatorial, violador
de direitos, a um regime democrático, o qual consagra o acesso a direitos. Prenuncia-se que,
embora se identifique que os dois países apresentaram notórias inflexões em se tratando do
papel conferido aos direitos humanos em suas respectivas políticas externas, considera-se que
o horizonte temporal teria sido o elemento mais distintivo: enquanto a Argentina despendeu
esforços consideráveis para inserir o país nos principais regimes internacionais e hemisféricos de
direitos humanos ainda durante o primeiro governo civil pós-ditadura, no caso brasileiro essa
inserção demoraria ainda alguns anos, o que demonstra que, para o caso argentino, tornava-se
mais premente inserir o país nas tratativas internacionais de direitos humanos.
A questão dos direitos humanos, com efeito, foi um dos elementos que mais colaboram
para o isolamento internacional da Argentina durante a vigência do período ditatorial. As
maciças violações de direitos humanos promovidas pelos militares argentinos ensejaram
reações de toda a comunidade internacional, principalmente nos Estados Unidos presidido por
Jimmy Carter (1977–1981) e na Europa. Quando da ascensão do governo civil conduzido por
Alfonsín, tornava-se imperioso refundar as credenciais internacionais da Argentina consoante o
novo paradigma de política externa dominante. Esse novo paradigma, conforme se introduziu
anteriormente, se pautava em uma adesão cultural ao Ocidente e na defesa de princípios
republicanos, democráticos e liberais, em frontal contraste com o posicionamento que havia
erodido as credenciais externas da Argentina e resultado em seu isolamento internacional.
Dentre esses princípios, figuravam os direitos humanos, os quais, desde a década de 1970,
adquiriam cada vez mais relevância para a comunidade internacional.
Em um contexto em que o país almejava uma nova inserção internacional, a adesão aos regimes
4 Diferentemente do caso brasileiro, as relações cívico-militares na Argentina permaneceram tensas após a redemocratização,
estando o espectro de um eventual golpe militar a fragilizar a democracia. As forças militares ameaçaram o governo de
Alfonsín inclusive através de incursões armadas, a exemplo de amotinamentos (FRANÇA, 2011, p. 228).
5 Para Sarney, a adesão do Brasil a tratados internacionais de direitos humanos se constituía uma “muestra importante
hacia el exterior de los cambios internos puestos en marcha en Brasil, por medio de los cuales el país se esfuerza para
reorganizar su marco social, económico y político y así inaugurar una nueva fase de su historia” (ENGSTROM, 2015, p.
6-7).
48
49
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
ao menos no prazo imediato. Isso se torna evidente não apenas quando considerado o retardo
na assinatura/ratificação de tratados internacionais, mas também se vislumbrado o fato de que:
Tabela 2.1 – Comparativa das políticas externas de Argentina e Brasil durante o primeiro
governo civil pós-ditadura
Paradigma
País Estruturação do processo decisório Relações com a América Latina
dominante de PE
Ocidentalismo Concentrado no presidente, chanceler, A integração seletiva com países em
(filiação cultural ao ministro da economia e círculo restrito desenvolvimento, sobretudo com a
Ocidente); de autoridades ligadas ao Executivo; América Latina, desponta como um dos
eixos centrais da política externa pós-
Busca pela Fragilidade burocrática do
transição;
autonomia (fim Ministerio de las Relaciones
do alinhamento Exteriores y Culto (cúpula é Perspectiva para a AL: defender a
Argentina
automático); constituída por indicações políticas); democracia e fomentar a integração;
(1983–1989)
País
Brasil-Argentina Humanos democrática
Superação de Direitos humanos adquirem Democracia como vetor de (re)
desconfianças e do centralidade; inserção internacional; Mudam-se
paradigma geopolítico/ substancialmente os atores e as
Tratados de proteção aos
securitizador abrem diretrizes-mor da política externa;
direitos humanos são firmados
espaço para o
Argentina (tanto no âmbito hemisférico Tendência geral em relação à política
reestabelecimento de
quanto no âmbito internacional); externa da ditadura: ruptura.
(1983–1989) relações em novas bases;
Estratégia de romper isolamento
Iniciativas conjuntas são
internacional pós- ditadura
promovidas, como a
assinatura de acordos de
cooperação.
Relação com a Argentina Inovações ocorrem mais No plano mais imediato, a transição
é privilegiada dentro da no campo retórico que para a democracia não acarretou
égide da estratégia do prático; adesão aos principais maiores aportes em relação aos
“passo a passo”; regimes protetivos de direitos princípios orientadores da Política
humanos (internacionais e Externa, embora tenha induzido
Brasil Importantes iniciativas de
hemisféricos) se daria na notórias inflexões em alguns aspectos
(1985–1990) aproximação e geração década de 1990; (ex. relações com a Argentina);
de confiabilidade são
Tendência geral em relação à política
empreendidas, incluindo Oposição interna (posição
externa da ditadura: continuidade.
em áreas-chave como soberanista)'
cooperação energética e
nuclear.
50
51
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
ambiente. Essa abertura à participação de novos atores associa-se umbilicalmente à abertura
política, e seria intensificada em governos vindouros, como o caso da presidência de Néstor
Kirchner (2003–2007), na Argentina, e Lula da Silva (2003-2010), no Brasil. A democratização, em
um horizonte temporal mais amplo, decerto diversificou os atores e agendas da política externa
em ambos os países, inferência essa que não se tornou possível aferir mediante a comparação
promovida no presente estudo devido ao recorte temporal.
Não obstante, acredita-se que o trabalho logrou comprovar a hipótese de que a transição
para a democracia impactou diferentemente a política externa de ambos os países, aportando
mudanças mais profundas, no caso argentino, e mudanças menos abruptas, no caso brasileiro. A
comparação entre os países logrou evidenciar disparidades entre ambos que ajudam a explicar
os impactos diferenciados da transição de regime, mormente: 1) a força burocrática conferida
ao Ministério das Relações Exteriores brasileiro e seu elevado nível de profissionalização, o
que explica, em ampla medida, os traços de continuidade da política externa brasileira até o
momento em análise; 2) especificidades dos regimes ditatoriais de cada país, os quais tenderam
ora ao isolamento internacional, como no caso argentino, ora a uma relativa salvaguarda do
prestígio internacional, como no caso brasileiro, possibilitada ainda pela consagração de uma
política externa que, longe de ser puramente militar, espalhava um consenso das elites políticas
vigentes e mantinha-se fiel aos alicerces históricos da política externa brasileira, conferindo maior
previsibilidade ao comportamento externo do país. Como variável independente, a transição
para a democracia explica, no prazo imediato, apenas parcialmente as mudanças ocorridas na
política externa de ambos os países. Parte da explicação emana de condições prévias, a exemplo
da força burocrática do MRE e dos contornos assumidos pelo regime ditatorial.
Ainda assim, considera-se que a comparação efetuada, embora limitada, contribui não
só para enfatizar a virtude do método comparado em estudos de política externa, como lança
importantes bases para se gerar uma análise de política externa que transcenda o campo
histórico-descritivo e logre apontar similitudes e diferenças entre ambos os países, além de
perseguir uma possível explicação a elas. A remissão ao histórico de emprego do método
Referências
AMORIM NETO, O. De Lula a Dutra: A condução e os determinantes da política externa brasileira.
Rio de Janeiro: Elsevier. 2012.
ARBILLA, José M. Arranjos Institucionais e Mudança Conceitual nas Políticas Externas Argentina
e Brasileira (1989 –1994). Contexto Internacional, v . 22, n. 2, jul./ dez. 2000, p. 337-385.
BARBOSA, W.; PORTILHO, I. As políticas externas de Argentina e Brasil durante seus regimes
militares: uma abordagem comparativa. Relações Internacionais, n. 51, set. 2016, p. 107-123.
BREUNNING, M. Foreign policy analysis: a comparative introduction. New York: Palgrave Macmillan, 2007.
BUSSO, Anabella. Los vaivenes de la política exterior argentina re-democratizada (1983-2013): reflexiones
sobre el impacto de los condicionantes internos. Estudios Internacionales, n. 177, 2014, p. 9-33.
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
CANDEAS, A. Relações Brasil-Argentina: uma análise dos avanços e recuos. Revista Brasileira
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
52
53
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
SMITH, Michel. Comparing foreign policy systems: problems, processes and performance. In:
CLARKE, M. ; WHITE, B. (eds.). Understanding foreign policy: The foreign policy systems approach.
Hants: Edward Elgar, 1989.
SPEKTOR, M. Origens e direção do Pragmatismo Ecumênico e Responsável (1974 – 1979 ).
Revista Brasileira de Política Internacional, v. 47, n. 2, p. 191-222, 2004.
UNITED NATIONS. United Nations Human Rights Treaty Bodies. UN Treaty Body Database. 2021.
Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/SitePages/Home.aspx. Acesso em 27 jan. 2021.
ZURITA, M. Las claves de la política exterior de Raúl Alfonsín. V Congreso de Relaciones
Internacionales, 2010. Disponível em: https://www.iri.edu.ar/publicaciones_iri/IRI%20
COMPLETO%20-%20Publicaciones- V05/Publicaciones/cd%20V%20congreso/ponencias/0%20
Zurita_Las%20claves%20de%20la%20politica%20exterior.pdf. Acesso em 22 jan. 2021.
Introdução
Metodologia
Este capítulo tem por estratégia de pesquisa o estudo de caso para avaliação teórica,
adotando como ferramentas metodológicas a análise de conteúdo, sob a técnica de categorização
temática, e a revisão de literatura. Em seu quadro metodológico, Bardin (2011) define três macro
etapas que integram a análise de conteúdo. A primeira condiz ao processo de pré-análise, que
Fonte: Elaboração própria com base em Alves, Figueiredo Filho e Henrique (2015).
1 A hipótese de abdicação é definida como sendo aquele perfil comportamental do Poder Legislativo marcado
pelo desinteresse ou incapacidade em decisões de política externa (MILNER, 1997). Assim, a presente análise não se
propõe a investigar os cursos de ação do Congresso Nacional a nível discursivo, restringindo-se a observação dos
demais cursos de ação no nível extradiscursivo.
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
A análise das declarações selecionadas deu-se por via da identificação das expressões
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
56
57
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
O enquadramento Acesso a mercados; “No campo econômico, podemos
da criação do Aprimoramento da ampliar nosso comércio com os
Mercosul como Competitividade; países vizinhos, em particular
uma política na área de energia, incluindo
Aumento de investimentos;
benéfica aos o petróleo, o gás natural, a
atores domésticos Autonomia relacional; biomassa e outras formas de
e/ou a diplomacia Autossuficiência energética; energia capazes de assegurar a
brasileira. Combate a inflação; produção energética na região
do Cone Sul.
Coordenação políticas
microeconômicas;
Desenvolvimento
infraestrutural;
Desenvolvimento tecnológico;
Eliminação de barreiras
Positiva
comerciais;
Estreitamento de Laços no
Cone Sul;
Identidade Comum;
Inserção internacional do Brasil;
Liberalização da matriz
econômica;
Livre circulação de fatores;
58
59
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
da Associação Latino-Americana de Livre-Comércio (ALALC) 2, instituída pelo Tratado de
Montevidéu de 1960, na Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), através do Tratado
de Montevidéu de 1980.
Neste sentido, as distintas expressões do fenômeno do regionalismo, a noção de formação
de grandes mercados a nível de comércio intrarregional logo perpetrou as inclinações de atores
políticos. Com efeito, a partir da década de 80, os processos de integração regional passaram a
ser observados como uma alternativa para os governos nacionais diante dos efeitos decorrentes
do processo de globalização, sendo, portanto, uma alternativa que permitiria aos países um
conjunto de possibilidades de melhor adequação ao próprio fenômeno de dinamismo da
economia internacional (MARIANO; OLIVEIRA, 1999; MALAMUD, 2003).
Diante das discussões sobre adaptações na política comercial dos Estados do Cone Sul,
tomando como paralelo o desafio do Brasil na defesa dos interesses do Sul Global nas negociações
do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), o Tratado de Montevidéu pressupunha o
objetivo de estabelecer um sistema de incentivo e assistência às economias subdesenvolvidos.
Mediante a isto, notava-se a prática dos princípios de ausência de reciprocidade e cooperação
entre a comunidade de Estados latino-americanos, prevendo a abertura de mercados para
produtos industriais dos Estados com desenvolvimento relativamente reduzido, assim como a
remoção imediata dos obstáculos alfandegários e não-tarifários (COMBA; VILELA, 2010).
Souza e Castillo (2016) argumentam que a proposta do Tratado de Montevidéu (1980)
significou a recusa indireta do predominante modelo econômico neoliberal, promovendo
sobretudo a garantia de um sistema de livre comércio em linhas multilaterais, sem ao menos
considerar a assimetria do grau de desenvolvimento social e econômico entre os países membros.
Logo, ao longo do período desenvolvimentista da política externa brasileira, o principal objetivo
de articulação e integração das indústrias nacionais não esteve representado na elaboração dos
acordos de Montevidéu de 1960 e 1980, contudo a integração produtiva permeou contextos
2 Segundo Comba e Vilella (1984, p. 34-35), o objetivo inicial da ALADI consistiu em “constituir uma zona de livre
comércio mais facilmente inserível num contexto de tendência universal como o concebido pelo GATT, especialmente
no seu espírito originário, onde as formas regionais de liberalização eram toleradas como etapas intermediárias para
alcançar a liberdade generalizada das trocas”.
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
(BARBIERO; CHALOULT, 2001). Deste modo, a dada conjuntura traduziu-se naquilo que Harvey
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
(1996) denominou por “acumulação flexível”, isto é, a ascensão de setores produtivos inéditos,
a readaptação do sistema financeiro internacional e do regime multilateral do comércio,
juntamente a “flexibilidade dos processos e dos mercados de trabalho, bem como dos produtos
e padrões de consumo” (BARBIERO; CHALOULT, 2001, p. 33).
De fato, a nova ordem internacional foi marcada por um conjunto de inclinações dos Estados
para a formação de novos arranjos de integração econômica regional que não se limitam mais
somente ao incremento do intercâmbio comercial (MARTIN, 2015; KEOHANE; MILNER; 1996).
Em virtude disso, observa-se que os parâmetros de um novo projeto de integração econômica
regional passariam a abarcar a totalidade das atividades vinculadas aos setores produtivos,
essencialmente à condição dos setores industriais mediante a seara de novas possibilidades de
aprimoramento das estruturas produtivas e acesso a novos mercados (HARVEY, 1996).
Ainda no âmbito da transição paradigmática da PEB, Hirst e Pinheiro (1995) argumentam
que, embora o Governo Collor de Mello possa ser considerado um breve plano de voo, é possível
notar um conjunto de transformações nas diretrizes das políticas domésticas, essencialmente no
que se refere ao modelo de inserção internacional (AZAMBUJA, 1991). Haja visto simultaneamente
a consolidação da redemocratização, a nova etapa da política externa brasileira foi caracterizada
pela ruptura de um consenso em consolidação desde meados da década de 70 que se dispunha
sob uma sólida estrutura burocrática, bem como no apoio eminente das elites econômicas e
políticas nacionais (Azambuja, 1991; Lima e Santos, 2001). Desta maneira, a partir da ótica do
conceito de autonomia, a partir do Governo Sarney, nota-se na agenda de integração econômica
regional a transformação da estratégia de inserção autonomista via distanciamento da política
externa (PRADO; MIYAMOTO, 2010).
Segundo Vigevani e Cepaluni (2011), os primeiros momentos da autonomia via aproximação
se mostraram incipientes quando comparados aos governos posteriores ainda durante a década
de 90. Logo, de acordo com Hirst e Pinheiro (1995), essas considerações apontam para uma
inserção internacional orientada em superar grandes desafios simultaneamente: 1) plano externo,
a tentativa falha de reverter a deterioração da condição do Brasil perante as grandes potências,
principalmente em termos de participar efetivamente da formação das regras do jogo na
formação da nova ordem internacional; 2) no plano doméstico, “as negociações da dívida externa,
pelas resistências domésticas – em especial no âmbito parlamentar – de apoiar as políticas de
liberalização e desestatização propostas pelo Executivo” (HIRST; PINHEIRO, 1995, p. 8).
No entanto, quanto à agenda de integração econômica regional, Azambuja (1991)
desenvolve que, diferentemente do período antecessor, a política externa no Governo
Collor esteve empenhada nas negociações juntamente com Argentina, Uruguai e Paraguai,
e posteriormente, a assinatura do Tratado fundador do MERCOSUL, em 1991. Isto porque os
interesses que fundamentaram a criação do bloco não foram apenas um útil instrumento que
permitiu acelerar o processo de liberalização da economia brasileira, mas também adquiriram
uma dimensão estratégica mais ampla (CERVO, 2007; FLORÊNCIO, 2015). Por conseguinte,
para o Itamaraty, a parceria sub-regional na seara económico-comercial assumiu um papel
crucial, permitindo conferir à diplomacia brasileira um impulso via o regionalismo, objetivando
assim estabelecer regras e mecanismos de controle à globalização mesmo que às custas de
desfalecimento de uma prerrogativas tradicional: “a submissão de decisões sobre políticas
macroeconômicas nacionais a um compromisso negociado entre as partes que compõem a
unidade regional” (HIRST; PINHEIRO, 1995, p. 14).
Além disso, no que se refere à convergência de interesses, dentre os elementos narrativos
presentes na trajetória do regionalismo no Cone Sul, Candeas (2010, p. 08) define que “o
conjunto de iniciativas para busca de cooperação intervalares a momentos de rivalidade
60
61
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
podem ser observadas um conjunto de marcos do século XX na construção da aproximação
da diplomacia brasileira com Buenos Aires”. Isto é, mesmo em momentos particulares da
história em que se observa a predominância desconfiança e rivalidade entre as duas potências
regionais, sobretudo na chamada “diplomacia da obstrução” e durante os anos de chumbo
(FAUSTO; DEVOTO, 2004; CERVO, 2003).
Partindo desta perspectiva, a evolução da temática da integração econômica regional
na história da política externa brasileira também pode ser constatada como intrinsecamente
associada aos movimentos pontuais da cooperação argentino-brasileira em múltiplas áreas das
relações internacionais (CANDEAS, 2010). Dentre os principais feitos situados cronologicamente,
vê-se o Tratado de Livre Comércio Brasil-Argentina (1941), o Tratado da Bacia do Prata (1969),
Acordo Tripartite Brasil, Argentina e Paraguai de Itaipu e Corpus (1979) e o Tratado de Integração,
Cooperação e Desenvolvimento (1988).
Candeas (2010) argumenta que, a partir da década de 70, os acordos internacionais
celebrados entre Brasil-Argentina passaram a ter maior importância no que se refere à
consolidação de um eixo dinâmico na região, a qual se fundamentou por vias do salto qualitativo
da cooperação durante os governos Alfonsín e Sarney, tornando-se cada vez mais confluentes
ao final da década de 80, mediante o giro neoliberal. Logo, nota-se que a convergência de
interesses entre os Governos Collor e Menem, foi fundamental para a intensificação das políticas
de liberalização comercial. A integração bilateral, idealizada nos mandatos de Sarney e Alfonsín
enquanto projeto de estruturação de estruturas produtivas para a construção de vastas empresas
regionais, foi reduzida a um projeto orientado para a abertura comercial (CANDEAS, 2010)3.
Ao considerar a perspectiva de desindustrialização, é possível observar que a dinâmica
exógena de intensificação dos fluxos internacionais de bens, serviços e capitais corroborou para
o remodelamento das preferências dos agentes socioeconômicos, que permeiam e se fazem
representados na esfera de instituições democráticas em que são geradas as decisões nacionais
3 Logo, “a integração ganhava a simpatia dos setores que nela viam uma forma de vencer os protecionismos no interior
dos dois países, fortalecendo políticas de abertura e desregulamentação da economia e do comércio. A integração
regional era vista como uma ‘globalização em miniatura’, que combinava impulsos de liberalização comercial com
estímulos à política industrial, exercendo um ‘papel didático’ sobre a economia” (CANDEAS, 2010, p. 221).
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Logo, com vistas aos elementos predecessores ao recorte analisado, isto é, a aprovação
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
4 De acordo com Milner (1997), o conceito de delegação em termos de negociação externa pode ser definido
como comportamento ou tendência de complementaridade de interesses, apoio ou posição favorável entre
os atores e/ou instituições no âmbito governamental para a celebração e consolidação de acordos no âmbito
internacional. No caso do Brasil, a estrutura constitucional das relações internacionais e o sistema político
brasileiro condiz ao poder executivo a competência de agente negociador no âmbito externo, enquanto a função
do congresso referentes aos atos celebrados pelo executivo no internacional se restringe a competência post
facto, isto é, a aprovação dos tratados e acordos internacionais no processo de ratificação destes compromissos
(MATTOS; MARIANNO, 2017).
5 Alexandre (2006), ainda, discorre acerca de um outro mecanismo de participação institucional do Legislativo: “a
edição de leis contendo modificações ou inovações na ordem jurídica interna previstas nos atos internacionais.
Este item, porém, merece ser relativizado na medida em que o atual regime confere ao presidente da República
significativo poder de agenda, ao reunir em suas mãos poderes de decreto e de urgência” (ALEXANDRE, 2006,
p. 60).
62
63
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
ou de rotina diplomática. Além disso, somam-se ao conjunto de mecanismos de participação
institucional do Congresso o poder de fiscalização através de suas comissões, isto é, a realização
de audiências públicas; a solicitação de requerimentos de informações oficiais; a convocação
de ministros de Estado; a aprovação do Senado sobre chefes de missões diplomáticas e a
autorização de declarações de guerra e permissões para entrada e/ou permanência de forças
estrangeiras em território nacional (ALEXANDRE, 2006).
Decerto, durante os anos que precederam o recorte neoliberal da política externa
brasileira, a apreensão de parte expressiva dos parlamentares em relação à integração
hemisférica esteve associada à percepção desta como um instrumento da política externa
de Washington (OLIVEIRA, 2003). Neste sentido, verifica-se que a denominada tendência
de abdicação do Congresso Nacional em política externa econômica está intrinsecamente
relacionada ao movimento inicial de separação das políticas industrial e comercial diante da
crescente competitividade internacional (OLIVEIRA; ONUKI, 2007). Considera-se ainda que
além destes fatores, a nova tendência do Legislativo esteve associada à resistência de parcela
considerável de atores domésticos diante da tônica de reformas estruturais, as quais se
fundamentavam sob princípios neoliberais no escopo vertical de negociações, contrapondo-
se ao requisito de adesão voluntária das economias latino-americanas ao livre comércio em
prol da concessão de investimentos e recursos financeiros e a amortização da dívida externa
(OLIVEIRA; ONUKI, 2007).
Verifica-se ainda que um dos principais receios dos parlamentares dos Estados latino-
americanos quanto à integração hemisférica consistia principalmente no fato de que um acordo
posterior com os Estados Unidos, somada à evolução generalizada do resultado, pudesse resultar
em diferenças significativas segundo as condições relativas do mercado norte-americano e suas
distintas estratégias para cada parceiro comercial (NEVES, 2003). Em resumo, argumenta-se que
os diferentes acordos de livre comércio entre os Estados Unidos e cada país latino-americano
64
65
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Neste sentido, o gráfico a seguir apresenta a distribuição do número de referências entre
os discursos dos parlamentares brasileiros sobre a criação do MERCOSUL:
Gráfico 3.1 – Atribuições positivas e negativas nos discursos parlamentares por número
total de referências de codificação
Avaliação
Positiva 71
Avaliação
Negativa 27
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Fonte: Elaboração própria através do software NVivo 12, com base nos dados do Diário do Congresso
Nacional (1991).
Fonte: Elaboração própria através do software NVivo 12 com base nos dados
do Diário do Congresso Nacional (1991).
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Conforme apresentado no gráfico acima, pode ser observada a percepção da ameaça da
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
6 Nesta via de percepção, encontram-se declarações dos deputados, Adylson Motta (PDS-RS), Dejandir Dalpasquale
(PMDB-SC), Dércio Knop (PDT-SC), Luiz Carlos Hauly (PMDB-PR), Paulo Duarte (PFL-SC).
7 Neste ponto destacam-se os pronunciamentos do senador José Dutra (PMDB-AM).
8 A exemplo dos posicionamentos do deputado Chico Vigilante (PT-DF)
66
67
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Ademais, é possível notar que embora pouco associada à visão negativa acerca da criação
do MERCOSUL, concebeu-se a ideia entre os atores parlamentares que a liberalização comercial
no Cone Sul representaria um obstáculo para a implementação das medidas de estabilização
inflacionária, bem como também para políticas de captação de investimentos internacionais
e inserção econômica do Brasil, tendo em vista que a decisão de criação do MERCOSUL
representaria uma estratégia alternativa de adesão condicionada das recomendações das
instituições financeiras internacionais sobre reformas estruturais.
