Humor, Língua e Discurso - Sírio Possenti

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 14

Copprngbs 2010 do Autor

resKTados 2
Iodos os direitos desta cdicãco
Fditora (ontexto Editora
Pinsk Lrda

Montagem de capa ediagaão


Gustavo S. Vilas Boas
Prepara;ão de rao:
Evandro Lisboa Freire
Re isão
Gabriela Trevisan

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Cámara Brasileira do Livro, SP. Brasil)
Possenti, Sírio
Humor, língua e discurso / Sirio Possenti. --
São Paulo : Contexto, 2010.

ISBN 978-85-7244-480-4

1. Análise dodiscurso 2. Ensaios 3. Humor


4. PiadasJ. Título.

10-05146 CDD-401.41
Indices paracatálogo sistemático:
1. Humor : Análises linguísticas 401.41
2. Piadas : Análises linguísticas 401.41

2010

EDITORA CONTEXTO
Diretor editorial: aime Pinsky
Rua Dr. José Flias, 520 Alto da Lapa
05083-030 - São Paulo
PABX: (|) 3832 5838

contextoeditoracontexto.com.br
www.editoracontexto.com.br
Humore acontecimento

Os estudos sobre textos humorísticos têm aumentado exponencialmente


nos últinmos anos, em diversos campos de pesquisa (estudos "culturais", His
tória. Sociologia, Psicanálise, Psicologia), e os estudos de linguagem não têm
sido indiferentes ao tema. Muitos trabalhos têm sido apresentados epublicados,
tendo sido realizados a partir de diferentes quadros teóricos. Talvez se possa
dizer que certos ingredientes dos "textos" humorísticos, pelas relações pecu
liares que mantêm com várias questões de ordem propriamente linguística, em
primeiro lugar, mas também pragmáticas, textuais, discursivas, cognitivase
históricas, têm chamado a atenção dos estudiosos para osdiversos gêneros do
campo. Tem sido percebido que se trata de corpus privilegiado para uma espécie
de teste'' de diversas teorias oude avaliação de práticas comoa da leitura.
Oobjetivo fundamental deste ensaio é relacionar diferentes quest×es
típicas dos textos humorísticos com conceitos históricos, em especial o de
acontecimento. Foucault (1972) definevários tipos de acontecimentode inte
resse da História, desde os visíveis e observáveis, que sãode curta ou mesmo
de curtissima duração (como um navio sendo carregado em um porto), até
os que devem ser reconstruídos pelos historiadores, que, em geral, não s·o
facilmente observáveis, por serem de longa duração (como oaumento da
expectativa de vida ou a manutenção de hábitos alimentares e de técnicas
agricolas em determinados períodos da história).
<Os "textos" humorísticos, embora, evidentemente, não sejam sempre
"referenciais", guardam algum tipo de relação (a ser explicitada, já que hu
mor não é Sociologianem História) com os diversos tipos de acontecimento.
Ascharges, por exemplo, são tipicamente relativas a fatos "do dia". Apenas
eventualmente, eraramente, têm como pano de fundo acontecimentosmenos
Instantâneos,como uma campanha eleitoral. Textos (piadas oucharges) ditos
de humor negro são produzidos em grande quantidade após acontecimentos
Humor e acontecimento

Os estudos sobre textos humorísticos tém aumentado exponencialmente


D05 ültimos anos. em diversos campos de pesquisa (estudos "culturais". His
töra. Sociologia. Psicanálise, Psicologia). eos estudos de linguagem não têm
sido ind1ferentes ao tema. Muitos trabalhos tém sido apresentados epublicados.
1endo sido realizados a partir de diferentes quadros teóricos. Talvez se possa
dizer que certos ingredientes dos "textos" humoristicos. pelas relações pecu
iares que Tmantém com várias questões de ordem propriamente linguistica, ern
Drimeiro lugar. mas ambém pragmáticas, textuais. discursivas, cognitivas e
h1storicas. tén charnado a atenção dos estudiosos para os diversos géneros do
carmpo Tem sido percebidoque se trata de corpus privilegiado para urma espécie
de teste de diversas teorias ou de avaliação de práticas como a da leitura.
oobjetivo fundamental deste ensaio é relacionar diferentes questões
iDIcas dos textos humorísticos com conceitos históricos. em especial o de
Comteinento Foucault (1972) define vários tipos de acontecimento de inte
resse da HIstóna. desde os visiveis e observáveis.que são de curta ou mesmo
de cunissim2 duração tcormo um navio sendo carregado em um porto). até
s quc dev ern ser recon struidos pelos historiadores. que. em geral. não são
'aciimente obscr. áveis. por serem de longa duração (como o aumento da
expectatisa de vida ou a manutenção de hábitOS alimentares e de técnicas
agr las ern deterninados periodos da históra.
(Ih textos" humoristicos. embora. evidentemente. não sejam sempre
28 Humor, lingua e discurso

