Corte e Costura Branca
Corte e Costura Branca
Corte e Costura Branca
de papel sulfite
óleo de cozinha
funciona
Era uma vez um menino que vivia com seu pai numa vila de pescadores. Todos os dias, antes do
nascer do sol, o seu pai saía para pescar. O menino era feliz, mas ele foi crescendo e teve o
desejo de conhecer outros lugares. Quando chegou o momento certo, ele colocou a mochila nas
costas, se despediu de seu pai e disse que sairia para ver o mundo.
Ele viajou por muito, muito tempo. Passou por diferentes cidades, países, reinos, sempre há
reinos, até que, um dia, ao chegar num lugar desconhecido, sentou-se em um banco para
descansar. Ficou observando as pessoas e notou que havia algo de diferente. Interpelou uma
moça que passava por ali e lhe perguntou:
- ora, você não sabe? – disse a moça – por causa da proibição do rei. Desde que a princesa foi
enfeitiçada e parou de sorrir, ninguém mais pode sorrir. A pena é a morte. Em compensação, o
rei lançou o desafio: quem conseguir fazer a princesa rir, receberá muitos tesouros e terá a mão
da princesa em casamento.
- muitos já tentaram – falava a moça – e falharam. Àqueles que falham, a pena também é a
morte. É muito arriscado!
Agitado, o rapaz se levantou, agradecendo à moça pela informação e determinado em seu plano.
Ele sabia como fazer a princesa sorrir. Só precisava do rabo de um rato.
- Senhor Rato, o senhor me empresta o seu rabo para eu fazer uma graça para a princesa rir?
- Claro – disse o rato – mas, você terá que me dar algo em troca. Um queijo bem gostoso.
- Senhor Queijeiro, o senhor me dá um pouco de queijo para eu levar para o rato, para ele me
emprestar o rabo para eu fazer uma graça para a princesa rir?
- Claro, eu certamente lhe daria, mas estou sem leite para fazer o queijo.
- Dona Vaca, a senhora poderia me arrumar um pouco de leite para eu levar para o queijeiro
para ele fazer o queijo para eu levar para o rato para ele me emprestar o rabo para eu fazer uma
graça para a princesa rir?
- Muuu – disse a vaca – eu lhe dou o leite, mas estou com fome e preciso muito de algum
capim.
O rapaz seguiu para a casa do fazendeiro e bateu na porta.
- Boa tarde, senhor Fazendeiro. O senhor poderia me arrumar um pouco de capim para eu levar
para a vaca para ela me dar um pouco de leite para eu entregar ao queijeiro para ele fazer queijo
para eu dar ao rato para que ele me empreste o rabo para eu fazer uma graça para a princesa rir?
- certamente – disse o fazendeiro – desde que você me ajude com uma questão. Minha esposa
está grávida e com muito desejo de comer peixe. Você poderia me ajudar a encontrar um peixe
para ela?
O rapaz, então, lembrou-se de seu pai, pensou no longo tempo que se passou desde que ele
havia partido para conhecer o mundo. Sentiu saudades e disse ao fazendeiro que não se
preocupasse, ele lhe traria o peixe.
Na mesma hora, retomou a estrada e fez toda a viagem de volta, passando por cidades, lugarejos
e reinos até chegar à pequena vila de pescadores onde morava seu pai.
Os dois se abraçaram longa e carinhosamente. O rapaz então contou tudo o que viu e revelou o
motivo de sua volta. O pai não perdeu tempo, na manhã seguinte, antes mesmo do sol nascer,
seguiu com seu barco mar adentro e realizou a pesca. Juntos, escolheram o melhor peixe para a
esposa do fazendeiro.
O rapaz fez toda a viagem de volta ao reino onde ninguém sorria e se dirigiu à casa do
fazendeiro, entregando-lhe o peixe. Ele então recebeu o capim, levou-o à vaca que lhe entregou
o leite que foi levado ao queijeiro que fez o queijo que foi levado ao rato que emprestou o rabo.
