A Metodologia de Santo Tomás

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A METODOLOGIA DE SÃO TOMÁS DE AQUINO.

Paulo Faitanin Universidade Federal Fluminense.

Resumo: É mérito de Tomás de Aquino a inovadora interpretação filosófica. Não se pode


aproximar-se de sua filosofia sem dar-se conta da importância do seu método.
O Aquinate procede do estudo de casos mais simples e concretos para chegar à
análise dos mais complexos e abstratos. Quando chega aos conceitos, sua
exposição é por meio de argumentos demonstrativos e prováveis e recorre, no
caso da filosofia, aos livros dos filósofos e, no caso da teologia, à autoridade na
verdade de fé.
Palavras-chave: método, Filosofia, Tomás de Aquino.

Abstract: The philosophical innovation is merit of Thomas Aquinas interpretation. Can t


come close to his philosophy without giving account of the importance of his
method. The Aquinate proceeds from the study of most simple and concrete
cases to arrive at the analysis of most complex and abstract. When he arrives at
the concepts, his exposition is by demonstrative and probable arguments and
appeals, in the case of the philosophy, to books of the philosophers and, in the
case of the theology, to the authority, in the faith truth.
Keywords: method, Philosophy, Thomas Aquinas.

Introdução.

O método sempre foi importante para a exposição de qualquer idéia.


Temos como significativos exemplos que, tanto Platão quanto Aristóteles1,
cada qual a seu modo, desenvolveram métodos. Perpassando a História do
Pensamento não encontramos uma obra sequer que não tenha implícita ou
explicitamente suposto ou desenvolvido um método, mesmo aquelas que
pretensiosamente aludiram não tê-lo. O estudo do método, ou o que se
entende por metodologia, no contexto filosófico, só teve a sua intensificação a
partir de Descartes. A partir de então, método tomou quatro sentidos: lógico,
como parte da lógica que estuda os métodos; lógica transcendental aplicada;
conjunto de procedimentos metódicos de uma ou mais ciências e análise filosófica de tais
procedimentos. Não diferentemente Tomás de Aquino desenvolveu o seu

1
Estes autores nos presentearam, basicamente, dois métodos: um dedutivo, o platônico e
outro indutivo, o aristotélico. Mas isso não significa que Aristóteles não se valia da dedução
ou que Platão não aplicava a indução. O fato é que o rico legado platônico e aristotélico
persistem até hoje sob outras formas variantes de dedução e indução.

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método ou, como nos alude Leo Elders, os seus métodos2. Um ou muitos,
parece-nos que independente disso, o procedimento era o mesmo, pois só
diversificava quanto à aplicação. Seria um equívoco igualar o método tomista
ao método escolástico, comumente valido pelos demais autores medievais,
sem mostrar as diferenças introduzidas pelo Aquinate3. A palavra metodologia
serve adequadamente para significar aqui o estudo filosófico do método de
investigação de São Tomás de Aquino.

1. A Metodologia Tomista.

É mérito de Tomás de Aquino a inovadora hermenêutica filosófica4. Não


se pode aproximar-se de sua filosofia sem dar conta da importância do seu
método. O Aquinate procede do estudo de casos mais simples e concretos
para chegar à análise dos mais complexos e abstratos5. Quando chega aos
conceitos, sua exposição é por meio de argumentos demonstrativos e
prováveis e recorre, no caso da filosofia, aos livros dos filósofos e no caso da
teologia, à autoridade, na verdade de fé6. Como que sempre buscando um
diálogo com o mundo, sua pesquisa, seja filosófica, seja teológica, parte da
análise das realidades sensíveis, na medida em que busca chegar, a partir disso,
à análise das realidades imateriais. Neste sentido, o seu método começa por
compreender o ente sensível, sua causa próxima e seus princípios, para ir
ascendendo ao ente supra-sensível, na consideração de sua causa remota.
Quase toda investigação do Aquinate é segundo este procedimento. De
fato, este modus operandi se faz onipresente às suas exposições. Não obstante,
apesar de tudo isso, para o Aquinate, o método não passa de um instrumento
que serve à filosofia, que por sua vez, serve à teologia. Por isso, para o
Aquinate, o método é, por excelência, instrumento da razão humana para
2
E LDERS, L. SVD . Sobre el método en Santo Tomás de A quino. Buenos Aires: Sociedad Tomista
Argentina, 1992, p. 39.
3
Um valioso estudo sobre o método histórico nos estudos escolásticos, que se refere
também à gênese do método escolástico, encontramos em: G RABMANN, M. De methodo
historico in studiis scholasticis adhibenda , La Ciencia Tomista, 27 (1923), 194-209.
4
A doutrina da participação, a que nos referiremos mais abaixo, é fundamental para a
intensiva hermenêutica filosófica de Tomás de Aquino. Fabro desenvolveu amplamente
esta questão: FABRO, C. The intensive Hermeneutics of Thomistic Philosophy: The notion
of participation , Review of Metaphysics, 27 (1974), 449-491.
5
De fato, há uma correlação intrínseca entre método e experiência. E foi com relação a isso
que dissemos acima que embora sejam muitos os métodos, um só é o procedimento, ou
ponto de partida: a experiência. Sobre a relação do método com a experiência vejam:
G ILLET, M.S. La méthode philosophique de S. Thomas et l expérience , Angelicum, 7
(1930), pp. 145-168.
6
CG.I,9,4

