Experiências de Economia Social - VISCARDI
Experiências de Economia Social - VISCARDI
Experiências de Economia Social - VISCARDI
de economia social
MUTUALISMO, FILANTROPIA
E CORPORATIVISMO
Cláudia M. R. Viscardi
EXPERIÊNCIAS
DE ECONOMIA SOCIAL
MUTUALISMO, FILANTROPIA
E CORPORATIVISMO
Cláudia M. R. Viscardi
Juiz de Fora
2021
© Editora UFJF, 2021
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ISBN 978-65-89512-29-5
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A Pedro e Carol
LISTA DE QUADROS
Capítulo 1
Mutualismo e cooperativismo: abordagens gerais _______________________ 11
Capítulo 2
Experiências da prática associativa no Brasil oitocentista _____________ 33
Capítulo 3
Estratégias populares de sobrevivência:
o associativismo urbano no Rio de Janeiro ________________________________ 47
Capítulo 4
Aspectos culturais do mutualismo _________________________________________ 65
Capítulo 5
As leis de proteção aos trabalhadores: assistência e seguridade ______ 82
Capítulo 6
Os olhares sobre a pobreza e as alternativas de sua superação _______ 110
Capítulo 7
Corporativismo: cartografia de um conceito ____________________________ 128
Capítulo 8
A difícil construção da cidadania no Brasil Republicano ______________ 145
Entre os anos de 2002 e 2012, ou seja, ao longo de dez anos, me afastei por um período do
estudo do federalismo oligárquico, ao qual desde o processo de doutoramento vinha me dedicando,
para retornar ao campo da História Social. Digo retornar, porque nos primeiros anos de minha
formação elaborei uma dissertação de mestrado na Ciência Política, cujo tema era a relação entre
Estado e movimentos sociais urbanos organizados. O “retorno” não foi premeditado, pois nunca
pensara antes em retomar estudos no campo das políticas públicas e das alternativas de organização
e mobilização da sociedade civil. Só o fiz por incentivo – e porque não dizer pressão – de um grupo
de alunos da Iniciação Científica, interessados na temática. Desinteressada no início, aos poucos me
motivei, sobretudo ao ter contato com uma documentação empírica valiosa e diversificada e com
temas relativamente pouco estudados pela historiografia, até então.
As leituras de Thompson, Rudè, Hobsbawm, entre outros historiadores da chamada
“História vista de baixo” me levaram ao fenômeno do associativismo urbano, entre os fins do
século XIX e as primeiras décadas do século XX. As fontes me conduziram ao estudo das associações
mutualistas. Inicialmente levantei dados da imprensa de Juiz de Fora e de alguns estatutos e
regimentos encontrados nas instituições arquivísticas locais. Mais tarde, por meio do convite para
uma parceria com o Professor e amigo Ronaldo Pereira de Jesus, levantamos a documentação relativa
às associações oitocentistas do Rio de Janeiro, no Arquivo Nacional. Foram anos de percursos na BR-
040 – estrada que liga Juiz de Fora ao Rio – trilhada entre muitas risadas e planos de pesquisa.
Meu contato com as fontes gerou inquietações acerca das abordagens do fenômeno mutualista,
que para mim consistia em manifestações muito mais próximas à assistência e à filantropia do que a
repertórios de resistência dos trabalhadores. Tais constatações me levaram ao aprofundamento da
literatura acerca das origens e razões da pobreza e das formas de minorá-la ou extingui-la.
No ano de 2007, após encerrar um período na gestão universitária, fui fazer um estágio pós-
doutoral voltado para o estudo da filantropia, da assistência e das origens do estado de bem-estar
social na Inglaterra. Na cidade de Manchester, fui supervisionada pelo historiador Allan Kidd, que
me deu acesso a uma imensa bibliografia sobre o tema. Creio que após este estágio, passei a pensar
o mutualismo a partir de uma perspectiva mais antropológica e que minhas contribuições para o
debate do tema se deram com este viés.
Me integrei ao GT da ANPUH Mundos do Trabalho e em contato com os colegas do grupo
me foi possível repensar categorias, discutir conclusões e realizar importantes parcerias. Participei de
bancas, orientei trabalhos na área e publiquei muitos resultados de pesquisa. No entanto, nunca havia
publicado um livro específico sobre o tema, o que de certa forma me causava alguma insatisfação.
Este livro é o resultado de pesquisas que se tornaram possíveis por meio do financiamento de três agências de fomento: Fapemig,
1
CNPq e Capes.
Nos anos recentes, há cerca de cinco anos, tenho me dedicado ao estudo de outra forma de
organização social e de representação de interesses, o corporativismo. São pesquisas ainda iniciais, que
de certa forma, dialogam em muito com o associativismo mutualista. A expressão “economia social”,
comum entre os pesquisadores portugueses, mas raramente usada entre nós com o mesmo sentido,
reúne este conjunto temático, que hoje apresento em forma de livro: o associativismo mutualista, as
organizações filantrópicas, o cooperativismo e o corporativismo. Talvez a expressão brasileira que mais
se aproxime seja “economia solidária”. São fenômenos de mobilização da sociedade civil que, embora
sejam de âmbito privado, possuem fins públicos.
O livro consiste em uma reunião de artigos e capítulos que escrevi ao longo dos anos que
versaram sobre o tema da “economia social”. Eu possuía à disposição um vasto material já publicado.
Optei por reunir parte deles neste livro e meu critério de escolha foram dois: os que foram publicados em
revistas bem-conceituadas, que por terem passado pela revisão dos pares, resultaram em uma melhoria
da qualidade dos resultados; o segundo critério obedeceu às minhas preferências individuais, ou seja,
publiquei textos que gostei de ter escrito e que acho que prestaram algumas contribuições para o campo.
Por que escrever um livro com textos já publicados anteriormente? Uma das razões que me
moveram, já anunciada anteriormente, tem a ver com o fato de ter me dedicado dez anos ao estudo
de um tema, sem que pudesse sobre ele apresentar um resultado consistente. Ademais, ao reunir o
material fica mais visível uma coerência de raciocínio, que em textos dispersos, é difícil de apreender.
Por outro lado, boa parte dos textos não estão disponíveis on line, o que poderá ser resolvido a partir da
publicação de um e-book. Por fim, ao reorganizar os textos, elaborei versões melhores dos conteúdos,
para que dialogassem entre si e tivessem um fio condutor, escapando do formato de coletâneas, que
com honrosas exceções, apresentam como característica a dispersão.
O livro está organizado em oito capítulos que abordam três eixos temáticos, o mutualismo,
a filantropia e o corporativismo. São três estratégias diferenciadas de reação, enfrentamento e até
superação da pobreza. Ao mesmo tempo se vinculam ao lento processo de construção da cidadania,
na medida em que pressupõe a organização social, as experiências no compartilhamento de uma
cultura associativa e, eventualmente, como se verá, o acúmulo de cultura cívica.
O primeiro capítulo consiste em uma apresentação geral do tema do mutualismo e suas
relações com a filantropia. Nele também tratamos das organizações cooperativas, como outra
estratégia encontrada pelos pobres de enfrentar os problemas sociais. Valemo-nos neste capítulo de
um conjunto de fontes disponíveis em Juiz de Fora e no Rio de Janeiro.
O segundo capítulo trata especificamente sobre as relações entre o Estado e as associações
beneficentes. Valemo-nos para a sua elaboração da análise dos pareceres dos Conselheiros de Estado,
ao fim do período imperial, sobre os estatutos e atas de criação das associações. Por meio deles foi
possível perceber de que forma o Estado via o crescimento do associativismo urbano, bem como suas
tentativas de normatizar seu funcionamento.
No capítulo três buscamos trabalhar com dados estatísticos acerca do funcionamento das
associações no período republicano. Tendo a cidade do Rio de Janeiro como foco, apresentamos
ao leitor o seu número aproximado, sua duração, o número de associados e sua trajetória ao longo
do século XX. Procuramos sempre comparar os resultados do Brasil com os encontrados por outros
autores em outros países.
O quarto capítulo trata da cultura mutualista. Nele discutimos normas, valores, simbologia,
festividades e demais relações de sociabilidade que eram comuns às associações. Nosso foco foi o estado
de Minas Gerais, por meio da análise de variadas fontes contidas na imprensa e nos arquivos públicos.
Suas conclusões podem, no entanto, ser generalizadas para diversas outras experiências nacionais.
Novamente as repostas do Estado ao associativismo foram objeto de investigação no capítulo
quinto. Nele fazemos uma detalhada incursão sobre todas as leis de amparo ao trabalhador criadas
ao longo das últimas décadas do século XIX às primeiras décadas do século XX, recorte cronológico
principal deste livro. Valemo-nos do banco de dados do Senado Federal e da ampla bibliografia já
produzida sobre o tema.
No sexto capítulo fizemos uma incursão sobre o debate público ocorrido no Brasil acerca da
resolução da chamada “questão social”. Após tratarmos das experiências de alguns países europeus
no trato com o problema, por meio de uma documentação inédita, analisamos as propostas dos
gestores públicos, intelectuais e filantropos para equacionar a situação dos miseráveis e desvalidos.
Para este fim, as obras disponíveis na Biblioteca Nacional foram de grande valia.
O sétimo e oitavo capítulos são compostos por análises mais recentes, ligadas ao processo
de organização corporativa dos trabalhadores. Inicialmente realizamos uma genealogia do conceito
de corporativismo no Brasil, por meio da análise da literatura e da imprensa. Em um segundo
momento, discutimos o impacto da representação corporativa sobre a cidadania social entre as
décadas de 1920 e 1930. Como fonte, nos valemos dos anais parlamentares, dicionários de época,
imprensa e a vasta literatura disponível sobre o tema.
Como se percebe, este é um livro sobre a pobreza e as formas de sua superação por meio da
organização social. Os atores são os trabalhadores, os miseráveis e desvalidos, a elite econômica e
intelectual e o Estado oligárquico, sendo ele monárquico ou republicano. O foco é sobre as estratégias
populares e as formas privadas de organização da sociedade civil brasileira, com fins públicos.
Procuramos analisar de que forma tais experiências organizativas contribuíram para o
processo de acúmulo de cultura cívica e experiência cidadã. As associações de ajuda mútua, as
instituições filantrópicas e as associações corporativas de interesse compuseram um repertório
de oportunidades para os trabalhadores, por meio do qual puderam adquirir expertises, encetar
relações de solidariedades horizontais, organizar-se na defesa de seus interesses e conquistar
direitos, até então inexistentes. Ao observarmos essa sociedade em movimento, no fazer cotidiano
da economia social, é que conferimos a dimensão correta a esta intensa mobilização social.
Mutualismo e cooperativismo:
abordagens gerais 2
Este capítulo é a junção de partes das seguintes publicações: VISCARDI, Cláudia. M. R.. O estudo do mutualismo: algumas
2
considerações historiográficas e metodológicas. Revista Mundos do Trabalho, v. 2, p. 23-39, 2010. VISCARDI, Cláudia. M. R.. As
Experiências Mutualistas de Minas Gerais: Um Ensaio Interpretativo. In: Carla Maria de Almeida e Mônica Ribeiro de Oliveira. (Org.).
Nomes e Números: Alternativas Metodológicas para a História Econômica e Social. 1ed.Juiz de Fora: UFJF/Editora, 2006 e de um paper
apresentado no Seminário Internacional Mundos do Trabalho e V Jornada Nacional de História do Trabalho, 2010, Florianópolis.
Histórias do Trabalho no Sul Global.
3
Figueiredo, Cândido de. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa: 1913.
Cabe destacar que antes, o Ato Adicional de 1834 havia repassado às assembleias provinciais o poder de legislar sobre quaisquer
4
Além desta imprecisão em relação às diferenças entre mutuais e montepios, havia também
divergências em relação aos propósitos do mutualismo. Para alguns de seus contemporâneos, o
mutualismo poderia ser lido como uma manifestação de interesse coletivo em prol do combate à
indigência, ou seja, sinônimo de caridade ou de filantropia, tal como pode ser visto pela citação abaixo:
lideranças políticas ou potentados locais, ou mesmo setores de classe média, que pouco ou nada
Formação
de
tinham de pobres. Desta forma, poderiam contribuir mais para a amenização da luta de classes – por
consciência propiciarem relações interclassistas – do que para a construção de experiências que conduziriam à
de classe
formação de uma consciência de classe.
Não obstante, por serem as mutuais compostas, em sua grande maioria, por trabalhadores
pobres e existirem entre elas algumas associações lideradas pelos próprios trabalhadores –
sobretudo as formadas no âmbito das fábricas ou aquelas que reuniam trabalhadores de um mesmo
ofício – acreditamos que a experiência mutualista tenha contribuído, no mínimo, para a formação e
expansão de uma cultura cívica, indispensável à construção de uma esfera pública e, paralelamente
a isto, ao avanço da cidadania no Brasil.
Como resultado das pesquisas que desenvolvemos acerca dos mais diferentes tipos
de associações mutuais que agregavam trabalhadores, pudemos observar alguns padrões de
regularidade em seu funcionamento. A grande maioria delas se autodefinia como organizações
cooperativas de amparo aos trabalhadores quando estivessem doentes. Assim se expressou pela
imprensa uma associação de Minas Gerais, ao anunciar a todos a sua reunião de fundação:
Retratados na citação estão os valores de um grupo que aspira construir uma associação
que se agrega como uma só família, a compartilhar a solidariedade mútua, própria dos pobres, que
são naturalmente úteis e generosos. Entre os pobres não estão incluídos os escravos, impedidos de
comporem esta associação específica. A citação reforça a necessidade de fortalecer valores como
o da cooperação, igualdade, generosidade, solidariedade, parentesco e agregação, e, ao excluir os
escravos do grupo, mantinha intactos os valores da dependência e da segregação.
Em geral, as mutuais utilizavam seus recursos no pagamento de remunerações pré-
pactuadas de seus sócios em momentos de doença, invalidez, funerais e no auxílio aos familiares
do sócio após sua morte. O volume da cobertura e suas modalidades variavam de acordo com os
recursos disponíveis pelas várias associações. Algumas costumavam financiar viagens para sócios
e familiares, sobretudo as de estrangeiros, promovendo seu retorno ao país de origem ou a vinda
para o Brasil de seus familiares. Outras cobriam gastos com remédios, com aluguéis de casa e
Associação Beneficente de Juiz de Fora. Jornal O Pharol. Juiz de Fora, 01/03/1885, p.1, colunas 2 e 3. Centro de Memória da Biblioteca
6
com advogados. A inadimplência por período superior a três meses levava à perda de direitos por
coberturas, para a maioria das associações.
Com raras exceções, faziam alusão à política. Normalmente, se manifestavam como apolíticas
ou apartidárias. Em algumas mutuais encontramos como um de seus objetivos a luta em favor dos
trabalhadores.7 Esta pretensão foi encontrada em algumas que se organizavam por categoria profissional
específica. Uma das maiores e mais importantes mutuais de Juiz de Fora – a dos “Irmãos Artistas” - colocava-
se de forma ambígua em relação à política. Participou de congressos operários nacionais, frequentemente
reunia-se com uma associação de resistência de cidade vizinha em caráter festivo, mas reafirmava sempre
seu caráter exclusivamente beneficente (VISCARDI E GASPARETTO JR., 2011).
Poderiam ser sócios jovens e adultos, em geral, até os 55 anos de idade. Mulheres, com
raras exceções, puderam associar-se. Viúvas só receberiam auxílio se mantivessem “honestas” e
solteiras. Existiam variados tipos de sócios, discriminados segundo o volume de suas contribuições.
Em geral, os beneméritos eram aqueles que faziam doações expressivas, fartamente anunciadas
pela imprensa local. Pertenciam à elite política de ambos os municípios.