Com o rabo do rato em mãos, anunciou ao rei que faria uma graça para a princesa rir. Todos se
reuniram, ao mesmo tempo temerosos e ansiosos. Ele fez a graça, a princesa riu. E todos
viveram felizes para sempre.
Algumas são boas
quando jovem
teria um futuro
modista
ma ache cazzo
capisce?
capisco
as mulheres
de São Paulo
(não todas
falamos alto
porque
temos sangue
italiano
nas veias
ela diria
Uma mulher velha
rugas
pão caseiro
bolo
tricô
crochê
plantas
xale
chá de capim-santo
mulher
velha
Mofo
Longe da secura
da terra
da garoa
já em desterro
da minha vó
- sério?
rearmo
memória
Arremate
Ali onde antes havia o jardim, onde já não se plantava mais capim-santo, onde seu corpo
moribundo foi banhado algumas vezes pelas filhas que se revezavam em cuidados, ela morreu.
Desde então, foram poucas as vezes que estive em algum ateliê de costura. Sigo crochetando,
quase sempre sem terminar uma peça. Nunca mais vi papel higiênico rosa na casa de ninguém.
Há alguns anos, vi na televisão, em algum documentário que tratava da miséria. Foi só então
que associei as duas coisas. Lembrei de outras práticas que me encantavam na infância: ela tinha
um jeito todo especial de comprar salsicha por unidade. Uma vez, em que passaria a semana
toda com ela, fomos ao mercado e compramos três. Em casa, ela cortou uma delas em fatias
muito finas, distribuindo-as para duas refeições, macarrão com salsicha. Era preciso ter classe,
os pratos europeus, sobretudo os franceses, eram assim, com poucas quantidades de mistura, ela
dizia. Éramos chiques no controle das quantidades. Não associava aquilo à miséria. Foi o papel
higiênico rosa na televisão quase trinta anos mais tarde que denunciou: era mesmo uma questão
de classe.
a graça, vó, qual é a graça?
CLASSE E AFETO
mas eu
sei
sei
precisava se defender
a polícia
naquele tempo?
naquele lugar?
nananinanão
e eu sei
asseada
bem-vestida
sobretudo bem-vestida
alta-costura
ela diria
Correntinha
Penso nela com frequência, nas coisas pequeninas do dia a dia, no cozinhar, no cuidado com as
plantas, no crochê. Sempre que mexo em caixas de documentos e lembranças, aquelas
guardadas no fundo de algum armário, no fundo da memória, ela se faz presente. Tenho um
carinho que, com o passar dos anos talvez tenha transformado sua pessoa numa mulher
idealizada. Lembro-me do seu sorriso, adoro a memória do cheiro do chá de capim-santo que
acompanhava nossos fins de tarde enquanto nos sentávamos juntas para fazer bordado (tenho
ainda hoje uma peça inacabada), crochê e tricô. Ela preferia o tricô, e acho que eu também,
embora seja crochê o que faço até hoje. Eu tinha 5 ou 6 anos, ela, 50 e poucos. Nos dias mais
frios, depois de limpar a casa e almoçar, descíamos o lance de escadas até a área onde ficava a
casinha do Bidu, ao lado de um pé alto de ameixa, que muitos anos mais tarde descobri receber
o nome de nêspera, onde ela caminhava entre as plantas, me falando seus nomes, os cuidados
necessários (se precisavam de muita ou pouca água, sol ou sombra) enquanto retirava folhas
mortas, colocava calços em galhos pendentes, esmagava ervas entre os dedos para que eu as
cheirasse, parando, geralmente, nos tufos de capim-santo que eram colhidos como sinal de que
estava na hora de voltarmos para dentro de casa. Subíamos, ela preparava o chá, que com a
folha fresca precisava ser fervido por alguns minutos, enquanto aquele cheiro adocicado tomava
conta da casa. Bolo ou pão, sempre recém-assado, era servido e, com o chá em mãos, íamos
para a sala costurar. Não sei dizer quantas vezes isso aconteceu, sei que foi habitual e se não
fosse o fato de que esses dias se resumiam a poucas semanas de férias escolares ao longo dos
anos, diria que foi rotina durante a infância. Minha avó, nesses dias, usava um xale preto que de
tão presente, parecia uniforme. Eu adorava aquele xale.
