Tccii - Depósito
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UM LUGAR DE MEMÓRIA:
A SUBJETIVIDADE DO BORDADO NA INSTALAÇÃO ARTÍSTICA
Natal – RN
2017
LOUISE DOS REIS GUSMÃO ANDRADE
UM LUGAR DE MEMÓRIA:
A SUBJETIVIDADE DO BORDADO NA INSTALAÇÃO
ARTÍSTICA
Natal – RN
2017
LOUISE DOS REIS GUSMÃO ANDRADE
UM LUGAR DE MEMÓRIA:
A SUBJETIVIDADE DO BORDADO NA INSTALAÇÃO
ARTÍSTICA
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
Prof. Me. Artur Luiz de Souza Maciel
Universidade Federal do Rio Grande do Norte- UFRN (orientador)
________________________________________
Profª Drª Laís Guaraldo
Universidade Federal do Rio Grande do Norte- UFRN
________________________________________
Profª Drª Laurita Ricardo de Salles
Universidade Federal do Rio Grande do Norte- UFRN
DEDICATÓRIA
À elas, que não só reuniram em mim suas cargas genéticas, mas que
juntaram seus fios em uma única tessitura e coseram a teia da minha vida. Àquelas,
que no emaranhado confuso que é a vida, tiveram sabedoria para desatar, quando
necessário, alguns nós cegos que atrapalhavam a costura do meu caminho e me
deixaram a desatar sozinha tantos outros. Que com a mesma maestria que
costuravam, teciam e crochetavam, bordaram em meu ser as linhas que percorrem a
minha vida. Do direito ao avesso, do avesso ao direito, no vai e vem da mão e da
agulha que leva a meada colorida revelando as duas faces de mim, aquela que está
à mostra e aquela que nem sempre está visível. À essas três mulheres baianas, de
personalidades distintas e fortes, que olham por mim de outra dimensão, que juntas
e cada uma a sua maneira, fizeram de mim a mulher que sou hoje.
À minha mãe, Senise. À minha avó Stella, vó Dinda. À minha avó Eurides, vó
Ide.
AGRADECIMENTOS
INTRODUÇÃO...................................................................................................pág 15
1. AS RAÍZES DE REFLORESCER..................................................................pág 17
2.AS LINHAS QUE PERCORREM MINHA VIDA............................................. pág 25
2.1 DO ARTESANATO ÀS ARTES VISUAIS ….....................................pág 46
3. O ENREDO DA ARTESANIA TÊXTIL ….......................................................pág 59
3.1 A TRAMA DO BORDADO NO UNIVERSO FEMININO....................pág 63
4. AS TESSITURAS DA TEIA................................................................…........pág 67
4.1 ENTRELAÇANDO NARRATIVAS.....................................................pág 68
4.2 O FIO DA MEADA.............................................................................pág 82
4.3 INICIANDO A COSTURA DO PROCESSO......................................pág 84
4.4 PREPARANDO A TRAMA................................................................pág 96
4.5 TECENDO O BORDADO................................................................pág 102
5. OS LIAMES DA MEMÓRIA E DA INSTALAÇÃO........................................pág 139
5.1 UM LUGAR DE MEMÓRIAS...........................................................pág 139
5.2 DA INSTALAÇÃO......................................................................….pág 140
ARREMATANDO O BORDADO..................................................................... pág 142
REFERÊNCIAS................................................................................................pág 145
LEITURAS COMPLEMENTARES....................................................................pág 149
APÊNDICE A - AÇÃO PEDAGÓGICA............................................................pág 150
APÊNDICE B – O MANTO DAS MEMÓRIAS.................................................pág 167
15
INTRODUÇÃO
ao bordado, à trama, seja ela física, introduzida em cada trabalho ou como poética,
na trama de memórias afetivas trazidas de histórias de vida e contextos familiares.
Como fundamentação teórica tenho como suporte os estudos e leituras de
autores como Cattani (2007), Derdyk (2001), Izquierdo (1989), Krauss (2009), Rolnik
(2014), Rey (2002), Salles (2008), Tedesco (2004), dentre outros que norteiam
argumentação, construção e produção desta pesquisa.
No primeiro capítulo relato sobre a obra já concebida, sobre o significado da
Instalação Reflorescer e do processo de instalação na Galeria do DEART
(Departamento de Artes) – UFRN.
No segundo capítulo caminho pelas linhas que percorrem a minha vida, minha
trajetória familiar, trazendo à tona as minhas memórias afetivas mais latentes, e
como o bordado, a costura e o tecer exercem influência na minha vida desde a
infância, através da vivência com a minha mãe e minhas avós materna e paterna.
Falo também da minha transição do artesanato à vida acadêmica e teço uma
descrição sobre as disciplinas do Curso de Licenciatura em Artes Visuais que mais
influenciaram na minha pesquisa.
No terceiro capítulo faço uma breve abordagem histórica sobre o bordado e
sobre a prática da produção artesanal, na vida da mulher e da artesania têxtil no
Brasil.
No quarto capítulo descrevo o meu processo criativo, como ele se constituiu,
como foi elaborado e produzido e como será apresentado ao final do percurso,
passando por todas as dificuldades, descobertas e inquietações que este processo
me trouxe, contextualizando-o com os referenciais teóricos e artísticos que guiaram
minhas escolhas durante essa trajetória.
Por fim, no quinto capítulo falo sobre memória, em como as nossa memórias
afetivas afetam o nosso processo de trabalho e sobre Instalação como categoria
artística, discutindo as relações entre objeto e espaço e as relações que são criadas
a partir do espaço onde a obra se instala.
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1. AS RAÍZES DE REFLORESCER
lentamente aqueles pontos e não entendia como, dias depois, a peça estava pronta.
Alguns trabalhos de tapeçaria ela mandava emoldurar e presenteava. Vó Dinda tinha
um guarda roupas cheio de roupas antigas, acho que eram das décadas de 1950 ou
60. Muitas foram feitas por ela, mas a maioria não eram mais usadas, mas nós,
meus irmãos, eu e ela, nos divertíamos tanto vestindo suas roupas e luvas e
calçando os seus sapatos, acho que esse era o motivo maior dela não se desfazer
delas. Ela adorava e nós também. Quando ela via que alguma de suas roupas
antigas tinha rasgado, ela cortava o tecido e confeccionava à mão roupinhas de
bonecas para minha irmã e eu. Eram pecinhas de roupas pequenas, que muitas
vezes ganhavam algum bordado para enfeitá-las.