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melhor conhecer a verdade das coisas e, por analogia, aceder às de Deus,


posto que as que Deus nos revela, são por infusão. Em qualquer caso, a
sistematização de seu método gerou uma obra quase inabarcável7.
Duas são as fontes da metodologia tomista: a lógica aristotélica e a o método
escolástico. Da lógica aristotélica herdou o modo argumentativo e
demonstrativo8 e da escolástica o modo expositivo das questões. Além desta
herança, desenvolveu o seu próprio método: a linguagem analógica, um método
filosófico com aplicação teológica9, que se fundamenta em duas doutrinas - a
doutrina do ato de ser e a da participação10. O Aquinate analisa as questões que
trata e as expõe comentando, criticando, sempre partindo das idéias mais
simples às mais complexas, pautando os seus argumentos nos princípios
invioláveis da razão e comparando-as analogamente, afirmando o que há de
verdadeiro, negando o que há de falso e corrigindo o que seja passível de
correção.
Comumente, como já dissemos, o Aquinate parte da análise das coisas
simples para chegar à consideração das mais complexas. Podemos dizer que o
método tomista, no geral, é indutivo, ou seja, por via de indução, isto é, aquele
que vai da consideração do particular à consideração do universal. Analisam-
se, primeiramente, as coisas singulares e procura extrair delas o que seja
comum de todas. Em linhas gerais, a indução pode ser compreendida como a
ida dos efeitos à causa. O processo pelo qual se extrai dos singulares o que é
comum de muitos é denominado abstração. O intelecto abstrai dos singulares o
que é comum de todos, que por ele é considerado. Fundamentado nos
princípios retos que o constituem, ou seja, os primeiros princípios intelectivos,
como o da não contradição, o intelecto, mediante a sua aplicação nas coisas
singulares que conhece, comparando-as entre si, formula e concebe um
conceito, uma noção universal que se diz, predica comumente de todos os
singulares considerados antes pelo intelecto. Uma vez estabelecido tais
conceitos, o intelecto quando os predica das coisas, julga-os, deles fazendo um
juízo de veracidade ou falsidade, de acordo com a adequação ou não com o
real singular. Daí em diante, entra em vigor a via dedutiva, ou a dedução, em
que o intelecto pela análise e crítica do conceito em sua aplicação e
predicação, julga-o e examina-o segundo a adequação ou inadequação com o

7
ALARCÓN, E. Uma cuestión de método. Consideraciones previas a la interpretación de
Sto. Tomás de Aquino , Aquinate, 1 (2005), pp. 200-213.
8
In II Met. lec5.
9
STh.I,q1,a1,c.
10
FAITANIN, P. Principium individuationis: Estudio metafísico de la doctrina de la individuación en
Tomás de Aquino. Tesis doctoral. Pamplona: Universidad de Navarra, 2001, 21-31.

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real11. Até aqui temos o procedimento básico do método tomista, que não
erraríamos se o denominássemos de método gnosiológico, por pertencer
naturalmente ao modo como o nosso intelecto conhece a realidade e como,
por abstração, forma os conceitos. Mas a grande contribuição tomista para a
metodologia passa pela metafísica. Vejamos.