breves, além de tipicamente classificáveis no rol das "desgraças (morte de


Ayrton Senna, ataque às Torres etc.). Outros tipos de textos humorísticos
recobrem espaços de média duração (um governo, um regime, otempo de
destaque de uma personalidade como um mandato governamental etc.).
Outros, por fim, parecem imemoriais, quase naturais, isto é, aparentemente
não s§orelacionados a acontecimentos, como piadas sobre corrupção politica,
sobre certas profissòes, sobre aspectos da sexualidade, ourelativos a questões
institucionais, como a infidelidade conjugal.
Este ensaio defende a tese de que hárelações determinadas entre lingua
gem e história, e que são essas relações que explicam osurgimento, a circulação
ea interpretação dos textos; com base nisso, tenta estabelecer algumas conexões
explícitas entre humor e acontecimentos. Basicamente, tenta mostrar que, por
um lado, quando os textos humorísticos surgem em torno de acontecimentos
"visíveis" que os fazem proliferar, sua interpretação depende, em boa medida,
de um saber bastante preciso relativo a tais acontecimentos; por outro lado,
outros tipos de textos humoristicos, que independem, para sua produção, de
tais acontecimentos, exigem, para sua interpretação, a mobilização de fatores
de outranatureza e outras ordens de memória, não relacionadas a aconteci
mentos de curta duração.
Além disso, os lugares de circulação de tais textos nãosâo indiferentes.
Por exemplo, as charges, sendo relativas a acontecimentos *visíveis", circulam
basicamente em jornais, noticiários da TV e programas de humor que incluam
piadas sobre os últimos acontecimentos. Já, para mencionar apenas outro
exemplo, as piadas da Playboy, publicadas na última página da revista, além
de versarem tipicamente sobre temas sexuais, referem-se a qualquer época
(ou no se referem a períodos especificáveis) e, assim, as cenas invocadas
sãoimemoriais (a traição, a falha de um homem em seu desempenho sexual,
uma relação patrão/secretária, a maior ou menor inteligência das loiras etc.).
Seus protagonistas não são personalidades individualizadas, mas tipos comuns
(um homem, uma mulher, uma pessoa casada, um professor, um executivo) e
recebem nomes "neutros" (Maria, José, p. ex., masnunca Ronaldo ou Lula).
Para sua interpretação, invocam uma memória relativa a costumes bastante
gerais. Em todos os casos, ou muitogeralmente, textos humoristicos supõem
que o leitor perceba algum jogo de linguagem (um duplo sentido, um deslo
camento etc.).
A noção de acontecimento é crucial para a Análise do Discurso. Em
primeiro lugar, por sua relação com aenunciação, que tem sido comumente
Humor e acontecimento 29

concebida como um acontecimentoque nào se repete (ao contrário do enun


ciado). Em segundo lugar, por sua relação com a história, campo para o qual
anoçào de acontecimento éuma espécie de
matéria-prima.
Pode-se caracterizar oacontecimento como o que foge àestrutura, ou
auma rede causal, ou auma origem. Em um sentido, eleé único (talvez
inesperado, embora emgeral se explique até facilmente a posteriori). Traços
dessa concepção podem ser encontrados em Ducrot (1984: 168), para quem
aenunciaçào

e oacontecimento constituído pelo aparecimento de um enunciado. A realiza


çào de um enunciadoéde fato um acontecimento histórico: é dada existência
aalguma coisa que nãoexistia antes de falar e que não existirámais depois.