Um dia, eu pedi que ela me ensinasse a fazer tapeçaria, ela comprou uma
tela com um motivo impresso de um peixe azul e me ensinou, com muita paciência,
como tecer o quadro. Pôs em minha mão uma agulha sem ponta com um fio de lã
azul introduzido, eu achei emocionante, poder segurar sozinha, aquela agulha, mas
a impaciência dos meus 6 ou 7 anos, não me deixavam seguir os passos da minha
avó. Ela guardou a tela e me disse que quando eu fosse maior, a completaria e
sorriu, como sempre fazia.
Imagem 13: Pano de prato em linho com macramê, feito por Vó Dinda
Foto: Louise Gusmão (Detalhe)
29
Imagem 16: Caminho de mesa feito em crochê por minha a vó Ide, uma das ultimas peças que fez.
Foto: Louise Gusmão
32
Imagem 17: Caminho de mesa em mercê chochê feito por minha avó Ide
33
Minha mãe, Senise, era a mulher mais forte que já conheci na vida, dona de
uma personalidade ímpar, não se deixava abater por nada. Excelente mãe e esposa,
era linda. Uma mãe zelosa e carinhosa, mas enérgica, quando preciso. Era cheia de
habilidades, exímia desenhista, costurava, bordava, tecia e cozinhava. Além do
trabalho em casa, era decoradora de ambientes. Sempre que tinha tempo, estava
com um trabalho têxtil nas mãos. Gostava muito de tapeçaria, de fazer quadros de
médio porte. Costurava sempre à noite, depois que terminava seus afazeres,
sentava à frente da televisão e enquanto conversava com meu pai e conosco, tecia
seus quadros, geralmente, com motivos florais, ou costurava algo para nossa casa.
O quadro do peixe azul, que comecei com a minha avó, sua mãe, terminei em sua
companhia, quando tinha mais ou menos, 9 anos. Lembro-me da agulha em minhas
mãos, tecendo ponto sobre ponto, sob seu olhar paciente, ensinando-me, enquanto
tecia o seu próprio quadro. Naqueles instantes, tecíamos juntas a nossa história, os
nossos momentos de cumplicidade. Quando ficou pronto, o peixinho foi para uma
moldura e para a parede do nosso quarto. Ela adorava costurar roupas para nós, e
principalmente, fazer fantasias para as festas na escola e aniversários. Toda festa,
ela inventava uma fantasia diferente, muitas vezes, aproveitava uma fantasia antiga
para reformar e fazer uma nova. Sempre que ela ia para a sua máquina de costura,
eu ficava por perto, observando como ela transformava os tecidos nas nossas
roupas. Mal imaginaríamos nós, que muito tempo depois, estaria eu ali, na mesma
posição que ela, na mesma máquina, costurando os meus trabalhos artesanais.
Meus pais se casaram não muito jovens, fato incomum na época, em 1965,
ela tinha trinta anos e ele trinta e cinco. Tiveram que enfrentar meu avô, que era
contra seu casamento, recusando-se, inclusive, a ir à cerimônia civil. Desavença que
depois de algum tempo foi superada. Meu pai, junto com seus dois irmãos, irmã e
mãe, montaram uma empresa de construção, após um de meus tios concluir o curso
de Engenharia Civil, na Universidade Federal da Bahia. Ele, como filho mais velho,
teve que abdicar da sua vida acadêmica em Medicina, para ajudar minha avó, que
era viúva, a criar os irmãos. Com a experiência que já possuía dos negócios da
família, tornou-se o administrador do novo empreendimento familiar. Logo, ele e
minha mãe, tiveram três filhos, minha irmã Erika, a mais velha, eu e meu irmão,
Lucio, o caçula. Viveram juntos, durante quatorze anos, quando, em 1979, no dia
que completavam bodas de casamento, meu pai sofreu um infarto fulminante e veio
à falecer. Logo depois, minha mãe descobriu que era portadora de câncer, contra, o
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qual, lutou bravamente até seu último dia de vida, sem perder a esperança de que
se curaria e terminaria de criar seus filhos. Jamais conheci uma pessoa com tanta
alegria e vontade de viver. Um ano e meio depois, ela foi a óbito.
Imagem 18: Fronha, em linho, bordada por minha mãe para seu enxoval de casamento.
Imagem 20: Casamento de meu pai e minha mãe, em 19 de junho de 1965. Minha vó Dinda ao lado
Ficamos nós, filhos, adolescentes. Nesse marco de nossas vidas, a linha que
nos unia eram as nossas memórias junto a nossos pais, era uma nova colcha de
retalhos que começava a ser costurada. Um novo ponto de partida em nossas vidas.
Mas, o nosso fio foi rompido quando meu irmão foi morar na casa de um tio paterno,
que era nosso tutor. Passamos por algumas ausências, mesmo estando perto. Nos
privaram do convívio, do amadurecimento da dor, juntos. Depois de alguns anos, ele
voltou à morar conosco na casa da nossa avó paterna, a vó Ide, foi quando a nossa
trama, voltou a ser tecida.
Ao longo dos anos que vivemos juntas, a medida que fui me tornando mulher,
nossa convivência se tornou mais amena, eu sabia que aquela era a sua maneira de
nos amar, sendo rígida conosco, para que não nos “perdêssemos” na vida, que
tivéssemos um rumo a seguir, uma profissão, para que nos tornássemos “alguém”.
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Era essa, no fundo, a sua preocupação, afinal, éramos filhos de seu primogênito,
seu filho, assumidamente, mais amado. A essa altura, eu já fazia faculdade, tinha
conquistado um pouco mais de liberdade e de certa maneira, estava mais madura,
talvez por esse motivo, os atritos tenham cessado mais. O que mais nos
aproximava, era a minha facilidade em fazer trabalhos manuais, embalar presentes,
fazer enfeites, arrumar a mesa para algum aniversário ou data especial, ajudá-la a
desenrolar seus novelos de linha de crochê. Mas, o que eu gostava mesmo, era
quando ela me chamava para armar a sua árvore de natal. Era uma árvore de uns
dois metros de altura e ela ficava sentada numa poltrona, à frente da árvore, olhando
a ordem que eu colocava os enfeites, para ter a certeza que estariam no lugar que
ela queria. Essa era a circunstância em que eu sentia que estávamos mais perto
uma da outra. Em que nossos laços se tornavam sólidos, resistentes. Eram instantes
de recordações, quando ela lembrava dos natais da minha infância, que eram
sempre cheios de muita alegria, quando toda a família se reunia em volta desta
mesma árvore, para a troca de presentes. E então, a sua emoção, que era sempre
contida, vinha à tona. Eram momentos de resgate das nossas memórias conjuntas,
onde as linhas das nossas meadas se embaraçavam, e os nós eram cegos,
inseparáveis, eram momentos apenas de neta e avó.
