KENNY. História Concisa Da Filosofia Ocidental. (Parte II)
KENNY. História Concisa Da Filosofia Ocidental. (Parte II)
KENNY. História Concisa Da Filosofia Ocidental. (Parte II)
A UTOPIA DE MORE
Utopia (a «Terra sem Lugar») é uma ilha com 54 cidades, cada uma
delas com 6000 casas, cada casa com os seus próprios terrenos agríc o-
las, cultiv ados pelos cidadãos, que são enviados por turnos para o
campo, por períodos de dois anos. Dentro da cidade, os cidadãos tr o-
cam de casa, por sorteio, de 10 em 10 anos; não existe pro priedade
privada, e nada está fechado à chave. Além da agricultura, cada cida-
dão aprende um ofício, e todas as pessoas têm de trabalhar; mas o dia
de trabalho dura apenas seis horas. Não existem indolentes, como na
Europa, havendo por isso muitos braços, que tornam o trabalho ligei-
ro, permitindo muito tempo de lazer para as actividades culturais. Só
um número muito reduzido de pessoas está isento do trabalho manual;
estas pessoas são os eruditos, os sacerdotes, ou os membros das filei-
ras dos magistrados eleitos que governam a comunidade.
Em Utopia, tal como na República de Platão , a unidade básica da
sociedade é a casa de família. Aquando do casamento, as mulheres
mudam-se para a casa do marido, mas os homens ficam na casa onde
nasceram, submetidos ao familiar mais velho enquanto este tiver
capacidade para governá-la. Nenhuma casa de família pode conter
menos de 10 nem mais de 16 adultos; os membros em excesso são
transferidos para outras casas cuja quota tiver diminuído. Quando o
número de casas de família de uma cidade ultrapassar o limite estab e-
lecido e nenhuma outra cidade tiver espaço para mais famílias, são
fundadas colónias em territórios ultramarinos não ocupados e, se os
nativos resistirem à instalação, os Utopianos estabelecê -las-ã o pela
força das armas.
As viagens internas na Utopia são reguladas por passaporte; mas,
uma vez autorizadas, os viajantes são recebidos noutras cidades como
se estivessem em casa. Mas ninguém, onde quer que esteja, deve ser
alimentado sem fazer a sua parcela diária de trabalho. Os Utopianos
não utilizam dinheiro e só utilizam o ouro e a prata para fabricar
bacios e grilhetas para os presos; os diamantes e as pérolas são dados
às crianças, para que brinquem com eles, juntamente com os seus
chocalhos e as suas bonecas. Os Utopianos não compreendem que as
outras nações valorizem as honras palacianas, gostem de jogar aos
dados ou se deleitem a caçar animais.
Os Utopianos não são ascetas e consideram a mortificação corporal
em função de si mesma uma coisa perversa; mas honram aqueles que
têm vidas altruístas, entregando -se a tarefas que outros consideram
desprezíveis, como a construção de estradas ou o cuidado dos doentes.
Algumas destas pessoas praticam o celibato e são vegetarianas; outras
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pratic áveis com outras que parecem fantasiosas. More utiliza a descri-
ção de uma sociedade imaginária como veículo para promover a sua
filosofia política e para criticar as instituições sociais suas contemp o-
râneas. Ainda como Platão, More deixa frequentemente a cargo dos
seus leitores a questão de saber até que ponto as disposições que des-
creve são propostas políticas sérias e até que ponto representam ape-
nas um reflexo trocista das distorções das sociedades reais.
A REFORMA
BRUNO E GALILEU
FRANCIS BACON
AS GUERRAS RELIGIOSAS
A VIDA DE DESCARTES
A DÚVIDA E O COGITO
Aquilo que até agora aceitei como verdadeiro par excellence chega até
mim vindo quer dos sentidos, quer por meio dos sentidos. Ora, já hou -
ve alturas em que os sentidos me enganaram; e um homem sensato
nunca confia inteiramente naqu eles que alguma vez o enganaram.
Mas, embora os sentidos possam, por vezes, enganar -nos acerca de
objectos diminutos ou remotos, há muitos outros factos acerca dos
quais a dúvida é claramente impossível, embora provenham da mesma
fonte; por exemplo, que estou aqui, sentado junto ao fogo, vestindo um
casaco de Inverno, com este papel na mão, etc.
Notável argumento! Como se eu não fosse um homem que habitual-
mente dorme de noite e tem, a dormir, as mesmas impressões (ou
impressões ainda mais estranhas) que estes homens têm acordados!
Com que frequência tenho, na calma da noite, a convicção familiar de
que estou aqui, de que visto este casaco, de que me encontro sentado
junto do fogo — quando na realidade estou despido e deitado na minha
cama!
274
Quer eu esteja acordado quer a dormir, dois mais três são cinco, e um
quadrado tem apenas quatro lados; e parece impossível que estas ver -
dades óbvias estejam sob a suspeição de ser falsas.
Mas foi implantada na minha mente a opinião antiga de que existe um
Deus que tudo pode fazer e que me fez tal como sou. Como sei eu que
ele não fez as coisas de maneira que, embora nem a Terra nem o céu
nem os objectos extensos, nem formas, nem dimensões, nem lugares
existam, ainda assim todas estas coisas pareçam existir, como parecem
neste momento? Além disso, constato que os outros homens por vezes
se enganam acerca do que julgam conhecer perfeitamente; não poderá
Deus enganar-me igualmente, sempre que eu somo dois e três, ou con-
to os lados de um quadrado, ou faço a coisa mais simples que se possa
imaginar? Mas talvez não seja vontade de Deus enganar-me; afinal, Ele
é considerado sumamente bom.
Mas, mesmo que Deus não seja enganador, como posso ter a certe-
za de que não existe um espírito maligno, sumamente poderoso e
inteligente, que faz os possíveis por me enganar? Para evitar a possibi-
lidade de aquiescer à falsidade, tenho de considerar que todos os
objectos exteriores são sonhos enganadores e que não possuo um
corpo, mas apenas uma crença falsa num corpo.
O famoso argumento de Descartes a favor da sua própria existên-
cia suspende estas dúvidas. Por muito que possa enganá -lo, um
génio mali gno nunca poderá levá-lo a pensar que existe quando não
existe. «Não há dúvida que se ele me engana, eu existo; ele pode
enganar-me sobre o que quiser, mas nunca poderá fazer com que eu
não seja nada quando estou a pensar que sou alguma coisa.» «Eu
existo» é algo que não pode deixar de ser verdade quando é pensa-
do; mas tem de ser pensado para poder ser objecto de dúvida.
Quando se percebe isto, «eu existo» torna-se indubitável porque,
sempre que tento duvidar disso, percebo automaticamente que é
verdade.
O argumento de Descartes costuma ser apresentado sob a forma
lapidar por ele utilizada no Discurso: Cogito, ergo sum — «Penso, logo
existo». Destas poucas palavras, não só deriva Descartes uma prova da
sua existência, como ainda procura descobrir a sua própria essência,
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pensar. Já «penso que estou a passear, logo existo» é uma forma per-
feitamente válida do cogito .
