Corte e Costura Branca

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CORTE E COSTURA

MARINA DOS SANTOS FERREIRA


na falta de papel-seda

pegue uma folha

de papel sulfite

com um pincel espalhe

óleo de cozinha

sobre toda a superfície

deixe secando no varal

por alguns dias

a folha fica transparente

funciona

só não serve para molde


mas vó, qual foi a graça que ele fez?
Ela inventava histórias de boca e canções

Era uma vez um menino que vivia com seu pai numa vila de pescadores. Todos os dias, antes do
nascer do sol, o seu pai saía para pescar. O menino era feliz, mas ele foi crescendo e teve o
desejo de conhecer outros lugares. Quando chegou o momento certo, ele colocou a mochila nas
costas, se despediu de seu pai e disse que sairia para ver o mundo.

Ele viajou por muito, muito tempo. Passou por diferentes cidades, países, reinos, sempre há
reinos, até que, um dia, ao chegar num lugar desconhecido, sentou-se em um banco para
descansar. Ficou observando as pessoas e notou que havia algo de diferente. Interpelou uma
moça que passava por ali e lhe perguntou:

- moça, por que estão todos tão sérios nesse lugar?

- ora, você não sabe? – disse a moça – por causa da proibição do rei. Desde que a princesa foi
enfeitiçada e parou de sorrir, ninguém mais pode sorrir. A pena é a morte. Em compensação, o
rei lançou o desafio: quem conseguir fazer a princesa rir, receberá muitos tesouros e terá a mão
da princesa em casamento.

- oh – disse o rapaz – eu sei como fazer a princesa rir!

- muitos já tentaram – falava a moça – e falharam. Àqueles que falham, a pena também é a
morte. É muito arriscado!

Agitado, o rapaz se levantou, agradecendo à moça pela informação e determinado em seu plano.
Ele sabia como fazer a princesa sorrir. Só precisava do rabo de um rato.

Foi, então, à casa do rato e disse:

- Senhor Rato, o senhor me empresta o seu rabo para eu fazer uma graça para a princesa rir?

- Claro – disse o rato – mas, você terá que me dar algo em troca. Um queijo bem gostoso.

O rapaz foi então à casa do queijeiro e pediu:

- Senhor Queijeiro, o senhor me dá um pouco de queijo para eu levar para o rato, para ele me
emprestar o rabo para eu fazer uma graça para a princesa rir?

- Claro, eu certamente lhe daria, mas estou sem leite para fazer o queijo.

Foi então que o rapaz se dirigiu à vaca.

- Dona Vaca, a senhora poderia me arrumar um pouco de leite para eu levar para o queijeiro
para ele fazer o queijo para eu levar para o rato para ele me emprestar o rabo para eu fazer uma
graça para a princesa rir?

- Muuu – disse a vaca – eu lhe dou o leite, mas estou com fome e preciso muito de algum
capim.
O rapaz seguiu para a casa do fazendeiro e bateu na porta.

- Boa tarde, senhor Fazendeiro. O senhor poderia me arrumar um pouco de capim para eu levar
para a vaca para ela me dar um pouco de leite para eu entregar ao queijeiro para ele fazer queijo
para eu dar ao rato para que ele me empreste o rabo para eu fazer uma graça para a princesa rir?

- certamente – disse o fazendeiro – desde que você me ajude com uma questão. Minha esposa
está grávida e com muito desejo de comer peixe. Você poderia me ajudar a encontrar um peixe
para ela?

O rapaz, então, lembrou-se de seu pai, pensou no longo tempo que se passou desde que ele
havia partido para conhecer o mundo. Sentiu saudades e disse ao fazendeiro que não se
preocupasse, ele lhe traria o peixe.

Na mesma hora, retomou a estrada e fez toda a viagem de volta, passando por cidades, lugarejos
e reinos até chegar à pequena vila de pescadores onde morava seu pai.

Os dois se abraçaram longa e carinhosamente. O rapaz então contou tudo o que viu e revelou o
motivo de sua volta. O pai não perdeu tempo, na manhã seguinte, antes mesmo do sol nascer,
seguiu com seu barco mar adentro e realizou a pesca. Juntos, escolheram o melhor peixe para a
esposa do fazendeiro.