A última vez que armei essa árvore, eu já não morava mais com a minha avó,
havia casado e estava no oitavo mês de gravidez do meu filho, Caíque. Foi um
encontro bem feliz, recordamos muitos momentos, mas ao contrário dos outros
anos, a emoção não era de tristeza, mas sim, de alegria, pois estava bem perto de
dar a luz e ela estava muito empolgada com o nascimento do seu primeiro bisneto,
apesar de já ter mais três bisnetas, era o primeiro menino. E isso era muito
importante para ela, pois era como se linhagem da família estivesse se perpetuando,
no neto de seu filho. Como se aquela colcha de retalhos que se rasgou com a sua
partida prematura, tivesse finalmente sido remendada e reordenada, podendo assim,
dar início a um novo ciclo.
gerado. A ideia de estar ligada a outro ser, por um cordão e que dele dependia a sua
sobrevivência, era como se eu tivesse o poder do fio da vida em minhas mãos.
Como se a gestação se assemelhasse aos movimentos de uma agulha que, em
conjunto com esse fio, lentamente, cerzia uma roupa. Juntando fragmentos de dois
tipos de tecidos distintos, que aos poucos ia se moldando, compondo uma nova
trama. O cordão físico, foi cortado em 8 janeiro de 1993, mas permanece como uma
linha de memórias afetivas que nos une, que nos mantém ligados.
Reconstruí a minha família, que passava a ser apenas, meu filho e eu. A cada
nova laçada, a cada novo ponto que ia e vinha, a cada novo nó que dávamos no
sentido de transformar as nossas vidas, nós recosturávamos lentamente os
sentimentos que ficaram arrebentados. As memórias que não queríamos mais
lembrar, foram guardadas no fundo das nossas caixas de costuras internas, cobertas
pelos retalhos das novas vivências que começamos a acumular nesta nova rede que
começava a ser tecida e compartilhada por nós dois. Mais forte e interligada. Sem o
medo que nos cercava, pude criar meu filho em paz, oferecendo-lhe as ferramentas
para que ele, por si, começasse a costurar a sua própria trama, o seu próprio
caminho, como ele vem fazendo.
Deixo rastros, talvez uma herança pálida, tecida com panos, linhas e
tesouras - legado de minha mãe, avó, e bisavó. Agir contra o
esquecimento de tal legado, afetivo, social e cultural, torna-se, para
mim um ato ético e político de expressão, sendo provável que dos
caminhos desse processo[...], Eu possa ressignificar algo das tramas
que me constituem (CAPPRA, 2014, p. 14).
Imagem 24: Meus materiais de trabalho, na minha cama. Agulhas, linhas, bastidores de madeira,
Imagem 26: Fuxicos, feitos por mim, para uma encomenda de bolsas.
Na disciplina Desenho II, em 2014.2, também ministrada pelo Prof. Me. Artur
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de Souza Maciel, foi explorada a linha como elemento matérico e o desenho como
gesto e extensão do corpo, estimulando a pesquisa das possibilidades
contemporâneas do desenho. Entre as propostas apresentadas, escolhi a linha de
proposição de pesquisa referenciada na artista Edith Derdyk, que trabalha a
ambiguidade da linha, como traço, expressando a matéria, o corpo e como elemento
conceitual e abstrato.
Em Expressão Visual II, 2014.2, ministrada pela Prof Dra. Laís Guaraldo, foi
proposto o exercício de criação de uma obra tridimensional, a partir do desenho de
animais “fantásticos”, fruto da fusão de referências de animais verídicos. Como
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5Tilda é uma marca de bonecas promovida pela designer norueguesa, Tone Finnanger, em 1999. A
versão original mede 63 cm, é feita de forma artesanal e totalmente de tecido (algodão ou linho bege-
escuro num tom semelhante ao de pele morena), macia e delicada.
6Tecido fino, leve e muito transparente, tramado com fios tênues de algodão ou de seda, formando
uma rede de malhas redondas ou poligonais; filó.
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bordado por cima da tinta. Como suporte, foi usado o bastidor de bordado, que é um
a peça de madeira circular, onde o tecido é esticado e preso, pra que possa ser
bordado. Foram feitos duas obras, de dimensões de 35 cm e 45 cm de diâmetro.
Com o passar dos tempos, o bordado foi sendo difundido e muitos povos se
aperfeiçoaram nesta arte, a exemplo do oriente Médio e China, onde os imperadores
vestiam roupas bordadas com a imagem do sol e da lua. Os romanos pouco usaram
o bordado até a formação do Império, quando tornaram-se grandes usuários desta
manualidade para adornar suas vestes e utensílios. A partir de então, o bordado foi
generalizado também no Ocidente, desta forma, cada país, cada região do mundo
que fazia uso dessa artesania passou a ter seu estilo próprio de bordar, proveniente
61
Houdelier:
No século XX, apesar de ser possível a reprodução mecânica de
todos os tipos de bordado, certos gêneros caíram em desuso e
ocorreu um fenômeno de revalorização dos bordados manuais, a
branco ou de aplicações complementares, que se tornaram símbolos
de alto nível social. Até a década de 1950, inclusive, era costume o
uso de peças bordadas em branco sobre branco: lençóis, toalhas de
mesa e lenços. O bordado da ilha da Madeira, executado em fio azul
bem claro sobre tecido branco, fazia parte do enxoval dos bebês
(HOUDELIER)10
Imagem 47: O Tear Mecânico ("Power Loom"), criado por Edmond Cartwright em 1785
Fonte: http://www.culturabrasil.org/revolucaoindustrial.htm
rendeiras, costureiras e por mais exímias nas prendas que fossem, jamais poderiam
ter lugar em oficinas artesanais. Àquela época, a Igreja influenciava nas decisões
domésticas através de seu alto poder, estimulava a cultura do “Princípio da Agulha
contra o Ócio”, que preconizava que as mãos femininas tinham que se manter
ocupadas com tais atividades domésticas, para que assim, não caíssem nas
tentações e não sucumbissem ao pecado. Desta maneira, a herança de trabalhos
manuais era passada de mãe para filhas, as mães ensinavam às filhas tudo que
sabiam e elas produziam seus próprios enxovais, para que assim, pudessem fazer
um bom casamento, quanto mais prendada fossem, maiores as chances de
encontrarem um “bom partido”.