A ESSÊNCIA DA MENTE
que o intelecto apr esenta; mas não é isso que acontece quando a per-
cepção intelectual é clara e distinta. Uma percepção clara e distinta é
aquela que obriga a vontade, da qual se não pode duvidar, por muito
que se tente. Tal é a percepção da própria existê ncia, produzida pelo
cogito .
Assim, pois, para além de compreender e percepcionar, um ser
pensante afirma e nega, quer e recusa. A vontade diz «sim» ou «não» a
proposições (acerca do que se passa) e a projectos (acerca do que
fazer). A vontade humana tem, num certo sentido, um poder infinito.
«A vontade ou liberdade de que tenho experiência em mim é tão gran-
de que me é impossível conceber a ideia de uma faculdade superior a
ela.» Por causa desta infinitude, é a vontade que constitui, nos seres
humanos, a imagem e semelhança especiais de Deus.
Seria, porém, um erro pensar que Descartes é um indeterminista,
como o eram os crentes jesuítas na liberdade de indiferença. A forma
de liberdade que Descartes mais valorizava não era a liberdade de
indiferença, mas a liberdade de espontaneidade , que é definida como a
capacidade de fazermos aquilo que queremos, a capacidade de seguir-
mos os nossos desejos. A percepção clara e distinta, que conduz a
vontade a não ter alternativa senão aquiescer, elimina a liberdade de
indiferença, mas não a liberdade de espo ntaneidade. «Se virmos cla-
ramente que uma coisa é boa para nós, será muito difícil — e, do meu
ponto de vista, impossível, enquanto mantivermos o mesmo pensa-
mento — suspender o curso dos nossos desejos.» A mente humana tem
a sua melhor expressão, segundo Descartes, quando aquiesce, espon-
tânea mas não indiferentemente, aos dados da percepção clara e dis-
tinta.
Finalmente, a res cogitans «imagina e sente». A imaginação e a
sensação são concebidas por Descartes, umas vezes de maneira mais
ampla, outras de maneira mais restrita. Na interpretação ampla, a
sensação e a imaginação são impossíveis sem um corpo, porque a
sensação implica a operação dos órgãos do corpo, e até mesmo a ima-
ginação, pelo menos como Descartes a concebe, implica a inspecção de
imagens no cérebro . Mas, tomadas no sentido mais estrito — como o
são na definição da res cogitans —, a sensação e a imaginação mais
não são do que modos do pensamento. Como Descartes declara, quan-
do emerge da sua dúvida: «Neste momento, vejo luz, oiço um barulho,
sinto o calor. Estes objectos são irreais porque estou a dormir; mas
pelo menos tenho a impressão de ver, de ouvir, de ser aquecido. Isto
não pode ser irreal; e é a isto que propriamente se chama “a minha
sensação”.» Descartes isola aqui uma experiência imediata indubitá-
278
Uma vez que não é possível duvidar das intuições simples quando elas
estão perante a nossa mente, não é necessário qualquer argumento
para estabelecê -las; na realidade, para Descartes, a intuição é superior
à argumentação , como método de chegar à verdade. Só em conexão
com o princípio geral, e em conexão com a dúvida generalizada acerca
das proposições particulares, é que é necessário fazer apelo à boa-fé de
Deus. Descartes está, pois, inocente da circularidade alegada por
Arnauld.
Na Sexta Meditação Descartes afirma que se for capaz de co m-
preender clara e distintamente uma coisa sem outra, isso mostra que
as duas são distintas porque pelo menos Deus pode separá-las. Uma
vez que sabe que existe , mas nada mais observa como pertencente à
sua natureza, além do facto de ser uma coisa pensante, conclui que a
sua natureza ou essência consiste, muito simplesmente, em ser uma
coisa pensante, que é realmente distinta do seu corpo e que poderia
existir sem ele.
Apesar disso, tem um corpo ao qual está intimamente ligado; mas a
razão que tem para acreditar nisso é o facto de saber que Deus existe e
que Deus não pode enganá-lo. Deus deu-lhe uma natureza que lhe
ensina que tem um corpo que é ferido quando ele sente dor, que preci-
sa de alimentos e de bebida quando ele sente fome e sede. A Natureza
ensina-lhe igualmente que ele não está neste corpo como um piloto
num barco, mas que está intimamente ligado a ele, por forma a consti-
tuir com ele uma unidade. Se estes ensinamentos da Natureza fossem
falsos, apesar de serem claros e distintos, então Deus, o autor da Natu-
reza, seria enganador, o que é absurdo. Descartes conclui, pois, que os
seres humanos são compostos por mente e corpo.
No entanto, a natureza desta composição, desta «íntima união»
entre mente e corpo, é um dos aspectos mais complicados do sistema
cartesiano. A questão é ainda mais obscurecida quando Descartes nos
comunica que a mente não é directamente afectada por nenhuma parte
do corpo, excepto pela glândula pineal, localizada no cérebro. Todas as
sensações consistem em movimentos no corpo, que chegam, através
dos nervos, a esta glândula, de onde enviam à mente um sinal que
evoca dete rminada experiência.
As transacções que tê m lugar na glândula, na ligação corpo -mente,
são altamente misteriosas. Haverá uma acção causal da matéria sobre
a mente ou da mente sobre a matéria? Certamente que não, porque a
única forma de causalidade material presente do sistema de Descartes
é a comunicação do movimento; e a mente, enquanto tal, não é o tipo
de coisa que se mova no espaço. Assemelhar-se-á a relação entre a
282
O MUNDO MATERIAL
teve de fugir do país, depois de, em 1683, ter estado implicado numa
conspiração contra os irmãos reais. Locke acompanhou-o à Holanda e
passou os anos de exílio a compor a sua mais importante obra filosófica,
o Ensaio sobre o Entendimento Humano , publicado em diversas edições
nos últimos anos da sua vida.
Em 1688, a «Gloriosa Revolução» afastou Jaime II e substituiu-o
por Guilherme de Orange, fazendo assentar a monarquia numa nova
base legal, com uma Carta de Direitos e um reforço dos poderes do
Parlamento. Lo cke seguiu Guilherme para Inglaterra, tornando-se o
teorizador do novo regime. Em 1609, publicou Dois Tratados sobre o
Governo Civil, que se tornaram dois clássicos do pensamento liberal.
Na década de 90, trabalhou na Câmara de Comércio, tendo mo rrido
em 1704.
No primeiro dos seus Tratados, Locke descarta rapidamente a tese
de Filmer a favor do direito divino dos reis. O erro fundamental de
Filmer é negar que os seres humanos sejam naturalmente livres e
iguais entre si. No segundo Tratado, apresenta o seu próprio ponto de
vista acerca do estado de natureza, que contrasta de forma interessan-
te com o de Hobbes.
Antes de haver estados capazes de promulgar leis, defende Locke,
os homens têm consciência da existência de uma lei natural, que os
ensina que todos os homens são iguais e independentes e que ninguém
deve prejudicar outra pessoa na sua vida, saúde, liberdade ou proprie-
dade. Estes homens, que não têm na Terra ninguém que lhes seja
superior, encontram-se num estado de liberdade, mas não num estado
de indisciplina. Além de estarem obrigados pela lei natural, os seres
humanos possuem direitos naturais, em particular o direito à vida, à
autodefesa e à liberdade. Também têm deveres, em particular o de não
prescindirem dos seus direitos.
