1841-Texto Do Artigo-3108-1-10-20171017

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 25

Floema - Ano VIII, n. 10, p. 65-89, jan./jun. 2014.

O “escuro quarto vivo”: agudeza e obscuridade em The


Flea, de John Donne

Lavinia Silvares1

RESUMO:
A censura ou o elogio do conceito formulado pela agudeza de espécie obscura
ou engenhosa tem constituído a autoridade dos versos de John Donne (1572-
1631) variavelmente no tempo. Samuel Johnson, no século XVIII, à parte sua
admiração pelo poder inventivo dos poetas a quem chamou de “metafísicos”,
explicitamente condenou a obscuridade dos versos engenhosos de Donne,
denominando-os “abstrusos”. T. S. Eliot, no século XX, julgou a agudeza
complexa de Donne como marca do poeta que sabia associar pensamento e
sensibilidade. Neste artigo, proponho examinar alguns aspectos da agudeza
enigmática como recurso poético funcional e preceituado no tempo dos
chamados “poetas metafísicos” ingleses. Por meio de uma análise retórica do
poema lírico-jocoso The Flea, procuro mostrar como técnicas específicas de
efetuação do silogismo dialético constroem a agudeza composta do poema,
gerando os efeitos de maravilha e espanto que têm suscitado variáveis juízos
acerca da poesia de Donne ao longo de sua recepção crítica.

Palavras-chave: John Donne. Poesia de agudeza. The Flea. Inglaterra


elisabetana. Obscuridade.

ABSTRACT:
The censorship or the applause of a conceit formulated by a kind of wit
which could be called “obscure” has constituted John Donne’s poetry variably
throughout its reception. Samuel Johnson, in the 18th century, notwithstanding
his admiration for the inventive capacity of the poets he labelled “Metaphysical”,
explicitly condemned the obscurity of Donne’s witty verses, calling them
“abstruse”. T. S. Eliot, in the 20th century, judged the complex wit of Donne
as the mark of the poet who could associate thought and feeling. In this
paper, I propose an examination of selected aspects of the enigmatic type of
1
Professor Adjunto II da USP - Campus Guarulhos. Doutora em Estudos Linguísticos e
Literários em Inglês pela USP.
66 Lavinia Silvares

wit, viewing it as a functional poetic resource in the 16th-17th century. By a


rhetorical analysis of Donne’s The Flea, I intend to show how specific techniques
of employing the dialectical syllogism construct a composite type of wit in the
poem, generating the effects of wonder and surprise that have lead to diverse
judgments of Donne’s poetry throughout its critical reception.

Keywords: John Donne. Poetry of wit. The Flea. Elizabethan England.


Obscurity.

Cuanto más escondida la razón, y que cuesta más, hace


más estimado el concepto, despiértase con el reparo
la atención, solicítase la curiosidad, luego lo exquisito
de la solución desempeña sazonadamente el misterio
(Gracián, 1987).

1 Enigma e poesia

A poesia da agudeza composta nos séculos XVI e XVII nas


cortes europeias mobilizava uma leitura e um emprego bem específicos
da preceituação corrente na época: determinava paradigmas particulares
para a imitação, como os versos obscuros atribuídos a Anacreonte,
Píndaro, Lícofron, Pérsio; advogava a mistura de estilos conforme
proposta no Peri Hermeneias, de Demétrio Faléreo e no Peri Ideōn,
de Hermógenes; flexibilizava os limites normativos das gramáticas
vernaculares, subvertendo a sintaxe com transposições latinizantes,
incorporando vocábulos gregos e latinos que nunca antes haviam sido
usados nos vernáculos etc. Assim, certos censores da agudeza enigmática
irão contestar, principalmente com base em Aristóteles, o próprio status
desses versos como poesia (propondo que fossem apenas enigmas em
verso). Os defensores, por outro lado, elegem certos passos também de
Aristóteles para argumentar que os conceitos compostos por entimemas
equivalentes a silogismos dialéticos (porém faltantes em uma das partes,
maior ou menor), produzem o enigma por meio da extensão do raciocínio;
assim define Aristóteles, quando explica o entimema em contraste com
o silogismo dialético:
O “escuro quarto vivo”: agudeza e obscuridade em The Flea, de John Donne 67

It has already been said that the enthymeme is a syllogism and


in what way it is a syllogism, and in what way it differs from
dialectical syllogisms; for one must draw its conclusion from
not too remote premisses and not from all ones. Obscurity
is produced, first of all, from the length of reasoning, and,
secondly, it is a waste of time as one is stating the obvious
(ARISTOTLE, 1991, p. 195).

Considerando a preceptiva do século XVII, o entimema não


é imperfeito – já que, como o termo grego denota, a parte elidida está
subentendida na mente2 –; ao contrário, é adequado para a composição de
conceitos em que os sentidos devem vir condensados, ou em que não
se deve nomear os referentes. Assim, o entimema torna-se apropriado
para o caso dos conceitos compostos como agudeza enigmática: o
enigma se favorece com a elisão, com a subtração de uma da partes do
silogismo, evitando a pronta exposição do sentido. Lendo dessa forma
o preceito aristotélico, os defensores da poesia da agudeza de espécie
enigmática propõem que os entimemas operem em poesia como se
fossem silogismos dialéticos, causando programaticamente a obscuridade
pela extensão do raciocínio (tirando conclusões de premissas remotas)
e pela elisão dos referentes textuais. Aparentemente contraditória à
preceituação aristotélica, essa leitura particular se autoriza considerando
os convenientes próprios do âmbito poético enquanto diferem do âmbito
da oratória. Por exemplo, o conceito enigmático da poesia da agudeza
não se destina à grande audiência prevista na preceituação aristotélica
para o entimema, mas pressupõe um público menor que pode enxergar
os poemas “de perto” (HANSEN, 2003, p. 51). Leitores do preceptista
grego Demétrio Faléreo, referindo-o simplesmente como Phalerum, os
poetas ingleses do século XVII seguem este preceito, também pensando
no entimema como meio de condensar idéias: “the compression of a lot
of meaning into a small space shows more skill, just as seeds contain the potential
for whole trees” (DEMETRIUS, 1995, p. 353). Preceito recorrente em
2
Cf. John Bullokar, An English Expositor: teaching the interpretation of the hardest words in our language
(1616): “Then it is called an Enthymeme, to wit, a keeping in the minde (for so the word properly
signifieth) because one of these parts is vnderstood in the minde: where note that if the two
endes of the Enthymeme are like in speech, then the Minor is wanting, if the two beginnings be
like, the Maior is omitted”.
68 Lavinia Silvares