As formas de organização interna eram muito assemelhadas. Existia uma hierarquia prevalecente
entre os diretores e as variadas modalidades de sócios. As regras sobre a Assembleia Geral costumavam ser
muito rígidas para poupar excessos verbais e brigas. Era comum acompanhar pela imprensa os problemas
vividos pelos sócios que publicamente manifestavam seu descontentamento com as mutuais ou com a sua
direção. A imprensa serviria de palco para a expressão dessas disputas internas. 8
As atividades de lazer e a preocupação em auxiliar a educação de sócios e familiares eram
muito comuns. Algumas mantinham bibliotecas, outras sonhavam com a construção de escolas.
Todas festejavam. As festas eram para comemorar o aniversário da associação, o dia do trabalhador,
para enaltecer algum líder conhecido ou, no caso das étnicas, para comemorar alguma data relevante
do país de origem (BATALHA, SILVA E FORTES, 2004). Assoc. de ex cativos tinham presidentes analfabetos
As lideranças raramente eram pobres ou analfabetas. Muitas se mantinham indefinidamente
no poder. Não porque quisessem, mas, na maioria das vezes, por não disporem de concorrentes.
Permanecer na direção soava como um ônus, um preço alto que deveria ser pago pelo bem coletivo.
Das várias associações pesquisadas, a maioria de seus participantes era formada de assalariados
regulares e sadios, condição de sua associação. Delas estavam excluídos os trabalhadores informais
e aqueles que estavam fora do mercado de trabalho. Porém, algumas mutuais destinavam parte de
seus recursos para socorrer aqueles que não tinham condições financeiras de se associar. Talvez por
esta razão algumas delas fizessem jus a subvenções públicas, tais como as filantrópicas.
A maior parte vivia sérias dificuldades financeiras que acabavam por provocar o seu
fechamento. As contribuições eram pequenas e a inadimplência muito grande. As que conseguiram
A exemplo da Associação Beneficente Operária de Belo Horizonte (1913), Associação Beneficente Tipográfica de BH (1904), entre
7
Beneficente de Juiz de Fora tornaram-se públicos e alvo de intensos debates. Os jornais encontram-se arquivados no Centro de
Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes.
inserir quadros técnicos responsáveis por sua gestão financeira e, que ao mesmo tempo, conseguiram
agregar setores mais aquinhoados da população, sobreviveram por longa data. Abram de Swaan
(1988, p.146), em suas análises sobre o mutualismo europeu, nos informa que o fator que levava à
extinção precoce de tais sociedades relacionava-se diretamente à incapacidade técnica de calcular
os riscos. Em geral, agregavam setores sociais muito homogêneos. Eram os mesmos profissionais,
das mesmas idades e que residiam nas mesmas cidades. Caso fossem vitimados pelo desemprego
ou por epidemias, comuns em ambientes compartilhados, quase todos os sócios demandariam
socorro a um só tempo, inviabilizando a associação. Esta falta de planejamento decorria da ausência
de uma direção técnica capacitada.
Não encontramos nenhuma associação que limitasse o número de sócios. Este número foi
muito significativo para algumas associações mineiras. As maiores possuíam de 500 a 1800 sócios.
Embora fossem contemporâneas de muitos sindicatos, não identificamos muitas relações entre elas
e as sociedades de resistência. Acreditamos que pelo volume de sócios de ambas as modalidades de
agregação, as suas bases eram múltiplas.
O atendimento que prestavam se justificava pela ausência de direitos trabalhistas mínimos
no Brasil neste período. Como desempenhavam funções que, teoricamente, seriam atributos do
poder público, recorriam eventualmente ao Estado exigindo seu auxílio, quando em dificuldades.
Muitas mutuais conseguiam receber pequenas subvenções públicas e isenções de impostos. Mas
a participação do Estado era muito pequena em relação às demandas existentes. Interessante é
perceber que os líderes das mutuais dirigiam-se ao poder público cobrando a sua intervenção e
alegando que estavam desempenhando funções tipicamente estatais. Na maioria dos casos, não
tinham as suas demandas atendidas pelos representantes públicos que alegavam ser as mutuais
organizações de direito privado. Já as organizações filantrópicas recebiam subvenções. Percebe-se
que os contemporâneos tinham dúvidas na distinção entre filantropia e mutualismo dando ensejo a
respostas contraditórias a demandas bem semelhantes.
A duração de uma mutual era bastante variável. Muitas faliam logo após serem criadas. Outras
permanecem até os dias atuais. Tudo dependia de uma boa direção financeira, nem sempre encontrada.
As que permaneceram após a introdução de políticas públicas de proteção social se limitaram a serem
espaços de sociabilidade e lazer. As que reuniam imigrantes tenderam a ser mais duradouras.
No âmbito dessas produções se discute muito as eventuais relações de continuidade entre
irmandades e mutuais e entre mutuais e sindicatos. Os resultados obtidos diferenciam-se mais pelas
abordagens teóricas escolhidas do que pela documentação trabalhada. Encontram-se presentes
referências constantes ao historiador inglês E. P. Thompson, cujas obras tiveram maior penetração
no Brasil a partir da década de 1980.
Este conjunto de trabalhos trouxe alguns resultados parciais significativos para a produção de
análises comparativas sobre o mutualismo em diversas regiões do mundo. Através desses trabalhos
foi possível perceber que o mutualismo nos principais estados brasileiros teve sua maior expansão
entre os anos de 1910 e 1920 e foi contemporâneo ao crescimento das sociedades de resistência,
os sindicatos. Após 1930, ocorreu um esvaziamento do movimento mutualista em contraste com o
movimento operário-sindical que tem neste período o seu maior crescimento. Conforme se afirmou,
o refluxo do mutualismo relaciona-se diretamente ao advento das políticas públicas de caráter
previdenciário e trabalhista, surgidas no Brasil, de forma mais efetiva, a partir na década de 1930.
Pelos levantamentos estatísticos realizados, em que pesem as deficiências encontradas nos
sistemas de mensuração brasileiros, chega-se à média de 5,25% da população associada a algum tipo
de mutual (SILVA JR. 2005, p.56). Muito embora este percentual de participação seja bem inferior
aos índices encontrados para a Argentina, Espanha e Portugal, se comparado ao índice de filiação
sindical brasileiro (inferior a 2% da população ativa) ele se torna bastante significativo.
A despeito do pouco número de associados, a importância do mutualismo no Brasil era
muito grande. Em uma sociedade civil extremam A despeito do pouco número de associados, a
importância do mutualismo no Brasil era muito grande. Em uma sociedade civil extremamente
ente desorganizada, as mutuais atuavam como mecanismos quase exclusivos de coesão social.
A importância do fenômeno no país pode ser atestada pela sua opção em sediar o II Congresso
Internacional de Mutualidade e Previdência Social ocorrido no ano de 1923, evento que contou com
a presença de representantes de vários países e teve muita importância para os contemporâneos,
como atesta a documentação pesquisada. 9
A relação com o poder público era cordial. Requeriam isenção de impostos, serviços
urbanos em suas propriedades e permissões para realizar suas festividades. Em geral, eram
sócios
benemeri- atendidas. Algumas recebiam subvenções públicas. Muitas lideranças políticas locais assumiram a
tos
direção das mutuais ou foram seus sócios beneméritos. O interesse por parte das autoridades locais
em associar-se se explica pela necessidade de reforço de sua liderança política e status social. As
maiores contribuições às associações eram recompensadas pelo agradecimento público através da
imprensa, pela colocação de seus nomes em prédios e pavilhões das associações ou da encomenda
de quadros a serem expostos em suas sedes. Assim, suas relações com as elites pareciam ser muito
próximas, em tom intrinsecamente colaboracionista.
Muitas atividades eram feitas com o fim de reforçar o caixa das associações. Espetáculos
teatrais, circenses e musicais, quermesses e missas, eram fartamente promovidos para o deleite do
povo e de sua elite. Nessas ocasiões, a imprensa servia como o principal mecanismo de divulgação do
evento, com o fim de prestigiá-lo. As associações acabavam por oferecer as maiores oportunidades
de lazer para a sociedade como um todo, por meio de suas promoções, que não eram poucas.
Congresso Internacional de Mutualidade e Previdência Social, 1923 – II – 231, 5, 19, n. 3. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
9
funções atinentes ao setor público (MESTRINER, 2001, p.19). Portanto, mesmo que se imagine um
Estado de Bem-Estar Social completamente bem-sucedido, a filantropia continuaria a existir, como
iniciativa da sociedade civil, em razão do interesse da mesma em contribuir para a amenização dos
problemas sociais.
Pressupõe-se que a motivação religiosa tenha sido o fator de maior peso na expansão da
filantropia. No entanto, a prática da filantropia extrapola as fronteiras dos grupos religiosos. Que
outras razões explicariam o seu advento?
Maurice Godelier (2001, Introdução e cap.1), ao fazer uma reflexão sobre a importante
obra de Marcel Mauss (2001), nos alerta para a importância das noções que envolvem as dádivas,
Dom e contrao seu recebimento e a sua devolução (contra dom). Para o antropólogo, a prática das doações
dom
e "razões envolve sempre a expectativa de devolução da oferta por parte do contemplado, mesmo que
práticas"
o retorno da dádiva concedida seja a manutenção do receptor na condição de dependente do
doador. Complementa esta noção a abordagem de Pierre Bourdieu (1996, p.cap.5) sobre a prática
de atos aparentemente desinteressados. O autor, em seus estudos das trocas simbólicas, nos
informa que doações aparentemente desinteressadas escondem o interesse pelo acúmulo, por
parte do doador, de capital político ou simbólico, materializado pelo reconhecimento do poder de
quem ofertou.
É provável que tais motivações, acumuladas em tradições longevas, expliquem a permanência
da ação benemérita mesmo em contextos em que a participação do Estado na promoção de políticas
de proteção pública ocorreu de forma efetiva e também explique as ações beneméritas praticadas
por pessoas não religiosas. Para ambos os autores acima citados – não obstante as suas diferentes
abordagens sobre o tema – a expectativa do recebimento do contra dom explicaria o interesse
pela prática do dom. Entre outras razões, este contra dom poderia vir sob a forma de um reforço
do status, da manutenção de estruturas hierárquicas consolidadas, do controle dos processos de
decisão política, bem como do acúmulo de capital simbólico pelo doador.
As ações filantrópicas de caráter privado tiveram início no Brasil com a transposição das
Irmandades de Misericórdia de Lisboa para os trópicos, algumas décadas depois de ter-se iniciado o
processo de ocupação efetiva do solo brasileiro. As chamadas Santas Casas de Misericórdia datam
da segunda metade do século XVI e algumas delas permanecem em pleno funcionamento até hoje,
sendo responsáveis pelo atendimento da saúde de grande parte da população brasileira. Claro que,
atualmente, recebem subsídios estatais mais efetivos do que as pequenas isenções de impostos ou
reduzidas subvenções públicas do passado.
Funcionando como improvisados hospitais e albergues que recolhiam mendigos, desvalidos,
indigentes, órfãos e vadios, as misericórdias foram tornando-se referência de bom atendimento. Em
Juiz de Fora, no estado de Minas Gerais, onde nos foi possível aprofundar levantamentos sobre
a sua Santa Casa de Misericórdia, os investimentos da Irmandade Nosso Senhor dos Passos para
a construção de um hospital foram muito significativos, o que se deu através da importação de
tornava-se medida paliativa, incentivada pelo Estado, através de uma tímida política de concessão de
subsídios e isenção de impostos. A filantropia cumpria na ocasião um importante papel: o de inibir
conflitos sociais, o de garantir um exército de reserva e o de disciplinar uma mão-de-obra avessa ao
trabalho, em geral mal visto por estar associado à escravidão (CHALHOUB, 1986). Implantar uma nova
ética favorável ao trabalho seria uma missão a ser desempenhada pelo setor público e pelo setor
privado. Quem tivesse fora de mercado de trabalho deveria estar recluso nos albergues, orfanatos,
internatos e também nos hospícios, construídos, em sua maioria, na mesma ocasião.
Na tentativa de fazer um paralelo entre o mutualismo e a filantropia, algumas reflexões
derivaram deste estudo. Como visto, as instituições filantrópicas oferecem socorro aos necessitados
sem exigir deles nenhuma contrapartida financeira. Já as mutuais oferecem socorros contando com
a contribuição de todos, inclusive aqueles que dos socorros usufruem.
É fácil perceber que nas organizações de caráter filantrópico predominam relações de
solidariedade verticais, ou seja, um grupo bem aquinhoado resolve por alguma razão amparar um
necessitado e acaba por estabelecer com ele uma relação solidária, mas verticalizada. Já nas mutuais,
as relações de solidariedade são horizontais, na medida em que um conjunto de necessitados se
associam com o fim de ampararem-se uns aos outros. Tais conceitos antropológicos são úteis para
diferenciarmos os dois tipos de ação.
Ao mesmo tempo, as instituições filantrópicas eram, na grande maioria dos casos, religiosas
e as mutuais leigas. Ambas eram instituições de direito privado que, no entanto, exerciam funções
públicas. Este caráter dúbio de ambas as modalidades de organização gerava uma relação de
contradição com o Estado. Ao mesmo tempo em que o poder público se sentia obrigado a lhes
oferecer o apoio, por estarem desempenhando funções reconhecidamente estatais, as prerrogativas
liberais, inspiradoras de nossas classes dirigentes na ocasião, limitavam os investimentos, opção
agravada pela carência generalizada de recursos. Assim, muito embora tais agremiações fossem
lideradas por potentados locais e desempenhassem reconhecido papel social, viviam recorrendo à
comunidade, solicitando recursos adicionais para a sua manutenção.
Em decorrência das pressões advindas dos movimentos sociais, ou resultante da iniciativa
estatal, ou, como quer Abram de Swaan (1988, p.9) - em seu estudo sobre as origens do Estado de
Bem-Estar Social na Europa e nos Estados Unidos - fruto da ação política de políticos reformistas no
âmbito da burocracia estatal, o Brasil assistiu à implantação de leis de proteção ao trabalhador e à
criação de um sistema público previdenciário que, muito embora apresente distorções e limitações,
é um dos maiores do mundo. A contribuição das mutuais e das sociedades filantrópicas para a
implantação deste sistema é questionável. Não existem indícios empíricos que nos autorize a vincular
o advento de políticas sociais às pressões exercidas por entidades mutuais e/ou filantrópicas.
Dada a imensidão do território brasileiro e seu alto nível de desigualdade social, a filantropia
não perdeu fôlego. Ao contrário, seu crescimento ao longo dos anos foi considerável, complementada
que foi pelas ações do chamado terceiro setor. Já as mutuais praticamente desapareceram.
Se houve alguma contribuição prestada pelas mutuais foi a de servir como instrumento de
acumulação de cultura cívica, organizando a sociedade civil brasileira em um período de incipiente
mobilização social (PUTNAM, 2002). Acredita-se que a sedimentação de uma cultura associativa
certamente resultou de iniciativas como essas. Mas este é um pressuposto de difícil aferição empírica.
A segunda metade do século XVIII marca na Europa a origem das primeiras cooperativas
populares e dos esforços em torno da teorização sobre sua importância. Neste quesito, as
experimentações teórico-práticas de Charles Fourier (1772-1837) na França, e de Robert Owen
(1771-1858) na Inglaterra, são destacáveis. Mas foi em meados do século XIX, no contexto da
Revolução Industrial, que as experiências cooperativistas proliferaram em solo europeu.
As cooperativas podem ser de consumo, de produção ou de crédito. Essas são as mais
comuns. A partir da expansão das experiências, proliferaram as de educação, de construção
de moradias para trabalhadores, entre outras. Fundamentam-se na necessidade de defesa da
hegemonia do consumidor ou do produtor, na amenização da concorrência e do assalariamento, na
eliminação do lucro e na composição do justo preço.
