Hotel Huanda

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Hotel Ruanda: os dilemas das intervenções humanitárias e a busca dos direitos humanos

através da arte
Hotel Rwanda: the dilemmas of humanitarian intervention and the human rights
searching through the art

Daniele Lovatte Maia1

RESUMO
O trabalho apresenta uma reflexão sobre o tema das intervenções humanitárias através da
Nesse sentido, procura mostrar a relação existente entre
direito e arte na construção da doutrina dos direitos humanos, ao criar um sentimento de
empatia entre o público e aquele que sofre. Para tanto, utiliza-se da teoria de empatia de Lynn
Hunt e do conceito de reconhecimento de Axel Honneth, além da análise de resoluções da
Organização das Nações Unidas (ONU). Tendo sempre como pano de fundo o genocídio
ocorrido em Ruanda em 1994, faz-se uma análise da legalidade e legitimidade das
intervenções por motivos humanitários e da possível parcialidade em sua aprovação pelo
Conselho de Segurança da ONU. Por fim, serão observadas as eventuais mudanças advindas
nesse cenário com a recente criação da doutrina da responsabilidade de proteger.
PALAVRAS-CHAVE: Direito e Arte; Direitos Humanos; Intervenções Humanitárias.

ABSTRACT
actual humanitarian intervention
problem. It intends to prove the relation existing between law and art in the construction of
human rights discourse, by generating a feeling of empathy between the public and the one

recognition theory, besides the analyses of United Nations resolutions. Always making a
reference with the genocide in Rwanda (1994), it does an analysis of the legality and
legitimacy of the interventions made by humanitarian means and the possible partiality that
might have its authorization by the United Nations Security Council. In the end, the work will
observe the possible changes in this scenario with the recent creation of the responsibility to
protect doctrine.
KEYWORDS: Law and Art; Human Rights; Humanitarian Intervention.

1
Advogada, graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Mestranda pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro, membro do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ.
1. Introdução
O objetivo do presente trabalho é mostrar como a arte pode influenciar direta, ou
indiretamente, no desenvolvimento atual da doutrina dos direitos humanos. Buscando
produzir uma reflexão acerca do tema das intervenções humanitárias, é feita uma analise do
f genocídio ocorrido em Ruanda em 1994.
Para tanto, será utilizado o método de pesquisa qualitativo, com análise e raciocínio
indutivo dos institutos e conceitos do direito internacional, através do procedimento técnico
de levantamento bibliográfico e levantamento de documentos oficiais (principalmente
resoluções) das Nações Unidas. Nesse sentido, será mostrado como a política e a economia
influenciam de forma direta na aprovação, ou não, de intervenções por razões humanitárias
pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas; e como a arte pode auxiliar a população na
tomada de consciência da importância do tema das intervenções humanitárias.
A legalidade e a legitimidade dessas intervenções, assim como o direito ou o dever
da comunidade internacional de intervir em um país soberano por força de graves e massivas
violações de direitos humanos serão abordadas tendo sempre como pano de fundo o caso de
Ruanda. Além disso, será mostrado como esse debate evoluiu até a criação da doutrina da
responsabilidade de proteger.
A ligação entre direito e arte é extremamente forte, ao contrário do que muitos
possam pensar. Através da arte, o público passa a ter contato com uma realidade diferente da
realidade concreta, pois passa a identificar-se com ela de maneira quase que inexplicável.
Assim, a escolha de trabalhar as intervenções humanitárias através da análise de um
filme se deu em uma tentativa de mostrar que o tema é muito mais próximo da realidade
diária de cada cidadão do que a princípio se possa imaginar. Ao assistir uma reportagem
televisiva sobre uma guerra civil que acontece nesse exato momento, em algum país distante,
talvez a postura do leitor deste artigo possa ser diferente. Diferente a ponto de poder o leitor
reconhecer que aquele que sofre é um sujeito de direitos como ele, e que, portanto, é
necessário que algo seja feito para impedir ou cessar esse sofrimento.

2. Entendendo Ruanda
Antes de ingressar no debate sobre o genocídio ocorrido em 1994, faz-se necessária
uma breve explicação sobre a organização política do país, desde a colonização belga até sua
independência em 1962.
A rivalidade entre hutus e tutsi é antiga e já dava sinais de sua existência desde o
processo de colonização. A minoria da população pertencente à etnia tutsi sempre foi
privilegiada pelos colonizadores, que exaltavam sua superioridade em relação aos da etnia
hutu e reservavam para eles os melhores postos da administração colonial (MINAYO, 2008,
61).
Em 1959, após anos de opressão, os hutus deflagraram a cham

