Minilivro o Ultimo Rei Dragao

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O

ÚLTIMO
REI
DRAGÃO
◆2◆
LEIA STONE
TRADUÇÃO ALDA LIMA

O
ÚLTIMO
REI
DRAGÃO
OS REIS DE AVALIER LIVRO 1
Joguei a minha caça sobre o ombro e grunhi com o peso. Era um
puma macho adulto e minha maior caça até então. Ele renderia carne sufi-
ciente para alimentar minha mãe e irmãzinha por pelo menos duas luas,
além de um tanto para negociarmos no mercado. Ainda faltava um tempo
para o inverno chegar, mas eu queria comprar peles novas para minha mãe
e Adaline.
Perseguir a fera na última semana havia se provado proveitoso, e não
pude conter o sorriso torto que levantou os cantos de minha boca no cami-
nho para a minha cidade natal, Cinzaforte.
Já que a vila ficava na base da Montanha Cinzaforte, com as minas de
carvão em seu interior, tudo nela ficava envolvido pela leve fuligem da mon-
tanha – e aquele dia não era exceção. As rochas que pontilhavam a estrada
estavam cobertas por um espesso manto de cinzas, assim como o bico das
minhas botas de caça. Eu mal notava agora; você simplesmente se acostu-
mava quando morava ali. Estava em nossos ouvidos, nariz, dentes e outros
lugares dos quais não devemos falar.
Em Grande Jade, capital de Escamabrasa, era possível avistar um morador
de Cinzaforte a mais de um quilômetro de distância. Espalhávamos a fuligem
a cada passo, e tínhamos bastante orgulho daquela particularidade. O povo
de Cinzaforte era um povo trabalhador. Nós não ficávamos à toa o dia todo.
— Belo abate, Arwen — declarou Nathanial de seu posto no topo do
portão da guarda, na entrada para Cinzaforte.
Nathanial era um dos rapazes mais bonitos do vilarejo. Cabelo loiro cor
de areia, olhos castanhos e maxilar definido… Só de olhar para ele já me
dava frio na barriga.

◆9◆
Respondi com um sorriso bobo.
— Quer vir jantar hoje à noite? Traga seus pais.
Ele aceitou, franzindo os lábios.
— Eu adoraria.
Estávamos vinte invernos após a Grande Fome, mas meus pais se lembra-
vam da época e treinaram os mais jovens para caçar e cultivar alimentos, e
para esfolar e preparar uma presa. Em geral eram os homens que caçavam
e as mulheres que cultivavam, mas com meu pai morto eu não tinha esse
luxo. Eles também nos ensinaram a ter bondade e a oferecer uma refeição
quando se tinha o bastante. Os tempos estavam abençoados agora, e aquele
puma era muito mais do que precisávamos.
O peso do animal estava começando a causar uma dor aguda em meus
ombros, o sangue do ferimento de flecha em seu pescoço escorria pela frente
da minha camisa. Eu mal podia esperar para deixar a criatura com minha
mãe e me limpar.
Passei pelas barracas do mercado, observando os homens e mulheres que
trabalhavam nelas, e me maravilhei com as lindas guirlandas de flores pendu-
radas por toda a aldeia para o festival do Dia de Maio. Eu havia receado não
conseguir voltar a tempo para o amado festival do amor, mas fiz meu abate
bem a tempo e, se me lavasse depressa, poderia até me juntar à tenda do beijo.
Apertando o passo, virei a esquina para a ala onde ficava a cabana da
minha mãe. Éramos um povo simples que vivia uma vida simples. Cabanas
de palha, água fresca do rio, campos de batata e mineração de carvão: isso
era Cinzaforte. As cinzas da mina tornavam o solo fértil e por isso éramos
conhecidos por nossas grandes batatas e doces tubérculos.
Certa vez, quando eu tinha quinze invernos de idade, visitei a nossa
capital, Grande Jade. Fiquei de queixo caído durante toda a viagem de três
dias. Era a cidade mais bonita de toda a Escamabrasa, motivo pelo qual
nosso rei morava lá, bem como todos os reis antes dele. Grande Jade era
repleta de tanta opulência e esplendor que, se eu não a tivesse visto com
meus próprios olhos, não teria acreditado. Mais jade, ouro e rubi do que
eu já tinha visto em toda a minha vida. As estradas eram todas de tijolo, as
construções de pedra branca, a cidade iluminada à noite parecia uma joia.
O hidromel corria solto, as barracas de comida eram abastecidas e as ruas,
cheias do povo-dragão.

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Eu nunca estive perto de tantos poderosos integrantes do povo-dragão,
mas Grande Jade era repleta deles. O povo-dragão estava ligado ao seu rei,
Drae Valdren. Por meio de si mesmo, Drae lhes transmitia aquele poder, então
fazia sentido que quisessem morar perto dele. Aqueles do povo-dragão com
magia suficiente podiam curar, cuspir fogo; eles tinham uma força extraor-
dinária. Mas se transformar completamente na forma de um dragão, isso era
apenas para o rei – o membro do povo-dragão mais poderoso que já existiu.
Em Cinzaforte, éramos uma espécie de anomalia. Tecnicamente, está-
vamos no território de Escamabrasa e éramos governados pelo rei-dragão,
mas consistíamos, sobretudo, em uma grande mistura. Humanos, povo-
-dragão, elfos, fadas – até alguns lobos perdidos vinham parar ali. Qualquer
um que fosse de raça mista ou de magia diluída no geral era expulso de seu
território e acabava ali, formando uma espécie de colônia. Uma sociedade
mestiça. Minha mãe era inteiramente humana; os pais dela desertaram da
cidade de Obscúria quando ela era pequena. Já meu pai era uma mistura de
humano e um décimo de povo-dragão. Isso não garantia poderes de fogo
legais, mas ele conseguia levantar grandes pedras nas minas e proporcionar
uma vida boa para mamãe e para mim. Até que ele morreu quando eu tinha
nove anos…
— Que o Criador seja louvado! Que bela caça! — gritou mamãe da porta
de nossa cabana, despertando-me daqueles pensamentos sobre meu pai.
Cada músculo do meu corpo doía. Eu estava cansada, fedia e estava
coberta de sangue, mas ver minha mãe tão feliz me fez sorrir como uma boba.
— Vamos ter que afrouxar a cintura da minha calça semana que vem
— brinquei.
Minha irmãzinha Adaline colocou a cabeça para fora da porta e arrega-
lou os olhos como nunca.
— Ensopado de puma para o jantar! — gritou de alegria.
Isso me fez dar uma boa risada. As batatas assadas e as verduras nos
satisfaziam, mas nada como o ensopado de puma da mamãe.
Entrei em casa, arrastei os pés pelo chão recém-varrido e passei pela
cozinha que dava para a varanda dos fundos. Mamãe já tinha montado a
mesa e estava com as facas de açougueiro a postos. Ela sabia que eu não vol-
taria para casa de mãos vazias, e sua fé em mim me deixou orgulhosa.
Depois de jogar a fera na mesa, gemi, mexendo o pescoço.