Os princípios que nortearam a expansão de tais experiências fundamentaram-se na
oposição ao apogeu do liberalismo, sobretudo no que tange à expansão contínua dos lucros em
detrimento dos salários dos trabalhadores. A tradição individualista que compôs o universo de
valores da modernidade conduzia à crença no potencial transformador que os homens possuíam
sobre a sua realidade. Acreditava-se na organização e na luta como elementos propulsores das
grandes mudanças históricas. O século XIX foi assim marcado pela emergência e proliferação de
experiências mutualistas, sindicais e cooperativistas, vistas como alternativas de amenização dos
efeitos deletérios do capital sobre o trabalho (PINHO, 1982, p.22-30).
Em geral, a literatura que trata do cooperativismo leva em conta a experiência fundadora de
Rochdale, subúrbio da grande Manchester, no Reino Unido. Em 1843, um grupo de 28 trabalhadores têxteis
reuniu-se para fundar um armazém cooperativo, registrado como uma “friendly society”, no ano seguinte.
O capital inicial, de 28 libras, resultou de uma poupança coletiva, composta ao longo de muitos anos. O
objetivo era vender, sem intermediação, produtos básicos para o consumo dos trabalhadores cooperados.
Mais tarde, planejavam atuar na construção de casas populares, na fabricação de alguns artigos, investir
na educação de seus membros e propagar a abstinência em relação ao álcool. Cinquenta anos mais tarde
a cooperativa contava com mais de dez mil sócios, e seu êxito se comprova pelo fato de estar funcionando
até os dias atuais (ABRANTES, 2004 e PINHO,1982, p. 36 e ss).
O bem-sucedido exemplo de Rochdale contribuiu para a proliferação de experiências
semelhantes em outros países europeus, e por extensão, nas Américas. Data de 1895 a organização
de uma associação internacional de cooperativas populares, a Aliança Cooperativa Internacional,
com se e atual em Genebra (PINHO, 1982).
A Escola de Nimes, ao sul da França, ficou conhecida por reunir partidários teóricos do
cooperativismo, liderada pelo economista francês Charles Gide (1847-1932). Seu livro “Les Societes
Cooperatives de Consomption” foi publicado na França em 1904 e traduzido para o inglês em 1921,
tornando-se um clássico sobre o assunto. Gide enumerou algumas virtudes do cooperativismo, que
frequentemente eram endossadas por seus adeptos mais aficionados. Nelas destacava a melhoria
da qualidade de vida do trabalhador obtida através da ajuda mútua; o remédio contra o progressivo
endividamento dos trabalhadores; o compromisso com a poupança; a educação econômica; o
acesso facilitado à propriedade; o envolvimento das mulheres nas questões econômicas e sociais;
a amenização dos conflitos classistas, já que o operário se tornaria o seu próprio patrão; o acesso à
propriedade, além de outros valores anteriormente citados, como a eliminação dos intermediários,
o justo preço, a oposição ao lucro e o combate ao alcoolismo (PINHO, 1982, p.35).
Outros valores compunham o imaginário cooperativo. Alguns deles remontavam a meados
do século XIX, e ainda se encontram presentes nas experiências atuais, em vários lugares do mundo.
Entre eles podemos destacar a livre adesão, a gestão participativa na condução dos negócios, a
divisão proporcional dos benefícios auferidos das operações (com base no número de quotas de
cada cooperado), a cooperação mútua, a neutralidade política e religiosa e a indivisibilidade do
patrimônio, mesmo em caso de falência.
Segundo a literatura disponível, o cooperativismo brasileiro teria surgido em 1847, ocasião
em que o médico Jean Maurice Faivre fundou uma colônia no interior do Paraná. Ao final do século
XIX, as experiências cooperativistas se multiplicaram, através da fundação de uma unidade em Ouro
Preto (1889), outra em Limeira, São Paulo (1891), quatro no Distrito Federal (1876, 1877, 1888 e
1894), duas no Rio Grande do Sul (1892), uma em Recife (1895) e uma em Campinas (1897). Além
dessas iniciativas, várias outras cooperativas de crédito agrícola rural foram criadas em diversos
estados brasileiros, destacando-se entre eles, o estado de Minas Gerais, sob a iniciativa do então
governador João Pinheiro. 11
Tão logo as cooperativas começaram a ser expandir em território nacional ocorreu
um esforço, por parte de nossas autoridades, em regular o seu funcionamento. Pelo que nos foi
possível levantar, entre 1890 e 1932, quatro instrumentos regulatórios tiveram maior importância
nos rumos do cooperativismo brasileiro.12 O primeiro deles foi o Decreto 979, de 6 de janeiro de
1903. Expedido no âmbito da gestão presidencial de Rodrigues Alves, permitia que os sindicatos
organizassem cooperativas de produção e de consumo. Ao mesmo tempo, isentava os sindicatos da
responsabilidade econômica de eventuais falências de tais instituições, conferindo-lhes autonomia
financeira em relação aos empreendimentos cooperativos. O Decreto também previa que, em caso
de dissolução da cooperativa, o patrimônio da mesma seria repassado ao sindicato a ela vinculado.
Dados retirados de: ABRANTES, 2004, p. 45-46, GUIMARÃES, 1983, p.35, ORGANIZAÇÃO das cooperativas brasileiras. Cooperativismo
11
brasileiro: uma história. Ribeirão Preto: Versão BR Comunicação e Marketing, 2004, p. 35), FONSECA (2008, p. 233 e 236).
12
Para este fim nos baseamos na seguinte literatura: LOUZADA (1990, p. V e VI), ABRANTES (2004, p.19,40, 41,47, 49 e 67), SOARES
(1936, p.19 e 40) e PINHO (2004, p.120-122).
Tal deliberação tinha claro caráter paternalista, na medida em que isentava os sindicatos das
eventuais perdas das cooperativas, mas resguardava-lhes os ganhos.
O segundo marco regulatório a ser destacado refere-se ao Decreto 1.637, de 5 de janeiro
de 1907. Editado no âmbito do governo Afonso Pena, o Decreto ampliava o anterior, permitindo que
as cooperativas fossem formadas por profissionais de ramos conexos ou singulares, sem estarem
necessariamente vinculados a um mesmo sindicato. Previa também regras em relação ao registro
das instituições, a serem feitos nos Cartórios de Registro de Hipotecas, além do envio de um exemplar
para a Junta Comercial e outro para a Procuradoria da República. Muito embora o Decreto tenha
ampliado a possibilidade de expansão das iniciativas cooperativistas, impunha instrumentos mais
eficazes em relação ao seu controle, por parte do poder público. 13
O terceiro marco regulatório a ser destacado foi o Decreto 17.339, de 2 de julho de 1926,
que definiu legalmente o cooperativismo brasileiro, além de regulamentar, com fins de fiscalização,
as experiências cooperativistas dos sistemas Raiffeisen e Luzzatti. Tais cooperativas eram de crédito
rural, inspiradas nos modelos alemão e italiano, respectivamente. No caso italiano, as cooperativas
funcionavam como verdadeiros bancos populares, com o fim de garantir aos cooperados, autonomia
financeira contra eventuais endividamentos. Em ambas, em que pesem as semelhanças com os
bancos, predominavam os valores semelhantes aos das demais cooperativas (SOUZA, 1992,
p.107,135 e 141).
Seis anos mais tarde, durante o Governo Provisório estabelecido após a Revolução de 1930,
foi emitido um Decreto complementar ao anterior, o de número 22.239, de 19 de dezembro de
1932, que regulamentou e atualizou dispositivos relativos às modalidades de cooperativismo. Entre
eles destacamos: o estabelecimento do número mínimo de sócios para compor uma cooperativa;
a limitação do número de cotas por associado; a proibição de se repassar cotas para terceiros,
mesmo em caso de morte; a existência de um quórum mínimo para deliberações em assembleias
e a singularidade do voto (cada cooperado, um voto). O Decreto previa também que as sociedades
cooperativas poderiam ser formadas por iniciativa dos sindicatos, de qualquer outra entidade ou
isoladamente, desde que tivessem personalidade jurídica distinta. A intenção do Decreto era evitar
que as cooperativas se tornassem instrumento de especulação financeira, protegendo eventuais
sócios de serem explorados por interesses que extrapolassem os princípios “rochdaleanos”.
Em levantamento realizado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro encontramos algumas
obras, escritas ao longo das primeiras décadas republicanas, que podem nos conferir uma visão
de como tais instituições eram vistas, quais os valores que elas compartilhavam e de que forma se
disseminaram na sociedade brasileira. Para este fim nos valemos de três autores, um deles, José
Saturnino de Britto, autor de uma dezena de livros sobre o tema (BRITTO, p. 1915, 1923, 1928, 1930,
1931, 1932, 1936-A e 1936-B).
Ambos os decretos anteriormente aludidos foram regulamentados posteriormente pelo de número 6.437, de 27 de março de 1907,
13
pelo Decreto 6.532, de 20 de junho de 1907 e pela Lei 4. 984 (artigo 18), de 31 de dezembro de 1925.
Os livros de Britto tiveram o tom da propaganda. Através de sua vasta obra, objetivava
disseminar o que ele considerava remédio valioso contra a especulação capitalista. Muito embora
não se filiasse ao Socialismo, fazia críticas à burguesia enquanto classe e aos políticos republicanos
que fundamentavam o seu poder na compra e manipulação dos votos.
O autor revelava grande conhecimento sobre as experiências cooperativistas europeias. Se
valeu de dados estatísticos para comprovar a importância que o fenômeno tinha em outros países,
considerados mais desenvolvidos que o Brasil. Quando se voltava para a realidade nacional, ressaltava
que apenas os estados que concediam isenções de impostos às cooperativas conseguiam desenvolvê-
las em seu âmbito, a exemplo de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e São Paulo.
Ao definir os fins da experiência cooperativista Britto assim se manifestava:
Por meio da citação percebe-se que o autor via o cooperativismo como estratégia de
poupança dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que se constituía em remédio contra os males
trazidos por uma burguesia sem espírito humanitário. Em diversas ocasiões pressupôs a existência
de ameaças contra as cooperativas, que vinham ou dos sindicatos ou da burguesia. No caso dos
primeiros, criticava as tentativas de assimilação feitas pelos sindicatos por sobre as cooperativas
(BRITTO, 1915, p.28).
Outro contemporâneo e estudioso do fenômeno, Luiz Amaral, era também Diretor do
Departamento de Assistência ao Cooperativismo de São Paulo. Em sua obra via igualmente no
cooperativismo ferramenta valiosa na amenização dos conflitos entre o capital e o trabalho (AMARAL,
1935). E reconhecia, tal como Britto, que o cooperativismo só vigoraria no Brasil se acompanhado de
incentivos estatais, para que não se tornasse instrumento de manipulação política ou de especulação
financeira.
Da mesma forma, para Amaral Luiz a estratégia cooperativista constituía-se em mecanismo
de humanização da exploração capitalista e não instrumento de sua superação. Cabia ao
cooperativismo ser um instrumento de justiça social. Em suas palavras, “os lucros distribuem-se
em proporção ao consumo e não em proporção ao capital – o que equivale a mais hábil e eficiente
fórmula de justiça social.” (AMARAL, 1935, p.105-106).
José Júlio Soares, um jurista que se dedicou a discutir o mutualismo e o cooperativismo sob o
ponto de vista legal, via em ambas as experiências a solução da chamada “questão social”. Relacionava
o avanço de tais experiências à civilização e ao progresso dos países: “O índice de progresso de uma
nação reside, pois, no desenvolvimento de suas instituições mutualistas e cooperativistas que, sem
dúvida, representam a forma superior da evolução moral e econômica dos povos”(SOARES, 1936, p.21).
Segundo o autor, a conveniência do cooperativismo estava em afastar-se ao mesmo tempo
do socialismo e do liberalismo. Tornava a propriedade coletiva sem abrir mão da propriedade
privada. Não suprimia o capital, mas retirava-lhe o caráter regulador da produção. Enfim atuava
como ferramenta educativa, na medida em que incentivava atos de poupança e combate à usura.
O cooperativismo era ainda tímido no Brasil, embora presente em regiões onde os governos
lhes proporcionavam incentivos. Era visto como uma estratégia de amenização dos impactos
negativos que o capitalismo impunha, ajudando os trabalhadores e os pequenos produtores no
enfrentamento das dificuldades. Ficava a meio caminho entre o individualismo liberal e o Socialismo.
Para os autores analisados, a experiência contribuía para a amenização da exploração
capitalista e sua proliferação refletia o progresso e a civilização dos povos. Ao contrário de defenderem
uma organização autônoma das cooperativas, reivindicavam o controle e a proteção do Estado, sem
os quais, as iniciativas estariam fadadas ao insucesso.
Temiam que os sindicatos controlassem as cooperativas e viam com desconfiança o uso
eleitoral das lideranças burocráticas de tais iniciativas. A despeito de tantos temores, acreditavam
no cooperativismo como uma “terceira via”, a contribuir para a amenização dos conflitos entre o
capital e trabalho, na medida em que protegia o trabalho contra o capital.
Vimos neste item que num período de intensas transformações, que marcaram a
implantação das relações capitalistas de produção no Brasil, os trabalhadores se organizaram em
duas frentes: a primeira através da luta sindical com o fim de resistir às mudanças que lhes traziam
perdas; a segunda, abrindo mão da luta e conformando-se com tais perdas, sendo a primeira opção
mais estudada pela historiografia. Entretanto, a aceitação da realidade, que caracterizava a segunda
frente, não implicava em passividade, pois refletia na disseminação de organizações de autoajuda.
Vítimas do empobrecimento, da ruptura de laços comunitários derivados da migração campo-
cidade, da luta desigual por postos de trabalho e do abandono do Estado, refletido na ausência
quase que completa de proteção social, os trabalhadores construíram estratégias diferenciadas de
conviver com tais mudanças. Partindo das experiências europeias prévias, certamente trazidas pelos
Será??? imigrantes, construíram associações de diversos tons. Esta rica tonalidade certamente conferiu à
sociedade civil brasileira um acúmulo de experiência cívica, fundamental ao processo de construção
da cidadania no Brasil. Ou seja, mesmo aqueles que se colocaram fora do campo de lutas por um
capitalismo menos selvagem não se acomodaram e empreenderam, mesmo que obedecendo a
interesses individuais e pragmáticos, iniciativas de caráter coletivo, sem as quais a organização de
nossa sociedade civil demoraria ainda mais a se processar.
A mudança deste paradigma de análise resultou de uma primeira pesquisa empiricamente mais fundamentada e especificamente
14
voltada para o tema do mutualismo. Trata-se do trabalho de Tânia Regina de Luca (1990).
Ao mesmo tempo, as mutuais, diferentemente dos sindicatos, não se estruturavam sobre bases
igualitárias. Os estatutos apontam para a hierarquização entre lideranças e bases dos sócios entre si.