O rapaz fez toda a viagem de volta ao reino onde ninguém sorria e se dirigiu à casa do
fazendeiro, entregando-lhe o peixe. Ele então recebeu o capim, levou-o à vaca que lhe entregou
o leite que foi levado ao queijeiro que fez o queijo que foi levado ao rato que emprestou o rabo.

Com o rabo do rato em mãos, anunciou ao rei que faria uma graça para a princesa rir. Todos se
reuniram, ao mesmo tempo temerosos e ansiosos. Ele fez a graça, a princesa riu. E todos
viveram felizes para sempre.
Algumas são boas

quando jovem

teria um futuro

modista

ma ache cazzo

capisce?

capisco

as mulheres

de São Paulo

(não todas

algumas são boas)

falamos alto

porque

temos sangue

italiano

nas veias

tutti buona gente

ela diria
Uma mulher velha

rugas

pão caseiro

bolo

tricô

crochê

plantas

xale

chá de capim-santo

mulher

velha
Mofo

Longe da secura

da terra

(não mais dita)

da garoa

já em desterro

a coberta saída do fundo do armário

ativa a memória afetiva

- esta coberta tem o cheiro do quarto

da minha vó

- isso é cheiro de mofo

- sério?

rearmo

memória
Arremate

Ali onde antes havia o jardim, onde já não se plantava mais capim-santo, onde seu corpo
moribundo foi banhado algumas vezes pelas filhas que se revezavam em cuidados, ela morreu.
Desde então, foram poucas as vezes que estive em algum ateliê de costura. Sigo crochetando,
quase sempre sem terminar uma peça. Nunca mais vi papel higiênico rosa na casa de ninguém.
Há alguns anos, vi na televisão, em algum documentário que tratava da miséria. Foi só então
que associei as duas coisas. Lembrei de outras práticas que me encantavam na infância: ela tinha
um jeito todo especial de comprar salsicha por unidade. Uma vez, em que passaria a semana
toda com ela, fomos ao mercado e compramos três. Em casa, ela cortou uma delas em fatias
muito finas, distribuindo-as para duas refeições, macarrão com salsicha. Era preciso ter classe,
os pratos europeus, sobretudo os franceses, eram assim, com poucas quantidades de mistura, ela
dizia. Éramos chiques no controle das quantidades. Não associava aquilo à miséria. Foi o papel
higiênico rosa na televisão quase trinta anos mais tarde que denunciou: era mesmo uma questão
de classe.
a graça, vó, qual é a graça?
CLASSE E AFETO

Ela não gostava de poesia

nunca disse isso

mas eu

sei

não gostava não

quando li angélica com

uma mulher limpa é uma mulher boa

pensei que ela concordaria evidentemente

depois mandaria tudo à merda porque

por que raios se julga uma mulher?

mas ela não gostava de poesia

sei

sem que ela tenha dito

o que ela disse foi que teve arma

porque uma mulher trabalhadora

como ela que fechava restaurante de madrugada no centro de São Paulo

precisava se defender

a polícia

naquele tempo?

naquele lugar?

nananinanão

isso ela disse

e eu sei

que para ela uma mulher limpa é uma mulher boa


limpa

asseada

bem-vestida

sobretudo bem-vestida

alta-costura

tudo o que ela quisesse, carambolas

ela diria
Correntinha

Penso nela com frequência, nas coisas pequeninas do dia a dia, no cozinhar, no cuidado com as
plantas, no crochê. Sempre que mexo em caixas de documentos e lembranças, aquelas
guardadas no fundo de algum armário, no fundo da memória, ela se faz presente. Tenho um
carinho que, com o passar dos anos talvez tenha transformado sua pessoa numa mulher
idealizada. Lembro-me do seu sorriso, adoro a memória do cheiro do chá de capim-santo que
acompanhava nossos fins de tarde enquanto nos sentávamos juntas para fazer bordado (tenho
ainda hoje uma peça inacabada), crochê e tricô. Ela preferia o tricô, e acho que eu também,
embora seja crochê o que faço até hoje. Eu tinha 5 ou 6 anos, ela, 50 e poucos. Nos dias mais
frios, depois de limpar a casa e almoçar, descíamos o lance de escadas até a área onde ficava a
casinha do Bidu, ao lado de um pé alto de ameixa, que muitos anos mais tarde descobri receber
o nome de nêspera, onde ela caminhava entre as plantas, me falando seus nomes, os cuidados
necessários (se precisavam de muita ou pouca água, sol ou sombra) enquanto retirava folhas
mortas, colocava calços em galhos pendentes, esmagava ervas entre os dedos para que eu as
cheirasse, parando, geralmente, nos tufos de capim-santo que eram colhidos como sinal de que
estava na hora de voltarmos para dentro de casa. Subíamos, ela preparava o chá, que com a
folha fresca precisava ser fervido por alguns minutos, enquanto aquele cheiro adocicado tomava
conta da casa. Bolo ou pão, sempre recém-assado, era servido e, com o chá em mãos, íamos
para a sala costurar. Não sei dizer quantas vezes isso aconteceu, sei que foi habitual e se não
fosse o fato de que esses dias se resumiam a poucas semanas de férias escolares ao longo dos
anos, diria que foi rotina durante a infância. Minha avó, nesses dias, usava um xale preto que de
tão presente, parecia uniforme. Eu adorava aquele xale.
Avenida Paulista