Já a respeito das atribuições positivas, o gráfico 3 apresenta a hierarquia dos fundamentos
presentes nos discursos dos parlamentares brasileiros ao longo do processo de criação do MERCOSUL:
Gráfico 3.3 – Hierarquia de codificação das atribuições positivas percentual de referências
Inserção interna-
cional do Brasil 18,60%
Estreitamento de
laços no Cone Sul 10,80%
Aumento de 6,90%
investimentos
Desenvolvimento 6,90%
tecnológico
Identidade comum 5,90%
Produtividade 5,90%
dinâmica
Combate à inflação 4,90%
Eliminação de
barreiras comerciais 4,90%
Fim de hostilidades 4,90%
na região
Liberalização da 4,90%
0 5 10 15 20
Fonte: Elaboração própria com base nos dados do Diário do Congresso Nacional (1991).
Considerando tais informações, a percepção positiva por parte dos parlamentares brasileiros
esteve majoritariamente associada à visão do MERCOSUL como instrumento crucial para a inserção
internacional brasileira, no sentido que reforça o seu papel na liderança regional e permite um peso
de barganha maior num escopo de negociações mais amplo9. Deste modo, a integração foi vista
como um processo que unificaria e aproxima os Estados do Cone Sul num sentido mais estrito de
coletividade, considerando-a, pois, a via compulsória aliada à conquista da estabilidade econômica
9 Neste ínterim discursivo, destacam-se as declarações do senador Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP)
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
e do desenvolvimento socioeconômico pelos países da região. Esses aspectos também estiveram
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
10 Destacam-se nesta perspectiva os parlamentares Oswaldo Stecca (PSDB-SP), Divaldo Suruagy (PFL-AL) e Paes
Landim (PFL-PI).
11 Tomando como exemplo as declarações do senador Dirceu Carneiro (PSDB/SC).
68
69
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
sentido da estratégia de autonomia relacional, destaca-se o fato do MERCOSUL ser um instrumento
de contraposição à ampliação comercial dos EUA e dos tigres asiáticos. Neste sentido, a formação do
MERCOSUL na integração sul-americana poderia ser considerada um artifício orientado à superação
das assimetrias nas relações norte-sul e, simultaneamente a isto, um estágio perpendicular da
integração latino-americana caracterizada pelo bom relacionamento político entre as instâncias
parlamentares nacionais e ascensão de uma identidade comum entre os países do Cone Sul.
O gráfico a seguir apresenta a comparação total entre as atribuições negativas e positivas
dos parlamentares brasileiros por estado e partido político, respectivamente:
Gráfico 3.4 – Total de declarações dos parlamentares por Unidade Federativa (UF)
20
15
10
Av. negativa 0 1 0 5 1 0 1 0 5 1 3 14 0 1
Fonte: Elaboração própria através do software NVivo 12 com base nos dados do Diário do Congresso Nacional (1991).
Positiva Negativa 0 5 10 15 20
0 1 PDC
7 0 PDS
0 1 PDT
18 4 PFL
25 13 PMDB
1 0 PRN
8 1 PSDB
5 6 PT
2 0 PTB
Fonte: Elaboração própria através do software NVivo 12, com base nos dados do Diário do Congresso Nacional (1991).
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Com base nas informações acima apresentadas, a percepção negativa acerca da criação do
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
Mercosul se fez presente nos discursos de dois perfis de parlamentares brasileiros. O primeiro
perfil se refere ao grupo de parlamentares vinculados a partidos próximos à questão dos direitos
trabalhistas e à causa sindical (PDT e PT), nos estados que concentram uma parcela expressiva
de trabalhadores urbanos, sobretudo do estado de São Paulo e do Distrito Federal. Já o segundo
perfil diz respeito aos parlamentares associados à defesa da produção agropecuária nos estados
da região sul. A respeito desta categoria, destaca-se a indicação intitulado “posicionamento dos
parlamentares da região sul frente às negociações agrícolas do MERCOSUL”, a qual requereu
condições preliminares ao Poder Executivo:
Visando a evitar graves prejuízos na área agrícola da região Sul do País, com
sérios reflexos sobre a estabilidade econômica e social de nossa região,
solicitamos que o Subgrupo B do Mercosul, antes de suas negociações
com os demais países participantes, discutam com os setores produtivos
interessados, evitando assim desajustes que toda a integração em maior ou
menor escala possa provocar (CONGRESSO NACIONAL, 1991, p. 8017).
Figuras 3.1 e 3.2 – Nuvens de palavras derivadas nas codificações de atribuições negativa
(esquerda) e positiva (direita)
Fonte: Elaboração própria através do software NVivo 12 com base nos dados do Diário do Congresso
Nacional (1991).
70
71
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
desindustrialização e de liberalização da matriz econômica poderia intensificar ainda mais
vulnerabilidade socioeconômica da classe trabalhadora. Ademais, o elemento regionalista
esteve também presente na interpretação dos parlamentares que concebiam com preocupação
a formação do bloco econômico, dado que a abertura comercial significava uma ameaça para a
condição dos produtos industriais da Zona Franca de Manaus, quanto para os produtos de baixo
valor agregado do empresariado agropecuário sulista. Desta forma, a figura a seguir apresenta
a análise cluster do grau de similaridade das palavras codificadas sob a perspectiva binomial de
atribuições positivas e negativas relativas à formação do MERCOSUL.
DF
GO
SE
PE
RR
MG
SP
PR
RS
CE
PI
AM
SC
Fonte: Elaboração própria através do software NVivo 12 com base nos dados do Diário do Congresso Nacional (1991).
Referências
ALEXANDRE, Cristina Vieira Machado. O Congresso Brasileiro e a Política Externa (1985–2005).
Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - Puc-Rio, Rio de
Janeiro, 2006. Disponível em: http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0410232_06_
pretextual.pdf Acesso em 25 jun. 2021.
72
73
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
AZAMBUJA, Marcos Castrioto de. A Política Externa do Governo Collor. São Paulo: Instituto de
Estudos Avançados, 1991.
BABB, Sarah. The Washington Consensus as transnational policy paradigm: its origins, trajectory
and likely successor. Review Of International Political Economy, v. 20, n. 2, abr. 2003, p. 268-297.
BARBIERO, Alan e Chaloult, Yves. O Mercosul e a Nova Ordem Econômica Internacional. Revista
Brasileira de Política Internacional, n. 1, jun. 2001, p. 22-42.
BARBOSA, R. A. “O Brasil e a integração regional: a Alalc e a Aladi (1960–1990)”. In: Anais do II
Seminário Nacional do Projeto 60 Anos de Política Externa Brasileira. São Paulo: Nupri/USP, 1992.
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
CANDEAS, Alessandro. A integração Brasil-Argentina: história de uma ideia na “visão do outro”.
Brasília: FUNAG, 2010. Disponível em: http://funag.gov.br/loja/download/683-integracao_brasil_
argentina.pdf. Acesso em 19 jul. 2021.
CERVO, Amado Luiz. Política de comércio exterior e desenvolvimento: a experiência brasileira.
Brasília. Revista brasileira de política internacional, v. 40, n. 2, p. 5-26, 1997.
______. Política exterior e relações internacionais do Brasil: enfoque paradigmático. Revista
Brasileira de Política Internacional, dez. 2003, v. 46, n. 2, p. 5-25.
______. Relações Internacionais da América Latina: velhos e novos paradigmas. São Paulo: Saraiva,
2ª ed., 2007.
______. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
COMBA, Andrea; VILLELA, Anna Maria. Da ALALC a ALADI. Revista de Informação Legislativa, v.
(Orgs.). A nova ordem mundial em questão. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
MALAMUD, Andrés. Presidentialism and Mercosur: a hidden cause for a successful experience.
In: LAURSEN, Finn (Ed.). Comparative regional integration: theoretical perspective. Nova York:
Ashgate, 2003. p. 53-73.
MATTOS, Angelo Raphael e MARIANO, Karina Lilia Pasquariello. Legislativo e Política Externa
Brasileira: Integração Regional e Tratados Internacionais. Trabalho apresentado no Congresso
Internacional FOMERCO XVI, Salvador, 2017.
MEDEIROS, C. A. de. Globalização e a inserção diferenciada da Ásia e da América Latina. In:
TAVARES, M. da C; FIORI, J. L. Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis:
Vozes, 1998.
MERCOSUL. Tratado de Assunção. 1991. Disponível em: http://www.mercosul.gov.br/normativa/
tratados-e-protocolos/tratado-de-assuncao-1/. Acesso em 28 jun. 2021.
MILNER, Helen Virginia. Interests, institutions and information: domestic politics and international
relations. Princeton: Princeton University Press, 1997.
______. The Political Economy of International Trade. Annual Review of Political Science, v. 2, n. 1,
jun. 1999, p. 91-114.
NEVES, João Augusto de Castro. O papel do legislativo nas negociações do Mercosul e da ALCA.
Contexto Internacional, v. 25, n. 1, p. 103-138, jun. 2003.
OLIVEIRA, Marcelo Fernandes de. Mercosul: atores políticos e grupos de interesses brasileiros. São
Paulo: Editora UNESP, 2003.
OLIVEIRA, Amâncio Jorge Silva Nunes; ONUKI, Janina. Grupos de interesses e a política comercial
brasileira: a atuação na arena legislativa. Papéis Legislativos, n. 8, v. 1, 2007, p. 1-20.
PRADO, Débora Figueiredo Barros do; MIYAMOTO, Shiguenoli. A Política Externa do Governo
José Sarney (1985–1990). Revista de Economia e Relações Internacionais, v. 8, n. 16, 2010.
RICUPERO, Rubens. A diplomacia na construção do Brasil (1750–2018). Rio de Janeiro: Versal,
2017.
RODRIK, Dani. Understanding Economic Policy Reform. Journal of Economic Literature, v. 34, n. 1,
1996, p. 9-41.
SAÉZ, Manuel A. South American Legislatures: Thinking About Economic Integration and Defense
Policy. Washington: Center for Strategic and International Studies (CSIS) Report, 2000.
SILVA, Danielle Costa da; GRANJA HERNÁNDEZ, Lorena. Aplicação metodológica da análise de
conteúdo em pesquisas de análise de política externa. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 1,
n. 33, p. 1-45, 2000.
SOUZA, Karla Sarmento Gonçalves de; CASTILHO, Marta Reis. Integração produtiva e acordos
comerciais: o caso dos países da ALADI. Economia e Sociedade, v. 25, n. 1, abr. 2016, p. 173-207.
SPEKTOR, Matias. O projeto autonomista na política externa brasileira. In: MONTEIRO NETO, A.
(Org.). Política Externa, Espaço e Desenvolvimento. Brasília: IPEA, 2014, p. 20-58.
VIGEVANI, Tullo; CEPALUNI, Gabriel. A política externa brasileira: a busca de autonomia de Sarney
a Lula. São Paulo: Editora UNESP, 2011.
WALTZ, K. N. Theory of International Politics. New York: McGraw Hill, 1979.
74
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
CAPÍTULO 4
Leandro Gavião
Introdução
1 Dessa reunião participaram todos os doze países sul-americanos independentes, a saber: Argentina, Bolívia, Brasil,
Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela.
2 A I Reunião logra êxito em parte substancial das diretrizes propostas, mormente no que tange à preocupação com
o início da integração física e com a necessidade de tornar os encontros de Chefes de Estado um recurso regular nas
relações sul-americanas.
3 Lafer ocupou a chancelaria entre 2001 e 2002.
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
A política externa de Fernando Henrique Cardoso e as bases da identidade sul-americana
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
Segundo Vigevani, Oliveira e Cintra (2003, p. 32), a era Cardoso baliza a consolidação de
um novo paradigma da política externa brasileira: a autonomia pela participação4. Rompendo
em definitivo com a lógica de atuação pautada na autonomia pela distância5, o novo governo
percebeu que as circunstâncias apresentadas pela nova ordem mundial pós-bipolar impeliam o
país a redefinir sua inserção internacional, abandonando posicionamentos alicerçados na ideia
equivocada de autossuficiência.
A autonomia pela participação conciliava a adesão às normas e aos regimes internacionais com
a preservação de espaços de soberania. No âmbito regional, manteve-se a lógica de evitar a partilha
de soberania em arranjos de integração, o que poderia constranger sua liberdade de projeção
no tabuleiro externo. Tal opção revelou seus resultados tanto no entorno sul-americano como no
MERCOSUL, provavelmente a organização mais sensível aos efeitos dessa lógica de atuação.
O chanceler Luiz Felipe Lampreia — que denominou o mesmo paradigma de autonomia
pela integração - ao comentar sobre a concepção de uma hipotética autoridade supranacional
no âmbito do MERCOSUL, ponderou que “o Brasil não tem razão nenhuma para abrir mão da
sua soberania” (LAMPREIA, 1999, p. 304). Para além das especificidades do novo paradigma, essa
posição apenas ratificou a histórica resistência aos arranjos cujos objetivos indicassem algum
grau de supranacionalidade. O enraizamento do princípio da autonomia evidencia-se, dessa
forma, nas preferências delineadas pela estrutura dos projetos de matiz intergovernamental dos
quais o Brasil participava. Não causa espanto que esse perfil seja ainda mais evidente quando se
toca no tema da integração regional (VIGEVANI et al., 2008, p. 16).
Em face das dificuldades para realizar o aprofundamento institucional do MERCOSUL
— haja vista que a desvalorização abrupta do real, em 1999, provocou impactos severos na
economia argentina, que por sua vez retaliou o Brasil com tarifas alfandegárias —, o governo
Cardoso acelerou outras iniciativas regionais, dessa vez com o conjunto da vizinhança sul-
americana, destacando-se a I Reunião de Presidentes da América do Sul (SARAIVA, 2014, p. 65).
Com efeito, houve uma mudança de rumos em direção a uma opção de natureza quantitativa
– o regionalismo ampliado – em detrimento da aplicação de capital político em um MERCOSUL
que se encontrava em plena crise (MELLO, 2000, p. 17-18).
Entretanto, a aproximação com os países vizinhos esbarrou numa série de dificuldades.
Além do exíguo crescimento econômico da América do Sul durante a década de 1990, somava-se
a instabilidade política de alguns países, mormente o Paraguai6 e alguns países da Comunidade
Andina (CAN) – não obstante as energias canalizadas para criação de altas instituições formais
nos marcos do bloco7. Na avaliação de Andrés Malamud, a CAN
Apesar de funcionar como uma área de livre comércio desde 1993 - primeiro
entre Bolívia, Colômbia, Equador e Venezuela e, mais tarde, também
4 Seguindo uma lente interpretativa distinta, Amado Luiz Cervo afirma que a era Cardoso “oferece, com efeito, o
espetáculo da dança dos paradigmas: o desenvolvimentista que ele se compraz em ferir gravemente sem matar,
o normal [neoliberal] que emerge de forma prevalecente e o logístico que ensaia como outra via. (...) A ideologia
subjacente ao paradigma do Estado logístico associa um elemento externo, o liberalismo, a outro interno, o
desenvolvimentismo” (CERVO, 2008, pp. 82-85).
5 Para maiores informações sobre o conceito de autonomia na política externa brasileira, ver Vigevani e Cepaluni (2009).
6 No início de 1998, pairava um clima de crise institucional no Paraguai, com graves suspeitas de uma possível
anulação das eleições presidenciais agendadas para maio daquele ano. Um golpe de Estado poderia colocar em
xeque a credibilidade do Mercosul e acarretar a expulsão daquele país do bloco. Nesse contexto, o papel do eixo
Brasília-Buenos Aires foi essencial para evitar a quebra da legalidade democrática (ALMEIDA, 2009, p. 40).
7 “Atualmente, o princípio legal de efeito direto e a supremacia do direito comunitário, fazem da Comunidade
Andina a segunda região do mundo no que tange ao seu nível formal de institucionalização, somente atrás da União
Europeia” (MALAMUD, 2010, p. 12).
76
77
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
com Peru - e de ter uma tarifa externa comum desde fevereiro de 1995, a
característica da região não tem sido o desenvolvimento, mas a revolta
social, a instabilidade política e o fracasso econômico. (...) os países andinos
não lograram consolidar uma zona de paz, estabilidade e crescimento
(MALAMUD, 2010, p. 12).
Em 1995, motivados por disputas fronteiriças, Equador e Peru deram início a um conflito
armado (MALAMUD, 2012, p. 12). Menos de um mês após o início das hostilidades, o Brasil
assumiu o papel de mediador e iniciaram-se as conversações de paz. Fernando Henrique Cardoso
engajou-se pessoalmente na busca de um desenlace para o cenário de guerra provocado pelos
dois países sul-americanos. Consolidado o cessar-fogo sem a necessidade de uma solução
extrarregional através da OEA, Cardoso pôde celebrar o episódio como uma “vitória para o
continente”8. O Chefe do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos, general John Shalikashvili,
referendou o “papel de liderança”9 do Brasil frente ao episódio10. Emblemático, o Acordo Global
Definitivo da Paz foi assinado três anos depois, em Brasília, resultando no Tratado de Comércio e
Navegação e no Acordo Amplo de Integração Fronteiriça.
Sem a conversão da América do Sul em uma zona democrática, estável e de paz, seria
impossível fomentar a abertura de novos canais regionais de diálogo e impulsionar os anseios
integracionistas presentes na agenda brasileira. Em 1998, a proposta da ALCSA, que não havia
8 Cf. Fernando Henrique Cardoso celebra vitória para o continente. O Globo, Rio de Janeiro, 18 fev. 1995. O Mundo, p.22.
9 Leadership role, no original.
10 Cf. Brasil-Estados Unidos. Visita do General Shalikashvili. Entrevista com o Senhor Presidente da República. 11
mar. 1995, n. 391.
11 Além do anfitrião Fernando Henrique Cardoso, participaram os presidentes da Argentina, Fernando De la Rúa; da
Bolívia, Hugo Bánzer Suárez; do Chile, Ricardo Lagos Escobar; da Colômbia, Andrés Pastrana Arango; do Equador,
Gustavo Noboa; da Guiana, Bharrat Jagdeo; do Paraguai, Luís Ángel González Macchi; do Peru, Alberto Fujimori; do
Suriname, Runaldo Ronald Venetiaan; do Uruguai, Jorge Batlle Ibáñez; e da Venezuela, Hugo Chávez Frías.
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
de articulação e aproximação entre os países sul-americanos, mas também como instrumento
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
No mesmo sentido, busca-se consolidar aquilo que Karl Deutsch (1978) chamou de
“comunidade psicológica não belicista”, ao apresentar a América do Sul como uma zona de
paz onde predomina o diálogo e a concórdia, distinguindo-se sobremaneira de outras regiões
onde a “paz e o ambiente de amizade e cooperação” não existem na mesma proporção. Criou-
78
79
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
se assim um ambiente que praticamente eliminou dos cálculos estratégicos a possibilidade de
conflitos interestatais.
Os instrumentos classificados como necessários para criação de uma Zona de Paz Sul-
Americana são quatro: (i) a integração; (ii) a solução pacífica e negociada de controvérsias; (iii)
a observância às normas pertinentes do Direito Internacional; (iv) o desarmamento e a não
proliferação de armas de destruição em massa. Alguns dos itens elencados acima coincidem
com princípios constitucionais brasileiros, como a renúncia às armas nucleares. Na dimensão
sul-americana, a defesa da não proliferação desponta como uma espécie de ratificação coletiva
do TNP, uma vez que, na ocasião do encontro, não havia nenhum país da região não signatário
do tratado e, portanto, disposto a investir em armamentos nucleares para incrementar seus
indicadores de hard power.
O compromisso com a democracia representativa também apresenta-se como um
requisito indispensável para a consolidação da paz regional e para a continuidade da integração.
De acordo com o 20º parágrafo do documento, a definição de democracia é alicerçada nos
seguintes componentes: “processos eleitorais livres, periódicos, transparentes, justos e
pluralistas, baseados no sufrágio secreto e universal” (COMUNICADO DE BRASÍLIA, 2000, sp.).
Após um período marcado pela superação de regimes autocráticos, as instituições democráticas
dos Estados sul-americanos foram alçadas à condição de fundamento de legitimidade dos
sistemas políticos. Nos parágrafos 20 e 21, a democracia é apresentada como o instrumento
Para além de uma concepção mais técnica, a democracia também deveria ser compreendida
em seu sentido expandido. Nesse sentido, o conceito de democracia, tal como verificado no
documento, faz menção não somente às instituições e às práticas que sustentam as garantias
do pleno exercício dos direitos políticos, mas sustenta igualmente a isonomia, o respeito aos
direitos civis e a defesa dos direitos humanos, bem como o combate às desigualdades sociais e
o enfrentamento às mazelas socioeconômicas estruturais dos países da região.
A IIRSA organizou a América do Sul em dez eixos de integração que englobam o conjunto
do subcontinente, cada qual classificado de acordo com as capacidades de exportação de cada
área. Estruturados a partir de redes de comércio e visando a apoiar o desenvolvimento das
cadeias produtivas, em alguns casos essas faixas multinacionais criavam interseções entre dois
ou mais eixos, conforme é possível identificar no Mapa 4.1, a seguir.
80
81
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Mapa 4.1 – Os dez eixos de integração da IIRSA
estratégica da América do Sul, tal como estabelecidos na IIRSA, podem ser definidos da seguinte
maneira:
Contudo, é importante lembrar que a IIRSA foi concebida sob os auspícios do regionalismo
aberto, em um período em que praticamente todos os governos sul-americanos flertavam
em alguma medida com os pontos defendidos pelo Consenso de Washington. Sendo assim,
reconhecia-se a necessidade de um novo ordenamento territorial que permitisse aos Estados
da região fazer uso de corredores de exportação, de modo a ampliar sua competitividade ao
reduzir o custo logístico, incrementando seus fluxos para o mercado global, valendo-se de suas
vantagens comparativas.
Esse modelo foi criticado por diversos autores alinhados com uma visão mais intervencionista,
dentre os quais Darc Costa e Raphael Padula. Na visão de seus críticos, a IIRSA nada mais fez do
que reproduzir o padrão histórico regional, acentuando a lógica “colonial” de convergência das
economias sul-americanas “para fora”, dependente da demanda dos países centrais e articulada
na especialização comercial baseada em commodities (PADULA, 2011, p. 175). De fato, nota-se
que todos os eixos de integração desembocam nos dois oceanos, deixando subentendida a visão
puramente geoeconômica da região, não obstante a retórica oficial.
Uma mudança relevante dos princípios orientadores do planejamento da infraestrutura
do subcontinente ocorreu somente na presidência de Lula da Silva, nos marcos da III Reunião
de Presidentes da América do Sul, em 2004, e, posteriormente, após a incorporação da IIRSA
82
83
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
ao Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento da UNASUL (COSIPLAN). Até
então, os governos eximiam-se de intervir diretamente na elaboração e execução das obras de
integração da infraestrutura física, deixando o protagonismo nas mãos de bancos multilaterais.
Mesmo com essas mudanças, continuou-se a reconhecer a expertise da I’IRSA, razão pela qual
os governos buscaram operar de forma coordenada com a organização e aproveitando sua
arquitetura institucional. Inclusive, a relevância da IIRSA foi citada justamente na Declaração de
Cusco, documento firmado após o fim do encontro de presidentes de 2004, no Peru.
Nos anos de 1997 e 1998, a América do Sul chegou a representar quase 1/4 do fluxo
total de exportações do Brasil. Em 1999, este índice oscilou negativamente. No ano seguinte,
nos marcos da Reunião de Presidentes da América do Sul, houve uma tímida recuperação dos
números referentes tanto ao volume total como ao percentual de participação nas exportações.
Em 2001 e 2002, ambos os índices mantiveram uma tendência geral de arrefecimento.
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
No último ano do governo Cardoso, a participação da América do Sul nas exportações
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
brasileiras declinou para 12,4%, o patamar mais baixo desde 1990. Essa conjuntura acompanha
as circunstâncias vivenciadas pelo Mercosul no mesmo período. As razões são evidentes, uma
vez que os dois maiores países da região vivenciaram um cenário de crise entre os anos de 1999
e 2001, levando algum tempo para reorganizar a economia14 (cf. Tabela 3).
Tabela 4.2 – Comércio bilateral do Brasil com a Argentina: da crise de 1999 até 2002
14 No caso da Argentina, a crise econômica veio acompanhada de uma grave crise política. O país teve cinco
presidentes em apenas doze dias.
15 Cf. Parágrafo 8 do Comunicado de Brasília (2000). Essa frase sobre a importância da integração latino-americana
faz, decerto, menção à incorporação desse tema às Constituições dos Estados da região.