2. Método metafísico.

O método do Aquinate é, por excelência, metafísico. Tomás, em


Metafísica, estabelece duplo método: um ascendente, denominado resolutivo -
resolutio-, que parte das determinações particulares às resoluções universais,
que não é outra coisa que a indução; e outro descendente, denominado
compositivo -compositio-, que inversamente parte das resoluções universais às
composições particulares, que não é senão a dedução12.
A simples apreensão, é fundamental para ambos os métodos. Ela define-se
como o ato por meio do qual o intelecto conhece alguma essência, na medida em que
simultaneamente afirma ou nega, por cujo conhecimento produz-se o
conceito. Em outras palavras, por apreensão simples entende-se o ato, por
meio do qual, o intelecto apreende algo de modo absoluto, a seu modo e tornando o que
apreende semelhante a si mesmo13. Por isso, o Aquinate, seguindo o que Aristóteles
afirmara, denominou a simples apreensão de intelecção indivisível, ou seja, a
intelecção absoluta que o intelecto produz, por si mesmo, da qüididade de
alguma coisa14.
O intelecto produz o conceito, a partir do que considera da realidade.
Mas a realidade, fora da mente, apresenta-se em sua existência singular. O que
é o singular? Por singular entende-se algo individual, de nenhum modo
comunicável a muitos15, cuja nota essencial é ser único e distinto de todos os
demais16, de tal maneira que não pode ser definido17. Do que se segue, que o
singular não é apto naturalmente a ser predicado de muitos, senão de um só,
ou seja, de si mesmo18. Neste sentido, o singular é o que pode ser mostrado,
designado, apontado ou indicado com o dedo19. Assim sendo, o intelecto

11
STh. I,q79,a8,c.
12
In de Trin. lec.2,q2,a1,c3.
13
STh.I,q30,a3,ad2;In II Sent.d24,q3,a1,c.
14
In I Periher. lec. 3,n.3.
15
STh.I,q11,a3,c.
16
STh.I,q13,a9,c.
17
STh.I,q29,a1,ad1.
18
In I Periher. lec.10.
19
STh.I,q30,a4,c.

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apreende, por abstração, a natureza do singular, de um modo mental,


universal e a expressa por um conceito. Mas o que é abstração?
A abstração é o ato pelo qual o intelecto abstrai ou separa a materialidade
de uma realidade singular, que existe fora do próprio intelecto, apreendendo
dela sua forma e tornando-a universal, semelhante a si mesmo. Abstrair é,
pois, separar de algo singular toda a sua materialidade e movimento20. Neste
sentido, a abstração significa o ato intelectual, por meio do qual o próprio
intelecto torna inteligível o que ele considera e que existe fora da mente, de
modo singular, sensível e individual. No ato do conhecimento, a abstração é o
primeiro e mais nobre ato do intelecto, como sendo a sua mais perfeita
operação21. Em outras palavras, a abstração é o modo pelo qual o intelecto
processa o conhecimento do real concreto, inclinando-se a ler por dentro -
intus legere - a natureza, a essência do real concreto que ele considera, pois só
abstraindo-a de sua sensibilidade pode ele conhecer a sua forma em ato22, a
sua natureza, já que para conhecer o singular é sempre necessário abstrair23.
Mas o que busca o intelecto? O intelecto quando abstrai busca considerar o
singular em sua universalidade; busca, portanto, produzir uma representação
universal do singular24, ou seja, o intelecto produz uma similitude universal,
inteligível do que no real existe de modo singular e material. Mas se o intelecto
ordena-se a produzir, pela abstração, uma similitude universal do que
considera do real, a primeira questão, a saber, é: o que é universal?
Etimologicamente, universal significa unum versus alia, um que se verte em
muitos. Em seu significado real, universal é o que por natureza é apto a
predicar-se de muitos25. Ora, se o universal é o que é apto a predicar-se de
muitos, isso significa que o que é universal é comum de muitos. Do que se segue,
que universal e comum de muitos são sinônimos26. Cabe frisar que o intelecto
somente produz o universal por abstração27, pois o intelecto, pela abstração,
ao produzir o universal, concebe o conceito, a partir do qual se expressa a
essência universal da coisa particular, que ele considerou. Assim, pois, algo é
considerado universal não somente quando o nome predica-se de muitos,
mas, também, quando o que é significado pelo nome, pode dar-se em
muitos28. Cabe, ainda, distinguir o universal lógico do universal metafísico: o
20
In II Sent.d2,q2,a2,ad4; STh.I,q55,a2,ad2.
21
STh.I-II,q4,a6,ad3.
22
CG.I,44.
23
STh.II-II,q173,a3,c.
24
STh.I,q85,a2,ad2.
25
In I Perih. lec10.
26
In I De trin. lec.1; In VII Met. lec 13.
27
STh.I-II,q29,a6,c.
28
In I Perih. lec.10.