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— Você se saiu bem, Arwen. — Minha mãe ajeitou meu cabelo e depois
torceu o nariz. — Mas está com cheiro de morte.
Adaline caiu na gargalhada e eu saltei de onde estava para correr atrás
dela com os braços estendidos como uma sanguessuga de Mortósia.
Com o grito genuíno de terror que ela deu, foi a minha vez de cair
na gargalhada.
— Tudo bem, pare de alvoroçar a sua irmã. Vá se lavar, é Dia de Maio!
— repreendeu mamãe.
Dia de Maio.
Suspirei. Todas as meninas e meninos solteiros e maiores de idade fica-
vam na praça da aldeia com os olhos vendados e começavam a caminhar um
em direção ao outro. Quem você alcançasse primeiro, teria que beijar.
Era uma longa tradição de Cinzaforte e, por mais assustador que pare-
cesse, também era meio emocionante. A lenda dizia que a pessoa que você
beijasse no Dia de Maio seria aquela com quem iria se casar. Com dezoito
invernos de idade, esse seria meu primeiro Dia de Maio. Eu poderia ter ido
no último ano, mas estava vomitando as tripas depois de comer algumas
frutas podres, então não pude comparecer.
Levei os dedos à boca e toquei os lábios, imaginando se Nathanial iria
me beijar – não deveríamos espiar, mas alguns meninos deixavam suas ven-
das escorregarem um pouco para se dirigirem à garota que desejavam.
Eu desejava Nathanial.
Entrei no quarto que dividia com Adaline e peguei uma túnica e calça
limpas. Minha mãe já havia desistido de tentar me fazer usar saias e vestidos.
Desde que meu pai tinha morrido, nove invernos atrás, precisei me tornar
a caçadora da família, e caçar de vestido era simplesmente uma estupidez.
Adaline estava escondida debaixo das peles de sua cama, devia estar
com medo de que eu esfregasse sangue de puma nela. Fui em sua direção e
pairei sobre sua silhueta. Depois de um instante, pensando que eu tinha ido
embora, ela foi aos poucos baixando as cobertas, mas quando me viu gritou
de novo, puxando as peles de volta. Isso me fez explodir em gargalhadas.
— Arwen! — esbravejou minha mãe.
— Tá bom — resmunguei, com o riso morrendo na garganta.
Às vezes eu só queria provocar minha irmã, mas minha posição na famí-
lia exigia que eu crescesse mais rápido do que gostaria se tivesse escolha.

◆ 12 ◆
Tínhamos um teto sobre nossas cabeças e comida em nossas barrigas, então
eu sabia que não deveria reclamar.
— Ah! — exclamei em resposta para minha mãe enquanto caminhava
para a casa de banho comunitária. — Convidei o Nathanial para jantar —
informei casualmente.
Um convite para jantar no Dia de Maio não era pouca coisa.
Os cantos dos lábios de minha mãe se curvaram em um sorriso conspiratório.
— Por educação! Para compartilhar a caça — justifiquei, com o calor
subindo por meu pescoço.
Era costume, depois de uma boa caçada, convidar alguém para o ban-
quete. Dava sorte, até. Ela sabia disso. Mas também era incentivado, no
Dia de Maio, convidar pretendentes em potencial para jantar, assim as
famílias podiam se encontrar e começar a se acostumar com a ideia de um
possível casamento.
— Claro, querida — concedeu minha mãe em um tom doce e açuca-
rado, arrancando de mim uma careta.
Eu estava com dezoito invernos. Era esperado que eu arranjasse um
marido em breve, e Nathanial seria uma boa escolha. Ele tinha um emprego
importante na aldeia e era um dos únicos rapazes da cidade que não parecia
se sentir ameaçado pelas minhas caçadas com os outros homens da região.
Mesmo quando me casasse, eu continuaria tendo que sustentar Adaline e
minha mãe. Ele entendia isso.
Tirando da cabeça o sorriso esquisito de minha mãe, segui pelo beco
entre a farmácia do sr. Korban e a padaria da sra. Holina, e entrei na casa de
banhos de Naomie.
— Ah, garota! — Naomie tampou o nariz quando entrei. — Você está
com cheiro de rato morto! Vai precisar da sua própria banheira de imersão
com óleo de sândalo extra.
Abri um sorriso.
Naomie era como a avó da aldeia, mas com uma língua afiada. Ela cui-
dava de todos nós e sempre dizia a verdade, por mais que doesse. Para as
lavagens diárias, eu usava apenas o balde de água aquecida em nossa cabana,
mas para me limpar após uma semana de caça, a banheira de imersão e a
pedra-sabão de Naomie eram indispensáveis.