16 “(...) em particular o Mercosul, seus processos de associação com a Bolívia e o Chile, a Comunidade Andina, a
Corporação Andina de Fomento, o Fundo Latino-Americano de Reservas, bem como a ALADI, o Tratado do Bacia do
Prata, o Tratado de Cooperação Amazônica, o Grupo dos Três, o Mercado Comum Centro-Americano e a Caricom,
entre outros, têm sido os elementos mais dinâmicos da integração latino-americana e caribenha. Articular a América
do Sul significa, portanto, fortalecer a América Latina e o Caribe”. Cf. Parágrafo 9 do Comunicado de Brasília (2000).
84
85
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
É interessante notar que o parágrafo 9 também sugere a conformação de uma área de
livre comércio das Américas, que teria como esteio a consolidação dos processos sub-regionais
precedentes, o que indica a sobrevivência retórica de um pan-americanismo.
Sendo assim, o Comunicado de Brasília indica que a ação conjunta dos países sul-
americanos teria por finalidade servir de plataforma para ampliar as chances de auferir vantagens
nas futuras negociações envolvendo a ALCA, levando em consideração a capacidade do Brasil
para influenciar a definição da agenda regional (FONSECA, 1999, p. 38). A formação de um polo
de posições coordenadas seria determinante para assegurar ao Brasil uma margem de atuação
mais confortável, favorecendo-o tanto na dimensão regional como em suas pretensões como
global player. Por outro lado, os demais países sul-americanos – sobretudo os mais vulneráveis –
poderiam, durante os diálogos em torno da ALCA, obter concessões setoriais, visando a minorar
as assimetrias nos níveis de desenvolvimento de suas economias.
Embora o documento reconhecesse, em seus parágrafos 9, 30, 33 e 34, que a formação
do espaço econômico ampliado sul-americano teria por base o regionalismo aberto e auxiliaria
futuras articulações extrarregionais – dentre as quais uma área de livre comércio hemisférica,
“que a região deseja ver levada a bom termo”17 – o Brasil pretendia impedir seus vizinhos de
firmar tratados bilaterais de comércio com Washington ou adesões individuais ao NAFTA.
Ainda que em doses homeopáticas, essa aproximação poderia resultar em uma composição
fragmentária da ALCA, provocando desvio de comércio e estreitamento do espaço de manobra
86
87
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Um balanço do significado de América do Sul durante a Era Cardoso
A visão do governo de Fernando Henrique Cardoso sobre a América do Sul não pode
ser desvinculada do contexto internacional. Durante seu primeiro mandato, predominava uma
maior inclinação ao liberalismo, fenômeno característico dos primeiros anos que acompanharam
o mundo pós-bipolar. Sendo assim, a integração sul-americana manteve a vocação comercialista
própria do regionalismo aberto. As palavras do chanceler Luiz Felipe Lampreia, segundo o qual
o MERCOSUL não deveria ser “um fim em si mesmo, mas um instrumento para se conseguir
uma participação mais ampla no mercado global” (LAMPREIA apud SARAIVA, 2012, p. 95) é um
indicativo bastante eloquente sobre a interpretação da função primordial da América do Sul na
agenda brasileira.
Coincidência ou não, a posição do governo mudou após Celso Lafer substituir Lampreia como
chanceler20. Em março de 2001, o presidente Fernando Henrique Cardoso criticou o protecionismo
dos países ricos e proclamou a célebre frase: “O MERCOSUL para nós é um destino, enquanto que a
ALCA é apenas uma opção, à qual vamos aderir apenas em condições favoráveis”21. De acordo com
Amado Luiz Cervo, esse deslocamento de posição pode ser relacionado com a chamada “dança
dos paradigmas” do governo Cardoso, que em seu segundo mandato já começava a apresentar
maior ceticismo quanto aos efeitos da globalização (CERVO, 2008, p. 82-85). Na mesma ocasião,
Cardoso também criticou as regras da Organização Mundial do Comércio, que na sua visão
20 Celso Lafer tomou posse como Ministro das Relações Exteriores em 29 de janeiro de 2001, permanecendo no
cargo até o fim do mandato de Fernando Henrique Cardoso.
21 Cf. Para FHC, Alca é ‘apenas opção’. Mercosul é destino. Folha de Londrina, 13 mar. 2001.
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
ganharam progressivamente uma conotação defensiva em relação aos efeitos deletérios
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
88
89
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
em sintonia com a arquitetura de valores da nova ordem mundial pós-bipolar; (ii) negociar, via
coordenação conjunta da América do Sul, acordos mais vantajosos para o Brasil em uma futura
área de livre comércio das Américas; e (iii) elevar, por meio da integração física e da desgravação
tarifária, o fluxo de comércio com os demais Estados da vizinhança, além de realizar uma inserção
mais competitiva na economia mundial.
Referências
ALMEIDA, Fernando Roberto de Freitas. As Novas Configurações do Sistema Internacional em Fins
do Século XX e a Integração Brasil-Argentina. Revista CADE, ano IX, n. 15, jul./dez., 2009, p. 22-58.
BECARD, Danielly. Relações Exteriores do Brasil Contemporâneo. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
BRASIL- ESTADOS UNIDOS. Visita do General Shalikashvili. Entrevista com o Senhor Presidente da
República. n. 391, 11 mar. 1995.
CERVO, Amado Luiz. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo:
Saraiva, 2ª ed., 2008.
COMUNICADO DE BRASÍLIA. Brasília: 2000.
DECLARAÇÃO DE CUSCO. Cusco: 2004.
Sul americana (IIRSA): oportunidades e riscos. Seu significado para o Brasil e a Argentina”. Revista
Brasileira de Política Internacional, v.46, n.1, p. 213-221, jan./jun. 2003.
RODRIGUES, Mauro. Diez años de IIRSA: lecciones aprendidas. Centro Brasileiro de Relações
Internacionais, Dossiê v. I, ano 11, 2012.
SARAIVA, Miriam. Encontros e Desencontros: o lugar da Argentina na política externa brasileira.
Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2012.
______. The Brazilian Soft Power Tradition. Current History, Filadélfia, fev. 2014, p. 64-69.
SIMÕES, José Ferreira. Integração: sonho e realidade na América do Sul. Brasília: FUNAG, 2011.
SOLIANI, André; NOGUEIRA, Rui. Brasil reúne líderes para marcar posição. Folha de São Paulo, 27
ago. 2000. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2708200013.htm . Acesso
em 22 ago 2022.
UNASUL. Tratado Constitutivo da UNASUL. Brasília: 2008.
VIGEVANI, Tullo; CEPALUNI, Gabriel. A política externa brasileira: a busca da autonomia, de Sarney
a Lula. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
______, et al. O papel da integração regional para o Brasil: universalismo, soberania e percepção
das elites. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, Ibri, ano 51, n. 1, 2008, p. 5-27.
______; OLIVEIRA, Marcelo; CINTRA, Rodrigo. A política externa do governo Cardoso: um exercício
de autonomia pela integração. Tempo Social, São Paulo, n. 20, p. 31-61, 2003.
VIZENTINI, Paulo Fagundes. Relações Internacionais do Brasil: de Vargas a Lula. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2008.
90
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
CAPÍTULO 5
Introdução
1 O estopim destas manifestações foram as reivindicações pela diminuição das tarifas dos transportes públicos em
São Paulo, que subiram de R$ 3,80 para R$ 4.
2 Durante o governo de Michel Temer, por exemplo, o recriado Gabinete de Segurança Institucional (GSI) teve
à frente o general do Exército Sérgio Etchegoyen. No Ministério da Defesa, o general Joaquim Silva e Luna foi o
primeiro militar a ocupar o cargo desde sua criação em 1998.
92
93
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
anticorrupção, contra o establishment político, baseado no antipetismo e no apelo à moralidade
cristã — pautas que adquiriram um novo fôlego após 2013 — com um viés extremamente
autoritário e antipopular (PEREIRA DA SILVA, 2018). Cabe ressaltar que as eleições de 2018 foram
agitadas e permeadas de acusações de fraudes, na qual também consta um atentado contra
um presidenciável e enormes volumes de notícias falsas circulando nas redes sociais. Desde
a campanha presidencial, Bolsonaro propôs estabelecer uma ruptura em termos de política
doméstica e internacional. Por isso, logo após vencer o pleito, uma das áreas que recebeu maior
atenção do novo presidente foi a política externa.
Para além de estabelecer uma posição antagônica a de seus antecessores imediatos — Lula
da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer — Bolsonaro tratou de contrariar algumas das diretrizes
contidas no histórico diplomático brasileiro3. Ainda durante a campanha, Bolsonaro já dava indícios
da tônica de sua política externa, apresentando uma clara preferência por relações com os Estados
Unidos de Donald Trump, declarações contrárias à Venezuela, Cuba e China, além de uma simpatia
pessoal por personagens de uma extrema-direita populista em ascensão no cenário internacional,
como Matteo Salvini na Itália (VELASCO, 2018). Um dos personagens mais importantes do governo
Bolsonaro nesse sentido foi o Ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo — nome indicado
pelo então guru dos bolsonaristas e autoproclamado filósofo, Olavo de Carvalho4.
O objetivo deste capítulo é identificar como a política externa de Jair Bolsonaro,
especificamente durante a gestão do Ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, foi
influenciada pelo Populismo, a partir dos discursos realizados por ambos os representantes e as
categorias por eles mobilizadas tais como “antiglobalismo”. Para alcançar o objetivo proposto,
partimos de um debate conceitual-teórico sobre os termos Populismo e política externa. Depois,
discutimos as contribuições do pós-estruturalismo, através dos argumentos apresentados por
autores referência na área, como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Com isso, pretendemos
investigar variáveis importantes que o fenômeno nos proporciona, como o status de lógica
política que ele carrega e o papel do discurso nesse tabuleiro.
Com isso, analisamos as formas pelas quais o Populismo influencia a tomada de decisão
na política externa brasileira. Através de uma revisão bibliográfica, será realizada uma análise
exploratória com coleta bibliográfica e documental de fontes primárias e secundárias as quais
incluem, matérias de jornais, livros e artigos acadêmicos de autores ligados à Teoria do Discurso,
Análise de Política Externa e Populismo. Para confirmar os argumentos, será feita uma análise
qualitativa e comparativa dos argumentos levantados pelos autores referência, observando o
3 Cervo (2008) definirá o histórico da diplomacia brasileira como: “cooperativa e não-confrontacionista, universalista,
pacifista, zelosa pela soberania em razão do papel indutor do Estado e da necessidade de planejar o desenvolvimento”
(p. 34).
4 Olavo de Carvalho faleceu em janeiro de 2022.
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Primordialmente, a política externa pode ser compreendida como um programa orientado
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
à resolução de problemas ou objetivos que impliquem ação a atores externos, ou seja, atores
que estão fora da jurisdição dos formuladores de políticas ou seus representantes (HERMANN,
1990, p. 5). E, ainda, como a aglutinação dos interesses e ideias dos representantes de um Estado
sobre sua inserção no sistema internacional (PINHEIRO, 2004, p.5) ou o conjunto de intenções
e ações de certo ator direcionadas ao mundo exterior (VERBEEK; ZASLOVE, 2017). Na maioria
das vezes, o ator em questão é o Estado, mas muitos autores admitem o protagonismo de
outros atores em questões de política externa, como os presidentes (PINHEIRO, 2004, VERBEEK;
ZASLOVE, 2017).
Podemos observar, diante desta brevíssima exposição, que apesar de uma certa
consonância de definições, não existe uma posição uníssona sobre quais atores formulam a
política externa. De todo modo, esta pesquisa entenderá que política externa é um conjunto
de ações de um determinado ator — podendo ou não ser o Estado — que busca resolver
problemas e perseguir objetivos externos. Tais problemas e objetivos externos podem estar
relacionados tanto com interesses nacionais quanto com interesses particulares de atores
domésticos, sendo esta a característica sui generis da política externa (MILANI, 2015). Nesse
sentido, tomando os argumentos de Carlsnaes (2013) como referência, daremos o enfoque
necessário para o comportamento decisório humano, com base no argumento de Valerie
Hudson de que a Análise de Política Externa (APE) é centrada no processo de tomada de
decisões (HUDSON, 2007, p. 165, apud CARLSNAES, 2013, p. 304). Este argumento será
retomado mais adiante, quando analisarmos o papel crucial desempenhado pelos discursos
na relação entre Populismo e política externa.
Quanto ao Populismo, apesar de estar presente na política global há muitos anos, o
fenômeno adquiriu renovada importância na segunda década do século XXI a partir de dois
eventos que impactaram fortemente sua compreensão na política global: o Brexit em 2015 e
a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos em 2016. Autores como
Chryssogelos (2017) e Stengel, MacDonald e Nabers (2019) procuram mostrar que o fenômeno
não se restringe à política doméstica e buscam dimensionar a influência do Populismo na
política global. Stengel, MacDonald e Nabers (2019) argumentam que aspectos internacionais
e transnacionais do Populismo ainda são pouco explorados nas pesquisas da área de Relações
Internacionais e que apenas recentemente, com a já citada ascensão de Donald Trump à
presidência dos Estados Unidos, a disciplina deu a devida atenção ao Populismo para além do
âmbito interno.
No entanto, falar sobre Populismo requer cautela quanto a definição e utilização
do conceito. No decorrer da história política de nosso mundo, personagens e governos
populistas tiveram papéis importantes no desenrolar de acontecimentos cruciais para o
Sistema Internacional. Na América do Sul, por exemplo, o termo populismo foi utilizado
para cunhar governos nacionais-populares das décadas de 1930 e 19505, em países como
Brasil, Argentina e México. Estes governos tinham em comum um caráter nacionalista,
expansionista, ligados ao desenvolvimento industrial, à busca pela ampliação de direitos
sociais e políticos atrelados a um forte corporativismo estatal e aos movimentos sindicais. Na
região, especificamente, o fenômeno foi uma resposta à crise do sistema liberal após 1929.
É notável que o debate sobre a conceitualização de Populismo a fronte nuances distintas,
pois sua definição engloba governos de diferentes matizes ideológicas. Por este motivo,
a definição do conceito muitas vezes é movida por paixões, causando certa deturpação e
banalização de seu uso.
5 Existem variações sobre a delimitação temporal do fenômeno. No Brasil, o primeiro governo de Getúlio Vargas é
comumente caracterizado como populista, o mesmo ocorre com Juan Domingo Perón na Argentina.
94
95
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
No intuito de não tornar nossos argumentos vazios, utilizaremos o trabalho de Ernesto
Laclau como referência teórica para o conceito de Populismo e sua Teoria do Discurso,
elaborada em conjunto com Chantal Mouffe. Para Laclau, o Populismo é uma lógica política.
Ou seja, o fenômeno populista é uma lógica baseada no antagonismo entre o “povo” e seu
“inimigo” — que pode variar de acordo com o contexto de cada particularidade. A partir disso,
David Howarth (2005) elenca quatro características do Populismo: o apelo ao “povo” como
sujeito de interpelação; a construção de uma fronteira entre os “de baixo” e o establishment
e a tentativa de constituição de um universal, ou seja, uma construção geral da categoria
povo, não somente como os pobres, mas de uma forma mais generalizada, como a ideia de
“Nação”.
Mendonça (2014) e Cassimiro (2021) argumentam que a construção da argumentação
laclauniana a respeito do fenômeno é entendida como uma categoria ontológica. Ao se
considerar esta perspectiva, o Populismo é compreendido a partir de sua raison d’être. Assim,
Laclau desvinculará as argumentações formuladas a partir de categorias ônticas6 que pretendem
compreender as particularidades desta lógica política (MENDONÇA, 2014). Destarte, Laclau
sustenta que:
6 Mouffe ao tratar da diferença entre os conceitos de política e do político, argumenta que a primeira está relacionada
ao nível ôntico e o segundo se enquadra em uma dimensão ontológica. Portanto: “isto significa que o ôntico tem
a ver com as muitas práticas da política convencional, enquanto que o ontológico refere-se à própria forma como
a sociedade é constituída” (MOUFFE, 2005, p. 8-9 apud MENDONÇA, 2009). Essa lógica tem origem nos ideais
formulados pelo heideggerianismo, seria uma oposição à ideia de ontologia. Enquanto o primeiro se relaciona ao
ente, o segundo se refere a natureza, a essência.
7 Tem como referência a obra Hegemonia e Estratégia Socialista (2015).
8 Para entendermos este conceito, precisamos compreender as lógicas da equivalência e da diferença. Para isto,
consideremos: “[...] a lógica da equivalência é a lógica da simplificação do espaço político, enquanto a lógica da
diferença é a lógica da sua expansão e aumento de complexidade. [...] a lógica da diferença tende a expandir o
polo sintagmático da linguagem, o número de posições que podem entrar em uma relação de combinação e assim
de continuidade um com o outro; enquanto a lógica da equivalência expande o polo paradigmático- ou seja, os
elementos que podem ser substituídos por outro- reduzindo assim o número de posições possíveis de serem
combinadas (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 130 apud SANTOS, 2018, p. 53).
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Nesse caso, a Hegemonia — outro componente central na Teoria do Discurso de Laclau e
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
9 Entende-se aqui este conceito a partir do livro “Dicionário Gramsciano”, organizado por Guido Liguori e Pasquale
Voza (2017): “Mas, não por acaso, é num parágrafo dedicado à ‘validade’, à realidade, à determinação histórica
das ideologias (não redutíveis a meras ‘aparências’), ou seja, num parágrafo dedicado a um ponto fundamental e
inovador de seu marxismo, que G. fornece a definição talvez mais clara da noção de bloco histórico: nele “as forças
materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma, distinção entre forma e conteúdo puramente didática, já que
as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma, e as ideologias seriam fantasias individuais
sem as forças materiais”. Substancialmente, por meio do conceito de bloco histórico em conexão com o de ideologia,
G. renova criticamente a concepção marxiana corrente da relação estrutura-superestrutura, na qual a segunda servia
de mero ‘reflexo’ especular da primeira” (p. 119).
10 “Estes, por definição, permitem uma multiplicidade de articulações com significados sem que nenhum deles se
estabilize como sentido unívoco. Os significantes vazios tornam-se não apenas loci de atos de identificação, mas
também objeto de luta com vistas ao seu “preenchimento” por sentidos particulares [...] Por exemplo, mesa, table
(francês/inglês — pronunciadas diferentemente), tavola (italiano) ou tafel (alemão) são palavras que traduzem em
diferentes idiomas exatamente a mesma coisa, por meio de diferentes significantes. Por outro lado, o mesmo termo
pode estar associado a significados diferentes, como peça de mobiliário (onde se dispõem alimentos, ou onde se
pode jogar), um grupo de palestrantes num evento, ou um lugar para uma tórrida relação sexual” (BURITY, 2008, p.
725, 729, 733).
96
97
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Por conseguinte, podemos compreender a constituição dos fenômenos sociais, a
partir dessa lógica, através da articulação de elementos11 diferentes. Neste caso, se configura
um adversário em relação ao qual se traça uma fronteira que cria duas grandes formas de
identificação, um “nós” e um “eles”. Daí a ideia de que é necessário que uma particularidade
esvazie o sentido das demandas propostas para que outras demandas – de origens distintas – se
incorporem a ela. É o que Laclau entenderá por “universalização do particular”, ou seja, quando
uma demanda “demonstra interpelar um conjunto de outras demandas, de tal maneira, que
elas se reconheçam como parte daquela” (BURITY, 2008, p. 756). Desta maneira, a Hegemonia
se instalará ao passo que uma demanda particular assume a representação de um conjunto de
outras demandas alheias a ela e passa falar em nome desse agrupamento12.
Em síntese, as contribuições de Laclau e Mouffe em sua Teoria do Discurso nos oferecem um
arcabouço teórico que serve ao objetivo principal deste artigo — identificar como o Populismo
influenciou a política externa de Jair Bolsonaro no Brasil. Entendendo que o discurso produz a
realidade social a partir de uma estrutura de significados que se organiza a partir de uma cadeia
de equivalências orientada pela concepção de um “inimigo” veremos como isso é articulado nos
discursos bolsonaristas. Esta estrutura, estabelecida a partir do Antagonismo e da Hegemonia,
independente da vontade do sujeito e nos permite analisar como o discurso de Bolsonaro e,
de modo complementar, do seu Ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, incorporam a
lógica política do Populismo à política externa brasileira.
Antes de ser eleito em 2018 e assumir a Presidência da República, Jair Bolsonaro já dava
indícios sobre o tom que adotaria em sua administração. Como Deputado Federal, cargo que
ocupou por mais de 20 anos, Bolsonaro manifestou-se publicamente a favor da ditadura militar,
contra os direitos humanos e declarou ser “preconceituoso com muito orgulho”. Em 2014, ele se
tornou o deputado mais votado na disputa pela Câmara13 e desde então procurou consolidar-
se como uma força de oposição ao Partido dos Trabalhadores (PT) aproveitando o declínio e
a falta de representatividade dos partidos tradicionais de direita, como o MDB (Movimento
Democrático Brasileiro) e o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) (SANTOS; TANSCHEIT,
2019 apud BANDEIRA DE MELLO, 2022). Seu discurso durante a votação pelo impeachment da
ex-presidenta Dilma Rousseff sintetiza o conjunto de seus posicionamentos:
Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca Populismo, discurso e política externa
teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo,
pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma
Rousseff, pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil
acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim (BRASIL, 2017
apud XAVIER, 2022)
11 Segundo Santos (2018, p. 43), “Estes se constituem em signos que ainda não possuem um significado fixo, signos
com significados múltiplos e potenciais”.
12 Burity (2008, p.767), vai argumentar que “O sujeito da hegemonia não é necessariamente uma classe social,
não precisa ser, e mesmo que algumas das posições de identificação no interior desse movimento mais amplo se
identifiquem como classe(s), este movimento não necessariamente mudará a natureza desse fenômeno”.
13 Mais informações em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-42231485
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
de direitos sociais, mas não somente. O rechaço à corrupção, a influência da bancada BBB14,
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
14 O termo é um acrônimo para Boi, Bala e Bíblia — que indicam o crescimento da bancada parlamentar associada
ao agronegócio, ao setor armamentista e aos religiosos — principalmente evangélicos — no Congresso Nacional.
15 Em evento de campanha, realizado em setembro de 2018 no Acre, Bolsonaro falou ‘Vamos fuzilar a petralhada
aqui do Acre, hein?’”. Disponível em: https://exame.com/brasil/vamos-fuzilar-a-petralhada-diz-bolsonaro-em-
campanha-no-acre/.
98
99
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
automaticamente posicionados como “inimigos” e identificados como “ameaças” à soberania
nacional e aos interesses brasileiros. Uma vez que a lógica populista é fundamentada na criação
da oposição entre o “povo” e seu inimigo, como já mencionado, a incorporação disto na política
externa passa pelo descrédito de todas as relações bilaterais e multilaterais estabelecidas com
estes atores nos anos anteriores – principalmente em anulação a tudo que fora praticado no
exercício de uma política externa “altiva e ativa” característica aos governos de Luiz Inácio Lula
da Silva 16.
Tendo este cenário como pano de fundo, a escolha dos Ministros associados ao novo
governo buscou contribuir para a implementação desta lógica. No Ministério do Meio Ambiente,
Ricardo Salles atendeu às necessidades do agronegócio; no reestruturado Ministério da Mulher,
Família e Direitos Humanos, a pastora evangélica Damares Alves seguiu a cartilha conservadora,
no Ministério da Economia, Paulo Guedes propôs a liberalização do comércio e no Ministério
de Relações Exteriores, a escolha de Ernesto Araújo serviu para dar forma ao antiglobalismo,
ao negacionismo climático e ao combate contra o “marxismo cultural” no plano internacional
(BANDEIRA DE MELLO, 2022).
De carreira diplomática discreta, Ernesto Araújo atuou como subchefe do gabinete de
Mauro Vieira, durante o governo de Dilma Rousseff (2015) e posteriormente como chefe do
Departamento dos Estados Unidos, Canadá e Assuntos Internacionais. Porém, foi devido ao seu
apoio incondicional aos Estados Unidos e principalmente à figura de Donald Trump, associado às
críticas direcionadas ao PT e sua aversão ao “marxismo cultural” que o tornaram compatível com
a nova proposta de atuação do Itamaraty (BANDEIRA DE MELLO, 2022). Bolsonaro, juntamente
com Ernesto Araújo, ambos influenciados por Olavo de Carvalho, basearam sua política externa
na lógica do antiglobalismo que, segundo Magalhães e Thomaz (2021), seria o aspecto central
do que eles chamam de “Diplomacia do Mito Conspiratório”. Isto fica evidente, por exemplo, no
artigo publicado em 2017, intitulado “Trump e o Ocidente”, no qual Ernesto Araújo versa sobre
uma suposta decadência moral do Ocidente associada a uma “perda de identidade” e a uma
“perda de espírito” que, segundo ele, teriam sido provocados pelo desaparecimento dos “laços
de cultura, fé e tradição” (ARAÚJO, 2017).