Em geral, havia os sócios comuns, os beneméritos, os remidos e outras variações que implicavam numa
escala de valores entre aqueles que contribuíam com o fim de obter socorros pré-pactuados e aqueles
que contribuíam em razão de outros interesses, mesmo que não precisassem demandar recursos,
porque eram bem aquinhoados. Em geral, esses sócios ilustres exerciam a liderança das mutuais ou
exercia poder sobre elas. Tal heteronomia implicava no fortalecimento de relações paternalistas ou
verticalizadas, que em nada contribuíam para a formação de uma “classe trabalhadora”.
discussão
sobre Ao mesmo tempo, as mutuais eram sociedades que recrutavam sócios a partir de critérios
classes
sociais de exclusão. Desempregados, subempregados, trabalhadores sazonais, entre outros, não podiam
participar, mesmo sendo as mensalidades modestas. Sem contar com aqueles que apresentavam
algum problema prévio de saúde ou aqueles que haviam sido condenados pela justiça. As mulheres
eram também excluídas da maior parte das mutuais, bem como os muito jovens ou os muito idosos
– mesmo que trabalhadores. Ressalta-se que estamos nos referindo à maioria das associações e
não a casos isolados. Havia outras que excluíam com base em nacionalidades ou critérios regionais
(sociedades baianas, mineiras, etc.). Há outras que limitavam seus sócios à determinada profissão
ou a um local específico de trabalho. Ou seja, eram organizações que embora se vissem como
fraternais, reforçavam muitos critérios de exclusão. Tal realidade também não contribuía para o
processo de formação de classe.
Em que pesem tantas exclusões e diferenciações internas entre os sócios, as mutuais esforçavam-
se em omitir as diversidades através do reforço de valores como os da ajuda mútua, o da isonomia e o da
fraternidade. Valores como os da competição, das diferenças sociais e étnicas, da masculinidade, entre
outros, não eram reforçados pelo discurso, mas sim pela prática cotidiana das mesmas.
Não é novo reconhecer que as mutuais eram entidades multi classistas e por esta razão
podem ter contribuído mais para a formação de identidades intercalasse do que intraclasse. Desta
forma, ao invés de fortalecerem o acirramento da luta de classes, prestavam um serviço para a
amenização destes conflitos (CLAWSON, 1989, p.89-96).
Diante deste quadro, pode-se afirmar que as mutuais eram compostas por diferentes
categorias sociais, hierarquizadas e diferenciadas entre si, atuavam no reforço de valores excludentes
e promoviam cooperação entre diferentes setores sociais. Por estas razões, o papel do mutualismo
no processo de formação da “classe trabalhadora” é passível de questionamentos. Desta forma,
acreditamos que a categoria analítica “classe social” explique pouco a complexa dinâmica desta
modalidade de organização social, mesmo que seu uso se limite a explicar o processo de formação
desta mesma classe.
Este argumento encontra-se reforçado na análise das mutuais étnicas. Tais organizações
foram engendradas atendendo a dois objetivos: o de prover socorros públicos aos estrangeiros que
tivessem imigrado para o Brasil (função mais comum para a maioria das mutuais) e o de reforçar
elos de identidade nacional entre seus membros (função mais comum entre as mutuais étnicas). Em
ambos os casos, a categoria classe é igualmente dispensável para o entendimento desta modalidade.
A literatura antropológica nos informa que o processo de construção de identidades se dá
a partir do reforço de valores homogêneos entre os pares e do estabelecimento de fronteiras de um
grupo em relação aos que dele estão fora.
Nas palavras de F. Barth (2000, p.35): “Assim, a persistência de grupos étnicos em contato
implica não apenas a existência de critérios e sinais de identificação, mas também uma estruturação
das interações que permita a persistência de diferenças culturais”. Neste sentido, as mutuais étnicas
se definiam a partir do reforço de elos comuns – mesmo que criados ou recriados no Brasil – e do
estabelecimento de diferenças em relação a outros grupos, estrangeiros ou nacionais. A composição
de sua identidade se processava a partir de mecanismos fraternalistas endógenos e da exclusão de
elementos exógenos. Ao mesmo tempo, tais associações reforçavam o interesse de ter como sócios
membros ilustres investiam nas relações com cônsules e embaixadores e utilizavam de referências
da terra natal para fundamentar seu lazer e suas festividades. Neste caso, a composição de uma
identidade classista era abandonada em prol do reforço de uma identidade étnica.
Por estas razões, com base nos trabalhos produzidos sobre o tema, é muito difícil perceber
empiricamente a eventual contribuição que as mutuais possam ter tido para a formação de uma classe
trabalhadora. Em geral, esta afirmação é apresentada como um postulado, ou seja, uma afirmação que
é aceita como condição prévia, independente da necessidade de comprovação científica. Acreditamos
então que a categoria classe social não nos ajuda a entender a complexidade das experiências
mutualistas, ao contrário, reduz por demais os objetivos de tais associações e das expectativas de
milhares de sócios, que investiram tanto na organização e manutenção de tais organismos.
Em que pesem tais considerações, há trabalhos recentes que tem realçado a contribuição
do associacionismo mutualista para a formação de uma cultura cívica (PUTNAM, 2002), de uma
cultura associativa (BATALHA, 2004) ou mesmo para a expansão da cidadania (FONSECA, 2008).
Considerações Finais
Experiências da prática
associativa no Brasil
oitocentista 15
O estudo dos setores excluídos tem sido composto predominantemente de reflexões acerca
dos mecanismos de repressão e exclusão sociais por parte do Estado e do mercado, bem como das
alternativas de resistência a tais mecanismos. Para tal, as contribuições da Historiografia Social Inglesa
foram vastas, sobretudo quando, após a década de 1960, seu encontro com a Antropologia permitiu
o nascimento da História Social da Cultura na qual destacaram-se as clássicas contribuições de E.P.
Thompson em suas pesquisas sobre o processo de formação da classe trabalhadora inglesa. Tendo
tal classe sido formada após 1830, conforme assevera Thompson (2001), ou entre as décadas de
1880 e 1890, como expressou a contraposição de Hobsbawm (2000, p. 260-281 a 283) a ele, o que se
destaca nas análises produzidas foi a preocupação com a interferência de fatores extraeconômicos no
processo de formação de uma consciência de classe, para a qual foram fundamentais as dissidências
religiosas, as festividades populares, os rituais e símbolos compartilhados pelos trabalhadores, as
experiências prévias de associativismo, entre outros.
A partir deste novo paradigma, as pesquisas foram estendidas aos trabalhadores que não se
inseriam no movimento operário, ou seja, sobre aqueles que não compunham a minoria organizada
e militante. Nascia assim o estudo dos trabalhadores que se encontravam fora do mercado formal de
trabalho. Esta condição impedia a sua participação nos mecanismos institucionais de luta operária,
tais como os sindicatos em suas diferentes formas de luta como as greves, a imprensa operária ou a
militância política. Daí se explica a mudança de foco refletida na valorização de formas alternativas
de resistência dos trabalhadores contra os abusos do capital.
Inserido neste novo paradigma, o presente capítulo se propõe a estudar os trabalhadores
que se encontravam alheios às intensas lutas operárias que se travavam no Brasil a partir do final do
século XIX. Mas, ao mesmo tempo, diferencia-se das abordagens predominantes que priorizaram
a análise do processo de exclusão e de resistência. Resistindo ao conceito de resistência (BROWN,
1996) - tão largamente utilizado no Brasil - pretende-se estudar as estratégias construídas no seio
da própria sociedade civil com vistas à sua sobrevivência, por meio de iniciativas que revelavam
Este capítulo foi publicado previamente como artigo: VISCARDI, Cláudia. M. R.. Experiências da Prática Associativa no Brasil. Revista
15
a busca por amparo e proteção social por meio da ajuda mútua. Tal busca, porém, não se dava
pela reivindicação de um Estado previdenciário. No contexto de afirmação de uma ideologia liberal,
que convivia com uma sociedade civil ainda muito fragmentada, predominou a opção pela auto-
organização, por meio do fortalecimento de associações de ajuda mútua, sem a interveniência do
Estado, embora isto, como será visto, nem sempre foi possível.
Em síntese, a pesquisa que desenvolvemos há alguns anos propõe uma reflexão acerca das
experiências conhecidas como mutualistas e filantrópicas, de caráter leigo, nascidas na sociedade brasileira
a partir da primeira metade do século XIX e que tomaram corpo nas primeiras décadas do século XX,
proliferando-se em várias regiões do país. Para os fins deste capítulo, serão utilizados resultados empíricos
colhidos acerca de dez associações criadas entre 1861 e 1880 na cidade do Rio de Janeiro.
A base da presente reflexão encontra-se numa documentação depositada no Arquivo
Nacional, que consta de estatutos e atas de associações, enviados para observação e análise da Seção
de Negócios do Conselho de Estado entre os anos de 1860 e 1889 na cidade do Rio de Janeiro. Segundo
previa a legislação em vigor, toda associação a ser criada neste período deveria ter seus estatutos
e atas de fundação enviados à referida seção para análise e posterior aprovação para que pudesse
funcionar. De posse da proposta, os documentos eram analisados e sobre eles eram feitas observações
que visavam torná-las adaptadas aos parâmetros considerados ideais e legais, obedecendo a um
código de valores compartilhados pelos gestores, no final do Império. Tal código expressava-se não só
pelas observações dos conselheiros, mas também por meio de decretos que regulamentavam o seu
funcionamento16. As propostas poderiam ser aprovadas ou reprovadas no todo ou em parte.
Para os fins deste capítulo, procedeu-se a uma análise sobre os estatutos e atas das
seguintes sociedades:
De acordo com as disposições da lei 1.083 (agosto/1860), do decreto 2.711 (dezembro/1860) e do decreto 2759 (março/1861).
16
Com base nesta documentação, objetiva-se responder às questões que ainda se encontram
em aberto sobre o tema. Segundo levantamentos feitos por Silva Jr. (2005), 5,25% da população
masculina adulta brasileira era associada a algum tipo de sociedade. Para a cidade do Rio de Janeiro
este número chegava a 18%. Embora seja bem inferior aos indicadores ingleses (um em cada três
ou quatro adultos) e próximo ao dos argentinos (6,5%), o percentual constituía-se no dobro de
sindicalizados para o mesmo período. Só por esta razão já se justificaria o estudo do fenômeno
associativo no país.17
Ademais, as pesquisas sobre o mutualismo e a filantropia, sob o ponto de vista histórico,
encontram-se em estágio bastante inicial, o que não ocorre para outros lugares do mundo. No caso
específico da filantropia, tendo sido objeto quase exclusivo de análise de sociólogos e/ou assistentes
sociais, seus resultados estiveram voltados para as políticas de assistência pública, indicando seu
alcance, apontando seus limites e identificando suas transformações ao longo do tempo. Estudos
sob uma perspectiva histórica são raramente encontrados e, em geral, versam sobre instituições de
proteção social ao idoso e à criança desvalida. 18
No caso do mutualismo, as abordagens históricas ocorrem em maior número e assumem
um caráter bastante regionalizado, dada a vastidão e dispersão das fontes primárias. Trabalhos
sobre o Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul já foram produzidos, sem que
análises comparativas pudessem ainda ser feitas e sem que se avançasse muito na definição precisa
do fenômeno, bem como na sua transformação ao longo do tempo19. Com base nas carências
apontadas, este trabalho pretende prestar uma contribuição para reflexões sobre uma prática que
tinha uma importância muito grande para seus contemporâneos.
ver: KIDD (2002-B, p.333). Na Inglaterra o percentual de sindicalizados variava de 10 a 15%. No Brasil, era a metade dos mutualizados.
Destacamos, entre outros trabalhos, os seguintes: DEL PRIORI (1992); FREITAS (1997), SOUZA (2004) e NEGRÃO (2004).
18
Entre os muitos trabalhos destacamos: LUCA (1990), BATALHA (1999), JESUS (2001), VISCARDI (2006), entre outros.
19
Artigo 4º: A Sociedade tem por fim beneficiar a seus sócios que forem necessitados, e bem
assim, suas famílias, uma vez que provém necessitar dela.
Artigo 41: As joias estabelecidas pelo artigo 9º não deixa de ser livre a qualquer sócio
revelar com donativos maiores, sua generosidade e amor a Sociedade; considerando-se o
excedente a joia estabelecida como donativo.
Vê-se que esta sociedade, que possuía 450 sócios e se reunia em uma cervejaria, percebia-
se a si mesma como praticante da filantropia, não desistindo de recolher donativos derivados da
generosidade de seus sócios a serem repassados para a própria sociedade. Mas, na prática, era uma
sociedade de mútuo socorro.
Mais fácil, porém, se torna a diferenciação entre as sociedades de socorro mútuo e os
montepios. Os montepios funcionavam como seguradoras. Eram sociedades privadas, que visavam
lucro e obedeciam às regulamentações do mercado. Proliferaram largamente após 1919, ano de
criação da lei de Proteção contra Acidentes de Trabalho, na medida em que eram contratados
pelas empresas para prover a cobertura demandada pela lei. Os montepios eram organizações de
mercado e obedeciam a valores estritamente econômicos. Já as associações de socorro mútuo, ou
beneficentes, compartilhavam de valores extraeconômicos, pois não limitavam sua ação às regras
de mercado. Por serem organizações da sociedade civil, primavam pela preocupação em oferecer
socorro aos necessitados, que podiam ou não ser seus sócios. As contribuições e as pensões a serem
recebidas em caso de necessidade eram previstas pelos estatutos. Mas estes previam também
ocasiões em que os não sócios poderiam ser contemplados com algum tipo de auxílio, e apelavam
igualmente para a generosidade de seus associados com vistas ao fortalecimento da associação.
Essas quantias doadas eram fluidamente determinadas, previstas, mas não quantificadas, revelando
a presença de valores extraeconômicos a compor o horizonte dessas sociedades.
Outro exemplo da fluidez dessas categorias pode ser encontrado na Associação Asilo e
Beneficência (Arquivo Nacional, caixa 553, código 138). Conforme previa seu estatuto, era uma
sociedade de mútuo socorro que, além de socorrer os seus sócios nos momentos de necessidade,
tinha como propósito construir um orfanato para 100 meninas e 50 meninos. No parecer emitido
pelo Conselho de Estado não se corrige o nome da associação e nem se faz referência ao seu
duplo papel – mutual e filantrópica – o que demonstra a fluidez dessas categorias também para os
conselheiros que normalmente se colocavam na condição de guardiões da Lei.
A visão de tais associações como organizações formais, privadas, sem distribuição de lucros,
autogovernadas e voluntárias20 pode ser também relativizada. A análise empírica tem apontado
a existência de inúmeras sociedades que remuneravam seus associados para o desempenho de
algumas funções, o que não as tornava exclusivamente voluntárias. É o caso da Associação acima
citada, a qual previa a existência de um gerente tão bem remunerado (de três a seis contos por ano)
que levou o Conselho de Estado a questionar o privilégio do cargo e a sugerir que seu ocupante, ao
invés de ser indicado pela diretoria o fosse pela Assembleia Geral, referindo-se para isto ao “Decreto
de 19 de dezembro de 1860, que não admitem mandatários, senão revogarem e substituírem por
livre escolha da assembleia geral dos sócios.”
Ao mesmo tempo, era impossível a uma mutual sobreviver sem a obtenção de lucro, uma
vez que este mesmo lucro era distribuído pelos sócios para o cumprimento de sua missão. Por fim,
pouco tinham de autogovernadas, na medida em que a sua diretoria era responsável pela maior
parte das decisões, muitas delas tomadas à revelia de suas assembleias gerais, além do que, ocorria
forte intervenção do Estado sobre o seu funcionamento, pelo menos no momento de sua instalação,
como se verá a seguir.
Conforme definição de Johns Hopkins Corporative Non-Profit Sector Project, citadas em: KIDD, 2002-B, p.335, apud.
20
De imediato, percebe-se uma preocupação muito grande por parte dos conselheiros com a
viabilidade financeira e a perenidade da organização. Sugerem a redução das coberturas, a sua duração,
a sua extensão, a periodicidade das reuniões, a ampliação do número de sócios entre outras coisas.