◆ 13 ◆
Eu a acompanhei até o banheiro feminino, passando pelos grupos em
imersão e acenando para as mulheres que reconhecia. A sra. Beezle e a sra.
Haney estavam concentradíssimas nas fofocas da cidade. Ouvi alguma
coisa sobre Bardic ter que parar de beber e a sra. Namal ter que cuidar do
marido e dos olhos errantes dele. A superfície da água do banho estava preta
da fuligem das cinzas.
Segui Naomie para um dos cômodos de imersão privados, isolados por
uma parede de palha, e deixei minhas roupas limpas no banquinho ao lado
da pequena banheira individual. Fuligem e sujeira eram aceitáveis para uma
banheira compartilhada, mas sangue e tripas de caça com certeza não.
Naomie tinha pelo menos sessenta invernos de idade, e seus dedos já
estavam nodosos pela doença óssea do inverno. Seus cabelos prateados esta-
vam sempre presos em um coque apertado no alto da cabeça. Ela abriu a tor-
neira e a água jorrou, enchendo a banheira e distribuindo o vapor até o teto.
Naomie era uma das poucas pessoas com água encanada na aldeia. Seu esta-
belecimento ficava bem em cima de uma fonte termal natural. Seu tataravô
havia sido um metalúrgico, então ele tinha soldado os canos e construído
tudo para que a água fosse tragada do chão. Sua família era dona daquela
casa de banhos desde sempre.
— Tive que aumentar meus preços — informou Naomie, olhando-me
com um pouco de pena. — Essa guerra que a rainha de Obscúria começou
na fronteira está afetando as minhas compras de pedras-sabão e óleos per-
fumados dos elfos em Arquemírea.
— Quanto?
— Duas moedas de jade ou uma troca aceitável — respondeu ela.
Duas moedas de jade? Costumava ser uma. Eu tinha ouvido falar um
pouco sobre a rainha de Obscúria ter criado caso com as remessas desti-
nadas a Escamabrasa, mas não dei muita atenção. Aquela mulher terrível
estava sempre começando guerras.
— Posso dar as moedas de jade, mas também acabei de abater um puma
macho adulto. Você pode ir até a minha mãe depois de fechar e escolher o
melhor corte.
Seus olhos brilharam.
— Vou querer a carne então, obrigada — disse ela, e eu concordei
enquanto ela saía do cômodo.

◆ 14 ◆
Carne de puma podia ser terrosa, mas era também deliciosa, com pou-
quíssima gordura ou cartilagem. A única carne mais desejável era a de alce,
então eu sabia que poderia fazer algumas boas trocas com meu abate. Talvez
comprasse um lindo vestido novo para mamãe usar no festival de troca das
estações, no outono.
Tirei as roupas e as deixei cair em uma pilha empoeirada e incrustada de
sangue aos meus pés, então entrei na água.
Um gemido de puro contentamento e alívio me escapou, fazendo algumas
das senhoras do outro lado da fina parede de palha rirem. Eu não me impor-
tava; estava bom demais. Enquanto afundava mais na água, senti algumas par-
tes de minhas costas arderem. Em algum momento da caçada, eu havia caído
e batido com as costas em uma pedra. Devia haver um arranhão ou dois ali.
A água continuou a correr da torneira, enquanto eu sonhava em ter água
quente em nossa cabana. Eu tomaria um banho todas as noites. Lavaria a
roupa em água quente, e a louça também, e só por diversão enfiaria o rosto
na água quente de manhã para despertar.
Suspirei de satisfação.
— Vou entrar — anunciou Naomie antes de voltar ao pequeno recinto.
Não me preocupei em me cobrir. Naomie tinha me visto nua centenas
de vezes. Eu ia ali desde que era bebê com minha mãe. Além disso, como a
profissional que era, ela não olhava. Ela derramou um fio de óleo na água
corrente e o cheiro forte de sândalo logo atingiu em cheio meu nariz.
Outro suspiro.
A Montanha Cinzaforte era conhecida por seus bosques de sândalo,
então o óleo era abundante ali e o cheiro sempre me lembrava de casa.
Uma pedra-sabão caiu na água e deslizou sob minhas costas, mas eu a
ignorei. Eu me ensaboaria depois; agora só queria me molhar. Cada mús-
culo do meu corpo explodia de alegria naquele instante.
— Teve algum corte? — perguntou ela.
Naomie cuidava dos homens na volta das caçadas deles, então ela sabia
como o corpo regressava daquele tipo de empreitada.
Confirmei e me sentei, mostrando as costas para ela.
Ela assobiou baixo.
— O maior parece infectado. Vou pegar o óleo de neem e adicioná-lo ao
banho. Carne de puma ainda é um ótimo negócio.

◆ 15 ◆
Neem era um produto caro, então foi gentil da parte dela não cobrar
mais ou pedir mais carne.
Naomie desapareceu e voltou arrastando os pés com o óleo em mãos,
despejando-o também na água do banho. Depois, ela estendeu a mão e
pegou a pedra-sabão, enquanto eu me sentava e me curvava para a frente.
Ela a passou por minhas costas nas partes que eu não conseguia alcançar
e sibilei quando a esfregou de leve sobre o corte. Devia ser maior do que eu
pensava. Eu estava tão empolgada por ter matado meu primeiro puma que
perdi toda a noção de dor e só quis voltar para casa.
Depois de ter minhas costas torturadas pela velha, ela jogou a pedra-sa-
bão na banheira novamente e saiu.
Enfim posso relaxar.
Eu me encostei na banheira inclinada e deslizei o mais fundo que pude
antes de submergir por completo. Meus cabelos serpenteavam ao meu redor
e fiquei chocada – e um pouco envergonhada – ao ver que pareciam até cas-
tanhos, não loiros, de tão sujos. A água do banho havia adquirido um leve
tom avermelhado devido a todo o sangue, então fechei os olhos e apenas
inspirei e expirei devagar, deixando o cheiro de neem e sândalo penetrar
minhas narinas.
Sete dias perseguindo a fera e dormindo em pedras e folhas agora pro-
vavam ter valido a pena, os dias caçando pequenos animais como coelhos e
gambás e sendo ridicularizada pelos homens ficaram para trás. Eu era uma
caçadora respeitada agora. Aliás, talvez agora os homens até me deixassem
entrar para o sindicato dos caçadores…
— Os homens do rei virão até aqui! — gritou uma voz feminina para
dentro da casa de banho, fazendo-me abrir os olhos de repente, arrancando-
-me de meus devaneios.
Os homens do rei? Eles estavam se preparando para a guerra ou algo
assim? Por qual outro motivo eles viajariam de Grande Jade até ali? Em
geral, levávamos carvão ou sândalo para eles negociarem, mas eles nunca
vinham até nós. Éramos a aldeia suja e esquecida de Escamabrasa que o rei
até tolerava, mas nunca visitava ou prestava atenção. Não havia ninguém
do povo-dragão poderoso ali para ser recrutado para seu exército ou ser de
alguma utilidade. Éramos um bando de vira-latas mestiços.
— Ouçam! — disse a mesma jovem por toda a casa de banho.