Avenida Paulista
Pari
Itaquera
25 de março
metrô
engarrafamento, dinheiro
bolsa de valores
São Paulo
é o mundo
acreditamos
nós
paulistanes de
fin de siècle
último
não daquele
provinciano
ela não era de música
mas cantava
ao lavar roupas
o tanque de cimento
chamasse-se
cuba
à cuba
do
tanque de cimento?
vó, conta de novo?
Brincadeira besta
independência
Estudos
afirmam
confirmam
repetem
No Brasil Colônia, as senhoras contavam com criadas domésticas para a lida com as roupas.
Lavar, engomar, reparar. Sim, sim. As senhoras tinham criadas domésticas para pregar botões,
fazer barras, apertar, reformar. As senhoras tinham quem cuidasse de suas vestimentas.
os senhores
costuravam
ou
andavam
pelados?
Labes,
quantos
serão
os
enclaves?
conta, vó!
Não sei a idade que eu tinha, provavelmente nove ou dez anos. Eu estava na casa dela, e minha
tia mais nova, perto dos quinze anos de idade me chamou para irmos juntas à casa de sua amiga.
Mas não era tão simples, sabíamos que a “mãe dela era muito brava” e C não podia sair quase
nunca. Ela só saía de casa para ir à escola. Então era preciso bolar um plano, uma boa desculpa,
um modo de conseguir falar com C. Lembro apenas da atmosfera detetivesca, dos sussurros e
cochichos, do plano de talvez dar a volta à casa, chamar pela janela, passar um papel por baixo
da porta, enfim. Resolvemos, finalmente, chegar pela porta da frente mesmo e minha tia tinha
planejado alguma “urgência” que justificasse a visita indevida. Temerosas, chamamos e, quando
a porta abriu, apenas alguns centímetros, consegui ver pessoas costurando, estavam amarradas
às máquinas de costura. O plano deu certo e C foi chamada, saiu nervosa, teria apenas alguns
minutos e precisava voltar ao trabalho. Achei tudo estranho, mas nunca mais ninguém tocou no
assunto.
mucamas
amas
aias
criadas
costureiras
alfaiatos
NO SÉCULO SEGUINTE APRENDI OUTRA PALAVRA: POPULISTA
- aham
Assombro
a bolinha afunda
em local escuro
e começa a boiar
o pão fermentou
eles matavam
torturavam pessoas
nos anos 1990 eu era uma boa aluna da escola pública de São Paulo
Duas carreiras
Nessa época, minha avó tinha voltado a costurar para fora. Nossas tardes com chá, bolo, crochê,
bordado e tricô, foram substituídas por tardes em que eu observava seu trabalho à máquina. Pela
manhã, muito cedo, parava uma Kombi à porta, o entregador descarregava sacos enormes de
juta ou de ráfia, estes principalmente, com as peças. Por um longo período, ela acrescentava às
calças jeans os bolsos. Os sacos eram grandes e pesados. Ela recebia as calças e os bolsos, e
precisava devolver, num determinado prazo, as peças com os bolsos. Era uma produção em
cadeia, aquelas peças vinham de outras costureiras que haviam montado as calças, passavam por
ela para a colocação dos bolsos, seguiriam para outras mulheres que fariam os acabamentos,
bainha e cós. Os dias com os jeans eram intermináveis, ela costurava sem parar e quase nunca
era possível cumprir os prazos. O pagamento era por peças, alguns centavos por peça terminada,
era preciso centenas para ver a cor do dinheiro. Ela não me deixava trabalhar com a máquina, o
trabalho era pesado e perigoso, além de ser preciso um ritmo acelerado. Então, eu ficava à sua
esquerda, pegava a calça da pilha, passava para ela, que costurava os bolsos, dava a volta e
recolhia a peça à sua direita para recolocá-la na pilha das peças “prontas”. Eu adorava poder
ajudá-la, hoje não sei dizer se eu mais ajudava ou atrapalhava e nunca tive a oportunidade de
saber. Lembro que a certo ponto, as pilhas ficavam muito altas e eu já não podia alcançá-las.