Desvario, Brás, Bexiga, Barra Funda

Pari

Alphaville, Higienópolis, Ibirapuera, Vila Madalena

Masp, Pinacoteca, CCBB, Tomie Ohtake

Cracolândia, Viaduto do Chá, Anhangabaú

Brasilândia, Heliópolis, Capão Redondo

Itaquera

25 de março

metrô

preto, branco, amarelo

engarrafamento, dinheiro

bolsa de valores

São Paulo

é o mundo

acreditamos

nós

paulistanes de

fin de siècle

último

não daquele

provinciano
ela não era de música

mas cantava

ao lavar roupas

ela lavava muitas roupas

o tanque de cimento

tinha duas cubas

chamasse-se

cuba

à cuba

do

tanque de cimento?
vó, conta de novo?

me diz qual foi a graça?


Você já viu o peito de uma velha? Na São Paulo dos anos 1990, o peito da mulher era
conhecido como seio pelos adultos. Nós chamávamos de peito, regidos pela mesma censura
calada que nos fazia pronunciar sé-cho em leituras em voz alta na sala de aula, mesmo sabendo
que era outra a pronúncia de sexo. Na quarta série a professora, provavelmente, como estratégia
para que todo mundo acompanhasse a leitura, usava o famoso artifício de pedir para alguém ler
de onde o outro parou. O texto era sobre duas minhocas, uma do sexo feminino e outra do sexo
masculino. Assim elas eram identificadas, deve ser licença poética. Muito embora, na primeira
aparição ela tenha corrigido a pronúncia, toda vez que uma criança chegava à tal palavra, era sé-
cho que dizia, ninguém tinha coragem de pronunciar uma frase como: a minhoca do sexo
feminino foi à feira. Para os adultos, as mulheres tinham seios, para nós, eram peitos. Quando
precisavam ser cortados, viravam mamas. Se a que foi tirada era uma mama, a que sobrou
também seria. De todos esses, o único de conhecimento público, que aparecia na televisão, nos
outdoors, nas revistas, era o seio. A mama e o peito não existiam aos olhos do público. Quando
criança, o peito de uma velha foi uma das imagens mais perturbadoras que vi.
ESTRELINHA DO MEU CORAÇÃO

Qual a versão feminina de

loiro moreno careca cabeludo

rei ladrão polícia capitão

Brincadeira besta

para que ensinar meninas a pensarem em casamento?

costurar pelo menos é profissão

independência
Estudos

afirmam

confirmam

repetem

No Brasil Colônia, as senhoras contavam com criadas domésticas para a lida com as roupas.
Lavar, engomar, reparar. Sim, sim. As senhoras tinham criadas domésticas para pregar botões,
fazer barras, apertar, reformar. As senhoras tinham quem cuidasse de suas vestimentas.

os senhores

costuravam

ou

andavam

pelados?
Labes,

quantos

serão

os

enclaves?
conta, vó!

qual foi a graça?