◆ 16 ◆
Eu me sentei, esticando o braço para abrir a porta de palha e ver quem
era ela.
Kendal. Eu já deveria ter imaginado. Ela era a maior fofoqueira da cidade e
vivia por qualquer pedacinho de notícia, ainda mais vinda de Grande Jade
e qualquer coisa relacionada ao rei-dragão. Ela gostava de pensar em si como
a pregoeira da cidade. Éramos amigas, mas eu não gostava de ficar na sua
companhia por muito tempo.
Ela enfiou a mão dentro do casaco, tirou um pergaminho de aparência
oficial e o abriu.
— O rei Valdren procura uma nova esposa para lhe dar um herdeiro.
Ela fez uma pausa para esperar o suspiro coletivo que irrompeu pela casa
de banho, inclusive o meu.
O rei tinha sido casado com a rainha Amelia por apenas três invernos
e havia perdido quatro filhos com ela antes que ela finalmente sucumbisse
à morte no parto. Valdren havia se tornado rei ainda jovem, casando-se
quando tinha minha idade, e ainda estava com apenas vinte e um invernos
de idade. Foi devido ao casamento dos dois que visitei Grande Jade quando
tinha quinze anos. Um casamento real era uma grande emoção em todo o
reino. A rainha Amelia havia partido apenas um inverno atrás e, sem um
herdeiro, o rei ficava vulnerável à rainha de Obscúria, que buscava dominar
o reino e purgá-lo da magia do povo-dragão. Era inevitável que ele procu-
rasse uma nova esposa, mas ouvir aquilo oficialmente foi chocante.
Kendal pigarreou, tentando esconder um sorriso.
— Agora ele está iniciando uma busca completa, por toda a Esca-
mabrasa, de uma nova rainha…
Os suspiros e gritinhos de empolgação ecoaram por toda a casa de
banho, e não pude deixar de rir do desespero coletivo. O rei jamais se casaria
com uma garota de Cinzaforte. Anunciar aquilo ali era uma mera formali-
dade, visto que, tecnicamente, éramos um território de Escamabrasa.
— Para lhe dar um herdeiro — continuou Kendal —, ele enviará fareja-
dores a cada aldeia, vila e cidade dentro das fronteiras de Escamabrasa para
encontrar todas as mulheres elegíveis com uma magia forte o bastante
para levar a gestação de um filho dele até o fim. Elas devem ser apresentadas
a ele na próxima lua cheia.
Os gemidos coletivos de decepção tomaram conta do lugar.

◆ 17 ◆
— Ele não vai encontrar ninguém com magia assim em Cinzaforte! —
constatou uma das mais jovens, derrotada.
— Nenhuma é poderosa o suficiente para gerar um herdeiro do rei-
-dragão — concordou Naomie.
E elas tinham razão. Infelizmente, a rainha Amelia morreu porque a
magia do rei era forte demais para ela carregar seu filho até o fim, e isso por-
que diziam que ela era quase meio povo-dragão.
Kendal jogou os cabelos para trás.
— Eu pessoalmente sou um quarto povo-dragão, então…
A casa de banho explodiu em gargalhadas, e eu não pude evitar minha
própria bufada.
— Querida, um quarto? — Naomie balançou a cabeça. — Para levar
uma gestação do próprio rei-dragão até o fim, você teria que ser metade e
abençoada pelo Criador.
Kendal enrolou o pergaminho às pressas e o enfiou no bolso.
— Vamos deixar que os farejadores decidam!
Ela saiu em disparada da casa de banhos, e foi quando a fofoca começou
a todo vapor.
— Pobre rapaz, perder a esposa e quatro filhos — disse alguém.
— Por que ela não conseguiu gerar um herdeiro? Por Hades! Com meus
quadris eu poderia dar dez a ele — gabou-se Bertha Beezle.
De repente, senti a necessidade de proteger a falecida rainha.
— Ela não fez nada! A magia do rei é forte demais para meras mortais
— retruquei.
Qualquer pedacinho de humanidade que a rainha carregava foi rasgada
ao meio pela magia de um rei-dragão legítimo quando ela entrou em traba-
lho de parto.
Quando a fofoca morreu, decidi que era um bom momento para lavar
meus cabelos e silenciar o falatório. Eu a tinha encontrado uma vez, a rainha
Amelia – bem, encontrar era um exagero, mas a vi de longe em minha viagem
a Grande Jade. O rei já havia entrado quando subi no telhado da floricultura
e pus os olhos em nossa nova rainha. Era a mulher mais bonita que eu já
tinha visto. Seus longos cabelos eram pretos como tinta e se esparramavam
em cachos pesados até a cintura. Ela usava um vestido cravejado de tanto
jade que devia pesar tanto quanto um puma. Diziam que o rei Valdren e a

◆ 18 ◆
rainha Amelia foram escolhidos como o casal perfeito para inaugurar uma
nova dinastia de herdeiros mágicos. Como a vida pode ser cruel às vezes.
Primeiro, o rei perdeu o pai logo após o casamento, depois os filhos não
sobreviveram ao parto e, por fim, ele perdeu a esposa e o filho natimorto?
Era uma perda quase dolorosa demais para suportar. Então tentei não pen-
sar demais no assunto. Eu esperava mesmo que o rei encontrasse uma nova
esposa e tivesse um filho saudável.
Pegando a pedra-sabão, esfreguei corpo e cabelos com força até minha
pele ficar em carne viva e com cheiro de botica. Meus cabelos voltaram ao
tom original de milho claro e, além de alguns hematomas e sujeira sob as
unhas que nunca sairiam, eu estava decente. De pé, derramei um último
balde de água limpa sobre o corpo e saí da banheira. Depois de escovar os
dentes na pequena pia encostada na parede oposta do cômodo particular,
me enrolei em um pano e puxei a tampa do ralo. Observando a água marrom
e tingida de sangue escorrer, sequei os cabelos depressa com uma toalha e os
trancei de lado antes de vestir minha túnica de algodão azul e calça branca.
Pela comoção do lado de fora, eu sabia que as notícias haviam se espa-
lhado rápido e que toda a aldeia zuniria com a fofoca por semanas, muito
tempo depois de os farejadores chegarem e irem embora.
A vinda dos homens do rei à nossa aldeia no Dia de Maio era um
grande acontecimento.
— Arwen! — A voz de minha mãe veio de trás da divisória de palha.
Abri a divisória e acenei para ela, mas minha mão congelou quando vi a
cor sumir de seu rosto. Ela correu na minha direção, me segurou pelos bra-
ços e se inclinou para sussurrar em meu ouvido.
— Você precisa sair agora. Corra — sussurrou.
Eu ri, imaginando o que ela estava aprontando, mas quando ela se afas-
tou, seu rosto estava mais sério do que nunca.
— O que houve? — perguntei.
Ela olhou para trás, como se para mostrar que não podíamos conversar
ali. Meu corpo ainda estava em choque; minha mãe nunca agia desse jeito.
Ela era calma e quase nunca demonstrava medo. Havia algo errado.
Eu a segui para fora da barraca de banho, dei a Naomie um sorriso e um
aceno e corri para nossa cabana. Quando estávamos virando a esquina para
a nossa rua, vi que a tenda branca do beijo do Dia de Maio estava montada