Esse “modelo exemplar de mulher”, foi durante muito tempo, amplamente
difundido chegando nos anos de 1950 às propagandas em jornais e na literatura,
passando também pelas escolas, onde era comum, disciplinas só para meninas,
como “Economia do Lar” e “Prendas Domésticas”.
Coser estava mais intimamente identificado com gênero do que com
classe, e como tal proporcionava um modo de representar o trabalho
das mulheres que evitava questões controversas sobre diferenças
sociais ou econômicas e sobre o trabalho industrial, desviando a
atenção para um modelo consensual de feminilidade. (...) A
publicidade às máquinas de costura baseava-se na identificação da
costura com a feminilidade e prometia um melhor desempenho das
tarefas tradicionais. Um anúncio da Singer de 1896, por exemplo,
chamava ao seu produto a ‘máquina da mãe’ e ‘o mais desejado
presente de casamento’ que ‘ajuda substancialmente a felicidade
doméstica’, enquanto um enorme S se enrolava em volta da silhueta
roliça de uma matrona confiante. (GODINEAU, apud, BAMONT,
2004, p. 111)
Muito embora, nas casas das famílias mais abastadas, como nas grandes
famílias tradicionais brasileiras, essa fosse a regra, nas capitais progressistas já
havia mulheres de famílias pobres que trabalhavam na agricultura, na indústria e nos
lares das mais ricas.
No século XX, as mulheres passaram de dona de casa ao papel de esteio da
família, com a industrialização, saíram de dentro de seus lares para trabalhar fora,
muitas delas tinham agora o papel de chefes de família, desta maneira, houve um
afastamento das meninas em relação às tradições do lar, e a prática de fiar, bordar,
coser, crochetar, se distanciava cada vez mais, ao ponto de perder-se a tradição que
antes caracterizava o contexto familiar e cultural do grupo.
Hoje, essas práticas vem sendo renovadas, o que era tido apenas como
prendas domésticas, passou a ser chamado de artesanato, e não só mulheres, mas
65
4. AS TESSITURAS DA TEIA
“É com esse corpo entusiasmado que a tecelagem
da criação fia na matéria dos tempos e dos espaços
seus outros futuros instantes e durações.”
Edith Derdyk11
Os fios da teia de aranha são formados de uma cadeia de proteínas que dão
origem a uma sequência repetida de fragmentos interligados por pequenas
partículas, além disso, a formação dos fios desta trama é determinada pelos fatores
ambientais e por estímulos, um tipo de sinergia, uma ação conjunta de forças que se
conectam entre si. Assim como a complexa trama da teia de aranha, que depende
de vários fatores para se formar, é o processo criativo do artista que depende, da
mesma maneira, de uma rede de conexão entre procedimentos, conhecimentos,
hipóteses, investigação, estímulos, testagens e influências que provém do mundo ao
seu redor e que se enlaçam, instaurando-se assim, a pesquisa que gera o processo
de formação de significados e teorização dos conceitos contidos na obra, a partir do
fazer do artista-pesquisador. Caracterizando um procedimento interligado e contínuo
de maturação, como uma grande trama de teia, entre prática e teoria. E nesse
processo do ato criador, diante da característica mutável dos sentidos que a criação
vem a gerar, ela própria tende a inquietar o criador, fazendo-o refletir acerca de si
próprio, confrontando-se, em um processo de descoberta.
E se a obra é, ao mesmo tempo, um processo de formação e um
processo no sentido de processamento; de formação de significado,
como afirmado acima, é porque, de alguma forma, a obra interpela os
meus sentidos, ela é um elemento ativo na elaboração ou no
deslocamento de significados já estabelecidos. Ela perturba o
conhecimento de mundo que me era familiar antes dela: ela me
processa. Também neste sentido, de fazer um processo a alguém:
sim, somos processados pela obra. A obra, em processo de
instauração, me faz repensar os meus parâmetros, me faz repensar
minhas posições (REY, 2002, p. 126).12
processo de criação “pode ser descrito como um movimento falível, com tendências,
sustentado pela lógica da incerteza, englobando a intervenção do acaso e abrindo
espaço para a introdução de ideias novas. Um processo no qual não se consegue
determinar um ponto inicial, nem final”. E de CATTANI (2007, p.22) que aborda a
mistura de elementos e linguagens na arte contemporânea, abrindo espaço para as
mestiçagens, questionando os paradigmas modernos, “a unicidade dá lugar às
migrações de materiais, técnicas, suportes, imagens de uma obra à outra, gerando
poéticas marcadas pela transitoriedade e pela diferença; o único dá lugar, assim, à
coexistência de múltiplos sentidos”.
Da ideia inicial do projeto, do que havia sido planejado e esperado, até a sua
concepção como obra, muitas questões foram levantadas, decisões foram
descartadas e outras acatadas, planos foram repensados na tentativa de adequá-los
às possibilidades que surgiam no lugar das impossibilidades. Questionei novas
opções de suportes, de formatos, de técnicas. As incertezas se tornavam muito
maiores que as certezas à medida que o tempo passava e eu não conseguia por em
prática o que havia planejado e o medo do fracasso, muitas vezes, foi o meu maior
inimigo, ao ponto de pensar em desistir do trabalho. Mas, à medida que fui me
aprofundando nas leituras pude perceber que todas essas questões, dificuldades,
medos, preocupações e, até mesmo, as influências aleatórias e imprevisíveis que
acabam interferindo arbitrariamente no processo, fazem parte da construção desse
entrelaçamento entre as exterioridades e as interioridades. Entre a tensão do que é
estável, perene e aquilo que não consigo controlar. O ato criador é mutante, volátil, é
como se estivesse ali, sempre à espera de que algo novo venha lhe transformar. O
processo criativo está diretamente ligado à experiência, que é, como reflete BONDÍA
(2002, p. 21) “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca”. E é dessa
experiência, do fazer, do criar, da práxis, dos seus desdobramentos, do intervalo que
está entre o antes e o depois da experiência, assim como, as questões teóricas e
referencial artístico que fundamentaram essa pesquisa, que trato neste capítulo.
4.1 ENTRELAÇANDO NARRATIVAS
Dentro do meu processo de imersão na pesquisa em artes, passei a conhecer
artistas contemporâneos que se relacionam com o tema da minha investigação
artística, muitas foram as naturezas dos trabalhos, suas técnicas e narrativas.
Procurei trazer, como referencial visual, os artistas que evocam, no processo de
instauração de suas produções, os cruzamentos que fazem relação com a
69
13 Segundo registros da Light, onde trabalha entre 1933 e 1937, nasce em 16 de março de 1911. Nos
registros da Marinha de Guerra do Brasil, onde serve entre 1925 e 1933, consta 14 de maio de 1909.