Um direito natural significativo é o direito de propriedade. Deus
não confere propriedades particulares a indivíduos particulares, mas a
existência de um sistema de propriedade privada faz parte dos planos
de Deus para o mundo. No estado de natureza, as pessoas adquirem
propriedade «misturando o seu labor» com os bens naturais, rec o-
lhendo água, apanhando frutos ou lavrando a terra. Locke considerava
haver um direito natural, não apenas de adquirir, mas também de
herdar propriedade priv ada.
Locke é, obviamente, muito menos pessimista do que Hobbes no
que diz respeito ao estado de natureza. O seu ponto de vista asseme-
lha-se bastante mais ao optimismo do posterior Ensaio sobre o
Homem, de Pope.
294
É óbvio que Locke tem aqui em mente o regime autocrático dos reis
Stuart e a Gloriosa Rev olução de 1688.
Locke estava, implausivelmente, convencido de que os contratos
sociais do tipo por ele descrito tinham sido acontecimentos históricos.
Mas afirmava que a manutenção de qualquer governo, independente-
mente de como fosse constituído, dependia do consentimento perma-
nente dos cidadãos de cada geração. Este consentimento, admite o
filósofo, raramente é explícito; mas o consentimento tácito é dado por
todos aqueles que usufruem dos benefícios da sociedade, quer aceitan-
do uma herança, quer meramente viajando numa estrada. A cobrança
de impostos, em particular, deve assentar no consentimento: «O poder
supremo não pode retirar a nenhum homem nenhuma parte da sua
propriedade sem o seu consentimento.»
As ideias políticas de Locke não eram originais, mas a sua influên-
cia foi grande, e manteve-se muito depois de as pessoas terem deix a-
do de acreditar nas teorias do estado de natureza e da lei natural que
as sustentavam. Quem conhecer a Declaração de Independência e a
Constituição Americ ana encontrará nelas um grande número de
ideias, e até de expressões, de Locke.
secundárias são definidas pela sua relação com os seres humanos que
as percepcionam; mas uma propriedade pode ser relacional sem deixar
de ser perfeitamente objectiva: «Ser mais alto do que a Serra da Estre-
la» é uma propriedade relacional; mas a questão de saber se os Alpes
são mais altos ou mais baixos do que a Serra da Estrela é uma questão
de facto, simples e d irecta.
Locke declara que aquilo que produz em nós as ideias das qualida-
des secundárias são simplesmente as qualidades primárias do objecto
que tem esse poder. A sensação de calor, por exemplo, é causada pelos
corpúsculos de outro corpo, que provocam um aumento ou uma dimi-
nuição do mov imento de partes minúsculas do nosso corpo. Mas,
mesmo que apenas as qualidades primárias figurem na explicação
corpuscular, por que razão havemos de concluir que a sensação de
calor mais não é do que «uma espécie de grau de movimento nas mais
pequenas partículas dos nossos nervos»? Locke parece estar a apelar,
aqui, para o arcaico princípio de que o semelhante causa o semelhante.
Mas que razões temos para aceitar este princ ípio? Certamente que
uma substância pode causar doenças sem estar, ela própria, doente.
Locke defende que as qualidades secundárias não existem se não
forem percepcionadas. Mas isto combina mal com o seu ponto de vista
de que as qualidades secundárias são poderes. Elas são poderes que
apenas se exercem quando causam sensações num sujeito da percep-
ção. Mas um poder pode existir mesmo quando não está a ser exerci-
do — quase todos nós temos a capacidade de recitar lenga-lengas
infantis, mas raramente a exercitamos. Não há, pois, razões para não
dizermos que as qualidades secundárias são poderes que existem de
forma permanente, mas que só são exercidos quando as qualidades são
percepcionadas. Um rebuç ado é sempre doce, mas só sabe a doce
quando alguém está a saboreá-lo. Neste aspecto, Aristóteles foi mais
claro do que Locke: um rebuçado que me saiba a doce é a mesma coisa
que o facto de eu saborear a doçura do rebuçado; mas a qualidade
sensorial e a faculdade sensitiva são dois poderes diferentes, cada um
dos quais continua a existir na ausência do outro. Locke afirmava que
os objectos não tinham cor no escuro, mas isto é uma conclusão reti-
rada da sua tese e não um argumento a favor dela.
Locke nega que a brancura e a frieza estejam realmente nos objec-
tos porque afirma que as ideias destas qualidades secundárias não se
assemelham às qualidades existentes nos próprios corpos. Este argu-
mento assenta na ambiguidade, acima apontada, existente na noção
que Locke tem de ideia. Se uma ideia de X é uma ocorrência de pe r-
cepção de X, então não temos mais razões para esperar que a percep-
300
ção de uma cor se assemelhe a essa cor do que para esperar que comer
uma batata se assemelhe a uma batata. Mas se, por outro lado, uma
ideia de X é uma imagem de X, então temos de responder que, quando
vemos esporas-bravas, aquilo que vemos não é uma imagem de azul,
mas o próprio azul. Locke apenas pode negar que assim seja pressu-
pondo aquilo que pretend e provar.
Finalmente, Locke argumenta a partir de uma analogia entre o
sentir e a sensação. Se eu puser a mão no fogo, o fogo causa-me calor e
dor; se a dor não está no objecto, por que motivo havemos de pensar
que o calor está nele? Uma vez mais, a analogia está a ser feita da
forma errada. O fogo é doloroso e quente. Ao afirmarmos que é dolo-
roso, não estamos a dizer que sente dor; da mesma maneira, ao dizer-
mos que é quente, não estamos a afirmar que sente o calor. Se o argu-
mento de Locke funcionasse, poderíamos voltá-lo contra si próprio.
Quando me corto, sinto o movimento da faca, e também sinto dor;
assim sendo, será o movimento uma qualidade secundária?
Locke está basicamente correcto quando afirma que as qualidades
secundárias são poderes para produzir sensações nos seres humanos; e
apresenta argumentos conhecidos para mostrar que as sensações
produzidas pelo mesmo objecto variam de acordo com as circunstân-
cias (a água morna parece -nos fria quando temos a mão quente e
quente quando temos a mão fria; as cores são muito diferentes quando
vistas ao microscópio). Mas, do facto de as qualidades secundárias
serem antropocêntricas e relativas, não se segue que sejam subjectivas
ou de qualquer modo ficcionais. Numa óptima imagem suger ida pelo
químico irlandês Robert Boyle, as qualidades secundárias são chaves
que entram em determinadas fechaduras, sendo as fechaduras os
diferentes sentidos humanos. Quando percebemos que assim é, pode-
mos aceitar, apesar de Locke, que a erva é de facto v erde e que a neve é
de facto branca.