◆ 19 ◆
no meio da aldeia. Faixas de guirlanda rosa e roxa pendiam da abertura. Era
pitoresco, romântico. As moças da cidade já estavam entrando.
Parei de andar.
— Isso pode esperar, mãe? Já perdi o ano passado e… eu estava
ansiosa para…
Para o meu primeiro beijo. Eu não queria dizer, mas minha mãe entendeu.
Ela olhou para a tenda e notei a surpresa em seu rosto.
— É mesmo. É Dia de Maio e você perdeu o do ano passado porque
estava doente…
Olhei ansiosa para a abertura da tenda quando vi Nathanial entrar.
— Mãe, por favor.
Minha mãe caminhou até algumas flores silvestres plantadas na frente da
casa da sra. Patties e arrancou um buquê roxo, prendendo-o em minha trança.
— Vá e dê seu beijo de Dia de Maio. Depois volte imediatamente para
casa. Vou arrumar suas coisas.
Isso me fez franzir a testa. Arrumar minhas coisas? Eu havia acabado de
voltar de uma caçada de uma semana. Não havia como eu sair de novo sem
um descanso adequado. Mas ela tinha consentido com a tenda do beijo,
então eu não ia discutir. Apressando-me pelo quintal, corri primeiro para o
jardim de ervas da srta. Graseen e peguei um raminho de hortelã. Ela pôs a
cabeça à janela da cozinha e sorriu.
— Tenda do beijo? — perguntou.
Corei e enfiei as duas folhas de hortelã na boca, mastigando-as com força
para refrescar o hálito. Mesmo tendo acabado de escovar os dentes, eu não
ia correr nenhum risco com meu primeiro beijo. A senhorita Graseen nos
deixava pegar um raminho aqui e ali, e em troca arrancávamos suas ervas
daninhas e consertávamos sua cerca quando predadores invadiam.
Dei meia-volta, pronta para entrar na tenda de seda branca, quando esti-
quei o pescoço para o portão principal ao ouvir uma comoção.
Uma grande procissão da Guarda Real estava entrando e se dirigindo
justo para onde eu estava. Isso me fez congelar, maravilhada com os cava-
los e suas armaduras. A luz do sol refletia nas cristas douradas dos dra-
gões em seus peitos, e, por um instante, me esqueci da tenda do beijo.
Desde que aprendi a segurar uma espada, meu sonho era estar na Guarda
Real. Claro que não era muito feminino e minha mãe desencorajava essa

◆ 20 ◆
ambição, mas nunca perdi a esperança. Pelo que sabia, havia apenas uma
mulher na guarda.
Regina Wayfeather.
Diziam que ela era a líder de toda a Guarda Real. Eu queria correr para
ver se ela estava ali e pedir descaradamente que ela tocasse em meu arco de
caça para dar sorte, mas não podia ignorar que a janela para meu primeiro
beijo estava se fechando. Sem contar que minha mãe parecia perturbada,
então eu teria que correr para casa logo depois.
Quando a Guarda Real do rei desmontou e começou a caminhar em
direção à tenda, entrei. O falatório entusiasmado alcançou meus ouvidos, e
minha atenção disparou para o outro lado, onde estavam os jovens elegíveis.
Quando troquei um olhar com Nathanial, ele sorriu, o que me fez retribuir
o sorriso.
— Arwen! — chamou Kendal.
Eu me virei para a direita, onde todas as jovens formavam uma longa fila.
Elas estavam com seus melhores vestidos, e tinham até contornado os olhos
com carvão e pintado os lábios com beterraba, enquanto eu estava de calça
de linho e uma trança molhada que minha mãe havia tentado enfeitar com
uma flor.
Agora eu me sentia uma tola. Quem ia para a barraca do beijo no Dia de
Maio usando calça?
Um caçador.
Quando meu pai morreu, era o meio do inverno. Enquanto eu vivesse,
jamais esqueceria as dores da fome no ano seguinte. A aldeia nos dava sobras
aqui e ali, mas sem um caçador na família para fazer uma viagem mensal ou
trabalhar nas minas, com certeza teríamos morrido. Naquele ano, montei
minha primeira armadilha e comecei a levar pequenas caças para casa.
Rato era o animal mais baixo do totem, mas permitiu que minha mãe
vivesse seu luto sem precisar se apressar em arranjar um novo casamento
para colocar comida na mesa.
Balancei a cabeça para espantar esses pensamentos.
A sra. Brenna, que estava organizando a tradição do Dia de Maio, foi até
o centro da tenda e pigarreou. Brenna era humana e uma das costureiras
da aldeia. Ela confeccionava todos os vestidos de noiva, de modo que for-
mar alguns pares românticos para sempre era do interesse dela. Ela sempre