massacre contra a população tutsi, provocando um enorme fluxo de refugiados para os países
vizinhos. O objetivo da revolução foi atingido e os tutsis passaram décadas tentando retornar
ao poder (MINAYO, 2008, 61).
Em 1990, o Frente Patriótico Ruandês (FPR), formado principalmente por civis tutsis
refugiados em Uganda e impedidos de retornar a seu país, invadiram Ruanda de forma
inesperada. A invasão representou uma ameaça tão séria ao país que obrigou o governo a
requerer ajuda militar à França e Bélgica. Com a ajuda externa, o governo Ruandês conseguiu
conter os opositores tutsi. O episódio terminou com o primeiro acordo de cessar fogo entre o
governo e a FPR.
De outubro de 1990, até agosto de 1993, o governo de Ruanda travou uma guerra
civil contra o FPR, que culminou com a assinatura de um Acordo de Paz em Arusha,
Tanzânia. Através da Resolução 846, de junho de 1993, a ONU criou a ONOMUR, uma
missão de observação da paz na fronteira entre Ruanda e Uganda (ORTH, 1997).
Além disso, através do capítulo IV da Carta da ONU (referente à manutenção da
paz), a instituição criou a UNAMIR, que consistia em uma missão de assistência das Nações
Unidas em Ruanda (ONU, 1993, S/RES/872). Seu mandato, inicialmente de seis meses, se
resumia a supervisionar a observância do Acordo de Paz de Arusha, proporcionando um
ambiente seguro para que fosse posto em prática.
O clima de paz durou pouco. Com a derrubada de um avião que levava o presidente
de Ruanda e consequentemente com sua morte, teve início o massacre, que mais tarde seria
reconhecido pelo Secretário Geral das Nações Unidas como um verdadeiro genocídio da
população tutsi (ONU, 1999, S/1999/12157).
Diante desse cenário, ao invés de reforçar a ajuda humanitária, o Conselho de
Segurança da ONU aprovou a Resolução 912 (ONU, 1994, S/RES/912), na qual friamente e
por força do que havia recomendado o Secretário Geral da instituição, decidia reduzir o
número de soldados em Ruanda, disponíveis por força da UNAMIR.
Dado o agravamento da situação no país, e por nova recomendação do Secretário
Geral, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução 918 (ONU, 1994, S/RES/918), agora
com base no capítulo VII da Carta (referente à ameaça a paz e a segurança internacional). A
resolução autorizou o envio imediato de soldados a Ruanda, e impôs um embargo de armas e
materiais ao país. No entanto, esse aparato militar somente chegou em outubro de 1994,
quando quase um milhão de civis já haviam sido assassinados (MINAYO, 2008, p. 63).
Com a demora no envio das tropas de paz pelas Nações Unidas, o Conselho de
Segurança aprovou ainda a Resolução 929 (ONU, 1994, S/RES/929), na qual autorizava que
uma força militar Francesa fizesse uso de todos os meios necessários, inclusive militares, para
alcançar seus objetivos humanitários.
De acordo com a ONU, de 6 de abril de 1994, até o fim de julho do mesmo ano,
foram mortos aproximadamente 800 mil pessoas em Ruanda, especialmente mulheres e
crianças, na tentativa de inibir a continuação da etnia tutsi. Assassinatos em massa, estupro e
outras muitas violações de direitos humanos foram cometidos por extremistas hutus ligados
de forma direta ou indireta ao governo. Ao fim da primeira semana de conflito, EUA, França
e Bélgica já haviam fechados suas embaixadas no país (HOLMES, 2011, p. 177).
Apesar de o episódio ter sido posteriormente reconhecido pela comunidade
internacional como o primeiro ato inequívoco de genocídio desde o holocausto (HEINZE,
2007, p. 359), os acontecimentos em Ruanda eram comumente tratados pela mídia
internacional e pelas grandes potências como meros atos de genocídio, ou como uma guerra
civil decorrente de conflitos étnicos, evitando-se ao máximo o uso da palavra genocídio.
A Convenção da ONU para a prevenção e a repressão do crime de genocídio dispõe
que este resta caracterizado quando atos são praticados com o intuito de eliminar membros de
um grupo específico, no todo ou em parte, tendo esse grupo a mesma origem nacional, étnica,
racial ou religiosa2.
Estipula a ONU que os Estados signatários da referida Convenção têm o dever legal
de adotar as medidas necessárias para impedir a ocorrência de genocídio (HOLMES, 2011, p.
178). Assim, a utilização dessa palavra, por ser extremamente forte e impactante, traz consigo
além da obrigação legal, uma obrigação moral dos Estados de atuar para impedir a
continuação do massacre (HEINZE, 2007, p. 359).
Além de não restarem dúvidas de que o massacre da população civil tutsi foi um caso

