Comtex Tura Decor Pos
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Investigar o funcionamento do Discurso Artístico (DA) é uma prática constante em meu
percurso de pesquisa. Algum tempo que tenho me dedicado analisar diferentes materialidades
significantes que vão desde produções artísticas como a instalação e a intervenção, passando pela
produção audiovisual e as performances. Nessa análise, estou me propondo olhar para uma vídeo-
performance no imbricamento corpo-imagem enquanto materialidade significante. E, para pensá-lo faz-
se necessário percorrer algumas questões tanto da imagem, quando do corpo na arte, a partir da
perspectiva discursiva justamente passando pela noção de gesto3.
Em outras oportunidades já apontei que tanto o analista de discurso, quanto o artista produzem
gestos de interpretação, sendo que o primeiro o faria por meio de um dispositivo teórico-analítico, e, o
segundo, por meio de um dispositivo sensível-analítico (NECKEL, 2004). Retomo agora tal formulação
com a prerrogativa de um percurso trilhado tanto pelas vias do Discurso quando pela Arte, ressalto que o
sensível aqui, não prescinde de inscrições, ao contrário, é justamente pela inscrição, pela identificação, e
pela interpelação que esse dispositivo sensível funciona. E, desta forma, o sujeito sempre
cindido/interpelado apreende o mundo de suas experiências estéticas. E, na Fruição temos a inscrição. A
esse processo chamei de Projeções Sensíveis (NECKEL, 2010, p.130), formulação esta, cunhada
justamente no lugar de entremeio da arte e da AD. Uma forma de ler, posicionar-se, relacionar-se com a
produção artística, por sua vez, determinada sócio-historicamente. Trata-se de uma relação de
interlocução com a arte balizada na/pela memória discursiva e constituída pelos esquecimentos,
mediada pelo sensível (instâncias do real, do imaginário e do simbólico). Tomo, assim, o lugar de leitura
das produções artísticas, como o lugar das projeções sensíveis. Um gesto de leitura/interpretação do/no
dispositivo sensível.
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Programa de Pós Graduação em Ciências da Linguagem UNISUL – Universidade do Sul de Santa Catarina.
nadia.neckel@unisul.br
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Neckel (2004) predominantemente polissêmico.
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Pêcheux [AD69] 1997, p.78 “gestos como ato no nível simbólico no estado atual da teoria do significante” (...)
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ideologia”, e, é nessa dimensão que pensamos esse corpo dotado de sentidos em seus modos de
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identificação, na/da linguagem, da história e do inconsciente . Leandro Ferreira nos fala da relação do
Corpo Imaginário, o Corpo Simbólico e o Corpo (do) Real. Segundo a autora, o Corpo Imaginário seria o
proposto pelo estádio do espelho, o momento que o eu se constrói a partir do outro. Já o Corpo
Simbólico é o marcado pelo significante na relação linguagem-corpo. O Corpo (do) Real a partir da
leitura lacaniana, segundo a autora, pode ser considerado nessa ordem “como uma metonímia da
castração, já que é o lugar da falta estruturante.” (2011, p. 350).
Quando falo em materialidade discursiva, compartilho das ideias de Orlandi ao dizer que não se
trata de pensar apenas no corpo enquanto objeto empírico, mas o corpo enquanto materialidade
significante, a materialidade do sujeito (ORLANDI, 2012). O que falamos aqui é de uma posição sujeito
entre outras possíveis. Na abordagem discursiva, não há como falar em sujeito sem falar em
inconsciente/ideologia. E não é possível pensar inconsciente/ideologia/sujeito sem pensar no corpo. Por
isso, ao abordar o corpo do sujeito enquanto materialidade significante, e nesse gesto de leitura, um
corpo suporte de arte, um corpo videoperformático, trato de uma materialidade duplamente afetada pelas
condições do discurso, do discurso na contemporaneidade e do discurso artístico. Funcionamentos que
se imbricam e se corporificam em linguagem. Em linguagem artística. Dito de um modo pecheutiano,
trata-se “da relação do sujeito com aquilo que o representa; portanto, uma teoria da identificação e da
eficácia material do imaginário.” (PÊCHEUX, 1997, p.125).