Foucault (1968: 23) também o define por sua relação com a enunciação:

A supressãosistemática das unidades permite restituir ao enunciado sua sin


gularidade de acontecimento; nâo é mais considerado simplesmente como
manifestaçãoepisódica de uma significação mais profunda que ele; étratado
na sua iTUpção histórica; o que se tenta observar éa incisão que constitui sua
emergência.

A Análise do Discurso, no entanto, não concedeu ao acontecimento,


assim concebido, um lugar privilegiado. Preferis o repetível, o estrutural,
como oatestam quase todas as pesquisas, que privilegiam a identificação do
mesmo em um arquivo.Certamente, háuma inflexão importante emn Pêcheux
(1988: 56), que propõe não inscrever o acontecimento na estrutura, inflexão
que acompanha o abandono do sonho de que a Análise do Discurso fosse, na
esteirado marxismo como lido por Althusser, umaciência em sentido estrito,
oque implicava, de certo modo, queum discurso fosse concebido como sendo
acima de tudo repetível, idêntico asi mesmo. Mas Pêcheux alertaque essa
consideração do acontecimento não implica concebê-lo como um aerólito
miraculoso", istoé, como ocorrendo independentemente das redes de memória
edos trajetos sociais.
Anoçãode acontecimento lembra bem noçôes enunciativas como as de
Benveniste e de Ducrot (enunciação como acontecimento irrepetivel). Oque
nào deixa de ser, por umlado, notável, pOis absorve a hipótese de que algo ocor
re fora de uma estrutura, emboranão livremente. A interpretação que se fez des
ses autores privilegiou oaspecto "pessoal" ou circunstancial do acontecimento.
30 Numor, ingvo e discurso

Mas arerr mats produtivo para a Análise do


considerado segundo outros parâmetros. Discurs0 que o
Especialmenteacontecimento
lhgaràoda Analise do Discurso com a História. pela estreita
Outra concepçào de acontecimento é certamentemais
Anal1se do Discurs0. Foucault (1972) apresenta
outra concepçào. Em um texto de maneira relevante
para a
n-o se opòe àHistória. mas cujo projeto é mostrar que o exemplar
essa
tem
atirna que metodos "estruturais"` com ela uma relação específica, Foucault
permitem dar um sentido
estruturalismo
acontecimento (p. 290). Para fazer isso, a História novo à
teve que deixar noção de
que era: umadisciplina de ser 0
racas à qual a
burguesia mostrava que seu reino era
produto. ofruto de uma
lenta maturaço, e que, nessa apenas o resultado, o
justificado. já que vinha da medida, era
que. jáque esse reinado bruma dos tempos; a seguir, aburguesiaplenamente
-lo por uma nova vinha de temp0S
imemoriais, não era
mostrava
possível
direito de ocuparorevolução. Aburguesia
simultaneamente ameaçá
poder e
ascensão e a história era o conjurava as ameaças de uma justificava oseu
que nova revolução em
sado". A história se atribuía a Michelet chamava de
tarefa de tornar viva a ressurreição do pas
nacional. Essa evocação a esse papel da totalidade do passado
se quisermos separar as história devem
história do sistema ideológico em agora ser revisados
desenvolveu. Ela deve ser
das transformações das quaispreferencialmente
que ela nasceu e se
as compreendida como a
são efetivamente capazes. Asanálise
noções fundamentais da história,sociedades
tal duas
Sao mais o temp0 e o passado, mas a como ela é praticada atualmente, não
mudança e o acontecimento. (p. 286-7).
Para m0strar o que isso pode significar.
Celebre estudo os arquivos comerciais do portoFoucault
faz referência a um
de Sevilha durante o século
XVI (feito por Chaunu):

1udoo que se relaciona com a entrada e a saída dos navios, sua


Sua Carga, o preço de venda de suas mercadorias, sua
quantidade,
Onde vinham e para onde jam Sãotodos estes dados.nacional1dade,
o lugar de
mas estes são os unicOS
ados que constituem o objeto de estudo. Dito de outra forma, o objeto da
histórianão é mais dado por uma espécie de
categorização prévia en peioes
epocas, nações, continentes, formas de cultura... (p. 290)
Nãose trata mais, diz Foucault (1972), de decifrar
algumacosa como
desenvoVimentoda Espanha. Oobjeto da pesquisa histórica éagora estabelecer
Certo númerode relações. Em consequência,o historiador nào
interpreta uS
Humor e acontecimento 31