Demétrio, principalmente quando trata do estilo feroz (deinótes), os


referentes textuais implícitos geram agudeza: “Length dissipates intensity,
while a lot of meaning packed into a few words is more forceful” (p. 491); e
também a obscuridade: “And (strange as it may seem) even obscurity is often
a sort of forcefulness, since what is implied is more forceful, while what is openly
stated is despised” (p. 491).
George Chapman e Philip Sidney, poetas coetâneos a John Donne
(1572-1631), partem de um mesmo passo de Cícero (De Oratore, I, XVI)
para advogar a semelhança (no caso de Sidney) e a dessemelhança (no
caso de Chapman) entre poesia e oratória. Em The Defense of Poesy (1595),
Sidney refere as regras da oratória para compor o discurso persuasivo,
capaz de mover ao deleite um público mais amplo de cortesãos: “with a
plain sensibleness they might win credit of popular ears; which credit is the nearest
step to persuasion; which persuasion is the chief mark of Oratory [...]”3. E censura
os poetas que usam a dificuldade para exibir sua erudição, enquanto
deveriam dissimulá-la na aparência de simplicidade: “any man may see
doth dance to his own music, and so to be noted by the audience more careful to
speak curiously than truly”4. O adjetivo curious, no século XVII, tem sentido
de “superelaborado”, “afetado”, e aparece em oposição a “adequado”
ou “verossímil”. Sidney transfere automaticamente essas observações
ao campo da prática poética: “But what? methinks I deserve to be pounded
for straying from poetry to oratory: but both have such an affinity in the wordish
consideration, that I think this digression will make my meaning receive the fuller
understanding”5. Assim, com uma leitura particular da preceituação para
as práticas representativas, rechaça tudo que possa constituir afetação ou
repulsa na elocução; o poeta deve escolher bem as palavras, dispô-las de
forma a não causar exagerado estranhamento, cuidar para que veiculem
apropriadamente os sentidos propostos e, desta forma, garantir que
3
Vickers (2003, p. 386): “com simples sensatez eles podem ganhar o crédito dos ouvidos populares;
com esse crédito estarão mais próximos da persuasão; e essa persuasão é a marca principal da
oratória”. Tradução livre da autora.
4
Idem, ibid: “é fácil ver que todos os homens dançam de acordo com sua própria música, e assim
a audiência verá se falam de forma mais curiosa do que verdadeira”.
5
Ibid., p. 387: “Mas como? Penso que mereço ser punido por desviar da poesia para a oratória;
mas ambas têm tanta afinidade na consideração das palavras, que acho que essa digressão levará
a uma compreensão mais ampla do que digo”.
O “escuro quarto vivo”: agudeza e obscuridade em The Flea, de John Donne 69

o leitor o acompanhe e se deleite com o poema – que é a finalidade da


persuasão em poesia lírica. Sidney segue o preceito aristotélico de clareza,
formulado, dentre outros lugares, na Retórica de Aristóteles: “Hence may
be inferred the need to disguise the art we employ, so that we give the impression of
speaking naturally, not artifically. Naturalness is persuasive, artifice is the contrary”6.
Considerando a mesma tópica da conveniência dos estilos e
pressupondo o mesmo sistema de representação e elenco de autoridades,
Chapman defende o contrário. Como epígrafe de Ovids Banquet of
Sence (1595), o poeta evoca Pérsio: “Quis leget haec? Nemo Hercule nemo,
uel duo uel nemo” (“Quem lerá isso? Ninguém, por Hércules, ninguém;
talvez duas pessoas, talvez nenhuma”). No prólogo do poema, que foi
publicado no mesmo ano que o tratado de Sidney, Chapman dispensa
a elocução fácil, e afirma não haver obrigação de que a poesia culta seja
“pérvia” (penetrável, porosa) como o discurso do orador destinado a
uma grande audiência:

But that Poesie should be peruiall as Oratorie, and plainnes her


speciall ornament, were the plaine way to barbarisme: and to
make the Ass runne proude of his eares; to take away strength
from Lyons, and giue Cammels hornes7.

Para que o asno não se orgulhe de suas orelhas de asno, então,


Chapman apela para os judiciosos, afirmando que estes saberão operar
com a dificuldade autorizada na poesia culta da agudeza. Censura aqueles
“ignorantes” que julgam “curiosa” a elocução obscura de seus versos:
“though ignorants will esteeme spic’d and too curious, yet such as haue the iudiciall
perspectiue, will see it hath, motion, spirit and life”8. Ora, como vimos, Sidney
qualifica de “curiosa” a elocução afetada ou repulsiva, contrapondo-a à
6
The Art of Rhetoric, op. cit., 3.2.
7
Chapman (1595): “Mas que a Poesia deva ser tão pérvia quanto a Oratória, e a clareza seu principal
ornamento, seria um claro caminho para o barbarismo: é como se o Asno sentisse orgulho de suas
orelhas; como tirar a força dos leões, e dar chifres aos camelos”. Nota-se, a propósito do adjetivo
peruiall, que constitui um latinismo aparentemente incorporado ao vernáculo por Chapman; não
achei, na consulta que fiz a dicionários e tratados do século XVI, nenhuma referência ao termo
em inglês. Como Góngora, Chapman usa como técnica de obscurecer a elocução a incorporação
de latinismos ao vernáculo, alegando torná-lo poeticamente mais culto.
8
Idem: “embora os ignorantes os julguem apimentados e muito curiosos, os que têm perspectiva
judiciosa verão que há ali movimento, espírito e vida”.
70 Lavinia Silvares

elocução “adequada”, “verossímil”. Assim, Chapman e Sidney ocupam


lugares opostos na divergência acerca dos estilos convenientes à poesia
culta da época. No entanto, não se deve pensar que pressupunham
diferentes sistemas de representação; ao contrário, preenchiam os lugares
previstos em que se argumenta a favor ou contra uma determinada
legibilidade da poesia culta. Coube a Sidney, compositor de versos em
estilo médio, em que trata de tópicas do amor cortesão em gênero lírico-
pastoril, afirmar a conveniência da afetação de naturalidade segundo o
conceito de sprezzatura, e advogar o deleite de um público mais amplo
como finalidade desse subgênero de poesia. Coube a Chapman, por
outro lado, afirmar a conveniência da agudeza enigmática como proposta
de deleite culto e mesmo de instrução via alegoria, evidenciando que o
efeito de naturalidade nem sempre convém. Para ele, assim, a poesia não
deve sempre coincidir, na leitura da preceituação e na determinação de
suas funções, com a oratória. Autoriza-o Cícero, que, quando propõe a
afinidade entre poesia e oratória, não deixa de afirmar a maior liberdade
que têm os poetas na escolha de palavras:

The truth is that the poet is a very near kinsman of the orator,
rather more heavily fettered as regards rhythm, but with ampler
freedom in his choice of words, while in the use of many sorts of
ornament he is his ally and almost his counterpart [...] (CÍCERO,
2001, Book I, p. 51).