Lembro de longos períodos de silêncio e da concentração absoluta, sobretudo nas horas finais de
trabalho que deviam ser angustiantes para ela, vendo que não tinha dado conta da encomenda.
Lembro das linhas azuis espalhadas pela mesa e pelo chão. Da fita métrica sempre pendurada no
pescoço. Lembro daquelas calças, daqueles bolsos, de como achava aquilo lindo. Lembro que
eu não tinha nenhuma calça jeans.
No novo século
lojistas
do desterro
daqui
dali
dacolá
em excursões
fazem compras
no Brás
para revenda
as roupas
na cidade
de
São Paulo
menina,
você nunca
comprou
no Pari?
no Brás?
[Ler cantando]
Veerme vai
Veerme vem
Só há caixão
Se houver alguém
o cigarro
as calças compridas
a arma
Eram de velha suas rugas, seus peitos caídos, suas histórias, seu longo passado. Eram de velha
sua casa, suas roupas, seus hábitos. Eram coisa de velha seu costurar, seu cozinhar, seu
madrugar. Eram coisa de velha o crochê, o tricô, o bordado, os saberes. Esses, tantos. Ela era
uma velha normal. Eu é que era diferente e gostava de passar horas costurando e cozinhando
com minha avó. Ela, velha normal. Eu, criança.
mas
e gostava de sorvete
Sempre achei engraçado o fato de minha avó gostar de sorvete. Isso, sim, era diferente.
Ponto alto
Num dado momento, sem aviso prévio, trocaram a fase de sua produção. Eu estava lá quando o
moço da Kombi chegou com as peças e disse que ela não faria bolsos, não, agora era pra
costurar o cós e precisava ser overlock. A máquina de overlock estava velha, ou quebrou, ou por
alguma razão ela não gostou dessa mudança, não, não era o combinado. Ele só fazia a entrega,
dona, a senhora sabe como é. Vai ter que falar com o patrão. Naquele dia fui com ela, ainda bem
que eles tinham mudado um dos escritórios para Itaquera e ela não precisaria ir até a cidade,
como ela chamava o centro. Nos arrumamos, fazia sol, e, ao sairmos em direção ao ponto de
ônibus, ela falou que não tinha dinheiro para a passagem das duas. Não era problema, vó, é só
eu passar por baixo. Ela ficou muito brava, eu lá era pivete pra passar por baixo? Eu era uma
me-ni-na e não devia fazer essas coisas, além do mais, eu estava usando um vestido lindo que
ela tinha feito pra mim com sobras de tecido, vestido que usei por anos até não entrar mais, e eu
realmente me sentia uma menina linda naquela roupa e, de fato, não deveria passar por baixo da
catraca. Fomos caminhando. Eu disse que fazia sol? Chegamos ao tal lugar, ela entrou numa
sala, eu fiquei do lado de fora, não sei o que aconteceu, mas ela não parecia satisfeita, não. Teria
que arrumar a overlock porque tinha muita costureira disposta a fazer o tal do cós se ela não
quisesse. Cheguei a vê-la fazendo cós, menos vezes que bolso, não sei se porque ela fez menos
ou porque eu presenciei menos. Sei que ela não gostava, era mais exaustivo, mais demorado,
embora os prazos fossem os mesmos. Talvez porque ela já estivesse fraca com a doença. Não
demorou muito para que parasse de costurar para fora. Pelo menos os jeans sumiram do cenário.
era uma mulher
muito inteligente
o mundo
não
caridade
não é
bondade
ela dizia
brava
com criança
Antes dos jeans sumirem, houve um período em que recebia do moço da Kombi os sacos de
ráfia com as calças já prontas. Seu papel era cobrir a etiqueta original com uma etiqueta maior
que indicava a marca final. Eram mais grossos, talvez de couro, esses retângulos que deveriam
ser costurados sobre o cós, ao lado de um dos passantes traseiros.