A ascensão deste “nacionalismo religioso”, conforme aponta Casarões (2021), imprime à
política externa a mesma dicotomia observada nos discursos domésticos de Bolsonaro pautada
pela existência de um inimigo externo, “antiocidental”, que busca destruir a “verdadeira”
identidade do Brasil – caracterizada pelo presidente e seu Ministro de Relações Exteriores como
cristã e ocidental. Não por acaso, durante pronunciamento na Assembleia Geral das Nações Populismo, discurso e política externa
Unidas, em 2019, Bolsonaro apontou que o Brasil vinha sofrendo “ataques ininterruptos aos
valores familiares e religiosos” que formariam a “tradição” do país (Bolsonaro, 2019b). Na mesma
oportunidade, Bolsonaro identificou as Organizações Não-Governamentais (ONGs), a ONU e a
mídia internacional como ameaças à soberania nacional (BOLSONARO, 2019b).
Ao assumir a narrativa de que implementaria uma política externa livre de ideologia, não
substituindo uma ideologia por outra, mas sim combatendo a vigente, o chamado Globalismo17,
16 A referência a uma política externa “altiva e ativa” remete aos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e a figura de
seu Ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim. Em linhas gerais, a diplomacia lulista buscou diversificar e ampliar
as parcerias internacionais do Brasil, apostando na defesa de princípios como o universalismo, o multilateralismo, o
pacifismo, a não-intervenção em assuntos externos e a integração latino-americana.
17 Ernesto Araújo vai entender o Globalismo como: os padrões liberais antinacionais e anti-tradicionais na vida social
e o mercado globalizado sem fronteiras na vida econômica; além disso, esse movimento anti-globalista acredita que
o Globalismo corrói as democracias, visto que ele implicaria mover processos decisórios nacionais para instituições
internacionais menos transparentes, que seriam governadas por burocratas expatriados. Portanto, o argumento seria
que o Brasil teria o dever de combater a ideologia globalista, que seria guiada pela tríade: marxismo cultural, Anti-
Humanismo e Anti-Cristianismo (MAGALHÃES; THOMAZ, 2021).
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
tanto Jair Bolsonaro quanto Ernesto Araújo, na verdade, acabaram por esvaziar a tradição da
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
política externa incorporando suas visões de mundo à atuação internacional do Brasil. No fim, na
busca pela “desideologização” das relações exteriores, presidente e Ministro conferiram nuances
ainda mais ideológicas — à extrema-direita do espectro político — à política externa brasileira
(PEB). Isto fica evidente na construção da imagem do inimigo quixotesco Marxismo Cultural18,
que serviu como justificativa bolsonarista para as críticas tecidas à atuação de organizações
internacionais como as Nações Unidas e a Organização Mundial da Saúde (OMS) no ápice da
pandemia da COVID-19 .
Durante sua gestão à frente do MRE, Araújo seguiu a onda dos movimentos de extrema-
direita mundial e tratou a Geopolítica e o Desenvolvimento como secundários, colocando a
centralidade na Metapolítica. Esta seria definida no artigo “Trump e o Ocidente como: “o conjunto
de ideias, cultura, filosofia, história e símbolos que atuam tanto no nível racional quanto no
emocional da consciência” (ARAÚJO, 2017). Ernesto Araújo entranhou a ideia de Metapolítica
na PEB, complementando-a com outro termo, a Teopolítica, que teria o papel de agenciar o
Brasil na busca de um destino cultural-espiritual no mundo. Nesta missão, na visão do Ministro,
Bolsonaro foi apresentado como um “guerreiro da cultura” e o “libertador do Brasil”, ou seja,
um personagem capaz de realizar uma transformação duradoura ao espalhar ideias e valores
culturais por toda a sociedade (ARAÚJO, 2020).
A mistura de elementos religiosos e ideológicos nesses discursos é um ponto que deve ser
reforçado. Como já mencionado, a ideia de Globalismo articulada nesse momento da política
externa tem suas raízes nos escritos de Olavo de Carvalho. Para o então guru bolsonarista, o
principal ator que coordena o Globalismo é uma elite global, formada por grupos que participam
das Reuniões de Bilderberg19, que teriam o poder de influenciar as decisões dos Estados. Isso
torna evidente o caráter conspiracionista em que essas narrativas são sustentadas, embora
Araújo afirmasse que a “Nova Política Externa” do Brasil seria pragmática20.
Como podemos observar, isso não se sustentou ao longo do tempo. O pragmatismo
defendido por Araújo se resume, de fato e, em uma oposição ao multiculturalismo e às fronteiras
abertas e procura fortalecer e ampliar um discurso judaico-cristão na PEB (MAGALHÃES; THOMAZ,
2021). Assim sendo, para sustentar essa posição, o Brasil retrocedeu em acordos internacionais,
sendo retirado do Pacto Global de Migração das Nações Unidas, e passou a adotar posições
conservadoras contra a “ideologia de gênero” e a favor da liberdade religiosa no Oriente
Médio, principalmente na Síria, no Iraque e no Líbano (SANTOS ; LEÃO, 2020; BANDEIRA DE
MELLO, 2022). Em 2020, nas Nações Unidas, o presidente brasileiro fez um apelo à comunidade
internacional pelo “combate à cristofobia” e reforçou o estreitamento dos laços de amizade com
Israel, os Emirados Árabes e o Bahrein, além de saudar o Plano de Paz e Prosperidade21 lançado
por Donald Trump relacionado aos conflitos entre Israel e Palestina (BOLSONARO, 2020).
18 Segundo Silva, Sugamosto e Irigaray (2021), o conceito surge no ambiente intelectual do neoconservadorismo
estadunidense e apesar de ter uma certa nebulosidade com relação a sua definição, os autores vão entender o conceito
como “um conglomerado heterogêneo de várias tendências ditas progressistas diferentes: pós-estruturalismo,
feminismo liberal, movimentos pela liberação sexual e desconstrutivismo, por exemplo. Eles as apresentam de
maneira caricatural, vulgarizada, propagandista e, importante, situadas dentro do campo do marxismo” (p. 182).
19 De acordo com Olavo de Carvalho, ele seria uma espécie de “clube secreto” da elite global que promoveria
reuniões anuais para decidir o futuro do mundo. Mais informações disponíveis em: www.bbc.com/portuguese/
internacional-48440059.
20 Cf. www.bbc.com/portuguese/internacional-48440059.
21 O Plano, lançado em junho de 2019 durante a administração do republicano Donald Trump, foi alinhado aos
interesses israelenses na região, como o reconhecimento de Jerusalém como capital indivisível de Israel, criando
uma série de empecilhos para a criação do Estado Palestino. Mais informações em: https://brasil.elpais.com/
internacional/2020-01-29/trump-apresenta-plano-de-paz-que-respalda-os-interesses-chave-de-israel.html.
100
101
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Nesse sentido, ao invés da política externa brasileira trabalhar a favor da construção de
consenso, durante a gestão de Ernesto Araújo — e muito influenciada por Jair Bolsonaro e
sua área ideológica de interesses — o Brasil desempenhou um papel secundário, preferindo
aderir à visão de mundo dos EUA de Donald Trump22. Assim, as relações com os BRICS e com
os países da América Latina23, bem como o multilateralismo e as organizações internacionais
foram negligenciadas. Pesam também, neste período, as declarações vexatórias de membros do
governo Bolsonaro, como o ex-Ministro da Educação, Abraham Weintraub e o deputado federal
Eduardo Bolsonaro24, contra o governo chinês durante a pandemia da COVID-19 que buscaram
associar o país asiático a uma ameaça global — em consonância com o antiglobalismo e ao
anticomunismo da gestão brasileira.
Esse posicionamento também se manifesta na clara rejeição que Ernesto Araújo e,
principalmente, Jair Bolsonaro têm ao multilateralismo e à integração regional. Também em
seu discurso de posse, Ernesto Araújo argumentou que os conceitos de multilateralismo,
intergovernamentalismo, governança global e valores universais apenas esconderiam aos blocos
regionais e disfarçariam a pressão da ONU por supranacionalismo e governo25. Dessa forma, a
natureza intergovernamental da UNASUL e do MERCOSUL que baseiam seus procedimentos
decisórios no consenso, seriam contrários ao que Ernesto Araújo e o antiglobalismo acreditam.
Não à toa, Bolsonaro foi um ator ativo para a inviabilização da UNASUL, retirando o Brasil do
organismo em abril de 2019 e apoiando a criação do PROSUL (Foro para o Progresso da América
do Sul), além de defender a participação do país na Aliança do Pacífico. Cabe ressaltar que tanto
a UNASUL quanto o MERCOSUL foram inseridos na lógica da “ideologização” com viés negativo
da política externa praticada, segundo os bolsonaristas, pelos governos petistas.
Constantemente, entre 2019 e 2021, a ideia antiglobalista fez com que Jair Bolsonaro e seu
Ministro de Relações Exteriores, adotassem uma postura pró-Ocidente, concedendo interesses
nacionais para agradar a Donald Trump — que supostamente deveria ser agradado, pois estaria
travando uma guerra cultural contra o globalismo. Portanto, seria dessa lógica antiglobalista
que o Populismo, enquanto ontologia da política e inserido numa análise pós-estruturalista
laclauniana do discurso, se manifesta no processo de tomada de decisão da política externa
brasileira desse período. Nota-se que toda estrutura discursiva do bolsonarismo é fundamentada
na existência de um inimigo que deve ser combatido.
Portanto, o antiglobalismo foi componente fundamental para o exercício da Diplomacia do
Mito Conspiratório26 o que gerou demasiada incerteza sobre o papel do Brasil nas instituições
Populismo, discurso e política externa
22 O discurso de Ernesto Araújo, ratificado fortemente por Jair Bolsonaro e seus tomadores de decisão, é envolto
por um fascínio gigantesco na figura de Donald Trump. Araújo acredita, inclusive, que Trump propõe ao Brasil uma
reconexão com sua “herança mítica de seu passado ocidental” (MAGALHÃES; THOMAZ, 2021).
23 Com exceção dos que possuíam afinidade ideológica ao presidente, como a Colômbia de Iván Duque, o Chile de
Sebastián Piñera e a Argentina de Maurício Macri.
24 Por meio das redes sociais, o deputado federal e filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, responsabilizou a China pela
propagação do vírus COVID-19. No tweet, publicado em março de 2020, Eduardo escreveu: “Quem assistiu Chernobyl
vai entender o que ocorreu. Substitua a usina nuclear pelo coronavírus e a ditadura soviética pela chinesa. [...] +1 vez
uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. [...] A culpa é da
China e liberdade seria a solução”. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/03/19/eduardo-
bolsonaro-culpa-china-por-coronavirus-e-gera-crise-diplomatica.ghtml. Acesso em 10 ago. 2022.
25 Inaugural speech as Brazil’s Minister of Foreign Relations, 2 jan. 2019. Disponível em: https://www.funag.gov.br/
chdd/index.php/ministros-de-estado-das-relacoes-exteriores?id=317.
26 Diplomacia do Mito Conspiratório seria a forma pela qual o governo de Jair Bolsonaro administra as suas relações
exteriores. Cria-se uma narrativa messiânica ao redor da figura do presidente da República e isso é estendido aos
assuntos externos, onde especificidades míticas e conspiratórias são abordadas durante o processo de formulação
da política externa, distinguindo-se legado histórico da Diplomacia brasileira, calcado no profissionalismo e
pragmatismo, para dar lugar a uma política conspiratória e subserviente.
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
sul-americanas e globais (MAGALHÃES; THOMAZ, 2021). Os antiglobalistas, aqui representados
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
27 Os autores utilizam de uma abordagem baseada na role theory em busca de demonstrar como a política externa
de Jair Bolsonaro muda de comportamento dependendo do ator com o qual está se relacionando. Quando a relação
envolve Estados liderados por figuras ideologicamente compactuantes com o Populismo de extrema-direita, Jair
Bolsonaro tende a manter um discurso mais fervoroso – os autores vão chamar esse posicionamento de ‘thick
conservative identity’. Em contrapartida, quando Bolsonaro se relaciona com países ideologicamente rivais, a
tendência é manter um discurso de certa forma mais moderado, onde a efervescência da narrativa populista de
extrema-direita se torna mais sutil, sendo uma ‘thin conservative identity’.
102
103
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
início do capítulo, todas foram costuradas através da narrativa antiglobalista. Destarte, todos
esses elementos são articulados dentro de uma lógica antagonística, não por uma afinidade
positiva, mas sim negativa.
Dito isto, é preciso levar em consideração que, assim como Hermann e Hermann (1989)
e Pinheiro (2000) apontam, as unidades últimas de decisão podem ser variadas. Não cabe
aqui aprofundar este debate, mas baseado nas ideias de Saraiva e Silva (2018) e nas análises
de Magalhães e Thomaz (2021) e Guimarães e Silva (2021), consideramos que as unidades de
decisão do processo de tomada de decisão da política externa brasileira durante a gestão de
Jair Bolsonaro se refletem nos Múltiplos Atores Autônomos (HERMANN; HERMANN, 1989). Por
isso, mesmo que esses atores estejam articulados dentro de uma hegemonia discursiva que
antagoniza a política externa brasileira ao redor do significante vazio antiglobalismo, eles não
concordam em todas as suas pautas.
Isto posto, deve-se ressaltar que existe uma grande diferença entre influenciar o processo
de tomada de decisão e influenciar a decisão final (PINHEIRO, 2000; MILANI; PINHEIRO; LIMA,
2017). Mesmo que a tomada de decisão final não seja condizente com uma postura populista,
isso não significa que o processo de tomada de decisão não tenha sido influenciado por
personagens e ideias populistas. Se levarmos em consideração que a política externa é em parte
uma política pública (MILANI, 2015) chegaremos à conclusão de que o Estado não é detentor
exclusivo do processo decisório. Dependendo do cenário em que um determinado governo se
encontra, o Estado terá maior ou menor influência na tomada de decisão — apesar de ter a
última palavra.
Isso explicaria, juntamente com a ideia dos papéis apresentada por Guimarães e Silva
(2021) e com as disputas entre as alas ideológica e pragmática do governo representadas por
Saraiva e Silva (2019), o motivo pelo qual diversas empreitadas populistas, calcadas nos ideais
de extrema-direita e promovidas por Jair Bolsonaro e seus formuladores de política externa,
não lograram êxito e resultados imediatos. Apesar de influenciar o processo de formulação de
política externa, o discurso populista não consegue furar a barreira da tomada de decisão final,
visto que atores com outras intenções estão em jogo. Mesmo que articulados dentro de uma
mesma lógica antagonística, equivalenciando suas diferenças ao redor do significante vazio
antiglobalismo, esses atores permanecem fiéis aos seus interesses.
Conclusões
Populismo, discurso e política externa
Na introdução deste capítulo apresentamos algumas das motivações pelas quais o discurso
populista ganhou muita força na última década. Eventos como o Brexit e a eleição de Donald
Trump nos Estados Unidos somados à incipiente crise do sistema neoliberal, que tem gerado
um forte ressentimento na sociedade, principalmente na classe média branca cristã, explicam
o alcance internacional do fenômeno. No Brasil, as Jornadas de Junho de 2013 e os resultados
da Operação Lava-Jato contribuíram para a escalada do conservadorismo e do populismo de
extrema-direita. Este movimento culminou com a eleição do então deputado e ex-militar Jair
Bolsonaro em 2018 que ao lado de nomes como Olavo de Carvalho e do agora ex-Ministro de
Relações Exteriores, Ernesto Araújo, buscou “desideologizar” a Política Externa Brasileira para
torná-la condizente com os “verdadeiros” valores do Brasil: Deus, família e liberdade.
Para mostrar como a lógica populista foi incorporada ao modo de conduzir e implementar
a Política Externa Brasileira, o capítulo utilizou como base o conceito de Populismo e a Teoria do
Discurso de Ernesto Laclau, formulada em parceria com Chantal Mouffe. Os aportes teóricos nos
permitiram identificar como os processos de antagonização, baseados na constante oposição
entre o “povo” e seu “inimigo” — seja na figura do Partido dos Trabalhadores (PT), seja na
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
imagem de organizações internacionais ou países como a Venezuela — e de equivalência das
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
Referências
ABRAHAMSEN, Rita, et al. Confronting The International Political Sociology Of The New Right.
International Political Sociology, v. 14, n. 1, p. 94-107, 2020.
ARAÚJO, Ernesto. Trump e o Ocidente. Cadernos de Política Exterior, v. 3, n. 6, p. 23-357, 2017
______. Discurso na cerimônia de posse como Ministro de Relações Exteriores, em Brasília. In: A
Nova Política Externa Brasileira. Seleção de discursos, artigos e entrevistas do Ministro de Relações
Exteriores. Brasília: FUNAG, 2020.
BANDEIRA DE MELLO, Beatriz. Do passado ao presente: a relação Brasil-EUA nos discursos de
Ernesto Araújo. In: GONÇALVES, Fernanda N.; LOUREIRO, Gustavo do A.; BANDEIRA DE MELLO,
Beatriz (Orgs.). Política Externa no Governo Bolsonaro: temas, resultados e retrocessos. Belo
Horizonte: Lemos Mídia, 2022.
BOLSONARO, Jair. Discurso do Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante cerimônia de posse
no Congresso Nacional. Brasília, 1 jan. 2019a.
______. Discurso do Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante a 74ª Assembleia Geral das
Nações Unidas. Nova Iorque, 24 set. 2019b.
______. Discurso do Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante a 75ª Assembleia Geral das
Nações Unidas. Nova Iorque, 22 set. 2020.
______. Discurso do Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante a 76ª Assembleia Geral das
Nações Unidas. Nova Iorque, 26 set. 2021.
BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. New York: Zone Books,
2015.
______. Neoliberalism’s Frankenstein. Authoritarian freedom in twentieth first century
“democracies”. In: BROWN, W.; GORDON, P. E.; PENSKY, P. Authoritarianism: Three Inquiries In
Critical Theory. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 2018.
104
105
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
______. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São
Paulo. Editora Politéia, 2019.
BURITY, Joanildo A. “Discurso, Política e Sujeito na Teoria da Hegemonia de Ernesto Laclau”. In:
MENDONÇA, Daniel; RODRIGUES, Léo Peixoto (Orgs). Pós-Estruturalismo e Teoria do Discurso:
em torno de Ernesto Laclau. Porto Alegre: 2008, Livro Eletrônico.
CARLSNAES, Walter. Foreign Policy. In: CARLSNAES, Walter; RISSE, Thomas; SIMMONS, Beth A.
(Eds.). Handbook Of International Relations. Londres: SAGE, 2001.
CASARÕES, Guilherme. Bolsonarismo e Talibã são expressões do fenômeno do nacionalismo
religioso. Folha de São Paulo [Online], ago. 2021. Disponível em https://www1.folha.uol.com.
br/poder/2021/08/bolsonarismo-e-taliba-sao-expressoes-do-fenomeno-do-nacionalismo-
religioso.shtml. Acesso em 20 ago. 2022
CASSIMIRO, Paulo Henrique Paschoeto. Os usos do conceito de Populismo no debate
contemporâneo e suas implicações sobre a interpretação da democracia. Revista Brasileira de
Ciência Política, n. 35, p. 1-52, 2021.
CEPÊDA, Vera Alves. “A Nova Direita no Brasil: contexto e matrizes conceituais”. Mediações -
Revista De Ciências Sociais, v. 23, n. 2, p. 40-74, out. 2018.
CERVO, Amado Luiz. Inserção Internacional do Brasil: formação dos conceitos brasileiros. São
Paulo: Saraiva, 2ª ed., 2008.
______; BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Editora Unb, 5ª ed., 2015.
CHAGAS-BASTOS, Fabrício H. Political Realignment in Brazil: Jair Bolsonaro and The Right Turn.
Revista De Estudios Sociales, [s.l.], n.69, p.92-100, jul. 2019.
CHRYSSOGELOS, Angelos. Populism in Foreign Policy. Oxford Research Encyclopedia Of Politics,
Oxford University Press, jul. 2017, p. 1-26.
CODATO, Adriano, Berlatto, Fábia e Bolognesi, Bruno. “Tipologia dos políticos de direita no brasil:
uma classificação empírica”. Análise Social, [s.l.], n. 229, p. 870-897, dez. 2018.
CORNETET, João Marcelo Conte. “A Política Externa de Dilma Rousseff: contenção na
continuidade”. Revista Conjuntura Austral, [s. l], v. 5, n. 24, p. 111-150, jun. 2014.
GONÇALVES, Fernanda Nanci; PINHEIRO, Leticia. “Análise de Política Externa: o que estudar e por
quê?”. Curitiba: Intersaberes, 2020. Populismo, discurso e política externa
Littlefield, 2007.
KALTWASSER, Cristóbal Rovira; TAGGART, Paul; ESPEJO, Paulina Ochoa; OSTIGUY, Pierre. The
Oxford Handbook of Populism. New York: Oxford University Press, 2017.
LACLAU, Ernesto. A Razão Populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
______; MOUFFE, Chantal. Hegemonia e Estratégia Socialista: por uma política democrática radical.
São Paulo: Intermeios, 2015.
MARCHART, Oliver. Apresentação: Teoria do Discurso, pós-estruturalismo e paradigma da Escola
de Essex. In: MENDONÇA, Daniel; RODRIGUES, Léo Peixoto (Orgs). Pós-estruturalismo e Teoria do
Discurso: em torno de Ernesto Laclau. Porto Alegre: Livro Eletrônico, 2008 .
MAGALHÃES, Diego T; THOMAZ, Laís F. The Conspiracy-Myth Diplomacy: anti-globalism vs
pragmatism in Bolsonaro’s Foreign Policy for South American Integration. Oikos, v. 20, n. 3, p.
52-73, 2021.
MENDONÇA, Daniel de. Antagonismo como identificação política. Revista Brasileira de Ciência
Política, Brasília, n. 9, p. 205-228, dez. 2012.
______. Populismo como vontade de democracia. Colombia International, v. 82, p. 59-71, 2014.
______. “A crise da democracia liberal e a alternativa populista de esquerda”. Simbiótica, Vitória, v.
6, n. 2, 2019.
______; MACHADO, Igor Suzano. “O Populismo e a construção política do povo”. Mediações, v. 26,
n. 1, p. 10-27, 2021.
______; RODRIGUES, Léo Peixoto (Orgs). Pós-Estruturalismo e Teoria do Discurso: em torno de
Ernesto Laclau. Porto Alegre: Livro Eletrônico, 2008.
______; ______. Em torno de Ernesto Laclau. In: MENDONÇA, Daniel; RODRIGUES, Léo Peixoto
(Orgs). Pós-Estruturalismo e Teoria do Discurso: em torno de Ernesto Laclau. Porto Alegre: Livro
Eletrônico, 2008.
MILANI, Carlos. “Política externa é política pública?” Insight Inteligência, v. 69, p. 57-75, abr. 2015
______; PINHEIRO, Letícia; LIMA, Maria Regina S. Brazil’s Foreign Policy and the “Graduation
Dilemma”. International Affairs, vol. 93, n. 3, p. 585–605, 2017.
MUDDE, Cas; KALTWASSER, Cristobal Rovira. Populism: a very short introduction. New York:
Oxford University Press, 2017.
PINHEIRO, Letícia. Unidades de decisão e processo de formulação de política externa durante
o regime militar. In: ALBUQUERQUE, José Augusto G. (Org.). “Sessenta Anos De Política Externa
Brasileira (1930--1990). Prioridades, atores e políticas”. São Paulo: Annablume/Nupri, 2000.
______. Política Externa Brasileira (1889–2002). 2. Ed. S.I: Zahar, 2004.
ROBINSON, William. Gramsci, and globalization: from nation-state to transnational hegemony.
In: BIELER, A.; MORTON, A. (Eds.). Images Of Gramsci. London, New York: Routledge/RIPE, 2006.
SANTOS, Marcos C. Construindo inimigos para a América do Sul: os discursos de segurança no
Conselho de Defesa da UNASUL. Curitiba: Editora Appris, 2018.
SANTOS, Leonardo W.; LEÃO, André Pimentel F. “A política externa do governo Jair Bolsonaro e
as eleições presidenciais nos Estados Unidos: um recomeço?”. Boletim OPSA, n.1, jan./mar., 2021.
SARAIVA, Miriam Gomes; SILVA, Álvaro Vicente Costa. Ideologia e pragmatismo na política
106
107
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
externa de Jair Bolsonaro. Relações Internacionais, n. 64, p. 117-137, dez. 2019.
SCHERER-WARREN, Ilse. Manifestações de rua no Brasil de 2013: encontros e desencontros na
política. Caderno Crh, v. 27, n. 71, p. 417-429, ago. 2014.
