Nathalia Brunet Cartaxo Braga
Nathalia Brunet Cartaxo Braga
Nathalia Brunet Cartaxo Braga
Comunicação e Semiótica
São Paulo
2021
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP
São Paulo
2021
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BANCA EXAMINADORA
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À Durval, Adriana e Camila, todo o meu carinho.
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AGRADECIMENTOS
À minha orientadora Profa. Dra. Lucia Santaella, por ter orientado esta pesquisa com
interesse e dedicação, e por toda a paciência durante o processo.
Um agradecimento especial à minha querida amiga Agatha Justino, pelo carinho, parceria,
conversas e conforto em todos os momentos.
Aos amigos que me acompanharam nessa jornada: Thais Elaine, Alexandre Cardoso, Victor
Borges, Gabriel Tavares de Lima e Nathalia Alves.
À Banca do Exame de Qualificação, Dra. Marina Cuser e Prof. Paul Kardous, pelos valiosos
apontamentos que muito ajudaram no desenvolvimento do trabalho.
À Fundação São Paulo, pelo suporte financeiro para o desenvolvimento desta pesquisa.
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Brunet, Nathalia. A semiótica psicanalítica dos celibatários involuntários. 2021.
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC – SP,
São Paulo.
RESUMO
A presente pesquisa visa analisar os celibatários involuntários e os desdobramentos de sua atuação na internet.
Os incels, diminutivo para involuntary celibate, se juntam a uma rica galeria de tipos de homens. Imersos em
seus conflitos morais, sociais e psicológicos, eles se sentem impossibilitados de estabelecer relações afetivas
com mulheres. Como resposta, o grupo tem fomentado discursos de ódio, dentro e fora das redes. Trabalhamos
com a hipótese de que a cultura é misógina e o mal-estar de gênero encontra ressonância na lógica do espetáculo
que intui o indivíduo de abrir mão de sua via desejante. O corpus da pesquisa prioriza a narrativa particular da
vida de um incel, com vídeos postados em seu canal do YouTube entre 2019, 2020 e 2021. Em um primeiro
momento, esta pesquisa oferece um panorama sobre as inúmeras crises que assolaram o mundo ocidental nas
últimas décadas. O objetivo é capturar o contexto das guerras virtuais que vêm se desenrolando em torno das
políticas de identidades. Apresentamos o indivíduo incel e sua atuação nos Estados Unidos e no Brasil. A base
teórica se volta para a análise dos signos semióticos, com o apoio da psicanálise freudiana e lacaniana. A
pesquisa ainda envolve leituras sobre gênero, misoginia e embates do herói viril, neste caso com Judith Butler
(2003), Howard Bloch (1991) e Antoine de Baecque (2003). Também são explorados estudos recentes sobre os
valores de mercado que ordenam a vida social, desta vez com Maria Rita Kehl (2015). Esta pesquisa é relevante
por conta da inexistência de trabalhos sobre os celibatários involuntários, fenômeno recente que vem se
estabelecendo como uma violenta articulação que encontra campo fértil de expressão no real.
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Brunet, Nathalia. The Psychoanalytical Semiotics of the Involuntary Celibates, 2021.
Dissertation. (Master degree) – Pontifical Catholic University of São Paulo – PUC – SP,
São Paulo.
ABSTRACT
This research aims to analyse the involuntary celibates as well as the outcomes of their online activities. Incels
offer us deep insights on contemporary masculinity. Immersed in moral, social and psychological conflicts these
men feel unable to establish emotional bonds with women. As a result of their angst, the group has promoted
hate speech, inside and out of the internet.We hypothesize that our culture is deeply rooted on a misogynistic
bias and the gender discontent resonates with the capitalist Market’s self annihilation politics. From that point
on, our corpus is delimited by private videos uploaded by a subject, member of incel online groups, in his
YouTube channel from 2019 to 2021. As the subject’s narratives unveil different aspects of contemporary
culture, the research sheds light on the historical identitarian crisis in western society. The current attack on
identity politics is dissected through a thorough analysis of semiotical signs, in a Freudian and Lacanian
perspective. The incel subject is characterized amidst the crisis, as the research evokes Judith Butler (2003),
Howard Bloch (1991) and Antoine de Baecque to portrait the conflicts in gender politics and misogyny, as well
as the downfall of the virile hero narrative. It is not without underlying the shift in cultural values towards a
mercantilist subjectivity that our research indicates the absence of scientific publications about the involuntary
celibates, social phenomena growing on the fertile ground of online hate speech.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 5 – Tela da página inicial do fórum Love-shy.com, início dos anos 2000………...39
10
SUMÁRIO
1 Introdução ..........................................................................................................................12
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Considerações finais………,……………………………………………………………...107
Referências bibliográficas.……………………………………………………………......110
11
INTRODUÇÃO
12
individual perante um sistema, percebido por eles, como opressor. A violência verbal do chat
verteu-se em sangue. Os cadáveres femininos do massacre de Realengo certamente
exacerbam o aspecto misógino da sociedade, entretanto, também apontam para outras
problemáticas.
13
No primeiro capítulo, a pesquisa trata do panorama social. A internet se tornou campo
minado dos movimentos alternativos de direita, que incluem núcleos racistas, misóginos,
xenófobos, homofóbicos, entre outros. O movimento incel, apesar do foco na abstinência
sexual, pertence ao bojo mais amplo do movimento de direitos dos homens (men's rights
activists - MRA), espalhados pelo mundo ocidental como expressão da extrema direita
política, cujo grupo mais proeminente é a alt-right (direita alternativa). De fato, existe um
cruzamento entre grupos de orientações e siglas distintas, mas o pano de fundo geral é
marcado pelas crises globais que emergiram ao longo dos séculos XX e XXI, sobretudo a
crise da democracia liberal. Abordaremos o contexto geral das crises, até extrair as
particularidades do movimento incel.
Com Maria Rita Kehl (2015), passo para a análise da composição dos grupos no
campo de identificações horizontal atrelado às paixões de segurança identitária. Na
psicanálise, as referências identificatórias do eixo vertical são utilizadas para caracterizar as
relações com a lei em sociedade, matizadas pelas interdições no campo simbólico. O projeto
de emancipação do indivíduo burguês, interpenetrado pelo enfraquecimento da autoridade no
14
contexto dos séculos XX e XXI, recorre justamente a composição de grupos para retratar uma
experiência contemporânea. Não se trata mais dos fenômenos de massa observados por Freud
no período entre guerras. Em um sentido mais evidente, diante da ausência de referências no
eixo vertical, os jovens usuários dos fóruns acessam o plano das identificações horizontais,
que é o próprio plano do espetáculo, para simbolizar suas angústias pessoais e fomentar as
identidades que emergem no cerne da internet anônima. O que permite considerar que o
mal-estar de gênero, dado que a cultura é misógina, ganha ressonância nesse cenário, uma
vez que o indivíduo abre mão de sua condição desejante para responder em nome de um
conjunto anônimo.
CAPÍTULO 1
15
identitária como resultante da globalização. Voltar ao Estado como centro da
decisão, acima das oligarquias econômicas e das redes globais. Voltar à nação como
comunidade cultural da qual são excluídos os que não compartilham valores
definidos como originários. Voltar à raça, como fronteira aparente do direito
ancestral da etnia majoritária. Voltar, também, à família patriarcal, como instituição
primeira de proteção cotidiana diante de um mundo em caos. Voltar a Deus como
fundamento. E, nesse processo, reconstruir as instituições de coexistência em torno
desses pilares herdados da história e agora ameaçados pela transformação
multidimensional de uma economia global, uma sociedade de redes, uma cultura de
mestiçagem e uma política de burocracias partidárias (CASTELLS, 2018, p. 37-38).
O quadro das sociedades de redes, aponta o Estado como o fio que se conecta à nação,
através de práticas institucionais, e também às redes supranacionais, articuladoras do grande
acordo global que rege as economias políticas. O formato Estado-nação garante a entrada ao
banquete da economia global. Entretanto, ao passo que se adquire capacidade competitiva
para se firmar nesse cenário, os países transferem parte de seus poderes aos centros de
decisões que são alheios à vida comum de seus cidadãos.
Esse grande acordo global põe os cidadãos à margem da tomada de decisões de suas
vidas, alienando principalmente os amplos setores populares. A dissociação crescente entre
os governos e a população é o aspecto-chave para entender as crises que se desenrolaram nos
últimos anos. O cientista político Yascha Mounk (2018) aponta em suas pesquisas que, nas
últimas décadas, os Estados Unidos e os países da Europa Ocidental se tornaram menos
democráticos. De fato, a crônica liberal nos conta sobre a autonomia que os indivíduos
supostamente teriam sobre suas vidas. Na prática, o total descaso por parte dos governos
somado à falta de emprego e ao congelamento da renda têm gerado desconforto e intensa
agitação social. Em outras palavras, isto diz respeito às frustrações quanto ao regime
democrático, que foram acentuadas pela estagnação econômica. Segundo Mounk, "desde o
início da Revolução Industrial até o auge da democracia moderna, foram conhecidas imensas
melhorias nas condições de vida, ao passo que no último quarto do século, na melhor das
hipóteses, as gerações mais jovens conheceram ganhos modestos" (MOUNK, 2018, p. 189).
Na vertigem dos fluxos globais, o Estado perdeu o elã que unia os cidadãos em torno do
discurso liberal. O achatamento da renda, a crise da representação de interesses e a crise
identitária são resultados da crescente alienação do povo nas estruturas de poder, que se
sentiu obrigado a voltar para uma essência cuja noção remonta à raça, à terra, ao Deus. A
16
ação afirmativa das lutas identitárias revela um desejo lancinante por estabilidade. Contudo,
os protestos, as manifestações e as ameaças não surgem apenas das minorias historicamente
desfavorecidas. Pois, de acordo com as pesquisas, pela primeira vez na história, a expectativa
de vida do branco americano está caindo (CASE; DEATON apud MOUNK, 2018, p. 189).
1Partido do chá em tradução para o português. Trata-se de uma organização de pessoas com ideologia política de extrema-direita.
17
e urbana, marcada pela crise de caráter econômico, social e político. Reunidos no seio de uma
cultura que perpetuava a precariedade e vulnerabilidade, as fraternidades masculinas foram
percebidos por Weber como respostas possíveis aos fenômenos totalitários de massa que se
formavam a partir de então, um anúncio pessimista sobre a natureza dessa ligação social.
Claudine Haroche explica:
18
racismo, xenofobia e misoginia. Em resposta, muitas organizações de notícias
discutiram se é apropriado usar o termo e, em caso afirmativo, como defini-lo para
seus leitores. Mas não importa como você o chama, o movimento é claramente
construído em torno de uma agenda política que busca promover os direitos dos
cidadãos brancos do sexo masculino às custas de todos os outros. A tempestade de
tuítes de Mohutsiwa elucida um ponto importante, geralmente esquecido: a maioria
dos homens brancos que se radicalizam na alt-right começam em busca de amigos
com ideias semelhantes (NAGLE, 2017, p. 80).
A pesquisa de campo empreendida por Kimmel (2013) revela que a espinha dorsal
dos grupos em torno da supremacia branca é formada pelas classes média e média baixa em
declínio, outrora definida por sua autonomia econômica. A “classe trabalhadora branca
esquecida”, que se enquadra num esquema de eleitorado ao estilo dos anos 1950, forma com
a geração mais jovem da alt-right, um pacto em defesa dos valores originários dos brancos
norte-americanos. O slogan da campanha de Trump em 2016 - Make America Great Again,
sintetiza a aposta do grupo, que, segundo Kimmel, foi o mais fraturado na última metade do
século, especialmente a partir dos anos 1980, quando a terceirização de empregos da indústria
foi acompanhada pela crise agrícola (KIMMEL, 2013, p. 30).
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A narrativa de origem dos Estados Unidos remonta aos ideais abstratos de exploradores
viris, cujo ímpeto de dominação de territórios transformou o país no lugar das oportunidades.
Joaquim Nabuco escreveu certa vez: “os americanos estão inventando a vida como se nada
tivesse sido feito até hoje”. A mobilidade ascendente foi um dos ingredientes mais eficazes
na receita norte-americana, edificando a base sólida do senso de direito abordado por Kimmel
(2019), em que os cidadãos, por mérito de trabalho, teriam sempre uma recompensa à espera.
O que acontece na realidade não condiz com as histórias produzidas pelas máquinas
comerciais de Hollywood. O sonho americano é tributário de inúmeros conflitos
experienciados por indivíduos cada vez mais alarmados com as crises que assolaram o país
nas últimas décadas. Mounk (2018) explica que "a promessa de um futuro melhor, que é parte
imprescindível do sonho americano, revelou-se uma quimera: antigamente, pouquíssimos
jovens americanos viveriam sem conhecer uma melhora em seu padrão de vida. Hoje, metade
deles enfrenta essa sina" (MOUNK, 2018, p. 188).
2
Campanha militar desencadeada pelos Estados Unidos, em resposta aos ataques de 11 de setembro.
20
jogos intelectuais, devemos nos lembrar de que esse chamado ao enfrentamento
da dura realidade é ideologia em estado puro. O slogan de hoje, “Americanos,
acordem!”, é uma lembrança distante do grito de Hitler, “Deutschland, erwache!”,
que, como Adorno escreveu há muito tempo, significava exatamente o contrário
(ŽIŽEK, 2002, p. 14).
Como disse Jean-Jacques Courtine (2013, p. 8), "a virilidade entrou numa zona de
turbulências culturais, num campo de incertezas, num período de mutação". Embora os
abalos econômicos e culturais tenham provocado uma série de mudanças na forma como o
país e seus cidadãos elaboram noções de si, o conjunto de homens da supremacia branca
insiste em retornar a essência do mito viril para restaurar algo que foi perdido ou roubado.
21
“faggot” e “pussy” (que se referem a “bicha” e a “woman”, para mulher).
Ainda que a masculinidade tradicional continue a ditar as regras do jogo, ela foi
perdendo sua amplitude, tornando-se cada vez mais dispersa e alheia, principalmente em
relação aos homens que pertencem às classes populares. O conceito de masculinidade
hegemônica, centrado em figuras como o self-made man, foi tomado pelas elites que habitam
as grandes metrópoles, de maneira que as classes mais baixas foram abandonadas à própria
sorte nas zonas rurais e nas periferias do país.
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sexual de estuprar crianças. Kimmel comenta:
Como resultado, Angry White Men é um movimento social virtual. Não quero
dizer que sejam "virtualmente" um movimento. Quero dizer que eles se organizam
virtualmente, que sua organização de movimento social é uma organização virtual.
Eles se sentam sozinhos, ouvindo rádio, ouvindo Rush Limbaugh, Mike Savage e
Sean Hannity. Eles se encontram on-line, em salas de bate-papo e em sites,
promovendo os direitos dos homens antifeministas ou a re-arianização da
América. Eles vasculham o ciberespaço, a polícia anti-PC, prontos para atacar
qualquer blogueiro, colunista ou quase liberal que se atreva a dizer algo do qual
discorda (KIMMEL, 2013, p. 33).
Nesse sentido, Lucia Santaella (2018) examina as bolhas ou câmaras de eco em que as
notícias falsas se espalham, construindo um ambiente difuso e caótico. Nesses espaços,
menores são as chances de prosperar um debate crítico, que se concentre em discutir ideias, e
não em reafirmar preconceitos. A confusão é altamente desejada no caso dos programas
políticos, pois facilita a propagação de informações parciais, imprecisas e mentirosas.