Não podemos esquecer que se trata de um corpo feminino na tela. Um corpo feminino que se
reescreve na discursividade artística através dos tempos, fortemente balizado e demarcado pelos laços
sociais de épocas distintas. Em termos de representação artística, o corpo feminino nu, ou vestido,
sempre marcou certas posições de docilização da mulher frente à sociedade patriarcal da cultura
ocidental. Sendo, muitas vezes, negada à mulher a possibilidade de autoria. É possível tomar como
exemplo a própria historiografia da arte: quantos exemplos de pintoras ou escultoras mulheres dispõem-
se da Idade Antiga, passando pela Idade Média ao Renascimento, ou, até mesmo na Arte Acadêmica?
Entrementes por toda a iconografia artística têm-se inúmeros corpos femininos pintados, esculpidos,
xilogravados (...) exultados desde sua capacidade procriadora, até seus poderes profanos de sedução,
ou, sua “angelical/diabólica” beleza. Fora perseguindo imagens corpóreas como essas, que seguiu-se
marcando modos de interpretação do corpo feminino sempre em detrimento ao corpo masculino de
herói. São, na verdade, posições sujeitos de leitura da sociedade e da arte. Ou, melhor dizendo,
posições de leitura da sociedade pela arte, quando tomamos o discurso artístico como lugar de inscrição.
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Como nos ensina Orlandi, o corpo não é/está indiferente à opacidade dos sentidos, a falha da língua ou, ao
equívoco da história. Nas palavras da autora: “Enquanto corpo simbólico, corpo de um sujeito, ele é produzido em
um processo de significação, onde trabalha a ideologia, cuja materialidade específica é o discurso” (2012, p. 85).
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Pelo recorte discursivo, divido o vídeo em três sequencias de frames: A primeira, chamarei de
projeções operárias. O corpo operário é o corpo suporte, suporte de projeções de/dos Operários de
Tarsila do Amaral. Um corpo disponível. Disponível para ser lido. Despido. Vestido de operários. Um
corpo singular e repetível. Clonado. Seriado, como é seriada a atividade do operário. Um corpo dotado
de gestualidade, mas que se coloca quieto, em “silêncio” para que os “transeuntes” operários possam
por ele passear. Um corpo que serve de suporte. Aquieta-se para que os operários possam ser
mostrados. Só depois, coloca-se em movimento juntamente com os operários. Coloca-se em marcha e,
presentifica a história de corpos operários que são legados ao esquecimento. A uniformização das
fábricas que, mesmo em suas diferenças, produzem o efeito de ser um mesmo, de ser massa. Mas, que
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A produção aqui analisada iniciou como um exercício final da disciplina de Arte e Cultura, primeira fase do curso de
Cinema e Realização Audiovisual (2011) da UNISUL/SC. Os acadêmicos deveriam construir uma narrativa visual
baseada em Crônicas que Tarsila do Amaral publicara no Diário de São Paulo em 07 de julho de 1936. BK editou e
deu continuidade ao conceito da videoperformance, linguagem que se dedica até hoje e que conta com outras
produções nessa mesma linguagem.
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reivindica identidade. Diferentes rostos sem corpo, presentes em um mesmo corpo. Um corpo/rosto6
social? Há sempre uma relação de tensão entre o corpo do sujeito e o corpo social. O corpo social
apaga, silencia corpos dos sujeitos como marcado na produção de Tarsila. Os operários aglomeram-se,
multiplicam-se, mas, não há corpos. A diferença, pelo desenho ascendente, é homogeneizada,
estanque. É no corpo de BK que eles se movimentam. Movimentam, mas, ainda assim, não se
distinguem. O quadro “Operários” de Tarsila, quando lido pelo corpo de BK, retoma, por outra “natureza”,
a impossibilidade do gesto do operário silenciado por determinações sócio-históricas próprias da forma
sujeito capitalista. O sujeito dessa forma-histórica tem seu corpo atravessado (nas palavras de Deleuze e
Gattari, cartografados) que delimitam funcionamentos políticos econômicos e culturais produzidos no e
pelo laço social. Assim, o corpo na produção artística não deixa de ser um corpo – operário. Na
videoperformance de BK, um corpo de projeções operárias.