14 Assemblagem ou assemblage é um termo francês que foi trazido à arte por Jean Dubuffet em
1953. É usado para definir colagens com objetos e materiais tridimensionais.
71
desenhar, como nas séries Rasuras (1997 e 2002), Veloz (1998), Corte e Rasante
(2002), construindo situações, onde seu corpo se caracteriza como a ponta do lápis
em movimento, riscando o espaço com a linha, em um ritmo frenético,
demonstrando sua tensão e sua força. A partir destes trabalhos, a artista, lançou
diversos livros sobre seus processos criativos e suas poéticas, como: Linhas de
costura (1997), Vão (1998) e Deslize (2010).
Nas obras de Edith Derdyk, a linha tece o espaço entre dois pontos, em seus
textos, em suas instalações, ela não representa o visível, mas sim, as conexões
entre o ir e vir, entre as continuidades e descontinuidades, entre o tempo e o espaço.
Onde a linha tem força, liga coisas, reconstrói narrativas e memórias. Além da
conexão através da linha, Derdyk, me leva a fazer uma associação entre o espaço e
a obra, reafirmando os conceitos de TEDESCO (2004, p. 01), “referentes as poéticas
que incorporam o espaço onde a obra instala-se como parte da mesma, criando, a
partir daí, uma série de relações”.
Imagem 52: Isolado; frágil; oposto; urgente; confuso. José Leonilson, 1991.
Bordado e costura / linha sobre voile 21 x 63 x 0 cm
Fonte: http://www.projetoleonilson.com.br/obras.aspx
A mesma influência que sofro com a obra de Louise Bourgeois, é a que sofro
com Rosana Paulino, artista paulista, a do “artivismo”. Sua produção está ligada à
questões de gênero, sociais, étnicas. Questões que trazem à tona e que denunciam
as marcas deixadas por séculos nas mulheres negras, preconceito, violência e
racismo, são alguns deles.
Rosana trabalha dentro da tendência story art, que surgiu nos anos 1970 e
que tem como mote, as memórias, as experiências e vivências oriundas de um lugar
mental particular, da história pessoal e familiar de quem a produz. A essas relíquias
familiares, são agregados fazeres que são, tipicamente, arquétipos do universo
feminino, como a costura e o bordado, que aprendeu quando criança, com a sua
mãe, quando não exercia a função de empregada doméstica, e que estão
carregados de memória afetiva.
Linhas que modificam o sentido, costurando novos significados,
transformando um objeto banal, ridículo, alterando-o, tornando-o um
elemento de violência, de repressão. O fio que torce, puxa, modifica o
formato do rosto, produzindo bocas que não gritam, dando nós na
garganta. Olhos costurados, fechados para o mundo e,
principalmente, para a condição no mundo. (PAULINO apud
BAMONT, 2004, p.172)
Para Paulino, a sua arte tem que ser utilizada para se fazer pensar o seu
lugar e condição no mundo. Para tanto, ela se fundamenta em memórias e mitos
para a realização dos seus trabalhos, como o mito de Arácne, que associa a teia e
os fios que são tecidos pelas aranhas, à prisão que à mulher é imposta, privando-a
da liberdade de comunicar-se, a censura que lhe é imposta fazendo-a paralisar
diante das ameaças. Mas ao mesmo que retrata a mulher paralisada, representado,
em suas obras, por fios costurados na boca e olhos, ela denuncia a ação. A mesma
linha que silencia, é a linha que fere e expõe o ato. A série em questão é a
“Bastidores” (1997), um compilado de seis obras, feitas a partir de xerox de
fotografias de suas familiares, todas mulheres negras. Fotografias que foram
transferidas para tecido e presas no suporte de bastidores de bordado de madeira,
que servem como molduras. Cada uma dessas obras recebe intervenções bordadas
como alinhavos, de maneira intensa e gestual, intencionalmente mal acabados e em
partes significativas do corpo feminino: Boca, olhos, garganta e testa.
A linha aparente e o bordado rude transformam os retratos em
exemplares da condição dos afrodescendentes, reverberando sua
difícil condição social. Os bordados afastam-se das qualidades e
delicadezas que lhes são próprios e se aproximam de operações de
estancamento ou de impedimento. As costuras e suturas mal feitas
parecem agir sobre cortes profundos. Se os negros eram amarrados,
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Os trabalhos desse coletivo, que conta histórias através das linhas e agulhas,
foi um dos primeiros trabalhos que conheci quando comecei a trabalhar com
artesanato, a arte que eles imprimem nos tecidos sempre me emocionou muito,
justamente por ser uma obra totalmente ligada aos sentimentos, às histórias
familiares e às suas memórias e desde então, há mais de vinte anos, tenho o
Matizes Dumont como referência em meus bordados e nas aulas que ministro.
Inclusive, foi um dos referencias visuais que utilizei na minha ação pedagógica
realizada durante a XXVII CIENTEC – Semana de Ciência, Tecnologia e Cultura –
UFRN, em outubro de 2017.
Imagem 57: Bordado feito pelo Grupo Matizes Dumont, ilustrando sua cidade natal,
Pirapora-MG
Fonte: https://www.matizesdumont.com/pages/about-us
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torno das questões inerentes ao universo feminino, mas sem usar de bandeiras
militantes, sem fazer do meu trabalho uma arte panfletária e ideológica, mas sim
trazendo um novo contexto. Foi quando a professora Laís, sugeriu que usasse,
como referência em meu projeto, uma das muitas mulheres artistas que foram
atuantes no Rio Grande do Norte, levantando o nome de Nísia Floresta que foi a
primeira feminista do Brasil, era educadora, escritora e poetisa, nascida na cidade
que hoje, leva o nome pelo qual é conhecida, que aliás, era seu pseudônimo, seu
nome verdadeiro era Dionísia Gonçalves Pinto. Pensamos em um projeto que se
desdobraria ao final do trabalho, em “Cartas à Nísia”, como se nesse processo, eu a
escrevesse cartas bordadas contando-lhe o que acontece hoje, em relação às lutas
e as questões feministas. Esse projeto me deixou encantada e comecei a pesquisar,
mesmo que superficialmente, a respeito dessa mulher à frente do seu tempo e de
quem eu sabia quase nada.