2
ONU. Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948, art. 2°: Na presente
Convenção, entende-se por genocídio os atos abaixo indicados, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou
em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: a) Assassinato de membros do grupo; b)
Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo; c) Submissão deliberada do grupo a
condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial; d) Medidas destinadas a impedir
os nascimentos no seio do grupo; e) Transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo.
típico de genocídio, igualmente não há dúvidas de que o descaso da comunidade internacional
quanto a Ruanda foi somente mais um exemplo das questões políticas e econômicas que estão
por traz da seletividade da autorização de intervenções humanitárias pelo Conselho de
Segurança da ONU.
A demora da comunidade internacional em responder a um conflito que já vinha
sinalizando sua explosão há anos fez com que uma população fosse praticamente dizimada.
Nas palavras do Secretário Geral da ONU à época Broutos Ghali, todos devemos reconhecer
que falhamos em nossa responsabilidade quanto a Ruanda e fomos coniventes com a
continuação de perdas humanas. Nossas ações foram inadequadas e deploráveis,
demonstrando uma ausência de vontade política em relação ao incidente (ONU, 1994,
S/1994/640).
Infelizmente, a atuação da comunidade internacional para impedir o genocídio em
Ruanda foi ineficaz e tardia. Tal fato enseja diversos questionamentos sobre a maneira como
são autorizadas as intervenções humanitárias pelo Conselho de Segurança da ONU. Por que a
demora em enviar ajuda ao país, se já havia sido comprovado que Ruanda vivia uma situação
de massivas e sistemáticas violações de direitos humanos? Apenas alguns anos antes, durante
a Guerra do Golfo de 1991, o Conselho de Segurança aprovara uma intervenção militar no
Kuait, tendo a sua frente os Estados Unidos. Qual era a diferença entre o conflito vivido em
Ruanda e àquele vivido no Kuait? Certamente a ausência de vontade política mencionada pelo
Secretário Geral se referia a interesses políticos e econômicos existentes, ou não, em Ruanda
e no Kuait.

3. A construção da empatia através da arte


O Filme "Hotel Ruanda" retrata a história real de Paul Rusesabagina, de etnia hutu,
gerente bem sucedido de um hotel belga de luxo na cidade de Kigali, capital de Ruanda.
Casado com uma mulher de etnia tutsi, e sem saber como proceder para salvar sua família
durante o genocídio de 1994, acaba por transformar o Hotel des Mille Collines em um
verdadeiro campo de refugiados.
Diante do precário e quase ausente auxílio da ONU, Paul é obrigado a subornar
militantes rebeldes em troca de comida e relativa proteção. Ao final do conflito, Paul
consegue salvar sua família, juntamente com centenas de civis tutsi que estavam sendo
chacinados nas ruas de Ruanda.
Inegavelmente, a obra causa grande comoção àqueles que a assistem. Ao final, é
possível perceber no público uma mistura de emoção, revolta, tristeza e questionamentos.
Como a comunidade internacional assistiu passivamente ao massacre? Como evitar que novos
episódios similares ocorram?
Durante o desenrolar da trama, é feita uma aproximação do público com a família de
Paul, sua esposa Tatiana e seus três filhos. Essa aproximação, essa identificação
extremamente intensa com os personagens (uma família normal, pai, mãe, filhos, possuidores
uma casa confortável e uma vida tranquila), faz com que o público seja capaz de sentir pelos
personagens uma empatia que vai além das fronteiras de classe, sexo e origem étnica.
Segundo Lynn Hunt (HUNT, 2009, p. 39), a capacidade de empatia é universal, pois
está ligada a uma capacidade biológica do cérebro humano de compreender a subjetividade
das outras pessoas, e ser capaz de imaginar que suas experiências interiores são semelhantes
às nossas. Essa empatia se desenvolve por meio de uma interação social, que se direciona para
além das fronteiras sociais tradicionais, fazendo com que o processo de identificação com o
personagem seja intensificado a tal ponto de torná-lo real e não fictício.
Vale aqui uma pausa para reflexão sobre o peso desta última frase. O telespectador,
através da empatia, identifica-se tanto com o personagem que o transforma,
momentaneamente, em uma pessoa real.
Ironicamente, a realidade pode se apresenta de forma oposta. Quase como se ela
fosse um dado fictício, como se ela não fosse uma verdade, um fato concreto.
De modo a sustentar o debate, segue aqui um diálogo, livremente traduzido, entre
Paul e um jornalista estrangeiro que estava hospedado no Hotel des Mille Collines:

O jornalista entra em seu quarto eufórico com as imagens


chocantes que havia acabado de filmar nas ruas da cidade, de
rebeldes hutus assassinando dezenas civis tutsi à sangue frio. De
imediato coloca as imagens na televisão, sem saber que Paul estava
no quarto consertando o ar condicionado. Os dois assistem à cena
sem acreditar no que veem. Quando se dá conta da presença de
Paul, o jornalista se desculpa:
- Não sabia que estava aqui, sinto muito por ter visto essas
imagens.
- Não precisa se desculpar, fico feliz que esteja aqui, e que
mostre para o mundo a realidade do que está acontecendo. Só assim
conseguiremos uma ajuda internacional.
- E se essa ajuda não vier Paul? Ainda sim gostaria de mostrar
para o mundo essa barbárie?
- Como alguém pode ver essas imagens e não mandar ajuda?
- Infelizmente Paul, quando as pessoas virem essas imagens vão
,
jantar.

Paradoxalmente, a realidade pode apresentar-se como mera ficção, enquanto a ficção


costuma chocar de tal forma o ouvinte que acaba por transformá-la em realidade. Através de
uma obra, um romance, um filme, o outro pode com mais clareza ser percebido como dotado
de individualidade, como portador de direitos. Nesse sentido, o espectador é envolto por uma
busca pelo bem, pela atitude correta e, quando confrontado com injustiças, expressa uma
aversão que nem ele mesmo consegue explicar (HUNT, 2009, p. 56).
A arte, portanto, auxiliou no processo de identificação humana, ou seja, as pessoas
aprenderam a pensar no outro como seus iguais, como seus semelhantes. É nesse limiar que se
tornou possível florescer a doutrina dos direitos humanos (HUNT, 2009, p. 58), já que a arte
se desenvolve e explicita os eternos problemas da condição humana (MINDA, 1995, p. 158).
Como grande defensor da busca dos direitos humanos através do reconhecimento
social, Axel Honneth, divide sua teoria do reconhecimento em três diferentes esferas: o amor,
o direito e a eticidade (estima social ou solidariedade), as quais permitem os indivíduos
respeitarem-se mutuamente como sujeitos autônomos e individualizados (HONNETH, 2003,
p. 159).
O amor deve aqui ser entendido para além do seu caráter romântico, pois deve ser
empregado da forma mais neutra possível, abrangendo todas as relações primárias do
indivíduo, ou seja: familiares, amizades, autoconfiança, toda e qualquer relação que implique
fortes laços afetivos entre um número restrito de pessoas (HONNETH, 2003, p. 160). As
relações intersubjetivas geradas pelo reconhecimento através do amor implicam a aceitação de
uma identidade recíproca entre as partes envolvidas.
Já o reconhecimento pelo direito se dá através de uma evolução histórica, na qual se
consideram como universais os direitos dos membros de uma sociedade (HONNETH, 2003,
p. 181). Ao direito, e mais especificamente ao ordenamento jurídico, incumbe o poder de
generalização, ao elaborar enunciados imparciais e objetivos, que possam assegurar de forma
impessoal o desenvolvimento do indivíduo na sociedade ao longo de sua vida, frente a todas
as esferas de atuação.
Por fim, para que um cidadão possa verdadeiramente ser reconhecido com sujeito de
direitos, faz-se necessário que as três esferas de reconhecimento sejam respeitadas. Nesse
sentido, a terceira esfera de reconhecimento traduz-se em medida relativa de reputação social
verificada quando se cumpre, habitualmente, expectativas coletivas de comportamento
(HONNETH, 2003, p. 201).
A estima social deveria estar relacionada ao indivíduo dotado de singularidade. No
entanto, ela é dotada de uma forte auto-compreensão cultural (HONNETH, 2003, p. 203),
pois primeiramente ao reconhecimento individual, as relações de estima social estão sujeitas a
uma luta permanente na qual os diversos grupos procuram elevar, por meios de força
simbólica, o valor das capacidades associadas a sua forma de vida. Além disso, essas relações
estão indiretamente acopladas com padrões de distribuição de renda, já que os confrontos
econômicos constituem essa forma de luta por reconhecimento (HONNETH, 2003, p. 207-
208).
É nesse ínterim que a arte consegue quase que magicamente transformar a forma de
ver o outro. O público é envolto por um sentimento de estima social concebido em seu grau
máximo, já que intimamente se identifica com aqueles personagens, misturando-se a eles de
tal modo a não se verem mais como meros observadores da situação, mas sim como
verdadeiros participantes.
A relação de identidade e reconhecimento com os personagens é inegável. Aquele
não é mais o outro. Aquele que sofre é alguém como eu, aquele que sofre é verdadeiramente
um ser humano, portador dos mesmos direitos a mim assegurados.
Contudo, pode-se afirmar que essa é uma reação bastante diferente quando
comparada com o mesmo telespectador que ao invés de assistir a um filme, assiste a uma
reportagem jornalística sobre o mesmo conflito ocorrido em Ruanda. Não sem controvérsias,
a frieza e a rapidez com que uma reportagem televisiva é mostrada ao público dificulta esse
sentimento de identificação, fazendo com que aspectos culturais e de posição social fiquem
mais evidentes, e o outro, aquele que sofre, permaneça sendo o outro e jamais eu mesmo ou
alguém pertencente ao meu ciclo social.
Como afirma Zizek (ZIZEK, 2005, p. 17), o outro só é acolhido na medida em que
sua presença não incomode, na medida em que não seja, na verdade, o outro. Nesta realidade
invertida, o sentimento de empatia proporcionado pela arte é substituído por um sentimento
de distância provocado pela reportagem televisiva. Dentro da lógica da sociedade capitalista
avançada o meu sentimento de tolerância para com o outro significa que não devo chegar
muito perto daquele que se encontra em uma situação de vulnerabilidade, não devo me
introduzir em seu espaço, para que, em suma, ele não se introduza no meu.
Uma pesquisa realizada a respeito de reportagens jornalísticas sobre o genocídio
ocorrido em Ruanda mostra que o famoso programa de televisão inglês Newsnight, durante os
primeiros nove dias de conflito, somente dedicou 2 minutos e 50 segundos de sua
programação ao episódio (HOLMES, 2011, p. 178).
Essa revelação demonstra que tanto a política e a economia, como a mídia
internacional influenciam de forma direta no crescimento ou não do sentimento de empatia de
uma população para com a outra. A falta de informação também contribui para a dificuldade
no crescimento da empatia acima referida. Aquele povo que sofre passa a ser visto como algo
distante, tão distante que talvez não necessite verdadeiramente de ajuda, ou caso necessite,
essa ajuda externa nada, ou pouco, possa fazer para acabar com o conflito. Um conflito que de
fato não pertence a mim, a minha família ou ao meu país, mas sim ao outro.
Essa influencia é sentida ainda quando se pensa na possível parcialidade com que são
aprovadas as intervenções humanitárias pelo Conselho de Segurança da ONU. Nesse sentido,
deve-se questionar: a comunidade internacional possui o direito ou o dever de intervir em
situações de graves e massivas violações de direitos humanos? O que define a legalidade e a
legitimidade de uma intervenção por razões humanitárias?