Citamos:
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Há ainda o exemplo de mensagens que são construídas com algum engenho para
confirmar parcialidades e preconceitos. Seu alvo é sempre dirigido àqueles que se
regozijam no conforto da rigidez de seus modos de pensar e sentir, como garantias
para maneiras de agir imutáveis. O que se pode inferir das discussões levadas a cabo
sobre o tema é que a falsidade funciona em toda a sua potência propagadora porque
as pessoas tendem irrefreavelmente a se recolher dentro das bolhas de seus
preconceitos. Tornam-se, assim, presas fáceis de interesses dos quais não
conseguem se dar conta. Por estarem retidas dentro de suas próprias cavernas
platônicas tornam-se incapazes de furar o bolsão de suas crenças fixas para enxergar
algumas clareiras fora delas. Portanto, são as bolhas que expandem o poder
exercido pelas NFs (notícias falsas). A rigor, as bolhas não são as causadoras diretas
das NFs. Elas as incubam e ajudam no seu processo de propagação (SANTAELLA,
2018, p. 35-36).
Como vimos nas discussões anteriores, inúmeras crises serviram de pano de fundo
para as rupturas políticas que aconteceram nos últimos anos. A clivagem entre os presidentes
norte-americanos Obama e Trump é definida por uma miríade de acontecimentos, que
tiveram seus picos na austeridade econômica e nos conflitos culturais. O nosso interesse, a
partir daqui, é localizar as guerras culturais on-line que se desenrolaram no auge da
experiência das sociedades em rede. A autonomia dos usuários quanto à produção e à gestão
de conteúdo, jogou a arena da mídia tradicional no limbo, como também, o senso de cultura
do público mainstream. O ciberutopismo, muito debatido nos anos 1990 e 2000 antes do
estouro da bolha dot.com, creditava a liberdade dos internautas como um dos meios de
descentralizar hierarquias de poder. Entretanto, há que se considerar o florescimento dos
discursos de ódio na internet em torno de pautas como misoginia, racismo, homofobia,
islamofobia etc.
A vitória de Donald Trump, em 2016, cujo desprezo pelo jornalismo e pela mídia
tradicional foi copiado como receita de sucesso por outros políticos no mundo, nos conta
sobre o estado de rejeição geral das coisas, e também sobre uma profunda mudança nas
formas de comunicação. Afinados em suas bolhas, onde recebem a confirmação de suas
crenças, os homens da alt-right navegam por fóruns, por chats e blogs, criando um bloco
rígido de informação viciada e a cultura de memes, que escorreu pela mídia tradicional. O
24
apelo que motiva essa forma de comunicação é o desprezo pelas normas e pelo politicamente
correto. Santaella (2018) examina:
A segunda década dos anos 2000, foi marcada pela eclosão de movimentos políticos
cuja expressão maior foi o caráter sem liderança. O movimento Occupy Wall Street, a
Primavera Árabe e os protestos em massa na Espanha inspiraram outras manifestações que
tomaram as ruas das cidades de todo o mundo. O espelhamento do digital ocorreu na forma
dos movimentos de hackers politizados, como Anonymous e Wikileaks. Nagle (2017)
explica:
25
O Reddit foi uma das primeiras plataformas a deslanchar na rede sob a bandeira da
liberdade de expressão, em 2005. Os usuários, chamados de subredditors, não precisam de
e-mail para acessar o site, apenas de uma conta registrada. Como um gigante coletivo de
fóruns, ele é dividido por categorias, os subreddits, cujos temas são indicados entre barras.
Uma miríade de assuntos são abordados: videogames, esportes, carros, política. Cada
subreddit tem um mediador responsável. Os usuários podem compartilhar conteúdo de outros
lugares da web através de links, e os posts que recebem mais votos ficam no alto do
frontpage, ao passo que os menos votados perdem visualização. Em alguns subreddits, fala-se
abertamente de racismo, de misoginia, de homofobia e de outros preconceitos. Apesar da
flexibilidade e da tolerância para tratar desses temas, existe um limite nas políticas da
plataforma, podendo culminar na exclusão do fórum. Em 2016, um usuário pediu dicas no
feed sobre como se safar de um estupro. O post veio à tona na mídia tradicional e a
plataforma baniu o subreddit r / incels, o mais popular entre os celibatários involuntários.
Quando isso acontece, os usuários são forçados a abandonar o Reddit em busca de locais
menos policiados. O 4chan, o 8chan, e as camadas da deep web são zonas mais obscuras,
onde tudo é permitido em nome da “transgressão”. Analisaremos o 4chan e a sua relação com
a alt-right.
26
Além das discussões baseadas em imagens, outra característica importante do 4chan é
seu estilo de interação, marcado pela troca de mensagens excessiva, aspecto que revela o
propósito da plataforma, em que seus usuários são comprometidos com a “transgressão”. Em
entrevista à revista Época (2015), Christopher Poole justifica o conceito, afirmando que “o
que é realmente único no 4chan não é o software, não é o produto, é a comunidade, a cultura,
a identidade, o conteúdo sendo postado por 12 milhões de pessoas. Não é com um produto
que eles estão interagindo, é com a comunidade”.
Como toda comunidade, o 4chan criou seu próprio sistema de valores. O caráter niilista
e irônico é temperado com elementos da cultura pop. Beta, incel e nerd são os nomes das
subjetividades que vêm sendo esculpidas no interior desse experimento on-line. Os três
integram um tipo de arquétipo masculino desvirilizado e debochado, que odeia e que zomba
explicitamente de mulheres. Para construir essas identidades, estabeleceu-se uma relação
direta com produtos midiáticos como filmes, como quadrinhos e como videogames. O
Psicopata Americano (2000), Clube da Luta (2008) e The Matrix (2007) são exemplos de
filmes cujo conteúdo de violência masculina mistura-se com elementos provocadores para
compor a “filosofia” propagada no site, atribuindo-lhes novos sentidos e criando uma
identidade cultural à parte, com o objetivo de repudiar o sistema tradicional e de afirmar o
desejo pela “transgressão”.
O Psicopata Americano (2000) transita entre a fantasia e a realidade. Pelo menos foi o
que disse Bret Easton Ellis, autor do livro homônimo de 1987, ao responder à crítica da
época, chocada diante da violência sexual da obra. O personagem Patrick Bateman,
banqueiro em Wall Street, é jovem, rico e bonito. Num ambiente de luxo, ele frequenta festas,
assiste pornografia obsessivamente, e passeia pela cidade de Nova Iorque à noite, à procura
de prostitutas e de moradores de rua para infligir torturas e morte. Maurice Blanchot
escreveu: “o maior sofrimento dos outros sempre conta menos do que o meu prazer”. A obra,
além de ser herdeira de uma corrente literária que dá rédea solta à violência e ao desejo, é
uma versão do sonho e do pesadelo norte-americano. De dia, Patrick Bateman é uma criatura
social, o modelo perfeito do self-made man. À noite, mergulha num mundo de sexo, de
crueldade e de metamorfose. A marca de ambiguidade, que perpassa obras de arte que
27
desafiam a moralidade, ecoa no ethos dos chanianos. Com essas comunidades on-line,
instalam-se novos rituais sociais: o culto ao transgressor moral dribla julgamentos por meio
de truques e de ironias dos memes, por exemplo. Eles afirmam que o tom de brincadeira
define o jogo de postagens da rede social. Vale tudo pelo lulz (variante plural de lol, que
significa risadas, kkkk).
Uma expressão comum do grau de estranheza que habita o 4chan, é o fórum / b /. Nele,
o habitante do fórum remete, à sua maneira, aos hóspedes do castelo de Marquês de Sade. A
paisagem é dominada por pornografia, por pensamentos suicidas, por assassinos e por
incestuosos, além de misoginia, de racismo, de homofobia, entre outros. Um entusiasta / b /
escreveu:
/ b / é o cara que diz ao aleijado à sua frente na fila para se apressar. / b / é o
primeiro a ir para a janela para ver o acidente de carro do lado de fora. / b / é quem
escreveu seu número na parede do banheiro do shopping. / b / é o cara vagando pela
Park Ave. que está sempre tentando lhe vender alguma coisa. / b / é aquele que
entregou suas roupas encharcadas de esperma para a Boa Vontade. [...] / b / é um
sonho ardente de incesto que você tentará esquecer por dias. / b / é o único de seu
grupo de amigos que está seguro em sua sexualidade e diz qualquer coisa. / b / é o
cara sem DE que ainda gosta de experimentar Viagra. / b / é um amigo que
constantemente lhe pede para experimentar a masturbação mútua com ele. / b / é o
cara que liga para uma linha direta de suicídio para falar com o conselheiro. / b / é
quem deixou um preservativo usado fora do pátio da escola. / b / é a voz em sua
cabeça que lhe diz que não importa se ela está bêbada. / b / é o único que entende o
que diabos você está dizendo. / b / é alguém que pagaria a uma prostituta para
comer sua bunda, e só isso. / b / é o tio que tocou em você várias vezes. / b / ainda
está se recuperando no hospital, depois de tentar algo que viu em um hentai. / b / é o
prazer do qual você se sente culpado ao tentar brincar com o ânus durante a
masturbação. / b / é maravilhoso (ENTUSIASTA / B /, em um dos fóruns da
plataforma 4chan).
Um dos aspectos que mais engajou os participantes na experiência do 4chan é que não
é preciso criar uma conta para acessar a plataforma. O nome padrão distribuído, anonymous
(anônimo), para os milhões de usuários que acessam e postam conteúdo assiduamente,
representa simbolicamente o desejo de se confinar em bolhas paralelas à sociedade, como o
mundo de fantasia dos videogames, dos quadrinhos e dos fóruns. Em reportagem da Folha de
São Paulo (2017), o jornalista Dale Beran explica que os usuários começaram a chamar uns
aos outros de Anonymous: “Oi, é o Anon falando aqui”. "Foi-se estabelecendo um padrão de
livre expressão libertária ancorado no status de anônimo, em que meninos-homens isolados
afirmam seu direito de fazer ou de dizer o que quer que fosse, desprezando sentimentos
28
alheios" (BAREN, 2017).
29
Uma indagação importante surge aqui: onde acontece a intersecção entre subculturas
on-line de nicho, como o 4chan, e a ampla órbita da direita alternativa, a alt-right? Com essa
intersecção, acenamos para as guerras culturais que se desenrolaram nas disputas em torno de
temas como feminismo, drogas, armas, aborto, direitos LGBTAQIA+. A partir do livro do
sociólogo James Hunter, da Universidade de Virgínia, a expressão “guerra cultural” se
popularizou nos Estados Unidos na década de 1990. Apesar das guerras culturais não
implicarem questões econômicas em seus termos, não deixaram de refletir nas tentativas de
implementar políticas públicas para beneficiar a massa branca. Nessa direção, Castells (2018)
aponta:
30
Em desacordo com as mudanças dos paradigmas sociopolíticos, o lado sombrio da
masculinidade ocidental contemporânea materializou-se paulatinamente, tanto na política
quanto nos eventos que arrasaram escolas, faculdades e ruas das cidades norte-americanas.
Em um post de 01 de outubro de 2015, um usuário anônimo escreveu no 4chan: “O primeiro
de nossa espécie lançou medo nos corações da América [...] Este é apenas o começo. A Beta
Rebellion começou. Em breve, mais de nossos irmãos pegarão em armas para se tornarem
mártires desta revolução”.
31
Figura 3: Mensagem anônima de alerta no 4chan
Vale observar aqui os temas de Clube da Luta, filme de 2006 baseado no livro de Chuck
Palahniuk, citado anteriormente como referência pop na formação da identidade chan. A obra
é uma crítica aos jogos do sistema, que avilta o sujeito moderno no mundo sombrio das
carreiras e do consumo. Manuais de instrução existem, e na malha simbólica da cultura, a
“identidade masculina” é uma composição significante que supõe alistar o sujeito, de forma
mais ou menos rígida, dependendo da época e do contexto. Na sociedade de Clube da Luta
(2006), os lugares, as posições, os deveres e os traços identificatórios do homem são
carregados de virilidade. Os membros do clube são homens deslocados à margem da
sociedade, que encontram na possibilidade do contato fusional corpo a corpo com outros
homens, uma maneira de se apropriar da virilidade perdida. Eles lutam entre si, e se engajam
em atos de extrema violência, como plano de vingança contra o sistema e suas grandes
corporações. Para aderir ao clube, é fundamental seguir a primeira regra: não falar sobre o
32
clube. Ironicamente, o anonimato se tornou não só uma regra, mas o fio de sentido que
costura a narrativa 4chaniana. À luz da expressão japonesa “hikikomori”, verifica-se o desejo
de se esconder. Uma vez que a massa anônima dos fóruns experienciou o poder de sua
transmissão com o alcance nas mídias tradicionais, percebe-se o desejo latente de se fazer
ouvir. Os atos de violência, as trollagens e a hostilidade para tratar de assuntos delicados,
como depressão e como suicídio, revelam que a ironia é uma trama furada.
33
desenvolvimento moderno.
34
na realidade virtual de plataformas digitais como Tumblr, a partir da primeira década dos
anos 2000. Foi nesse contexto que se desenrolaram as guerras virtuais on-line, entre os
representantes dos “supremacistas brancos” e da “geração floco de neve” da esquerda
política. Cada subjetividade traz um conjunto de significados, que, de acordo com Nagle
(2017, p. 45), “pode ser entendido como uma resposta a uma resposta, cada um respondendo
com raiva à existência do outro”.
O culto ao transgressor moral do 4chan é uma resposta ao estilo Tumblr, cuja estética
se baseia na fluidez de gênero. Paul B. Preciado (2017) argumenta que a natureza humana “é
um efeito da tecnologia social que reproduz nos corpos, nos espaços e nos discursos a
equação natureza = heterossexualidade” (PRECIADO, 2017, p. 25). O Tumblr, site formado
por microblogs, repercute as narrativas de jovens cujo objetivo é discutir a construção
artificial do gênero e a escolha ilimitada de gêneros que cada indivíduo pode atribuir a si
mesmo.
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identidade de gênero, abriu caminhos para outras discussões, muitas vezes resultando num
ultra puritanismo vicioso (NAGLE, 2017). A frase “verificar seu privilégio” se tornou tão
central no Tumblr, quanto a “cultura de cancelamento” no Twitter. Nagle (2017) examina:
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membros escolheram evitar relacionamentos românticos com mulheres em protesto contra o
feminismo), entre outros. Nesse emaranhado de identidades, elegemos os celibatários
involuntários, cuja causa da abstinência sexual, uma vez integrada ao campo aberto da
extrema direita política, desemboca na propagação de discursos de ódio e violência.
O primeiro fórum sobre celibato involuntário foi criado por uma mulher. No final da
década de 1990, Alana, uma jovem estudante canadense, criou no software usenet o fórum
"Projeto de Celibato Involuntário da Alana". A iniciativa surgiu a partir do desejo de
compartilhar crises pessoais que envolviam as dificuldades de encontrar parceiros sexuais.
Logo, fomentou-se um grupo baseado na cultura de apoio, em que buscava-se, através da
abertura da intimidade com os outros, atravessar a experiência da abstinência sexual. Não
havia quaisquer restrições quanto à sexualidade, gênero e raça. O núcleo orientador do
conteúdo formou-se a partir de temas como solidão, timidez e baixa autoestima. Os assuntos
não se restringiam à condição amorosa dos participantes. Frequentemente, havia relatos sobre
a dificuldade de responder às demandas sociais diversas, como entrevistas de emprego, por
exemplo. O pesquisador Tim Squirrel comenta que nesse momento inicial já era possível
rastrear alguns sinais de misoginia dos usuários do gênero masculino. Eles eram
especialmente rígidos para conversar e para receber conselhos de usuários que se
identificavam como mulheres. A exposição das fragilidades emocionais que se tornou tão
central na identidade incel, significava fechamento quando tratava-se de conversar com
mulheres (SQUIRREL, 2017). Ao passar do tempo, as mulheres foram banidas das
discussões, uma tendência que acabou por embotar os fóruns em determinismos sem futuro.