SUBSTÂNCIAS E PESSOAS
que fez as acções que eu esqueci, e não devia ser punido por elas, uma
vez que a punição deve ser dirigida a pessoas e não a homens. Contu-
do, não parece disposto a contemplar a seguinte consequência: se eu
penso erroneamente que me recordo de ter sido o rei Herodes, que
ordenou o massacre dos inocentes, posso ser justamente punido por
esse massacre.
De acordo com Locke, eu sou, ao mesmo tempo, um homem, um
espírito e uma pessoa, ou seja, um animal humano, uma substância
imaterial e um centro de autoconsciência. Estas três entidades são
todas distinguíveis e, em teoria, podem ser combinadas de diversas
maneiras. Podemos imaginar o mesmo espírito em dois corpos dife-
rentes (se, por exemplo, a alma do cruel imperador Heliogábalo tiver
passado para um dos seus porcos). Podemos imaginar uma só pessoa
unida a dois espíritos: se, por exemplo, o actual presidente da câmara
de Queensborough partilhar a mesma consciência com Sócrates. E
podemos imaginar um único espírito unido a duas pessoas (tal era a
crença de um platónico cristão amigo de Locke, que achava que a sua
alma tinha sido de Sócrates). Locke prossegue, explorando combina-
ções mais complicadas, que não vale a pena considerar aqui, como um
exemplo para ilustrar o caso de uma pessoa, uma alma e dois homens,
e outro exemplo para ilustrar o caso de duas pessoas, uma alma e um
homem.
Que fazer com esta trindade de espírito, pessoa e homem, proposta
por Locke? Há dificuldades, que de modo algum são exclusivas do
sistema de Locke, em compree nder a substância imaterial, e poucos
admiradores contemporâneos de Locke usam essa noção. Mas a identi-
ficação da personalidade com a autoconsciência continua a ser aceite
por alguns estudiosos. A principal dificuldade dessa noção, apontada
no século XVIII pelo bispo Joseph Butler, está relacionada com o con-
ceito de memória.
Se Costa afirma recordar-se de ter feito uma coisa, ou de ter estado
em certo sítio, podemos, de um ponto de vista do senso comum, veri-
ficar se essa memória é adequada verificando se Costa fez de facto
aquilo ou se estava presente naquela ocasião; e fazemo-lo investigan-
do o paradeiro e as actividades do corpo de Costa. Mas o próprio
Costa não pode, a partir do interior, distinguir memórias genuínas de
imagens presentes de acontecimentos do passado que ilusoriamente
se apresentam como memórias. O modo como Locke concebe a cons-
ciência torna difícil o estabelecimento de qualquer distinção entre
memórias verídicas e memórias enganadoras. Esta distinção só pode-
305
BLAISE PASCAL
outro lado desta distância infinita, joga -se um jogo, que terá um de dois
resultados possíveis. Em qual deles apostas?
ESPINOSA E MALEBRANCHE
outro lado, Espinosa adverte-nos para o facto de que «aquele que ama
a Deus não pode esforçar -se para que Deus o ame também». Na reali-
dade, se queremos que Deus nos ame em troca do nosso amor, quer e-
mos que Deus não seja Deus.
Espinosa rejeita claramente a ideia de um Deus pessoal, tal como é
concebido pelos judeus e pelos cristãos ortodoxos. Também considera
uma ilusão a ideia religiosa da imortalidade da alma. Para Espinosa, a
mente e o corpo são inseparáveis: a mente humana mais não é, na
realidade, do que a ideia do corpo humano. «Só se pode dizer que a
nossa mente permanece, e que a sua existência tem limites temporais,
na medida em que isso envolve a existência efectiva do corpo.» Mas,
quando a mente vê as coisas à luz da eternidade, o tempo deixa de
contar; o passado, o presente e o futuro são iguais, e o tempo é irreal.
Pensamos no passado como aquilo que não pode ser alterado e no
futuro como algo que está aberto a alternativas. Mas, no Universo
determinista de Espinosa, o futuro não está menos fixado do que o
passado. A diferença entre o passado e o futuro não deve, por isso,
desempenhar qualquer papel nas reflexões de um homem sábio; não
devemos preocupar -nos com o futuro nem sentir remorsos relativ a-
mente ao passado. A existência definitiva de qualquer mente como
parte do único Universo infinito e necessário é uma verdade eterna;
olhando para as coisas à luz das verdades eternas, a mente capta o
Universo interminável, necessário e eterno. Nesse sentido, qualquer
mente é eterna, e pode-se considerar que existia antes do nasc imento e
que existirá depois da morte. Mas tudo isto é muito diferente da
sobrevivência pessoal numa vida depois da morte em que a piedade
popular coloca a sua esperança. Isso permitirá a Espinosa receber a
sua própria morte com tranquilidade, mas não é de espantar que tanto
judeus como cristãos o considerassem um herético.
Nicolas Malebranche é um contemporâneo cristão que se encon-
tra situado entre Espinosa e Descartes. Nascido em Paris em 1638, foi
ordenado sacerdote da ordem do Oratório em 1664 e escreveu uma
série de tratados filosóficos e teológicos, tendo -se mantido produtivo
até à sua morte, em 1715. Em filosofia, seguiu Descartes com grande
pormenor; mas, como a muitos outros, desde a Princesa Isabel, as
doutrinas de Descartes sobre a interacção entre a alma e o corpo par e-
ceram-lhe inaceitáveis.
Para Malebranche, era óbvio que um ser espiritual, como a vontade
humana, seria incapaz de mover a menor partícula de matéria. Se eu
desejar mover o meu braço, não é a minha vontade que verdadeira-
mente causa o movimento do meu braço. A única verdadeira causa é
316
LEIBNIZ
outras, e que partes do seu sistema são fundamentos e que partes são
superstr uturas. Mas há profundas ligações entre partes da sua produ-
ção que, à primeira vista, parecem não ter muito a ver umas com as
outras. No seu De Arte Combinatoria, propõe a ideia de um alfabeto
do pensamento humano por meio do qual todas as verdades possam
ser analisadas, e pretende desenvolver uma linguagem única e univer-
sal que espelhe a estrutura do mundo. O seu interesse por esta lingua-
gem teve origem, em parte, no seu desejo de unir as confissões cristãs,
cujas diferenças eram provocadas, na sua opinião , pelas imperfeições e
ambiguidades das diversas linguagens naturais da Europa. Uma lin-
guagem como essa promoveria ainda a cooperação internacional entre
cientistas de diferentes nações.
Não tendo Leibniz nunca publicado a sua filosofia sistematicamen-
te, temos de considerar as suas opiniões de forma fragmentária. Na
lógica, distingue verdades de razão e verdades de facto . As verdades de
razão são necessárias, e o seu oposto é impossível; as verdades de facto
são contingentes, e o seu oposto é possível. Ao contrário das verdades
de razão, as verd ades de facto não se baseiam no princípio de contra-
dição, mas num princípio diferente: o princípio de que nada acontece
sem uma razão suficiente para ser assim e não de outra maneira. Este
princípio da razão suficiente foi uma inovação de Leibniz e, como
veremos, viria a conduzir a conclusões um pouco surpreendentes.