Durante esse processo, a professora pediu que eu escrevesse um memorial
sobre a minha vida e foi então que desencadeou em mim, a vontade de fazer uma
pesquisa em artes visuais sobre as minhas memórias afetivas, que aliás, já estava
em andamento, mesmo que eu não tivesse me dado conta disso, desde a disciplina
Desenho II, ministrada pelo Prof. Me. Artur Souza, quando usei pela primeira vez a
linha como matéria em minhas instaurações artísticas, processo já descrito aqui
anteriormente, no sub-capítulo “Do artesanato às artes visuais”, e que também foi
notado pela professora Laís quando lhe apresentei meus trabalhos. Desta maneira,
ficou decidido então, que o meu Trabalho de Conclusão de Curso seria pautado nas
minhas memórias afetivas.
Neste espaço de tempo, em que eu decidia sobre os rumos que meu trabalho
tomaria, o professor Artur, que havia concluído o seu mestrado, voltou a dar aulas no
Departamento de Artes e nós, professora Laís, eu e professor Artur, decidimos
juntos, que eu passaria a ser orientada por ele.
Tomo esse curto período como orientada da professora Laís Guaraldo como
um ciclo pelo qual eu precisava passar, que me trouxe trocas valiosas e um grande
aprendizado, quando tive a oportunidade de ampliar e amadurecer a minha
consciência enquanto artista e do papel da mulher artista nas Artes Visuais.
84
19 Thinner é um tipo de diluente com alto poder de obstrução, feito a partir da mistura de compostos
químicos e de solventes.
88
Imagem 58: Bastidor de madeira feito pelo Prof. Artur Souza, medindo 1 m²,
para a instalação “Reflorescer”
Foto: Louise Gusmão
89
Passando por essa primeira etapa do meu processo criativo, pude perceber a
rede de conexões que se processam quando estamos imersos num fazer artístico,
segundo SALLES (1998, p.13), “um artefato artístico surge ao longo de um processo
complexo de apropriações, transformações e ajustes”. Ao criar esses protótipos,
ocorreram situações nas quais todo o processo sofreu influência, transformando
certas características dos objetos, isso ocorre, devido à sua natureza mutável e das
relações que acontecem com o meio e do caráter de formação da obra, formação
enquanto obra física e formação de sentidos e significados, gerando um processo de
construção contínua de experimentações e reflexões.
O processo de criação é o lento clarear da tendência que, por sua
vagueza, está aberta a alterações. O final pode ser que nada tenha a
ver com a "maquete inicial", pois o plano não tem nada da experiência
que se adquire na medida em que vai se escrevendo a história
(CASARES, apud, SALLES, 1988, p. 31).
As palavras de Salles me fazem refletir em todas as etapas que passei nesse
processo criativo. Todas as mudanças que se fizeram necessárias para que eu
pudesse chegar ao meu objetivo final. Não só o fazer da obra é afetado pelas
circunstâncias que encontramos pelo caminho, mas eu também sou afetada a
medida que estou aberta às transformações.
A partir da apresentação do projeto, a próxima etapa era procurar por em
prática o que estava no protótipo para a concretização real da obra.
Para realizar a obra eu precisava, em primeiro lugar, achar um lugar na
cidade que imprimisse em tecido, na escala que eu havia desejado e planejado.
Seriam três reproduções em tecido. Durante três meses, pesquisei em gráficas e
serigrafias opções que atendessem aos meus critérios. Comecei procurando
empresas que imprimissem em tecido de algodão, pois essa era a melhor opção
para a aplicação do bordado. Descobri que não existem lojas em Natal, que
trabalhem com impressão por sublimação em algodão, salvo uma empresa, mas só
em grandes quantidades, acima de 1000 unidades. Todas as empresas que
pesquisei ou que me indicaram, só imprimem tecidos que têm em sua composição o
poliéster20. As empresas de serigrafia da cidade, imprimem em algodão, mas só
produzem telas com no máximo 100 X 80 cm, como também não fazem o trabalho
de impressão maiores que esse, mesmo que usem várias telas. Se eu optasse por
20 Grupo de resinas sintéticas contendo ésteres em sua cadeia principal, us. em tintas e vernizes,
cobertura de superfícies e como fibra têxtil.
95
ele sabe, mas essas perguntas sempre mexiam muito comigo, parecia que ele
enfiava uma colher dentro de mim e chacoalhava forte. No fundo, eu sabia que ele
estava provocando as minhas inquietações, minhas poiéticas. A única coisa que eu
sentia, era como se ao terminar o curso, essa obra fosse como um fechamento de
um ciclo e a abertura de outro, não como se eu quisesse apagar o que me tivesse
acontecido, mas recomeçar mais uma vez, fechar a porta, que é de vidro,
translúcida, de onde eu posso ver o que passou e abrir outra para que essa nova
pessoa que me tornei possa passar. Me desterritorializando de antigos afetos e me
territorializando de novos. E o professor conseguiu inquietar a aluna.
Descobrimos que é no artifício, e só nele, que as intensidades
ganham e perdem sentido, produzindo-se mundos e desmanchando-
se outros, tudo ao mesmo tempo. Movimentos de territorialização:
intensidades se definindo através de certas matérias de expressão;
nascimento de mundos. Movimentos de desterritorialização: territótios
perdendo a força de encantamento” (ROLNIK, 2014, p. 36).
lençóis e uma toalha de linho, os lençóis foram bordados por minha mãe e a toalha,
pertencera a minha avó paterna. Teria que fazer fotos e experimentar qual deles
ficaria melhor em uma fotografia impressa em tecido.
Conversando com a amiga Kelline, ela se ofereceu para fazer as fotos, que
era outra preocupação, pois eu não teria “coragem” para fazer fotos enroladas em
um tecido, com qualquer pessoa era preciso que fosse uma pessoa em quem eu
confiasse. As fotos foram feitas na casa de Kelline e não foi nada fácil para mim
fazer essas fotos. Demorei muitos dias, protelei o máximo que eu pude fazer essas
sessão. Era muito difícil para mim, me despir dos meus complexos, mesmo que não
fosse, literalmente, me despir para fazê-las, seriam apenas fotos onde eu pudesse
expressar emoção, sensibilidade, queria poder dar vazão aos sentimentos, mas não
tinha a mínima ideia de como seria. Mas, ao contrário do que eu pensava, que eu
ficaria “dura” diante da câmera de Kelline, sua presença e a maneira como me
conduzia, sempre brincalhona e alegre, me fez relaxar e a sessão fluiu, foi até bem
engraçada, rimos muito. As primeiras fotos ficaram muito duras realmente, até eu
conseguir me soltar, tiramos muitas fotos, ao todo foram 385, dentre elas estavam
também fotos dos bordados dos lençóis, das toalhas e das minhas mãos por cima
deles, lembrando um trabalho que fiz na disciplina Reprodução Gráfica, ministrada
pela professora Laurita. Ainda não havia decidido como seria de fato o trabalho por
isso quis fazer essas fotos, que foram ideia de Kelline. Deste montante, escolhi as
dez fotos que mais gostei e editei em o preto e branco, pois já que iria intervir com o
bordado por cima, com linhas coloridas, era melhor que a foto ficasse em preto e
branco. Por fim, levei para a reunião de orientação com professor Artur, para que
escolhêssemos as que ficariam melhor em uma instalação. Escolhemos duas fotos
( Imagens 66 e 67).