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universal considerado em si mesmo, em seu conteúdo real e metafísico, é o


universal metafísico; o universal enquanto conceito universal, desde um ponto
de vista de sua predicação, é o universal lógico29. O universal lógico é real,
porém abstrato30. Face a isso, cabe saber o que é o conceito.
O conceito é o fruto da concepção que o intelecto faz pela abstração, ao
considerar a universalidade da natureza de algo singular. Por concepção entende-
se, neste contexto da lógica, a geração ou a produção de um conceito, por
parte do intelecto31. Pela concepção, o intelecto produz uma palavra ou verbo
mental, no qual se encontra a similitude inteligível abstraída da coisa concreta,
sem que com isso se estabeleça uma identidade entre a natureza que concebe e
a natureza concebida, pois o que o intelecto produz é uma similitude do
objeto real32. O conceito é uma voz mental, cujo sinal sensível é um nome que
indica certo significado33. Por isso, aquelas simples concepções que são
produzidas pelo intelecto são vozes mentais - palavras interiores -34 que
significam alguma coisa35.
Alguns conceitos, por razão de sua universalidade, são mais abrangentes
do que outros, como o conceito animal que é mais extenso do que o conceito
homem, já que aquele se estende e se predica de mais realidades do que este. Ao
contrário, o conceito homem é mais compreensível do que o de animal,
porque é menos extenso do que aquele. Esta distinção, segundo a
universalidade, é o que determina a extensão e a compreensão do conceito.
Exigem-se, para a expressão do verbo mental, os sinais lingüísticos, que por
meio de palavras, nomes e verbos expressam o conceito e o seu significado. A
obtenção do conceito é o cume da aplicação do método indutivo tomista.

3. Ente, Ato de ser e existência.

O método filosófico, como vimos, é o da indução e o da dedução36. No


método resolutivo ou indutivo, o procedimento é partir da análise dos efeitos
à causa. Neste procedimento o Aquinate constrói a sua metafísica do ser, cujo
cume efetua uma resolução global de tudo o que existe por participação

29
In VII Met. lec13.
30
De ente et ess. c3.
31
STh. III,q13,a12,c.
32
STh.q27,a2,ad2.
33
In I Sent. d2,q1,a3.
34
CG.IV,11.
35
In I Perih.lec.16.
36
In De Trin.lec2,q2,a1,c3.

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naquilo que existe por essência e tudo o que é devir no ser37. O método
filosófico é posto a serviço da teologia.
O método próprio da teologia é o resolutivo ou dedutivo, ou seja, o que
vai dos princípios universais e simples dos quais derivam todos os outros38. O
que move o teólogo a argumentar não são os primeiros princípios metafísicos,
mas os artigos de fé. Contudo, o Aquinate compõe a sua demonstração
teológica com uns e outros, harmonizando-os39. Por meio dos artigos de fé, o
crente pode vir a chegar a outras conclusões, discorrendo dos princípios às
conclusões40. Por isso, a teologia é, também, ciência e todas as demais ciências
a ela se subordinam, porque seus princípios se subordinam, na demonstração,
aos princípios da teologia, que são os artigos de fé41. Ao método dedutivo se
junta à metodologia teológica tomista o argumento de autoridade, cuja
autoridade é a Sagrada Escritura.
O método indutivo da filosofia é instrumento do da teologia. A filosofia
mediante o seu método pode demonstrar os preâmbulos da fé, mas não os
artigos de fé, que são dados revelados pela Escritura. O método filosófico
pode indicar certa conveniência dos fatos da fé, tentar dar uma explicação
limitada pelo intelecto e demonstrar a conexão entre os artigos de fé. Por via
negationis o método de demonstração filosófico pode estabelecer como os
argumentos contrários aos artigos de fé são falsos e inconclusivos42. Em
qualquer caso, o método filosófico é fundamental para a demonstração
teológica. Com ele, são igualmente importantes os princípios da metafísica
tomista, porque são os elementos de toda e qualquer ulterior demonstração.
Neste sentido, as noções de primeiros princípios, ente, ato de ser, essência e
existência são fundamentais para a metodologia tomista.