Todas as verdades necessárias são analíticas: «Quando uma verda-
de é necessária, a sua razão pode ser encontrada por análise, isto é,
resolvendo -a em ideias e verdades mais simples até chegarmos às
ideias e às verdades primeiras.» As proposições contingentes, ou ver-
dades de facto, não são analíticas em nenhum sentido óbvio, e os
homens só podem descobri-las pela investigação empírica. Mas, do
ponto de vista de Deus, são analíticas.
Consideremos a história de Alexandre Magno , que consiste numa
série de verdades de facto. Vendo a noção indiv idual de Alexandre,
Deus percebe que nela estão contidos todos os predicados correcta-
mente atribuíveis a Alexandre: que ele conquistou Dario, que morreu
de morte natural, etc. Em «Alexandre conquistou Dario», o predicado
está, de alguma maneira, contido no sujeito; e tem de estar presente
em qualquer ideia completa e perfeita de Alexandre. Uma pessoa de
quem esse predicado não pudesse ser afirmado não seria o nosso Ale-
xandre, mas outra pessoa qualquer. Daí que a proposição seja, em
certo sentido, analítica. Mas a análise necessária para exibi-la seria
uma análise infinita, que apenas Deus pode realizar. E, embora um
Alexandre possível possuísse todas estas propriedades, a existência
319
BERKELEY
utilizar o primeiro critério, mas ele seria pouco fiável, uma vez que as
fantasias podem ser mais obsessivas do que as memórias.
Quando fala de memória, Hume parece estar sempre a pensar na
recuperação, por parte da imaginação , de acontecimentos do passado;
mas, evidentemente, esse é apenas um dos aspectos em que se exerce o
nosso conhecimento do passado, e nem sequer o mais importante. Se
«memória» é uma palavra que abrange muitas coisas diferentes,
«imaginação» abrange ainda mais acontecimentos, capacidades e
erros de diferentes tipos. A imaginação pode ser, entre outras coisas,
uma percepção errada («alguém bateu à porta, ou fui eu que imagi-
nei?»), uma recordação errada («pus a carta no correio, ou imaginei
que o fiz?»), uma crença não sustentada («imagino que não vai passar
muito tempo antes de ele se arrepender de se ter casado com ela»), a
criação de hipóteses («imaginem-se as consequências de uma guerra
nuclear entre a Índia e o Paquistão») e a originalidade criadora («a
imaginação de Blake não tem igual»). Nem todos estes tipos de imagi-
nação implicam necessariamente o tipo de imagem mental que Hume
apresenta como paradigma.
Quando a criação de imagens mentais está envolvida, o seu papel é
muito diferente daquele que Hume lhe atribui. Hume considerava ele
que o significado das palavras da nossa linguagem consistia na sua
relação com as impressões e as ideias. Na sua opinião, é o fluxo de
impressões e ideias na nossa mente que garante que as nossas afirma-
ções não sejam sons vazios, mas uma expressão do pensamento; e, se
não se puder mostrar que uma palavra refere uma impressão ou uma
ideia, ela deve ser afastada por ser desprovida de significado.
De facto, a relação entre a linguagem e as imagens é a inversa.
Quando pensamos em imagens, é o pensamento que confere signific a-
do às imagens, e não vice-versa. Quando falamos silenciosamente
connosco próprios, as palavras que proferimos na nossa imaginação
não teriam o significado que têm se não tivéssemos um domínio inte-
lectual da linguagem a que pertencem. E, quando pensamos em ima-
gens visuais, bem como em palavras não pronunciadas, as imagens
limitam-se a fornecer a ilustração de um texto cujo significado é dado
pelas palavras que expressam os pensamentos. Ca ptamos o significado
das palavras não por introspecção solitária, mas pela partilha com os
outros, na iniciativa comunitária que é a linguagem.
A melhor maneira de considerar a diferença entre recor dar e ima-
ginar poderá ser em termos de crenças. Se eu considerar que estou a
recordar que p, então acredito que p; mas posso imaginar que p acon-
tece sem essa crença. Como afirma Hume, concebemos muitas coisas
332
HUME E A CAUSALIDADE
OS PHILOSOPHES
ROUSSEAU
França, apesar do risco de prisão. Nos seus últimos anos ficou pobre e
vil; quando morreu, em 1778, houve quem pensasse que se tinha suic i-
dado.
O Contrato Social é de fácil leitura, como convinha a um filósofo
que era também um romancista de sucesso. As suas primeiras palavras
são memoráveis, apesar de enganadoras: «O homem nasce livre e por
todo o lado está acorrentado. Muitos homens pensam ser senhores de
outros, sendo que os primeiros não são menos escravos que os últi-
mos». Os leitores das obras anteriores de Rousseau presumiram que
as correntes são as das inst ituições sociais. Deveremos então rejeitar a
ordem social? Não, respo nde Rousseau, trata-se de um direito sagrado
que constitui o fundamento de todos os outros direitos. As instituições
sociais são libertadoras, pensa agora Rousseau, e não escravizantes.
Como Hobbes, Rousseau pensa que a sociedade nasce quando a
vida no estado original de natureza se torna intolerável. Celebra-se um
contrato social para assegurar que se coloca toda a força da co munida-
de ao serviço da protecção da pessoa e da propriedade de cada um dos
seus membros. Todos os membros têm de alienar a favor da comuni-
dade todos os seus direitos e de desistir de todas as suas pretensões a
eles. Mas como se pode fazer tal coisa de maneira a que cada homem,
unido aos seus irmãos, permaneça tão livre quanto antes?
A solução reside na teoria da vontade geral. O contrato social cria
um corpo moral e colectivo, o Estado ou Povo Soberano . Todo o indi-
víduo, enquanto cidadão , detém parte da autoridade do soberano;
enquanto súbdito, deve obediência às leis do Estado. O povo soberano,
não tendo qualquer existência além da dos indivíduos que o compõem,
não pode ter interesses contrários aos destes; assim, exprime a vonta-
de geral, não podendo errar na sua procura do bem público. A vontade
de um indivíduo pode ser contrária à vontade geral, mas ele pode ser
obrigado por todos os seus concidadãos a conformar -se-lhe — «o que
não é senão dizer que pode ser necessário obrigar um homem a ser
livre». Sob o contrato social de Rousseau, os homens perdem a sua
liberdade natural para deitar mãos a seja o que for que os tente, mas
ganham a liberdade civil, que lhes permite a posse estável da proprie-
dade. Assim, os homens são, genuinamente, mais livres do que eram.
Mas a liberdade que Rousseau atribui ao malfeitor sob prisão é a
liberdade bastante rarefeita de participar na expressão da vontade
geral.
O povo soberano é uma entidade abstracta: não deve ser identific a-
do com qualquer governo em particular, seja qual for a sua forma.
Assim, a teoria da vontade geral não é a doutrina segundo a qual faça o
345
REVOLUÇÃO E R OMANTISMO
Fui educado
Na cidade grande, encerrado em sombrios claustros,
E nada via de belo senão o céu e as estrelas.