4. Os dilemas das intervenções humanitárias


O tema das intervenções humanitárias é bastante debatido e controverso dentro das
relações internacionais, seja por conta do princípio da não intervenção diretamente
vinculado à soberania estatal, seja pelo princípio da abstenção do uso da força nas relações
internacionais, ambos previstos na Carta da ONU3.
Quanto à definição de intervenções humanitárias, Holzgrefe afirma que o instituto se
traduz (HOLZGREFE, 2003, p. 18):
na ameaça ou o uso da força sobre um Estado nacional, por outro
Estado ou grupo de Estados no intuito de prevenir ou acabar com
graves violações aos direitos fundamentais de seus cidadãos, sem
que tenha havido prévia permissão do Estado onde a intervenção
ocorrerá.

Muito embora seja grande sua contribuição sobre o tema, urge salientar que não
existe definição pacífica do instituto, seja em sede doutrinária, seja em sede jurisprudencial
(entendendo-se aqui jurisprudencial como resoluções e sentenças de órgãos internacionais
como a ONU e a Corte Internacional de Justiça).

3
ONU. Art. 2°, §4 e § 7 da Carta.
Desse modo, a parte final da definição acima colacionada merece especial crítica. A
ausência de permissão do Estado não pode ser utilizada como parâmetro para se afirmar se
houve ou não intervenção humanitária. Isso porque esta tem lugar quando ocorre o colapso de
um Estado pela ausência de um de seus elementos, notadamente o governo efetivo,
deslegitimando o poder do governo estatal e rompendo com os valores daquela sociedade.
Assim, o Estado gradualmente perde sua capacidade de normal exercício do poder, que é
seguida pela ausência de representantes válidos e, por último, pela sua desintegração através
de uma catástrofe humanitária. Assim, pode-se afirmar que ocorre
do Estado em questão (SASSÒLI, 1999, p. 482-492).
Destarte, essa inexistência de regulamentação internacional, ou seja, de um tratado
ou convenção que defina seus limites e objetivos é o grande impasse do instituto das
intervenções ditas humanitárias. Dada essa ausência, não há como se exigir dos Estados seja
do Estado que supostamente está ferindo os direitos humanos de sua população, seja do
Estado ou organismo internacional que supostamente está tentando eliminar ou minimizar
esse sofrimento o respeito a determinados princípios ou padrões de conduta.
A Carta da ONU atribui a Conselho de Segurança o poder de autorizar ou não
intervenções militares caso haja algum tipo de ameaça à paz e a segurança internacional 4.
Assim, a este incumbe a responsabilidade de decidir sobre a manutenção da ordem
internacional, e a possibilidade de autorizar o uso da força por razões humanitárias
(WHEELER, 2001, p. 561).
O problema surge quando, a exemplo de Ruanda, o Conselho de Segurança se mostra
ineficaz diante de claras violações de direitos humanos e da real necessidade de ajuda
internacional.
Inicialmente, parece muito ingênuo acreditar que as intervenções humanitárias são
despidas da total ausência de interesses alheios, se concentrando unicamente na proteção dos
direitos humanos (MINAYO, 2008, p. 28). Por outro lado, essa informação pode
erroneamente sugerir que o grande problema das intervenções humanitárias é o perigo de os
países ricos se aproveitarem de situações calamitosas para adquirir o controle sobre a
soberania de países pobres, quando na verdade o problema maior parece ser o oposto, é a
ausência de intervenções humanitárias que deve preocupar (WEISS, 2004, p. 141).
Durante a Guerra Fria, o Conselho de Segurança se mostrou com uma tendência à
passividade frente às violações de direitos humanos cometidas dentro dos Estados, sugerindo