SILVA, Wellington T.; SUGAMOSTO, A.; IRIGARAY A. U. O marxismo cultural no Brasil: origens e
desdobramentos de uma teoria conservadora. Revista Cultura & Religión, v.15, n.1, p. 180-222,
2021.
SMITH, Steve; HADFIELD, Amelia; DUNNE, Tim (Orgs.). Foreign Policy: theories, actors, cases.
Oxford: Oxford University Press, 2016.
STENGEL, Frank A; MACDONALD, David B; NABERS, Dirk. Populism in world politcs: exploring
inter- and transnational dimensions. Palgrave Macmillan, 2019.
VERBEEK, Bertjan; ZASLOVE, Andrej. Populism and foreign policy. Oxford Handbooks Online,
p. 1-28, nov. 2017.
VIDIGAL, Carlos Eduardo. Bolsonaro e a reorientação da política exterior brasileira. Meridiano 47
- Journal of Global Studies, v. 20, p.1-16, dez. 2019.
VIGEVANI, Tullo; CEPALUNI, Gabriel. A política externa de Lula da Silva: a estratégia da autonomia
pela diversificação. Contexto Internacional, v. 29, n. 2, p. 273-335, dez. 2007.
XAVIER, Kevin Vitor Dos Santos. O Governo Bolsonaro (2019–2021) e seus impactos na Política
Externa Brasileira: uma análise à luz da Teoria do Populismo de Laclau. Trabalho De Conclusão De
Curso (Graduação Em Relações Internacionais). Universidade Federal De Uberlândia, Uberlândia,
2022.
Introdução
Ao longo das últimas décadas, autores das Relações Internacionais vêm buscando cada vez
mais “abrir a caixa-preta” dos Estados e incorporar variáveis que vão além do nível sistêmico de
análise em seus estudos. Parte importante deste esforço é a incorporação das ideias como fatores
explicativos do comportamento dos Estados, a partir principalmente (mas não apenas) do trabalho
de autores filiados à tradição do construtivismo social dentro da disciplina. As análises pertencentes
a esta corrente teórica partem não de elementos materiais, mas sim ideológicos e/ou identitários.
Dentro da sub-área da Análise de Política Externa, é cada vez mais comum o estudo das
variáveis localizadas no nível de análise do indivíduo, como as características pessoais e traços
de personalidade dos tomadores de decisão, além das suas percepções, visões de mundo,
emoções, entre outros. Tais abordagens, que buscam incorporar fatores cognitivos à análise da
política externa dos países, possuem grande influência de outras áreas do conhecimento, como
a psicologia social, a sociologia e a antropologia.
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Um exemplo dessas abordagens é o referencial analítico proposto por Goldstein e Keohane
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
(1993) que busca analisar o papel das ideias e a sua incorporação no processo decisório da
política externa. Os autores classificam as ideias que incidem neste processo em três tipos:
visões de mundo, crenças baseadas em princípios e crenças causais; e identificam três situações
distintas nas quais as ideias têm um efeito no processo de tomada de decisão.
As visões de mundo são aquelas ideias ligadas às concepções que os indivíduos têm sobre
sua própria identidade, evocando emoções e sentimentos de lealdade. As crenças baseadas em
princípios, por sua vez, são aquelas de caráter normativo, que especificam critérios morais sobre
o que é certo ou errado, ou justo ou injusto. Muitas vezes, estas são justificadas pelas próprias
visões de mundo que os tomadores de decisão detêm. Já as crenças causais são aquelas ligadas
a relações de causa e efeito, derivadas de consenso obtido por elites dos mais diversos tipos,
incluindo elites políticas e comunidades científicas (GOLDSTEIN; KEOHANE, 1993).
Os autores também indicam três tipos de situações em que as ideias impactam a
formulação da política externa. Elas podem agir como “mapas do caminho” que aumentam a
clareza dos atores sobre seus objetivos em situações de incerteza, como “pontos focais” quando
existem problemas de coordenação e em situações estratégicas como crises, e podem ser
institucionalizadas a ponto de se consolidar dentro do desenho institucional de organizações
envolvidas no processo decisório (GOLDSTEIN; KEOHANE, 1993).
A depender do grau de permeabilidade do processo decisório em relação ao ingresso das
ideias, as políticas externas podem ter maior ou menor influência de componentes ideacionais,
podendo ser classificadas como mais pragmáticas ou mais ideológicas. Uma política externa
pragmática prioriza a ação visando ganhos tangíveis em detrimento da doutrina e da experiência
em oposição a princípios fixos, considerando as consequências práticas dessas ações e pautada em
planejamento de médio a longo prazo e políticas de Estado. Por outro lado, uma política externa
ideológica enfatiza ideias doutrinárias e posições pré-concebidas, tendo a compatibilidade com
princípios estabelecidos como principal critério de definição e sendo caracterizada por planejamento
de curto prazo e visões pessoais de líderes ou personalidades específicas (GARDINI, 2011).
É importante ressaltar que toda política externa possui pelo menos alguns elementos tanto
de pragmatismo quanto de ideologia, não sendo possível adotar apenas uma caracterização. A
investigação das interações, combinações e contradições entre esses dois conceitos é inerente à
análise de qualquer política externa.
As ideias e componentes ideológicos dos tomadores de decisão também podem
ser elementos catalisadores de mudança em política externa. Ao realizar um estudo sobre
redirecionamentos em política externa, Hermann (1990) caracteriza as mudanças guiadas pelo
líder (leader driven changes) como uma das possíveis fontes de mudança. Estas ocorrem quando
um líder — na maioria das vezes, mas não exclusivamente, o chefe de Estado — impõe sua
própria visão sobre um determinado assunto, o que causa o redirecionamento no curso de ação
posto em prática. Este tipo de mudança ocorre quando o líder em questão possui a autoridade
efetiva para a condução da política externa, ou seja, quando este dispõe dos recursos para impor
a mudança de curso (HERMANN, 1990).
Considerando que o negacionismo climático pode ser observado como um conjunto
de ideias e visões de mundo (ainda que não necessariamente homogêneo) sobre uma questão
em particular que possui uma dimensão internacional definida (a governança climática em
âmbito multilateral), considera-se que a literatura sobre o papel das ideias no processo decisório
em política externa pode auxiliar a pensar como esse movimento tem influenciado a política
externa brasileira desde a posse de Jair Bolsonaro e a consequente reorientação da inserção
internacional do país. Antes de proceder a esta análise, é necessária uma breve contextualização
histórica sobre o lugar deste tema na diplomacia brasileira.
110
111
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
O negacionismo climático e sua adesão no Brasil
Em decorrência tanto dos seus atributos naturais e geográficos quanto das suas ações
no plano internacional, o Brasil adquiriu ao longo dos anos o status de um país relevante no
âmbito das negociações climáticas e na questão ambiental como um todo. O país tem sido
caracterizado como uma grande potência climática ao lado de atores como Índia, Japão e Coreia
do Sul, e apenas um degrau abaixo de superpotências como Estados Unidos, China e União
Europeia. Ou seja, isto quer dizer que o país não está em posição que atribui capacidade de veto
em acordos, mas ainda pode acelerar ou obstruir determinados processos de acordo com seu
interesse, assim tendo à disposição poder tanto para “construir” quanto para “destruir” a agenda
climática global (VIOLA; FRANCHINI, 2011; HOCHSTETLER; INOUE, 2019).
Ao longo das últimas décadas, o Brasil tem se colocado como protagonista na temática
ambiental no âmbito global, tendo sediado conferências como a ECO-92 (ou Rio-92), em 1992,
e a Rio+20, em 2012, e participado ativamente de negociações de acordos climáticos, com
destaque para o Acordo de Paris, celebrado em 2015 e ratificado pelo Brasil no ano seguinte. A
eleição de Jair Bolsonaro em 2018, contudo, se provaria como um obstáculo de difícil superação
para a continuidade das políticas climáticas brasileiras, incluindo a própria adesão ao Acordo. O
novo governo promoveu uma transformação radical na definição do lugar da agenda climática
na vida política nacional. Este contexto será abordado mais adiante, não sem antes apresentar
um dos fenômenos que impulsionou esse movimento: a construção do negacionismo climático
e a sua penetração no Brasil.
Ao longo das últimas décadas, com o desenvolvimento de estudos sobre as mudanças
do clima e métodos como a modelagem climática e, principalmente, após a criação do Painel
Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC, na sigla em inglês)
em 1988, foi se consolidando um virtual consenso científico acerca das mudanças climáticas.
Parte desse consenso é o reconhecimento do seu componente antropogênico, no sentido de
que é a ação humana sobre o planeta a sua principal causa. Este consenso foi ganhando força ao
112
113
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
como conservadores e libertários atuando principalmente na América do Norte e na Europa,
como a Heritage Foundation, o Cato Institute e o Heartland Institute nos Estados Unidos e o
Liberales-Institut na Alemanha, entre outros, têm difundido a prática do negacionismo climático
em seus vários formatos através de publicações e livros (quase sempre publicados por editoras
desconhecidas e não revisados por pares), além de postagens em blogs e conferências (BUSCH;
JUDICK, 2021; DUNLAP; JACQUES, 2013).
A ação organizada desses atores atribui um componente político ao negacionismo e o
introduz efetivamente no debate público, fazendo com que a questão tenha sido apresentada
cada vez mais como uma disputa legítima entre dois grupos de cientistas “equivalentes”, mesmo
que utilizando técnicas e recursos completamente distintos (WEART, 2011). Nesse sentido, os
meios de comunicação têm se preocupado cada vez mais em “ouvir os dois lados da história”,
dando visibilidade e atribuindo legitimidade aos argumentos negacionistas.
Não menos relevantes que os atores políticos são os grupos de interesse econômicos
que financiam e participam diretamente do movimento de negação das mudanças climáticas.
Destaca-se, nesse sentido, a ação da Global Climate Coalition (GCC), organização que congregava
diversas corporações de vários países (e, principalmente, dos Estados Unidos) e participava
como parte interessada em negociações da governança climática. A GCC foi dissolvida em 2002,
e desde então, corporações interessadas em financiar os movimentos negacionistas têm se
organizado em torno de instituições e think tanks como aquelas já mencionadas, além de novas
organizações como a Cooler Heads Coalition, financiada e operada pelo Competitive Enterprise
Institute (CEI) (DUNLAP; JACQUES, 2013).
Nesse sentido, principalmente nos países da América do Norte e Europa, é cada vez mais
comum a formação de redes compostas por empresas — como aquelas ligadas aos setores
intensivos de carbono, que são as maiores interessadas na obstrução da prevenção das mudanças
climáticas — e organizações da sociedade civil com o objetivo de defender os seus interesses
através da difusão de práticas de negação em variadas formas. Esse movimento é ilustrado pelo
estudo quantitativo de Carroll e seus colegas sobre as redes corporativas de propagação do
foi entrevistado pela Folha de São Paulo, onde criticou a atuação da ONU e do IPCC e usou
a expressão “terrorismo climático” para caracterizar os cientistas que acreditam nas mudanças
climáticas antropogênicas (RIGHETTI, 2012).
Um dos principais argumentos dos negacionistas e céticos climáticos brasileiros é o de
que a agenda multilateral da governança climática atenta contra a soberania nacional do país e
limita as suas possibilidades de desenvolvimento econômico. Os que partem por esta linha de
argumentação falam em um “colonialismo ambiental” praticado por países mais desenvolvidos.
Essa crítica é compartilhada inclusive por alguns setores da esquerda, que muitas vezes associam
as organizações internacionais e os ativistas ambientais a um projeto imperialista norte-
americano, afirmando que a ação destes atores em relação ao assunto vai além das questões
ecológicas e científicas (MIGUEL, 2020).
Com a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência da República, as conexões políticas entre
os negacionistas e os atores políticos se tornaram mais evidentes. Nas eleições de 2018, Ricardo
Felício embarcou na onda do bolsonarismo e se candidatou a deputado federal pelo PSL de São
Paulo, recebendo mais de 11 mil votos após uma campanha alinhada às pautas defendidas pelo
então presidenciável.
Após a posse de Bolsonaro e a nomeação de Ricardo Salles para o MMA, um grupo
de cientistas liderado por Felício e Molion escreveu uma carta a Salles e a diversos outros
membros do governo — entre eles o vice-presidente Hamilton Mourão e o chanceler Ernesto
Araújo — denunciando cientistas e organizações ambientais e divulgando teses negacionistas,
apresentando propostas alinhadas a elas (NOTÍCIAS AGRÍCOLAS, 2019).
Na próxima seção, observa-se em que sentido e intensidade os discursos de ceticismo e
negacionismo climático pautaram a política externa brasileira ao longo dos primeiros dois anos
do governo Bolsonaro. Antes disso, é importante lembrar que Ernesto Araújo deixou a chancelaria
em março de 2021, sendo substituído por Carlos França. Devido ao caráter recente da transição
no ministério, as ações realizadas sob a gestão do novo ministro não serão analisadas a fundo.
114
115
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
aparelhamento da Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), fundação de pesquisa vinculada
ao Itamaraty, que passou a promover encontros e palestras de teor conspiratório e alinhados a
temas conservadores, inclusive sobre a questão climática (DUCHIADE, 2020).
No plano das ações práticas, são três as principais fontes da política externa brasileira
sob Araújo: o sentimento de rejeição aos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), que se
estende à política externa; as crenças da comunidade evangélica brasileira, intimamente ligada
a Israel e alvo de promessas de campanha de Bolsonaro, como a transferência da embaixada
brasileira no país de Tel Aviv para Jerusalém; e o “anti-globalismo”, materializado em uma
rejeição de tom conspiratório às Nações Unidas e a outras organizações internacionais, que
agiriam de modo a limitar a soberania e a liberdade das nações e dos povos, incluindo o Brasil
(CASARÕES; FLEMES, 2019).
Nesse sentido, o que inicialmente foi entendido como um novo movimento de alinhamento
aos Estados Unidos — algo recorrente na história da política externa brasileira — mostrou
ser um alinhamento direto ao governo de Donald Trump. A diplomacia brasileira começou a
replicar muitos dos comportamentos em política externa norte-americanos, como a narrativa de
enfrentamento aos regimes internacionais, incluindo aqui as questões climáticas, e a hostilidade
a determinados grupos percebidos como “inimigos”, como a China, políticos de esquerda e
imigrantes (GUIMARÃES; DUTRA, 2021).
Contudo, a implementação dessa agenda na política externa brasileira não tem se dado sem
resistência dentro dos próprios setores que compõem o governo. É possível identificar uma forte
tensão entre duas alas dentro da estrutura decisória do governo Bolsonaro: uma ala ideológica e
uma ala pragmática. A ala ideológica é composta pelos “olavistas” — aqueles influenciados pelo
auto-proclamado filósofo Olavo de Carvalho, principal ideólogo do governo — como o próprio
Araújo, o assessor para assuntos internacionais da Presidência, Filipe G. Martins, e o deputado
federal por São Paulo, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara e, não menos
importante, terceiro dos quatro filhos homens do presidente, Eduardo Bolsonaro.
Por sua vez, a ala pragmática é composta por aqueles que se opõem à agenda
orçamentários, pode ter sido influenciada pelo governo eleito (AMARAL, 2018).
O caráter negacionista da política externa climática do governo Bolsonaro é ainda mais
evidente quando se observam os discursos e atos públicos dos líderes. Um caso emblemático
é a fala de Ernesto Araújo em uma reunião com diplomatas, quando o então chanceler negou
os efeitos do aquecimento global ao contar uma anedota em tom irônico: “Não acredito em
aquecimento global. Vejam que fui a Roma em maio e estava tendo uma onda de frio enorme.
Isso mostra como as teorias do aquecimento global estão erradas. Isso a mídia não noticia”
(ARAÚJO apud AMADO, 2019, sp.). A fala de Araújo, sintomática do desprezo da agenda
climática, causou constrangimento entre os diplomatas presentes.
Durante a chancelaria de Araújo, as suas conexões internacionais com atores promotores do
negacionismo climático foram expostas. Ao longo da gestão do chanceler, a diplomacia brasileira
participou ativamente de encontros organizados por alguns dos think tanks conservadores
norte-americanos mencionados na terceira seção deste artigo. Em julho de 2019, um diplomata
brasileiro participou da Conferência Internacional sobre Mudança do Clima promovida pelo The
Heartland Institute, nos Estados Unidos, onde também estavam presentes cientistas céticos e
contrários à mudança do clima (FOLHA DE SÃO PAULO, 2019a).
Em setembro do mesmo ano, em meio a uma viagem ao país, Araújo discursou em um
evento da Heritage Foundation, think tank aliado ao governo Trump. Na ocasião, o então
chanceler afirmou que a discussão sobre mudanças climáticas era um pretexto para ditaduras,
e usou termos como “hipnose coletiva” e “apocalipse zumbi” ao se referir ao tema (FOLHA DE
SÃO PAULO, 2019b). Além disso, Araújo pôs em dúvida o caráter antropogênico das mudanças
climáticas. “Então, existe mudança do clima? Sim, certamente, sempre existiu. Ela é causada pelo
homem? Muitos dizem que sim, mas não sabemos ao certo” (ARAÚJO apud FUNAG, 2019, p. 8),
questionou o ministro.
No mês seguinte, Araújo discursou na edição brasileira do congresso da Conservative Political
Action Conference (CPAC), realizada em São Paulo. No discurso, Araújo atribuiu caráter ideológico
à produção científica sobre mudanças climáticas: “O climatismo está para a mudança climática
como o globalismo está para a globalização. A mudança climática deveria ser estudada de maneira
serena, racional, mas também foi capturada por uma ideologia” (ARAÚJO apud ZANINI; MELLO,
2019, sp.). Além disso, o então chanceler criticou o Acordo de Paris, afirmando que o Brasil estava
sendo “vilipendiado” pelas contribuições nacionais acordadas, negou as previsões de aumento da
temperatura média global realizadas por cientistas e ironizou a jovem ativista Greta Thunberg.
Contudo, pelo menos no que diz respeito às ações práticas, a violenta retórica na temática do
clima começou a trazer custos para a política externa brasileira. A política climática do país passou
a ser alvo de tensões entre as alas ideológica e pragmática do governo e a estratégia negacionista
começou a se esvaziar aos poucos. Ainda nos primeiros instantes do seu mandato, às vésperas da
sua ida para o Fórum Econômico Mundial em 2019, Bolsonaro desistiu da ideia de deixar o Acordo
de Paris (CASARÕES; FLEMES, 2019). Ainda que a decisão não tenha gerado efeitos positivos visíveis
no que tange ao cumprimento dos pontos do Acordo, o recuo desta promessa de campanha
ilustra as limitações da estratégia negacionista dentro do horizonte da diplomacia brasileira.
É relevante também destacar, nesse sentido, a deterioração das relações do Brasil com
alguns países — como a França e a Alemanha — que atribuem grande valor à causa ambiental
nas suas prioridades de política externa. Um exemplo disso é o condicionamento da validação
final do acordo entre Mercosul e União Europeia a uma série de medidas ambientais tomadas
pelo Brasil, além da própria adesão brasileira ao Acordo de Paris, após a pressão de líderes
europeus como o presidente francês Emmanuel Macron e a chanceler alemã Angela Merkel
(CHAGAS-BASTOS; FRANZONI, 2019).
116
117
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
À medida que a imagem do Brasil — e especialmente, das figuras de Bolsonaro e de Araújo
— como pária ambiental e climático global se consolidava, os membros de alguns setores ditos
pragmáticos do governo, como o agronegócio, viam seus interesses econômicos postos em
risco e começaram a se opor às ações dos atores da ala ideológica, eventualmente passando
a desempenhar um papel dominante em relação à questão (SARAIVA; SILVA, 2019). A partir do
segundo ano de mandato de Bolsonaro, os discursos negacionistas foram se tornando menos
recorrentes, apontando para um esvaziamento gradual desta estratégia.
Ainda que seja relativamente cedo para se afirmar com clareza, acontecimentos como a
posse de Joe Biden nos Estados Unidos — o que efetivamente encerrou a relação de sintonia
entre governos que guiava as relações entre o Brasil de Bolsonaro e o país sob o governo de
Trump, enfraquecendo o alinhamento na questão climática — e a substituição de Ernesto Araújo
por Carlos França na chancelaria brasileira apontaram para uma potencial reversão da política
externa brasileira diante das questões ambientais e climáticas.
Dois eventos no mês de abril de 2021 simbolizaram esse possível redirecionamento: o
discurso de posse do novo chanceler, onde figuravam temas como energias renováveis e o
cumprimento das metas do Acordo de Paris (FUNAG, 2021); e a participação de Bolsonaro na
Cúpula do Clima organizada pelo governo Biden, onde o presidente apresentou um discurso que,
ainda que repleto de incoerências e imprecisões, não apresentava uma retórica negacionista ou
cética aparente (AGÊNCIA BRASIL, 2021). Contudo, devido à natureza imprevisível e inconstante
dos processos de tomada de decisão em política externa do governo Bolsonaro, é necessário ter
cautela ao analisar e qualificar esse processo de mudança.
Considerações finais
Este artigo buscou analisar a incidência do negacionismo climático como uma fonte da
política externa brasileira durante o governo Bolsonaro, a partir das conexões entre as estratégias
de negação das mudanças climáticas e as ideias de alguns dos atores inseridos no processo
dos líderes (o presidente Bolsonaro e o chanceler Araújo), que dispunham dos recursos e da
autoridade para implementá-las.
Ainda nesse sentido, comprovou-se uma mudança no papel que as ideias desempenharam
dentro do processo de formulação da política externa diante do assunto. Antes de Bolsonaro,
a política externa ambiental e climática brasileira se guiava por um sistema de crenças causais,
com base em uma histórica parceria entre diplomacia e ciência.
Com a mudança de governo e da gestão no Itamaraty, a diplomacia climática brasileira
passou a se guiar pelas visões de mundo e princípios dos tomadores de decisão, com destaque
para a adesão ao antiglobalismo e às teses do ideólogo Olavo de Carvalho, entre outros. Exemplos
dessa mudança são a institucionalização do negacionismo dentro dos núcleos formuladores da
política externa, evidenciados por ações como o aparelhamento da FUNAG e a participação de
diplomatas brasileiros em conferências organizadas por instituições conservadoras.
O presente capítulo se coloca como uma primeira tentativa de organização de uma agenda
de pesquisa que busca compreender os efeitos do movimento do negacionismo climático e suas
manifestações na política externa dos países, especialmente a partir do caso brasileiro. Como
possibilidades de expansão desta agenda, considera-se fundamental a compreensão do processo
de estabelecimento das conexões entre os atores propagadores do negacionismo em âmbito
global — como as redes de cientistas e industriais contrários e os think tanks conservadores
internacionais — e as instâncias formuladoras de política externa.
No caso brasileiro em específico, é imprescindível a análise das condições que permitem
a penetração dessas ideias no processo decisório em política externa, bem como das forças
contrárias que limitam sua efetividade e levam os resultados do processo em direção ao
pragmatismo, a partir da noção de que a política externa é uma política pública e, por isso, sua
formulação resulta da incidência de diversos setores da sociedade nela interessados.
Referências
AGÊNCIA BRASIL. Confira discurso do presidente Bolsonaro na Cúpula do Clima. Agência Brasil,
22 abr. 2021. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-04/confira-
discurso-do-presidente-bolsonaro-na-cupula-do-clima. Acesso em 3 ago. 2021.
AMADO, Guilherme. Ernesto Araújo nega aquecimento global: “Fui a Roma em maio e havia uma
onda de frio”. Época, 3 ago. 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/epoca/guilherme-
amado/ernesto-araujo-nega-aquecimento-global-fui-roma-em-maio-havia-uma-onda-de-
frio-23851347. Acesso em 27 jul. 2021.
AMARAL, Ana Carolina. Brasil desiste de sediar Conferência do Clima da ONU em 2019. Folha
de São Paulo, 27 nov. 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2018/11/
brasil-desiste-de-sediar-conferencia-do-clima-da-onu-em-2019.shtml. Acesso em 1 ago. 2021.
BUSCH, Timo; JUDICK, Lena. “Climate change – that is not real! A comparative analysis of climate-
sceptic think tanks in the USA and Germany”. Climatic Change, v. 164, n. 1-2, 2021, p. 1-23.
CARROLL, William; GRAHAM, Nicolas; LANG, Michael K.; YUNKER, Zoë; MCCARTNEY, Kevin D. The
Corporate Elite and the Architecture of Climate Change Denial: A Network Analysis of Carbon
Capital’s Reach into Civil Society. Canadian Review of Sociology, v. 55, n. 3, 2018, p. 425-450.
CASARÕES, Guilherme; FLEMES, Daniel. Brazil First, Climate Last: Bolsonaro’s Foreign Policy.