Na análise da proposta de criação da Sociedade de Beneficência Amparo das Famílias
(Arquivo Nacional, caixa 552, código 128), o conselheiro relator chega à conclusão de que as
coberturas prometidas aos associados eram impossíveis de serem pagas com as arrecadações
previstas. Ironizando seus gestores, sugere que o próprio Império se associe à mesma para ter os
seus compromissos com pensões pagos pela referida associação:
O próprio Governo deveria aproveitar a descoberta para que, livrando dos sacrifícios que faz
o Tesouro nas pensões e nos meios soldos do Exército e da Marinha dotasse melhor todos
os servidores do Estado.
A proposta foi indeferida, com o argumento de que cabia ao Conselho de Estado resguardar
os direitos dos associados para que esses não fossem lesados. Justifica desta forma o seu parecer:
Se fosse livre a organização das sociedades, seria de sua própria inexperiência que teriam de
queixar-se os iludidos por tão pomposas promessas; porém, tendo o Governo de aprimorar
os Estatutos, incorreria em responsabilidade moral, concorrendo para que a autoridade de
seu nome servisse para favorecer tais planos.
Na citação percebe-se o papel que o Conselho de Estado se auto atribuía que era o de
proteger o povo contra as ilusões dos enganadores e contribuir com o aprimoramento dos estatutos.
Na condição de juristas e guardiões da lei, os membros do Conselho de Estado tinham como missão
contribuir com a proteção social e com a ilustração do povo.
Esta preocupação é levada ao extremo, quando os conselheiros se recusam a abonar
associações que propõem estatutos com erros de ortografia. Em parecer emitido acerca da Associação
de Socorros Mútuos Philantropia e Ordem (Arquivo Nacional, caixa 555, código 183), afirma-se que
a documentação enviada sugere a existência de “muita ignorância” dado que a proposta “ficaria
suposta a interpretações diversas, conforme as boas ou más disposições de ânimo dos intérpretes,
que, nestas sociedades, não primam por grandes sabedores.”
O esforço regulatório se manifesta, igualmente, por meio da intervenção sobre os cargos
criados e o seu funcionamento. Há uma preocupação dos governantes em garantir o poder deliberativo
das assembleias gerais, que deveriam funcionar como freios aos arbítrios da diretoria. Há também
uma preocupação em evitar privilégios, garantindo-se a isonomia de direitos entre os sócios. Ao
emitir parecer acerca do estatuto da Associação Cosmopolita União e Caridade (Arquivo Nacional,
caixa 552, código 103), o Conselho de Estado indefere o pedido de funcionamento da mesma por
ter decidido transformar em remidos seus sócios fundadores que haviam se expressado bem e se
empenhado pela criação da sociedade, conforme consta da ata de instalação da referida Associação:
Finda a votação dos Estatutos o senhor Joaquim Ladisláo Leal pede a palavra e apresenta
a seguinte proposta: que seja conferido os títulos de sócios remidos aos senhores João
Antônio dos Santos Delgado, Augusto José Rodrigues da Silva e Thomé Alves da Silva, em
prêmio de suas elucubrações e virtudes, como iniciadores e organizadores da Associação
Cosmopolita União e Caridade; cuja solução para mais honra dos agraciados será anexo por
adição aos Estatutos, sendo posta a votos foi aprovada a proposta. (grifos nossos)
Para os membros do Conselho esta decisão feria os interesses dos demais associados,
embora seus 203 sócios (151 homens e 52 mulheres) a tivessem aprovado por unanimidade e com
regozijo. Como guardião da ilustração, da equidade entre os pares e agora da “Ciência”, manifestou-
se a este respeito o Conselheiro: “Devem pois, os requerentes sujeitar-se às regras que a ciência
ensina que devem ser guardadas nestas organizações, e formulados outros Estatutos dará então
a Seção seu parecer sobre eles.” Não bastava que as assembleias se reunissem e deliberassem. O
Conselho se colocava no direito de indeferir as escolhas dos associados, respaldado na nobre missão
de garantidor da ciência, das leis e das letras.
Encontramos entre as dez associações analisadas, uma que se contrapôs com veemência
aos arbítrios do Conselho. Em geral, demorava-se muito até que o parecer fosse emitido. Após o
pedido ser registrado na secretaria de negócios, a associação esperava, em geral, mais de um ano
para obter o aval pretendido. Pelo que foi possível perceber, a ausência do parecer não impedia
o funcionamento dela, mas a deixava numa situação de fragilidade e inviabilizava a obtenção de
subvenções públicas.
Este foi o caso da Associação Filantrópica Fluminense (Arquivo Nacional, caixa 557, código
229), uma mutual de tipógrafos fundada em 1853 e que solicitou uma reforma em seu estatuto
em 1880. Passados dois anos do pedido, a Associação não tinha permissão para fazer a reforma
desejada em função de uma discordância pontual de um conselheiro, que insistia que constasse
no estatuto que a sociedade deveria atender aos pobres. Os sócios não acataram a sugestão do
Conselheiro, embora reconhecessem que os tipógrafos fossem pobres, mas se sentiam lesados por
esta exigência não ter sido feita a outras sociedades congêneres. Para o Conselheiro, a ausência
da palavra pobre transformava a mutual em montepio, com o que seus sócios não concordavam.
Como se viu anteriormente pairavam muitas dúvidas acerca das definições das sociedades. Como
esta associação não visava lucro e era baseada na ajuda mútua, não se via como um montepio e se
intitulava filantrópica, embora fosse uma mutual de ofício. Diante da resistência do conselheiro, os
membros recorreram à intervenção do Imperador, alegando que:
Perante V. M. Imperial recorre ainda uma vez o Conselho da Imperial Associação Tipográfica
Fluminense a solicitar a sanção da reforma de seu Estatuto que há dois anos se acham na
Secretaria do Império, devido a algumas emendas exigidas pela Ilustre Seção dos Negócios
de Império de Conselho de Estado. Senhor, as atestadas emendas como V. Majestade
poderá verificar (...) mandam acrescentar a palavra – pobre – ou – atestado de pobreza;
emendas essas de que se pode prescindir, porquanto diversas sociedades de iguais (ilegível)
Temendo que o Imperador fizesse valer a vontade dos associados, o conselheiro o lembrou que:
“Mais de uma sociedade de beneficência e socorros mútuos tem recusado conformar-se com
as emendas feitas pela seção neste sentido, e a seção os tem constantemente sustentado;
não, pois, hoje retratar-se.” (...) O que nem a Secretaria, nem o Conselho de Estado, nem o
Governo Imperial podem fazer, porque acima de todos está a Lei, é imprimir uma expressão,
que caracteriza a natureza da sociedade de beneficência e a distingue de – Montepio -, que
é constituído e regulado por modo diverso. (grifos nossos)
Como se nota pelas palavras dirigidas ao Imperador, os pleiteantes clamavam por justiça,
por sentirem que as regras que garantiam a equidade no tratamento haviam sido quebradas. Não
sabemos que fim foi dado ao pleito, pois a documentação não está completa. Embora tenha sido,
até agora, um fato único, serve para nos alertar que as reações contra as contínuas intervenções do
Conselho de Estado sobre o cotidiano das sociedades existiam.
Boa parte dos trabalhos existentes sobre a filantropia e o mutualismo está centrada nas
razões que levariam os indivíduos à prática da caridade e da cooperação mútua. A este respeito
delineiam-se quatro correntes.
A primeira delas explica a prática da ajuda mútua como resultado de incentivos por parte
do Estado com vistas à garantia do controle social. Tal corrente se expressou por meio do conceito
de poder pastoral (FOUCAULT, 2003 e DRENCH E HAN, 1999). Para Foucault, o poder pastoral é
uma forma de poder voltada para o indivíduo com o fim de garantir-lhe a salvação eterna. Ele é
sempre vertical, sacrificial, salvacionista e individualizante. O peso deste poder sobre o homem o
conduziria à busca infinda pela salvação eterna, o que explicaria seu comportamento altruísta e, na
longa duração, o advento da filantropia e do Estado de Bem-Estar Social.
interesse pelo acúmulo, por parte do doador, de capital político ou simbólico, materializados pelo
reconhecimento do poder de quem ofertou.
O conceito de reciprocidade nos auxilia, assim, a escapar de uma visão maniqueísta da
sociedade, dividida entre indivíduos altruístas e egoístas. Todas as relações de solidariedade preveem
algum tipo de reciprocidade mesmo que o retorno do bem (contra dom) seja tardio ou indireto.
A reciprocidade não precisa igualmente ser bipolar e nem requer a paridade entre doadores e
receptores. Embora o pobre não possa retribuir materialmente o bem recebido, os ganhos do doador
são indiretos e podem ser expressos por meio de um reconhecimento social (poder simbólico, na
visão de Bourdieu), uma vantagem política adicional, ou mesmo uma satisfação pessoal por sentir-se
responsável pela desigualdade social (alívio da culpa).
As regras de funcionamento da Sociedade São Vicente de Paulo (Arquivo Nacional, caixa
575, código 173) expressam bem o ritual do dom e do contra dom citados acima. Considerava-
se como objetivo precípuo da Associação “levar consolações aos enfermos e aos encarcerados, de
instruir as crianças pobres, desamparadas ou reclusas, e de prestar socorros religiosos aos que deles
carecerem em artigo de morte.” Para a realização desses nobres intentos, eram realizadas reuniões
em que os sócios publicamente revelavam a quem eles pretendiam ajudar. Refere-se a esta prática
o artigo 20 de seu estatuto:
Cada membro é chamado por sua vez pelo Presidente, e diz em voz alta o que pede e
para quantas famílias. Quando a isso o convidam, dá informações sobre essas famílias. Os
socorros devem ser levados exatamente aos pobres no intervalo, que decorre de uma sessão
a outra. A ocasião, o número e o modo das visitas ficam cometidos à prudência de cada
membro, como também os meios que hajam de empregar-se para introduzir no seio das
famílias o amor da religião e a prática dos seus deveres. Ouvir-se-ão atenciosamente com
benevolência aquelas pessoas que pedirem regras para o seu comportamento, ou conselhos
em lances difíceis, e o Presidente, ou qualquer outro membro, dar-lhes-á as respostas que
lhe forem sugeridas pela sua experiência e caridade.
Com base nas reflexões acima expostas, pode-se aventar que as experiências de ajuda
mútua sejam resultantes de escolhas individuais. No entanto, o foco sobre as instituições e não
sobre os indivíduos tem revelado o contrário. Predominava um código de valores tacitamente
compartilhados que regulava as ações do Estado e das associações. Nos casos analisados, tratava-se
de associações que, à revelia de sua denominação - por elas próprias conferidas ou impostas pelos
membros do Conselho de Estado - tinham como principal valor a ser preservado o da ajuda mútua.
Nos levantamentos feitos por Donillen Loseke (1997) dos discursos em prol da filantropia,
publicados na imprensa nova-iorquina entre os anos de 1912 e 1992, inferiu-se que havia diferentes
tipos de moralidades que condicionavam tais práticas, como o da moralidade sagrada religiosa,
a moralidade sagrada da democracia comunitária, a moralidade econômica do capitalismo
individualista e a moralidade humana da compaixão, o que a levou a afirmar que:
Pedindo a palavra o senhor Cruz Teixeira a faz ver a todos os senhores que se acharam
reunidos demonstrando o quanto era inteligente, a pessoa do senhor Santos Delgado que
sabiamente conhecia o reger os destinos de uma associação, e convicto nisso propunha que
fosse o mesmo senhor proclamado Presidente, que sendo posto a votos, foi unanimemente
aprovado. (grifos nossos)
Sociedade São Vicente de Paulo (Arquivo Nacional, caixa 575, código 173), também exclusivamente
filantrópica, submeteu seu estatuto ao Conselho de Estado. Por tratar-se de cópia traduzida de
estatuto francês, o Conselho condicionou a sua aprovação à realização de inúmeras mudanças,
revelando um tratamento diferenciado para associações de um mesmo perfil. Como se vê, o afã do
Estado em regulamentar e fazer-se presente na construção de uma imagem de guardião da justiça,
da ciência e das letras esvaía-se na prática de favorecimentos individuais de caráter personalístico e
na discriminação infundada de alguns setores sociais, revelando os limites e as contradições de um
Estado portador de um discurso liberal e isonômico.
Desta forma, as práticas que retratam tais valores devem ser lidas como artefatos culturais
para os quais se deve estar atento sobretudo em suas formas de expressão que são a linguagem,
os rituais e os símbolos. É preciso, então, perceber como a ideia da ajuda mútua foi construída e
expressa e como se reproduziu a retórica da doação. Em síntese, na presente pesquisa não se analisa
o comportamento do doador como expressão de mero interesse individual pela ajuda mútua sem
levar-se em conta a presença de uma ética social internalizada que impulsione as ações cooperativas.
Considerações finais
Como vimos, uma nova história dessas formas de associação poderia contribuir para uma
história social dos valores normativos forjados na sociedade brasileira. Percebe-se que em algumas
culturas a responsabilidade social é mais valorizada que em outras. A prática da ajuda mútua é
distinta em cada sociedade. Estudos comparativos precisam ser feitos para o melhor entendimento
dessas realidades.
Ao usar alguns paradigmas da História Cultural, optou-se por renunciar à análise dos motivos
exclusivamente individuais responsáveis por gerar comportamentos mutualistas e filantrópicos que,
em geral, não levam em conta os processos culturais gerais em andamento. Acredita-se que havia
uma cultura solidária que reforçava valores de cooperação e de ajuda mútua.
Destacou-se também o caráter dúbio das associações, pois nelas se mesclavam valores
tradicionais como os da economia moral do dom e dos valores contemporâneos como os do lucro.
Compartilhavam suas arrecadações de uma maneira solidária e cooperativa, mas também excluíam
sócios inadimplentes (mutuais) ou recusavam-se a ajudar aos pobres que não se comportavam
segundo suas expectativas (filantrópicas), além de desconfiarem de seus membros.
Embora possam aparecer como espaços de constituição de uma identidade de classe,
reproduziam lideranças estabelecidas no poder, na medida em que enalteciam líderes políticos por
meio de várias práticas simbólicas, a exemplo da nomeação de pavilhões em homenagem aos mais
ilustres contribuintes, o agradecimento público na imprensa local de alguma oferta mais generosa
de algum político destacado ou o envolvimento em disputas eleitorais em favor de um ou outro
candidato, cuja relação com a associação seja mais próxima.
Estratégias populares de
sobrevivência: o associativismo
urbano no Rio de Janeiro 21
Este capítulo foi publicado anteriormente sob o formato de artigo: VISCARDI, Cláudia. M. R.. Estratégias Populares de Sobrevivência:
21
Mutualismo e Filantropia no Rio de Janeiro Republicano. Revista Brasileira de História (Impresso), v. 29, p. 291-315, 2009.
laços de solidariedade entre si, responsáveis pelo fortalecimento de elos comunitários, sem os quais
dificilmente se manteriam vivos. Ações simples como o cuidado com as crianças dos vizinhos, os
pequenos empréstimos, o abrigo voluntário a quem dele não dispusesse, entre outras colaborações,
são fartamente encontradas nas mais diversas comunidades carentes, desde tempos imemoriais.
Por esta razão, Robert Castel (1998, p.43) chamou-nos a atenção para o personagem que adveio no
novo roteiro inaugurado com a implantação do capitalismo no campo: o “desfiliado”. Para o autor,
este personagem se definia como o trabalhador, que ao não encontrar mais condições de ocupação
no campo, em razão das mudanças lá introduzidas, abandonava a sua comunidade de origem e se
lançava numa aventura nova em busca de sobrevivência, normalmente, migrando das áreas rurais
para as cidades. Tal movimento migratório rompia com os laços de proteção comunitária em que se
enredava, tornando-o um desfiliado.