Se Sidney priorizou o passo do enunciado que leva ao parentesco


entre orador e poeta, Chapman tomou como centro a ressalva de que o
poeta tem mais liberdade na composição. E também Longino, em Do
sublime – tratado grego sobre a elocução muito lido por petas ingleses
nas últimas décadas do século XVI – autoriza a distinção: “That phantasia
means one thing in oratory and another in poetry you will yourself detect, and also
that the object of the poetical form of it is to enthral, and that of the prose form
to present things vividly, though both indeed aim at the emotional and the excited”
(LONGINUS, 1995, p. 217). Devidamente autorizados, ambos os
discursos – que não são contraditórios, porque cada qual ocupa seu
O “escuro quarto vivo”: agudeza e obscuridade em The Flea, de John Donne 71

lugar específico segundo as conveniências (de gênero, decoro, estilo)


– possibilitam, na Inglaterra e também em outros reinos do século
XVII, práticas diversas, como a poesia pastoral da Arcadia de Sidney,
os sonetos de agudeza mista de Shakespeare, a mistura de silogismo
dialético e tópica amorosa em The Flea, de Donne, e a poesia obscura e
moral-filosófica de Chapman.
Uma questão central envolvida nessa disputa entre letrados do
mesmo meio cortesão é determinar se as novas leituras da preceituação
antiga para a poesia e a adoção de uma maior variedade de modelos
para a imitação, como os autores latinos da Idade de Prata e os poetas
líricos gregos, seriam ou não autorizadas. Valor do engenho exercitado,
a versatilidade de Donne como poeta fica explícita na variedade de estilos
que adotou para a composição de seus versos, misturando estilos dentro
de um mesmo subgênero poético, como Góngora o fez nas Soledades, por
exemplo. Usando técnicas diversas, Donne efetua diferentes espécies de
agudeza. Porém, a agudeza do tipo obscuro ou enigmático é a que está
no centro de uma longa divergência discursiva que promoverá juízos
favoráveis e desfavoráveis acerca de sua poesia, principalmente a partir
do final do século XVII, com John Dryden, e no início do século XVIII,
com Samuel Johnson.

2 O homem como telescópio: a poesia de Donne segundo Samuel


Johnson

Tomem-se, por exemplo, alguns juízos de Samuel Johnson que


lançariam Donne na turma dos “obscuros”, desqualificando-o. Na
maioria dos casos, os conceitos compostos por entimemas dos poetas
“metafísicos” – distinção que Johnson mesmo concedeu àqueles
que escreviam versos enigmáticos e imagens “abstrusas” (isto é,
fantásticas, inverossímeis) – eram objeto de dura vituperação. Assim,
Johnson mostra-se severo no julgamento geral dos versos de Donne,
de Cleveland, de Cowley: acha neles “disgusting hyperboles”, “grossness of
expression”, “perverseness of industry”, “ingenious absurdity”; vê um tipo de
72 Lavinia Silvares

engenhosidade obscura, estranha, ainda que raras vezes admirável.


Citando a segunda estrofe de um poema lírico de Donne que, por
meio de um entimema enigmático – cuja base se apóia na analogia de
proporção entre “globo terrestre” e “gota que cai do globo dos olhos”
–, metaforiza as lágrimas da amante numa enchente de escala global,
Johnson sugere aos leitores, com ironia, o trabalho de reler os versos
repetidas vezes: “If the lines are not easily understood, they may be read again”
(JOHNSON, 1984, p. 681):

On a round ball
A workeman that hath copies by, can lay
An Europe, Afrique, and an Asia,
And quickly make that, which was nothing, All.
So doth each teare,

Which thee doth weare,


A globe, yea world by that impression grow,
Till thy teares mixt with mine doe overflow
This world, by waters sent from thee, my heaven dissolvèd so9.

O desenvolvimento do conceito por entimema possibilita que


se faça analogia entre coisas distantes elidindo as partes do silogismo,
e concluindo a partir de um a priori subentendido na mente. A agudeza
enigmática é gerada justamente pela amplificação da equação a:b
(desenvolvida em pares de versos) para um tipo amplificado como
a:b::c:d, em que os referentes das partes da equação não sejam nomeados,
mas subentendidos. O leitor, ciente da formulação lógica por trás da
expressão, terá de preencher os lugares elididos e refazer, na mente,
as partes que dão sentido ao conjunto da proposição. Francisco de
Quevedo, poeta que censurava a sobreposição de entimemas na poesia
aguda enigmática de Góngora, anota o seguinte trecho em seu exemplar
da Retórica de Aristóteles: “enthymemas / no se an de derramar con orden continua
anse de intermitir, que de otra suerte se escurezen reziprocamente. i se embarazan”
(GRIGERA, 1998, p. 131). Porém, o “recíproco escurecimento”
9
A Valediction: of weeping, conforme citação de Johnson.
O “escuro quarto vivo”: agudeza e obscuridade em The Flea, de John Donne 73

processado de um conceito a outro era técnica de se efetuar a agudeza


enigmática; Quevedo sabia. Mas defendia a finalidade do deleite da poesia
lírica, resguardando o “embaraço” como técnica a ser efetuada em outros
lugares, em que o “riso” ou o “ridículo” fossem efeitos desejáveis.
Após censurar a estrofe de A Valediction: of weeping, Samuel
Johnson (1984, p. 681), em seguida, incita os leitores a discriminarem
a “confusão” de outros versos de Donne, que dessa vez propõem, no
conceito, a fusão de um sol feminino com uma lua masculina: “On reading
the following lines, the reader may perhaps cry out: ‘Confusion worse confounded’”:

Here lyes a shee Sunne, and a hee Moone there;


She gives the best light to his Spheare;
Or each is both, and all, and so
They unto one another nothing owe10.

Enfim, Johnson relaciona a dificuldade na apreensão do sentido


dos versos com a invenção de metáforas agudas, porém descabidas; elege
Donne como epítome de inventores do abstruso: “Who but Donne would
have thought that a good man is a telescope?”:

Though God be our true glasse, through which we see


All, since the beeing of all things is hee,
Yet are the trunkes, which doe to us derive
Things, in proportion, fit by perspective,
Deeds of good men; for by their living here,
Vertues, indeed remote, seeme to be neare11.