GIGA Focus Latin America, v. 5, 2019. Disponível em: https://www.giga-hamburg.de/en/
publications/11567076-brazil-first-climate-last-bolsonaro-foreign-policy/. Acesso em 28 jul. 2021.
118
119
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
CHAGAS-BASTOS, Fabrício; FRANZONI, Marcela. The Dumb Giant: Brazilian Foreign Policy under
Jair Bolsonaro. E-International Relations, 2019. Disponível em: https://www.e-ir.info/2019/10/16/
the-dumb-giant-brazilian-foreign-policy-under-jair-bolsonaro/. Acesso em 1 ago. 2021.
DEMERITT, David. The Construction of Global Warming and the Politics of Science. Annals of the
Association of American Geographers, v. 91, n. 2, 2001, p. 307-337.
DUCHAIDE, André. Fundação de pesquisa do Itamaraty vira think tank olavista durante a
pandemia. O Globo, 14 mai. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/fundacao-
de-pesquisa-do-itamaraty-vira-think-tank-olavista-durante-pandemia-24427115. Acesso em 1
ago. 2021.
DUNLAP, Riley E. Climate Change Skepticism and Denial: An Introduction. American Behavioral
Scientist, v. 57, n. 6, 2013, p. 691-698.
______; JACQUES, Peter E. Climate Change Denial Books and Conservative Think Tanks: Exploring
the Connection. American Behavioral Scientist, v. 57, n. 6, 2013, p. 699-731.
FELÍCIO, Ricardo. Entrevista ao “Programa do Jô”. Globoplay, 2 mai. 2012. Disponível em: https://
globoplay.globo.com/v/1930554/. Acesso em 30 jul. 2021.
FOLHA DE SÃO PAULO. Governo brasileiro participa de reunião com negacionistas do clima. Folha de
São Paulo, 30 jul. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/07/governo-
brasileiro-participa-de-reuniao-com-negacionistas-do-clima.shtml. Acesso em 27 jul. 2021.
______. Nos EUA, Ernesto critica “climatismo” e diz que debate é “pretexto para ditadura”. Folha
de São Paulo, 11 set. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/09/nos-
eua-araujo-critica-climatismo-e-diz-que-debate-e-pretexto-para-ditadura.shtml. Acesso em 27
jul 2021.
FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO (FUNAG). Discurso do Ministro Ernesto Araújo na Heritage
Foundation, em Washington, D.C., 11 set. 2019. Disponível em: https://funag.gov.br/index.php/pt-
120
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
CAPÍTULO 7
Introdução
Nos últimos anos temos assistido a uma crise do regionalismo na América do Sul que
tem sido analisada por várias pesquisas sobre o assunto (BRICEÑO-RUIZ, 2018, 2021; MIJARES;
NOLTE, 2018; SANAHUJA, 2019; NOLTE; WEIFFEN, 2020; DE ARAUJO; NEVES, 2021; GONZÁLEZ
et al., 2021; SARAIVA; GRANJA, 2022). Muitas análises consideram que o momento atual é
crítico para a construção da governança regional e colocam a ênfase na divergência política e
nos diferentes arranjos institucionais criados ou desmontados para dar conta de tal situação
(BARROS; GONÇALVES, 2019; SARAIVA; GRANJA, 2019; GRANJA; MESQUITA, 2020; ALVAREZ,
2021a; MARIANO; BRESSAN; LUCIANO, 2021). No entanto, há analistas que consideram que a
crise é uma constante na construção do regionalismo, havendo historicamente períodos de maior
compromisso, onde a construção de governança regional se dá com afinco, considerados como
períodos de alta politização; e períodos onde há menos construção (o inclusive desmonte) da
governança regional, considerados períodos de despolitização (DABÈNE, 2012; VAN KLAVEREN,
2018; ALVAREZ, 2021b).
Exemplos como o desmonte institucional da UNASUL, o esvaziamento da ALBA, ou a não
concretização da CELAC como mecanismo de diálogo político regional que concentre a América
Latina e o Caribe, e, finalmente, a criação contestatária do PROSUL puseram de manifesto que
não há uma única forma em que o regionalismo pode se ser construído, assim como também não
há um único projeto de região em disputa na América do Sul (BRICEÑO-RUIZ, 2017; MOLANO
CRUZ; BRICEÑO-RUIZ, 2021). Mas recentemente, especialistas começaram a afirmar que, inclusive,
estamos assistindo a um processo de desintegração regional na América Latina (BARRETO;
MALAMUD, 2020; MARIANO; NEVES, 2021). De modo geral, os diagnósticos são bastante
consensuais ao considerar o regionalismo sul-americano como em estado crítico, sobre tudo
— e aí diferem os analistas — desde a ruptura da convergência ideológica intergovernamental
em algumas das instituições de construção de governança regional que costumavam agrupar
países mais ou menos convergentes entre as ideologias de seus governos: o MERCOSUL durante
os governos progressistas, e Aliança do Pacífico, que desde o seu começo (2011) se perfilou com
um viés comercialista centralizado na troca com países do outro lado do Pacífico.
No âmbito do MERCOSUL, a crise se manifesta com certa antecedência: já desde o juízo
político de Fernando Lugo no Paraguai em 2012, e a consequente crise política que se dá com
o ingresso da Venezuela em 2013, anos depois afastada, podemos pensar que o bloco enfrenta
dificuldades de índole política que vem in crescendo (VÁZQUEZ, 2017; GRANJA, 2020; GRANJA;
MESQUITA, 2020). Em 2015, a eleição de Maurício Macri na Argentina acabou com a relativa
convergência ideológica entre os governos da Argentina e Brasil, que tinha impulsionado o
MERCOSUL na década anterior. Embora tais dificuldades sejam visíveis durante toda a existência
tira a região do foco da política externa brasileira; e com a assunção do governo de Alberto
Fernández, se termina de concretizar a divergência ideológica entre ambos os governos. Em
2020, com a assunção de Lacalle Pou em Uruguai, começa também um período de tensão entre
ambos rioplatenses ocasionado pela divergência ideológica. Dessa forma, o MERCOSUL se vê
fragmentado, e sem capacidade de ação no âmbito político.
O objetivo do presente capítulo é avaliar esse último período do MERCOSUL desde a
dimensão empírica. A partir da análise de conteúdo das decisões tomadas pelo Conselho
Mercado Comum (CMC) entre 2015 e 2022, pretende-se identificar as principais características
que têm sido impostas ao bloco perante a crise de convergência ideológica intergovernamental.
O período de análise contemplado pela pesquisa se inicia em 2015 por ser o momento em
que ocorre uma mudança clara no signo ideológico do governo argentino e na política
defendida para o MERCOSUL por tal país. A dupla argentino-brasileira tem sido fundamental
para estruturar as bases e o acionar do bloco, e, por tais motivos, o relacionamento bilateral
entre ambos os países tem se constituído como motor (ou freio) do MERCOSUL durante toda
sua trajetória. Mesmo que o governo de Dilma Rousseff já tivesse mudado o rumo da política
externa em relação aos governos petistas anteriores, a maior mudança na política brasileira
para o MERCOSUL ocorreu após o impeachment (golpe), durante o governo Temer é deixada
de lado a prioridade do contexto sul-americano de vez, e isto se agudiza com o descaso para
a região ao longo do governo Bolsonaro. No que diz respeito aos sócios menores, há relativa
proximidade ideológica em torno do livre comércio e busca de novos mercados entre os
governos de Benítez (Paraguai) e Lacalle Pou (Uruguai), mas ela não se concretiza em agendas
que possam sustentar o acionar do bloco durante suas respectivas presidências pro tempore
(PPTs) além do funcionamento corriqueiro do MERCOSUL. Pelo contrário, o governo do
Uruguai, uma vez mais, ameaça com a assinatura de um Tratado de Livre Comércio (TLC) com
um país extra-bloco (China) e com adherir ao Tratado Integral e Progressista de Associação
Transpacífico, ferindo a decisão nº 32 do ano 2000 que nega tal possibilidade sem consultas
aos demais sócios 2.
Como hipótese, o capítulo aqui disposto sugere que a divergência ideológica
intergovernamental tem prejudicado diretamente as capacidades do MERCOSUL de atuar com
agência intra e extrarregionalmente, promovendo um processo de desmonte institucional das
capacidades criadas no período anterior. Entre tais capacidades, contam como possíveis freios
à vontade política de desmonte: a resiliência institucional; a burocratização; e a especialização
do MERCOSUL, que atuariam como mecanismos geradores de consensos e lock in institucional.
De qualquer forma, os efeitos do desmonte institucional se fazem notar num retrocesso da
governança regional do MERCOSUL.
Para avaliar as implicações de tal hipótese, uma análise de conteúdo detalhada das
decisões do CMC categorizadas por assuntos tratados para o período 2015-2022 é feita a partir
da construção de uma base de dados. Ao mesmo tempo, se recorre a dados do período anterior
(2003–2013) com fins comparativos e de evidência. A principal variável traçada na trajetória
2 Não seria a primeira vez que similares ações do governo uruguaio acontecem, embora em diferentes contextos:
em 2006 o então governo de esquerda uruguaio negociou a assinatura de um TLC com os Estados Unidos, herdado
do governo anterior de Batlle, que finalmente não se concretizou. Naquele momento, tanto os sócios maiores do
MERCOSUL quanto boa parte da Frente Ampla, partido do governo uruguaio, se opuseram. Atualmente, o governo
de Lacalle Pou está em tratativas para assinar um TLC com China que tem sido objeto de críticas por parte do
governo argentino, e de ressalvas, pelo governo brasileiro. Na viagem do atual canciller uruguaio Bustillo à Nova
Zelândia, formalizou a solicitude de adesão individual ao Tratado Integral e Progressista de Associação Transpacífico
desconhecendo a advertência feita pelos três sócios do MERCOSUL através dos coordenadores nacionais do Grupo
Mercado Comum em 30 de novembro de 2022.
122
123
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
em ambos os períodos, é a institucionalização do Mercosul, a partir do registro da geração
ou desmonte institucional. Nesse sentido, o capítulo analisa a conjuntura atual do MERCOSUL
comparativamente ao período imediatamente anterior. Focaliza nos cortes orçamentários
propostos dentro do bloco como evidências das tentativas de debilitar às capacidades
institucionais construídas previamente; assim como nas propostas de reforma institucional
feitas no Conselho, para pensar nas categorias da análise de conteúdo. Durante a pesquisa
se trabalhou com uma base de dados criada no software Nvivo para analisar os documentos
oficiais do MERCOSUL classificando os assuntos tratados por linhas, de acordo com os critérios
de especificidade do assunto e objetivos propostos (de cada decisão)3. Em total foram analisados
191 documentos, sendo todas as decisões tomadas no MERCOSUL durante o período 2015–
2022. A análise de conteúdo é uma ferramenta de pesquisa que utiliza métodos qualitativos
(interpretativos do conteúdo do texto) para medir frequências, ocorrências e co-ocorrências dos
temas (SILVA; GRANJA, 2020).
Na primeira seção é traçada a trajetória da construção institucional implementada no
período de 2003 a 2013, onde houve convergência ideológica intergovernamental e, para
isso, são utilizados dados da base criada no software. Além disso, empiricamente aparece o
desmonte institucional que está acontecendo no período atual, representado especialmente
através da análise de conteúdo das decisões que estabelecem como objetivo uma “reforma
institucional” do bloco. Na segunda parte, se traça o vínculo entre a criação e o desmonte
institucional vivenciado respectivamente em ambos os períodos classificados, junto com os
diferentes momentos de con(di)vergência ideológica intergovernamental intra-MERCOSUL
com o intuito de comprovar a hipótese e as implicações derivadas dela. Finalmente, se esboçam
algumas considerações que servem de base para pensar a governança regional desde o estudo
de caso do MERCOSUL.
dezembro de 1991, junto com as Reuniões de Ministros de Educação, de Justiça (ou similares)
e do Trabalho4. Como vemos, os assuntos que interessavam aos membros do bloco discutir
conjuntamente, eram os da agenda econômico-comercial. Nesse período, de fato, havia uma
convergência intergovernamental em torno ao projeto do MERCOSUL como estratégia de
inserção internacional e ainda estava muito vigente a agenda marcada no Tratado de Assunção.
Nesse ano também foram criadas as reuniões especializadas que atuariam conjuntamente com
o Grupo Mercado Comum (GMC) e seus subgrupos de trabalho.
Outra leva de reuniões ministeriais teve lugar dentro da institucionalidade do MERCOSUL,
em 2000, quando foram criadas as reuniões de Ministros de Minas e Energia e a de Ministros
e Autoridades de Desenvolvimento Social5. Esse processo de criação de reuniões ministeriais
se aprofunda nos anos seguintes (2003–2015)6. Nesse período também foram criadas reuniões
especializadas sem rango ministerial, mas integradas por atores governamentais e da sociedade
civil organizada, ampliando a participação na tomada de decisões no bloco a mais atores não
tradicionalmente considerados. Nesse sentido, as reuniões mantiveram sua capacidade de
geração, interação e coordenação de agendas comuns e representaram também o momento
denominado de “MERCOSUL ampliado”; não somente porque se amplia a participação no
bloco, mas também porque ficam mais abrangentes os assuntos tratados conjuntamente e
a coordenação de agendas começa a gerar seus resultados. Entre as reuniões especializadas
criadas nesse período encontramos a Reunião Especializada de Organismos Governamentais
de Controle Interno; a Reunião Especializada de Entidades Governamentais para Nacionais
Residentes no Exterior; a Reunião Especializada em Assistência Humanitária. Todas elas tiveram
competência de coordenação do Foro de Consulta e Concertação Política do MERCOSUL,
organismo criado em 1998 como órgão auxiliar ao CMC e que canaliza as informações de todas
as reuniões especializadas diretamente a ele7.
No que diz respeito às instituições e organismos criados dentro da estrutura organizacional
do MERCOSUL, elas também seguem o mesmo padrão e reforçam sua institucionalidade uma
vez que têm capacidades de agência nas áreas de sua competência, quando não, cargos e
orçamentos próprios. Tais organismos são destacados neste capítulo posto que tem sido objeto
do desmonte institucional no período 2015–2022 aqui argumentado8.
124
125
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Os grupos de trabalho ad hoc, por sua vez, também foram criados em períodos de relativa
convergência ideológica, embora a sua capacidade na implementação das agendas coordenadas
conjuntamente seja reduzida pelo seu caráter temporal. Em algumas ocasiões o próprio grupo
propõe a criação de uma reunião especializada no assunto e se transladam as demandas à nova
instância regional. Nesse sentido, se constroem práticas de lock in institucional (nem sempre aliadas
da construção de governança regional), são geradas capacidades para controlar tais agendas
desde instâncias mais formais e com capacidade de ação. Além de possibilitar maior quantidade
de consensos — compromissos críveis, nos termos de Moravcsik (1998); alguns deles derivados
em acordos que se assemelham a estratégias de política pública regional (GRANJA, 2017).
No gráfico a continuação se resume a trajetória da construção de capacidades institucionais
no MERCOSUL para o período 1991–2015, que se materializa na criação institucional de: reuniões
ministeriais, reuniões especializadas organizadas por assuntos, e na criação de instituições e órgãos
(ou cargos) dentro da estrutura do bloco, assim como na de grupos ad hoc até aqui relatada.
1991
1992
1994
1999
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2014
2015
1 2 3 4 5 6
do MERCOSUL é notória a quantidade de decisões tomadas pelo CMC que tem por objeto
principal a gestão interna do bloco, sua administração ou fortalecimento institucional;
quando não sua regulamentação ou destino orçamental. Nesse sentido, do total de decisões
tomadas pelo CMC entre 1991 e 2022 (1046 documentos), 37,8% representam ações com
tais objetivos. De qualquer forma, é evidente que nos períodos de convergência ideológica
intergovernamental houve maior concentração de tais medidas; no período da convergência
ideológica progressista (2003–2013) tais estratégias foram as protagonistas, às quais se
adiciona a construção de agendas de implementação e planos de execução conjuntos. Tais
planos representam desenho e execução de políticas públicas regionais.
Em resumo, identificamos dois tipos de estratégias para a construção de capacidades
institucionais dentro do MERCOSUL. Em primeiro lugar, a própria criação de instituições e
órgãos que colocam de manifesto a vontade política de gerar agendas comuns nesses
assuntos. Além disso, tem a capacidade de manter ao longo do tempo o status quo das
decisões tomadas nos momentos de alta convergência intergovernamental, gerando um lock
in institucional, nos momentos de baixa ou nula convergência.
A segunda estratégia, o fortalecimento institucional a partir da criação de instituições
que suplantam as competências de outras, como o caso do PARLASUL com a Comissão de
Representantes Permanentes; ou os casos de criação de grupos ad hoc que, posteriormente,
derivam seus trabalhos na criação de um organismo permanente. Tal estratégia pode ser
avaliada como criação de capacidades de resiliência institucional a partir da geração de
incentivos à formulação de políticas comuns nas áreas de competência exclusiva, que,
posteriormente, se evidenciam nas agendas dos organismos criados. Finalmente, a criação de
reuniões ministeriais teve como estratégia assegurar a aplicação interna e o consenso político
em torno das agendas negociadas regionalmente.
Dados os avanços na quantidade de assuntos tratados pelo MERCOSUL, assim como
na institucionalidade criada para a gestão de tal agenda e seu fortalecimento a partir da
qualificação de pessoal, gestão de fundos (embora pouco significativos) e planejamento de
ações conjuntas, é possível pensar que foram criadas capacidades institucionais (pelo menos
intencionalidade houve) com vistas a construir governança regional.
Como dito anteriormente, no período 2015–2022 se evidenciam intenções contrárias a
tal propósito. No ano de 2015 foi o último onde se criaram e fortaleceram órgãos dentro do
MERCOSUL. A partir daí, e mais fortemente evidenciado desde 2017, houve um processo de
desmonte institucional do bloco9. Foi possível identificar a intencionalidade para tal desmonte
institucional e foram codificadas na base de dados algumas das estratégias de ação. Entre
elas encontram-se a supressão de instituições, os recortes orçamentários e a modificação dos
regulamentos internos.
Um dos casos mais emblemáticos é o do Instituto de Políticas Públicas de Direitos
Humanos do MERCOSUL (IPPDDHH), criado em 2009, e regulamentado em 2015 (Dec.
CMC nº 55/2015) quando se criaram cargos técnicos e executivos dentro de sua estrutura
organizacional. O IPPDDHH tem um Conselho de Representantes governamentais dos Estados
parte, assim como um Secretário Executivo e vários Departamentos (Relações Institucionais,
Pesquisa e Gestão da Informação, Assistência Técnica, Comunicação e Cultura e Administração
e Recursos Humanos). Tal estrutura foi modificada em 2021 uma vez que:
9 Quando se derroga a decisão que criou o cargo de Alto Representante Geral do MERCOSUL com a justificação
de uma “racionalização da estrutura institucional e da utilização dos recursos humanos e financeiros”, além da
“adequação às necessidades concretas de cada etapa do processo de integração” (Dec. CMC nº06/2017).
126
127
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
resulta conveniente efetuar modificações no que tange à organização e
funcionamento do IPPDDHH e do ISM a fim de fortalecer sua participação
no marco da estrutura institucional do MERCOSUL, assim como adequar
seus programas e ações à agenda e prioridades do bloco e, desse modo,
maximizar o aproveitamento das capacidades técnicas de ambos os
institutos (Dec. CMC nº 5/2021, sp.)10.
10 Todas as citações diretas aos documentos oficiais do MERCOSUL foram traduzidas livremente do espanhol pela
autora.
11 Os Planos de Ação têm sido uns dos mais importantes instrumentos de atuação conjunta do MERCOSUL na sua
trajetória, e representam uma das modalidades para o estabelecimento de políticas públicas regionais (GRANJA,
2017).
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
permanentes. Tal decisão também elimina automaticamente as instâncias que estiverem inativas
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
12 Uma nova reestruturação de ambas as instituições foi executada pela Dec. CMC nº 5/2021.
13 Neste caso se evidencia uma contradição nas decisões tomadas pelo CMC no período, posto que recetemente
(2017) tinha sido aprovado um projeto no âmbito do FOCEM de “fortalecimento das capacidades institucionais para
a gestão das políticas públicas em Direitos Humanos do MERCOSUL” que destinava fundos específicos ao órgão
(Dec. CMC nº 07/2017).
14 Antigo Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata, criado em 1971 com sede na Bolívia, foi
reestruturado como Banco de Desenvolvimento entre 2010 e 2018.
128
129
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Gráfico 7.2 – Orçamentos aprovados pelo CMC (2015–2022)
Orçamentos Órgãos - Codificação por Item
15 Entendendo que tal dimensão tem duas vertentes, a dimensão da regionalidade (SÖDERBAUM, 2015) e a do
regionalismo (SARAIVA; GRANJA, 2019).
130
131
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
institucionalização16. Nesse sentido, a construção de capacidades institucionais tem demonstrado
ser uma das estratégias mais importantes na construção do regionalismo aberto e do pós-liberal
ou pós-hegemônico. Períodos que coincidem com os analisados por este capítulo, onde se
mostram evidências de que a governança regional alcançou resultados importantes na dimensão
relacional a partir da construção de tais capacidades institucionais.
As capacidades, ao longo do tempo, também demonstram serem importantes agentes
estabilizadores em momentos de divergência ideológica intergovernamental. Nesse sentido, a
resiliência e a especialização das burocracias têm agido para a mudança ou manutenção do
status quo durante os diferentes períodos de con(di)vergência ideológica intergovernamental.
A resiliência das instituições do MERCOSUL também se evidencia na análise do desmonte
institucional. Embora haja incentivos políticos para a desconstrução das agendas, nas reuniões
especializadas há atores com incentivos criticamente opostos que devem ensaiar estratégias de
resistência. Esses atores da sociedade civil organizada estariam representando a dimensão da
regionalidade criada na construção da governança regional do MERCOSUL. Ainda restam para
se ver evidências mais contundentes do acionar dos atores em tais instâncias (sobretudo nas
reuniões especializadas) que fogem ao escopo deste capítulo.
Além disso, o processo de construção de capacidades institucionais anterior permitiu a
criação de burocracias especializadas dentro do MERCOSUL, com capacidade de agência na
construção de agendas e de planos de ação para a instrumentação de políticas públicas regionais.
Isso se evidencia particularmente no FOCEM, mas também nas demais instituições e órgãos
com orçamento próprio criadas no período 2003-2013. Mais evidências sobre o assunto devem
aparecer a partir de expirado o prazo dado pelo CMC à instauração da reforma institucional do
MERCOSUL, dezembro de 2022.
Conclusões
Referências
ÁLVAREZ, María Victoria. Auge y ocaso del regionalismo post-liberal: entre la convergencia ideológica
y el liderazgo regional. Cadernos de Campo: Revista de Ciências Sociais, n. 29, 12 mar. 2021a, p. 43-69.
16 Isto contraria a ideia eurocêntrica de que o MERCOSUL não tem uma institucionalidade apropriada pelo fato de
não ter delegação ou partilha de soberania como na União Europeia.
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
______. “ALBA e UNASUL na fase de despolitização: E depois? Evidência de precária (re)politização”.
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
132
133
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
MORAVCSIK, Andrew. The choice for Europe: social purpose and state power from Messina to
Maastricht. Ithaca: Cornell University Press, 1998.
NOLTE, Detlef; WEIFFENN, Brigitta. Introduction: Regionalism Under Stress. In: NOLTE, Detlef;
WEIFFENN, Brigitta. Regionalism Under Stress: Europe and Latin America in Comparative
Perspective. Oxfordshire: Routledge, 2020, p. 248.
SANAHUJA, José A. La crisis de la integración y el regionalismo en América Latina: giro liberal-
conservador y contestación normativa. In: CEIPAZ. Anuario Ceipaz 2018–2019: Ascenso del
nacionalismo y el autoritarismo en el sistema internacional”, 2019, p. 107-126.
SARAIVA, Miriam G.; GRANJA, Lorena. Integración Sudamericana en la encrucijada entre la
ideología y el pragmatismo. Revista uruguaya de ciencia política, 1 jul. 2019. Disponível em:
http://rucp.cienciassociales.edu.uy/index.php/rucp/article/view/430. Acesso em 13 jul. 2022.
______; ______. Gobernanza regional: concepto para pensar los regionalismos latinoamericanos. In:
MOLANO CRUZ, G.; BRICEÑO-RUIZ, J. (Eds.). El regionalismo en América Latina después de la post-
hegemonía. Cidade do México: Centro de Investigaciones sobre América Latina y el Caribe, 2021.
______; ______. América Latina y la pandemia: un retrato de la crisis del regionalismo. Conjuntura
Austral, v. 13, n. 62, 7 jul. 2022, p. 22-35.