4
ONU. Art. 39 da carta.
que o problema sujeitava-se à jurisdição interna de cada país (WEISS, 2004, p. 141). Esse
quadro se deu principalmente em função do uso do veto pelas potências Estados Unidos e
União Soviética, cujo interesse primordial era atingir seus objetivos políticos na esfera
internacional (MINAYO, 2008, p. 26).
Tal fato ensejou uma postura mais ativa da Assembleia Geral que, através da
Resolução 377A - Resolução União Pro Paz (ONU, 1950, Res 377A), decidiu que se o
Conselho de Segurança, por falta de unanimidade entre seus membros, deixa de cumprir com
seu dever de manter a paz e a segurança internacional, a Assembleia Geral deverá manifestar-
se imediatamente sobre o assunto. Assim, procurou mostrar a necessidade de proteção dos
direitos humanos no mundo, alertando para a possibilidade de um eventual uso de força
militar caso necessário para manter a paz e a segurança mundial.
Contudo, a Resolução 377A não conseguiu modificar a realidade. Para o Conselho
de Segurança, uma intervenção unilateral efetivada sem a sua autorização faz com que ela seja
considerada ilegal (MINAYO, 2008, p. 36, 40 e 43).
No entanto, entende-se que o veto injustificado ao pedido de intervenções
humanitárias ofende as regras e princípios de direito internacional, desrespeitando tanto
àqueles países com intenção de ajudar quanto à população que está sofrendo pela crise
(MACKLEM, 2008, 379). Para exercer o direito de veto, o país deveria suscitar pontos como
a proporcionalidade, a contemporaneidade da intervenção, a possibilidade ou não de sucesso,
a existência de meios alternativos ao uso da força, e não simplesmente afirmar que o assunto
se encontra dentro da jurisdição interna do Estado em questão (MACKLEM, 2008, 379).
Ao abordar o tema, Antônio Cassesse, enumera algumas condições para que uma
intervenção humanitária seja legal ainda que sem a autorização do Conselho de Segurança,
quais sejam (CASSESSE, 1999, p. 27): i) existência de violações de direitos humanos
atribuídas a um Estado soberano; ii) que esse Estado tenha se negado a cumprir as
recomendações das Nações Unidas ou outros organismos internacionais; iii) que esteja o
Conselho de Segurança impossibilitado de atuar em função do direito de veto de um ou
alguns dos seus membros; iv) que todos os meios pacíficos compatíveis com a urgência da
situação já tenham sido adotados; v) que não haja oposição da maioria dos Estados
membros das Nações Unidas; vi) o uso da força armada deva destinar-se unicamente a pôr fim
às atrocidades e reestabelecer o respeito aos direitos humanos, e não a nenhum outro objetivo
alheio a essa finalidade.
Apesar da grande contribuição que o referido autor trouxe para o tema, é preciso
reconhecer que existem poucos, ou nenhum caso que possa ser apontado como tendo a
intervenção sido efetuada unicamente para a proteção dos direitos humanos (WHEELER,
2001, p. 560). Os aspectos políticos e econômicos existem e influenciam diretamente a
tomada de decisões, precisando, portanto, serem levados em consideração.
Ruanda, por exemplo, é um país africano com pequena extensão territorial e poucos
recursos naturais. Sua economia é baseada principalmente na agricultura de subsistência
praticada por trabalhadores rurais locais. Além disso, café e chá são suas principais culturas
de exploração (RUANDA, 2011). Com essa breve definição, não é difícil imaginar o motivo
da ausência de interesse internacional em intervir no país.
Muito diferente era situação do Kuait durante a Guerra do Golfo de 1991. Desde uma
perspectiva puramente técnico jurídica, a autorização para intervenção no Iraque não estava
baseada a um direito ou um dever de impedir violações sistemáticas de direitos humanos, mas
sim a constatação de que aquele conflito representava uma ameaça à paz e a segurança
internacional da região (ALVES, 2002, p. 53). Seu foco, portanto, não era a proteção da
pessoa humana, do cidadão, ameaçada pelo governo de seu próprio país. Segundo Danilo
Zolo, a Guerra do Golfo foi uma verdadeira oportunidade para os Estados Unidos mostrarem
ao mundo o novo cenário político-econômico que o regularia após a bipolaridade da Guerra