◆ 21 ◆
usava vestidos lindos que levantavam seus seios fartíssimos até a garganta e
distraíam todos os homens.
— Hoje pode muito bem ser o dia em que vocês conhecerão sua futura
esposa — disse aos homens, promessa recebida com gritos e aplausos. Ela
então se voltou para as mulheres. — Não se preocupem, eles começam
a beijar melhor com o passar do tempo.
Todas caíram em uma gargalhada tensa, e alguns dos rapazes resmun-
garam com o insulto.
Eu me alinhei bem com Nathanial, e a venda foi posta sobre meus olhos.
— Nada de trapaça — observou Kendal enquanto a amarrava apertada
atrás da minha cabeça.
Fiz um movimento lento e proposital para levantar um pouquinho a
minha venda, mas a mão de alguém a desceu com força, batendo na minha.
— Está nas mãos do Criador agora — repreendeu a sra. Brenna. Meu
estômago deu um nó. — Jovens amantes — anunciou Brenna —, avancem
e beijem a primeira pessoa que tocarem.
Ouvi passos arrastados, todos avançavam sem muita certeza, com os
braços esticados. Eu queria chamar o nome de Nathanial, mas isso parece-
ria meio desesperado. Tentei olhar para baixo e ver se talvez reconhecesse
as botas dele, mas Kendal havia apertado demais a maldita venda. Antes
que me desse conta, esbarrei em alguém, e seus braços pararam em volta da
minha cintura para me firmar.
Meu coração começou a martelar na garganta. Era agora. Esse seria o
meu primeiro beijo.
Por favor, não deixe ser o melequento do Vernon, rezei para o Criador.
Então levantei a mão, subindo os dedos de seu peito até encontrar o rosto.
O corpo do rapaz congelou sob meu toque e eu quase perdi a coragem. Ele
estava com medo? Meus dedos deslizaram sobre o tecido macio até chega-
rem ao pescoço, então parei, com medo de segurar as laterais de seu rosto.
Suas mãos estavam congeladas na minha lombar. Umedeci meus lábios
com a língua. Na tenda do beijo de Dia de Maio, eram as meninas que
davam o primeiro passo, e você tinha permissão para desistir se não se sen-
tisse pronta.
Será que é Nathanial?
Ele queria me beijar ou correr?

◆ 22 ◆
Diziam que todos os rapazes espiavam e que a sra. Brenna os deixava
amarrar suas vendas com mais frouxidão. Que se um garoto tocasse em uma
garota que ele não queria beijar, ele dava um selinho casto, semelhante ao
que se daria na mãe quando jovem. Mas se ele gostasse de você… circula-
vam rumores de que era um beijo de deixar qualquer garota tonta.
Eu queria ficar tonta.
Com a morte prematura de meu pai, fui empurrada para a vida na caça,
vestindo calças e afiando minha lâmina. Não me entenda mal: eu gostava
dessa vida, mas era difícil para os outros meninos me verem como uma
garota que gostariam de beijar.
E eu queria ser beijada, droga.
Um nó se formou na minha garganta e o nervosismo só crescia em meu
estômago. Engoli em seco e me inclinei para a frente antes de perder toda a
coragem. Arrastando os polegares por seu queixo, senti a barba por fazer e o
maxilar pontudo de um homem que com certeza não era Nathanial.
Congelei de pânico.
Nathanial ainda tinha um rosto de bebê, sem barba, e seu maxilar era
definido, mas não tanto assim. Ao sentir aquela mandíbula larga e a barba
por fazer, me perguntei se deveria mirar na bochecha. Eu estava tão deci-
dida a beijar Nathanial que, diante da prova de que não era ele, tive von-
tade de desistir.
Mas então os lábios dele já estavam nos meus. Ele deu o primeiro passo,
quebrando a regra fundamental da tenda de Dia de Maio. Uma pequena
faísca elétrica percorreu minha pele e eu ofeguei. Ele fez o mesmo – nós
dois arfamos com a surpresa do outro. Um calor viajou até meu ventre e me
inclinei para a frente, aprofundando o beijo.
Seus lábios eram macios e inseguros no início, então se abriram e eu
deslizei a língua para dentro do jeito que Kendal havia me dito para fazer,
colidindo com a dele. Quando ele deixou escapar um gemido baixo, meu
mundo girou, um sorriso curvou os cantos de minha boca. Seus dedos na
minha cintura traçaram um círculo suave em meus quadris enquanto sua
língua fazia o mesmo em minha boca.
Santo Criador.
Foi o melhor primeiro beijo que uma garota poderia esperar.
Meu estômago ardia com calor e meu coração inf lava e abria asas em

◆ 23 ◆
meu peito. Os lábios quentes e macios nos meus fizeram todo o meu ser
implorar por mais.
— Tudo bem, está ficando quente aqui! — anunciou Brenna com uma
risada. — Tirem essas vendas e conheçam seu par, meus jovens pombinhos!
De repente ele se afastou de mim, os lábios, as mãos, o calor, a intensi-
dade. Era como se eu tivesse mergulhado em uma banheira de gelo. Levan-
tei a mão, puxando com impaciência a venda para baixo, e fiquei cara a cara
com a parede da tenda branca.
Ele tinha ido embora.
Uma dor se espalhou pelo meu peito. Minha garganta apertou quando
pigarreei, tentando não demonstrar emoção, mas sentindo como se tivesse
acabado de ser abandonada no altar. Era errado fugir de um par no Dia de
Maio, a menos que se considerasse o beijo terrível e nunca mais quisesse ver
a pessoa.
Quando olhei para a esquerda, o buraco em meu peito aumentou. Natha-
nial estava sorrindo radiante para uma corada Ruby Ronaldson. Os cabelos
pretos dela desciam em ondas suaves até a cintura, onde Nathanial segu-
rava com firmeza sobre o vestido de seda verde. Ruby era padeira. Ela era
feminina, e usava vestidos, e sabia cozinhar – todos os traços de uma esposa
perfeita, e tudo o que eu não era.
Lágrimas turvaram minha visão, mas eu pisquei até contê-las. Eu não
queria mais estar ali, aquilo era uma estupidez.
Dei meia-volta e escapei pela abertura lateral da barraca, indo procurar
minha mãe.
Ela estava tão assustada e, além do mais, agora eu daria boas-vindas a
qualquer distração que ela estava prestes a jogar em mim. Qualquer coisa
para esquecer aquele beijo que mudou meu mundo e aquele adeus doloroso.