Na engenhosidade do conceito, Donne metaforiza o homem em


telescópio através do qual se vê a virtude máxima divina. Transpondo a
qualidade essencial de Deus como um “espelho através do qual tudo se
vê” para uma subcategoria dessa qualidade, sendo um “espelho através
do qual se vêem virtudes proporcionais”, tece-se a semelhança por
analogia de propriedades. A sintaxe do vernáculo é flexibilizada para
comportar a mais extrema distância entre sujeito e predicado: “Yet are
10
An Epithalamion, or mariage song, on the Lady Elizabeth and Count Palatine, conforme citado por
Johnson.
11
Obsequies to the Lord Harrington, de 1614; conforme citado por Johnson.
74 Lavinia Silvares

the trunkes, [...]/ [...], [...],/ Deeds of good men”. Caso essa identificação
“sujeito-predicativo do sujeito” não seja feita, o sentido proposto não
será apreendido. Assim, a legibilidade do poema é dada no próprio
tópico elocutório, pressupondo um público leitor de latim e conhecedor
de sua disposição sintática, que possa transpor as regras do latim para
o vernáculo. Observa-se, no caso do conceito expresso nesse poema,
que nem sempre Donne opera com a espécie de agudeza de rápida
efetuação; a analogia entre “as boas ações de um homem virtuoso”
e “o telescópio” faz parte de um conjunto mais amplo de sentido
que depende da combinação entre suas partes, muitas vezes gerando
um efeito de “abundância”, conforme define Hermógenes (1987, p.
43)o estilo que amplifica a tópica, por acúmulo que impede a rápida
efetuação da idéia. Ademais, nota-se que o referente “telescópio” não
está nomeado, mas pressuposto nas qualidades análogas da proporção,
perspectiva e aproximação das ações humanas como projeções de uma
virtude essencial. A elisão é técnica central para a efetuação do enigma.
Quevedo, anotando a Retórica de Aristóteles, escreve: “es la elusion,
vn engaño inxenioso a lo que se esperaba lo que haze la enigma enseñando con
vtilidad, i deleite por las translaciones” (GRIGERA, 1998, p. 129). No caso
da epístola em verso de Donne, o conceito como silogismo dialético
propõe sua legibilidade como enigmático, tornando necessária uma leitura
de escrutínio equivalente à glosa, tal como praticada pelos comentaristas
de Virgílio ou Pérsio.
Porém, Samuel Johnson nada diz sobre o gênero das composições
de Donne; dos três poemas de Donne que cita, dois estão no subgênero
encomiástico, e o terceiro no lírico-amoroso. A elegia encomiástica de
Donne e outros contemporâneos, como Edward Herbert e George
Chapman, é quase sempre composta programaticamente do conceito
como ornato dialético enigmático, subespécie de agudeza do tipo obscura
prevista na poética do século XVII. Como explica João Adolfo Hansen,
o procedimento que está na base do ornamento agudo obscuro é
homólogo àquele produzido na pintura e na escultura do século XVII,
constituindo uma legibilidade da obra que prevê um ponto específico
de observação que evidenciará a proporcionalidade do conjunto:
O “escuro quarto vivo”: agudeza e obscuridade em The Flea, de John Donne 75

No caso dos discursos, o equivalente da deformação plástica


da pintura ou da escultura é o acúmulo de ornamentos, que
produzem a obscuridade ou que efetuam uma representação
estilística não-unitária, como misto, ou uma disposição analítica,
dividida e subdividida geometricamente como quiasmas, como
ocorre nas letras do XVII ditas “cultistas” ou “conceptistas”.
[...] É o caso, como disse, do uso generalizado da agudeza ou
“ornato dialético enigmático” das práticas letradas seiscentistas,
que também exigem um ponto fixo para serem justamente
avaliadas e fruídas, e que é calculado, segundo a racionalidade de
Corte que as anima, como engenho, juízo, prudência e discrição
(HANSEN, 1995, p. 208).

Relendo a conceituação aristotélica do entimema, Donne e outros


agudos do século XVII propõem o conceito como uma sobreposição
ora presente, ora ausente, de pressupostos deduzidos no interior de
seu próprio desenvolvimento lógico, ou a partir de lugares-comuns da
invenção, de convenções do meio letrado, o que amplia sobremaneira
as possibilidades de se efetuarem analogias.

3 A agudeza composta em The Flea [Fig. 1]

No caso da poesia aguda de Donne e de outros poetas


engenhosos, todos os subgêneros da lírica permitem a formulação do
conceito dialético retoricamente ornamentado, alguns mais agudos
que outros; uns dispostos em série, outros embutidos em uma única
condensação composta. Por esse motivo, é comum a preceptiva coetânea
definir o conceito como a própria agudeza do poema. O preceptista
George Puttenham, por exemplo, considerando que o valor de um
homem é medido pelo grau de sutileza de seu engenho, preconiza que
são de igual importância a capacidade de formular interiormente um
conceito e a habilidade de expressá-lo agudamente: “his inward conceits be
the mettall of his minde, and his manner of vtterance the very warp and woofe of
his conceits”12. Como sempre, a metáfora (abarcando também o símile) é
o tropo escolhido para a formulação dos entimemas.
12
Puttenham (1968, II, p. 124): “seus conceitos interiores são os metais da mente e sua maneira
de expressá-los é a própria tessitura dos conceitos”.
76 Lavinia Silvares

Na poesia lírica de Donne, há uma sobreposição de metáforas


agudas que aproximam coisas distantes entre si; os argumentos ficam
muitas vezes escondidos por trás dessas transferências de sentido,
impedindo uma compreensão pronta ou rápida da idéia que o conceito
quer traduzir. Ora, a suspensão do entendimento do leitor, que se devia
dar apenas com muito esforço, era a própria finalidade do emprego
das agudezas obscuras. Como comprendia Gracián (1987, II, p. 105)
“Fórmase el enigma de las contrariedades del sujeto, que ocasionan la dificultad
y artificiosamente lo escurecen, para que le cueste al discurso el discubrirlo”. Se a
obscuridade é efeito decorrente do “enigma” proposto ou da “aspereza”
dos versos (no caso das sátiras), o leitor discreto saberá operar com ela,
e tanto maior será o louvor do engenho de Donne e a fama de seus
conceits. O fato de desenvolvê-los na lírica amorosa demonstra que a
poética da agudeza flexibilizava os critérios de adequação aos gêneros
considerando a conveniência dos estilos. Se o estilo é agudo e enigmático
e a matéria o permite, o poema é julgado como adequado e decoroso.
Em outra épocas, porém, os conceitos como ornato dialético enigmático
seriam tidos por sofismas, pois os poetas da agudeza operavam com o
entimema que elide uma das proposições e formulavam a obscuridade
propositadamente. É o que se verifica quando Johnson acusa a poesia
que chama de “metafísica” de “perverseness of industry”, conforme vimos;
a perversidade reside no excesso de artifício engenhoso que poderia
apenas condensar – ainda que agudamente – idéias vazias, absurdas, e
obscuridades injustificáveis. Assim, o conceito dos poetas da agudeza
enigmática seria carregado de falsidade: “they frequently threw away their
wit upon false conceits” (JOHNSON, 1984, p. 670). Porém, um dos traços
almejados no conceito agudo era justamente o desmembramento –
muitas vezes desproporcional, dissonante, como ensina Gracián – do
argumento central. A verdade é objeto do juízo; o engenho deve se
ater à beleza eficaz, que existe somente na medida em que a agudeza
das proposições cause a maravilha. Para Gracián (1987, I, p. 241),
“No se contenta el ingenio con sola la verdad, como el juicio, sino que aspira a
la hermosura. Poco fuera en la arquitectura asegurar firmeza, si no tendiera al
ornato”. Assim, uma das tarefas dos conceitos formulados por Donne
O “escuro quarto vivo”: agudeza e obscuridade em The Flea, de John Donne 77