3.1. Os primeiros princípios de demonstração.

Para o Aquinate princípio significa aquilo de que algo procede e que


contribui para a produção e demonstração de qualquer coisa43. Segundo o
Aquinate, está inscrito na natureza intelectiva do homem o hábito dos
primeiros princípios teóricos, também conhecidos como hábitos dos
primeiros princípios do conhecimento. É a partir do uso do hábito dos

37
De subst. sep.c9,n94.
38
STh.I-II,q14,a5,c.
39
In De Trin.proem.q2,a2.
40
In De Trin.proem.q2,a2.
41
STh.I,q1,a2,c.
42
In De Trin.proem.q2,a3.
43
STh.I q33 a1, c.

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primeiros princípios que se intui o hábito dos primeiros princípios da


demonstração do conhecimento. Por tal intuição não somente se aperfeiçoa a
inteligência como, também, a inclina para o conhecimento da verdade
universal. Tal exercício dispõe a virtude intelectual especulativa dos hábitos
dos primeiros princípios44. A tal intuição do primeiro princípio de
demonstração, segue-se a concepção do ente, como aquilo que é, e do não-
ente, como aquilo que não é.
Tal concepção é necessária e a constatação do princípio é evidente para o
intelecto, quando concebe o ente. Esta evidência conclama o estabelecimento
da existência do primeiro princípio do conhecimento, denominado princípio
de contradição, ou princípio da não-contradição, este que não precisa ser
demonstrado, porque é antes o que demonstra tudo mais que o intelecto
concebe e que marca a oposição por contradição entre coisas que são e as que
não-são45, entre o universal e o particular46 e entre a afirmação e a negação47,
de cuja oposição se segue o corolário de que é impossível afirmar e negar ao
mesmo tempo48 e que o ente é e não é, simultaneamente, uma mesma
realidade49.
Do primeiro princípio da contradição, no qual todos os demais
princípios se fundamentam50, seguem-se o princípio de identidade, que afirma
que o ente é o que é51, o princípio do terceiro excluído, que sustenta não haver
um meio termo entre ente e não-ente52, o princípio de causalidade, que afirma
toda causa produzir um efeito proporcional53 e o princípio de finalidade, que
sustenta que todo agente opera por causa de um fim54. Enfim, como dissemos
a aplicação do método metafísico tomista tende para a concepção do ente. Por
isso, o efeito imediato da aplicação deste método é o conceito de ente.

3.2. O conceito de ente.

O Aquinate concebe o ente analogamente. O conceito de ente não é


unívoco, porque não se diz só e da mesma maneira de um único ser. O que é

44
STh. I-II,q57,a1.
45
STh.I-II,q35,a4,c.
46
STh.I-II,q.77,a2,ob3.
47
In I Peri. c.16.
48
STh.I-II,q94,a2.
49
In IV Met. lec.6.
50
STh.I-II,q94,a2;De ver.q5,a2,ad7.
51
STh.I,q13,a7.
52
STh.I-II,q94,a2;De ver.q5,a2,ad7.
53
In IV Sent.d1,q1,a4;STh.I,q79,a13.
54
In I Sent.d35,q1,a1.

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unívoco? O conceito unívoco diz-se do nome que significa uma mesma