odocumento para
apreender por detrás uma espécie de realidade social ou
espiritual que se esConderia (p. 291). Tal estudo
"permite fazer emergir acon
1ecimentos quc, de outra forma, não teriam aparecido" (p. 291). Na História
tradicional. acrescenta, "considerava-se que os
acontecimentos eram o que era
conhecido, o que era visível, o que era identificável
do historiador era buscar sua diretamente, e o
causa e seu sentido, que estavam trabalho
mente escondidos. A História serial
permite
essencial
de acontecimentos, dos quais uns são fazer aparecer diversos estratos
visiveis, conhecidos até mesmo pelos
contemporaneos; mas, debaixo desses, háoutros acontecimentos, invisíveis,
imperceptiveis e que são de um tipo completamente diferente.
Foucault (1972) dá exemplos desses outros tipos de acontecimento: a
entrada easaidade um navio são
acontecimentos conhecidos e que se podem
reconstituir. Mas, por baixXo, háoutros, não percebidos
forma pelos contemporâneos, mas dos quais eles tinham exatamente da mesma
certa
como umaqueda ou um aumentode preços. E abaixo desses, ainda consciência,
ainversão de uma tendência, oponto a partir do
outros, como
qual uma curva econômica
que tinha sido crescente torna-se estável ou entra em declínio e que pode
não ser percebida pelos contemporâneos (p. 291-92). Os próprios economistas
não sabem, diz Foucault (1972: 292), se um ponto de detenção de
uma curva
econômica assinala uma grande inversão geral de uma tendência. [...] Cabeao
historiador descobrir esse estrato escondido de acontecimentos difusos, que
determinam, afinal, ahistória do mundo".
Foucault (1972) oferece outros exemplos: ocrescimento populacional,
ocrescimento da quantidade de proteinas absorvida pela população europeia
no século XIX, Crucialpara a saúde e a longevidade. Deles diz Foucault que
são fatos muito mais importantes do que uma mudança de Constituição ou de
uma passagem da monarquia àrepública (p. 292).
Na mesma direção, Lacouture (1978) fornece interessante formulação
sobrepor que o acontecimento,que fora matéria-prima da História positivista,
volta àcena em outras concepções, até mesmo na chamada nova História. A
razão fundamental desseretorno, segundo ele, é a exploso midiática. A pas
sagem de seu texto que melhor caracteriza sua concepçãosobre os diversos
tipos de acontecimentoe que, a meu ver, indica uma direção relevante para a
Análise do Discurso éa seguinte:

No acontecimento verdadeiro - Dien Bien Phu, Dallas, Bandung, volta de Gaulle


em 1958- aliam-se as forças de mudança eas potência da informaço. Ahistória
também segue outros caminhos, e a diminuiçâo do indice de natalidade do
32 4umer ingee iseore

we hines entre 1960 e 1970 pesará muite mass Os séCulos


titulares no Fhseu ou na Casa Branca vindouros do que
Mas o
erdadee a c scm fhteras na bIsCa de seus
obretdo, a operaçåo histórica
prexpara talez v Y as trulac des e aN atare
aconteCIment
anoharmontcOs,
de 220
de seuo
mead do sesk de um
Todas sa quc talvez ainda contarágenera
poco
se
dncco erá o francès
ern
na fraça da processe
ks ante na Inglaterra. e a democracta reesentativa. inventada tr¿s séc
de
ascensão de msistena sociopolitico haseado
mesme teryo na centralzação, na
industralhzação e na
tecnocracta
(p 213)
Retenhamos estas ultimas noçoes de
har o gac acontecimento
podenam signihcar para uma teona do
e tentemos mag.
fundamental dexara de set aqucle de que todos sediscurso. 0 acontec1mento
dào conta (a publicacã
de uma ohra um
manifesto, um
ed1torial. um programa de governo ete
eguinaraves &cntrada de um navio em um porto). Assm,
dera oomo acontecmentos
d1scurs1vos e nào apenas como poderiamos const
hOas cnuncaaçoes destes, Isto e. apenas como
discursos
reformulações
C estrutural1smo. o
feminismo, onacionalismo etc. Seria mais por exemplo.
fác1l ter claro
em quc medda certos dispositivos e
Cpor quc såo regidas pelas mesmas
práticas fazen parte das discurstVIdades
regras. Em suma, na esteira de Foucault
1 9 aAnaltsc do Discurso seria provocada a tratar de
drversas ordenscacxtrair d1ss0 as devidas acontecimentos de
Sca o casu do leminis mo. comoexemplo
consequências.
hipotético: e certo que algum
manitestoou congressO sobre o tema possaser um grande
aconteemento. cm
torn do qual sc urganZa um arquivo Mas há mais: por debaixo deste, ou d
seulad surgc por cxemplo. um discurso do corpo, da beleza, da sevualidade
do controlc da natal1dade da saude, e. ainda. da fidelidade. do di orco da
pçôcs cAuaI c lambem odas creches, do rabalho femunno. de aNsdi
sChual possU deinar de lcmbrar texlos de humor que lodos e nte
icnlos permilcm cm csperal o das chamadas pladas de loras
Sa a ontouicntos disc çrsios a rCspeto dos quals
et pot aliaiogta vquc Iou ault t)972) atina que se dccobre ics hs