é produzir o próprio enigma a ser decifrado, conduzir os argumentos –


tirados de lugares-comuns, ou de matéria da disputatio, com frequência,
e amplificados a partir de referências cultas e escondidas – com o
ornamento retórico, isto é, com metáforas agudíssimas, difíceis de
traduzir, com figuras eficazes para causar o efeito de assombro ou de
maravilha. Nem toda metáfora aguda é obscura; as espécies de agudeza
se alternam na composição, demonstrando a versatilidade do poeta. O
cultivo da maravilha, supondo uma recepção específica para a agudeza
enigmática, é efeito previsto (mas não previsível) da leitura de um poema
vernacular constituído como culto.
Para ilustrar, então, o “ornato dialético” e os procedimentos
envolvidos nos conceitos engenhosos de Donne, propõe-se uma análise
retórica de um célebre poema de Songs and Sonnets: The Flea.

1 Marke but this flea, and marke in this,


2 How little that which thou deny’st me is;
3 It suck’d me first, and now sucks thee,
4 And in this flea, our two bloods mingled bee;
5 Thou know’st that this cannot be said
6 A sinne, nor shame, nor losse of maidenhead,
7 Yet this enjoyes before it wooe,
8 And pamper’d swells with one blood
made of two,
9 And this, alas, is more than wee would doe.
10 Oh stay, three lives in one flea spare,
11 Where wee almost, yea more than maryed are.
12 This flea is you and I, and this
13 Our mariage bed, and mariage temple is;
14 Though parents grudge, and you, w’are met,
15 And cloysterd in these living walls of Jet.
16 Though use make you apt to kill mee,
17 Let not to that, selfe murder added bee,
18 And sacrilege, three sinnes in killing three.

19 Cruell and sodaine, hast thou since


20 Purpled thy naile, in blood of innocence?
21 Wherein could this flea guilty bee,
22 Except in that drop which it suckt from thee?
78 Lavinia Silvares

23 Yet thou triumph’st, and saist that thou


24 Find’st not thy selfe, nor mee the weaker now;
25 ‘Tis true, then learne how false, feares bee;
26 Just so much honor, when thou yeeld’st
to mee,
27 Will wast, as this flea’s death tooke life
from thee13.

E “A pulga” na tradução de Augusto de Campos:

Repara nesta pulga e apreende bem


Quão pouco é o que me negas com desdém.
Ela sugou-me a mim e a ti depois,
Mesclando assim o sangue de nós dois.
E é certo que ninguém a isto alude
Como pecado ou perda de virtude.
Mas ela goza sem ter cortejado
E incha de um sangue em dois revigorado:
É mais do que teríamos logrado.

Poupa três vidas nesta que é capaz


De nos fazer casados, quase ou mais.
A pulga somos nós e este é o teu
Leito de núpcias. Ela nos prendeu,
Queiras ou não, e os outros contra nós,
Nos muros vivos deste Breu a sós.
E embora possas dar-me fim, não dês:
É suicídio e sacrilégio, três
Pecados em três mortes de uma vez.
Mas tinges de vermelho, indiferente,
A tua unha em sangue de inocente.
Que falta cometeu a pulga incauta
Salvo a mínima gota que te falta?
E te alegras e dizes que não sentes
Nem a ti nem a mim menos potentes.
Então, tua cautela é desmedida.
Tanta honra hei de tomar, se concedida,
Quanto a morte da pulga à tua vida
(CAMPOS, 1986, p. 71).

13
In Poems, by J. D. With Elegies on the authors death. London: Printed by M.F. For Iohn Marriot ...,
1633, p. 230-231.
O “escuro quarto vivo”: agudeza e obscuridade em The Flea, de John Donne 79

O poema propõe o conceito formulado a partir do que Gracián


(1987, p. 168) mais tarde definiria como agudeza compuesta, isto é, “un
todo artificioso mental”, e consiste da seguinte proposição: assim como a
pulga suga o sangue de um homem e de uma mulher, promovendo a
união das duas partes sem alteração de seu bem-estar físico ou moral,
do mesmo modo o coito fortaleceria a relação amorosa, sem representar
pecado ou vergonha para a mulher. O recurso central aqui é a tópica
aristotélica de invenção por semelhança, na qual se argumenta por
analogia, utilizando a lógica para demonstrar que, se duas coisas são
semelhantes entre si em um ou dois acidentes, então serão semelhantes
também em outras qualidades14; os poetas cultos como Donne tinham
vasta instrução em lógica, e eram exercitados com os Progymnasmata
de Hermógenes e Aftônio15. O uso do lugar-comum (era frequente a
noção, já presente em Aristóteles, de que haveria uma mistura de sangue
durante o coito) estabelece o primeiro momento de analogia entre a
união promovida pela pulga e o ato sexual dos amantes, facilitando, a
seguir, o desenvolvimento do silogismo. Essa operação já está explícita
na abertura do poema, abrupta e inesperada como no asteion aristotélico:
“Marke but this flea, and marke in this,/ How little that which thou deny’st me is”.
Definindo o poema dentro da retórica de persuasão pelo uso da diácope
(marke / marke), própria do argumento apelativo, a abertura encena um
diálogo entre a persona e a amante, ao mesmo tempo em que apresenta
a figura da pulga como objeto da metáfora central a ser desenvolvida.
O leitor tinha como repertório inúmeros poemas que foram escritos
usando a pulga como metáfora, ao longo do século XVI, em emulação a
um texto medieval atribuído a Ovídio, e por isso estava ciente do lugar-
comum. No entanto, esperava-se que a imitação trouxesse uma novidade,
fruto da invenção de imagens agudas, e resultante de um processo de
amplificação e desenvolvimento do lugar-comum; como mais tarde
Tesauro sistematizaria o preceito, “A cada parto agudo é necessária a
novidade, sem a qual a maravilha desaparece e, junto com ela, a graça e
14
O tópico de invenção por semelhança aparece como um dos tópicos demonstrativos comuns
na Retórica de Aristóteles, sendo utilizado para elaborar a argumentação de um entimema, como é
o caso aqui, em The Flea (Aristotle, 1991, 2.23).
15
Donne enuncia em uma epístola: “I have studied philosophy, therefore marvayle not if I make
such accompt of arguments qui trahuntur ab effectibus”.
80 Lavinia Silvares