essência, que se diz de uma única natureza, ou seja, a conveniência do nome
com a natureza, como no caso do nome Deus55. O conceito de ente não é
equívoco, porque não é o que significa várias coisas por um mesmo nome56,
como ocorre na ambigüidade, onde se toma a similitude entre as realidades,
mas a unidade do nome57 em que não há proporcionalidade entre o nome e a
essência, ou seja, o nome é comum, mas as substâncias são diversas, como
ocorre com o nome cão dito do animal, da constelação e do temperamento
irascível do homem58.
O conceito de ente não é genérico, porque não inclui todas as
diferenças59 predicáveis do ente que fazem parte da definição, como o
conceito de animal que inclui as diferenças racional e irracional60, como no
conceito de ente não entra alto, magro, baixo, gordo etc. O conceito de ente é
análogo, porque resulta da comparação entre os diversos entes, por
proporção61, em que o nome, segundo um significado aceito, é posto na
definição de algo, com outro significado62, como o que se diz de algo que
comumente se aplica a muitos63, como saudável dito do alimento e do corpo
que dele se alimenta. O ente considerado em si mesmo, como algo que existe
fora da mente, de modo autônomo e independente, é dito essencial, como o
abacateiro. O ente considerado como algo que existe fora da mente, mas que
existe em outro, como algo que depende da existência do outro, é dito
acidental, como o tom de cor verde do abacateiro.
O ente que existe fora da mente é dito real porque é uma realidade
concreta e singular e o ente que é considerado pela e na mente é dito de razão,
porque ou é uma imagem ou um conceito abstrato e universal. O ente que já é
o que é, é dito ente em ato, como o abacateiro é abacateiro em ato. O ente
que vem a ser o que ainda não é, denomina-se ente em potência, como a
semente de abacateiro que ainda não é abacateiro em ato, senão só em
potência. Neste sentido, ente se diz da essência, do acidente, real e de razão,
da potência e do ato64. Mas há que advertir que ente por acidente não é

55
STh.I,q5,a6,ad3/q13,a10,c;In II Sent. 22,1,3,ad2.
56
C.G.4,49.
57
C.G.1,33.
58
STh.I,q4,a2,c.
59
In I Met. lec.9, n.139.
60
STh.I,q3,a5,c.
61
STh.I,13,a5,c.
62
STh.I,13,a10,c.
63
In I Sent.22,1,3,ad2.
64
In V Met. lec.9, n.885.

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propriamente ser65 e, por esta razão, não há ciência acerca do ente por
acidente66. O ente que é considerado abstraído da realidade concreta, pelo
intelecto, é denominado ente abstraído ou ente de razão67. Há o ente de razão
com fundamento no real, dito desta maneira porque resultou da abstração de
uma realidade concreta, como o conceito de maçã. Há, também, o ente de
razão raciocinado, enquanto produzido pela razão só a partir dos dados da
imaginação, com as imagens que já existem nela, daí ente de razão derivado do
raciocínio da razão, como produzido pela imaginação, por exemplo, uma
maçã com asas, ou minotauro.
Daí, ente de razão com fundamento no real e ente de razão raciocinado
ou raciocinante. De qualquer modo, a consideração do ente de razão é própria
da Lógica68 e do ente real, considerado em si mesmo, é próprio da Metafísica.
Em um e outro caso, o estudo do ente é primeiríssimo, porque é o que
primeiro capta o intelecto quando considera o real69. Concluindo, quando o
intelecto concebe o ente afirma que o ente é aquilo que é e o não-ente aquilo
que não é, sendo impossível conceber o ente sendo e não sendo ao mesmo
tempo. Desta captação do conceito de ente, o intelecto, a partir da aplicação
dos primeiros princípios de conhecimento - que possui como hábitos -
formula a noção de ente em ato. Como veremos, a noção de ente em ato
constitui uma das principais doutrinas tomistas. Lembremos que até aqui foi
aplicado o método indutivo, que partiu da consideração singular e ascendeu
por abstração a conceitos abstraídos e separados de suas condições
individuais, tal como a natureza da coisa existe na realidade.

3.3. A divisão do ente - o ato.

O ente considerado em si mesmo, divide-se em ato e potência70. A noção


de ato indica perfeição, pela qual alguma coisa existe71. O ato é dito de
diversos modos72. Com relação à potência ele é anterior73, mas no que se
refere ao movimento e ao tempo, ele é posterior 74. O ato é sempre melhor

65
In XI Met. lec.8, n.2272.
66
In VI Met. lec.2, n.1172-1176.
67
STh.I-II,q8,a1,ad3.
68
In IV Met. lec.4, n.574.
69
In I Met. lec.2, n.46.
70
In VI Met. lec.2, n.1171.
71
In IX Met. lec.3, n.1805.
72
In IX Met. lec.5, n. 1828-1831.
73
In IX Met. lec.7, n. 1845.
74
In V II Met. lec.2, n. 1278; IX, lec.7, n. 1847-1848; IX, lec.8, n. 1856; In XII, lec.4, n.
2480-2481; In XII lec.6, n. 2506.