COHscquenC las cquc otratamento dey cua Lonsiderar a diesdate to t


Cpor cohscqucth ia da mehorna Poderlanios assill llos convcns d u
ipos dc dutaçâu dilerentes (p y3) s cásus quc
como cCmpius veem- se clâraliente os
bem c descem). CIclos nais longus
Humor e acontecimento 33

seculares, de 80 a l50 anos e, finalmente, por baixo desses, as "inércias'",


tenomenos que atuam por séculos e séculos (como a tecnologia agricola na
Furopa. praticamente identiCa do século xvi a0 XIX). Pode-se encontrar algo
similar nas discursividades, desde que se opere com essas noções de aconte-
cimento. Mas, então, considerar a história deveria ser mais do que inserir um
acontecimento em uma série.
Essa noço plural de acontecimento permitiria romper,em
primeiro lugar,
com uma historia que procurasse em tudo0 sentido ou apenas sentidos do
mesmo tipoe"produzidos" pelos mesmos processos. Em segundo lugar, com a
relaçãodiscurso-enunciação como evento singular. Além disso, especialmente -
pelo menos, essa questão me interessa -, poderia permitir especificar mais
finamente os elementos que, em umn discurso, escapam de fato aos sujeitos e
aqueles dos quais eles têm conhecimento, conforme pertençam a uma ou a
outra camada ou duração, assim como ocorre com os diversos tipos de acon
tecimentos históricos. Se há tipos de acontecimentos históricos dos quais há
plena consciência e outrOS que a ela escapam, uma analogia com os aconte
cimentos discursivos poderia produzir novas questões para a concepção do
sujeito em Análise do Discurso -sua memória, sua "competência", a natureza
de sua atuação metaenunciativa edas antecipações etc. Talvez se chegasse a
deixar de lado os dogmas relativos àilusão do sujeito, pelo menos no que se
refere a certos tipos de acontecimento.
Sejam os seguintes fatos:
Duas datilógrafas falam do executivo que acaba de entrar na sua sala:
-Como ele se veste bem, não?
-E rápido!

Poderíamos nos perguntar sobre a relevância de as personagens serem


duas datilógrafas e um executivo. Aquestão óbvia é se a piada mudaria (pelo
menos suas condições de produção) se tratasse de digitadoras. Creio que
decidir sobre detalhes assim é irrelevante. Mas certamente são relevantes
todos os clementos que contribuem para que a existência de executivos e de
funcionárias de escritório, que funcionam como pano de fundo para supostas
relações extraconjugais. Ou seja, duas coisas são relevantes: a existência de
escritórios como oaqui sugerido e a suposta facilitação que eles criam para essa
modalidade de relacionamentos sexuais. Um bom teste é substituir datilógrafas
por digitadoras (ou telefonistas) e verificar se com isso a piada "se perde". E,
34 Humor, lingua e discurso