Ponto baixo

Não sei a idade que eu tinha, provavelmente nove ou dez anos. Eu estava na casa dela, e minha
tia mais nova, perto dos quinze anos de idade me chamou para irmos juntas à casa de sua amiga.
Mas não era tão simples, sabíamos que a “mãe dela era muito brava” e C não podia sair quase
nunca. Ela só saía de casa para ir à escola. Então era preciso bolar um plano, uma boa desculpa,
um modo de conseguir falar com C. Lembro apenas da atmosfera detetivesca, dos sussurros e
cochichos, do plano de talvez dar a volta à casa, chamar pela janela, passar um papel por baixo
da porta, enfim. Resolvemos, finalmente, chegar pela porta da frente mesmo e minha tia tinha
planejado alguma “urgência” que justificasse a visita indevida. Temerosas, chamamos e, quando
a porta abriu, apenas alguns centímetros, consegui ver pessoas costurando, estavam amarradas
às máquinas de costura. O plano deu certo e C foi chamada, saiu nervosa, teria apenas alguns
minutos e precisava voltar ao trabalho. Achei tudo estranho, mas nunca mais ninguém tocou no
assunto.
mucamas

amas

aias

criadas

costureiras

alfaiatos
NO SÉCULO SEGUINTE APRENDI OUTRA PALAVRA: POPULISTA

- vó, você viveu na ditadura!

- aham

Assombro

- vó, você sabe quem foi Getúlio?

o copo com água na beirada da janela

recebe a bolinha de massa de pão recém-sovado

para saber o tempo exato de fermentação

é preciso tirar um pedacinho da massa

e fazer uma bolinha

colocá-la num copo com água

a bolinha afunda

a massa deve descansar

em local escuro

sem corrente de vento

isso é muito importante

não se faz pão onde tem corrente de vento

quando a bolinha sobe à superfície

e começa a boiar

o pão fermentou

e já pode ir para o forno pré-aquecido

- ele foi um homem muito bom.

- mas, vó, a professora falou coisas horríveis da ditadura.

eles matavam

torturavam pessoas

- o Getúlio foi bom,


a gente começou a ter direitos

a vida das trabalhadoras melhorou

- mas vó, a ditadura...

- Getúlio não era a ditadura

- mas vó, a professora falou...

- vamos buscar capim-santo pro chá?

nos anos 1990 eu era uma boa aluna da escola pública de São Paulo
Duas carreiras

Nessa época, minha avó tinha voltado a costurar para fora. Nossas tardes com chá, bolo, crochê,
bordado e tricô, foram substituídas por tardes em que eu observava seu trabalho à máquina. Pela
manhã, muito cedo, parava uma Kombi à porta, o entregador descarregava sacos enormes de
juta ou de ráfia, estes principalmente, com as peças. Por um longo período, ela acrescentava às
calças jeans os bolsos. Os sacos eram grandes e pesados. Ela recebia as calças e os bolsos, e
precisava devolver, num determinado prazo, as peças com os bolsos. Era uma produção em
cadeia, aquelas peças vinham de outras costureiras que haviam montado as calças, passavam por
ela para a colocação dos bolsos, seguiriam para outras mulheres que fariam os acabamentos,
bainha e cós. Os dias com os jeans eram intermináveis, ela costurava sem parar e quase nunca
era possível cumprir os prazos. O pagamento era por peças, alguns centavos por peça terminada,
era preciso centenas para ver a cor do dinheiro. Ela não me deixava trabalhar com a máquina, o
trabalho era pesado e perigoso, além de ser preciso um ritmo acelerado. Então, eu ficava à sua
esquerda, pegava a calça da pilha, passava para ela, que costurava os bolsos, dava a volta e
recolhia a peça à sua direita para recolocá-la na pilha das peças “prontas”. Eu adorava poder
ajudá-la, hoje não sei dizer se eu mais ajudava ou atrapalhava e nunca tive a oportunidade de
saber. Lembro que a certo ponto, as pilhas ficavam muito altas e eu já não podia alcançá-las.
Lembro de longos períodos de silêncio e da concentração absoluta, sobretudo nas horas finais de
trabalho que deviam ser angustiantes para ela, vendo que não tinha dado conta da encomenda.
Lembro das linhas azuis espalhadas pela mesa e pelo chão. Da fita métrica sempre pendurada no
pescoço. Lembro daquelas calças, daqueles bolsos, de como achava aquilo lindo. Lembro que
eu não tinha nenhuma calça jeans.
No novo século

lojistas

do desterro

daqui

dali

dacolá

em excursões

fazem compras

no Brás

para revenda

as roupas

são mais baratas

na cidade

de

São Paulo

menina,

você nunca

comprou

no Pari?

no Brás?

Quem costurou suas roupas?