No início dos anos 2000, as primeiras comunidades que surgiram a partir do projeto
de celibato involuntário foram IncelSupport, Love-Shy.com, Incelsite e Alt.Support.Shyness.
Essas comunidades contêm o gérmen do que viria a ser a identidade incel atualmente. No
processo de formação da identidade, Squirrel (2017) identifica as diferenças e as tensões
entre os usuários dos fóruns. Enquanto o discurso do IncelSupport era relativamente
moderado, o Love-Shy.com já apresentava traços de misoginia tóxica. O pesquisador conta
que foi-se estabelecendo uma ênfase cada vez menor no apoio, propósito inicial do projeto de
celibato involuntário, e uma tendência crescente baseada no vitimismo e no ódio. O ponto de
inflexão dessas correntes resultou na predominância da violência nos chats associados à
37
identidade incel. Marca da "vitória" de usuários cuja posição é a defesa de que a sociedade
está fundamentalmente contra os homens betas.
Encorajei Alexius a comprar uma arma e matar a mulher que ele gosta. Sim, na
verdade, admiro Cho, The Columbine Duo, George Sodini e qualquer outro
indivíduo que tenha tido coragem de fazer o que fez e, ambos, alertam a sociedade
e, ao mesmo tempo, desafiam nossa moral coletiva.
38
Figura 5: Captura de tela da página inicial do fórum Love-shy.com, início dos anos 2000.
39
alimentar suas famílias. As leis de estupro devem ser revogadas. As fêmeas estão
restringindo artificialmente a oferta de fêmeas disponíveis em seus anos
reprodutivos. O estupro é a resposta. As sociedades entram em guerra por falta de
mulheres e empregos. As mulheres se tornaram uma ameaça para a sociedade e
devem ser recolocadas em seu lugar. Marc Lépine, você estava à frente do seu
tempo.
40
A mensagem é essencialmente viril, e carrega mais sentidos do que o simples machismo
pode indicar. Esse tipo de conteúdo se tornou abundante nos fóruns incel e passou a ser
expressão do poder de mobilizar afetos no interior da comunidade, aliado à capacidade de
estimular violência, considerando o fluxo intenso de mensagens trocadas entre os usuários. A
construção da identidade incel passou a ocupar um espaço central na vida desses homens, que
passaram a se radicalizar e recrutar outros membros para os fóruns.
Convém mencionar a pesquisa que o fórum Incel.Support fez sobre os fatores que
contribuem para que os usuários se identifiquem com o status incel. Nela, arrolam-se
isolamento geográfico, isolamento social, estresse relacionado ao trabalho, depressão e os
“incels primários”, aqueles que tiveram uma vida satisfatória, porém, o ponto principal era
exatamente ser incel. Percebo que a moldura ideológica foi sendo construída a partir de um
excesso de determinismos. Squirrel explica como os usuários se engajaram em debates em
torno desse status: “o indivíduo que aderisse ao status, precisaria ter a virgindade intacta e ter
abordado mulheres um número significativo de vezes e ter sido rejeitado todas elas”
(SQUIRREL, 2017). Desta maneira, o debate se transformou em disputa. Disputa que
evidencia o desejo de alguns usuários de associar a identidade incel ao sofrimento.
A adesão ao status incel significa ter a virgindade intacta e estar o mais longe possível
do padrão “alpha” de beleza, além de apresentar desvantagem social o suficiente para não
encontrar sexo (SQUIRREL, 2017). Alguns usuários chegaram tão longe nessa disputa, que o
status incel, inicialmente trabalhado como um aspecto passageiro da vida, transformou-se em
um tipo radical, rígido, inflexível. A questão do celibato involuntário passou de estado
temporário para uma identidade a partir da qual o usuário se definia. Squirrel atribui parte
dessa mudança às plataformas de comunicação que surgiram a partir da década de 2000. A
interface do software usernet, que abrigou os primeiros fóruns incel, oferecia ferramentas
muito diferentes de redes sociais como Reddit e 4chan. O fórum Alt.Support.Shyness,
hospedado no usernet, tinha vários colaboradores regulares, que escreviam postagens longas
e bem elaboradas. Squirrel examina como a dinâmica das redes contribuíram para a
radicalização da identidade incel:
41
O argumento que estou defendendo aqui é que a cultura chan e a cultura incel se
cruzaram para criar algo que só pode terminar mal. A cultura 4chan promove
dizer mais e mais coisas radicais apenas para as risadas, lols. Ele abomina
expressões de vulnerabilidade emocional e, em vez disso, enfatiza a zombaria e a
externalização da culpa como o meio pelo qual se deve lidar com as emoções
negativas. Os posts sempre podem alegar que as coisas que estão sendo ditas são
irônicas, ou piadas, ou apenas para provocar uma reação, mas com postagens
suficientes torna-se impossível diferenciar entre aqueles que querem dizer e
aqueles que não querem. Aqueles que realmente querem dizer as coisas que dizem
têm o apoio imaginário (e expresso) daqueles que não querem (SQUIRREL,
2017).
Vale dizer que nem todos os usuários que frequentam os fóruns concordam com as
opiniões radicais que associam a identidade incel à violência contra as mulheres. Isso fica
claro no documentário Shy Boys In Real Life (2008), dirigido por Sara Gardephe. O
documentário mostra a diversidade de pontos de vista dos membros do Love.Shy.com, que
expõem suas fragilidades emocionais, sem atribuir culpa ou raiva à sociedade e às mulheres.
42
homogêneos entre os homens que se definem a partir do status incel: homogêneos e
inflexíveis. Se Hollywood reproduz a imagem do macho viril, a identidade incel simboliza
esse padrão com o confronto entre os “alpha” e os “beta”, entre os “chades” e os “incels”. Ao
penetrar nas narrativas dos fóruns, fica claro que Hollywood cumpre seu papel. A vida do
chade é exemplar. Modelo a ser imitado, se não fosse inalcançável. O chade é um homem
sexualmente ativo, carismático, bonito e inteligente. Os incels acreditam que as mulheres só
se sentem atraídas por eles, e mesmo que elas se casem com os betas, inevitavelmente irão
traí-los. O sucesso dos chades é determinado pela genética: a mandíbula definida, a altura e
os músculos do corpo os posicionam num lugar socialmente inalcançável para os incels. O
chade é o homem “alpha”, e o incel é o “beta”: feio, fraco e sem chances de conquistar uma
fêmea.
43
atração. Assim também é com as mulheres.
A associação entre a condição física e a escassez amorosa trouxe o tema das cirurgias
plásticas para o centro das discussões dos fóruns. Apesar da força da metáfora red pill, muitos
44
usuários, especialmente do fórum Lookism.net, investem em procedimentos cirúrgicos na
tentativa de transformar-se em chade. De acordo com o usuário Truth4life (2019), a
depressão que enfrenta há anos, seria produto de sua aparência física. Ele acredita que o
problema da depressão, assim como todos os outros, seriam resolvidos se ele estivesse mais
próximo do padrão alpha de beleza. A paranoia com a aparência física empurrou os incels
para uma série de intervenções estéticas, que incluem: exercícios de mastigação que podem
tornar a mandíbula maior, jelqing (alongamento do pênis), musculação, aplicação de
hormônios, cirurgia plástica etc. Truth4life colocou um implante na mandíbula, e fez diversas
revisões por não estar satisfeito com os resultados, além das operações no nariz, que refez
para chegar a um modelo "mais masculino, mais reto". Segundo ele "a perspectiva de um
melhor resultado cirúrgico está me mantendo vivo” (New York, 2019).
45
dirigiu à casa de sororidade Alpha Phi e atirou em duas moças com sua pistola automática.
Depois, dirigiu até um supermercado e, de seu carro, atirou em pessoas que transitavam pela
rua. Rodger se suicidou ao final. O crime foi planejado durante meses, e Rodger, usuário
ativo da PUAnet, postava assiduamente vídeos no YouTube em que narrava suas ideias sobre
uma possível vingança contra as mulheres e contra a sociedade. Em abril, um mês antes do
ataque, a mãe de Rodger, Li Chin, descobriu o conteúdo do filho na internet e entrou em
contato com sua psicóloga, que comunicou o caso ao sistema de saúde mental do distrito de
Santa Bárbara. Eles alertaram a polícia, que fez uma visita a casa de Elliot para checagem. Os
relatos dão conta que a boa aparência e a educação de Rodger impediram os policiais de
revistarem o quarto, onde encontrariam as armas, os vídeos e o manifesto. Vale considerar
que o fato de Rodger ser um jovem branco de classe média alta, estudante da Santa Barbara
City College, contribuiu para os policiais não aprofundarem a investigação do caso. Rodger
deixou um vídeo no YouTube, em que, sentado em seu carro, falou com tranquilidade sobre
os motivos de sua vingança. A seguir, está a descrição de sua fala:
Bem, esse é o meu último vídeo, tudo chegará ao fim. Amanhã é o dia da
retribuição, o dia em que eu terei minha vingança contra a humanidade, contra todos
vocês. Nos últimos oito anos da minha vida, desde quando eu cheguei na
puberdade, fui forçado a enfrentar uma existência de solidão, rejeição e desejos não
saciados porque nenhuma garota nunca se atraiu por mim. Mulheres dão afeto, sexo
e amor a outros homens, mas nunca para mim. Tenho 22 anos e ainda sou virgem.
Eu nunca beijei uma garota. Eu estive na faculdade durante dois anos e meio, mais
do que isso, na verdade, e ainda sou virgem. Tem sido torturante. Faculdade é a
época onde todos têm experiências sexuais, diversão e prazer. Durante esses anos,
eu nunca estive tão sozinho. Não é justo. Vocês, garotas, nunca se sentiram atraídas
por mim. Eu não consigo entender, mas eu irei puni-las por isso. É injusto,
criminoso, porque… eu não entendo o que vocês não veem em mim. Eu sou o
homem perfeito e vocês se jogam nesses caras obnoxious, eu sou o cavaleiro
supremo. (ELLIOT RODGER, YouTube, 2014).
46
Minha experiência durante a Middle School escureceu minha visão de mundo, a
partir daí se tornaria ainda pior. O modo como eu era tratado pelas meninas nessa
época, especialmente por aquela evil bitch, me inspirava muito medo das meninas.
O engraçado era que eu tinha uma paixão escondida por ela. Ela foi a primeira
garota por quem eu me apaixonei, eu nunca admiti isso para ninguém. Ser
ridicularizado pela garota que eu gostava me machucou profundamente. O mundo
que eu acreditava ser bonito tinha acabado. Eu estava vivendo em um mundo
depravado, e eu não queria aceitar. Eu não queria pensar sobre isso. Por isso eu
entrei de cabeça nos jogos on-line como World of Warcraft. Lá, eu me sentia seguro.
A entrada de Elliot nos fóruns incel marcou seu declínio. A insegurança e o medo de se
relacionar socialmente, principalmente com mulheres, se transformaram em ódio e em
violência. Nas mídias tradicionais, Rodger ficou conhecido como “o atirador da Califórnia”, e
47
nas comunidades como “Saint Elliot”, um espécie de herói, dando corpo às fantasias
destrutivas do grupo. Ainda que possam parecer desorganizados e fragmentários, o choque
produzido pelos atos de violência deram consistência e um sentido obscuro à existência da
identidade incel.
Mais do que um conjunto caótico de ideias que oscilam entre a revolta contra a
sociedade, e o abatimento de sua própria condição, nos últimos anos, a identidade incel
passou a ser associada a uma série de atentados violentos. Observei como os atos de violência
se manifestaram de forma aguda nas relações desses grupos no Brasil. Enquanto os Estados
Unidos foram epicentro de massacres ordenados por indivíduos, principalmente em escolas, o
Brasil se manteve distante dessa realidade durante muito tempo.
Na época, sabia-se muito pouco sobre a atuação dessas identidades nos fóruns da
internet anônima. De acordo com a reportagem da Ponte Jornalismo (2019), investigações da
Polícia Federal levantaram suspeitas sobre as relações que Wellington mantinha com esses
grupos. As investigações não só atestaram a presença ativa de Wellington nos chats, como
provaram a relação direta que ele mantinha com o administrador do mais conhecido chan da
web brasileira, o Dogolachan. A Polícia também descobriu que os administradores do chan
haviam influenciado e incentivado Wellington a praticar atos de violência em nome das ideias
do conjunto.
48
A Operação Bravata foi o maior avanço da Polícia Federal quanto aos crimes de ódio.
Em 2019, o administrador do Dogolachan foi preso e condenado a mais de 40 anos de prisão
por associação criminosa, racismo, coação, divulgação de imagens de pedofilia, incitação ao
cometimento de crimes como estupro e feminicídio e terrorismo praticado na internet. A
primeira resposta do grupo diante da prisão de seu administrador foi migrar para a deep web,
camada obscura da internet de difícil acesso, onde o anonimato é condição fundamental e os
participantes são livres para manifestar ódio e violência.
49
CAPÍTULO 2
Nas ruínas do tempo, a poética do amor romântico oscila entre o inferno vivido e o
paraíso perdido. O tal paraíso aparece em lampejos que o poeta canta como "mesmo sem ver,
amo demais" e que Augusto de Campos, crítico e tradutor da obra para a língua portuguesa
(1978, p. 13) define como "poesia cortês do amor descortês". Guilherme de Poitiers foi o
primeiro trovador dessa corrente poética que emergiu a partir do século XI na região,
primeiro no sul e depois no norte da França. O exercício poético praticado por homens nos
domínios de corte consistia num ardiloso jogo de linguagem, cuja deflagração de uma erótica
está no cerne de sua prática. Se Augusto de Campos acentua a influência da poesia provençal
nas obras de poetas modernos como T.S. Eliot e Ezra Pound, Lacan (2008) sublinha as
incidências desses jogos na economia sentimental do homem contemporâneo. É através do
amor cortês que opero uma das leituras do objeto desta pesquisa referente ao mal-estar de
gênero, com as seguintes palavras de Lacan em mente: aquilo que o homem demanda, em
relação ao qual nada pode fazer senão demandar é ser privado de alguma coisa de real
(LACAN, 2008, p. 182).
Seja qual for o momento histórico em que tomemos o discurso da misoginia - nos
50
mais afastados períodos com os tratados teológicos, na literatura medieval ou na época
moderna -, ele se apresenta sempre como um problema complexo. No início do século XV,
Christine de Pizan - escritora, filósofa e primeira apologista das mulheres, passou a contestar
a misoginia fundamentada como princípio e repetida em tom uníssono nas palavras de muitos
filósofos, poetas e oradores. No Romance da Rosa, Pizan (apud BLOCH, 1991, p. 33) nota
que, "se julgar a partir dos tratados de todos os filósofos, poetas e oradores, parece que todos
eles falam de uma única boca". A repetição desse discurso causa mais inquietação pelas
armadilhas que lhe são intrínsecas do que pela representação que poderia revelar o que é
distorcido ou verdadeiro sobre as mulheres. De acordo com Bloch (1991), não importa se as
predições são positivas ou negativas, pois o que define fundamentalmente a misoginia é a
redução da mulher a uma categoria universal homogênea. Desta maneira, Bloch alarga a
percepção de Pizan, que sublinhara as "tantas coisas ruins sobre as mulheres são ditas por
tantos homens diferentes" (PIZAN apud BLOCH, 1991, p. 11).