o aplauso” (TESAURO, 1997, p. 8). A amplificação cumpria a função


de desenvolver o argumento (inclusive um lugar-comum) trazendo a
surpresa, a correspondência inesperada entre coisas aparentemente
dessemelhantes.
Nos versos seguintes de The Flea (3-9), há uma colocação da
premissa de que a sucção de uma pulga não provoca danos nem perda
de virgindade: “Thou know’st that this cannot be said/ A sinne, nor shame, nor
losse of maindenhead”. A comparação desse instante de união de sangue
com a união de um casal no ato sexual, embora ainda implícita, está
sinalizada no uso da repotia, figura de repetição da matéria com pequena
alteração, configurada no espelhamento dos versos 4 e 8: “our two bloods
mingled bee” e “one blood made of two”. A mudança de dois sangues para
um sangue unificado permite a colocação seguinte, já indicativa de
uma realização do ato sexual vislumbrada pela persona: “And this, alas,
is more than wee would doe”. Vale notar, a propósito, que os versos 9, 10 e
11 contêm figuras que evidenciam o apelo emotivo típico do discurso
persuasivo: “alas”, “oh”, “yea”. O momento em que os termos aparecem
é significativo, uma vez que o primeiro (“alas”) denota lamentação de
um fato não-ocorrido; o segundo indica a tentativa de persuasão (“oh,
stay”); e o terceiro confirma através da ênfase (“yea more than maryed are”)
uma afirmação essencial para a argumentação seguinte.
Se os versos 1 a 8 tratavam da elaboração do entimema,
configurando a premissa primeira do argumento silogístico, os versos 12
e 13 introduzem a premissa segunda do argumento: “This flea is you and I,
and this/ Our mariage bed, and mariage temple is”. Por meio do símile, marcado
pela presença do verbo de ligação unindo A (a pulga) e B (os amantes),
e C (o ato da sucção) e D (a união, ou o casamento dos amantes), a
persona explicita a reciprocidade metafórica implícita desde o início do
poema. A diácope no verso 13 (mariage/ mariage) marca a ênfase no
pacto de união dos amantes, e busca torná-lo legítimo; o espelhamento
do verso 11 (“where wee almost, yea more than maryed are”) define esse
argumento como central para a persuasão, já que a união está “mais” do
que consumada. A escolha do símile – segundo Aristóteles (1991, 3.4),
“similes are metaphors that invite explanation” – possibilita a explicação nos
O “escuro quarto vivo”: agudeza e obscuridade em The Flea, de John Donne 81

versos em disposição anafórica que vêm a seguir. A persona explica as


afirmações que fez sobre a autenticidade da união dos amantes através
de duas concessões: “Though parents grudge, and you, w’are met,/ and cloysterd
in these living walls of Jet./ Though use make you apt to kill mee,/ Let not to that,
selfe murder added bee,/ And sacrilege, three sinnes in killing three.” A primeira
concessão argumenta nos termos da própria metáfora do poema,
dando continuidade à analogia entre a união de sangue e o matrimônio,
e novamente enfatiza o “fato consumado”, ou seja, o encontro dos
amantes à revelia das normas cortesãs consagradas na época. A segunda
concessão, no entanto, oferece um dado exterior à argumentação do
poema para então reforçá-la; o costume (“use”) possibilitaria à amante
terminar o encontro, já que não possui em si mesmo legitimidade do
ponto de vista moral. Porém, o poeta engenhosamente “metaforiza” esse
costume, transformando-o em morte (da persona), suicídio (da amante)
e sacrilégio (contra o matrimônio virtual). Dessa forma, a polaridade
“bem” versus “mal” se inverte, passando a constituir pecado a recusa
em “oficializar” a união, negando continuidade a ela (como se fosse
um aborto herético de um ato natural). A diácope (three/ three) enfatiza
o tamanho do pecado, de novo contribuindo para efetuar a persuasão.
Pode-se notar aqui a presença de um paradoxo típico do conceito agudo:
se antes o pecado parecia ser a entrega da amante na união carnal, agora
o inverso se coloca, e a recusa constitui sacrilégio. Momento alto em
termos da agudeza do poema, o paradoxo ainda se torna mais engenhoso
quando se percebe que está contido na metáfora central desenvolvida
(e mantida, mesmo referencialmente, como agora) ao longo dos versos.
O triângulo formado pela pulga e pelos amantes, metaforicamente
reunidos pelo sangue, torna-se algo sagrado, e rompê-lo seria pecado.
Essa argumentação consolida o desenvolvimento lógico – se pensado
relativamente à tópica de causa e efeito, o entimema se fundamenta
sobre antecedentes e consequências -, preparando para a conclusão que
se inicia nos versos a seguir.
Puttenham (1968, III, p. 176) define a figura retórica que chama
de “Questioner or inquisitiue” desta forma: “There is a kinde of figuratiue
speach when we aske many questions and looke for none answere, speaking indeed
82 Lavinia Silvares

by interrogation, which we might as well say by affirmation”16. É o que ocorre


em The Flea nos versos 19 a 22, nas duas colocações interrogativas que
parecem interromper o desenvolvimento da argumentação. Lembrando
que o poema, em seu diálogo fictício, se endereça a uma interlocutora
específica, este é o momento em que se firma o diálogo poeticamente, e a
suposta “intromissão” da ouvinte é retoricamente levada para dentro do
poema. O verso 19 possibilita a inferência de que o pecado metafórico
fora realizado, e o triângulo rompido, com a morte da pulga: “Cruell and
sodaine, hast thou since/ Purpled thy naile, in blood of innocence?”. A pergunta
retórica seguinte já implica o julgamento desse ato, sentenciando a
inocência da pulga e antecipando a conclusão do silogismo: “Wherein
could this flea guilty bee/ Except in that drop which it suckt from thee?”. Os versos
seguintes poderiam concluir definitivamente o silogismo, com uma
contra-argumentação direta. Ao contrário, porém, Donne utiliza outra
figura retórica para amplificar a argumentação (e intensificar a agudeza do
conceito), retardando a conclusão: a paramiologia, figura de pensamento
própria para sustentar um entimema. Puttenham a denomina, por esse
motivo, “figure of admittance” – figura de admissão. Admitindo um ponto
frágil na argumentação, o poeta o antecipa, possibilitando assim uma
contra-argumentação mais forte. Diante do questionamento de ter
matado uma inocente, a interlocutora novamente aparece no poema
oferecendo sua defesa: “Yet thou triumph’st, and saiest that thou/ Find’st not
thy selfe, nor mee the weaker now”. Porém, como aparece em Puttenham,
esse recurso visa apenas o fortalecimento da conclusão, já que a própria
fraqueza da argumentação é desfeita: “The good Orator vseth a manner of
speach in his perswasion and is when all that should seeme to make against him
being spoken by th’otherside, he will first admit it, and in th’end auoid all for his
better aduantage”17. O uso de figuras tais como essa evidencia o completo
domínio que o poeta tinha das regras previstas para a prática poética,
demonstrando ser um hábil artífice.