99
das pessoas me verem impressas em uma instalação de 100 X 150 cm. Esse
pensamento me ocorreu imediatamente na hora em que peguei as impressões, na
hora que o rapaz me mostrou, que abriu, sua sala estava cheia de gente, a maioria
homens... foi horrível. Olharam para aquele painel como se estivessem olhando para
um daqueles calendários de oficina. Saí de lá muito constrangida e pensando em
desistir. Chegando em casa, pendurei um dos painéis na porta do meu guarda
roupas e fiquei observando-o, durante um bom tempo, achando “aquilo” grande
demais, enorme. Depois de um tempo, tomei coragem e mandei a foto para Kelline,
professor Artur e meu filho, todos acharam a impressão muito bonita, eu fiquei mais
aliviada, mas ainda constrangida, mas sabia que tinha que ser, que não tinha mais
volta, iria realizar esse projeto.
A questão agora, era: O que bordar? Não bastava eu estar enrolada nas
minhas memórias, precisava expressar naquela foto o sentido que elas faziam
naquele momento. Como eu já tinha escolhido as fotos em que eu estava enrolada
na toalha que pertenceu à minha avó paterna, eu queria juntar ali, algo que me
remetesse à minha mãe e à minha avó materna. Surgiu a ideia de transpor o
bordado que tinha sido feito por minha mãe, para um dos painéis, como se saíssem
de dentro de mim, reflorescessem, exteriorizando os meus afetos, os meus rastros,
as minhas raízes que trago da minha mãe e das minhas avós e junto com eles os
novos afetos, conquistados neste novo ciclo, as florescências do novo que se
apresenta a mim. No outro painel, me apropriando do gesto que a foto traz, decidi
bordar um coração no afã de mostrar o que a arte representa para mim, a pulsação
das veias, as linhas imbricadas, misturadas, isso é arte para mim, a mistura de
linguagens, as experiências que perpassam por mim, como cada ponto que dou,
pontos matizes, que matizam os sentidos, significados, as possibilidades e as
certezas que as experimentações, as testagens e investigações podem trazer
através da práxis; e nas incertezas, nas insatisfações, a certeza de querer estar
sempre em busca de novas motivações. A partir dessas decisões, comecei as
testagens, as tentativas de iniciar os bordados.
102
Imagem 69: Fotografia do bordado feito por minha mãe em seu lençol do
enxoval de casamento. Detalhe
Foto: Louise Gusmão
104
Passei a tentar tirar o risco do bordado, colocando um papel vegetal por cima
do bordado e riscando em cima do desenho do bordado (Imagens 70 e 71).
Depois de feitos os riscos, recortei o papel vegetal para colocar por cima do
tecido e analisar o tamanho do bordado em relação à imagem. Percebi que o risco
era muito pequeno para o tamanho da imagem, principalmente os riscos das flores e
pistilos dos ramos (Imagens 72 e 73). Decidi que aumentaria o risco do ramo inteiro
para poder bordá-lo na parte da toalha. Tirei uma foto do ramo e tentei aumentar na
tela do computador, mas não deu certo pois o ramo é muito grande. Tentei então
dividir o ramo em quadrantes e tirar fotos dos quadrantes para assim, conseguir
aumentá-los. Numerei os quadrantes no tecido do lençol, coloquei papéis
numerados e demarquei a área com alfinetes (Imagem 74).
Pela dificuldade e pelo tempo que eu tinha para bordar, decidi que só faria o
bordado na parte do colo na imagem. Cortei um pedaço de papel vegetal grande,
coloquei-o por cima da imagem do tecido e fiz os riscos com lápis de cor verde,
simbolizando os caules das flores. Recortei os moldes das flores e decalquei
aleatoriamente por cima dos desenhos dos caules (Imagens 76 e 77).
Assim que consegui fazer o bastidor, voltei à bordar, ficou muito melhor para
trabalhar, pois poderia colocá-lo em cima da cama, o que me dava um maior apoio.
Estiquei o tecido no bastidor e o prendi com presílhas feitas com o próprio cano de
PVC, que não seguravam direito, pois o tecido escorregava decidi, então colocar um
pedacinho de tecido de algodão por baixo das presílhas para que ela ficassem mais
seguras (Imagens 85 e 86).
“Como é diferente projetar e executar. As dificuldades, as descobertas, os desenhos que a linha faz no
“meu” corpo na execução do trabalho, o volume, a expressão da linha caminhando no “meu” corpo toma
um desenho que me remete à raíz, mesmo que eu saiba que ali são caules de flores, a sinuosidade do
bordado, onde um caule passa por dentro do outro, se misturando entre si, me dá a sensação de que aquelas
22 Cores análogas são as cores que estão lado a lado no círculo cromático. Além disso, as cores
análogas possuem uma cor básica em comum.
121
Parte da instalação “Reflorescer” ficou pronta. Foram longos 15 dias entre tentativas,
erros, acertos, uma ponta de frustração pelos passos que não deram certo, mas o
resultado foi bastante satisfatório, não só pela beleza, mas pelo processo, pelo que
me levou, pelo caminho que percorri (Imagem 104). Fecho essa etapa deste
processo criativo e passo para o outro painel, aquele que pulsa.
127
A partir do risco em papel vegetal, que também foi colorido, o desenho foi transferido
para o tecido.
Pelo tamanho da fotografia, não foi muito difícil ajustar o tamanho do coração
pelo fato de não conseguir desenhar à mão livre um coração tão grande. Pedi ajuda
ao professor Artur e ele o desenhou para mim (Imagens 106, 107 e 108).
Depois de transferido para o tecido, era hora de bordar.
O risco foi feito no tecido de maneira que ficasse como se estivesse dentro da
mão, como se eu o oferecesse. Oferecesse Arte às pessoas, artavés da vibração, da
pulsação que a mistura das linhas provoca e evocasse delas o contato com a Arte
(imagem 109).
132
(Imagem 111).