51
observação de Butler sobre a parafernália de elementos que constituem o termo mulher é a
caracterização feita pelos celibatários involuntários aos modelos de mulher "Becky" (gíria
depreciativa para se referir a um tipo de mulher branca) e "Stacy" (termo pejorativo usado
entre eles para mulheres consideradas bonitas). Como situei no capítulo anterior, se o plano
da rivalidade masculina acontece entre os Alpha e os Beta, no feminino, a rivalidade é
exercida entre as representações da "Becky" e "Stacy". De acordo com o discurso incel, a
"Stacy" é expressão da sensualidade característica das mulheres enquanto objeto de um certo
tipo de desejo masculino. Branca, de corpo curvilíneo, cabelo loiro, ela é o perfil de mulher
exuberante e volúvel. Já a "Becky" é um tipo de mulher que não atrai olhares, pois não possui
características físicas essencialmente "femininas", como as curvas do corpo, por exemplo.
Atrelado a isso, a "Becky" é considerada feminista, um ponto problemático nessa relação.
Vale observar os comentários vinculados à classificação feminista, como "posta opiniões
estúpidas na internet". A esse exemplo, podemos associar ao modelo de mulher "falante",
cuja ligação entre o gênero feminino, verborragia e aos ardis da fala podem ser situados
historicamente como exemplos de misoginia. A imagem gráfica da "Becky" é de uma jovem
universitária de mochilas nas costas e um livro na mão, enquanto a "Stacy" exibe-se de salto
alto e roupas justas. A simplificação do conjunto das mulheres em dois estereótipos possíveis
implica algumas questões. No âmbito racial, as mulheres brancas são evocadas como objeto
de desejo nas discussões dos fóruns. Tanto que, ambos os modelos, "Becky" e "Stacy", são
representações de mulheres de pele branca. Outra observação é o aspecto de classe.
Importante salientar como, segundo a percepção desse grupo, o comportamento das mulheres,
associado à aparência física, tem como propósito final obter benefícios financeiros,
principalmente a "Stacy", cujos traços físicos oferecem vantagens sociais em possíveis jogos
de poder. É de notar, portanto, as incidências de raça e classe que formam a concepção do
termo "mulher" entre os usuários dessas comunidades online.
52
Figura 9: Stacy e Becky: a esteira de evolução do gênero feminino, de acordo com os incels.
Vale observar que a imagem acima sugere uma certa mudança nos padrões de beleza e
de comportamento das mulheres. Uma mudança que se inicia no modelo "Stacy" e se encerra
na "Becky". Cada versão se baseia na estigmatização do conjunto a fim de justificar sua
desumanização. O corpo é a estrutura fundamental através do qual transitam os signos
semióticos. Nessas condições, o livro é o elemento básico e instrumento da mudança
estrutural no quadro feminino. Interessante observar o movimento corporal da Stacy ao se
deparar com um livro no chão. O modo de andar sugere sensualidade no movimento, com as
curvas do corpo bem marcadas. A figura é tomada por uma expressão de susto ao ver o livro
no chão, como se fosse um objeto raro, nunca visto anteriormente. À medida que a mulher
interage com o livro, ela se torna menos sensual, mais séria. O cabelo também é outro
elemento importante. Além da mudança de cor, eles ganham um aspecto mais relaxado,
indicando que a mulher se ocupa cada vez menos deles. Por outro lado, os livros vão
ocupando um lugar central na vida da mulher. Afinal, os movimentos corporais e as roupas da
Becky são adequadas à realidade de uma jovem que estuda, trabalha e se locomove na cidade.
A escolha de suas novas ocupações corresponde às trocas de vestuário; é preciso vestir-se
confortavelmente para trabalhar e estudar. Mostra-se cada vez menos a pele do corpo, até
incorporar totalmente um modelo de jovem universitária.
Numa rigorosa análise da misoginia medieval, Bloch (1991, p. 22) faz ligações entre
os escritos patrísticos e a literatura cortês e levanta pontos que auxiliam na leitura de
53
estigmatizações mais seculares, cujos elementos compõem uma tal "verdade essencial" que
dividem radicalmente os gêneros em masculino e feminino:
De acordo com o topos medieval das mulheres faladeiras, que é motivo sem dúvida
pelo desejo de silenciá-las, as esposas são retratadas como uma fala perpétua, em
relação à qual nenhuma postura inocente é possível. A mulher é concedida como um
ser sobredeterminado em relação ao qual o homem está sempre atrapalhado. Se ela é
pobre, deve-se alimentá-la, vesti-la, calçá-la. Se ela é bonita, todos a desejam, e ela
acabará sendo infiel; mas se não for bonita, precisará agradar muito mais e, do
mesmo medo, trairá eventualmente. Se ela é sensata, está sujeita à sedução (BLOCH,
1991, p. 25-26).
O discurso medieval faz eco aos motivos que levam os celibatários involuntários a
classificar mulheres de acordo com sua aparência e perfis de comportamento. Mais uma vez,
voltamos ao que Butler (2003) chamou de região "especificamente feminina", o que
atrelamos ainda ao estudo que Bloch faz da misoginia medieval. Em nome da vontade divina,
nos textos sagrados ou em pretensas leis da natureza, justifica-se um sistema de
estigmatizações reforçado por toda a cultura e transmitido ao longo das gerações. Com efeito,
esse conjunto de esforços desemboca na crença de uma essência natural, que Butler (2003)
denuncia como ilusória. Bloch (1991) adverte que é lugar comum considerar que o que é
corrente é eterno e o que é eterno é natural. Nesse sentido, quando Butler define gênero como
ato performativo, cujo resultado são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos
corpóreos e outros meios discursivos, entende-se que a repetição de tais atos cria a ilusão de
substância, naturalidade e historicidade como estratégia de manter o gênero em sua estrutura
binária.
Em sua análise dos textos patrícios, Bloch demonstra a construção de uma essência
feminina reduzida a adjetivos como "faladeira", "volúvel", "insensata", "sedutora", entre
outros. Em Jerônimo, lê-se: "Se uma mulher for bela, logo achará amantes; se for feia, é fácil
ser licenciosa. É difícil guardar o que muitos desejam; é maçante ter o que ninguém acha que
vale a pena possuir” (BLOCH, 1991, p. 24). Como meio de atribuir valores inteiros,
embute-se nessa estrutura uma classificação inconsciente das características de gênero,
reforçada por noções vagas e imprecisas, que é sempre sobredeterminada e deslocada, pois
não há uma verdade a priori sobre o gênero. Regras, expectativas e estereótipos têm sido
usados para justificar brutalidades contra grupos e indivíduos que não correspondem a esse
54
sistema de coerência e continuidade histórica.
55
Figura 10: post do fórum Forever/Alone, do Reddit, 2021.
56
de conceitos pensados a partir do Pai, da função paterna, da instauração de uma lei central,
estabelecendo dessa forma, o Nome-do-Pai como o conceito fundamental para o
entendimento de toda organização do funcionamento psíquico. Ao lado da dissolução da
estrutura familiar e do enfraquecimento da autoridade, vale considerar que o signo do amor
padece de uma reorganização nas formações discursivas, mas tampouco deixa de se associar
ao sofrimento, ressaltando o traço fundamental de seu caráter. Não é nenhuma novidade que
amor e sofrimento caminham juntos em suas cadeias de sentido no discurso da cultura. Entre
os elementos que compõem o sofrimento manifestado nos fóruns online, o descontentamento
diante da solidão na vida se vincula ao registro amoroso. As queixas repousam na ausência de
amigos, de conversas, de companhias. É perceptível que o fórum acaba sendo um refúgio
para desabafar sobre a falta de pertencimento, sobre o desligamento de laços.
Bloch (1991) esclarece como o amor romântico ocidental se originou mais no esforço
do conjunto da cultura do que do indivíduo enquanto expressão de sua singularidade. Para o
autor, a história do amor romântico ocidental se fixou desde o início como uma conveniência
interna devido às mudanças nas formas de propriedade e nas relações de poder. O surgimento
do amor romântico não fez oposição à misoginia presente na religião e nas estruturas sociais
do feudalismo; ao contrário, foi um elemento de endosso às normas estabelecidas. Como
afirma Bloch,
A noção de fascinação romântica que governa o que dizemos sobre o amor, o que
dizemos àqueles que amamos, o que esperamos que eles nos digam ( e dizer o que
eles dizem), como agimos e esperamos que eles ajam, como negociamos a nossa
relação com o social - em resumo, a higiene que governa nossa imaginação erótica
até a escolha de quem amamos ou as posições físicas que usamos para exprimir isso
- não existia na tradição judaica, germânica, árabe ou hispânica, na Grécia ou na
Roma clássica, ou no início da Idade Média. O amor romântico tal como o
conhecemos não surgiu até aquilo que algumas vezes se chama a Renascença do
século XII (BLOCH, 1991, p. 18).
Assim, num jogo engenhoso, com séculos de existência, o amor romântico foi se
moldando a partir de um sistema de classificações que pressupõe valores, relações e linhas
divisórias para diferenciar categorias em intensidade e subordinação. Vale observar que esse é
um ponto sensível da história, pois a obsessão debilitante com a mulher como fonte de todo
mal acabou se invertendo numa obsessão com a mulher como fonte de todo o bem (BLOCH,
57
1991, p. 18). As análises de Bloch se baseiam na ligação entre os textos patrícios e a literatura
cortês dos séculos XI e XIII cuja inflexão é a quebra da articulação da sexualidade do
cristianismo primitivo, que concebia a mulher como fonte de malignidade. Para demarcar
essa passagem, Bloch extrai as denominações que apontam a mulher tanto como a "Esposa de
Cristo" como o "Portão do Diabo" (1991, p. 29).
O papel da igreja, dos mecanismos sociais e das instâncias simbólicas nessa mudança de
paradigma cuja atitude de proclamar as virtudes das mulheres e ao mesmo tempo manter seu
conjunto numa subjugação completa é o reforço das armadilhas, sempre resistentes ao tempo,
da misoginia. Nesse sentido, o amor romântico inserido nas práticas de linguagem é o agente
visível da força invisível da misoginia na cultura. Na literatura cortês, o amor é expressão de
uma língua cujos significantes compõem um manual de instrução das relações humanas. A
estrutura da linguagem dissemina essas porções discursivas sobre as quais a misoginia incide
o projeto de manter cada indivíduo em seu lugar.
Dois traços definem o poeta cortês: a voracidade que marca sua busca pelo amor e o
sentido de sofrimento atribuído a ela. Os cantos de vassalagem são entoados por nobres
58
cavaleiros que cantam seus amores ao som do alaúde. A cada verso dos trovadores, é um tal
de invocar, no desejo de enamoramento e na melancolia, uma "Dama isolada"; vislumbrar
uma "Dama distante"; declarar abstrusas os encontros com a Dama. Sendo a poesia, e não
outra arte o que cimenta esteticamente a experiência do amor cortês, Lacan (2008) aponta que
independente do significante, os termos se recobrem e se reencontram, já que se trata de um
mesmo sistema desenvolvido em língua vulgar, cujos temas se organizam em torno de
convenções, amor, luto e morte (LACAN, 2008, p. 178).
Esse lugar, tal pessoa entre vocês, falando-se do que eu tentava mostrar em das
Ding, o chamava, de uma maneira que acho bastante bonita, o vacúolo. É, com
efeito, algo dessa ordem que está em questão, se nos entregarmos a esse devaneio,
dos mais escabrosos, que é o de certas especulações contemporâneas que nos falam
de comunicação a respeito do que se transmite - tal função pseudopódica - no
interior de uma estrutura orgânica. Evidentemente aí não há comunicação como tal.
Mas se, num organismo monocelular, essa comunicação se organizasse
esquematicamente em torno do vacúolo, visando à função do vacúolo como tal,
poderíamos, efetivamente, ter aquilo que está em questão, esquematizado, na
representação. No centro do sistema de significantes, uma vez que essa demanda
derradeira de ser privado de alguma coisa de real é essencialmente ligada à
simbolização primitiva que se encontra inteiramente na significação do dom de
amor (LACAN, 2008, p. 182).
Os vacúolos são carregados para todo lado, intrínsecos à elaboração poética secular
do amor romântico e ao cálculo neurótico que afasta o sujeito do objeto de amor. Como
define Lacan, esse afastamento é essencialmente ligado à simbolização primitiva que se
encontra inteiramente na significação do dom de amor (LACAN, 2008, p. 182). Portanto, a
59
operação em torno desse centro vazio é uma analogia com a estrutura de funcionamento do
amor cortês.
60
No âmbito do simbólico, Bloch (1991) reconhece que a manifestação poética do
paradoxo do amor é a própria criação de sua história interna. Um conflito vacilante entre o
conhecimento e ignorância, entre desejo e privação, entre alegria e dor. Bernart de Ventadorn
(1148-1195), poeta lírico por excelência, é um típico representante dos trovadores do amor
cortês. Campos (1987, p. 79) escreve que as aberturas de suas canções são quase sempre
peças antológicas, de uma musicalidade perfeita. Com efeito, sua vida amorosa alimentou sua
prática artística, repleta de lances com mulheres casadas. A materialização de seus jogos
amorosos em signos de linguagem cria um campo de sentido para a experiência do amor
cortês. André Berry diz que "ele ama como se ninguém tivesse amado antes dele" (apud
CAMPOS, 1987, p. 80).
Bernart se entrega ao amor de cor e cors (coração e corpo) e coloca todo o seu
saber e sen (saber e inteligência), toda a sua fors e poder (força e poder) a serviço
da explicitação desse sentimento: "Não é maravilha se eu canto / Melhor que
qualquer cantador. / Meu coração só sabe Amor. / Ninguém sabe melhor senti-lo
tanto" (CAMPOS, 1987, p. 78).
O processo de montagem da poética cortês orienta-se pelo jogo duplo exercido pela
contradição na aspiração do objeto de amor. As mais altas aspirações de enamoramento são
lançadas nas linhas dos poemas, dado que permite supor a existência de encontros amorosos.
Como Bloch (1991) explica, o ditame da corte é a conduta do rodeio, nunca da realização
61
amorosa. Tal diretriz é a manutenção básica do amor romântico, pois mesmo quando o
encontro é materializado, a Dama é sempre comprometida com outra pesssoa. Trata-se de
impossibilidade, de desarranjo. Segundo Lacan (2008, p. 178), uma das características
fundamentais do amor cortês é de ser uma escolástica do amor infeliz. Nesse sentido, ele
ajuda a entender as palavras ali plantadas:
O amor cortês era em suma um exercício poético, uma maneira de jogar com um
certo número de temas de convenção, idealizantes, que não podiam ter nenhum
correspondente concreto real. Não obstante, esses ideais, em cujo primeiro plano
está a Dama, se encontram em épocas ulteriores e até na nossa. Suas incidências são
totalmente concretas na organização sentimental do homem contemporâneo
(LACAN, 2008, p. 180).
Lacan (2008) ressalta que esse objeto de amor, chamada de Domnei, é frequentemente
invocada por um termo masculino - Mi Dom, isto é, meu senhor. Isso significa que sua
imagem é elaborada a partir de elementos que, em si, não são capazes de revelar nada. Com
efeito, essa imagem é resultado da diluição feita para que todas as Domnei se pareçam com
uma só. Entende-se que o objeto feminino é esvaziado de toda substância real. Que isso
significa? A despersonalização dos personagens femininos na poética cortês, além de indicar
a conduta de rodeio em torno de um centro vazio, também nos lança num terreno de
misoginia, de impossibilidade afetiva diante desse parceiro desumano. A condição sine qua
non para amar, portanto, é que a pessoa não seja amada em troca. "Não há possibilidade de
cantar a Dama, em sua posição poética sem o pressuposto de uma barreira que a cerque e a
isole" (LACAN, 2008, p. 181). A poesia do amor cortês é uma montagem em que as duas
metades se contaminam, mas não se encontram num todo. O poeta e o objeto feminino
coexistem em justaposição contraditória. A frase de Lacan, "aquilo que o homem demanda,
em relação ao qual nada pode fazer senão demandar, é ser privado de alguma coisa de real"
captura a posição ambivalente do sujeito, que embora fascinado pela mulher, explicitamente
identificada como objeto de desejo, não hesita em pô-la num regime de inacessibilidade.