Mas tu, meu bebé! Tu irás vaguear, como uma brisa,
Por lagos e praias arenosas, aos pés de desfiladeiros
De velhas montanhas e sob as nuvens,
Que imaginam na sua forma tanto lagos como praias
E desfiladeiros de montanhas: assim irás ver e ouvir
As belas formas e inteligíveis sons
Da linguagem eterna que o teu Deus
Profere, que desde a eternidade nos fala
De Si em tudo e de tudo em Si.
Senti
Uma presença que me perturba com a alegria
De pensamentos elevados; um sublime sentido
De algo muitíssimo mais pleno.
Que habita na luz dos poentes,
E no repleto oceano, e no ar vivo,
E no céu azul, e no espírito do homem,
Um movimento e um espírito que faz andar
Tudo o que pensa, todo o objecto de todo o pensamento,
E que volteia através de tudo.
A ESTÉTICA T RANSCENDENTAL
Esta conclusão pode parecer indesejável, mas Kant pensa que nos é
imposta se tivermos em consideração a natureza da geometria. A geo-
metria é um esplêndido feito do intelecto humano; mas baseia-se em
quê? Não pode basear-se na experiência porque a geometria é univer-
sal e necessária. Não po de repousar em meros conceitos porque os
conceitos, só por si, não nos dizem que uma figura só com dois lados é
coisa que não existe. Logo, tem de ser uma disciplina sintética baseada
na intuição a priori.
A estética transcendental de Kant é uma das partes menos bem
sucedidas do seu empreendimento. Aquando da sua redacção, a ge o-
metria euclidiana era encarada como a única teoria possível do espaço;
pouco tempo depois, mostrou-se que havia outras geometrias não
euclidianas consistentes. Além disso, era a investigação científica que
devia decidir se a questão de saber se a estrutura fundamental do
mundo em que vivemos é euclidiana ou não. Mas isto seria impossível
se a espacialidade fosse algo construído pelo espírito numa única
forma, inevitavelmente euclidiana.
A ANALÍTICA T RANSCENDENTAL:
A DEDUÇÃO DAS CATEGORIAS
dental seja algo diferente: uma investigação sobre o que se pode saber
a priori acerca da aplicabilidade da lógica. A tarefa da lógica transcen-
dental abrange duas tarefas principais: a analítica e a dialéctica. A
analítica transcendental estabelece os critérios do uso empírico válido
do entendimento; a dialéctica transce ndental oferece uma crítica do
uso dogmático ilusório da razão.
Kant distingue dois poderes do espírito: a compreensão e o juízo. A
compreensão é o poder de formar conceitos; o juízo é o poder de os
aplicar. As operações do entendimento encontram expressão nas pala-
vras indiv iduais; as operações da faculdade do juízo encontram
expressão em frases completas. Os conceitos que forem a priori são
categorias; os juízos que forem a priori chamam-se princípios. A ana-
lítica transcendental de Kant consiste em duas partes que correspon-
dem a esta divisão: a analítica dos conceitos e a analítica dos princ í-
pios. Kant dedica quase toda a sua analítica transcendental à analítica
dos conceitos, a que se chama também «dedução das categorias».
Que quer dizer toda esta terminologia? Podemos começar com a
noção de «categoria», que Kant tomou de empréstimo de Aristóteles,
apesar de rejeitar a sua lista por carecer incontornavelmente de siste-
maticidade. Em seu lugar, Kant oferece uma lista baseada na relação
entre conceitos e juízo. Um conceito não é de facto nada mais que um
poder para produzir juízos de certos tipos. (Possuir o conceito de
metal, por exemplo, é ter o poder de produzir juízos exprimíveis por
frases que contenham a palavra «metal» ou uma palavra equivalente a
esta.) Os diferentes tipos possíveis de conceitos devem, portanto, ser
determinados estabelecendo os diferentes tipos possíveis de juízos.
Kant tomou de empréstimo dos lógicos seus contemporâneos dife-
rentes tipos de juízos, classificando -os como universais («Todo o
homem é mo rtal»), particulares («Alguns homens são mortais») ou
singulares («Sócrates é mortal»). Classifica-os também como afirmati-
vos («A alma é mortal»), negativos («A alma não é mortal») e infinitos
(«A alma é não -mortal»). Divide ainda os juízos nas três classes dos
categóricos («Há uma justiça perfeita»), hipotéticos («Se houver uma
justiça perfeita, quem for obstinadamente perverso será punido») ou
disjuntivos («O mundo ou existe gr aças ao acaso cego, ou à necessida-
de interna, ou graças a uma causa externa»).
Kant pretende derivar destas classificações habituais dos juízos
uma nova e fundamental classificação de conceitos. Por exemplo, Kant
relaciona os juízos categóricos com a categoria de substância, os hipo-
téticos com a de causa, e os disjuntivos com a de interacção. Seria
difícil e nada compensador tentar seguir minuciosamente os passos
358
A ANALÍTICA T RANSCENDENTAL:
O SISTEMA DOS PRINCÍPIOS
A DIALÉCTICA T RANSCENDENTAL:
OS PARALOGISMOS DA RAZÃO PURA
A DIALÉCTICA T RANSCENDENTAL:
AS ANTINOMIAS DA RAZÃO PURA
A DIALÉCTICA T RANSCENDENTAL:
CRÍTICA DA T EOLOGIA NATURAL
Mas por que motivo tem Kant tanta certeza de que todas as proposições
existenciais são sintéticas? Podemos argumentar de conceitos para a não -
existência: é porque compreendemos os conceitos «quadrado» e «círculo»
que sabemos que não existem círculos quadrados. Por que razão não pode-
remos argumentar analogamente de conceitos para a existência? Se «Não
há solteiros não casados» é analítica, por que razão não há-de a frase «Há
um ser necessário » sê-lo também?
O principal argumento de Kant é o de que o ser não é um predic a-
do, mas uma cópula, uma simples ligação entre predicado e sujeito. Se
dizemos «Deus é» ou «Há Deus», afirma Kant, «não atribuímos qual-
quer novo predicado ao conceito de Deus; postulamos apenas o sujeito
em si mesmo, com todos os se us predicados». Na verdade, as proposi-
ções existenciais nem sempre «postulam», como a afirmação de Kant
implica, pois podem ocorrer como orações subordinadas numa frase
maior. Se alguém disser «Se Deus existir, os pecadores serão castiga-
dos», não estará a postular a existência de Deus. No entanto, podemos
concordar com Kant que «existe» não pode ser tratado como um pre-
dicado claramente de primeira ordem.
Os lógicos modernos, à semelhança de Abelardo no século XII,
reformulam as frases existenciais de modo a que o «é» nem pareça um
predicado. «Deus existe» é formulado como «Algo é Deus». Isto clari-
fica as questões que rodeiam o argumento ontológico; mas não as
resolve, pois os problemas de argumentar da possibilidade para a
efectividade regressam como questões sobre o que conta como «algo»:
estamos a incluir objectos possíveis, tal como efectivos?