Fria (ZOLO, 1997, p. 24-28), não possuindo, verdadeiramente, nenhuma conexão com a
proteção internacional dos direitos humanos.
Logo, dada a ausência de interesses políticos e econômicos das grandes potências em
intervir em Ruanda, outro debate vem à tona. Diante de graves e massivas violações de
direitos humanos cometidas por um Estado nacional em face de seus cidadãos, tem a
comunidade internacional o direito ou o dever de intervir?
O direito de intervir é fortemente combatido, principalmente por aqueles países mais
fracos, e consequentemente mais propensos a sofrer uma intervenção militar. Como afirmado
acima, a inação do Conselho de Segurança durante a Guerra Fria, juntamente com o
movimento de descolonização iniciado em fins da década de 50 e início da década de 60, deu
ensejo a diversas intervenções unilaterais ao redor do globo - como exemplo podemos citar a
invasão da Índia em Bangladesh (1971), a invasão do Vietnã em Camboja (1978) e a invasão
da Tanzânia em Uganda (1979).
Em sua grande maioria, as intervenções não eram justificadas por motivos
humanitários, mas sim por motivos de segurança, legítima defesa, controle do enorme fluxo
de refugiados (MINAYO, 2008, p. 36, 40 e 43)...
Há uma corrente realista das relações internacionais que reconhece que a intervenção
militar unilateral para assegurar a paz sempre existiu, a ponto de já ser reconhecida como um
costume internacional. Nesse sentido, a criação das Nações Unidas somente teria ensejado um
debate sobre os seus limites, mas não sobre sua existência (HOLZGREFE, 2003, p. 45).
Já a corrente clássica, afirma que o direito de intervenção unilateral nunca foi um
costume internacional. Para tanto, lhe faltariam dois atributos básicos: a observância geral e
sua aceitação como norma internacional (HOLZGREFE, 2003, p. 46). Essa corrente parece
estar corroborada com a posição da Assembleia Geral da ONU, que é categórica ao afirmar
que nenhum Estado tem o direito de intervir direta ou indiretamente, por qualquer motivo, nos
assuntos internos ou externos de outro (ONU, 1965, Res. 2131). Assim sendo, não somente as
intervenções armadas, mas quaisquer outras formas de ingerência política ou econômica que
afetem a soberania de um país estariam vedadas.
Essa posição, contudo, vai de encontro ao novo conceito de soberania que vem
ganhando cada vez mais força na doutrina, o de que a soberania implicaria o respeito aos
direitos humanos. Por obvio que, em situações de normalidade, a jurisdição doméstica tem
maior facilidade de proteger os direitos fundamentais de seus cidadãos que a comunidade
internacional através da ONU. Todavia, o antigo conceito de soberania adotado com a Paz de
Westifália em 1648 (povo, território e governo efetivo), hoje, para a grande maioria, se soma
ao respeito aos direitos humanos (WEISS, 2004, p. 138).
Dentro dessa linha de pensamento, passou-se a entender que, mais que um direito ou
um dever de intervenção, possui a comunidade internacional a responsabilidade de proteger
aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade.
Através de um informe intitulado The Responsibility to Protect (2001), a Comissão
Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal5 (ICISS sigla em inglês), criada no
Canadá, introduziu uma nova forma de falar sobre intervenções humanitárias, deixando claro
que o foco do debate deve ser a proteção da pessoa humana, e não a segurança internacional.
Nesse sentido, a responsabilidade de proteger é a responsabilidade da comunidade
internacional de prevenir (identificando aspectos que possam gerar um possível conflito
humanitário), de reagir (de forma contemporânea e apropriada, por meios coercitivos e
intervenções militares em casos extremos), e de reconstruir (auxiliando o país após a
intervenção, para que possa se estruturar de forma responsável) (ICISS, 2001).
Desse modo, os defensores da responsabilidade de proteger advogam que o instituto
não se assemelha às intervenções humanitárias. Isso porque seu foco primordial é o de
prevenir situações de risco, através do auxílio aos países em crise, para que se estruturem com