16
“Há um tipo de discurso figurado quando fazemos muitas perguntas mas não esperamos nenhuma
resposta, e falamos por interrogação o que poderia ser dito por afirmação”.
17
Ibid., Book III, p. 190: “O bom Orador usa uma maneira de falar em sua persuasão que antecipa
tudo o que pode ser dito contra ele, admitindo certas coisas e evitando todo o resto a seu próprio
favor”.
O “escuro quarto vivo”: agudeza e obscuridade em The Flea, de John Donne 83

Os últimos versos de The Flea promovem uma contra-


argumentação fundamentada tanto nas duas premissas do silogismo
(mencionadas acima) quanto na “virada” argumentativa elaborada no
recurso paramiológico: “’Tis true, then learne how false, feares bee;/ Just so
much honor, when thou yeeld’st to mee,/ Will waist, as this flea’s death took life
from thee.” Lançando mão da tópica de invenção de grau, que considera
o “mais” e o “menos” em determinada questão, o poeta argumenta a
fortiori: se algo não existe onde há mais probabilidade de existir, logo
não vai existir onde a probabilidade é menor18. Ou seja: se a morte da
pulga não representou perda de vida para a amante, então não haverá
perda de virtude no momento de entrega sexual. Isto já se anunciava
na abertura do poema: “Marke but this flea, and marke in this,/ How little
that which thou deny’st me is”. Para chegar a essa conclusão, devem ser
consideradas as premissas formuladas no silogismo e comprovada
sua eficácia argumentativa. Assim, o conceito proposto no poema,
fundamentado em proposições, postulados e inferências que sustentam
as premissas do silogismo dialético, e ornamentado por meio de figuras e
tropos que constróem a agudeza, pode ser resumido da seguinte forma:

1. a consideração da pulga levará ao entendimento de que é


insignificante aquilo que a amante nega ao suplicante. Versos 1 e 2.
2. é postulado que a pulga suga o sangue dos amantes,
promovendo uma união “sacramentada”. Versos 3 e 4.
3. a premissa sustenta que não há pecado, vergonha ou perda de
virtude nessa união de sangue. Versos 5 e 6.
4. a pulga suga o sangue dos amantes, aproveitando o momento
de inchaço físico – a comparação implícita neste verso com a ereção
masculina, além de constituir agudeza e marcar o poema dentro do gênro
lírico-jocoso, possibilita a colocação seguinte, consolidando a reciprocidade
metafórica: “and this, alas, is more than wee would doe”. Versos 7, 8 e 9.

18
Encontra-se esse tópico formulado por Aristóteles (1991, 2.19), na Retórica, como tópico
demonstrativo comum que considera as possibilidades e impossibilidades por analogia, servindo
para sustentar a argumentação.
84 Lavinia Silvares

5. formulação do apelo (objetivo central da persuasão) para


que a relação amorosa se estenda, baseada na metaforização da união
de sangues promovida pela pulga; apresentação da justificativa do
casamento (união sacramentada). Versos 10 e 11.
6. a segunda premissa, através do símile, transfere as considerações
acerca da pulga para o caso dos amantes. Versos 12 e 13.
7. as objeções ao argumento expresso se formulam em duas
concessões ligadas pela anáfora. Versos 14 e 15.
8. postulado que metaforiza a ação do término do encontro
amoroso, invertendo através do paradoxo o julgamento da situação.
Versos 16, 17 e 18.
9. disputa entre a persona e a interlocutora, através das
interrogativas retóricas, com a objeção formulada de que o pecado reside
no rompimento da união de sangue. Versos 19 a 22.
10. contestação desse julgamento com a ressalva de que o
rompimento não provocou danos para a integridade física dos amantes.
Versos 23 e 24.
11. conclusão do conceito, na qual já se encontra metaforizada a
relação entre a pulga e os amantes, e por semelhança todas as atribuições
de um e de outro. Por uma relação de A para B, e de C para D, temos:
a sucção da pulga não provoca danos morais e os amantes são como a
pulga; se a sucção da pulga não altera a integridade física, logo a união
sexual (com o compartilhamento de sangue, segundo o lugar-comum)
não vai alterar a virtude dos amantes. Versos 25 a 27.
O “escuro quarto vivo”: agudeza e obscuridade em The Flea, de John Donne 85

Figura 1 – Primeira página de Songs ans Sonnets, da edição de 1633,


abrindo com o poema The Flea

O escrutínio do tópico inventivo e elocutório de um poema


engenhoso como The Flea era prática prevista de uma leitura culta da
poesia da agudeza. Os leitores coetâneos de Donne viam graça em
dissecar os poemas e achar, por trás das formulações sobrepostas,
os recursos usados para chegar a tamanhas agudezas. Vejam-se,
por exemplo, algumas anotações que o cortesão inglês E.K. fez na
primeira edição de The Shepheards Calender, célebre poema de Edmund
Spenser:

A patheticall parenthesis, to encrease a carefull Hyperbaton.


A pretty Epanorthosis in these two verses, and withall a
Paronomasia or playing with the word.
86 Lavinia Silvares

An Epiphonema.
A figure called Fictio [...] (BUXTON, 1966, p. 5).19

Era necessário, de fato, propôr aqui uma análise retórica para que
se evidenciasse o completo domínio do artífice frente a sua composição.
Sem definir o caráter retórico da prática poética do século XVII,
dificilmente seria verossímil o seguinte enunciado de um coetâneo:
“La poesía no es otra cosa que imitación”20. Considerando os estilos cultos
no século XVII, Hansen (2003, p. 51) expõe de que matéria é formado
um conceito:

Como na poesia metafísica inglesa de John Donne, que recicla


a convenção aristotélica, como Rosemund Tuve já demonstrou
para o ‘Anthea’ de Herrick, mesmo quando a matéria do poema
é uma experiência sensorial, a sua causa – como causa final
aristotélica – nunca é a representação da mesma por meios
empiristas ou realistas, mas uma aplicação técnica de imagem. Como
um silogismo retórico ou um entimema, a imagem demonstra um
conceito da experiência poética da tradição de casos retóricos,
ou seja, não expressa nem representa a experiência empírica
filtrada nas impressões de uma subjetividade autonomizada.
Logo, é imagem sempre regrada como produção de efeitos
verossímeis, segundo preceitos da enargeia ou evidentia, com que
a beleza é mimeticamente eficaz.