Os pobres possuem a sua disposição algumas estratégias de superação da pobreza. Mas
elas podem ser agrupadas em duas modalidades de escolha, raramente excludentes: o apelo por
proteção de alguém que dispõe de bens disponíveis a serem doados ou o recurso à ajuda mútua, no
qual o próprio grupo se apoia, estabelecendo redes de colaboração entre seus membros.
Daí decorrem dois tipos de relação social. No primeiro caso, o outro a quem se recorre pode
assumir a face de uma Igreja, do Estado, do cidadão benemérito, do coronel e outras tantas variações que
se encaixam bem no conceito de paternalismo. Tal relação tende a ter um trajeto verticalizado, na qual
o doador estabelece com o receptor uma hierarquia cujo tom, à revelia das intenções ou motivações,
será o do poder de quem doa sobre quem recebe. Nesta situação, o receptor se encontrará submetido
ao doador, mesmo que o último não se utilize desta relação em seu próprio proveito. No segundo
caso, o outro é um igual, aquele que compartilha das mesmas necessidades e potencialidades. Juntos,
desenvolvem relações de reciprocidade que tendem a ser mais balanceadas. Todos contribuem e
todos recebem a contribuição. Realçam o ethos da obrigação mútua e a responsabilidade coletiva pelo
bem-estar dos outros. Neste contexto, as relações tendem a ser mais horizontalizadas e as hierarquias
menos definidas. A dependência persiste, mas assume um caráter mútuo.
A definição e a mensuração da pobreza sempre se constituíram em problema para os
cientistas sociais e, sobretudo, para os historiadores, na medida em que o conceito variou no tempo
e no espaço. Para os fins desta pesquisa, optou-se por adotar um conceito mais geral, por ser mais
adequado à realidade brasileira nas primeiras décadas do século XX, foco do presente artigo.
Udaya Wagle (2002, p.163) sugere a junção de três referenciais para que se possa conceituar
melhor a pobreza: o referencial econômico, o capacitário e o da exclusão social. Desta forma, a
autora entende a pobreza como a ausência de renda e riqueza (econômico); de educação e saúde,
condições que capacitam os indivíduos a adquirirem renda ou riqueza (capacitário); e a presença
da exclusão étnica ou de gênero, o que faz com que os indivíduos estejam impedidos de participar
politicamente da vida cívica e cultural de uma sociedade (referencial da exclusão social).
Neste sentido, a recorrência à filantropia ou ao mutualismo pode ser lida como duas das
inúmeras alternativas disponíveis aos pobres para a superação de determinadas carências, resultantes da
situação de pobreza. Por meio da filantropia era possível obter, em parte, condições para complementar
a renda, manter ou melhorar a saúde ou ter acesso à educação. No que tange à estratégia mutualista,
os trabalhadores poderiam garantir por meio dela, uma renda complementar, o acesso ao atendimento
médico, ou diminuir os efeitos da exclusão social, na medida em que tais sociedades ofereciam espaços
de formação de uma cultura cívica e, eventualmente, de participação política.
É sobre uma dessas alternativas de enfrentamento da pobreza que pretendemos refletir
neste artigo. Para tal, escolhemos o recurso à ajuda mútua, por meio da participação dos trabalhadores
em associações mutualistas, embora a filiação a uma mutual estivesse longe de garantir imunidade
contra o empobrecimento. E que muitas vezes, recorrer-se à autoajuda ou submeter-se à caridade
não derivavam de escolhas racionais dos agentes vitimados pela pobreza, mas de inúmeros outros
fatores que os levavam à condição ou de sujeitos de sua própria sobrevivência, ou de objetos da boa-
vontade alheia, ou mesmo de ambos.
Fazem parte do debate sobre o mutualismo as teses que alegam ter sido o movimento
composto não por trabalhadores pobres, mas pela “aristocracia operária”. (HOBSBAWM, 1984, p.355-
372 e KIRK, 1985). Ademais, sabe-se que alguns indivíduos bem aquinhoados poderiam compor uma
mutual, embora não se constituíssem na maioria de seus sócios. A despeito de tais ponderações,
é inegável que o movimento associativo mutualista foi composto, sobretudo, por trabalhadores -
assalariados ou não - que por não serem ricos, precisavam garantir a sua sobrevivência e a de seus
familiares em momentos de infortúnio. Desta forma, as mutuais recrutaram preferencialmente seus
sócios entre os trabalhadores humildes, que não fossem totalmente destituídos ou marginalizados,
mas que delas necessitassem, por não disporem nem da proteção do Estado e nem de riquezas
acumuladas. Na ausência das mutuais, só lhes restaria a caridade alheia.
A proximidade entre tais estratégias de sobrevivência levou grande parte de seus agentes a
ter dificuldade no estabelecimento das fronteiras entre mutualismo e filantropia. Tanto no ocidente
europeu como no Brasil, muitas mutuais praticavam caridade e os legisladores tiveram problemas
em definir as sociedades como sendo de socorro mútuo, beneficentes, filantrópicas, seguradoras
privadas com fins lucrativos, ou mesmo sindicais. Simon Cordery (2003, p.108) afirma que no Reino
Unido, só a partir de 1860, se estabeleceu uma melhor distinção entre caridade e ajuda mútua,
após a ocorrência de mudanças culturais e políticas. No Brasil, em trabalho anterior, tivemos a
oportunidade de refletir sobre a ausência de distinções entre as duas práticas, ao final do século XIX.
Com o fim de fundamentar as reflexões aqui propostas, escolhemos como objeto de análise
a cidade do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XX. Pretendemos acompanhar de que
forma os pobres se ampararam mutuamente, em um período marcado pelo intenso processo de
modernização.
Em uma definição mais clássica, a modernização pode ser entendida como um conjunto
de mudanças sociais e políticas que acompanharam a industrialização. Ao longo deste processo,
ocorreu a expansão da autoridade pública e da cidadania. Para Bendix (1996, p.39), este intenso
movimento de mudança implicou na coexistência entre o tradicional e o moderno nos países em que
ocorreu, na medida em que a modernidade implantada foi necessariamente pautada pela tradição
acumulada ao longo dos anos anteriores.
No Brasil as primeiras décadas do século XX soaram sob o tom da modernização. O fim da
abolição havia retirado as amarras que freavam a expansão da cidadania. E o fim da Monarquia, ao
descentralizar as estruturas governamentais, permitiu uma maior expansão da autoridade pública.
No que diz respeito à coexistência entre o tradicional e o moderno, típica deste período
de transição, pode-se afiançar que o recurso à filantropia denotava a permanência de relações
paternalistas tradicionais, que sedimentavam a cultura política brasileira desde o período colonial.
Por outro lado, o recurso à ajuda mútua pode ser lido como uma estratégia típica dos contextos
onde o processo de modernização entrava em curso, na medida em que era capaz de conferir a
seus agentes valores muito difundidos pelo discurso liberal dos contemporâneos, tais como o da
respeitabilidade, autonomia, liberdade, entre outros.
Não pretendemos com tais relações afiançar que a modernidade, tão logo implantada, teria
posto fim às relações de caridade que interligavam pobres e ricos, receptores e doadores de ajuda.
Mas pode-se afirmar que o seu avanço, principalmente nos locais onde ocorreu significativa expansão
da cidadania, reduziu as estratégias populares de recorrer-se à filantropia. Abram de Swaan (1988,
p.10) destaca que nos países onde inexistia seguridade social, o apelo para a generosidade das
pessoas era muito grande. Após ser instituído o sistema de contribuição compulsória, que garantiu
aos pobres a proteção social necessária, retirou-se um pouco da tragédia e também um pouco da
magia relativa à religiosidade do homem ocidental.
Na Europa, o advento do Welfare State foi responsável pela redução significativa do
recurso à caridade, embora não tenha posto um fim definitivo às ações filantrópicas, mesmo em
seu território. Mas é incontestável admitir que tais ações voltaram-se majoritariamente para outros
países, internacionalizando as relações de caridade, que se tornaram mais impessoais. Atualmente,
as ONGS vêm cumprindo um papel cada vez mais efetivo na institucionalização deste tipo de ajuda.
Tendo por alvo a análise de uma das mais frequentes estratégias escolhidas pelos pobres,
como meio de suprir suas necessidades mais imediatas – o recurso à ajuda mútua – voltaremos
agora nosso olhar para o Rio de Janeiro republicano, enfocando este conjunto de experiências, na
então capital do Brasil.
levou em conta as de caráter mutualista, por ele qualificadas como entidades laicas, inicialmente
compostas por trabalhadores qualificados e de renda estável. Mais tarde, o fenômeno teria se
tornado mais difuso, ampliando o espectro de associados. Confere destaque especial às associações
dos funcionários públicos e às associações de trabalhadores por categoria ou empresa. Porém, o
autor não trata tais sociedades como mutualistas, embora o fossem em sua maioria. Talvez por
esta razão, tenha encontrado tão poucas mutuais no Rio de Janeiro republicano. Em que pese o
pouco relevo conferido ao fenômeno, enquanto espaço de representação de interesses, para ele o
movimento contribuiu com a explicitação de uma série de conflitos sociais, responsáveis por trazer
à tona a chamada “questão social”.
Mais de dez anos depois, Beatriz Kushnir (1996) abordou o tema, embora sua pesquisa não tenha
tido como objetivo precípuo estudar o fenômeno mutualista de forma global. Seu trabalho, acerca da
prostituição e sexualidade das chamadas “polacas”, identificou a existência de cinco sociedades mutualistas
nas cidades do Rio de Janeiro, Santos, São Paulo, Buenos Aires e Nova York. Tais sociedades atuavam
como mecanismos de proteção das mulheres – em sua maioria judias - em meio a situações adversas que
viviam. Cada uma das associações tinha uma sede social própria, um cemitério, uma sinagoga, além de
todo um aparato administrativo eficiente. Por meio das mutuais, aquelas mulheres em situação de risco
conseguiam reforçar uma identidade afirmativa, amenizando em parte os inconvenientes resultantes de
sua marginalidade social. Embora o conhecimento sobre a existência de tais sociedades seja relevante para
o entendimento do fenômeno mutualista, sabe-se que se constituíram em exceções, na medida em que as
mutuais, em sua maioria, eram espaços masculinos.
Cláudio Batalha, ao declinar-se sobre um conjunto variado de fontes, identificou que a maior
parte das sociedades de trabalhadores formadas na cidade do Rio de Janeiro, entre 1835 e 1899,
era de caráter mutualista. Em seu trabalho aborda as relações destas sociedades com a escravidão,
com o republicanismo e com o movimento sindical. Levanta a hipótese de que as mutuais eram os
únicos espaços legalmente disponíveis aos trabalhadores manuais que quisessem se organizar após
1824. Por esta razão, muitas mutuais se utilizavam deste precedente para atender ao seu objetivo
primordial, que era o da defesa profissional. Batalha leva em conta também as relações existentes
entre as mutuais, irmandades e corporações de ofícios, modalidades diferentes de organização da
sociedade civil, mas que compartilhavam uma série de valores, rituais e práticas comuns. 22
Mais tarde, o trabalho de Ronaldo de Jesus (2001:cap.3), focado nas relações entre o povo
e o Monarca, tal como Batalha, utilizou igualmente do conjunto documental disponível no Conselho
de Estado. Em sua análise destacou que algumas mutuais recorriam ao Império para requisitar
algum tipo de apoio, que lhes garantisse a subsistência. Quando conseguiam, podiam usar o prefixo
“Imperial” em seus nomes. Destaca a existência de algumas mutuais compostas exclusivamente
22
Batalha (1999) baseou-se em documentos disponíveis na Secretaria de Negócios do Conselho de Estado, composto de estatutos
e algumas atas que para lá eram endereçados pelas mutuais, com o fim de obterem permissão para o seu funcionamento, em
obediência à lei número 1083 e ao decreto 2711, ambos de 1860. Além desses, se utilizou de dados de almanaques e demais
levantamentos estatísticos feitos por contemporâneos do fenômeno.
por escravos, algumas delas formadas para financiar a compra de alforrias. Encontrou outras, de
caráter menos popular, que recebiam o apoio de setores da elite, levando-as a travar compromissos
políticos que resultaram, na maioria das vezes, em restrição de sua autonomia.
Em levantamento posterior realizado sobre a mesma documentação, o autor encontrou
239 associações funcionando no Rio de Janeiro, entre 1860 e 1889. Delas realçou as compostas
por trabalhadores como: ourives, tipógrafos, artistas da construção naval, maquinistas, alfaiates
e operários fabris. O autor identificou tais sociedades como espaços de construção de relações
de solidariedade horizontais e levantou a hipótese de que, a despeito das sociedades terem sido
marcadas pelos mecanismos tradicionais de dominação política, próprios da sociedade escravista
monárquica, suas experiências contribuíram para a formação de uma cultura emergente, específica
dos subordinados (Jesus,2006).
Recentemente, Vitor Fonseca (2008) voltou seu olhar sobre o fenômeno associativista da
cidade do Rio de Janeiro, de forma mais ampla, incluindo em suas análises as mutuais, as associações
filantrópicas, recreativas, religiosas, de lazer etc. Para a produção de um levantamento inédito do
fenômeno associativo na cidade, no período compreendido entre 1903 e 1916, o autor se utilizou
prioritariamente dos estatutos depositados no Registro Especial de Títulos e Documentos do Rio de
Janeiro, bem como de dados referentes a associações encontrados no Almanaque Laemmert. No
trabalho produzido consta um acompanhamento minucioso de todo o processo de regulamentação
jurídica do fenômeno associativo no Brasil, realizado tanto no Império, quanto na República. Destaca-
se, igualmente, a análise empreendida pelo autor sobre as sedes e diplomas de várias associações.
Para os fins deste capítulo, procuramos acessar uma documentação alternativa e
complementar às que foram pesquisadas, embora, em projeto anterior, tenhamos trabalhado
também com a documentação depositada no Conselho de Estado, da qual igualmente lançaremos
mão. Em assim sendo, nos utilizaremos de dois levantamentos das associações da cidade do Rio de
Janeiro, os quais foram produzidos no início do século XX.
O primeiro levantamento foi feito por Ferreira da Rosa, a pedido de Pereira Passos (Rosa,
1905). O autor publicou um livro ilustrado sobre a cidade do Rio de Janeiro, do qual consta um
breve histórico sobre o município e inúmeras informações sobre seu sistema viário, seus serviços de
instrução pública, polícia, abastecimento de água, sua economia e os seus serviços de assistência. Ao
final da obra há um anexo com 181 associações por ele conhecidas, no ano de 1902. Os dados foram
recolhidos de 1815 a 1904 (o livro foi publicado no ano seguinte). Por trabalhar com um pequeno
número de associações e com critérios mais homogêneos, os dados de Rosa são muito úteis.
Na gestão do prefeito Bento Ribeiro (1910-1914), o advogado, escritor e jornalista,
Ataulfo de Paiva, foi incumbido de realizar um segundo levantamento estatístico geral de todos os
estabelecimentos de assistência pública e privada, existentes na capital. Tal levantamento tinha por
fim produzir um diagnóstico que orientasse o combate à crescente pobreza que avassalava o Rio de
Janeiro. Neste levantamento foram incluídas as associações mutualistas. A encomenda, iniciada em
1903, só pôde ser concluída em 1922, quando foi publicada em edição comemorativa do centenário
de “nascimento” do Brasil (PAIVA, 1922).
Para este fim, Paiva organizou três tipos diferentes de questionários, que foram enviados às
associações de auxílio mútuo, aos asilos e recolhimentos e a hospitais. Ademais, visitou quase todas
as instituições sobre as quais obteve informações por meio do questionário. Foram recenseadas 624
instituições, que se encontravam em funcionamento entre os anos de 1912 e 1920 no Rio de Janeiro.