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que a potência, pois a sua privação é o mal75; diz-se ato primeiro o ser de algo
e ato segundo sua operação, que provém do ser. Daí que o operar segue o ser. A
potência é dupla: a potência ao ser que é da matéria e a potência de operar que
é da forma76. Diz-se potência ativa a de operar e potência passiva a de receber
algo de outro77. A potência ativa pode ser imanente, quando permanece no
agente e transeunte, quando termina em outro78. A potência da matéria é
princípio de recepção do ser e a potência da substância é princípio de
operação. A potência metafísica é a da ordem do ser, como a da matéria à
forma. A contínua consideração abstrata do ente pelo método metafísico,
conduz o intelecto à distinção do ser e da essência.

3.4. O ser, a essência e a existência.

Temos visto que o ente é o que tem ser79, ato de ser80, perfeição, pela
qual alguma coisa existe81, subsiste e é o que de mais nobre82, perfeito, digno e
íntimo83 há na natureza da coisa84, como ato de todos os atos85 e ato de tudo o
que existe e de qualquer forma que venha a existir86 como substância.
Num primeiro sentido metafísico, essência indica a natureza individual da
substância e num segundo sentido, agora lógico, indica a qüididade ou
essência da substância individual, abstraída pelo intelecto. Então, a essência no
primeiro sentido metafísico é sinônima de substância e a essência no sentido
lógico é sinônima de qüididade, ou seja, a essência considerada como
conceito, abstraída e na mente87. Na consideração lógica a essência é o que o
intelecto capta da união e composição de matéria e forma88. Por isso, a
essência na mente indica o que é comum de muitos89. Na consideração
metafísica a essência é na própria substância a composição de matéria e forma.
Ora, na substância é a forma que dá o ser e é a matéria que o recebe. Em
75
In IX Met. lec. 10, n. 1883-1885.
76
STh.I-II.q55,a2,c.
77
STh.I,q25,a1,c.
78
STh.I,q9,a2,c.
79
In XII Met. lec.1, n.2419.
80
In IV Met. lec.2, n.556-558.
81
In IX Met. lec.3, n.1805.
82
CG.I,c28,n260;In I Sent.d17,q1,a2,ad3.
83
De anima. a9;De nat. accid. c.1,n.468.
84
In I Sent.d33,q1,a1,ad1.
85
CG.III,c3;C.Theo.I,c.11,n.21.
86
Quodl. XII,q5,a1;STh.I,q4,a1,ad3.
87
STh.I,q3,a3,c.
88
STh.Iq29,a2,ad3.
89
De ente et ess.c2.

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substâncias de mesma natureza é o mesmo ato de ser que determina a


perfeição em todas. Mas as substâncias de mesma natureza se distinguem
individualmente, umas das outras, pelo modo como recebem o ato de ser em
seus supostos. Isto faz com que o ser seja distinto da essência na substância de
cada coisa de que é ser. Pautado nisso, afirma-se que ser e essência
distinguem-se nas criaturas. Só em Deus ser e essência se identificam90. Esta é
a mais profunda concepção metafísica conseguida pela aplicação do método
metafísico.
A existência é a realização da última perfeição do ato de ser, pois vimos
que o ato de ser é aquilo pelo qual algo existe91. Neste sentido, sem ato de ser,
não há existência. Podemos, então, dizer que a existência é a manifestação
aqui e agora do ato de ser realizado na substância. A existência torna factual a
presença da substância. Sendo assim, a distinção metafísica que há é a de ser e
essência e não a de essência e existência, posto que segundo a consideração
metafísica, não há essência que não exista e existência que não tenha uma
essência.

4. Analogia e participação.

Outro ganho fundamental da metodologia tomista é a concepção de


linguagem analógica ou a doutrina da analogia, que é a grande inovação
tomista. Por ela, tornou-se mais eficiente a comparação entre realidades que
aparentemente, muito divergindo em algo acidental, assemelham-se em algo
essencial. A linguagem analógica é o fundamento para a afirmação de duas
outras importantes doutrinas tomistas: a doutrina da participação, a partir da
qual se afirma e demonstra a real existência de algo na criatura que representa
à maneira de vestígio, imagem e semelhança alguma perfeição divina e a
doutrina do ato de ser que demonstra que o ser representa e confirma, em cada
criatura, certo grau de realização de alguma perfeição divina. Este rico
vocabulário se alinha, até hoje, nos léxicos e dicionários especializados ou não
e, inclusive, guardam parcial, quando não total, semelhança com o sentido
metafísico original aristotélico-tomista.
A lexicografia tomista estabelece, guardadas as proporções, uma
revolução semântica em linguagem filosófica e teológica. Isso marca,
efetivamente, a sua importância e atualidade. Termos como substância,
acidente, matéria, forma, privação, ato, potência, causa, princípio, uno,
verdade, bem, algo, relação e, tantos outros, enriqueceram ainda mais o leque

90
C.Theo. I,XI.
91
In IX Met. lec.3, n.1805.

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de possibilidades semânticas de alguns conceitos que mantêm, em alguns


casos, o mesmo sentido original em seus usos corriqueiros.