Ela criava histórias de boca e canções

[Ler cantando]

Veerme vai

Veerme vem

Na barriguinha e na boca também

Só há caixão

Se houver alguém

Esse defunto pode ser eu também


Era uma mulher velha

o cigarro

as calças compridas

a arma

foram símbolos de sua juventude

mas durante a minha existência

ela sempre foi velha

Eram de velha suas rugas, seus peitos caídos, suas histórias, seu longo passado. Eram de velha
sua casa, suas roupas, seus hábitos. Eram coisa de velha seu costurar, seu cozinhar, seu
madrugar. Eram coisa de velha o crochê, o tricô, o bordado, os saberes. Esses, tantos. Ela era
uma velha normal. Eu é que era diferente e gostava de passar horas costurando e cozinhando
com minha avó. Ela, velha normal. Eu, criança.

mas

ela era vaidosa

e gostava de sorvete

Sempre achei engraçado o fato de minha avó gostar de sorvete. Isso, sim, era diferente.
Ponto alto

Num dado momento, sem aviso prévio, trocaram a fase de sua produção. Eu estava lá quando o
moço da Kombi chegou com as peças e disse que ela não faria bolsos, não, agora era pra
costurar o cós e precisava ser overlock. A máquina de overlock estava velha, ou quebrou, ou por
alguma razão ela não gostou dessa mudança, não, não era o combinado. Ele só fazia a entrega,
dona, a senhora sabe como é. Vai ter que falar com o patrão. Naquele dia fui com ela, ainda bem
que eles tinham mudado um dos escritórios para Itaquera e ela não precisaria ir até a cidade,
como ela chamava o centro. Nos arrumamos, fazia sol, e, ao sairmos em direção ao ponto de
ônibus, ela falou que não tinha dinheiro para a passagem das duas. Não era problema, vó, é só
eu passar por baixo. Ela ficou muito brava, eu lá era pivete pra passar por baixo? Eu era uma
me-ni-na e não devia fazer essas coisas, além do mais, eu estava usando um vestido lindo que
ela tinha feito pra mim com sobras de tecido, vestido que usei por anos até não entrar mais, e eu
realmente me sentia uma menina linda naquela roupa e, de fato, não deveria passar por baixo da
catraca. Fomos caminhando. Eu disse que fazia sol? Chegamos ao tal lugar, ela entrou numa
sala, eu fiquei do lado de fora, não sei o que aconteceu, mas ela não parecia satisfeita, não. Teria
que arrumar a overlock porque tinha muita costureira disposta a fazer o tal do cós se ela não
quisesse. Cheguei a vê-la fazendo cós, menos vezes que bolso, não sei se porque ela fez menos
ou porque eu presenciei menos. Sei que ela não gostava, era mais exaustivo, mais demorado,
embora os prazos fossem os mesmos. Talvez porque ela já estivesse fraca com a doença. Não
demorou muito para que parasse de costurar para fora. Pelo menos os jeans sumiram do cenário.
era uma mulher

muito inteligente

o mundo

não

gostava dela não

caridade

não é

bondade

ela dizia

brava

brava mesmo ela ficava

com criança

ralando na boquinha da garrafa

e com roupas de marca

Antes dos jeans sumirem, houve um período em que recebia do moço da Kombi os sacos de
ráfia com as calças já prontas. Seu papel era cobrir a etiqueta original com uma etiqueta maior
que indicava a marca final. Eram mais grossos, talvez de couro, esses retângulos que deveriam
ser costurados sobre o cós, ao lado de um dos passantes traseiros.
Bandido bom

ela dizia

é bandido amigo

como não é possível

ser amigo de todos os bandidos

guarde essa nota com você

e sempre

sempre que sair

leve-a no bolso

esse dinheiro não é seu

não existe para você

quando for assaltada

é preciso ter o que entregar


Quem costurou as roupas usadas na Semana?

nem tudo

tenho certeza

veio de Paris

algumas coisas

vêm do Pari

parisiense remenda?

faz bainha?

troca botão?

salto

babado

laços

mais que coisa de mulher

ela dizia

são coisas

de mulher

aproveitemos

ela não gostava de autores brasileiros

Nascimento

1938

Naturalidade

São Paulo

Brás
proletário

o parque industrial da Patrícia

também menos conhecida como

companheira do Geraldo

as costureiras do Brás

ali

não estão amarradas

duvidei da memória

a tia

amiga de C

confirmou

confirmou outra que tive receio de perguntar

porque quando contei que lembrava

de uma cena de pessoa amarrada à máquina

minha memória foi posta em questão

e uma mulher que duvida é uma mulher louca

a outra memória

é de um galpão

muitas mulheres e

máquinas em filas

acorrentadas

- ah, você viu isso?