Bandido bom
ela dizia
é bandido amigo
e sempre
leve-a no bolso
nem tudo
tenho certeza
veio de Paris
algumas coisas
vêm do Pari
parisiense remenda?
faz bainha?
troca botão?
salto
babado
laços
ela dizia
são coisas
só
de mulher
aproveitemos
Nascimento
1938
Naturalidade
São Paulo
Brás
proletário
companheira do Geraldo
as costureiras do Brás
ali
duvidei da memória
a tia
amiga de C
confirmou
a outra memória
é de um galpão
muitas mulheres e
máquinas em filas
acorrentadas
eu vi muito
levantavam
atrasavam
topo da pirâmide
trabalhavam assim
trabalhar assim
ouvia-se muito
de brasileiros
de verdade
segunda geração
de imigrantes
europeus
fugidos
parece que
na Bolívia
La Paz
não existe
não
onde
na cidade
costureiras bolivianas
terminam o século
costurando em galpões
O papel higiênico na casa dela era rosa. Sempre rosa. Um papel grosso e rosa. Eu achava bonito,
não via papel higiênico rosa na casa de ninguém. Nem na minha. Quando ela ficou doente e foi
internada pela primeira vez, demorou para que eu voltasse a passar dias com ela. Depois da
retirada da mama, voltei. Ela com o xale preto às costas, descíamos as escadas, ouvia sobre as
flores, colhíamos o capim-santo e, novamente, fazíamos tricô, crochê e bordado. Tudo mais
lento, mais silencioso. Numa manhã de sol, na laje, ela tirou a blusa e me mostrou a cicatriz. Só
tinha uma mama e do outro lado, uma cicatriz na vertical, sem peito, uma coisa reta, parecia um
pedaço das suas costas. A cicatriz e a ausência da mama não me abalaram. Havia, porém, vários
traços, pareciam um mapa desenhado com papel carbono, riscos na horizontal e vertical
traçando um caminho, uma tatuagem estranha. Nesse dia aprendi uma palavra nova:
radioterapia. Quimioterapia eu já conhecia. Também ouvi muitas histórias relacionadas a um
lugar que também conheci naquela época: o Hospital da Clínicas, muito bom, por sinal, um
hospital muito, muito bom. Mas ela ficava indignada com a condição das mulheres que
conheceu ali, chamava atenção a pobreza e o abandono daquelas mulheres. Suas histórias
sofridas. Nessa época, a casa já estava comprometida. A ocupação no final da rua avançava e já
ocupava boa parte dos dois lados do córrego à frente da casa. A construção irregular do vizinho
dos fundos tinha causado vários danos à sua casa construída na extrema de um terreno no
morro. A casa de trás, construída, portanto, acima da sua, causava rachaduras e umidade
embaixo. A prefeitura tinha embargado a obra, mas isso não dizia nada. Aliás, não demorou
muito para a obra embargada receber um segundo andar, também com tijolos expostos, que era
muito diferente do tijolo à vista como acabamento estético. Na laje, à minha frente, estava
aquele peito vazio, coberto por traços desordenados, atrás, olhava para cima e via aquela
construção, só no tijolo, também com traços desordenados feitos de cimento, ameaçando
desabar.