SILVA, Danielle C.; GRANJA, Lorena. Aplicação metodológica da análise de conteúdo em pesquisas
de análise de política externa. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 33, 2020, p. e218584.
SÖDERBAUM, Fredrik. “Rethinking regionalism!!!”. Nova York: Palgrave Macmillan, 2015.
VAN KLAVEREN, Alberto. El eterno retorno del regionalismo latinoamericano. Nueva Sociedad,
v. 275, jun. 2018. Disponível em: https://static.nuso.org/media/articles/downloads/3.TC_van_
Klaveren_275.pdf. Acesso em 20 ago. 2022.
VÁZQUEZ, Mariana. El Mercosur de Asunción a Asunción. Trabalho apresentado ao 9o Congreso
Latinoamericano de Ciencia Política “Democracias en Recesión?”. Montevideo: ALACIP, 2017.
Introdução
A estrutura política boliviana sofreu mudanças significativas nessas duas últimas décadas. A
constituição do Estado Plurinacional e a chegada do Movimiento al Socialismo (MAS) ao governo
foram decisivas para inclusão da cosmovisão indígena ao aparato estatal. Em muitos momentos,
sobretudo no primeiro governo Evo Morales, houve tentativas de golpes por parte da elite de
Santa Cruz. No entanto, em seu segundo mandato, por meio de um projeto mais conciliatório,
a administração Morales obteve estabilidade política. Todavia, em 2019, após um conturbado
processo eleitoral, Evo Morales sofreu um golpe de estado, orquestrado sobretudo pela elite
santacruceña.
É possível identificar dois macroprojetos2 políticos na Bolívia. O primeiro fundado nas raízes
coloniais, que reivindica valores ocidentais e políticas vinculadas aos Estados centrais. Analisando,
como exemplo, o governo de Janine Añez é possível se verificar o apelo que ela faz à relação
com os Estados Unidos e aos valores cristãos em seus discursos (CHAVES, 2020). Por outro lado,
existe o projeto, por hora majoritário, que resultou na constituição do Estado Plurinacional e na
ascensão do MAS, cuja raiz está no indianismo. Este capítulo não visa discutir a origem desses
macroprojetos e suas divergências, mas visa compreender as bases do MAS e sua ideologia
política (ARCE, 2021).
Ao analisar a política externa do governo de Evo Morales se observa que os princípios da
filosofia indígena do Vivir Bien eram o alicerce ideológico. Mais especificamente, a agenda externa
de meio ambiente possui grande vinculação com o Vivir Bien, ao passo que a atuação boliviana
no sistema internacional se configurou na defesa da Mãe Terra. Aqui se buscará compreender a
incidência da cosmovisão originária na política externa de meio ambiente partindo da composição
ideacional do Movimiento al Socialismo, durante os mandatos de Evo Morales e Luis Arce.
Trazendo a conjuntura boliviana da última década e analisando como o MAS vem se
sustentando no poder, argumenta-se que a cosmovisão originária está intrinsecamente ligada
à episteme do MAS, assim, sua confluência na política externa se baseia na própria existência
do partido enquanto força política, uma vez que a construção de seu poder está vinculada aos
instrumentos simbólicos que esta episteme oferece ao MAS e às suas lideranças. O argumento
se sustenta nas movimentações políticas vinculadas às alas que têm no indianismo alicerce, força
política que deu legitimidade para o MAS chegar à presidência em 2006 e em 2020.
Ao postular essas afirmações, a pesquisa se baseia na área de Análise de Política Externa
(APE), enquadrando-se nos estudos que exploram como as ideias se vinculam à política externa.
Investigar a atuação externa de um Estado perpassa por compreender a relação das variáveis
1 Essa pesquisa foi feita com o apoio da CAPES através das bolsas de mestrado e, depois, doutorado.
2 Coloco como macroprojetos porque existem grupos políticos distintos, que divergem e convergem a depender da
temática, possuindo diferentes planos políticos.
135
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
domésticas com o processo decisório. Os estudos de APE estabelecem uma ênfase mais forte no
poder de agência dos Estados e, portanto, desde o início reconheceria a centralidade dos fatores
subjetivos na formação e interpretação de eventos, atores e escolhas de política externa (ALDEN;
ARAN, 2012).
A pesquisa utiliza o método de análise de conteúdo. A análise de conteúdo é uma
metodologia que pode ser eficaz para verificar hipóteses e teorias através da sistematização dos
conceitos em categorias de análise e redução dos dados examinados. A categorização é definida
pelos critérios da pesquisa que são baseados em uma abordagem teórica e estão inseridos em
contextos determinados. A hipótese está alicerçada em uma causalidade específica entre as
variáveis, e a aplicação dessa metodologia esclarece como ocorre essa relação na empiria e, assim,
possibilita validar ou refutar a suposição prevista. Para tanto, foi realizada uma sistematização dos
conceitos principais que movem o discurso de Evo Morales: justiça social, direitos da Mãe Terra,
plurinacionalidade, democracia, Vivir Bien, anti-imperialismo, anticolonialismo, anticapitalismo.
A finalidade é compreender como os termos da cosmovisão indígena foram mobilizados nos
discursos internacionais de Evo Morales e Luis Arce no que tange a agenda de meio ambiente.
A estrutura do capítulo parte da investigação da origem ideológica do MAS e da relação do
movimento indígena com o partido, com base em bibliografia secundária e notícias sobre a atual
conjuntura política boliviana. Em sequência, faz-se a análise de conteúdo utilizando os discursos
dos dois presidentes nas Conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP),
encontrados nos acervos do governo, ou vídeos em sites de notícias, realizando a codificação
por meio da sistematização conceitual citada. Por fim, se concentra na discussão teórica aplicada
ao resultado da análise de conteúdo para que o argumento seja verificado.
3 O katarismo se desenvolveu na década de 60 como resultado da exclusão dos povos indígenas das cidades devido
políticas do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR).
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
importante relação com o partido4 e graus variados de aproximação entre a luta sindical e étnica.
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
O Pacto de Unidad5 é composto pelas seguintes entidades: Confederación Sindical Única dos
Trabajadores Campesinos de Bolivia (CSUTCB), Confederación Nacional de Mujeres Campesinas
Indígenas Originárias de Bolivia – Bartolina Sisa (CNMCIOB-BS), a Confederación Sindical de
Comunidades Interculturales de Bolivia (CSCIB), a Confederación de Pueblos Indígenas del
Oriente Boliviano (CIDOB) e o Consejo Nacional de Ayllus y Markas del Qullasuyu (CONAMAQ).
Todas elas apoiaram o MAS na eleição de 2005; contudo, a relação de cada uma com o governo
se modificou ao longo da administração de Morales, e o motivo está na identidade que cada
uma delas têm.
Embora existam distinções6 relacionadas à origem e propósito da luta, a CSUTCB, a CSCIB
e a CNMCIOB-BS possuem raízes identitárias semelhantes. Essas organizações reivindicam a
identidade indígena, mas possuem forte vínculo com a luta sindical, uma vez que são oriundas do
movimento operário cuja base ideológica está na esquerda marxista. Já a CIDOB e a CONAMAQ
são entidades onde o sindicalismo não aparece como nas outras, o compartilhamento da cultura,
da ancestralidade e do território são essenciais para a formação de sua identidade, tendo sua
origem fortemente ligada ao indianismo (LINERA; LEÓN; MONJE, 2010).
O caso TIPNIS foi a evidência das contradições do governo Morales, deixando visível as
divergências que existiam na base social do MAS. O Território Indígena Parque Nacional Isiboro
Sécure (TIPNIS) se localiza nas terras baixas bolivianas, local onde a CIDOB e a CSCIB possuem
influência. Em 2011, o governo, unilateralmente, decidiu construir uma estrada cortando o
TIPINIS. Considerando a decisão arbitrária, as organizações que compõem a CIDOB realizaram
uma marcha rumo à sede do governo em protesto. Todavia, as mobilizações indígenas foram
violentamente reprimidas, passando a ter maior apoio e visibilidade nacional. A CONAMAQ
se insere nas manifestações, mas a CSCIB, a CSUTCB e a CNMCIOB-BS se posicionam contra a
CIDOB e em favor do governo.
Por um lado, a CIDOB e a CONAMAQ argumentavam que a construção da estrada no TIPNIS
feriria a autonomia indígena garantida constitucionalmente pelo Estado Plurinacional, expondo
que essa decisão estimularia o avanço da ocupação e devastação do TIPNIS pelo agronegócio.
Por outro, a CSCIB, a CSUTCB e a CNMCIOB-BS alegam que a estrada seria fundamental para
o desenvolvimento boliviano, ao passo que facilitaria o escoamento da produção. A defesa
por parte dessas organizações teria relevância econômica particular, pois sua justificativa tinha
como alicerce o interesse em expandir a produção de coca no território boliviano (Duval, 2014;
Cusicanqui, 2014). Essas divergências se tornaram desavenças a partir do momento que o
governo Evo Morales — aliado à CSCIB, a CSUTCB e a CNMCIOB-BS — passou a se dirigir a
CIDOB e a CONAMAQ como “desertoras”, “traidoras do desenvolvimento” e “selvagens” (ZEHURI,
2013; CUSICANQUI, 2014). Essa retórica, alega Silvia Cusicanqui (2014), expressa o “giro colonial”
do governo do MAS.
A identidade das entidades explica o modo como elas enxergam sua relação com o
território. A CSUTCB, a CNMCIOB-BS e a CSCIB compreendem que o território pode ser utilizado
para a reprodução material, por mais que possua relação com o sagrado (Pachamama), a
136
137
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
manutenção da vida também perpassaria pela qualidade de vida das populações ali encontradas.
Já a CONAMAQ e a CIDOB entendem que a terra e a reprodução da vida estão intrinsecamente
ligadas à ancestralidade, sendo o território representante da sacralidade da Pachamama porque
ele seria a conexão com os antepassados e com as gerações futuras (VALIŠKOVÁ; SPRINGEROVÁ,
2019; GONÇALVES, 2022).
Essas diferenças são essenciais para compreender a maneira que o MAS é composto. É
possível identificar grupos que se aproximam mais da luta sindical do que da étnica e outros
que, ao contrário, têm maior conformidade com a étnica e o ambientalismo. Ao trazer essa
constatação para a atualidade, a rejeição a Morales em 2019 tem alicerce na maneira que ele
tratou às nações indígenas, sobretudo às das terras baixas, e, atualmente, a escolha do ex-
chanceler David Choquehuanca para vice-presidência se insere neste contexto. Choquehuanca
tem importante entrada nos movimentos sociais devido sua posição de defesa dos direitos
originários nos governos do ex-presidente (OPERA MUNDI, 2022). Mesmo que o ex-chanceler
fosse o candidato aclamado pelas organizações campesina-originárias, Luis Arce, intelectual
de classe média, foi escolhido como cabeça de chapa devido a posição de Morales dentro do
partido, atual presidente do MAS.
O politólogo Franklin Pareja expõe a existência de três poderes, cada um representado
por uma dessas lideranças: Morales representaria a postura ideológica sindicalista, sustentando
os conceitos como o anti-imperialismo e o antineoliberalismo; Arce possui forte sintonia com
Morales, permanecendo como um político de baixo perfil, mas corresponderia a seguridade
econômica, já que foi ministro da economia no período do crescimento boliviano; por fim,
Choquehuanca foi fundamental porque teria uma relação estreita com os setores populares,
sendo o representante da identidade indígena (ROMANO, 2022). Segundo jornais bolivianos
(PAREDES, 2022; EL DIÁRIO, 2022), atualmente, o partido tem sido alvo de disputas internas entre
os apoiadores de Morales e os de Choquehuanca. Os congressos do MAS têm terminado em
Partindo para a política externa, a agenda de meio ambiente ocupou espaço importante
na atuação externa boliviana, sendo os temas discutidos alicerçados na cosmovisão indígena.
Desde seu primeiro ano de governo, Morales pleiteou as bases filosóficas do Vivir Bien para
definir um modelo econômico alternativo. Em seu segundo discurso, na Assembleia das Nações
Unidas de 2007, já aponta a vanguarda indígena na defesa da natureza e da vida e a relevância
dos conhecimentos ancestrais para a discussão sobre mudança climática (Morales, 2007). Em
2008 lança “Os dez mandamentos para salvar o planeta, a humanidade e a vida”, onde contrasta
a Cultura da Vida, ligada às tradições originárias e sua relação com a Madre Tierra, e a Cultura
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
da Morte, vinculada às relações capitalistas baseadas na desigualdade e no desmatamento
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
(Morales, 2008). Embora em 2009, na COP15, a Bolívia já inicie sua atuação em defesa dos
Direitos da Mãe Terra, é a partir de 2010 que há a intensificação desta pauta, devido à aprovação
da Lei de Direitos da Mãe Terra e a Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e
os Direitos da Mãe Terra (CMPMC) (GONÇALVES, 2022).
As propostas bolivianas centram-se em torno das decisões obtidas na CMPMC, conferência
sugerida pelo governo Morales em 2010, que tinha grande participação dos movimentos sociais
e que se repetiu com o passar dos anos. A deliberação da Bolívia a partir de então é de que a
Mudança Climática não poderia ser discutida rasamente como um problema de elevação de
temperatura, o documento expõe a necessidade de questionar as causas, que são intrínsecas ao
sistema capitalista. Nesse sentido, foi proposto aos países centrais: 1) redução das emissões de
gases poluentes; 2) que assumam os custos da transferência de tecnologia aos países periféricos;
3) que respondam pelas migrações climáticas, eliminando as restrições ligadas ao assunto; 4)
que assumam a dívida das mudanças climáticas nos países periféricos propondo os meios de
prevenir, minimizar e atender os danos que sucedem das emissões de poluentes excessivas; 5)
que não defendam a mercantilização das florestas; 6) a constituição de um Tribunal Internacional
de Justiça Climática; 7) que não sejam a favor da criação de novos mercados de carbono; 8) e
que adotem, no âmbito das Nações Unidas, a Declaração Universal da Mãe Terra (CONFERENCIA
MUNDIAL DE LOS PUEBLOS SOBRE EL CAMBIO CLIMÁTICO Y LOS DERECHOS DE LA MADRE
TIERRA, 2010).
Os discursos dos presidentes a partir de então passaram a mover esses pontos e a
propor políticas vinculando a filosofia do Vivir Bien à promoção da justiça social. Para melhor
compreensão dessa afirmação, abaixo está o gráfico que aponta os principais conceitos utilizados
por Evo Morales em seu discurso:
Gráfico 8.1 – Principais termos utilizados por Evo Morales nas COPs durante seus mandatos
Anti-imperialismo
4%
Vivir Bien Justiça
Social
22% 33%
Democracia 6%
16% 12%
Direitos da
4% 3% Mãe Terra
Anticapitalismo
Anticolonialismo
Plurinacionalidade
Fonte: Elaborado pela autora a partir dos discursos do presidente Evo Morales.
138
139
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Foram analisados os discursos do presidente Evo Morales realizados na Cúpula de
Mudança Climática de 2010 a 2019, com exceção da COP19 (2013) e a COP22 (2016).
Foram selecionados os conceitos chaves da política externa boliviana: anticapitalismo,
anti-imperialismo, anticolonialismo, plurinacionalidade, Vivir Bien, Direitos da Mãe Terra e
democracia. Em todos os discursos esses termos se encontraram presentes, contudo, alguns
possuíam mais menções que outros. Como se observa no gráfico, o termo que mais aparece é
o de justiça social. Foram incluídas nesta codificação as vezes que Morales expôs a necessidade
de restabelecer o equilíbrio mediante a justiça econômica, social e ambiental. Segundo o ex-
presidente, os maiores responsáveis pela crise climática são os países desenvolvidos, já que
foram esses que promoveram a industrialização por meio da exploração dos países do Sul. Por
isso, esses Estados deveriam assumir a dívida climática e, por intermédio do mecanismo de
mitigação e adaptação e o mecanismo de perdas e danos, atenuar os efeitos da crise climática
nos países periféricos.
Em sequência, o conceito que mais aparece é o de Vivir Bien. O conceito da filosofia
aimará Vivir Bien parte de uma ontologia distinta das embasadas no ocidente. A separação
existente nas perspectivas ocidentais entre o mundo natural e o social traz uma visão utilitarista
da natureza, em que os seres não humanos serviriam às vontades da humanidade e ao seu
ímpeto pelo progresso e desenvolvimento. O Vivir Bien parte da unidade entre os seres da
terra, em que as relações são constituídas baseadas na manutenção do equilíbrio da natureza
(MAMANI, 2010).
Nessa perspectiva, Evo Morales utiliza o Vivir Bien para contrapor a cosmovisão indígena
à ocidental capitalista. Segundo o ex-presidente, o Vivir Bien seria a base para estruturar um
outro modelo econômico, embasado nos direitos da Mãe Terra e no equilíbrio com a natureza.
Diferentemente do sistema capitalista vigente, que devido ao seu ímpeto egoísta e consumista
utilizaria os componentes da terra como recursos mercantis. Igualmente, a menção dos direitos
recursos naturais, sob uma retórica ambientalista de punição de uso e uma prática imperialista
de tomar os recursos dos países periféricos. O ex-presidente argumenta que isto nada mais
seria se não a mercantilização da biodiversidade, a vida se tornaria um negócio e não um
direito, e por isso a sociedade deveria aprender com os povos indígenas a viver em harmonia
com a natureza.
Como forma de verificar a continuidade da política externa de meio ambiente de Evo
Morales pelo governo de Luis Arce, também foi feita uma codificação do primeiro discurso do
atual presidente à COP 26, em 2021.
0
Vivir Bien Justiça Social Acordo de Paris Anticolonialismo Anticapitalismo
Como mostra o gráfico, observa-se que os termos que aparecem no discurso de Luis Arce
são, respectivamente: Vivir Bien, justiça social, Acordo de Paris, anticolonialismo e anticapitalismo.
A base do discurso do presidente boliviano é o Vivir Bien, expondo que a filosofia andina seria
a saída para o “capitalismo verde”, fazendo menção à Economia Verde. Assim como Morales,
Arce aponta que “los países desarrollados están promoviendo un nuevo proceso de recolonización
mundial que lo podemos denominar como el ‘nuevo colonialismo del carbono” (ARCE, 2021). Ele
explana que os países centrais não estariam cumprindo o Acordo de Paris, recaindo para os
países periféricos à dívida climática. O presidente argumenta que as ações para solucionar os
problemas com o clima perpassam por reconfigurar o sistema econômico, apresentando o Vivir
Bien como a única maneira de superação visto que a cosmovisão indígena compreenderia a
importância da Mãe Terra e de seus direitos.
Assim, a política externa de meio ambiente boliviana traz ao debate de clima a cosmovisão
indígena e, de certa maneira, se comporta como defensora da Mãe Terra, sempre propondo
atribuir direitos a ela. Evo Morales reivindica a identidade indígena, mas é nítida a contradição
de seus governos, uma vez que o extrativismo e a política desenvolvimentista se contrastavam
com a defesa da Mãe Terra, assumida no sistema internacional. Luis Arce, como dito antes,
140
141
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
pertence à classe média e não reivindica a identidade indígena, mas é possível reconhecer a
continuidade da política externa de meio ambiente boliviana e sua defesa em instituir direitos
à Mãe Terra.
Como visto, o MAS, assim como todo o seu projeto político, embasou a política externa
nos princípios do Vivir Bien. Tal constatação nos insere na afirmação de que a maneira como o
Estado age no sistema internacional está vinculada à política do governo que está conduzindo
o processo decisório. Por isso, postula-se que entender a atuação de um país perpassa por
compreender a dinâmica governista, sendo a base ideológica, para esse artigo, fundamental
para explicar os princípios e crenças em que as políticas estão embasadas.
Os estudos no campo de APE sobre a influência das ideias na política externa possuem
variada abordagem. O trabalho de Harold e Margaret Sprout (1957) inaugurou a investigação da
relação entre a análise cognitiva e a política externa, estabelecendo a distinção entre “ambiente
operacional”7 e o “ambiente psicológico”.8 A partir de então muitos outros estudos vincularam
a variável psicológica/cognitiva no processo decisório (BRECHER et al., 1872; FRANKEL, 1968;
BOLDING, 1961; HERZ, 1994). Outro grupo de estudos abrangem à institucionalização das ideias
e os resultados que se conferem, aqui encontra-se o trabalho de Judith Goldstein e Robert
Keohane (1993). A presente pesquisa se integra às análises que decorrem sobre a relação entre
as ideias e a elite política, cujo argumento principal é que a política externa reflete as ideias da
política interna porque elas constituem a disputa doméstica a priori.
Parte-se da premissa de que política externa é uma política pública e, portanto, tem sua
formulação e implementação inserida no dinamismo dos governos (MILANI; PINHEIRO, 2013;
LIMA, 2000). Em perspectiva semelhante, as duas primeiras premissas de Moravcsik (2003)
7 O “ambiente operacional” seriam os fatores internos e externos que compõem o processo decisório, aos quais são
percebidos e considerados na formulação da política.
8 O “ambiente psicológico” seria as imagens e as ideias que se tem sobre o “ambiente operacional”.
9 “Preferências” do Estado se diferenciam de “estratégias nacionais”, “táticas” e “políticas”. Moravcsik (2003) explica
que as “preferências” seriam entendidas como as posições transitórias de barganhas s, exigências de negociações
ou objetivos cotidianos de política externa.
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Pinar Ipek (2015) argumenta que existe um ambiente político favorável, particularmente
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
142
143
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Conclusão
Referências
ALDEN, Chris; ARAN, Ammon. Foreign Policy Analysis: new approaches. New York: Routledge, 2012.
ARCE, Luis. Discurso Luis Arce en la COP26. 2021. Disponível em: https://www.noticiasfides.com/
nacional/politica/arce-en-la-cop26-si-no-resolvemos-la-crisis-climatica-sera-una-carga-para-
otras-generaciones-412261. Acesso em 5 ago. 2022.
BRECHER, Michael et al. “A Framework for research on Foreign Policy behaviour”, Journal of
Conflict Resolution, vol 13, n°1, 1969.
BOULDING, Kenneth. The image knowledge in life and society, Michigan: University of Michigan, 1961.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
CHAVES, Janine. Discurso de S.E. Jeanine Añez Chávez Presidente Constitucional del Estado
Plurinacional De Bolivia debate general - 75° Sesión de la Asamblea General De Las Naciones
Unidas. 2020. Disponível em: https://www.nodal.am/wp-content/uploads/2020/09/boliviaonu.
pdf. Acesso em 5 ago. 2022.
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
CONFERENCIA MUNDIAL DE LOS PUEBLOS SOBRE EL CAMBIO CLIMÁTICO Y LOS DERECHOS
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
144
145
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
de Bolivia, en la Cumbre Climática de las Naciones Unidas. Ecoportal, 2008. Disponível em:
https://www.ecoportal.net/ temas-especiales/cambio-climatico/palabras_del_presidente_evo_
morales_en_la_cumbre_del_cambio_climatico/. Acesso em 5 ago. 2022.
______. Discurso en Cancun durante COP16. In: CMPCC. Discurso Evo Morales en Cancun durante
COP16. 2010. Disponível em: https://cmpcc.wordpress.com /2010/12/10/discurso-evo-morales-
en-cancun-durante-cop16/. Acesso em 5 ago. 2022.
______. Discurso Rio +20. In: UOL. Temos de acabar com o capitalismo, diz Evo Morales na Rio+20.
2012. Disponível em: https://www.uol.com.br/ esporte/videos/videos.htm?id=temos-de-acabar-
com-o-capitalismo-diz-evo-morales-na-rio20-04020C983264E0C12326. Acesso em 5 ago. 2022.
______. Discurso del Presidente Del Estado Plurinacional de Bolivia Evo Morales en la COP20. In:
NODAL. Discurso del Presidente Del Estado Plurinacional de Bolivia Evo Morales en la Cumbre
del Clima de las Naciones Unidas. 2014. Disponível em: https://www.nodal.am/2014/09/discurso-
del-presidente-del-estado-plurinacional-de-bolivia-evo-morales-en-la-cumbre-del-clima-de-
las-naciones-unidas/. Acesso em 5 ago. 2022.
______. Discurso del Presidente Del Estado Plurinacional de Bolivia Evo Morales en la COP21. In:
Comunicación del Estado Plurinacional de Bolivia. Presidente Evo Morales intervene en la COP21.
2015a. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OTzxdIAk5gk. Acesso em 5 ago. 2022.
______. Discurso del Presidente Evo Morales en la II Conferencia Mundial de los Pueblos sobre
Cambio Climático y Defensa de la Vida. In: TELESUR. Evo Morales llama a crear una alianza para la
defensa de la Tierra. 2015b. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WR2NeWvJTOQ.
Acesso em 5 ago. 2022.
MORAVCSIK, Andrew. Taking Preferences Seriously: a Liberal Theory of International Politics.