achei que você não tinha visto

eu vi muito

nos anos 2000


já não era no Brás

era ali naquele bairro

na cidade também, sabe

é horrível mesmo mas olha

aquilo não era trabalho escravo

as mães amarravam as filhas e filhos

os pequenos pra não fugir e as maiores

para dar conta da demanda

se não elas se distraíam

levantavam

atrasavam

A vó sempre dizia que só era bom

pra quem tinha máquina em casa

topo da pirâmide

costurar para fora

não era o esquema esquenta-cama

mas na cidade era diferente

ali acorrentavam mesmo

a gente não podia nem ver não

na São Paulo da virada do século

era sabido que as bolivianas

trabalhavam assim

esse povo vem pra cá

trabalhar assim

ouvia-se muito
de brasileiros

de verdade

segunda geração

de imigrantes

europeus

fugidos

parece que

na Bolívia

La Paz

não existe

não

há paz em São Paulo

onde

na cidade

costureiras bolivianas

terminam o século

costurando em galpões

mas não podemos ver não


Carreiras

O papel higiênico na casa dela era rosa. Sempre rosa. Um papel grosso e rosa. Eu achava bonito,
não via papel higiênico rosa na casa de ninguém. Nem na minha. Quando ela ficou doente e foi
internada pela primeira vez, demorou para que eu voltasse a passar dias com ela. Depois da
retirada da mama, voltei. Ela com o xale preto às costas, descíamos as escadas, ouvia sobre as
flores, colhíamos o capim-santo e, novamente, fazíamos tricô, crochê e bordado. Tudo mais
lento, mais silencioso. Numa manhã de sol, na laje, ela tirou a blusa e me mostrou a cicatriz. Só
tinha uma mama e do outro lado, uma cicatriz na vertical, sem peito, uma coisa reta, parecia um
pedaço das suas costas. A cicatriz e a ausência da mama não me abalaram. Havia, porém, vários
traços, pareciam um mapa desenhado com papel carbono, riscos na horizontal e vertical
traçando um caminho, uma tatuagem estranha. Nesse dia aprendi uma palavra nova:
radioterapia. Quimioterapia eu já conhecia. Também ouvi muitas histórias relacionadas a um
lugar que também conheci naquela época: o Hospital da Clínicas, muito bom, por sinal, um
hospital muito, muito bom. Mas ela ficava indignada com a condição das mulheres que
conheceu ali, chamava atenção a pobreza e o abandono daquelas mulheres. Suas histórias
sofridas. Nessa época, a casa já estava comprometida. A ocupação no final da rua avançava e já
ocupava boa parte dos dois lados do córrego à frente da casa. A construção irregular do vizinho
dos fundos tinha causado vários danos à sua casa construída na extrema de um terreno no
morro. A casa de trás, construída, portanto, acima da sua, causava rachaduras e umidade
embaixo. A prefeitura tinha embargado a obra, mas isso não dizia nada. Aliás, não demorou
muito para a obra embargada receber um segundo andar, também com tijolos expostos, que era
muito diferente do tijolo à vista como acabamento estético. Na laje, à minha frente, estava
aquele peito vazio, coberto por traços desordenados, atrás, olhava para cima e via aquela
construção, só no tijolo, também com traços desordenados feitos de cimento, ameaçando
desabar.
Quando assisti

a vida é bela

pensei em salsicha
Ponto baixíssimo

As linhas, os tecidos e as costuras nos atavam afetivamente. Havia também as histórias, ela
gostava muito de ler. Ouvi, em voz alta, enquanto aprendia um ponto ou outro de crochê, a
leitura de muitos livros. Um deles, mais de uma vez, ouvi do começo ao fim. Eu gostava muito
mesmo era do título: “o idiota”. Muito mais tarde, descobri que se tratava de um clássico de
Dostoievski e senti grande prazer quando li com meus próprios olhos. Percebi também que
nunca tinha acompanhado a narrativa e que eu gostava mesmo do som de sua voz, lendo para
mim. Àquela altura e por muitos anos, romances, sempre europeus, ela não lia brasileiros, eram
para mim apenas voz. Nem forma, nem conteúdo. Só voz. Tinham forma e conteúdo as histórias
que ela contava de boca, coisa que ela fazia muito, muito bem.
era uma mulher