Com base nesta importante documentação, discutiremos o fenômeno na cidade do Rio de
Janeiro a partir de três eixos: a composição do movimento, sua dimensão e sua trajetória.
contexto em que a maioria das mulheres não se encontrava no mercado de trabalho, sua interação
social era dificultada pela sua permanência no lar. Daí sua pouca participação nos espaços de
sociabilidade que se multiplicavam nas cidades, a partir do final do século XIX.
Em relação à cidade do Rio de Janeiro, o levantamento de Paiva nos oferece dados referentes
a mulheres e estrangeiros. Como tais dados não foram levantados de maneira uniforme, Paiva só
apresenta o número deles para o ano de 1912. Não obstante, os resultados são bastante ilustrativos,
sendo interessante reproduzi-los.
Os dados apontam que as associações eram compostas em sua grande maioria por homens
(89%) e entre eles, 38,92 % era de estrangeiros. Tendo sido a cidade um polo assaz atrativo para
os imigrantes, e sendo o mutualismo já uma tradição em seus países de origem, era normal que os
estrangeiros se associassem em grande número. Ademais, as mutuais funcionavam para eles como
espaços de sociabilidade, fortalecimento e conservação de suas identidades nacionais, na medida
em que reproduziam as divisões de seus respectivos países na Europa.
Nos Estados Unidos os negros eram proibidos de se filiar a mutuais de brancos. Por esta
razão criaram as suas próprias mutuais, que por sua vez, excluíam os brancos (CORDERY,1996, p.87).
No Brasil havia algumas mutuais de libertou ou mesmo de escravos, mas em muito menor número.
Nos estatutos aos quais tivemos acesso, que compunham a documentação já citada do Conselho
de Estado, não encontramos muitas restrições à cor. Mas a maior parte das mutuais de imigrantes
impunha restrições a sócios de outras nacionalidades.
Em levantamento feito sobre esta documentação, encontramos vinte e uma mutuais
reconhecidamente de imigrantes num universo de 123 sociedades, no período entre 1860 e 1882. Para
compor uma amostra mais homogênea, retiramos do levantamento as associações patronais, filantrópicas,
religiosas, recreativas e de lazer, científicas ou literárias, montepios, cooperativas e seguradoras, cujos
processos também integravam o conjunto documental. Entre elas havia: cinco portuguesas, três francesas,
três alemãs, três italianas, duas suíças e cinco de outras nacionalidades variadas.
Tal como no Brasil, no Reino Unido a principal discriminação era de gênero. Embora as
mutuais masculinas fossem mais numerosas, havia sociedades que aceitavam mulheres ou eram
compostas só por elas, especialmente do final do século XVIII às primeiras décadas do XIX. Em geral,
tinham pouca duração e não sobreviviam mais que trinta anos. Em boa parte destas mutuais, as
funções administrativas, que demandavam um maior conhecimento técnico, eram entregues a
homens (NEAVE, 1996, p.45).
Retomando os dados de Paiva, percebe-se pelo quadro que as mulheres, sendo brasileiras
ou estrangeiras, compunham um percentual de aproximadamente 11% do número total de
sócios, sendo que o número de brasileiras era cinco vezes maior que o de estrangeiras. Ou seja,
independente da nacionalidade, as mulheres que moravam no Rio foram majoritariamente excluídas
do associativismo. Estes números referem-se a todos os tipos de sociedades, não somente as
mutuais. Como as mulheres tinham uma maior participação em associações de caráter religioso ou
filantrópico incluídas na amostra, o percentual de participação feminina nas mutuais deve ter sido
ainda mais baixo.
com um universo de 319 instituições, com um número total de sócios que variou entre 204.008
(1918) a 205.707 (1915). O gráfico abaixo ilustra o “movimento social” do Rio de Janeiro observado
nos dois levantamentos.
300000
250000
200000
150000
100000
50000
0
1912 1913 1914 1915 1916 1917 1918 1919 1920
O gráfico nos mostra que houve pouca variação do número de sócios no decorrer da segunda
década republicana, o que indica que o fenômeno associativo se manteve constante, ao longo do
período. O que chama mais a atenção é o alto número de sócios, de 645 a 715 por instituição,
aproximadamente, (para a obtenção deste número, calculamos a média entre o primeiro e segundo
levantamentos, ano a ano). No entanto, estudos anteriores já haviam revelado que o Distrito Federal
possuía o maior número mutuais do Brasil Silva Jr. (2005, p.53). Segundo os dados apresentados, em
1882 o DF possuía 56,07% das mutuais do país e em 1917, 23,28%. Em ambas as ocasiões, tiveram
o maior percentual do país.
Se levarmos em conta que o total de homens em 1910, no Distrito Federal, era de 496.284,
incluindo-se entre eles as crianças, o número de sócios em 1912 parece, de fato, superestimado
(282.937 sócios, 57%), embora não impossível de ter ocorrido. O número se torna alto, apenas
quando comparado com outras realidades anteriormente estudadas no Brasil. 23
Além do levantamento de Paiva, o trabalho de Ferreira da Rosa (1905) pode nos ajudar a
entender melhor a dimensão do fenômeno. Segundo consta em sua obra, havia na cidade do Rio de
Janeiro, no ano de 1902, 170 mutuais (retirou-se da listagem as associações que não se configuravam
como tais). Elas possuíam, no conjunto, 86.241 sócios (incluídos os remidos), o que produz uma
Os dados populacionais foram obtidos em: (Ministério da Indústria e Comércio. Diretoria Geral de Estatística, Anuário Estatístico do
23
Brasil, 1908-1912, Território e População. Rio de Janeiro: Tipografia da Estatística, 1916, volume 1, p. 310. Para o Rio Grande do Sul,
SILVA JUNIOR (2005, p.83) afirma que nos anos de 1917 e 1924 havia 148 mutuais no estado. Os dados que encontramos para Minas,
em 1923, apontam para a existência de 178 sociedades mutuais e sindicais com uma filiação de 2,4% dos homens adultos do estado
e com uma média de 202 sócios por associação (VISCARDI E JESUS, 2008, p.41-42). TÂNIA DE LUCA (1996, p.617), em seu estudo
sobre o mutualismo paulista, afirma que a cidade de São Paulo, no início do século XX, possuía 8% da população da cidade associada,
número nunca igualado depois.
média de aproximadamente 510 sócios por instituição. Esta média é um pouco menor que a obtida
por Paiva, mas ainda alta em relação à população masculina adulta da cidade. Havia em 1902,
727.919 habitantes no Distrito Federal, entre homens, mulheres e crianças. Considerando-se que
aproximadamente 57% deste total era de homens (incluídos entre eles as crianças) o percentual de
associados encontrado por Rosa correspondia a 20,78% deste universo, número que acreditamos ser
mais próximo da realidade, por sua amostra ser mais homogênea e por coincidir com levantamentos
feitos posteriormente.
Se compararmos os dados da capital brasileira com os de outras capitais mundiais,
os números parecerão bastante razoáveis. Para Buenos Aires, estima-se que em 1914 a metade
dos trabalhadores portenhos encontrava-se filiada a algum tipo de sociedade de socorro mútuo
(MUNCK, 1998). Para o caso inglês (KIDD, 1999, p.120-121e CORDERY, 2003, p.68), estima-se que
60% dos homens adultos eram associados a uma mutual que incorporava trabalhadores e setores
médios. Os dados para os Estados Unidos, levantados mais recentemente por David Beito (2000,
p.2), apontam que em 1920, para cada três homens adultos, um pertencia a mutuais, que eram
compostas principalmente de negros e imigrantes. No Canadá (PALMER, 1996, p.112), 30% dos
homens trabalhadores eram mutualizados. Na cidade do México (HART, 1996, p.595), em 1873,
havia mais de 100 mutuais e cerca de um quinto de sua população participava das associações.
O levantamento de Ferreira da Rosa (1905) nos possibilitou uma explicação para o alto
número de sócios encontrados no Distrito Federal, quando comparado com outras cidades
brasileiras. Pudemos perceber que havia algumas mutuais que tinham um número muito grande
de membros e elas foram responsáveis pela elevação da média, tais como a dos comerciários24,
ferroviários, trabalhadores navais, as de portugueses entre outras.
O levantamento de Vitor Fonseca (2008, p.120), feito com base no Registro Especial de
Títulos e Documentos do Rio de Janeiro, entre os anos de 1815 a 1914, encontrou 346 mutuais. Mas
a documentação por ele utilizada não lhe fornecia o número de sócios. A despeito deste problema,
o seu levantamento atesta que o número de mutuais era maior do que o encontrado por Paiva e por
Rosa. No ano de 1912, Paiva listou 220 mutuais e nos levantamentos feitos para o período posterior
(1913-1920) ele trabalhou com um universo de 216 mutuais (PAIVA, 1922, p. 765 a 771 e 820 a
831). Como o método utilizado por Paiva foi o envio de questionários, muitas associações podem
ter se eximido de lhe responder, o que torna os números encontrados por Fonseca mais próximos
da realidade, embora devamos admitir a hipótese de que algumas mutuais podem igualmente ter
deixado de se registrar.
Em que pesem as incertezas em relação aos números, pode-se afiançar algumas conclusões
em relação ao tema. A primeira é que a cidade do Rio de Janeiro teve, a partir da segunda metade do
século XIX, um número expressivo de mutuais, certamente, o maior do país. Este número se ampliou
Na relação de ROSA (1905, p.194) havia três mutuais que reuniam os comerciários: a Sociedade dos Empregados do Comércio do
24
Rio de Janeiro, fundada em 1880 e que tinha 13.542 sócios, a Sociedade Protetora dos Empregados no Comércio, fundada em 1902
e que tinha 2569 sócios e a Sociedade Beneficente dos Empregados do Comércio, fundada em 1903 com 510 sócios, no ano de sua
fundação (os demais dados referem-se ao ano de 1902).
consideravelmente ao longo das duas primeiras décadas do século XX, atingindo o mínimo de 170 e
o máximo de 346 mutuais. As mutuais possuíam em média de 510 a 715 sócios, número elevado em
relação aos padrões encontrados para outras cidades brasileiras, mas proporcionalmente próximo
de algumas capitais no exterior. Estes indicadores apontam para um dinamismo muito grande da
sociedade civil, que não se limitava às mutuais.
Tal dinamismo é compreensível em razão das especificidades da então capital nacional.
Era a maior cidade do país e tornou-se polo atrativo de um grande número de imigrantes. Seu
desenvolvimento comercial, industrial e do setor de serviços propiciava a ocupação de diferentes
setores de mão-de-obra qualificada, sócios em potencial das mutuais. Como centro político do
país, tinha condições mais propícias à emergência e consolidação de uma cultura associativa. Este
conjunto de características fez com que o Rio de Janeiro atingisse níveis expressivos de organização
de sua sociedade civil.
3.4 Trajetórias
Com base ainda nos levantamentos de Paiva, separamos as associações listadas por
modalidade, para identificarmos o número de mutuais no conjunto do associativismo do Rio de
Janeiro. O quadro abaixo sintetiza os resultados obtidos:
25
Para o caso italiano ver: TOMASSINI, 1996, p. 228-231. A contribuição do mutualismo italiano para o processo de formação de uma
cultura cívica no país pode ser observada em: PUTNAM, 2002.
TÂNIA DE LUCA (1996, p.620) destaca o declínio das sociedades paulistas a partir da Lei Elói Chaves (1923), que originou os primeiros
26
fundos de aposentadoria e pensões no Brasil. A partir da Lei, as mutuais passaram a agir de forma complementar, preenchendo as
lacunas deixadas pela ausência do cumprimento integral da Lei. SILVA JR. (2005, p.40-43) demonstra a desaceleração do fenômeno no
Rio Grande do Sul a partir da década de 1940, mas considera esta informação uma provável distorção de registros. Para o fenômeno
brasileiro geral ver VISCARDI E JESUS (2008, p.40-43).
Como se observa, do movimento associativo pesquisado pelo autor para a cidade do Rio
de Janeiro, na segunda década republicana, as mutuais representavam a grande maioria, entre 50
a 70% do geral. É difícil afirmar que a diferença entre o número de mutuais e sindicatos tenha sido
assim tão grande. Entre as associações listadas por Paiva como “beneficentes” estavam incluídos
alguns poucos sindicatos que, além de atuarem como organismos de resistência, prestavam também
algum tipo de assistência a seus associados e, por esta razão, foram qualificados pelo autor como
“sociedades beneficentes”. Os demais sindicatos não foram incluídos em seu levantamento, daí o
seu pequeno número.
No que diz respeito aos benefícios pagos pelas mutuais aos sócios, constam do levantamento
de Ataulfo de Paiva as relações das despesas efetuadas pelas associações ao longo dos anos, bem como
o volume de seu patrimônio. Embora os dados para 1912 não obedeçam ao mesmo critério utilizado
para os anos posteriores, percebe-se que a maior parte dos gastos das associações – retirando-se
o item despesas gerais, que foi o sempre o maior - era realizado com o pagamento de pecúlios ou
pensões. Em terceiro lugar, os maiores gastos eram com despesas médicas e, por último, com funerais.
Estes representavam, em geral, de um terço à metade dos valores gastos com pecúlios ou pensões.
Entre as mutuais dos Estados Unidos predominavam aquelas que ofereciam socorros em
caso de doença ou funerais. Em segundo lugar, e com mais capital, as que ofereciam seguros de
vida (BEITO, 200, p.1 e 14). Já o mutualismo inglês era mais próximo do modelo brasileiro do que
o estadunidense. A maior parte dos pecúlios pagos aos sócios era composta por auxílios funerais –
que eram as mutuais mais populares - e depois os auxílios a doentes. O pagamento de seguros de
vida – raros no Brasil e comuns nos Estados Unidos – era propiciado somente pelas grandes mutuais
– conhecidas como Ordens – que se espalhavam por todo o território britânico, bem como sobre
suas colônias e ex-colônias, compostas por uma série de sociedades afiliadas (NEAVE, 1996, p.55).
Tais coberturas não resolviam o problema da pobreza. Mas garantia àqueles que pudessem
ser incluídos, pelo menos um recurso adicional em caso de necessidade. Ter um funeral digno, garantir
um seguro para os familiares após a morte ou eximir-se de recorrer à caridade eram motivações
suficientes para que muitos trabalhadores, em diversas regiões do globo, se empenhassem na
edificação e manutenção dessas organizações sociais.
3.6 As Insolvências
100000
80000
60000
40000
20000
0
1913 1914 1915 1916 1917 1918 1919 1920
Fonte: Para a elaboração deste gráfico e do seguinte, utilizamos os dados de PAIVA, A. de (1922).
A leitura do gráfico aponta para uma ligeira evolução patrimonial das sociedades até 1915,
com abrupta redução nos anos seguintes. A queda se estabiliza a partir de 1916 e apresenta uma
leve tendência de crescimento até 1920, mas nunca atinge o nível em que se encontrava antes, o
que indica que ao longo do período houve perda patrimonial. Acredita-se que a queda se explica
pelo impacto que a Primeira Guerra Mundial teve sobre a economia brasileira, inicialmente levando
à carestia, ao desemprego e à desaceleração econômica, problemas amenizados a posteriori. Pode
ser também que fizesse parte da trajetória de insolvência que se anunciava para grande parte das
mutuais. Como foram criadas, em sua maioria, ao final do século XIX, no contexto de crise possuíam,
em média, de 20 a 30 anos de existência, tempo suficiente para o envelhecimento de seus primeiros
sócios. Este tempo de vida de uma mutual levava sempre ao aumento de seus gastos, nem sempre
compensados pela adesão de novos sócios jovens. Como o levantamento não prossegue, não se
pode saber se, de fato, tais sociedades tiveram seu patrimônio totalmente depreciado ao final da
década de 1920, como ocorreu em outros lugares no Brasil.