Quando assisti
a vida é bela
pensei em salsicha
Ponto baixíssimo
As linhas, os tecidos e as costuras nos atavam afetivamente. Havia também as histórias, ela
gostava muito de ler. Ouvi, em voz alta, enquanto aprendia um ponto ou outro de crochê, a
leitura de muitos livros. Um deles, mais de uma vez, ouvi do começo ao fim. Eu gostava muito
mesmo era do título: “o idiota”. Muito mais tarde, descobri que se tratava de um clássico de
Dostoievski e senti grande prazer quando li com meus próprios olhos. Percebi também que
nunca tinha acompanhado a narrativa e que eu gostava mesmo do som de sua voz, lendo para
mim. Àquela altura e por muitos anos, romances, sempre europeus, ela não lia brasileiros, eram
para mim apenas voz. Nem forma, nem conteúdo. Só voz. Tinham forma e conteúdo as histórias
que ela contava de boca, coisa que ela fazia muito, muito bem.
era uma mulher
diziam
de um amigo segurança
dos artistas
da província
da cidade
de São Paulo?
a graça, vó! Conta qual foi a graça por favooor
No livro sobre a casa grande
o Gilberto mostra
anúncio
perfeita costureira
de agulha e tesoura
europeias
mesmo
no parque industrial
no Brás
mas europeias
ou não
livres
ou não
Carreiras
Houve, ainda, um momento em que ela voltou a costurar para fora. Desta vez para outra fábrica,
já depois da retirada da mama. Mas não durou muito tempo. O câncer insistia em retornar, não
sei quantas cirurgias foram feitas, mas a vimos definhar ao longo dos meses, dos anos. Ela
enfraquecia e a casa estava cada vez mais perto de cair. Foi então que a área entre os dois lances
de escadas, onde ficava a casinha do Bidu ao lado do pé de nêspera, perto da roseira, próxima à
lágrima-de-cristo que crescia amparada por uma tora de madeira entre os maços de capim-santo,
virou canto de obras para a construção de um quartinho que a abrigasse em condições menos
insalubres. Foram-se a ameixeira, a lágrima-de-cristo, as rosas, as samambaias, os trevos de
quatro folhas que comíamos, sempre falando do azedinho, as ervas todas e o capim-santo. Logo
ela se mudou para a casinha, quarto e cozinha, construída onde antes cultivava seu jardim. A
casa de cima permaneceu ali, inabitável, com suas paredes rachadas e enegrecidas pela umidade.
Eu entrava na adolescência, ela começava a definhar. Não costuramos mais. Não fazíamos mais
chá de capim-santo. Mas o papel higiênico ainda era cor de rosa. Quando ela já não tinha mais
condições, passou um tempo na casa de uma das filhas. Voltou para a casinha já nos últimos
meses de vida.
a ocupação
do final da rua
avançava
mesmo
usava
calça
arma
fumava
décadas se passaram
ela morreu
ele seguiu
vivo
crente
no puxadinho
Nunca mais fumou. Morreu gostando de sorvete. Anos após sua morte, fiz contas. Aquela
senhorinha que por pelo menos uma década vestia xale, sovava pão, costurava e gostava de
sorvete e de creme hidratante mal chegou aos sessenta.
sigo
fazendo
crochê
mas
quase
nunca
concluo
uma
peça
zap
zap
- mãe, você ainda tem algum material do curso de corte, costura e modelagem da vó?
- É muita coisa, tenho, sim. Essas fotos compõem uma apostila para o curso de corte e costura
que ela criou e ministrou por algum tempo quando morávamos lá na casa onde hoje mora a tia.
Esse curso chegou a ter mais de 20 alunas. Ela era modelista antes de ser costureira, em uma
certa altura da vida queimou seus desenhos e moldes porque, se bem me lembro, essa foi uma
grande frustração. Apesar de a escola ter dado muito certo, duas coisas a abalaram
profundamente, primeiro a falta de compreensão do meu pai que a tratava como empregada da
casa, nesse sentido, a sua vontade de trabalhar e construir algo profissionalmente "atrapalhava o
andamento" das "coisas da casa" e além disso o Brasil deixou de ser um país de economia
fechada e as pessoas começaram a comprar roupas chamadas "pret a porter" - que, teoricamente,
deveriam ser de boa qualidade -, ou seja, as grandes empresas começaram a "assinar" como
grandes nomes da moda e então a mão de obra das costureiras do terceiro mundo passou a ser
utilizada em linhas de produção, como é até hoje. Acabou!
ela sorria
e dizia
a graça
ora, a graça...