4.1. A analogia.

Como vimos, mediante um nome, os conceitos podem ser utilizados para


significar outras coisas. E isso ocorre porque se distingue o significado de uma
palavra, do modo como é utilizado para significar92. Neste sentido, fica claro
que os termos da linguagem, como as palavras e o nomes, nem sempre
conservam o mesmo significado. Por este motivo, cabe estabelecer a seguinte
divisão: termo unívoco diz-se do nome que significa uma mesma essência, que
se diz de uma única natureza, ou seja, a conveniência do nome com a
natureza93, como quando se toma o nome coelho para designar a uma espécie
de animal e que conserva sempre este mesmo sentido; termo equívoco indica
a indução de significar várias coisas por um mesmo nome94. É sinônimo de
ambigüidade, onde não se toma a similitude entre as realidades, mas a unidade
do nome95.
Equívoco diz-se da não proporcionalidade entre o nome e a essência, ou
seja, o nome é comum, mas as substâncias diversas96, como quando se toma o
nome quarto para significar um número ordinal ou um cômodo da casa e, por
fim, termo análogo diz-se de algo que comumente se aplica a muitos97,
segundo uma comparação por proporção98, em que o nome, segundo um
significado aceito, é posto na definição do mesmo nome, com outro
significado99, como quando se toma o nome liberdade para aplicá-lo ao
sentido moral ou para usá-lo no sentido penal.
A analogia tem fundamental valor e uso. É a comparação por
proporção100; em analogia é necessário que o nome segundo um significado
aceito seja posto na definição do mesmo nome, com outro significado101, por
isso, análogo se diz de algo que comumente se aplica a muitos102; a analogia
pode ser: de proporcionalidade, quando os sujeitos possuem a perfeição

92
CG.I,30.
93
STh.I,q5,a6,ad3/q13,a10,c;In II Sent. 22,1,3,ad2.
94
C.G.4,49.
95
C.G.1,33.
96
STh.I,q4,a2,c.
97
In I Sent.22,1,3,ad2.
98
STh.I,13,a5,c.
99
STh.I,13,a10,c.
100
STh.I,13,a5,c.
101
STh.I,13,a10,c.
102
In I Sent.22,1,3,ad2.

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significada de modos diversos, mas semelhantes, como por exemplo, ser dito
do homem, do anjo e de Deus; de atribuição, quando um dos sujeitos possui a
perfeição em sua plenitude e os demais por participação ou de modo
derivado, como por exemplo, intelecto dito de Deus e por atribuição do
homem e do anjo.

4.2. A participação.

A doutrina da participação tem importância capital na metafísica tomista.


Participação é o nome que se dá à causalidade em que o efeito de uma causa
recebe parcialmente o que existe de um modo total na causa, como por
exemplo, quando se diz que o homem participa da animalidade, porque não
exaure tudo o que é a animalidade em sua substância; da mesma maneira
Sócrates participa da humanidade, pois sendo o que é, Sócrates não esgota a
humanidade em sua substância103. As coisas que distinguem entre si, se
distinguem porque possuem naturezas diversas e as possuem diversas porque
as recebem diversamente104. Cada uma delas participa, a seu modo, segundo o
que constitui a sua substância, e o que recebem de perfeição da causa da qual
participam e são efeitos105.

5. Conclusão.

O método metafísico de São Tomás de Aquino trouxe grandes benefícios para


a pesquisa filosófica. O grande ganho, sem dúvida, foi compreender o ente
como ato, cuja perfeição máxima, no homem, é a vida inteligível ou espiritual,
pela qual o homem pode conhece a si mesmo, as demais coisas e a Deus.

103
In De Hebd.lec2,n24.
104
C.G.I,26.
105
In De causis, pro. 25; De pot.q3,a5.

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