Portanto, a manifestação do desejo e o elogio à palavra não é salvaguarda da misoginia. No
sentido em que Lacan propõe, é a emergência do vazio do real através de uma construção
artificiosa de linguagem.
62
Uma Dama de corte: a mulher isolada, barrada, conformada. A Dama cortês, à força
de um processo violento de linguagem, forjado por ideais estéticos mais seculares, é posta de
maneira descaracterizada e impessoal, desenraizada da realidade. A mulher é
permanentemente barrada e sua participação no exercício poético se restringe a figurar
segundo os truques estilísticos do poeta. A essa mulher expropriada de sua condição de ser,
resta a figuração no cerne da poesia como encarregada de reproduzir uma estrutura de
linguagem que se assemelha à vida em sociedade; ao lugar de confinamento, reclusão e
silêncio. Pois esse lugar é o próprio espaço de mulher. O poeta absorve e canaliza suas
intuições e põe no exercício da palavra sua imagem e dessemelhança, pois não é a mulher que
falta; busca-se a falta. Assim, o vacúolo aparece mais uma vez. O homem fala para esse vazio
como se ele falasse dele.
É um espelho para além do qual é apenas por acidente que se projeta o ideal do
sujeito. O espelho, num dado momento, pode implicar os mecanismos do
narcisismo e, nomeadamente, a diminuição destrutiva, agressiva, que
reencontraremos em seguida. Mas ele desempenha um outro papel - um papel de
limite. Ele é aquilo que não se pode transpor. E a organização da inacessibilidade do
objeto é justamente a única coisa da qual ele participa. Há toda uma série desses
motivos que constitui os pressupostos, os dados orgânicos, do amor cortês. Por
exemplo, isto - o objeto não é absolutamente apenas inacessível, ele está separado
daquele que se consome em atingi-lo por todos os tipos de potências maleficentes
que a bonita linguagem provençal chama, entre outras denominações de
lauzengiers. São os ciumentos, mas também os maledicentes (LACAN, 2008,
183-184).
63
objeto através de laços inextricáveis, entre o objeto e as elaborações imaginárias, e do gozo
que se obtém nessa relação. Lacan equivale o exemplo do oleiro e do vaso de cerâmica ao ato
mítico do qual Deus fez o mundo e viu que era bom. A possibilidade de sublimação oferece
a constatação incontornável da satisfação narcísica, por vezes sob a forma da criação artística,
que faz o vacúolo vir à tona, e provoca a elevação do objeto à dignidade de Coisa.
64
A relação entre os domínios da produção cinematográfica e da produção de identidade
de gênero se fundem numa matriz essencialmente heterossexual. Robert Widmark, filósofo
americano do western, descreveu o Velho Oeste como “o lugar em que os homens são
homens e as mulheres são mulheres” (WIDMARK apud BAECQUE, 2013, p. 533). Devido
ao alcance social dessas representações, é fecundo retomar os modelos arcaicos do cinema
para verificar como as faces da virilidade se reproduzem e se deslocam sob o prisma de novas
projeções. Ao contemplar a figura do caubói, pretendemos situar as raízes do gênero Western
no imaginário ocidental como aquele que reproduz uma virilidade conturbada e também
sinalizadora, já que, segundo André Bazin (2018, p. 55), o western coincide não só com a
invenção do cinema, mas com a origem da América.
65
plenitude do espaço.
66
atenção àquilo que é atribuído ao momento do confronto, para além do risco de morte, é de
algo que ainda vai brotar. O que surge daí é a própria instituição do western e seu julgamento
final, sua verdade definitiva. “Nessa rivalidade, exacerba-se a virilidade conflituosa dos
westerners. São filmes constituídos em torno de seus duelos que os revelam por aquilo que
são: epopeias de homens” (BAECQUE, 2013, p. 532).
A primeira leva dos caubóis hollywoodianos, representados por atores como Tom
Mix, William S. Hart, Tex Hitter e Joe Hammam explicitam o gênio da espécie como o
homem que se debate contra a natureza hostil, nunca contra si mesmo. A certa altura, os
traços que descrevem a personalidade do caubói, acabam por dividir a mesma figura em duas
correntes distintas: os heróis exemplares e os heróis vulneráveis. Veremos adiante como essa
divisão propõe um novo esquema ao modelo viril.
A nova fase do caubói atesta uma hipótese: há aqui uma voz unívoca, que conversam
e cantam a partir de suas angústias e em torno dela. Nesse momento, o caubói, para além da
67
relação de continuidade entre corpo e entorno, sintetiza os conflitos íntimos que o
atravessam, contaminam e formulam sua conduta. O herói vulnerável viria fazer suplência ao
caubói de virilidade inabalável, que é capaz de expressar suas dores físicas e emocionais
através de diversos sintomas. São respostas diferentes diante da angústia: Kirk Douglas é ao
mesmo tempo bêbado e amputado de um dedo em The Big Sky; Walter Brennan é perneta em
Rio Bravo; James Stacy é deficiente em Posse; James Stewart ferido na mão em The man
from Laramie; encontramos um cego em The Lovely Man, enfermos em The Violent Men ou
Duel in the Sun; e John Wayne é canceroso em The Shootist, de Don Siegel, assim como o
herói do Justicier de l’Ouest é vítima de uma gangrena (BAECQUE, 2013). Nenhuma
tentativa de domínio, é capaz de driblar as angústias. O autor destaca que "a cada retomada,
esses novos heróis do western combatem não somente adversários tradicionais, mas eles
próprios, no sentido de que estão desesperados, traumatizados, às vezes alcoólatras, e
geralmente diminuídos fisicamente ou ao menos vulneráveis” (BAECQUE, 2013, p. 536).
Vale cotejar, conforme destaca Baecque (2013), que a falência física combinada à
tragédia pessoal não retira a virilidade da tela, apenas a imprime de uma maneira diferente,
conferindo uma camada de humanidade só possível de alcançar quando o caubói abandona os
jogos de manipulação em torno do purismo de sua performance original. O herói vulnerável é
o sujeito que envelhece, que sofre, e que também desaparece. Baecque assinala que a
condição de humanidade conferida à virilidade moderna põe em vias de desaparecimento o
próprio gênero western. Em seus epitáfios, inscrevem-se os nomes de “heróis crepusculares”,
“cavaleiros do crepúsculo” e “cowboys da morte”.
Os jogos tranquilos do herói preso numa realidade dicotômica sai de cena, pois o mal
externo, personificado pelas guerras e tragédias da natureza, agora é atribuído ao interior de
sua pessoa e de seu corpo. Nesse sentido, Edgar Morin (apud BAECQUE, 2013, p. 540)
afirma que "o problema agora está na contradição vivida, na impotência, na aspiração, na
procura desesperada". O que parece engendrar-se nos filmes do western é um vínculo de
reciprocidade entre heroísmo, melancolia e traumas. A virilidade ferida, consagrada
principalmente nos filmes de Clint Eastwood, passa a projetar uma representação heróica
cujos estigmas de sofrimento se apoiam na comunidade que o admira.
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O impasse em relação ao filme Janela Indiscreta (1954) talvez esteja relacionado ao
amplo leque de interpretações que a obra suscita. Para começar, a Teoria Feminista do
Cinema, capitaneada pela pesquisadora inglesa Laura Mulvey, põe em evidência a violência
misógina da filmografia de Alfred Hitchcock. De acordo com Mulvey (2009), o projeto de
Hitchcock se concentra em inserir a visão do protagonista masculino, que acaba por reservar
à mulher o lugar de objeto passivo do olhar e da manipulação do diretor e do público. “São
filmes cortados na medida do desejo masculino”, escreve Mulvey (2009), sugerindo que esse
desejo recobre a mulher em uma série de jogos de fetiches e controle. Além disso, a crítica
também abarca a hipótese do fantasma da castração, cujos signos e símbolos são carregados
pelo corpo feminino, dado a ausência do pênis-Falo na mulher. Aqui, abarco o entendimento
de Mulvey (2009) de que a narrativa do cinema clássico nega a visão da mulher, dado que se
encaixa com precisão no enredo de Janela Indiscreta, em que o espectador não tem outra
saída a não ser se identificar com o olhar do protagonista masculino. No entanto, os
elementos dessa ficção carregam múltiplos sentidos. A pesquisa da feminista Tania Modleski
(1987) propõe uma nova fórmula ao negar que as mulheres hitchcockianas são fracas e
incapazes.
Uma ideia de morte permeia o filme: ideia de morte de mulher. As intuições sobre a
morte feminina, convocadas pelo imaginário do protagonista L.B Jeffries, relembram a
definição precisa do crítico André Bazin sobre o trabalho de Hitchcock: cinema de crueldade.
No suspense hitchcockiano, a morte sai do espectro do tabu e se revela sob o signo do
fascínio.
69
protagonista cria sua própria zona de discurso, que se amplia à medida que a imagem da
namorada Lisa Freemont, interpretada por Grace Kelly, risca a tela. Juntos, eles imprimem a
dicotomia entre movimento e estase, tão cara ao cinema clássico. O próprio Hitchcock, em
entrevista a François Truffaut (apud MODLESKI, 1987, p. 189) explica a utilização desse
recurso: “A simetria é a mesma de Shadow of Doubt. De um lado do quintal está o casal
Stewart-Kelly, com ele imobilizado pela perna engessada, enquanto ela pode se mover
livremente. E, do outro, há uma mulher doente que fica confinada à cama, enquanto o marido
vai e vem”. Modleski (1987) resgata o exemplo de Raymond Bellour para mostrar que, no
cinema clássico, era comum a oposição entre movimento e estase para estabelecer a
superioridade masculina na narrativa.
É nesse ponto que se situa o cerne da crítica feminista. Mulvey (2009) enxerga Lisa
como uma "imagem passiva de perfeição visual” cuja marca se define pela beleza e obsessão
por roupas e joias. Na outra ponta da crítica, um deslocamento ocorre na ênfase dada à
mobilidade da personagem em cena. Essa questão corresponde a dois conjuntos de valores
que são contrapontos na ficção de Janela Indiscreta. A personalidade viril de Jeff despreza o
estilo de vida da namorada, que, além de trabalhar com moda, é, segundo ele, “perfeita
demais”. Ao analisar a obra, Modleski (1987) aponta que essa contraposição abre passagem
para a interpretação de que a ameaça da sexualidade feminina é atrelada ao medo do homem
da diferença sexual, e de sua suspeita de que as mulheres possam, afinal, ser homens
mutilados. Ameaça que é acentuada pela agressividade das mulheres hitchcockianas. Esta
seria a causa das fantasias de desmembramento do corpo que permeiam todo o esquema do
filme.
70
O risco de ser pego assola constantemente o voyeurismo de Jeff, que tenta coagir
Lisa, a enfermeira Stella e o detetive Tom Doyle a aderir suas ideias. A postura de Jeff
demonstra sua vulnerabilidade e também arrogância, porque, incapaz de apurar o caso
sozinho, insiste que Lisa e Stella o façam em seu lugar, validando sua história. Aqui, um dos
elementos fundamentais é a impotência de Jeff para controlar a situação, principalmente
quando Lisa invade o apartamento de Thorwald em busca de provas e ele, violentamente,
apanha-a em flagrante. Na sequência, Lars Thorwald segue até o apartamento de Jeff. É a vez
de Hitchcock exibir, com sarcasmo, a tentativa canhestra de defesa de Jeff, ao lançar flashes
de luz - seu instrumento de trabalho, no rosto de Thorwald, quando o vizinho vai ao seu
encontro com a questão: "O que você quer de mim?”. Jeff, permanentemente sujeito à
passividade, é lançado janela abaixo, ato que encerra o protagonista em mais um capítulo de
declínio físico. Leda Tenório da Motta examina:
Estamos num sofisticado jogo entre a “câmera subjetiva”, que sustenta o olhar da
personagem, e a “câmera objetiva”, que sustenta o olhar que divisa a personagem.
Temos, então, algo que nem a internet nem a televisão nos podem dar: um trânsito
do campo de visão do herói para o que se chama, em cinema, de “contra-campo”,
que é o retângulo ou o frame constituído pelo campo oposto ao enquadrado pela
câmera. Metaforicamente, poderíamos falar, ainda, na intromissão de uma outra voz
e, ato contínuo, numa polifonia. Graças a isso, inverte-se toda a perspectiva do
filme, dá-se uma quebra de eixo surpreendente, preparada para o final, quando o
marido assassino volta-se para o fotógrafo e lhe contrapõe a sua mirada. É uma
dialética que, embora espetacular, nesse caso, está em toda parte em Hitchcock, e
para a qual Zizek nos chama a atenção, notando que ela descarta qualquer tomada
objetiva e que isso faz dos objetos mais triviais objetos de angústia (MOTTA, 2006,
p. 33).
Conforme foi dito, é também pela metacrítica que o personagem alimenta um jogo
violento, cujo aparelho fotográfico se transforma em arma de fogo por meio da defesa dos
golpes de luz que a máquina opera, de acordo com Motta (2006, p. 34), em uma ação
correspondente às promessas agressivas de "to shoot". Importante salientar o vazio em que
esse herói é jogado ao cair da janela do apartamento. O jogo da virilidade permanece; no
entanto, existe uma espécie de furo no enredo. Sobre a angústia do herói, sobre o vazio em
que Jeff despenca, sinalizam o fosso e também os caminhos os quais os personagens
masculinos seguem os preceitos de Hitchcock, sempre associado diretamente à morte e à
passividade do objeto feminino.
71
O próprio Jeff - e, por extensão, o espectador do filme masculino - é forçado a se
identificar com a mulher e tomar consciência de sua própria passividade e
desamparo em relação aos acontecimentos que se desenrolam diante de seus olhos.
Assim, todos os esforços de Jeff para repudiar a identificação feminina que o filme
originalmente cria terminam em retumbante fracasso, e ele é forçado a ser, por sua
vez, a vítima das manipulações cinematográficas de Hitchcock do espaço e tempo
(MODLESKI, 1987, p. 90).
Repetições e ecos são frequentes. Instigam uma nova voltagem nos sintomas, que
insistem, obstinados. Por outro lado, às vezes resultam em uma suspensão: algo que não se
esgota no declínio físico do corpo que cai. Vertigem, a palavra semeada, deriva no abismo da
fantasia de morte de mais um personagem de Hitchcock. Modleski (1987) escreve que as
quedas nos filmes de Hitchcock estão constantemente ligadas ao feminino e à angústia em
relação à vida intrauterina. Tal como Jeff em Janela Indiscreta, Scottie Ferguson em Vertigo
(1958), ambos interpretados pelo ator James Stewart, também teve seu corpo marcado pela
queda.
Hitchcock fez movimentos precisos para enquadrar Scottie nesse sintoma. Assim
como Jeff, o personagem fracassa ao desempenhar sua profissão. Como detetive de polícia,
um episódio de perseguição expõe seu medo de altura e o obriga a se aposentar. Colocado
numa posição de passividade forçada desde o início, esse acontecimento diz respeito ao seu
fracasso em relação à lei simbólica (MODLESKI, 1987, p. 81).