Passo então para a segunda divisão de frames, que chamo de corpo suporte – corpo tela: a
textualidade, a tessitura do vídeo ancora-se no corpo, nos movimentos e na visualidade. Um corpo que
se coloca em branco, nu. Um corpo a ser preenchido, significado. Um corpo suporte. Que tudo pode
suportar. Ser desenhado, expressado e preenchido. Significado. É aqui que se marca mais fortemente a
com-textura do vídeo a imbricação entre superfície – estrutura e constitutividade.
Como Renoir pintava o corpo constituído de múltiplas cores, assim também BK disponibiliza seu
corpo como tela, para que nele (corpo), operem as cores. Renoir, ao pintar o corpo feminino,
preferencialmente corpos nus, intensificava as formas e dava-lhes volume por meio das misturas de
cores, buscando o erotismo e a sensualidade. Retratava seus modelos costumeiramente ao ar livre.
Como impressionista era pela luminosidade das cores que apresentava seus corpos modelados pelo
vermelho e matizes de amarelo. Por meio de suas pinceladas precisas estabeleceu certos padrões a
corpora feminina segundo os padrões de beleza do século XIX. A mulher era um objeto de adoração do
artista. As musas de Renoir são representadas como exultação da naturalidade, da graça e da
sensualidade dotada de ingenuidade, como que um flagrante de momentos íntimos. Do corpo nu ao
corpo cor, temos o corpo tela, suporte do pigmento. As cores, ao mesmo tempo em que vão desfilando
pelas formas, também vão ocupando o corpo, preenchendo os espaços até a nudez desaparecer sob a
cor. Esse era o processo da pintura de Renoir sobre a tela em branco: as cores preenchiam os espaços
e criavam a forma. Renoir descobrira em sua poética uma mulher “não mais idílica, fugaz, formada por
luz e imaginação, mas sólida, corporificada, presente, fisicamente sentida.” (BARDI, 1972, p. 681).
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Deleuze e Guatarri ([1996] 2012); (Agamben [1977] 2007)
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da mão pelo braço da performer, marca a série banhistas, ou, “Mulher se enxugando” desenho – acervo
do museu do Louvre. Os braços femininos que se alongam e movimentos diagonais nas telas ou no
vídeo por meio de paráfrases visuais. As cores que predominam sobre o corpo são o amarelo, o rosa e o
azul. O amarelo, como já disse, marca a matiz da forma na poética de Renoir. Já a presença o Azul e
Rosa recuperam uma de suas produções mais famosas: “Rosa e Azul” (1881), nome do retrato de duas
meninas. Na videoperformance é o azul e o rosa que vão preenchendo o branco que cobre o corpo nu. O
branco da tela a ser preenchido, o branco que preenche o corpo prenhe de significações. Desse modo, o
corpo se torna suporte. O gesto se torna pincel. O enquadramento apaga o corpo e o transforma numa
grande tela. Só quando se enquadra o rosto da performer é que recuperamos que se trata de um corpo.
O que nos leva a terceira sequência de frames.