◆ 24 ◆
Quando entrei em casa, o cheiro do ensopado de puma na panela
me deu água na boca. Meu olhar se voltou para a minha mochila de viagem
encostada na parede. Havia sido limpa e parecia totalmente abastecida e
pronta para uma nova rodada.
— Você está me assustando, mãe. Por que arrumou a minha mochila?
Acabei de voltar.
Ela colocou minha pilha de roupas sujas no cesto de roupas e se virou
para mim com lágrimas nos olhos.
— Mandei a sua irmã ir brincar com a Violet para termos tempo de nos
despedirmos a sós.
Meus olhos quase saltaram dos glóbulos.
— Despedir? Eu não vou a lugar algum, mãe. Acabei de chegar em casa
depois de uma semana na estrada.
Sem contar que eu tinha acabado de ser abandonada na tenda do beijo e
agora me sentia mortificada. Quem quer que fosse o autor daquele beijo
arrebatador, agora eu queria evitá-lo a todo custo. Queria ir para o meu
quarto, chorar até dormir e ficar na cama pelos próximos dois dias.
Minha mãe torceu as mãos, balançando a cabeça, afastando os cachos
castanho-escuros do rosto.
— Guardei um segredo obscuro de você a vida toda — confessou ela e
eu congelei.
Estiquei o braço e segurei as costas de uma cadeira, desprevenida para as
palavras que saíram da boca de minha mãe.
— Do que você está falando?
Ela se aproximou, pegou minha mochila de viagem e a entregou para mim.

◆ 25 ◆
— Você precisa ir embora antes que os farejadores te encontrem.
Aceitei a mochila, mas depois a deixei cair aos meus pés. Estendendo o
braço, segurei minha mãe pelos ombros e a olhei bem nos olhos.
— Que segredo obscuro?
Era o tipo de coisa que você nunca gostaria de ouvir de alguém próximo.
Agora eu estava de fato surtando. Por que eu precisava evitar que os fareja-
dores me encontrassem? Eles farejavam magia nas pessoas, e eu mal tinha
alguma. Eu seria de zero interesse para eles.
Minha mãe suspirou, seu hálito com cheiro de sálvia e alecrim remetia
à minha infância. Ela adorava mastigar aquelas ervas enquanto cozinhava.
— Seu pai e eu tentamos ter um filho por cinco invernos, mas o curan-
deiro disse que havia algo errado com a semente dele.
Suas palavras foram cortantes, arrepiando os pelos dos meus braços.
O que ela estava dizendo?
— Você é minha. Minha filha — rosnou ela, esticando as mãos para
apertar meus antebraços, como se para me convencer.
A declaração me deixou enjoada. Claro que eu era filha dela. Por que ela
está me dizendo que sou filha dela?
— Mas foi outra mulher que te deu à luz.
Soltei os braços, escapando de seu alcance, e desabei na cadeira. Meu
peito arfava, minha respiração saía em expirações irregulares.
Ela caiu de joelhos na minha frente com lágrimas escorrendo pelo rosto.
— Eu deveria ter te contado antes, mas nunca parecia ser uma boa hora,
e eu não queria que você pensasse que não era minha.
Fiquei sentada ali em um silêncio atordoado por um minuto inteiro, até
que ela se levantou outra vez e colocou uma cadeira diante da minha.
— Quem era ela? A mulher? — perguntei, enfim capaz de respirar fundo
e manter o pânico sob controle.
Minha mãe mordeu o lábio.
— Uma viajante que estava de passagem. Vestida como nobre, em seda de
cores vivas, bordadas com jade. Foi quando eu ainda trabalhava na taverna.
Eu era uma nobre? Era isso que ela estava dizendo? Os nobres eram pelo
menos metade povo-dragão, talvez mais.
— O que aconteceu? — Não reconheci minha própria voz. Precisava
de informações, e rápido. O buraco em meu peito agora era grande demais,

◆ 26 ◆
e eu precisava preenchê-lo com alguma coisa por medo de desaparecer
por completo.
Minha mãe engoliu em seco.
— Ela chegou à taverna sozinha, grávida, pálida como um fantasma e sal-
picada de sangue. Parecia abalada, como se tivesse visto uma batalha. Devido
à evidente classe social dela, não fiz perguntas. Apenas a levei até o quarto.
Esperei minha mãe continuar. Ela olhou para minha mochila de viagem
e depois para a porta e se debruçou.
— Ela entrou em trabalho de parto no meio da noite. A taverna inteira
acordou com os gritos. Bardic me mandou ir cuidar dela, então obedeci.
Santo Hades!
Uma mulher fugindo de uma batalha entrou em trabalho de parto pre-
maturo em Cinzaforte? Para onde será que ela estava indo? Cinzaforte
ficava bem na ponta do território de Escamabrasa; ninguém vinha até ali a
menos que quisesse. Mas nobres não vinham até ali. Era sabido que algu-
mas pessoas se escondiam na região, visto que a vida coberta de cinzas
não era desejável e, portanto, poucas pessoas vinham procurá-las. Essa
mulher pretendia ter o bebê ali? Ter a mim e me deixar para trás onde eu
não seria encontrada?
As mãos da minha mãe tremiam.
— Mandei chamar Elodie, que entendia mais de parto na época, mas
avisaram que ela estava doente com o pulmão preto e não poderia ajudar.
Elodie morreu de pulmão preto no ano em que nasci, então minha mãe
se tornou a parteira da aldeia. Deve ter sido aquele evento que iniciou sua
carreira! De garçonete da taverna à parteira da aldeia. Eu sempre me per-
guntei como ela deu o salto.
— Continue — insisti.
Minha mãe pegou minha mochila e veio até mim, agora com as lágrimas
escorrendo livremente pelo rosto.
— Não temos muito tempo.
Eu me levantei, pegando a mochila e a colocando nas costas.
— Não vou embora até saber toda a história. Por que eu preciso tanto ir?
A nobre morreu em trabalho de parto?
Em toda a minha vida, talvez eu tenha visto minha mãe chorar duas
vezes. Uma vez quando meu pai morreu e outra quando ela deu à luz o