Em Vertigo, o espectador é levado ao caso armado pelo empresário Gavin Elster, que
é o grande articulador para que a vertigem de Scottie o fragilize a tal ponto que ele termina o
filme internado num hospital psiquiátrico. Por trás disso, o objetivo de Elster é assassinar sua
esposa e tomar posse de seus bens. Elster mantém a esposa verdadeira longe da cidade, e
arranja uma substituta para encenar o jogo com Scottie. É dessa maneira que a relação entre
Scottie e Madeleine é costurada, através de outros elementos. A versão que Elster conta para
Scottie é que Madeleine tem sofrido perturbações mentais que convocam uma tia falecida,
Carlota Valdez.
Para que o trabalho seja iniciado, Elster propõe um encontro no Ernie's restaurant a
fim de que Scottie conheça Madeleine. Provocado pela presença dela, à medida que o casal
72
atravessa o salão, a mulher não estava ali senão para lembrar, conjugado ao poder de
transformar seus traços físicos, altamente expressivos, em material de fascínio. No
documentário O Guia Pervertido do Cinema (2006), Žižek destaca a incapacidade de Scottie
de encarar o rosto de Madeleine. O filósofo considera esse shot o mais central do filme, que
será reproduzido em outras cenas. "O shot de perfil talvez seja o mais importante do filme.
Ele fornece o fundo escuro, o fascínio de Madeleine no restaurante Ernie. Scottie está com
muito medo de olhar para ela diretamente. O que ele vê são os seus sonhos. Quando ele vê
um rosto, é basicamente sempre a metade dele" (ŽIŽEK, 2006). Modleski afirma ainda:
73
a fonte do fascínio do homem pela mulher é o seu próprio fascínio pela
morte, pelo abismo aberto, que ela alucina como sua sepultura aberta e que é
continuamente representada no filme em suas muitas formas em forma de
arco de igreja, museu, cemitérios. Mas neste momento, pelo menos, o filme
é alegre; e o ódio alimentado pelo medo será suprimido até o final. Até aí o
filme só se preocupa em despertar nos espectadores a curiosidade e o desejo
pela mulher como objeto idealizado do amor romântico (MODLESKI, 1987,
p. 82).
É nesse sentido que Žižek (2006), opera sua crítica. A ideia da criatura fascinante já
começa a tramar a contradição da história de amor. A imagística da mulher fatal à deriva,
enigmática, compõe a trama central e, à medida que as metáforas vão ganhando nitidez, o que
se ensaia é o que virá a ser um dos típicos procedimentos hitchcockianos, que se desenrola
manuseando o tema da morte por meio de sucessivas miradas, como o escultor que circunda a
matéria, talhando-a por vários ângulos. "A ideia da mulher fatal possui ele totalmente; a
mulher fatal é a morte. O abismo final não é o abismo físico, mas o abismo da morte de outra
pessoa. Quando você olha para os olhos dos outros, você vê a espiral" (ŽIŽEK, 2006).
Žižek (2006) alinha a frase the only good women is a death women ao propósito do
74
filme. Scottie sabe que Madeleine não existe - ela é apenas uma fantasia, mas ele tenta
recriá-la, forçando Judy a se tornar Madeleine. Quando Scottie transforma Judy em
Madeleine é como uma fantasia realizada. Žižek diz que o nome perfeito para isso é pesadelo,
pois essa dinâmica é sustentada por uma violência extrema. Violência que consiste no caso de
Scottie transformar brutalmente Judy, a garota comum real, em Madeleine, a mulher morta.
"É realmente um processo de mortificação. É também a mortificação do desejo feminino.
Scottie tem que modificá-la e transformá-la em uma mulher morta" (ŽIŽEK, 2006). Žižek
afirma ainda:
Para Scottie, Judy é importante na medida em que ela se encaixa em sua estrutura de
fantasia. Judy o ama, mas para obter esse amor correspondido, ela deve se transformar na
fantasia de Scottie, ou, em outras palavras, ela tem que assumir a forma de uma mulher
morta.
Mudamos aqui de sintoma e de filme. O que se segue é Taxi Driver (1976) dirigido
por Martin Scorsese, e com roteiro de Paul Schrader. Mestre absoluto de suas contradições, o
protagonista Travis Bickle põe em questão suas implicações existenciais que evocam a
tragédia social norte-americana. No filme, a solidão é posta em cena em relação de
contiguidade com a morte e a virilidade. Se por um lado Travis é um homem que padece do
tempo presente, por outro o enredo deve muito à Nova Iorque suja e caótica dos anos 1970.
Essa década é a década da dissolução, em meio ao caos da Guerra do Vietnã, a crise
econômica e o escândalo político de Watergate.
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personagem para resolver suas questões. Travis é um ex-combatente que sofre de insônia. Por
tal motivo, decide trabalhar como motorista, de forma que passa a se ocupar durante as
madrugadas inteiras. A ideia de solidão como adjacente à vida, e não como acontecimento
pontual de uma trajetória, encontra-se como tema central do filme. Independentemente da
posição que o personagem se situa, a solidão se confunde com sua paisagem interna, e a
morte é reiteração viril da condição do herói que está morto em vida.
Entre as ocasiões que levam Travis a manifestar suas contradições e afirmar uma
atitude destrutiva consigo mesmo, estão os encontros com Betsy e Iris, a prostituta de doze
anos de idade. São nessas ocasiões que o personagem se vale da ideia de morte para
caracterizar a vida. Se a morte pode ser repulsiva e indesejável, ela é a metáfora encontrada
para representar a vida solitária e miserável de Travis sob a ótica do heroísmo viril.
A corrente terna é a mais antiga das duas. Ela vem dos primeiros anos da infância,
formou-se com base nos interesses do instinto de autoconservação e se dirige às
pessoas da família e aos que cuidam da criança. Tais fixações ternas da criança
continuam através da infância e sempre incorporam erotismo, que assim é desviado
de suas metas sexuais. Na época da puberdade sobrevém a poderosa corrente
"sensual", que já não ignora suas metas. Ao que parece, ela nunca deixa de seguir os
caminhos anteriores e de investir os objetos da escolha infantil primária com
montantes de libido bem mais intensos. Mas, como vai de encontro aos obstáculos
erguidos nesse meio-tempo pela barreira do incesto, envidará esforços para logo
transitar desses objetos. Esses novos objetos ainda serão escolhidos segundo o
modelo (a imago) daqueles infantis, mas com o tempo atrairão para si a ternura que
se ligava aos primeiros. O homem deixará pai e mãe - conforme o preceito bíblico -
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e se apegará à mulher; ternura e sensualidade ficarão unidas. O grau máximo de
paixão sensual acarretará o máximo de valoração psíquica (FREUD, 2013, p.
349-350).
No documentário God’s Lonely Man (2007), Schrader explica que Travis não pode ter
Betsy, a garota que deseja, e quem ele pode ter, a prostituta Iris, ele não quer. Vale salientar
que essa dinâmica da não convergência das correntes da ternura e da sensualidade e a
crescente frustração do personagem é aplicada em oposição à forte fermentação sexual da
cidade de Nova Iorque no período. Essa posição fica clara nas tomadas subjetivas em que
Travis não perde de vista os casais de namoro, as prostitutas e os cinemas pornográficos e
relaciona seu isolamento à estética da cidade, amontoada de gente e de poluição. Isso também
é ressaltado no desprezo de Travis ao que ele define como escória - pretos, homossexuais,
prostitutas etc. Claramente, o personagem é tomado por preconceitos, com sérias dificuldades
de se relacionar com a alteridade.
Travis fica siderado pela visão de Betsy. Loira de beleza angelical, ela trabalha no
comitê de Charles Palantine, candidato à presidência dos Estados Unidos. O encontro ressalta
o descompasso de Travis com a realidade; ele percorre as ruas da cidade com seu carro, no
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entanto, vive isolado da música, das notícias, da política e das pessoas ao seu redor. O
descompasso atinge seu ápice quando ele leva Betsy a um cinema pornográfico. O breve
lance entre os dois se encerra nesse segundo momento, e o local deflagra o contraste e a
distância entre Travis e Betsy, e mesmo Travis e o seu entorno. É tamanha sua desconexão,
que ele não compreende os motivos de Betsy ficar atônita ao conhecer o lugar. Um lugar que
se institui como legítimo na relação de Travis com a cidade, e o que poderia haver também de
mais íntimo.
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Em que pese as abismais diferenças entre o político Charles Palantine e o cafetão
Sport no espaço fílmico, as intervenções de Travis contra eles levantam boas questões. O
arsenal bélico e a morte se inscrevem numa determinada localidade e ao mesmo tempo se
situa fora dela. Os planos de ataque de Travis têm uma dimensão real e concreta, mas
também promovem uma suspensão. De acordo com Schrader (2007), Palantine e Sport são
representantes das figuras paternas e Travis se dirige aos dois para expressar simbolicamente
a frustração de sua impotência. Enquanto a sociedade celebra o político e o protege com
muros de pessoas, Travis tenta pegá-lo num comício público, mas é impedido pelos
seguranças e pelo fluxo da multidão. Travis falha com Palantine; entretanto, escancara as
portas de Sport, e o mata numa chacina. Em ambas situações, ele está lidando estritamente
com a figura do pai. Somadas, essas duas posições resultam numa ironia: Travis acaba
matando o pai "certo", o pai humanamente descartável segundo a lógica capitalista, que
empurra o cafetão para fora e longe da vista. Com a morte de Sport, a sociedade atribui a
Travis o papel de herói e estampa sua história nas capas dos jornais. A cena da chacina é em
boa medida responsável pela potência do efeito estético do filme, tornando visível todo o
trabalho de composição do personagem.
Na visão crítica de Žižek (2006), a chacina em Taxi Driver é colocada como ideologia
pura, resultado da impenetrabilidade e confusão do capital global. Levando em consideração
esse aspecto, a impotência sexual de Travis também se funde nas angústias trazidas pelo
estado de insegurança da ideologia à qual está preso.
79
Exatamente o mesmo se aplica aos terríveis ataques de violência, a onda de
assassinatos de Anders Behring Breivik em Oslo. Explodindo uma bomba em frente
ao prédio do governo e, em seguida, matando dezenas de jovens membros do
partido social-democrata em uma ilha perto de Oslo. Muitos comentaristas tentaram
descartar isso como um caso claro de insanidade pessoal. Mas, acho que o
manifesto de Breivik vale a pena ler. É palpavelmente claro como essa violência
sobre a qual Breivik não apenas teorizou, mas também praticou, é uma reação à
impenetrabilidade e confusão do capital global. É exatamente como a matança de
Travis Bickle no final do Taxi Driver. Quando ele está lá, quase morto, ele
simbolicamente aponta uma arma para sua própria cabeça com os dedos; sinal claro
de que toda essa violência era basicamente suicida. Ele estava no caminho certo, de
certa forma, Travis do Taxi Driver. Você deve ter a explosão de violência e deve
dirigi-la a si mesmo, mas de uma forma muito específica, isso não mudará você em
você, o amarrará à ideologia dominante (ŽIŽEK, 2006).
O ataque ordenado por Breivik matou setenta e sete pessoas na capital norueguesa de
Oslo. Segundo o estudo de David Neiwert (2020), Breivik pode ser considerado um terrorista
filho da internet, pois se radicalizou nesse território e publicou um manifesto online de 1.500
páginas, com vídeos e links indicando as fontes islamofóbicas e nacionalistas cujas ideais ele
absorveu. Breivik montou um caminhão-bomba com barris de nitrato de amônio misturados
com combustível cobertos com detonadores. Na manhã de 22 de julho, ele colocou tudo na
parte de trás da van e dirigiu até Oslo. Publicou seu vídeo no YouTube e lançou o manifesto
na internet, intitulado 2083: Uma Declaração Europeia de Independência, em que apresenta
evidências destinadas a "provar" várias teorias da conspiração, todas as quais estabeleceram a
partir da necessidade de uma nova cruzada "cristã" na Europa para expulsar os invasores
muçulmanos. Breivik também era antifeminista e considerava que as mulheres deveriam ser
impedidas de seguir uma formação superior.
Há, portanto, uma interconexão entre a maré anti-imigração (que está aumentando
nos países ocidentais e chegou ao auge com os assassinatos indiscriminados de
Anders Behring Breivik) e a atual crise financeira: apegar-se à identidade étnica
serve como um escudo contra o traumático fato de estarmos presos no redemoinho
da abstração financeira não transparente – o verdadeiro “corpo estranho” que não
80
pode ser assimilado é, em última instância, a máquina infernal autopropulsada do
próprio capital. (ŽIŽEK, 2012, p. 100).
Neiwert (2020) aponta que as teorias de conspiração são o fio condutor da toxicidade
e da confusão alimentada tanto em torno de grupos minoritários como para o florescimento
de um ambiente em que misoginia, fanatismo, homofobia etc, são frequentemente expressos
como crimes de ódio e violência terrorista.
A relação dos membros com o pai da horda primitiva, tão bem descrita em Totem e Tabu
(1912-1914, 2012), é a orientação a partir da qual Freud busca articular o mito edipiano como
uma estrutura básica universal. O percurso interno da horda aponta para a impotência dos
membros diante da figura do pai fundador, chefe que gozava de todas as prerrogativas de
poder no conjunto. Os membros matam e devoram este pai primevo. Entretanto, o pai não é
aniquilado por completo, pois sua ausência deixa vestígios que põem em questão a
obediência e ambivalência em relação a essa figura, agora simbolizado como totem. Os finais
desta história conclamam entre a proibição do incesto e a consagração do pai morto,
garantindo a epifania desta figura ausente que amou a todos. Esses elementos estão numa
relação direta com as ideias de Lamarck sobre a hereditariedade dos caracteres adquiridos, a
filogênese de Charles Darwin e a teoria do totemismo, de grande divulgação entre os
antropólogos no final do século XIX. O cordão de entendimento freudiano só engrossou com
o passar das décadas.
81
uma evolução no pensamento de Freud acerca da internalização da coerção externa diante do
conjunto - a representação de um líder ou ideia, o Deus da religião e o supereu, instância
psíquica herdeira do complexo de Édipo.
O Futuro de uma Ilusão (1926-1929, 2014) é uma obra que se dedica ao espectro das
ilusões religiosas. O sentido se concentra na impotência e no desamparo humano tanto em
relação às forças da natureza quanto às forças pulsionais, dado que o indivíduo atravessa
obstáculos, mudanças e privações necessárias à sua manutenção no pacto civilizatório.
Segundo Freud (2014, p. 247), é difícil suportar a existência tanto para o conjunto da
humanidade como para o indivíduo. A religião alimenta a ideia de um Deus-pai que protege e
ampara seus filhos diante dos infortúnios próprios da existência. O desamparo põe em
evidência a necessidade humana de evocar a onipotência desse Deus para prestação de
auxílio.
82
coerção social, pois ruim sem cultura, pior sem ela.
Lacan mostrou que o Édipo freudiano podia ser pensado como uma passagem da
natureza para a cultura. Segundo essa perspectiva, o pai exerce uma função
essencialmente simbólica: ele nomeia, dá seu nome, e, através desse ato, encarna a
lei. Por conseguinte, se a sociedade humana, como sublinha Lacan, é dominada pelo
primado da linguagem, isso quer dizer que a função paterna não é outra coisa senão
o exercício de uma nomeação que permite à criança adquirir sua identidade (...), o
que levou Lacan a interpretar o Complexo de Édipo não mais em referência a um
modelo de patriarcado ou matriarcado, mas em função de um sistema de parentesco
(ROUDINESCO, 1998, p. 542).
83
Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953) pode ser considerada a
obra que Lacan entrelaça a teoria sobre o pai com o estruturalismo, já que começa a explorar
os domínios do Édipo a partir do registro simbólico. Para Lacan, as criações humanas são
geradas por um conjunto de atividades que derivam de uma única fonte: a linguagem,
componente de uma ordem simbólica. A partir desse princípio, Lacan vai trabalhar os
lineamentos da descoberta freudiana fundamentada no campo das relações da natureza com o
registro simbólico. De acordo com as considerações de Lacan, os conceitos psicanalíticos só
possuem sentido ao serem ordenados na instância simbólica da linguagem. Assim, Lacan
compreende que a entrada do sujeito no simbólico, isto é, na linguagem e na cultura, é dada
na saída do complexo de Édipo.