A observação principal de Kant mantém-se e é análoga a uma outra
que vimos ter sido feita por Hume. «Assim, pois, quando penso uma
coisa, quaisquer que sejam e por mais numerosos que sejam os predi-
372
boa vontade […] ela ficaria brilhando por si mesma como uma jóia,
como coisa que em si mesma tem o seu pleno valor.
Como ser humano, afirma Kant, não sou apenas um fim em mim
mesmo, sou um membro do reino dos fins — uma associação de seres
racionais sob leis comuns a todos. A minha vontade, como se disse, é
racional na medida em que as suas máximas puderem transformar -se
em leis universais. A conversa desta afirmação diz que a lei universal é
a lei feita por vontades racionais como a minha. Um ser racional «só
está sujeito a leis feitas por si mesmo e que, no entanto, sejam univer-
sais». No reino dos fins, todos somos igualmente legisladores e súbdi-
tos. Isto faz lembrar a vontade geral de Rousseau .
Kant conclui a exposição do seu sistema moral com um p anegírico à
dignidade da virtude. No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma
dignidade. Se algo tem um preço, pode ser trocado por qualquer outra
coisa. O que tem dignidade é único e não pode ser trocado; está além
do preço. Há dois tipos de preços, afirma Kant: o preço venal, que está
relacionado com a satisfação da necessidade; e o preço de sentimento,
relacionado com a satisfação do gosto. A moralidade está para lá e
acima de ambos os tipos de preço.
A «moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade, são
as únicas coisas que têm dignidade. A destreza e a diligência no traba-
lho têm um preço venal; a argúcia de espírito, a imaginação viva e as
fantasias têm um preço de sentimento; pelo contrário, a lealdade nas
promessas, o bem-querer fundado em princípios (e não no instinto)
têm um valor intrínseco.» As palavras de Kant ecoaram ao longo do
século XIX e ainda emocionam muitas pessoas hoje em dia.
17
O idealismo e o materialismo ale-
mães
FICHTE
HEGEL
JEREMY BENTHAM
estado B 8000 pontos. Mas quem quer que se preocupe com a igual-
dade, ou justiça distributiva, poderá hesitar antes de apostar no estado
B.
Bentham tinha perfeita consciência das dificuldades de pôr o seu
lema em prática, e fornece prescrições para a medição dos prazeres;
por exemplo: devem ser avaliados de acordo com a sua intensidade,
duração, certeza, proximidade, fecundidade, pureza e extensão. Ch e-
gou a criar uma mnemónica para ajudar a efectuar o cálculo:
O UTILITARISMO DE J. S. MILL
A LÓGICA DE MILL
não ser nomes, no seu sistema. Segundo Mill, todos os nomes denotam
coisas: os nomes próprios denotam as coisas que nomeiam, e os te r-
mos gerais denotam as coisas a respeito das quais estes se podem
aplicar correctamente. Assim, não só «Sócrates» mas também
«homem» e «sábio» denotam Sócrates.
Para Mill, toda a proposição é uma conjunção de nomes. Isto não o
compromete com a visão nominalista extrema segundo a qual todas as
frases devem ser interpretadas como uma junção de dois nomes pr ó-
prios, como em «Túlio é Cícero». Uma frase que junta dois nomes
conotativos, como «todos os homens são mortais», diz-nos que alguns
atributos (por exemplo, o da racionalidade e o da animalidade) são
sempre acompanhados pelo atributo da mortalidade.
Mais importante do que o que Mill tem a dizer sobre os nomes é a
sua teoria da inferência.
As inferências podem ser divididas em reais e verbais. A inferência
de «Nenhum grande general é um homem precipitado» para
«Nenhum homem precipitado é um grande general» é verbal e não
real; a premissa e a conclusão dizem a mesma coisa. Só há inferência
real quando inferimos uma verdade, na conclusão, que não está conti-
da nas premissas. Por exemplo, há uma inferência real quando inferi-
mos de casos particulares para uma conclusão geral, como em «Pedro
é mortal, Jaime é mortal, João é mortal; logo, todos os homens são
mortais». Todavia, um inferência deste tipo não é dedutiva, mas sim
indutiva.
O raciocínio dedutivo será, então, simplesmente verbal? Até à ép o-
ca de Mill, o silogismo era o paradigma do raciocínio dedutivo. O
raciocínio silogístico é uma inferência verbal ou real? Suponhamos que
argumentamos a partir das premissas «Todos os homens são mortais»
e «Sócrates é um homem» para a conclusão «Sócrates é mortal». Ao
que parece, se o silogismo for dedutivamente válido, a conclusão deve
de alguma forma estar contida na primeira premissa: a mortalidade de
Sócrates deve ter feito parte dos dados que justificam a nossa asserção
de que todos os homens são mortais. Se, por outro lado, a conclusão
introduz informação nova — se, por exemplo, substituirmos «Sócra-
tes» pelo nome de alguém que ainda não morreu (Mill usou o exemplo
«O Duque de Wellington») —, então veremos que a conclusão não está
realmente a ser derivada da primeira premissa. A premissa maior, diz
Mill, é simplesmente uma fórmula para realizar inferências, e todas as
inferências reais procedem de particulares para particulares.
As inferências que partem de casos particulares foram denomina-
das «indutivas» pelos lógicos. Em alguns casos, a indução parece
398
SCHOPENHAUER
Por conseguinte, se eu disser que a força que atrai uma pedra para a
Terra está de acordo com a sua natureza, em si mesma e independen-
temente de qualquer ideia, não deve supor -se que estou a exprimir a
opinião insana de que a pedra se move a si mesma de acordo com um
motivo conhecido, só porque é essa a forma com que a vontade se
manifesta no homem.
Mas a pessoa cuja vida foi mais afectada pelo s escritos de Schope-
nhauer sobre a música foi Richard Wagner, que chegou a pensar ser a
incarnação do génio de Schop enhauer.
Todavia, a libertação oferecida pela contemplação estética é apenas
temporária. A única maneira de alcançar uma libertação completa da
tirania da vontade é a renúncia completa. O que a vontade quer é
sempre vida; logo, se quisermos renunciar à vontade, devemos renun-
ciar à vontade de viver. Isto soa a uma apologia do suicídio ; mas na
verdade Schopenhauer encarava o suicídio, quando procurado como
uma fuga das misérias do mundo, como um passo em falso inspirado
por se dar uma importância exagerada à vida individual e motivado
por uma oculta vontade de viver.
Compreende -se melhor o que Schopenhauer entendia por renúncia
seguindo a explicação que ele dá, no seu quarto livro, sobre os diferen-
tes caracteres morais, começando na maldade e acabando na santidade
ou ascetismo. O progresso moral consiste numa redução gradual do
407
cultam os prazeres alheios. Fará tudo o que puder para repudiar a natu-
reza do mundo enquanto expressa no seu próprio corpo, adoptando a
castidade, a pobreza, a abstinência e a autopunição, recebendo de bom
grado toda a injúria, ignomínia e insulto a ele dirigidos pelos outros.
Assim, quebrará a vontade, que reconhece e abomina como fonte da
existência sofredora de si mesmo e do mundo; e, quando a morte chega,
ele acolhê-la-á como uma libertação. Um ascetismo deste tipo não é um
ideal vão: pode ser aprendido pelo sofrimento, e foi exibido na vida por
muitos santos cristãos, hindus e budistas.