International Organization, v. 51, n. 4, 1997, p. 513-553.
MRE (Bolívia). La Tierra no nos pertenece, nosotros pertenecemos a la Tierra. 2009.
Introdução
O presente capítulo traz uma análise acerca da política externa venezuelana nos anos em
que Hugo Chávez esteve à frente do poder executivo do país, focando, especificamente, na
desfechada para seu entorno regional: América Latina, América do Sul e Caribe. Argumentamos
que o país ocupou lugar de relevância na região, sendo um dos polos de liderança regional em
tal período. A literatura sobre integração regional classifica o regionalismo da época como “pós-
liberal” (VEIGA; RIOS, 2007, p. 21) ou “pós-hegemônico” (RIGGIROZZI; TUSSIE, 2012, p. 39). O
regionalismo aberto, cujo foco era restrito ao âmbito comercial, perde graus de relevância e a
implementação de pautas sociais e políticas passa a ser perseguida pelos governos de cunho mais
progressista que ascendem na região no momento da onda rosa (SILVA, 2018). No entanto, tais
governos não eram homogêneos em suas crenças e ideias, de forma que é preciso se aprofundar
em um dos casos mais emblemáticos desse período: o da Venezuela.
Todavia, não há estudos que busquem estudar o papel que um conjunto de ideias específico
possui na conformação das atitudes da política externa chavista para a região. Por conta disso,
essa pesquisa busca suprir a lacuna encontrada, ao empregar bases teóricas da Análise de
Política Externa (APE), que estudam como as ideias influenciam a política externa, aliada da Role
Theory, para o estudo de caso do papel de líder regional desempenhado pela Venezuela chavista.
Argumentamos que as ideias, dadas a partir da interpretação que Hugo Chávez deu ao ideário
de Bolívar, impactaram sobremaneira a Política Externa (PE) adotada pelo país nos anos 2000,
especificamente em sua atuação para a região. Visto isto, a problemática que trazemos aqui se
orienta pela seguinte pergunta: como Hugo Chávez instrumentalizou as ideias de Simón Bolívar
no desempenho do papel de “líder regional” da Venezuela nos anos 2000?
Justifica-se sua importância pelo fato de que estudos acerca da relação entre as ideias,
convicções e crenças dos policymakers venezuelanos são escassos, de forma que se torna
importante buscar esclarecer como Chávez reinterpretou e atualizou as ideias de um importante
personagem latino-americano — e venezuelano —, Simón Bolívar, e como estas impactaram
nas decisões e ações de política externa do Estado. A justificativa social da pesquisa gira em
torno de que é preciso desmistificar ideias que o senso comum prega para versar acerca do
bolivarianismo. Há a tendência de estereotipá-lo de maneira negativa como atrelado a preceitos
de uma extrema esquerda, ao comunismo, a regimes adeptos do chavismo (MOTA; MARCELINO,
2 Dentro da APE, as análises cognitivas recaem sobre as crenças, percepções, imagens e processamento de informações
e a influência desses aspectos com a política. Por sua vez, a psicologia considera estudos de personalidade, que
envolvem emoções, ego e motivações (GONÇALVES; PINHEIRO, 2020).
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
As ideias influenciam a política quando as crenças de princípio ou causais que
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
elas incorporam fornecem roteiros que aumentam a clareza dos atores sobre
os objetivos ou relações meio-fins; quando afetam os resultados de situações
estratégicas nas quais não há equilíbrio único e quando são incorporadas às
instituições políticas (GOLDSTEIN; KEOHANE, 1993, p. 3).
3 Foi realizado um referendo constituinte em 15 de dezembro de 1999, no qual foi aprovada a Constituição da
República Bolivariana da Venezuela (VENEZUELA, 1998). É com a nova Constituição que o nome do país é alterado e
passa a fazer referência à figura de Simón Bolívar.
148
149
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
Cada papel pré-dispõe o Estado a agir de determinada maneira, condicionando e limitando
o comportamento e os tomadores de decisão devem ter isso em consideração (Role Perscription).
Por sua vez, as concepções nacionais de papéis incluem as acepções dos formuladores de
políticas – que abarca seu sistema de crenças-, os compromissos, regras e ações que estes
considerem propícias para o Estado (Role Perception), além das funções que o país deve exercer
continuamente no sistema internacional ou regional (HOLSTI, 1970). E ainda, como os Estados
possuem variados conjuntos de relações no mundo, acabam por assumir diferentes papéis
em tais conjuntos. Em alguns casos, pode ser que sejam incompatíveis entre si (Role Conflict),
porém, a verificação cuidadosa demonstra que os governos adotam orientações diferentes para
dessemelhantes conjuntos de relações.
A adequação da Role Theory para o estudo do internacional, se deu pela ênfase nas
“concepções de papel nacional” (THIES, 2014, p. 1, tradução nossa). Essas representam as
4 A ideia era que somente por meio da união dos Estados latino-americanos seria possível garantir a independência
nacional frente a ingerências de grandes potências, dentre as quais já figurava os Estados Unidos (BOLÍVAR MEZA,
1994).
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
É imprescindível afirmar que há duas formas de se fazer referência ao legado do libertador.
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
A primeira consolida-se pela admiração e exaltação de seu pensamento e sua figura, ao passo
que a segunda consiste no reexame histórico de seu projeto de emancipação, com a finalidade
de atualizá-lo. É nesse segundo grupo que se encontra o conceito de bolivarianismo empregado
pela Venezuela chavista (SEABEA, 2010). Nesse tipo específico do bolivarianismo, que consiste
em uma atualização da esquerda do conceito, busca se fundamentar pelo:
Ademais, é preciso ter em mente que o culto à figura de Bolívar é uma histórica peculiaridade
da Venezuela, já que este foi um personagem distintivo para a nação e sua emancipação (GOTT,
2004). A releitura do bolivarianismo na qual se inspira a abordagem empregada por Chávez foi
desfechada no seio das Forças Armadas do país na década de 1970 (SEABRA, 2010). Contudo,
o enfoque chavista dado ao culto à figura de Bolívar diferencia-se das abordagens empregadas
em outras ocasiões. Com Chávez, as ideias de Bolívar foram institucionalizadas através da
Constituição de 1999 e em outras iniciativas domésticas e internacionais5, de forma que o
libertador e a República se amalgamaram e o bolivarianismo assumiu a incumbência de ser um
emblema moral do processo político do Estado (ARCE; SILVA, 2015).
Nesse sentido, o resgate do bolivarianismo engendrado no chavismo assentou-se no
carisma de Chávez (ARCE; SILVA, 2015) e consiste na leitura de que a Revolução Bolivariana
deveria libertar à Venezuela, o povo venezuelano, bem como os outros Estados do continente,
do jugo do imperialismo dos Estados Unidos (EUA). Além do mais, outro desígnio importante
consistia no estabelecimento de projetos de integração na região, visto que em sua condução
externa, a integração regional é uma pauta relevante, na qual foram empenhados tempo e
recursos consideráveis da chamada diplomacia bolivariana (CLEMENTE, 2022). Na releitura
desfechada pelo líder venezuelano, também é central a busca pela conformação de um mundo
multipolar, em contraste ao que seria o mundo unipolar, no qual os EUA possuem o status de
hegemón, como pode ser destacado do discurso abaixo:
Visto isso, é crucial retomar a discussão dos autores Goldstein e Keohane (1993), na
qual argumentam que o impacto das ideias na política alcança impacto prolongado quando
de sua agregação no desenho organizacional, já que assim “sua influência se refletirá nos
incentivos daqueles que estão na organização e daqueles cujos interesses são atendidos por
ela” (GOLDSTEIN; KEOHANE, 1993, p. 20). E a administração chavista, ao aprovar a Constituição
Bolivariana de 1999 — e outras leis ao longo de seus mandatos —, além de conformar-se com
5 Exemplos nesse sentido são: a Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América-Tratado de Comercio de los
Pueblos (ALBA-TCP), a Coordinadora Continental Bolivariana, o Bloque Regional del Poder Popular.
150
151
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
o aparato organizacional composto, principalmente depois de 20026, por funcionários que
apoiavam tal projeto político, enraizou ainda mais as ideias e crenças bolivarianas no projeto
político do Estado e em suas ações de PE (CLEMENTE, 2022), como pode ser focalizado pela
passagem abaixo:
[...] atores domésticos auxiliavam na condução da PE, que não era apenas
administrada pelo presidente, ainda que sua figura predominasse no processo
de tomada de decisões. Acreditava-se que o projeto político bolivariano
era de interesse geral da sociedade venezuelana, de forma que os atores
domésticos apontados se apresentavam como outros precursores deste e
Chávez, o grande líder do processo revolucionário (CLEMENTE, 2022, p. 159).
O debate teórico acerca dos conceitos que envolvem os processos de integração regional
é rico. A classificação do tipo de regionalismo que foi implementado nos anos que coincidiram
com o chavismo no poder recebe diversas nomenclaturas, como “pós-liberal” (VEIGA; RÍOS,
2007, p. 21) ou “pós-hegemônico” (RIGGIROZZI; TUSSIE, 2012, p. 39). Entendemos que sua
alocação dentro da catalogação de pós-hegemônico seja a mais adequada para versar sobre
a inserção regional venezuelana, já que representa, dentre outros aspectos, a luta contra o
imperialismo do Estado hegemônico, os Estados Unidos, o que é um preceito do receituário
ideológico bolivariano. Assim sendo, dentro desse tipo de regionalismo, Chávez impulsionou a
criação da ALBA, um modelo de integração que, além de lutar contra a implementação da Área
de Livre-Comércio das Américas (ALCA) e da interferência dos EUA nas Américas, se colocava
contra o viés apenas econômico e neoliberal, relegado ao regionalismo aberto e lutava contra
a pobreza e exclusão social em âmbito hemisférico (MOLANO-CRUZ; BRICEÑO-RUIZ, 2021).
Ademais, buscou participar de mecanismos criados em tal momento, como a CELAC e a UNASUL,
e desfechou esforços para aderir ao MERCOSUL.
Para além da busca pela consolidação de um polo integrador e de união na região, é
preciso frisar que a política externa chavista buscou a diversificação de parcerias (não apenas
no âmbito regional, mas, também, internacional). Esse empenho é explicado pelo fato de o
6 Momento em que grupos de oposição organizaram-se na tentativa de dar um golpe de Estado no então governo.
Hugo Chávez afastou-se da capital por um período aproximado de 48 horas até que conseguiu retomar o Palácio
de Miraflores sem que sua vida corresse perigo. Após a ocorrência de tal fato, uma série de alterações foram
implementadas no aparato governamental, dentre as quais constam mudanças de funcionários e aprofundamento
da retórica pautada na releitura do bolivarianismo (CLEMENTE, 2022).
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
novo governo querer romper com o status quo operante nos anos que o precederam, no qual
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
a Venezuela operava como aliada dos EUA; e ainda, para buscar por novas alianças comerciais
no sistema internacional, de maneira a reduzir a dependência econômica que a Venezuela,
historicamente, possuía frente à Washington (VALENTE, 2013) e manter as divisas oriundas da
exportação petroleira estáveis (CLEMENTE, 2022)7. Ademais, essa diversificação encontra-se
dentro do quadro de ações empreendidas na busca pela ordem multipolar, em que privilegiaram
“[...] as relações com os países latino-americanos e caribenhos e redefinindo o modelo de
segurança hemisférica” (VENEZUELA, 2001, p. 142).
Como apontado acima, a ALBA era pautada por princípios bolivarianos, sendo a maior
plataforma venezuelana lançada em sua busca por maior preponderância regional e tentativa
de limitar a influência negativa dos EUA na região. Para além do exposto, convém salientar que
dentro da ALBA foi lançada a iniciativa PetroAmerica8, instituição responsável pela integração
energética na região (CÍCERO, 2016). Por meio dela, eram concretizadas vendas de petróleo
por valores abaixo do mercado, além de conferir melhores condições de financiamento aos
integrantes da iniciativa. Havia a noção de que era preciso que o uso dos recursos petrolíferos da
Venezuela fosse mais justo e democrático e auxiliasse no desenvolvimento dos povos da Nuestra
América (CLEMENTE, 2022). Assim, a busca pela integração energética, a atuação de forma
autônoma frente ao hegemón e a afirmação da liderança venezuelana na região (BUSTAMANTE;
GIACALONE, 2021) foram plataformas visadas por meio do discurso que fomentava a ALBA e a
PetroAmerica, iniciativas em que o peso do ideário bolivariano era ímpar.
Visto isto, é preciso apontar que a pauta de integração da América Latina, América do
Sul e Caribe desfechada pela política externa chavista não era composta apenas por ideais
de solidariedade. A ideologia bolivariana e sua busca pela união e amparo entre os países da
região pesava nas decisões de política externa. Porém, um ponto ainda mais importante para
a diplomacia bolivariana era o confronto ao imperialismo e hegemonia dos EUA9. Sendo assim,
a conquista de aliados regionais representava caminhos para a redução da interdependência
assimétrica que possuía frente ao mercado estadunidense e de acrescer o poder de barganha
venezuelano frente a tal ator (CLEMENTE, 2022).
Outra frente de atuação determinante da diplomacia bolivariana consistiu na busca por
integrar não apenas a América Latina e América do Sul, como também o Caribe. A Venezuela é
um país que se identifica como caribenho (SCHENEGOSKI; ALBUQUERQUE, 2014), o que ressalta
porque a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos é uma frente de atuação
importante. No entanto, dentro de tal mecanismo regional, a ideologia bolivariana não imperava
como na ALBA, ou seja, não havia unidade de princípios entre seus membros. Porém, encontrava
espaço para coexistir com outras ideias e interesses, afinal, era importante para Chávez ocupar
7 O petróleo configura peça fundamental para compreender as ações dos governos de Chávez. Sem os recursos
financeiros que tal pauta exportadora conferia ao Estado, não seria possível desenvolver e manter projetos de
assistência interna e externa, como as Misiones e à ajuda promovida para o desenvolvimento de países aliados
(CLEMENTE, 2022).
8 Posteriormente, a iniciativa foi desmembrada em outras três: a PetroSur, a PetroAndina e a PetroCaribe, visto que
se tornou complicado que as negociações se concretizassem em torno de apenas uma grande empresa regional
(CÍCERO, 2016).
9 Tal postura de confronto esteve presente em várias áreas do relacionamento bilateral e se acentuou após o ano
de 2002 – em que Chávez sofre uma tentativa de golpe por parte de grupos opositores, que contaram com auxílio
dos EUA – apesar das trocas comerciais, especialmente as petroleiras, terem sido mantidas por motivos pragmáticos
(CLEMENTE, 2022).
152
153
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
esse espaço de relevância em sua atuação externa. Ademais, a CELAC, possibilitava e facilitava
o diálogo com terceiros atores, como a União Europeia e com outros organismos internacionais
(SERBIN, 2014). Essa visão de valorizar a integração dos países latino-americanos e caribenhos já
estava presente desde o primeiro plano de desenvolvimento oficial do governo, elaborado em
2001:
[...] Por isso, a coesão dos países latino-americanos e caribenhos, mediante
a consolidação e implementação de sua identidade comum, se converterá
no mecanismo ideal para ampliar as oportunidades de crescimento e
desenvolvimento da região e melhorar de forma sustentada e equitativa seus
níveis de bem-estar social (PNDESN, 2001, p. 156, tradução nossa).
10 Momento em que governantes com condução política mais voltada para projetos de esquerda (também
considerados progressistas) ascenderam na região da América Latina.
11 Como a demora na ratificação da entrada do país pelos congressos do Brasil e do Paraguai e a conciliação dos
objetivos da PE chavista com a política e o regulamento do Mercosul (BRICEÑO-RUIZ, 2010).
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
— alterações estas que também agradavam os outros atores participantes — e a entrada da
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
154
155
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
de líder regional, já que para performá-lo, teve que ser aceito pelo público de Estados latino-
americanos, principalmente por parceiros específicos na região. Por meio dele, Chávez intervinha
para ajudar os estados latino-americanos financeiramente quando surgia a oportunidade, como
através da PetroCaribe (Thies, 2014). O role de aliado fiel pautou-se pela visão de que os EUA
não eram capazes de desempenhar seu papel de hegemonia regional de forma convincente,
o que levou o os Estados latino-americanos a buscar liderança em outro polo, um papel que
Chávez teve o prazer de tentar ocupar — e conseguiu com Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua
(THIES, 2014). Por fim, o papel de libertador externo encontrava-se com os ideais de buscar
libertar a América do Sul do domínio econômico e cultural dos Estados Unidos, de forma que
acabava, por sua vez, por reforçar o role de líder regional (THIES, 2014).
Em relação à questão sobre de onde provém as concepções de papel (THIES, 2014)
dos formuladores, identificou-se que Chávez era o principal formulador e implementador
Considerações finais
Na releitura do bolivarianismo realizada por Chávez, era importante que alguns objetivos
fossem perseguidos, como o declarado caráter anti-imperialista e anti-estadunidense, as
contestações frente a dependência externa do país e da região, bem como a busca pela
conformação de uma Pátria Grande, que consistia em uma unidade latino-americana, sul-
americana e caribenha. Ao focar a análise para a pauta da integração regional, foi demonstrado
como as crenças bolivarianas pautaram a atuação venezuelana com mais intensidade nas
iniciativas criadas pelo país, a ALBA e a PetroAmerica (que se inserem no que se pode chamar
de Eixo Bolívar) do que naquelas que já existiam e o Estado buscou aderir. A preponderância e o
papel de destaque que a política externa venezuelana possuía no Eixo Bolívar foi essencial para a
consolidação do papel de líder regional.
A procura por ocupar espaços regionais consolidados é entendida, então, como estratégia
da diplomacia bolivariana, ainda que neles não encontrasse voz para o emprego da ideologia
em sua totalidade. Esses mecanismos se distanciavam das crenças principais do governo, mas
era determinante para a Venezuela integrar tais instâncias porque o país possuía a aspiração de
ser um líder regional, além destas serem vistas como oportunidades para projetar os princípios
integrativos da Revolução Bolivariana. Os elementos que guiaram a política externa venezuelana
foram agregados na ALBA, moldados na UNASUL e geraram demanda político-social no
MERCOSUL.
Assim, os resultados encontrados auxiliaram na consecução dos objetivos de pesquisa, já
que demonstram que a ideologia bolivariana possuiu impacto relevante nas ideias e crenças
dos tomadores de decisão, de forma que as ações de política externa voltadas para a integração
regional foram pautadas, em grande medida, pelos princípios acima elencados. Ademais, a
apresentação das lentes teóricas de APE que trabalham a perspectiva do impacto das ideias em
PE e a Role Theory tornaram possível compreender como a relação entre o aparato ideológico
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
bolivariano e as ações da política externa venezuelana era intrínseca. Por fim, foram analisadas
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL
Referências
ARCE, A. M; SILVA, M. A. Política Externa e Integração Regional: a Diplomacia Venezuelana entre
a ALBA e a UNASUL. Revista Sul-Americana de Ciência Política, v. 1, n. 3, 2014, p. 98-109.
BOLÍVAR, Simón. Contestación de un americano meridional a un caballero de esta isla “Carta
de Jamaica”. In: VILA, Manuel Pérez (Ed.). Doctrina del libertador. Caracas: Fundación Biblioteca
Ayacucho, 3ª ed., 2009, p. 66-87.
BOLÍVAR MEZA, Rosendo. Simón Bolívar: su propuesta de gobierno republicano centralista y la
utopía de la construcción de una Patria Grande. Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales,
v. 39, n. 158, 1994, p. 45-65.
BRICEÑO-RUIZ, José. Auge y ocaso del regionalismo post-hegemónico: La experiencia del
Mercosur. In: MOLANO-CRUZ, Giovanni; BRICEÑO-RUIZ, José (Ed.) El regionalismo en América
Latina después de la post-hegemonía. Cidade do México: Universidad Nacional Autónoma de
México, 2021.
BUSTAMANTE, Ana Marleny; GIACALONE, Rita. Venezuela en el auge y la decadencia del
regionalismo sudamericano (2000–2018). In: MOLANO-CRUZ, Giovanni; BRICEÑO-RUIZ, José
(Ed.). El regionalismo en América Latina después de la post-hegemonía. México: Universidad
Nacional Autónoma de México, Centro de Investigaciones sobre América Latina y el Caribe, 2021.
CHÁVEZ FRÍAS, Hugo. Selección de Discursos del presidente de la República Bolivariana de
Venezuela. Hugo Chávez Frías – 2001: Año de las Leyes Habilitantes. La revolución avanza a paso
de vencedores. Venezuela, 2001.
156
157
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
CÍCERO, P. H. Política externa bolivariana: a inserção internacional da Venezuela ao longo dos dois
primeiros mandatos de Hugo Chávez Frías (1999–2007). Austral: Revista Brasileira de Estratégia e
Relações Internacionais, v. 5, n. 10, jul/dez. 2016.
CLEMENTE, Stephanie Braun. Hugo Chávez Frías: um comandante nas relações exteriores com os
Estados Unidos. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais), Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.
FERREIRA, Mariana Davi. A política externa venezuelana para a integração regional (2004-2012):
entre a dependência estrutural e a unidade latino-americana. Dissertação (Mestrado em Relações
Internacionais), Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.
GAVIÃO, Leandro. Do Pan-Americanismo ao Sul-americanismo: As Identidades Supranacionaisno
Continente Americano em Três Tempos (1826, 1960 e 2008). Tese (Doutorado em História),
K.; HANEY, P. J. (Eds.). Foreign policy analysis: continuity and change in its second generation.
Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1995, p.49-70.
SARAIVA, Miriam Gomes; GRANJA HERNÁNDEZ, Lorena. Gobernanza regional: concepto para
pensar los regionalismos latinoamericanos. In: MOLANO-CRUZ, Giovanni; BRICEÑO-RUIZ, José
(Eds.). El regionalismo en América Latina después de la post-hegemonía. México: Universidad
Nacional Autónoma de México, 2021.
SEABRA, Raphael. A revolução venezuelana: chavismo e bolivarianismo. Sociedade e cultura, v.
13, n. 2, jul.-dez. 2010, p. 211-220.
SEKHRI, Sofiane. The role approach as a theoretical framework for the analysis of foreign policy
in third world countries. African Journal of Political Science and International Relations, v. 3, n. 10,
out. 2009, p. 423-432.
SERBÍN, A. Los Nuevos Regionalismos y la CELAC: Los Retos Pendientes. In: BONILLA, Adrián;
ÁLVAREZ, Isabel (Eds.). Desafíos estratégicos del regionalismo contemporáneo: CELAC e
Iberoamérica. San José: FLACSO, 2014.
SILVA, Fabricio Pereira da. “O Fim da Onda Rosa e o Neogolpismo na América Latina”. Revista
Sul-Americana de Ciência Política, v. 4, n. 2, 2018, p. 165-178.
SPROUT, H.; SPROUT, M. Man-Milieu Relationship Hypotheses in the Context of International
Politics. Princeton: Princeton University Press, 1956.
SCHENEGORSKI, A. M.; ALBUQUERQUE, Edu Silveira. A geopolítica da política externa bolivariana.
GEOUSP, São Paulo, v. 18, n. 1, 2014, p. 71-82.
THIES, Cameron G. Role Theory and Foreign Policy Analysis in Latin America. Foreign Policy
Analysis, n. 0, 2014, p. 1-20.
VALENTE, Leonardo. A política externa da Venezuela entre Punto Fijo e Hugo Chávez: rupturas e
continuidades. Boletim do Tempo Presente, n. 7, 2013, p. 1-25.
VEIGA, Pedro Motta; RIOS, Sandra P. O regionalismo pós-liberal, na América do Sul: origens,
iniciativas e dilemas. Chile: Nações Unidas/CEPAL, 2007.
VENEZUELA. República Bolivariana de Venezuela. Constitución de la República Bolivariana de
Venezuela. Venezuela, 1998.
______. Líneas Generales del Plan de Desarrollo Económico y Social de la Nación 2007–2013.
Venezuela, 2007.
______. Líneas Generales del Plan Nacional de Desarrollo Económico y Social de la Nación 2001–
2007. Venezuela, 2001.
WEHNER, Leslie. Role Expectations as Foreign Policy: South American Secondary Powers’
Expectations of Brazil as a Regional Power. Foreign Policy Analysis, n. 11, 2015, p. 435-455.se
sustenta nas movimentações políticas vinculadas às alas que têm no indianismo alicerce, força
política que deu legitimidade para o MAS chegar à presidência em 2006 e em 2020.
158
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
SOBRE OS AUTORES
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
— Anna Beatriz Leite Henriques é mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual
da Paraíba (PPGRI/UEPB) e doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal de
Pernambuco. Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba. É b
Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba.
http://lattes.cnpq.br/6080420441737521