Assim, em The Flea, o conceito versa sobre matéria tirada de


um lugar-comum, ou de um dos casos retóricos disputados nos meios
cultos da época. A graça reside na agudeza das metáforas, dos enigmas
produzidos pela dificuldade de desfazer as transferências, dos símiles
que aproximam por analogia os acidentes de coisas distantes entre si,
do paradoxo que desafia o senso comum, das figuras que dispõem os
argumentos segundo a conveniência; o resultado é o efeito de maravilha
capaz de arrebatar o público a quem se destina. A pulga torna-se agudeza
19
“Um parêntesis patético, para aumentar um hipérbato cauteloso. / Uma bela epanortose nesses
dois versos, e ainda uma Paronomásia, ou jogo de palavra. / Um epifonema. Uma figura chamada
Fictio”.
20
Abade de Rute, em Exámen del Antídoto, de 1615. Cit. em Luisa López Grigera, “Por la estafeta
he sabido / que me han apologizado... (Otra lectura de la polémica en torno de las Soledades”.
Mimeo., p. 5.
O “escuro quarto vivo”: agudeza e obscuridade em The Flea, de John Donne 87

na tradução dos significados e na transferência de qualidades distantes


das que se pode chamar de seu âmbito próprio de significação. Os
argumentos da invenção, nesse caso, são tirados ab res, a partir da coisa
(ou do referente), isto é, da pulga, e das inúmeras possibilidades de
correspondência analógica entre os acidentes desse objeto e os acidentes
de outros. Diferentemente do que faz nas elegias lascivas, nas sátiras
mordazes e nas epístolas em verso, no caso das canções e dos sonetos
lírico-amorosos, Donne nem sempre tira os argumentos de autores,
comprovando que era desejável, no meio culto cortesão, constituir
agudezas sem a obscuridade causada por acúmulo de referentes cultos.
Assim, “o monarca do engenho” se destaca pela versatilidade, o que
explica, em parte, as recorrentes porém diversas retomadas de sua poesia
efetuadas ao longo de três séculos e meio.

Referências

Aristotle. The Art of Rhetoric. Tr. H.C. Lawson-Tancred. London:


Penguin Classics, 1991.

______. Poetics. Tr. Stephen Halliwell. 2. ed. Cambridge, Mass. / London:


Harvard U.P., 1995. (Loeb Classical Library, 199).

Buxton, John. Sir Philip Sidney and the English Renaissance. London:
Macmillan, 1966.

Campos, Augusto de. O Anticrítico. São Paulo: Companhia das Letras,


1986.

chapman, George. Ouids Banquet of Sence. A Coronet for his Mistresse


Philosophie, and his amorous Zodiacke. With a translation of a Latine
coppie, written by a Fryer, Anno Dom. 1400. London: 1595.

Cicero. The Orator. Books I-II. Tr. E. W. Sutton e H. Rackham. Cambridge,


Mass. / London: Harvard U.P., 2001. (Loeb Classical Library, 348).

Demetrius. On Style. Tr. Doreen C. Innes. 2. ed. Cambridge, Mass.;


London: Harvard U.P., 1995. (Loeb Classical Library, 199).
88 Lavinia Silvares

Donne, John. Poems, by J.D. With Elegies on the authors death. London:
Printed by M.F. For Iohn Marriot ..., 1633.

Dryden, John. The Works of John Dryden. Ed. William Frost. Berkeley;
Los Angeles; London: U. of California P., 1974. v. 3.

Eliot, t. s. Os Poetas Metafísicos. In: ______. Ensaios escolhidos. Lisboa:


Cotovia, 1992.

______. Selected Essays 1917-1923. New York: Harcourt, Brace and Co.,
1932.

______. John Donne. The Nation and the Athenaeum, v. 33, n. 10, p. 331-
332, 1923.

Góngora, Luis de. Obras completas. Ed. Juan Mille y Jimenez. Madrid:
Aguilar, 1972.

Gracián, Baltasar. Agudeza y arte de ingenio. Ed. Evaristo Correa Calderón.


Madrid: Clásicos Castalia, 1987.

Grigera, Luisa López. Anotaciones de Quevedo a la Retórica de Aristóteles.


Salamanca: 1998.

______. La Retórica en la España del Siglo de Oro. Salamanca: Ediciones


Universidad Salamanca, 1994.

______. “‘Por la estafeta he sabido / que me han apologizado...’ (Otra


lectura de la polémica en torno de las Soledades)”. Mimeo.

Hansen, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia


do século XVII. 2. ed. São Paulo: Ateliê e Unicamp, 2004.

______. Vieira e os estilos cultos: ut theologia rhetorica. Rivista Di


Studi Portughesi e Brasiliani. Roma: Instituti Editoriali e Poligrafici
Internacionali, 2003.

______. Retórica da agudeza. Letras Clássicas, São Paulo, ano 4, n. 4, p.


317-342, 2000.

______. Ut pictura poesis e verossimilhança na doutrina do conceito no


século XVII. In: ______ Para Segismundo Spina. São Paulo: Iluminuras, 1995.
O “escuro quarto vivo”: agudeza e obscuridade em The Flea, de John Donne 89

Hermogenes. On Types of Style. Tr. Cecil W. Wooten. Chapel Hill: The


U. of North Carolina P., 1987.

Johnson, Samuel. Cowley. In: ______ A Critical Edition of the Major


Works. Ed. Donald Greene. Oxford: Oxford U.P., 1984.

Longinus. On the sublime. Tr. W.H. Fyfe, rev. Donald Russell. 2. ed.
Cambridge, Mass. / London: Harvard U.P., 1995. (Loeb Classical
Library, 199).

Puttenham, George. The Arte of English Poesie. Facsimile of the first edition
(1569). Menston: Scholar Press, 1968.

Silvares, Lavinia. “Guerra de Olhares”: Emulação e agudeza em “Vênus


e Adônis” (1593), de William Shakespeare. Matraga, UERJ, v. 20, n. 33,
p. 47-69, 2013.

______. John Donne satirista: metáfora, engenho & arte. Gragoatá, Rio
de Janeiro: UFF, v. 26, p. 187-206, 2009.

______. A poesia inglesa e a retórica aristotélica: a atualidade dos


discursos poéticos e preceptivos no século XVI. VISO: Cadernos de
Estética Aplicada, v. 6, p. 1-20, 2009.

Tesauro, Emanuele. Argúcias humanas. Trad. de Gabriella Cipollini e


João Adolfo Hansen. Revista do IFAC, Ouro Preto, IFAC-UFOP, n. 4,
dez. 1997.

Vickers, Brian. English Renaissance Literary Criticism. Oxford: Clarendon


Press, 2003.

Você também pode gostar