Schopenhauer aceita que a vida de muitos santos estava cheia das
mais absurdas superstições e pensa que os sistemas religiosos são a
veste mística das verdades que são inatingíveis pelas pessoas sem
instrução. Mas, afirma Schopenhauer, «há tão pouca necessidade de
um santo ser um filósofo como de um filósofo ser um santo»; e é esta,
sem dúvida, a resposta que ele daria às muitas pessoas que observ a-
ram que a sua própria vida foi muito diferente do ideal ascético que
descreveu. «É estranho exigir a um moralista que ele não ensine
outras virtudes além da que possui.»
O sistema de Schopenhauer é inegavelmente impressionante, e
cada passo na sua argumentação torna-se persuasivo pela força da sua
prosa e pelas suas encantadoras metáforas. Mas a sua premissa básica
não é verdadeira, e a sua conclusão última refuta-se a si mesma. Scho-
penhauer não apresenta razão alguma válida para aceitar o ponto de
partida de que o mundo é a minha representação, e não nos oferece
motivo algum para adoptar o programa ascético com que conclui. Para
distinguir o mundo da vontade do mundo da representação, e para
alcançar uma coisa-em-si distinta dos simples fenómenos, tem de
convencer cada um de nós de que a realidade fundamental é a nossa
própria individualidade; para nos persuadir a ascender no caminho da
virtude em direcção ao ascetismo, pede -nos para admitir que a nossa
indiv idualidade é uma ilusão.
A renúncia completa da vontade parece ser uma contradição nos
termos: pois, se a renúncia é voluntária, é em si mesma um acto de
vontade; e, se é necessária, então não existe verdadeira renúncia.
Schopenhauer desejava evitar esta contradição recorrendo, uma vez
mais, à distinção de Kant entre fenómeno e coisa-em-si. «Enquanto
fenómeno, tudo é absolutamente nece ssário; em si mesmo tudo é
vontade, a qual é perfeitamente livre para toda a eternidade.» Mas
uma vontade que é livre para toda a eternidade é uma vontade fora do
tempo, ao passo que a história dos santos pertence ao mundo dos
409
KIERKEGAARD
NIETZSCHE
filosofia como algo que devia ser tirado como a pele de uma cobra.
Depois de desistir da sua cátedra em Basel, em 1879, começou uma
série de obras que afirmavam o valor da Vida e denunciavam, como
elementos hostis à vida, a abnegação cristã, a ética altruísta, a política
democrática e o positivismo científico. As mais famosas destas obras
foram A Gaia Ciência (1882), Assim Falava Zaratustra (1883 -85),
Além do Bem e do Mal (1886) e A Genealogia da Moral (1887). Por
volta de 1889 começou a mostrar sinais de loucura, vivendo num iso-
lamento senil até à s ua morte em 1900.
Nietzsche pensava que a história exibe duas espécies diferentes de
moralidade. Os aristocratas, sentindo que pertencem a uma ordem
mais elevada do que os outros, usam palavras como «bem» para se
descreverem a si mesmos, aos seus ideais e às suas características: o
nascimento nobre, a riqueza, a bravura, a autenticidade e o facto de
serem louros. Desprezam os outros como plebeus, vulgares, cobardes,
inautênticos e morenos, e designam estas características como «mal».
Esta é a moral dos senhores. Os pobres e fracos, com ressentimentos
relativamente ao poder dos ricos e aristocratas, erigem o seu próprio
sistema contrastante de valores, uma moral de escravos ou de rebanho
que premeia traços de carácter como a humildade , a simpatia e a
benevolência, que beneficiam os vencidos. Nietzsche chama «transmu-
tação dos valores» ao estabelecimento deste sistema de valores, que
atribui aos judeus.
É claro que poderão criar o Super -homem ! Talvez não vocês mesmos,
meus irmãos! Mas poderão transformar -se vocês próprios em ances-
trais e antepa ssados do Super-homem: e que seja essa a vossa melhor
criação!
CHARLES DARWIN
Devido a esta luta pela vida, por muito ligeira que seja qualquer varia-
ção de qualquer origem nas relações infinitamente complexas com os
419
Seria com certeza muito intolerante para com a noção de que serei um
dia imperador de França; pensaria que era demasiado absurda para ser
sequer r idícula, e que deveria estar louco para admitir uma coisa des-
sas. E se alguém me tentasse persuadir que a deslealdade, a crueldade
ou a ingratidão são tão louváveis como a honestidade e a temperança, e
que um homem que viveu a vida de um patife e morreu a morte de um
bruto não tinha de temer um ca stigo futuro, pensaria que não tinha
nada que ouvir tais argumentos, excepto com a esperança de o conver -
ter, ainda que ele me chamasse beato e cobarde por me recusar a entrar
nas suas especulações.
Sem dúvida que podemos, por vezes, estar seguros de uma coisa e,
mais tarde, descobrir que estávamos errados. Isto não significa que
devemos abandonar toda a certeza, tal como o facto de por vezes nos
ser indicada a hora errada não significa que tenhamos de prescindir
dos relógios.
Como aplica Newman tudo isto aos dados da religião? Newman
pensa que os dados mais fortes a favor da verdade da religião cristã
devem encontrar-se na história do Judaísmo e do Cristianismo; mas
estes dados só têm peso para aqueles que já estão preparados para os
receber. Para estarmos preparados para os aceitar, devemos já acredi-
tar na existência de Deus, na possibilidade da revelação e na certeza de
um julgamento futuro. Segundo Newman, a capacidade de persuasão
de qualquer prova depende do que a pessoa a quem ela é apresentada
encara como previamente provável.
Podem apresentar-se duas objecções a isto. A primeira é que as
probabilidades prévias tanto podem estar igualmente disponíveis para
o que é verdade como para o que simplesmente finge ser verdade;
427
tanto podem estar disponíveis para uma falsa revelação como para
uma revelação genuína. As probabilidades não fornecem regras inteli-
gíveis para determinar aquilo em que se deve e não s e deve acreditar.
SIGMUND FREUD
A LÓGICA DE FREGE
e a inferência
Se x é um homem, x é mortal.
desta forma:
O LOGICISMO DE FREGE
O PARADOXO DE RUSSELL
ANÁLISE LÓGICA
T RACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS
O POSITIVISMO LÓGICO
O que o solipsismo quer dizer é correcto, mas não pode ser dito: rev e-
la-se a si pr óprio.
Que o mundo é o meu mundo revela-se no facto de os limites da lin-
guagem (a linguagem que eu compreendo) significarem os limites do
meu mundo.
Como vimos, este argumento foi inventado por Anselmo, rejeitado por
Tomás de Aquino, aceite por Descartes, refutado por Kant e restabel e-
cido por Hegel. Penso que pode dizer-se bastante decisivamente que,
como resultado da análise do conceito «existência», a lógica moderna
demonstrou que este argumento é inválido.
CAPÍTULO 15 O Iluminismo
CAPÍTULO 18 Os Utilitaristas