se esse for o caso, tentar veriticar cm que medida o


sC)a uma datilograta,. ou da sua relaçào profissional
funconament0 da piada. Em termos de Análise do desconheci
Com m ento do que
exccutivos, impede
perguntar-ve sesC trata de simples
desdobramentos dos Discurso, relevantc
seuais tanto fOra das regras nnatrimoniais quanto
dos discurs0s sobre práticas
apenasserviços
UC trata de um discurso
Como profissionais
de uma conOmia modena que
especitico. possível
d1reçào que as di ersas noçòcs de
comporta escritórios
acontecimento
de
"servi çconsequênci
os". E nessaa
a anal1sc Aqui. nào vou
considerar a necessária podem ser relevantes para
precisa ser dotado para dar-se sagacidade de
conta de que vestir-se que umn leitor
de sexo proibido.
provavelmente em locais n¯o rápido remete a cenas
(ou seja. para a possivel
alusão de que tal destinados
cutivo no proprio escritorio eque se datilógrafa fez sexo com esse
a tais
práticas
eve
serem surpreendidos). vestir rapido é
fundamental para n·o
Os três exemplos
(por Isso mesmo podemseguintes ilustram acontecimentos quase
ser objeto de charges instantâneos
e são
Oprimeiro remete ao
enforcamento de Saddam
publicados em jornais).
Hussein
no jomal Folha de S.
Pauloem 1°jan. 2007). O segundo (Anexo l, publicado
Correio Popular. de Campinas-SP, em 14
out. (publicado no jornal
2006), em um momento da cam
panha presidencial de 2006 e faz
mente denúncias que seriam
a referência aspectos do noticiáio,
a
especifica
"desviadas'" do presidente para
segundo escalão. e cujo efeitoé blindar Lula (Anexo 2). Nào personagens de
a cenografhadesses textos" (para vou discutir aqui
esse conceito, ver Maingueneau, 2008b)ou
as tecnicas humnoristicas, que não
vêm ao caso. Quero apenas chamar atençao
para olato de que tais peças de humor podem perder seu
por lazerem referéncia a efeito rap1damente.
acontecimentos datados, que,
Tmente desaparecer da 'memória" (em mais de um portanto, podem tacil
Ja aterCeira charge (Anexo 3) remete a
sentido).
um pouco semelhantes aOs que são
acontecimentos de outra ordem.
relevantes para a
Tenete acerto discurso sobre sexualidade ou sobre piada(). Por n ta
opapel da mulher e o
as relaçóes amorosas e sexuais. Acharve merece très
a) Jaimais serna publicada em jormal. consideraçoCs
n·o só pelo tema, Mits POTqUe
AEa que Se ralasse de um caso esDecifico Que tivesse vazado parl O
Caio. ein Suma, n£o éuma notícia oi pubicad:a ua revista Plrbo) bp
Ser interpretada como dizendorespeito a ceta fase da
C que a preocupaçko Com a bou for ha histórarecenle, tqu
fisica passou a s mj0rti
que e destacado éque fazer sexo
também seria uma forma de perdeiC
Humor e acontecimento 35

e háfontes que informam quantas calorias são perdidas em uma conjunçào


carmal..); c) pode ser interpretada como dizendorespeito a um periodo mais
longo e menos visivel - aquele em que os homens não se
preocupanm com
a satisfação sexual das parceiras, sendo a questão da boa forma fisica dos
homens apenas o pretexto para criar uma cenografia "boa para produzir
efeitos de humor.
Consideremos, agora a seguinte piada:
José (olhando para o berço):
-- Ele éforte e saudável. Pena que só vai
viver 33 anos.
Maria (suspirando):
- Mas, para um palestino. atéque não está mal.