muito à frente de seu tempo

diziam

usava calças compridas e fumava

na mesma época em que gerenciava

um restaurante no centro de São Paulo

e ganhou uma arma

de um amigo segurança

muitos anos depois da Semana

que aconteceu quando ela nem era nascida

quem costurou as roupas

dos artistas

da província

da cidade

de São Paulo?
a graça, vó! Conta qual foi a graça por favooor
No livro sobre a casa grande

o Gilberto mostra

anúncio

compra-se mulata moça

perfeita costureira

de agulha e tesoura

na Semana isso era passado

europeias

mesmo

no parque industrial

no Brás

mas europeias

ou não

livres

ou não
Carreiras

Houve, ainda, um momento em que ela voltou a costurar para fora. Desta vez para outra fábrica,
já depois da retirada da mama. Mas não durou muito tempo. O câncer insistia em retornar, não
sei quantas cirurgias foram feitas, mas a vimos definhar ao longo dos meses, dos anos. Ela
enfraquecia e a casa estava cada vez mais perto de cair. Foi então que a área entre os dois lances
de escadas, onde ficava a casinha do Bidu ao lado do pé de nêspera, perto da roseira, próxima à
lágrima-de-cristo que crescia amparada por uma tora de madeira entre os maços de capim-santo,
virou canto de obras para a construção de um quartinho que a abrigasse em condições menos
insalubres. Foram-se a ameixeira, a lágrima-de-cristo, as rosas, as samambaias, os trevos de
quatro folhas que comíamos, sempre falando do azedinho, as ervas todas e o capim-santo. Logo
ela se mudou para a casinha, quarto e cozinha, construída onde antes cultivava seu jardim. A
casa de cima permaneceu ali, inabitável, com suas paredes rachadas e enegrecidas pela umidade.
Eu entrava na adolescência, ela começava a definhar. Não costuramos mais. Não fazíamos mais
chá de capim-santo. Mas o papel higiênico ainda era cor de rosa. Quando ela já não tinha mais
condições, passou um tempo na casa de uma das filhas. Voltou para a casinha já nos últimos
meses de vida.
a ocupação

do final da rua

avançava

o que ela queria

mesmo

era sair dali

usava

calça

arma

fumava

cansou de apanhar e pediu o desquite

como ele tinha se convertido

o pastor não autorizou não

ele construiu um puxadinho

décadas se passaram

ela morreu

ele seguiu

vivo

crente

no puxadinho

Nunca mais fumou. Morreu gostando de sorvete. Anos após sua morte, fiz contas. Aquela
senhorinha que por pelo menos uma década vestia xale, sovava pão, costurava e gostava de
sorvete e de creme hidratante mal chegou aos sessenta.
sigo

fazendo

crochê

mas

quase

nunca

concluo

uma

peça
zap

zap

- mãe, você ainda tem algum material do curso de corte, costura e modelagem da vó?

- É muita coisa, tenho, sim. Essas fotos compõem uma apostila para o curso de corte e costura
que ela criou e ministrou por algum tempo quando morávamos lá na casa onde hoje mora a tia.
Esse curso chegou a ter mais de 20 alunas. Ela era modelista antes de ser costureira, em uma
certa altura da vida queimou seus desenhos e moldes porque, se bem me lembro, essa foi uma
grande frustração. Apesar de a escola ter dado muito certo, duas coisas a abalaram
profundamente, primeiro a falta de compreensão do meu pai que a tratava como empregada da
casa, nesse sentido, a sua vontade de trabalhar e construir algo profissionalmente "atrapalhava o
andamento" das "coisas da casa" e além disso o Brasil deixou de ser um país de economia
fechada e as pessoas começaram a comprar roupas chamadas "pret a porter" - que, teoricamente,
deveriam ser de boa qualidade -, ou seja, as grandes empresas começaram a "assinar" como
grandes nomes da moda e então a mão de obra das costureiras do terceiro mundo passou a ser
utilizada em linhas de produção, como é até hoje. Acabou!
ela sorria

e dizia

a graça

ora, a graça...

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