84
objeto de desejo da mãe, pois a criança designa o pai como "causa" da ausência da mãe.
Pressupõe-se que a operação seja articulada pelo falo, cuja associação ao Nome-do-Pai
possibilita a passagem do significante falo ao inconsciente. O caso é que, ao término da
substituição metafórica, o significante fálico que designa o desejo para o sujeito corresponde
ao significante do desejo materno. De acordo com Joel Dor (1991, p. 53), “ao final da
substituição metafórica, o pai é doravante referido ao falo pela criança, enquanto objeto de
desejo da mãe”.
Considerando que a dialética amorosa do pai e da mãe seja articulada pelo falo, o
tempo que antecede a instauração do falo como objeto imaginário é a fusão da mãe com o
filho. Estrangeiro à essa relação, o pai atua como uma instância de corte, introduzindo a lei da
interdição de incesto no inconsciente através do significante Nome-do-Pai como lei
simbólica. Nesse cenário, o surgimento do objeto fálico como objeto de desejo da mãe
confere uma incerteza psíquica na criança que havia se identificado como o único objeto de
desejo materno.
Do encontro com o pai enquanto outro - portador do falo - surge então o encontro com
a lei simbólica. O deslizamento do significante fálico remete para além do pai imaginário;
nesse jogo, o pai simbólico emerge e assim são postos os modos de inscrição de cada sujeito
no discurso do Outro3, que é o discurso da cultura a que pertence. A entrada da criança no
pacto da cultura, fundado na interdição do incesto, é efetuada no corte que retira a criança do
registro especular do imaginário e a inscreve no simbólico. A importância do complexo de
Édipo é extinguir definitivamente a possibilidade do incesto. A lei simbólica, introduzida no
ciclo significante, marca a entrada do sujeito na cultura como sujeito do desejo. Com essa
base estruturalista, o Édipo passa da condição de complexo à condição de estrutura.
3
A teoria lacaniana atribui ao Outro à dimensão simbólica que antecede o sujeito e que também está na origem
de sua divisão. Apesar do campo da linguagem determinar o simbólico, este também é sustentado pelas
representações do imaginário. A mãe e o pai, como introdutores da criança no terreno da linguagem, são as
primeiras representações imaginárias do Outro.
85
Nome-do-Pai, estritamente ligado à enunciação da lei, como todo o
desenvolvimento da doutrina freudiana no-lo anuncia e promove. E é nisso que ele é
ou não é aceito pela criança como aquele que priva ou não priva a mãe do objeto de
seu desejo (LACAN, 2020, p. 197).
A função paterna que Lacan elabora em sua teoria funciona como uma metáfora, um
significante que surge no lugar de outro significante, não para determinar o lugar do pai na
família, mas para marcar a posição que ele ocupa no complexo de Édipo. Ao substituir o
significante materno, o pai intervém na relação da mãe com a criança e oferece uma saída ao
Édipo através da identificação simbólica, desviando assim da solução imaginária. Desta
maneira, a eficácia simbólica da metáfora paterna consiste em manifestar a ilusão de que a
intervenção do elemento estrangeiro impediu a impossível realização da criança junto ao
objeto incestuoso. Isto é, o pai não impede o contato da criança com o objeto de gozo, apenas
sustenta essa ilusão.
86
social.
A imago paterna sofreu abalos consideráveis, pois os últimos dois séculos têm sido
teatro de grandes transformações, marcado também no âmbito individual, dado que a criação
da psicanálise no fim do século XIX coincide com a própria concepção moderna de
indivíduo, modelo até então inexistente nas sociedades pré-modernas. Conforme Theodor
Adorno argumenta em A indústria cultural, o projeto de indivíduo nunca se realizou
plenamente pois, "contra a vontade de seus senhores, a técnica transformou os homens de
crianças em pessoas. Mas cada um desses progressos de individuação se fez à custa da
individualidade em cujo nome tinha lugar, e deles nada sobrou senão a decisão de perseguir
os fins privados" (ADORNO, 2007, p. 169).
Mesmo que o projeto de indivíduo moderno seja marcado por contradições desde o
início, a função do pai, historicamente ligada à transmissão simbólica de referências estáveis,
assistiu à propagação de seu declínio. Essas referências encontraram razão de ser sobretudo
por indicar o pertencimento dos indivíduos ao meio social desde o feudalismo até antes do
período das revoluções burguesas. De acordo com Kehl (2015), o período moderno se
caracteriza pela mobilidade social e pela liberdade nas escolhas individuais, aspectos que
tornaram as regras de convívio mais complexas. "A complexidade das estruturas simbólicas,
a partir dos primórdios do capitalismo, tornou o campo do Outro inacessível ao saber
(consciente) dos sujeitos sociais" (KEHL, 2015, p. 45). A psicanalista recupera a hipótese de
que "a neurose realiza com meios particulares, o que a sociedade ancestral realiza por meio
do esforço coletivo", proposta por Freud para apontar que o declínio das representações
coletivas em torno da função paterna exige uma nova maneira de existir em sociedade cuja
condição fundamental é a resposta neurótica produzida por cada ser de maneira individual.
87
Nesse ponto, recupero a definição de "patriarcado", segundo o dicionário de
Roudinesco:
88
positivação da crise do patriarcado está de acordo com a contestação de uma ordem
estabelecida. Tort reconhece que existem diversas figuras históricas da paternidade e cada
uma constitui uma função de pai, desta maneira, a "produção" dos sujeitos pode ser feita
singularmente. Estaria presente aí o entendimento de que a lei, como base primordial da
função paterna, pode ser concebida a partir de outros princípios, que não a lei do pai sobre a
mãe. Nesse sentido, a originalidade de Lacan, constata Tort, foi ter separado a estrutura do
Édipo do patriarcado e da dominação masculina, pois se há outras figuras possíveis no Édipo,
haverá outras leis estruturantes do psiquismo dos indivíduos, de instauração de limites e
diferenciações simbólicas.
A função paterna passou a ser uma espécie de pára-raios no debate em torno da crise do
patriarcado, pois o enfraquecimento do pai na sociedade equivale à constatação de sua força
enquanto função simbólica na psicanálise. Nesse sentido, Mariana Pombo (2018, p. 30)
assinala que "o problema desse discurso de declínio é que ele representa a história como
degradação da ordem antiga e os dispositivos de família, parentalidade, sexualidade e
procriação como naturais, a-históricos". Estou de acordo com a consideração da autora em
questionar o poder do pai ancestral como o único meio de transmissão de uma lei
estruturante. Entretanto, não deixo de observar a fragmentação do campo do Outro na
atualidade, não como justificativa para restaurar a ordem antiga, mas como caminho para
entender as mudanças que afetam as dimensões da subjetividade.
89
Em 1947, Adorno deflagrou um desconfortável e espinhoso debate ao publicar o
importante A indústria cultural. O ensaio estabelece uma fusão entre os domínios do
particular e do universal, sugerindo que a produção industrial da cultura concebe o indivíduo
como um ser genérico, um mero exemplar. A indústria cultural está em toda irrupção de vida;
já a individualidade é sempre negociada, pois "a indústria cultural realizou maldosamente o
homem como ser genérico. Cada um é tão somente aquilo mediante o que pode substituir
todos os outros: ele é fungível, um mero exemplar" (ADORNO, 2007, p. 170).
90
necessário ao trabalho de representação psíquica. Ainda que se reconheça a diversidade das
imagens, é sob a imensidão turva da generalidade que se erige o discurso indiferenciado da
indústria. O tratamento psicanalítico que Kehl confere ao argumento de Adorno sobre a
abolição da individualidade repousa sobre as paixões identitárias que esse processo suscita.
De acordo com a psicanalista, a paixão identitária se refere a uma paixão narcísica, forjada
pela ilusão do sujeito de refazer a unidade primordial com o Outro. Na miragem do sujeito, a
troca da singularidade pela identidade incondicional com o universal se configura como
esperança de tornar-se idêntico ao gozo perdido, mesmo dado sua impossibilidade. Um traço
mínimo, o traço unário, anterior à entrada do sujeito no campo simbólico, não oferece
nenhuma segurança imaginária. Kehl (2015) afirma que o traço unário só oferece uma
resposta mínima à pergunta sobre a identidade.
À pergunta "quem sou?", emergência silenciosa daquele que ainda não é sujeito, o
Outro só responde com a assertiva "tu és", sem acrescentar qualquer atributo, a
indicar apenas que a linguagem existe no real, está em curso, em circulação, e
muitas coisas a propósito dele, em sua suposta interrogação primitiva, são desde
logo pautadas pela linguagem. É essa inscrição singular que nos permite dizer
"este(a) sou eu", de forma intransitiva, e manter essa certeza até mesmo em
períodos críticos em que não nos sentimos capazes de completar essa frase com
qualquer outro predicado. Para a psicanálise, a não ser por esse traço mínimo que
une o sujeito a seu lugar simbólico, a identidade é ilusória. O que não significa que
a segurança (perdida) que ela representa não mobilize paixões (KEHL, 2015, p.
292).
No seu aspecto mais geral, entre os elementos que compõem a identidade incel,
encontramos a possibilidade de homens jovens se inserirem num conjunto, de pertencer a
91
uma comunidade cujos valores pressupõem os mesmos. Muitos usuários chegam às salas de
bate-papo com o desejo de conversar sobre suas crises pessoais. O problema é que a ideologia
construída ao longo dos últimos anos, foi justamente a abolição do diálogo que edifica,
condicionando a repulsa em relação à alteridade. Os fóruns poderiam ser espaço para
simbolização de sofrimento; no entanto, acabaram se tornando para-raio da propagação de
brutalidades. Interessante notar que a participação no laço incel, pressupõe que o indivíduo
esteja de acordo e adeque-se aos posicionamentos do conjunto geral. A reportagem do site
Vice, chama atenção para participantes que se identificam como incel, entretanto, não
concordam com as posições radicais que a identidade abarca. Os usuários entrevistados
opõem-se à associação feita entre os incels e os atos de violência extrema. “Não é porque o
cara [que cometeu um atentado] tinha o mesmo comportamento de incel que significa que
todo incel vai fazer isso", afirma o entrevistado que se identifica na reportagem como Chimpa
(VICE, 2019).
Como nota Kehl (2015), a expansão das imagens difundidas através dos suportes de
comunicação, primam mais pelas paixões identitárias do que pela abertura de possibilidades
no campo das identificações. O campo horizontal das identificações é ocupado pela
abundância de imagens oferecidas pelos mais variados suportes midiáticos. Já o campo
vertical, paterno, ocupa o espaço da transmissão geracional de ideais e experiências. Esses
dois pólos das identificações, o campo vertical e horizontal, não se contrapõem, ao contrário,
complementam-se. Sobre esse tópico, há que se dizer que o campo das identificações
horizontais ocupa o espaço que é próprio do jogo democrático, em que pressupõe-se o
diálogo e o arranjo constante das relações de poder e da vida social. A função paterna,
localiza-se no eixo vertical e funciona como ponto de referência do campo horizontal. Ou
seja, a linha vertical consiste na organização de significantes mestres que sustentam a
transmissão da lei, possibilitando assim a expansão e a legitimação para toda expressão que o
campo horizontal venha comportar. Nas palavras de Kehl, "a vitalidade do eixo vertical
consiste na renovação permanente desses significantes em função das necessidades de grupos
sociais emergentes e dos deslocamentos que eles promovem nas instâncias de poder" (KEHL,
2015, p. 293).
92
A esfera pública não é mais organizada nem a partir do eixo vertical (do
líder político, moral ou religioso), nem a partir das práticas discursivas e dos
conflitos de interesses que caracterizam o campo horizontal, das alianças e
das negociações com o semelhante. Nas sociedades ditas "de consumo", a
esfera pública tem sido reduzida à dimensão do mercado. Mediatizada pelo
espetáculo, a vida social passou a ser organizada prioritariamente a partir da
circulação das imagens das mercadorias (KEHL, 2015, p. 293-294).
Sabemos que o desejo incestuoso, de voltar a fazer Um com o Outro, não precisaria
ser proibido, uma vez que a sua realização é impossível. O complexo de Édipo tem
por efeito transformar o impossível em proibido, o que não é tão irrelevante como
pode parecer. Uma impossibilidade que não se traduz através do imperativo
superegoico, muito mais inibidor do que se supõe: se você pode, você deve (KEHL,
2015, p. 295).
93
A agressividade constitutiva da primeira experiência de individuação do sujeito
deve ser transcendida com o apoio da identificação com as formas imaginárias que
representam o pai como instaurador da lei. A questão é que a norma que rege a vida
social tem sido parceira do mesmo fantasma que sustenta a agressividade: ao invés
de exigir dos indivíduos uma parcela de renúncia ao gozo como condição para
participar do laço, a norma contemporânea exige que ninguém renuncie a nada. A
fragilidade do imaginário que sustenta a função paterna inflama a fantasia de que a
vida social é uma selva sem lei. Os adolescentes estão convencidos de que só os
otários e os fracos recuam diante do excesso pulsional em consideração ao outro,
aos outros. Os restos infantis do "complexo de intrusão", que ativa a agressividade
do sujeito frente a qualquer estranho que invada seu campo narcísico, têm sido
fortemente convalidados pelas condições atuais da vida em sociedade. (KEHL,
2015, p. 250).
94
Figura 13: Post do 4chan sobre o atentado de Santa Catarina.
95
CAPÍTULO 3
96
representante dessa identidade, até porque não temos elementos para compreender o que se
passa com cada um deles.
É importante ressaltar que os rapazes que ficaram conhecidos nos Estados Unidos
devido aos massacres, eram brancos e pertenciam a uma classe social que possibilitou o
acesso deles ao ensino superior privado e bens de consumo de luxo, como o caso
anteriormente citado de Elliot Rodger. No Brasil, vale observar que os atentados que
ocorreram nos últimos anos foram em escolas públicas, nas periferias de grandes cidades
brasileiras. Como foi dito, não existe uma regra que defina exatamente o indivíduo incel; a
priori, a questão é o celibato. Entretanto, há muitas nuances nessa discussão, que faz com que
os próprios incels criem camadas e justificativas para endossar a situação vitimária. O
discurso incel afirma que ser um homem étnico é mais desvantajoso do que ser um homem
branco. No caso do recorte em questão, X é afrodescendente, o que ele considera uma
posição desvantajosa. De acordo com seu relato, a questão financeira é decisiva. Isto é, o
aspecto econômico se entrelaça com outros aspectos como a aparência física e a
personalidade para fomentar o discurso de inferioridade beta. Observo que X mantém um
discurso relativamente moderado nos vídeos, porém, em 2019, falava abertamente sobre a
possibilidade de cometer massacres.
Aqui a mulher aparece como uma mercadoria no bojo das expectativas de uma vida bem
sucedida.
● "A mulher tem mais condições de ser bancada pela família, pelo marido e pelo
Estado".
● "Mulheres não querem transar com homens que não tem dinheiro".
97
● "A economia está jogando os homens ao estado de betaincelismo".
● "Nunca foi tão bom ser beta, pois a vida não se resume à mulher".
● "Vamos responder uma pergunta que foi feita: será que você precisa de uma
namorada? é uma pergunta legítima, justa".