◆ 27 ◆
natimorto da sra. Hartley. Mas agora ela estava derramando muito mais
lágrimas do que eu tinha visto em meus dezoito invernos.
— Foi um trabalho de parto do pôr ao nascer do sol. Nesse tempo, eu e
ela criamos um vínculo. Contei para ela histórias sobre o seu pai e eu para
passar o tempo ou para distraí-la. Contei para ela todas as vezes em que ten-
tamos engravidar, onde eu cresci, qualquer coisa para impedi-la de chorar
de dor. Ela me contou coisas também. Coisas assustadoras.
— Que tipo de coisas?
Segurei as alças da mochila com força.
Minha mãe se aproximou, baixando a voz.
— Não entendi muito bem o que ela disse. Muito do que ela dizia pare-
cia uma divagação induzida pela dor, mas uma coisa eu ouvi com clareza. —
Ela afastou os cachos do rosto. — Toda a família dela havia sido assassinada
por algum tipo de rixa contínua que ela tinha com o rei-dragão. Sua magia
era uma ameaça para ele, foi o que ela disse. Ela… disse que era do povo-
-dragão, mas que tinha sangue puro.
Minhas sobrancelhas se juntaram em confusão. Ser do povo-dragão
com sangue puro faria dela integrante da realeza, e aquilo não era possível.
O rei não tinha uma irmã.
— Ela tinha fugido, mas me avisou que se alguém detectasse a magia em
seu bebê, a criança seria morta.
Arrepios percorreram meu corpo inteiro, cada centímetro da minha
pele, e eu congelei.
— Eu sou essa criança?
Minha mãe confirmou, estendendo a mão para acariciar minha boche-
cha enquanto suas lágrimas se multiplicavam.
— Ela morreu em trabalho de parto. Perdeu sangue demais. Mas eu te
salvei, e cuidei de você, e te amei, e te fiz minha.
Um gemido escapou de minha garganta quando se tornou difícil demais
conter as lágrimas.
— Me desculpe por não ter contado antes. Foi egoísmo, mas eu não que-
ria que você pensasse que não era desejada ou amada. — Minha mãe mal
conseguia falar.
Foi uma coisa terrível não me contar, mas naquele momento a perdoei
plenamente. Eu entendi. Quando era um bom momento para contar a um

◆ 28 ◆
filho que ele nasceu de uma mulher que estava fugindo porque a família dela
havia sido assassinada?
Nunca.
— Eu perdoo você.
Corri até ela e nos abraçamos com força e ao mesmo tempo.
Naquele momento, pensei em como eu era loira e minha mãe, morena;
em como, na verdade, não éramos nada parecidas. Não como as outras
meninas e suas mães. Não como ela e Adaline.
Espere.
Eu me afastei e a encarei.
— Como você teve Adaline se havia algo errado com a semente do
papai? Eu te vi grávida, eu estava lá no parto dela.
Eu tinha cinco anos quando Adaline nasceu, mas me lembrava bem. Foi uma
das minhas primeiras lembranças. Os gritos de minha mãe me assombraram.
O rosto de minha mãe ficou vermelho e ela baixou os olhos.
— Depois que você veio morar com a gente, seu pai quis muito outra
criança. Ele permitiu que eu… me deitasse… com outro homem, para ver
se de fato era a semente dele o problema.
Eu não estava preparada para aquela resposta, e a surpresa deve ter
transparecido em meu rosto.
— Por favor, não julgue. É uma coisa muito comum, e não havia amor ou
paixão entre nós — apressou-se ela em dizer.
Eu não estava julgando, só estava… em choque. Meu pai era tão ciumento
que uma vez tinha ameaçado arrancar as bolas de Bardic se ele olhasse para
o decote de minha mãe na taverna. Eu simplesmente não o imaginava per-
mitindo que ela se deitasse com outro homem.
— Ele se sentia culpado por não poder me dar os filhos que queríamos
— disse ela finalmente. — Me diga que entende.
Eu precisava de uma bebida. Em geral, eu não era muito chegada a vinho
ou hidromel, mas naquele momento poderia beber uma garrafa inteira.
— Eu entendo.
Eu também queria saber quem na aldeia era o pai biológico de Adaline,
mas não ousei perguntar. Não era importante.
Aquilo me fez sentir ainda mais saudade de meu pai. Ele amava tanto
minha mãe e queria tanto outra criança com ela, que a deixou ir para a cama
de outro homem para ter uma. Era mais uma prova de sua bondade.

◆ 29 ◆
— Você precisa ir — insistiu minha mãe. — Apenas diga que está indo
caçar de novo e volte em uma semana. Arrumei suas coisas para duas sema-
nas, só para garantir.
Mais uma semana na estrada. A poeira, a vigilância constante por saquea-
dores ou animais. Adormecer no saco de dormir, tomar banho no rio, as noites
frias… Eu havia acabado de voltar de tudo aquilo. Não queria ir de novo, mas,
depois do que minha mãe tinha acabado de me contar, sabia que deveria.
— Sim, farei isso — murmurei.
Ela suspirou de alívio.
— Isso tudo vai acabar em uma semana. O rei não mantém um censo
de Cinzaforte, então os farejadores nem saberão que não encontraram você.
Apertei as alças da mochila e abracei minha mãe uma última vez.
— Diga para a Ada que vou sentir saudade dela.
Minha mãe acariciou meu cabelo.
Dei uma última olhada no ensopado fervendo no fogão, um ensopado
que eu nunca poderia saborear, o puma esfolado secava na varanda dos fun-
dos, e eu me aproximei da porta da frente.
— Ah, espera! — gritou mamãe. — Eu já ia me esquecendo. A nobre
também disse que colocaria um feitiço protetor em sua magia, mas que
ele se desgastaria com o tempo, quando você atingisse a maioridade. Se os
farejadores pegarem você, se faça de desentendida. Diga que é em maior
parte humana com algum sangue de dragão diluído.
— Bom, foi isso que pensei que eu era a vida inteira — murmurei.
Era verdade que eu tinha um senso de equilíbrio incrível: corria mais
rápido que todos em minha classe e podia rastrear qualquer animal em um
raio de pouco mais de um quilômetro. Sempre pensei que pudesse ser a
pequena quantidade de magia de dragão que havia herdado de meu pai.
— Adeus, Arwen — disse minha mãe, como se nunca mais fosse me ver,
o que foi perturbador.
— Adeus, mãe. — Minha voz falhou enquanto eu engolia a emoção.
Ao sair para a movimentada vila, me perguntei o que diabos havia acon-
tecido com a minha vida.

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