BK recupera, em seu gesto performático, o corpo mulher na arte. Mas não apenas um corpo
contemplação, mas, um corpo autoria. Toda a formulação de arte se dá sempre na intersecção de
memórias (recuperáveis, ou, não) da imagem pela imagem. O videoperformance assume-se, nesse
caso, no lugar de intersecção de leituras, no movimento da imbricação material: a imagem pictórica, a
imagem corporal e a imagem fílmica em diferentes condições de produção. O processo de autoria, aqui,
é segundo Gallo (2001) contornado tanto pela função autor, quanto pelo efeito autor. O corpo, como
vimos, constituído na intersecção do Corpo Imaginário – Simbólico e Real, significando pela falta
estruturante, constituído de função autor e produzindo efeito autor. Essa, como diria Orlandi, é a errância
dos sujeitos e dos sentidos que tomam corpo e se textualizam pelo/no corpo, no corpo como
materialidade significante. A falta estruturante, pela natureza de sua incompletude na arte, se aloja no fio
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Trago, nesse contexto, as palavras de Tânia Clemente, quando nos fala do conceito de policromia: “gesto que
permite, ao interpretar uma imagem projetar outras imagens, cuja materialidade não é da ordem da visibilidade, mas
da ordem do simbólico e do ideológico”(2011, p. 390).
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de discurso, porém, jamais retido, sempre em sua polissemia. Por tais deslizamentos e lugares do
corpo, é que podemos ler essa videoperformance pelas relações dos sentidos que ela vai delineando e,
jamais, pelas possíveis “intenções” da artista. Na perspectiva discursiva, a questão não é o que o artista
“quis” dizer, mas como os sentidos são possíveis. Que sentidos são recuperáveis pelo funcionamento do
artístico, e que sentidos nos escapam. Nessa perspectiva, o rosto de BK reclama uma identidade que
não é necessariamente de BK enquanto sujeito empírico, e sim, enquanto sujeito à, e, de linguagem; um
processo de identificação que está na materialidade significante do DA, e, por isso mesmo, uma
identificação de partilha. Eu me vejo no outro (Outro) que me vê, se assim quisermos recuperar um
conceito psicanalítico. Sujeito e significante que sempre reclamam outro, e outro, e outro... Desta forma,
na perspectiva discursiva que coloca o par inconsciente/ideologia, coloca- se sempre sujeitos e sentidos
na errância, no movimento. O que nos leva não à identidade, mas, aos modos de identificação, do artista
e do público, nos leva às projeções sensíveis. É nesse lugar da tecedura (memória/imagens)
propiciada pela tessitura (modos de funcionamento do audiovisual) que somos “projetados”, que
significamos, somos “identificados” e nos identificamos. Um modo de ler e posicionar-se materialmente
determinado. O rosto em(quadrado) marca: você que me lê – eu sou! E, onde estamos nós? Segundo
nosso mestre Pêcheux: “sujeito e sentido se constituem se constituindo”. Eu sou você que vejo, e, que
me vê. Somos o entremeio. Movimento polissêmico, próprio do funcionamento do discurso artístico. E,
nesse corpus analisado: o corpo suporte e o corpo operário significam no movimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2), São Paulo, 1972.
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volume 1, número 2, jant./jun. 2001 Disponível em:
http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0102/03.htm
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LEANDRO FERREIRA, Maria Cristina Análise de Discurso de seus objetos. In: BRANCO et al. Campinas,
Editora RG, 2011.
NECKEL, Nádia Régia Maffi Tessitura e Tecedura: Movimentos de compreensão do Artístico no Audiovisual
Tese de Doutorado –Instituto de Estudos da Linguagem – IEL - UNICAMP Campinas, SP, 2010.
ORLANDI, Eni Sujeito, Sentido e Ideologia. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012.
PÊCHEUX, Michel Discurso: Estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Puccinelli Orlandi São Paulo: Pontes,
1997.
SOUZA, Tânia Clemente, Análise do Não Verbal e os usos da Imagem nos meios de Comunicação. IN: Rua,
Campinas, 7: 65-94, 2001.
_____. Imagem, Textualidade e Materialidade Discursiva In: Análise de Discurso no Brasil: Pensando o
impensado sempre, uma homenagem a Eni Orlandi. BRANCO et al. Campinas, Editora RG, 2011.