5
International Commission on Intervention and State Sovereignty.
responsabilidade, por meio de instituições sérias, democráticas e comprometidas com a
proteção dos direitos humanos. Uma eventual intervenção militar seria, dessa forma, exceção
a ser efetivada como medida extrema e provisória. Ademais, a intervenção deve sempre ser
seguida da assistência à reconstrução do país, para que este venha, o mais breve possível, a
caminhar sozinho (CHENDLER, 2010, p. 161-166; EVANS, 2008, p. 283-298).
A Assembleia Geral da ONU, em 2005, durante a comemoração dos 60 anos da
instituição, reconheceu a existência da responsabilidade de proteger, transformando-a de um
conceito para um princípio das relações internacionais, que não subordinaria o direito de
intervenção à soberania dos Estados (CHENDLER, 2010, p. 128). Já em 2009, esse mesmo
órgão entendeu pela desnecessidade de se renegociar o significado desse princípio, e que
deveria concentrar os debates em torno das formas de implementação do que havia sido
decidido em 2005 (BELLAMY, 2010, p. 147).
Portanto, resta claro que o debate em tordo dos limites e parâmetros das intervenções
humanitárias está longe de seu fim. Os aspectos políticos e econômicos envolvendo o tema e
o papel do Conselho de Segurança da ONU precisam ser analisados com mais cautela, para
que o foco maior da discussão seja sempre a proteção da pessoa humana e a busca pela paz.

5. Conclusão

arte pode exercer um papel ímpar na construção da doutrina dos direitos humanos.
Ao desenvolver uma empatia do público com o personagem, o filme exemplifica
como o sentimento de identificação pode transformar a ficção em realidade, fazendo com que
aquele que o assiste deixe a posição de um mero observador e passe a ser participante. Com
essa inversão de papéis, foi possível perceber a facilidade com que o outro passa a ser
reconhecido como sujeito de direitos, assim como eu.
Mostrou-se ainda, como a ausência de informações e a frieza das reportagens
televisivas transmitidas pela mídia possuem o efeito quase que contrário ao da arte. Elas
colocam aquela situação de conflito como uma realidade extremamente distante do
telespectador, distanciando também o sentimento de empatia acima referido, e o poder de
reconhecer o outro como portador de direitos.
Através do exemplo de Ruanda, a pesquisa desenvolveu um debate sobre o papel das
intervenções humanitárias no mundo contemporâneo, e sobre o direito ou o dever da
comunidade internacional intervir diante de graves e massivas violações de direitos humanos.
Foi visto ainda, que intervenções efetuadas de forma unilateral são vistas com
grandes reservas pela comunidade internacional, além de serem consideradas ilegais pelo
Conselho de Segurança da ONU. Contudo, os membros deste mesmo Conselho, ao fazer uma
análise casuística da necessidade de intervenções, utilizam-se de seu poder de veto para
atingir objetivos econômicos e políticos.
Com o passar do tempo, o direito/dever de intervir foi, paulatinamente, transformado
em responsabilidade. A criação da doutrina da responsabilidade de proteger, em 2001, traz
muitas dúvidas sobre a fragilidade do instituto e a demasiada ambiguidade e abrangência do
conceito. No entanto, pode-se dizer que o maior questionamento em torno do tema é sobre se
a responsabilidade de proteger é somente uma nova nomenclatura ou é uma real mudança de
postura da comunidade internacional frente às violações de direitos humanos.
Portanto, depois deste trabalho, espera-se que o leitor possa estar mais atento ao tema
das intervenções humanitárias e, principalmente, ao sentimento de empatia e de
reconhecimento proporcionado pela arte, no intuito de não se esquecer de que aquele que
sofre é realmente um sujeito de direitos como ele próprio. Por outro lado, se esse novo
conceito de responsabilidade de proteger teria força para modificar novas Ruandas
ocorridas no século XXI, só o tempo irá responder. Mas certo é que, através da arte, a
população internacional pode, com maior facilidade, solidarizar-se com aquela outra
população, a que sofre. E, assim, pressionar os líderes da comunidade internacional, em
especial da ONU, a agir para evitar violações sistemáticas de direitos humanos e genocídios,
ainda que o Estado no qual ocorra o conflito não enseje interesses econômicos e políticos às
superpotências.

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