O coração vai tomando forma e volume através das linhas que são bordadas
por cima do desenho, essas linhas se entrelaçam, suas cores vibram, em certos
momentos, por conta do balançar do bastidor e do tecido, a sensação era que ele
estava realmente pulsando (Imagem 112).
E desse avesso vibrante, emaranhado que pulsa o que ninguém vê, o que se
esconde em nós, as nossas memórias, os nossos afetos (Imagem 115).
5.2. DA INSTALAÇÃO
Até metade do século XX, o espaço que envolve o corpo do observador não
era tratado como parte da obra, até então o espaço de domínio critico e conceitual
se limitava ao bidimensional. Segundo Tedesco (2004), foi a partir dos anos 60 que
vários artistas procuraram trabalhar a “experiência corporal” como percepção, a arte
passou a ser a experimentada e não mais apenas vista, a experiência dos
observadores faziam com que as poéticas dos artistas se modificassem. A partir de
então, muitas proposições artísticas aconteceram dentro deste conceito e deixaram
de ser enquadrados na categoria de escultura, mas ainda não eram consideradas
como instalações, algumas outras nomenclaturas foram usadas, como
assemblages, site- specifc, in-situ, site e non- site. Do mesmo modo que as
instalações, essas práticas artísticas também relacionavam o lugar, o espaço onde
foram instauradas, como parte delas.
No texto “A escultura no campo ampliado” de Rosalind Krauss (1984), a partir
de análise de obras dos anos 60, a autora defende a ampliação do conceito de
escultura, capaz de abrigar a heterogeneidade da época, mas ao mesmo tempo
afirma que apesar do termo escultura ter sido usado de forma “elástica”, o seu
conceito estará sempre ligado ao historicismo:
[...] a lógica da escultura é inseparável da lógica do monumento. Graças a
essa lógica, uma escultura é uma representação comemorativa – se situa
em determinado local e fala de forma simbólica sobre significado ou uso
desse local. (KRAUSS, 1984, p. 131)
A partir do movimento modernista, acontece a negação dessa lógica de lugar
141
ARREMATANDO O BORDADO
“Pouco importam as referências teóricas do cartógrafo-
O que importa é que, para ele, teoria é sempre
cartografia – e, sendo assim, ela se faz juntamente com
as paisagens cuja formação ele acompanha (inclusive a
teoria aqui apresentada, evidentemente). Para isso o
cartógrafo absorve matérias de qualquer procedência.”
Suely Rolnik
Então eu cheguei aqui. Aqui, que quando era ali, de certezas só as incertezas,
que ainda me acompanham. Ora, se são as incertezas as motivações desta
pesquisa (vida), então estava certa desde o ínicio! Início... que é aonde “princípia” a
intuição, o ponto de partida da investigação, mas que caminho tomar? Se nem
sabemos, ao certo, onde queremos chegar? Quem sabe um desvio? Mas, o que é
um desvio, senão um outro caminho? É como uma costura fechada, um bordado
que enreda a linha, guiada pela ponta da agulha que fura o tecido em busca de
espaço para abrir o caminho e tecer a trama do tempo que sempre antecede algo ou
ou resulta de algo, é o presente, o tempo de quem está, do corpo que vibra e cria a
potência do movimento, da ação, do ato criador que incorpora matérias e faz
cruzamentos, que vem e que vão, que dobra e que solta, que enrola a linha que
costura a matéria que é o anseio daquele que cria e nesse novelo a arte se enlinha
em busca da mão daquela que que fia, da artista que cria.
145
REFERÊNCIAS:
ARTHUR Bispo do Rosário. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura
Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em:
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa10811/arthur-bispo-do-rosario>. Acesso
em: 20 nov 2017. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7
ARTHUR Bispo do Rosário. Série Vídeo Cartas – Fernando Gabeira Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=ISt22V1U-hY&t=8s acesso 20 nov 2017
DERDYK, Edith. Linha de horizonte: por uma poética do ato criador/ Edith Derdyk –
São Paulo: Escuta, 2001.
______. Memórias. Estudos avançados. Vol.3 no.6 São Paulo. Maio/Agosto. 1989.
147
PROJETO LEONILSON.
Disponível em:http://www.projetoleonilson.com.br/default.aspx acesso em: 20 nov
2017.
em:https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/proa/article/viewFile/2375/1777 acesso
em: 20 nov 2017.
LEITURAS COMPLEMENTARES
CAVALCANTE, Silvana Benevides.Veladuras fotográficas: as várias faces de um
terreno. UFRN. 2017.
Disponível em http://monografias.ufrn.br/jspui/handle/123456789/4431
APÊNDICE A
AÇÃO PEDAGÓGICA
PLANO DE AULA
BORDANDO MEMÓRIAS: RESSIGNIFICANDO O PROCESSO CRIATIVO
AÇÃO PEDAGÓGICA
RELATÓRIO
BORDANDO MEMÓRIAS: RESSIGNIFICANDO O PROCESSO CRIATIVO
SLIDES DO MINICURSO
154
FOTOS DO MINICURSO
DIA 25/10
155
156
DIA 26/10
157
158
159
DIA 27/10
OCIREMA E KELLINE
162
BANDEIRA DE BORDADOS DE
KELLINE LIMA
166
A TURMA REUNIDA
167
APÊNDICE B
dem viés para prender as fotos e costurei os objetos que não pudessem ser presos
com o viés. Como referência à Arthur Bispo do Rosário, utilizei um cordão vermelho,
similar ao que ele utilizou em seu manto. O figurino foi apresentado junto com os
colegas de disciplina, dentro da “Mostra de Teatro” que aconteceu entre os dias
30/11 à 02/12/2017, no Departamento de Artes da UFRN.
Tomo esse trabalho da disciplina de Figurino, como mais um desdobramento
da minha pesquisa em Artes. Trata-se de um projeto que pude juntar várias
linguagens e produzir um figurino que se pauta na abordagem de mestiçagens de
Icleia Borsa Cattani, já que faz um misto de materiais para construir uma obra, sem
que para isso nenhum deles tenha que perder suas características e funções. Dentro
das poiéticas do trabalho estão as minhas memórias afetivas de toda a vida, foi uma
imersão nas minhas lembranças que já estavam quase esquecidas.
FOTOS DO PROCESSO CRIATIVO DO “MANTO DAS MEMÓRIAS”.
Portifólio:
REFERÊNCIAS:
ARTHUR Bispo do Rosario. Serie Video Cartas – Fernando Gabeira Disponivel em:
https://www.youtube.com/watch?v=ISt22V1U-hY&t=8s acesso 20 nov 2017