Esse éum exemplo bastante interessante de como um texto humorístico


(mas o mesmose d com outros generos) funciona apartir da memória oudos
acontecimentos, tantopara sua produç£o quanto para sua interpretação. Essa
piada funciona apartir de dois tipos de acontecimento: um ocorrido hácerca
de 2000 anos (o nascimento de Cristo), outro, ainda em curso nos
tempos atu
ais (amorte de jovens palestinos nas guerras do Oriente Médio). Mas os dois
acontecimentos sào misturados o que nào poderia ocorrer num manual de
História, mas pode aparecer num texto humoristico: toma-se o nascimento
de Cristo como um pretexto para falar da expectativa de vida dos jovens
palestinos de hoje. Oque apiada espera do leitoréque. com base em alguns
indicios, como os nomes José e Mariae a afirmação de que omenino vai viver
apenas 33 anos, as personagens sejam identificadas: José. Maria e o menino
Jesus (que morreu aos 33 anos). E o comentáriode Maria que faz a ligação
daquele acontecimento como mundocontemporâneo: paraum palestino, até
que n§o está mal(hoje) viver 33 anos. Quem acompanha os noticiários sobre
oOriente Médioentende perfeitamente o comentário: o acontecimento - cuja
duraçào nào» instantânea - tem a ver com o fato de que palestinos lutam pela
COnstruçào de um Estado independente. em uma guerra de libertação, o que
tem levado muita gente à morte. inclusive jovens que cometem suicídio (os
homens bomba frequentemente são jovens). Apiada não toma partido. a não
ser talvez indiretamente. porque o comentário não é feito por estranhos. nem
ha queixa sobre o futuro da criança.
Vejamos uma piada cuja relação com um tempo politico especitico e
m41s oba
discurso
línguae
Humor,
36 fronteira
polonês e um tcheco se encontram na dos dois paises:
Umcachorroveiofazeraqui?
que você
O Evocê?
Comer um pouco.
- Ladrar um poucO.

mioda tem sentido se lembramos que a Polonia inicia um processa


Jaruzelskye do So
de transico, do fìm da submissão a URSS (e a epoca de
lidariedade), mas passa por um periodo de relat1va penúria econômica, com
Droblemas de abastecimento (as filas eram enormes, a falta de manteiga um
simbolo da crise), enquanto a situação econômica da Tchecoslováquia é menos
precária, mas o domíniosoviético continua.A ordem das falas dos cães induz o
sentido da piada: aliberdade vale mais que a comida(ou a censura épior que
a carestia). Creio que, para sociedades em que os valores democráticos sejam
efetivamente valorizados (pelo menos por quem não passa fome), a piada soaria
mal se a ordem das falas fosse outra, se o primeiro
cachorro a falar
liberdade eosegundo, comida. Ou seja: a piada (o acontecimento procurasse
se relaciona ao mesmo tenmpo com um discursivo)
período da história recente (crono
logicamente definível - às tantas da década de 1980) e a um
gico - no qual a liberdade pode ser um valor tempo ideolo
mais alto que a sobrevivência
fisica. Em tese, a piada éprodutiva, pode ser
Na verdade, este ensaio leva a uma adaptada a situações análogas.
Clusao é que é óbvio que a apreensão do efeito conclusão e a duas questões. A con
do ipo de
de humor depende crucialmente
acontecimento aue se trata e que 1Sso 0COITe coma
de
venograha. As duas questões são: a) em que medida as respectiVa
as apenas para aapreensão do efeito cenografias são cru
humoristico, Ou tambem o s§o as pe
riodizações ou os acontecimentos relevantes; e b) até que ponto as
discursivas (de longa, de média ou de curta duração) têm uma contraparte memórias
psicológica? Creio que, para ofuncionamento do discurso humoristico, ten-
tar
responder a
Opolítico ou oessas questões é mais crucial do que para outros Casos, como
científico,
já que se espera que unm texto
humoristico seja
instantarneamente interpretado.
Humor e acontecimento 37

Anexos

GeorgoW. BeshShow

Rápido, produção! Cadê omeu capuz?


Acharge expora ofato de que a execução de Soddom Hussein foi fotogratada por Um dos presentes (sem
Dermissão) edivulgoda pela midia. Aportir disso, "exogera-se tal eteito, como écaracteristico do humor.
U
que não signitico que se trata de uma invenção absoluta, porque atualmenteo acontecimento só é tal se
poSs0 pelo suo mediatizaçõo eespetocularizoção, fenômeno no qual av tem papel preponderonte.
BLINDE

se seque 0o gesto da
o : p e l eo.0enthe o expressoo hpi(0 QUe
N t t epoiovo o g0 inexistente, mas que serng de derivoda personogem (um bnnde
tent cpoithct como proteger desvior oS 0cUSa(0es "blindor ampregotio
pesanoger hojo umo ormodura coloboro Evdentemente, ofoto de
muito pora o produçoo desse eteto

eflurieille ieluie ttleipietar


ieloco0 efte atontes 0U
t Qut u sel estrurto o henhumo dos duds sud
iilelpielucoopUsse peko ideo de que
peso peideu) e consequetiid de sua utivIdode

Você também pode gostar