● "Ele fez o seguinte comentário: você deveria namorar, tentar arrumar uma mulher
feia, mesmo que seja nota 2, você sofre muito dessa falta de experiência, de ver os
outros e está traumatizado, tudo que você fala é verdade, mas na sua própria
experiência, você parece perdido na vida. Você, mais que os outros, precisa de uma
cuié (termo pejorativo para mulher). Você deveria tentar voltar à igreja, tentar crescer
na igreja, virar pastor e arrumar uma mulher pra você ou apenas ter uma experiência
de vida. Do jeito que você está, tão preocupado talvez o excesso de solidão esteja te
deixando desesperado".
● "Ta, primeiro um ponto que eu acho interessante: tome muito cuidado quando você vê
alguém falando que você precisa de uma mulher. Namorada não é remédio, uma
pessoa não pode ser um remédio pra alguma coisa, você não pode depositar em uma
pessoa seus problemas, se uma pessoa está com problemas você não indica pra ela
uma namorada você indica um psicólogo, até porque é aquilo que eu sempre digo: se
você tem um amigo que tá desempregado, sem emprego, sem mulher, você primeiro
cura ele, dá emprego, depois a mulher, tudo fora dessa ordem dá problema. Tudo na
sua vida tem seu tempo".
● "Será que uma pessoa precisa de uma pessoa como eu? Um relacionamento é uma via
de mão dupla, eu não gostei do tom do seu comentário. Me vejo na condição de ser
um namorado razoável? Não. Tem pessoas razoáveis querendo namorar comigo?
Também não".
● "A maior parte dos problemas da vida são classificados por dois fatores: falta de
98
dinheiro e relacionamento amoroso. Eu vejo que muitas mulheres acham que homens
são depósitos de problemas que vieram para solucionar os problemas delas".
● "Eu seria uma pessoa horrorosa, cara, um relacionamento são muitas demandas. Uma
pessoa que não te oferece nada, não oferece beleza, nada, por que eu vou entrar num
péssimo negócio? que eu só tenho que dar e não tenho nada oferecer? extrema
convicção que você acha que tem os elementos importantes, se você não encontra
isso, é melhor ficar solteiro. Quando eu vejo uma pessoa vivendo algo que eu não
vivi, do ponto de vista amoroso, profissional, depois de uma certa idade, você entende
que certas coisas já passaram, mas determinadas coisas você não vai conseguir pegar
de volta e você tem que aceitar, não deu pra viajar pra Disney, não deu pra viajar pra
fora, não deu pra conseguir comprar uma casa, um carro, mas eu sei que fiz a minha
parte, meu máximo, a culpa é do mundo? não, é minha e eu já me perdoei. Tanto que
eu continuo trabalhando para conseguir as coisas. Portas sempre abertas. Eu não
acredito que namorada seja remédio, namorada custa caro, do ponto de vista
emocional, financeiro, tempo, social Eu já sofri do ponto de vista social por ter sido
muito escanteado pelos amigos por não ter namoradas".
● "O problema é ser beta étnico; no mercado sexual, o beta branco está melhor".
● "Geração perdida".
● "O único prazer imediato do beta é o videogame, jogar videogame é mais divertido".
99
todas as engenhocas que o mercado oferece para compensar os sujeitos dessa expropriação do
que lhes é mais genuíno: a invenção singular de destinos da pulsão" (KEHL, 2015, p. 96). Há
que se dizer que a busca de X deflagra a contradição subjacente de seus próprios conflitos. A
dúvida sobre si, recai como certeza sobre as "mulheres" a quem ele refere-se, enquanto objeto
de desejo de certa libido masculina. O deslocamento do significante "mulher" para o centro
da cena capitalista, é validado como um mero item de consumo, diante da abundância de
ofertas de mercado.
Como um jogo em que o mais importante é ganhar, a busca pelo amor e a frustração
subsequente, assemelha-se à disputa por uma vaga de trabalho, num mercado cada vez mais
competitivo. A velocidade através da qual as imagens dos bens de consumo percorrem o
globo e apresentam-se aos espectadores/consumidores, traduz-se na voracidade da fala de X
nos vídeos, na rapidez das postagens dos fóruns, nas cenas dos videogames. Enquanto a
sociedade de consumo empurra para fora e para longe da vista os excluídos, o percurso
inverso é feito através da abundância de imagens ofertadas, que recobre de esperança a
consciência angustiada de quem não pertence ao sistema. Como disse X, "tem que correr
atrás do prejuízo, ganhar dinheiro". De acordo com Kehl, "embora poucos possuam recursos
para consumir os bens em oferta, as imagens que ocupam a esfera pública são acessíveis a
todos" (KEHL, 2015, p. 100).
Quando Lacan refere-se ao amor cortês como uma escolástica do amor infeliz,
predominante na organização sentimental do homem contemporâneo, pressupõe-se a
existência de uma articulação inconsciente que faz o rodeio prevalecer, no lugar do encontro
real, pois o objeto é sempre apresentado a partir da inacessibilidade. Em vez da exaltação da
mulher como ideal, como fizera o poeta cortês, na dinâmica beta, o trunfo é tratá-la como
objeto descartável, depreciado, um mero objeto de consumo, esvaziado de sua condição de
ser. Com Bloch (1991), vimos que o ardil da misoginia medieval consiste em ser um
dispositivo poético extremamente refinado. As obras do amor e o desejo do encontro amoroso
nas sociedades de corte definem-se pelo jogo da linguagem poética; no discurso beta, o
desejo amoroso é atravessado pela dimensão do mercado. Ambos os casos são marcados pela
misoginia.
100
O elenco de bens de consumo que compõem a lista de X, inclui viagens ao exterior e
uma namorada, que obviamente "custa caro". Segundo X, o mercado sexual equivale-se ao
mercado de trabalho; esses assuntos não são tratados separadamente. Lacan (2008) localizou
na misoginia medieval do amor cortês o cálculo neurótico inconsciente, o benefício psíquico
de uma operação cujo rodeio é feito em torno de uma mulher muito amada,
desesperadamente buscada. Não é que o objeto esteja interditado, é o sujeito que organiza a
interdição. Para dizer de outro modo, não é que a mulher falte, busca-se a falta. Aqui, a
mulher aparece como objeto de troca no plano das transações capitalistas.
● "O estado natural do ser humano é a pobreza, temos acesso a internet, a tanta coisa,
mas a desigualdade, muita coisa que a gente demanda: sexo, carro, viagens, não
vamos ter".
● "Você tem que querer, tem que trabalhar, eu vejo muita gente com discurso vitimista,
o sol não brilhou".
● "Eu tenho todos os problemas do mundo, joelho ruim, tô velho, problemas de saúde,
problemas mentais, glicose altíssima, mas não preciso chatear as pessoas com meus
problemas, ninguém tem nada a ver com meus problemas".
● "Quanto mais você desejar uma coisa, mais você vai se frustrar se não conseguir.
então até isso a gente tem que ter sabedoria, de desejar o que está dentro do nosso
controle".
● "Às vezes o cara não teve oportunidade nenhuma mas ele pode ir a algum lugar,
talvez seja o seu caso. Tem amigos nossos que não vão conseguir fazer faculdade,
pós-graduação, outros que vão fazer mestrado o caramba, o que interessa é o seguinte:
dar o máximo de si para ter um sucesso".
● "A gente tem que saber se especializar e dar o máximo de si. o mundo não é fácil, o
mundo é mau, ninguém disse que era bom. Jesus Cristo disse, ele falou, a única
101
certeza do mundo são as aflições, então, tenham bom ânimo".
● "Basta querer? não. Tem que querer? sim. Então é isso e até o próximo vida de beta".
● "Estou aqui no Rio de Janeiro, das ruas dessa cidade cheio de mendigos, com a maior
criminalidade, cidadão de bem trancado em casa enquanto as ruas estão entregues
para a marginalidade"
● "Então amigos hoje eu vou falar de um assunto que tem me apetecido bastante:
desemprego. muitos amigos betas estão desempregados, isso é um problema que está
me deixando preocupado. O cara que está desempregado, ele fica depressivo, se isola,
pq ele se isola? pq nem respeita desempregado. Jogam coisa na cara dele, chamam de
vagabundo, o cara vai lá, se isola e faz besteira. Por isso que é importante o Brasil
diminuir o número de desempregados".
● "To fazendo bico de designer, minha profissão praticamente não existe mais, agora
tudo é bico, não tem direito nenhum, o problema é o seguinte: tiraram os direitos e
diminuíram os salários".
● "Como alguém vai comprar uma casa? um carro? se casar em um ambiente como
esse? ou seja, o Brasil está em uma situação complicada, ninguém tem confiança no
futuro".
● "O que vocês devem a derrota? O que fracasso já ensinou a vocês, betas? Reparei um
fenômeno, pessoas estão mudando de religião, crenças, porque quando a pessoa fica
102
muito tempo desempregada, ela é obrigada a rever seus conceitos. Não só
desempregada, mas com emprego precarizado, cheio de exploração. O pessoal que diz
que não existe ne, subemprego, trabalho escravo, os betas sabem muito bem que não
só existe exploração como existe subemprego, considerando as circunstâncias de total
desesperança".
● "Então é isso amigos por mais que vocês não consigam seus sonhos seja um legado
para a sociedade. deixar alguma coisa q vai transcender a existência de vcs. tudo na
vida tem que ter significado e narrativa e de preferência narrativa de vitória".
● "Olá amigos, mais um vida de beta no ar, estou ao lado dos meus amigos do uber eats,
Rio de Janeiro virou um amontoado de entregadores de comida, eu não sei se
agradeço a Deus por existir esses serviços ou essa sensação é a prova que o país está
mal. As duas respostas estão corretas, não é nem se entregar a narrativa de esquerda
nem de direita, de fato o que está acontecendo é péssimo, serviços de baixa qualidade,
a pessoa faz 4 anos de faculdade de engenharia pra virar uber, é um grande
desperdício de recurso, um desperdício de cérebros".
De acordo com Kehl (2015, p. 295), "se o mercado é o grande organizador da vida
social, os valores excludentes da vida privada sobrepõem-se aos valores que organizam o
espaço público". A psicanalista realiza uma operação teórica a partir do fatalismo
melancólico benjaminiano, que considero valiosa para fomentar a análise em questão.
Quando recupera a história do teatro barroco, Walter Benjamin, em Origem do barroco
alemão (1925), mostra o caminho percorrido pelos "vencedores" e "perdedores" de ocasião, a
partir da relação entre o príncipe e o cortesão. Se no período Barroco, a prosperidade do
cortesão poderia se representar apenas pela comoção do monarca, a identificação afetiva com
os vencedores viu o fatalismo, a traição e a dependência como condições definidoras dos
"perdedores" da história. Em termos benjaminianos, no fatalismo melancólico, a ideia de
mundo vazio como adjacente à vida ganha ressonância na concepção do sentimento de que
"as ações humanas são privadas de todo valor" (BENJAMIN apud KEHL, 2015, p. 82).
103
fatalismo melancólico como uma das maneiras de interpretar os eventos da história. Se a vida
do cortesão é contrária à transformação, pois depende exclusivamente da ação do príncipe,
ela é a metáfora encontrada para representar o procedimento da identificação afetiva com os
poderosos, tão cara à mobilidade social do Estado moderno. De acordo com Kehl (2015),
essa identificação afetiva é expressão da traição, da dependência e do conformismo que essas
relações produzem.
104
Traição e fatalismo dizem respeito a uma modalidade de alienação, no duplo sentido
da palavra, em que o fascínio pelas formas imaginárias (semblant) do Outro
obscurece a dimensão do conflito. É o que ocorre na vida social nos casos em que
injustiças, desigualdade e exploração, que nos primórdios do capitalismo produziram
conflitos entre classes, ficam obscurecidos em função da atração exercida pelo
espetáculo do triunfo dos vencedores (KEHL, 2015, p. 89).
Evidente que não são todos os celibatários involuntários que estão desempregados,
porém, o que interessa aqui não é o recorte social, mas a própria condição do indivíduo,
considerando que o capitalismo é agenciado tanto pelas forças da exclusão como da
insatisfação. Nesse ponto, vale dizer que Elliot Rodger gravou o vídeo-manifesto sentado em
seu carro de luxo, antes de cometer o massacre na Califórnia. No recorte beta, tanto os signos
do "sucesso" e do "fracasso" financeiro acabam representando a ideia de mundo vazio, em
105
que o indivíduo tende sempre a negociar sua singularidade em troca da adesão servil à causa
do Outro.
106
CONSIDERAÇÕES FINAIS
107
O processo de composição dessa identidade serviu-se de uma série de "ferramentas"
para formular os anseios do grupo: a criação de uma miríade de fóruns, produção de memes,
circulação de imagens, o anonimato, discussões incessantes sobre gênero, e finalmente, os
atos de violência postos no plano da realidade. Esses acontecimentos são responsáveis pela
potência do efeito estético produzido em nome da identidade incel, tornando visível uma
narrativa que fala em nome da angústia da invisibilidade, do constrangimento do corpo físico,
dentre outras questões. Vale ressaltar que longe de ser uma composição já dada, bem
definida, a identidade incel se apresenta em fluxo.
Os motivos que me levaram a escolher esse caminho teórico, frente a tantos outros, é
que tanto no "Amor cortês", quanto no discurso incel, a busca desesperada pela mulher,
ganha a forma de alienação de si mesmo. A mulher, esse outro tão distante, com ares
desumanos, de algo que foi pensado e elaborado para se esquivar, para encontrar a falta. Pois
o cálculo neurótico pressupõe a busca pela falta. É de notar, portanto, a forte presença da
misoginia nas estruturas simbólicas da cultura, não importa qual seja a época ou expressão de
sua letra. Seja no cortejo das Damas, no plano das transações medievais, em que a mulher é
posta como ideal; ou no plano das transações capitalistas, no discurso vulgar da internet
anônima, em que a mulher é uma mercadoria descartável. Nessas ocasiões, as vias da
dimensão simbólica não desembocam no esclarecimento ou na melhor compreensão das
coisas. O desdobramento final é a alienação e a constatação amarga da infelicidade. A cultura
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é misógina e regras, expectativas e estereótipos têm sido reproduzidos para justificar
brutalidades contra grupos e indivíduos que não correspondem a um sistema de coerência e
continuidade histórica.
As relações das massas com um único Ideal, presentes nas análises de Freud,
especialmente em As Psicologias das massas e análise do eu, encarna o momento exato em
que a hierarquia entre o líder e o indivíduo atingiu seu apogeu no século XX. Esse evento
marca a passagem das identificações cuja base é hierárquica, à indústria do espetáculo, em
que as referências das imagens situam-se no plano das relações horizontais, o mesmo plano
em que estão os indivíduos. A relação do indivíduo com a corrente de imagens assume uma
dimensão específica por ocasião da ausência de intervalo entre a massa e o líder. Não há
delimitações de fronteiras, ausências ou distâncias. O indivíduo une-se à série ininterrupta de
referências, por meio de ofertas identitárias postas no campo horizontal, que não são
matizadas por nenhuma interdição. Na perspectiva de Adorno, o que pulula é a irrupção do
discurso indiferenciado da indústria, que se dedica a produção de ilusão. "Tais ofertas
imaginárias de pertencimento, extraem sua força agenciadora exatamente da paixão de
segurança identitária que leva o sujeito a negociar a singularidade de sua condição desejante
em troca da adesão servil à causa do Outro" (KEHL, 2015, p. 295).
Sendo assim, percebo que referências construídas nesses espaços online, passam a
expressar a subjetividade desses indivíduos diante da desvalorização da vida. Referências
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calcadas na misoginia e também no descompasso do indivíduo com aquilo que lhe é mais
íntimo. Considero que a cultura é misógina e o mal-estar de gênero presente no discurso
incel, encontra ressonância na lógica do espetáculo que intui o indivíduo de abrir mão de sua
via desejante.
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