A análise das relações entre as receitas e despesas ajuda a explicar as oscilações do
gráfico anterior.
20000
15000
10000
5000
0
1913 1914 1915 1916 1917 1918 1919 1920
Receitas Despesas
Nas relações entre receita e despesa percebe-se que, pelos levantamentos de Ataulfo
de Paiva, no conjunto, as sociedades não foram deficitárias em suas contas correntes ao longo do
período, embora o gráfico anterior nos mostre que elas abriram mão de seu patrimônio para manter
tal situação, em períodos de crise.
Pelo gráfico nota-se, igualmente, que os anos mais difíceis foram os de 1916, 1917 e 1918,
por indicarem uma descapitalização das sociedades. Há uma queda na arrecadação nos anos de
1915 e 1916. Esta situação só começa a se alterar a partir de 1919, apontando para uma tendência
de crescimento, que se refletiu também na evolução patrimonial das associações, conforme apontou
o gráfico acima.
A situação financeira das mutuais era agravada pelo hábito de não se cobrar mensalidades
mais altas para os idosos, que naturalmente tinham maior possibilidade de adoecerem. Ao mesmo
tempo, não se esforçavam muito em atrair sócios mais jovens. Tal situação foi destacada por um
estudioso do mutualismo irlandês, que alegou que muitas mutuais preferiam filiar os mais idosos,
porque acreditavam que o momento da morte dependia menos da idade e mais da vontade de
Deus (CAMPBELL, 1996, p.69). Desta forma, não se pode caracterizar tais comportamentos como
economicamente irracionais, pois encontravam suas justificativas no ambiente cultural que os
principais agentes compartilhavam.
No que tange às modalidades de organização, nos Estados Unidos (CORDERY, 1996, p. 92-
93), as primeiras a falir foram as afro-americanas. As étnicas não conseguiram atrair a segunda e
terceira gerações, já nascidas no país, levando a seu esvaziamento progressivo. Na década de 1920
houve uma considerável queda no número de mutuais, e em 1930, o movimento perdeu 378 mil
membros. Por outro lado, no Rio Grande do Sul (SILVA JR. 2005, p.146) e em Minas Gerais, as de
imigrantes foram as mais duradouras (VISCARDI E JESUS, 2008, p.30).
Com o tempo, o equilíbrio entre sociabilidade e seguridade – dois princípios que expressavam
a identidade das mutuais – foi se tornando um problema para elas. Tão logo a falência se anunciava,
os gastos com a sociabilidade iam sendo diminuídos, muito a contragosto dos gestores, para que a
seguridade pudesse ser mantida. Tais decisões sempre representavam conflitos para os pares, que
muitas vezes, sentiam que os valores que haviam originado a associação estavam sendo postos em
segundo plano, em prol de outros como os do lucro e da competição. Tais conflitos expressavam
bem as contradições de um período de modernização.
Considerações finais
Segundo análises existentes para a Inglaterra (SWANN, 1988, p.150, CORDERY, 2003, p.154-
173 e GILBERT, 1965, p.551-563), os trabalhadores, que antes apostavam nas mutuais como a melhor
estratégia de escapar da pobreza, perceberam que após a falência do mutualismo e das iniciativas
privadas representadas pelas seguradoras, só lhes restava recorrer ao Estado. Tal decisão não foi
fácil, já que tinham que renunciar a valores que deram origem à criação das mutuais, tais como os de
voluntarismo, autonomia, respeitabilidade, entre outros. Mas no contexto de adversidade, o cálculo
racional levou-lhes a aderir a propostas de inúmeros “reformadores” que defendiam que o Estado
assumisse o ônus pela proteção social.
Na França, tal como na Inglaterra, as mutuais rejeitaram inicialmente a contribuição
compulsória, pois viam com desconfiança a intervenção do Estado sobre os princípios da livre-escolha.
Esta realidade foi mudada após o repentino aumento das demandas por proteção social, em razão da
Grande Guerra. A mudança de conjuntura levou as mutuais a apoiarem a intervenção do Estado, desde
que fossem envolvidas no processo de implantação das políticas sociais (DREYFUS, 1996, p.214-216).
No Brasil, pouco se sabe acerca do papel que as mutuais tiveram na proposição das políticas
de amparo social. Pesquisas neste campo apontam para o estabelecimento de alguns benefícios para
os trabalhadores, sobretudo a partir dos anos vinte e, muito mais tarde, da Previdência Social. Se
tais iniciativas resultaram da ação dos reformadores, das conquistas dos trabalhadores organizados
ou das concessões do Estado, a historiografia brasileira tem discutido. Mas o papel das mutuais
neste processo ainda necessita ser investigado. Coloca-se aí uma nova pergunta, que ainda aguarda
por resposta, entre tantas outras referentes ao tema.
A opção pelo mutualismo pode ter significado para aqueles que a fizeram uma estratégia
fundamental de manutenção de um importante valor compartilhado pelos trabalhadores, o da
respeitabilidade. Os benefícios recebidos nos momentos de necessidade eram tidos como direitos
e não como favores. O mesmo não acontecia com aqueles que dependiam da caridade alheia. É
praticamente impossível identificar se os pobres recorreram mais às mutuais do que à caridade, pois
se os números são incertos para a primeira opção, são ainda mais fluidos em relação à segunda. O
que é patente, no entanto, é que antes do estabelecimento das políticas protecionistas, os pobres
recorreram a diferentes estratégias de sobrevivência, mais ou menos dignas. E que a permanência da
filantropia no Brasil, em larga escala até os dias de hoje, nos remete à distância que nos encontramos
em relação às experiências mais igualitárias de outras nações, e de como a extensão da cidadania
não acompanhou a expansão de nossa autoridade pública.
Aspectos culturais
do mutualismo 27
Cláudio H. (org.). Organizar e proteger: Trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX). Campinas: Unicamp,
2014.
28
Para Belo Horizonte, além de nossa coleta pessoal, agregamos ao nosso banco de dados parte de um vasto material coletado sob a
coordenação dos pesquisadores Mário Lanna Junior, Andrea Casanova Maia e Deivison Amaral. Aos parceiros agradeço a cessão.
seus pares. Por meio de festas e rituais eram fortalecidos os elos entre seus membros, apaziguados
os eventuais conflitos e equacionadas as mais marcantes diferenças.
Certamente o mutualismo não foi a única forma por meio da qual as pessoas se associavam.
Desde o período de efetiva ocupação do território brasileiro pelos colonizadores portugueses,
experiências associativas previamente existentes na Metrópole foram para cá transplantadas,
a exemplo das corporações de ofício e das irmandades leigas (BOSCHI, 1986, BORGES, 2005,
MARTINS, 2008). O final do século XIX acompanhou o crescimento das mutuais, cooperativas,
montepios, sindicatos, clubes recreativos e esportivos, ligas de proteção e defesa da população
contra epidemias, instituições filantrópicas, associações científicas e literárias, entre outras. Esta
intensa mobilização social marcou o processo de modernização do país, ocorrido a partir das
mudanças antes referidas.
Em que pesem as diferenças entre tais modalidades associativas, elas guardavam um
elemento em comum que as unificava, o que às vezes pode induzir o pesquisador à dúvida,
da mesma forma que induzia os próprios contemporâneos, como tivemos oportunidade de
demonstrar nos capítulos anteriores. Trata-se do que Mary Clawson (1989, p.10 e ss) chama de
“fraternalismo”. Ao estudar diferentes associações nos Estados Unidos, a pesquisadora realçou
a existência de algumas características comuns às corporações de ofício, irmandades, lojas
maçônicas, mutuais e aos sindicatos. Para ela, tais associações compartilhavam de um mesmo
modelo cultural caracterizado pelo reforço da masculinidade, do corporativismo, da ritualização e
da propriedade privada. Este conjunto de características mais aproximava tais associações do que
as diferenciava entre si. O modelo teria perpassado por todas estas modalidades associativas, a
despeito de suas variações ao longo do tempo. Acreditamos que esta abordagem também se aplica
ao nosso associativismo, embora suas características sejam diferentes, fundadas naturalmente
em nossas próprias peculiaridades.
Por esta razão, o fenômeno mutualista, em toda a sua complexidade, apresenta
elementos comuns em relação a outras modalidades de organização da sociedade civil, mas
ethos também delas se diferencia. As mutuais eram herdeiras das tradições pregressas. Tal herança
mutualista
fraternal, derivada das corporações ou das irmandades, os rituais herdados da maçonaria e das
próprias vivências religiosas perpassaram o universo das mutuais, incutindo-lhes valores, práticas
e representações simbólicas muito semelhantes às do passado. Talvez daí derive a dificuldade
em demarcar fronteiras muito exatas entre elas. Propomo-nos a contribuir para esta reflexão,
tentando apreender melhor o que chamamos de ethos mutualista. A seguir destacaremos alguns
traços de sua composição.
4.1 O trabalho
A epígrafe acima reproduz um trecho de uma música de autoria de Alencar Mendes, ofertada
à Associação Beneficente Operária de Juiz de Fora (ABO). No momento em que o país acompanhava
a proliferação de movimentos grevistas e que muitos sindicatos protestavam contra a carestia e
reivindicavam um novo código do trabalho, a citada associação, que reunia vários trabalhadores
empobrecidos, era elogiada pelo seu amor ao trabalho.
Tratava-se de uma associação de caráter assistencial que deixava clara nos discursos de
lançamento de sua plataforma a rejeição à revolução e à anarquia, pugnando pelo respeito à lei
e à ordem. Passados três meses de sua criação, a entidade já possuía mais de 1000 membros. Tal
plataforma eminentemente reformista não impedia que a associação se mobilizasse em favor do
descanso dominical e protestasse contra o contínuo aumento de preços dos gêneros alimentícios.
Sua base era de trabalhadores, e por assim ser, não poderia estar indiferente às preocupações e aos
interesses da maior parte de seus associados. No entanto, a despeito da ebulição social em curso,
o trecho acima citado revela o enaltecimento do trabalho para os sócios, fonte de alimento para o
corpo e de alegria para a alma.
José Custódio da Silva Júnior, primeiro-secretário da associação, divulgava na imprensa
cópia de ofício enviado aos deputados mineiros em prol da aprovação de uma lei de proteção contra
acidentes de trabalho:
29
Jornal O Dia. Juiz de Fora, 22 de agosto de 1918, p. 2.
30
Jornal O Dia. Juiz de Fora, de 23 de novembro de 1918, p. 1.
Dias após, o orador oficial da mesma associação, Sr. Felippe Cohanier, protestava contra as
ameaças grevistas que assolavam o operariado de Juiz de Fora.31 Como se pode perceber, até então
a Associação oscilava entre um caráter mais assistencialista e reformista e uma preocupação com as
péssimas condições vividas pela maior parte de seus associados.
A última notícia que encontramos na imprensa sobre a Associação data de dezembro
de 1919. Eliana Dutra afirma que o movimento grevista de 1920 dividiu a associação e parte de
seus membros foi compor a Federação Operária (DUTRA, 1998, p. 85-89, 99-103,111, 131-132).
Sílvia Andrade reafirma o marco divisório constituído pela greve de 1920, a qual levou os novos
diretores da ABO a apoiarem o movimento grevista e, por esta razão, terem provocado uma crise em
suas bases, levando à formação da Federação Operária, claramente uma sociedade de resistência
(Andrade, 1987, p. 103-130).
Ao acompanharmos a trajetória desta Associação percebemos que ocasionalmente uma
associação de caráter eminentemente mutualista, ao reunir em seu seio muitos operários fabris, como
era o caso da ABO, num contexto de mobilização das classes trabalhadoras, aliada às mudanças em
sua gestão, poderia transformar-se numa outra modalidade de associação, a de resistência. Embora
não tenhamos encontrado mais exemplos equivalentes na documentação analisada, conforme
afirmamos anteriormente, trabalhamos com um universo superior a 154 associações mutuais, a
complexidade do movimento associativo no período nos remete a esta possibilidade, como também
ao seu inverso: associações sindicais mais preocupadas com a promoção de assistência a seus
membros do que efetivamente com a luta sindical.
O que se infere também a partir deste breve relato é a vinculação do mutualismo ao mundo
do trabalho e a edificação do trabalho como um valor positivo, reforçado pelos seus membros por
meio de vários instrumentos, como a música, o incentivo à formação profissionalizante, o reforço da
disciplina e da ordem. Os versos complementares da canção nos dão maiores informações:
O trabalho era bem visto pelas mutuais porque sua base, embora policlassista, era
majoritariamente composta por trabalhadores de pouca renda, conforme afirmamos nos capítulos
anteriores. Dificilmente uma mutual, em um contexto de agitação grevista, permaneceria distante
dos interesses da maioria de seus sócios. O que não implica em afirmar que dos sindicatos não se
31
Jornal O Dia. Juiz de Fora, 17 de dezembro de 1918, p. 1.
diferenciassem ou que neles se transmutassem. David Neave (1996, p.57-59), em sua análise do
mutualismo inglês, afirma que o simples fato de as mutuais terem bases trabalhadoras as conectava
diretamente às questões sociais. Mas a ética entre os trabalhadores mutualizados era mais próxima
a das classes médias e das elites do que a dos trabalhadores. Tendiam a reproduzir valores vitorianos
de comportamento.
Mutuais e sindicatos incluíam entre seus propósitos o “engrandecimento da classe”, o que
consistia em garantir aos trabalhadores melhores condições de vida e de trabalho. A diferença está
no caminho escolhido pelas mutuais para que este fim fosse atingido. Para elas, caberia aos próprios
trabalhadores contribuírem para um fundo social, capaz de financiar o seu lazer, o seu funeral e
uma pensão em caso de doença ou morte. Novamente, por trás desta concepção estava a crença na
autonomia da sociedade civil para a resolução de seus próprios problemas. As mutuais só recorriam ao
Estado para se legalizarem ou para solicitarem isenções de taxas para a organização de suas festividades.
Autonomia, autoajuda, independência em relação ao Estado compunham a essência das organizações
mutualistas, que muito mais próximas encontravam-se de uma sociedade cidadã do que aquelas que
se colocavam diante do Estado na condição de pedintes, como era o caso das filantrópicas.
Diferentemente de outras sociedades que lhes eram contemporâneas, as quais exigiam do
Estado uma intervenção maior para que fossem contempladas em suas necessidades, as mutuais
assumiam uma postura de maior autonomia, o que lhes garantia um papel relevante na construção
de um projeto de cidadania ativa e de acúmulo de cultura cívica a médio e longo prazo.
4.2 A Educação
Entre os valores mais importantes para as associações estava o da educação. Pelo menos
no conjunto das 58 mutuais sobre as quais temos informações mais amplas, a grande maioria delas
estabelecia como uma de suas funções o provimento da educação aos sócios e a seus descendentes.32
Era muito comum o investimento na organização de uma biblioteca ou na construção de escolas
noturnas, liceus de arte e ofícios, entre outras alternativas. A assinatura de revistas e jornais compunha
parte dos estatutos de muitas associações, dada a sua importância para os contemporâneos. Muitas
delas propunham a realização de cursos profissionalizantes, o que revelava o interesse de capacitar
melhor as gerações futuras, além de melhor qualificar seus sócios para o trabalho.
A Sociedade Operária Beneficente São José, tendo sido fundada em Belo Horizonte no
ano 1902, tinha entre suas finalidades a de manter uma escola primária noturna e oficinas de
artes e ofícios para aprendizagem dos filhos, tutelados e parentes dos sócios, podendo igualmente
qualquer sócio usufruir dessas vantagens.33 A Junta Auxiliadora dos Operários, fundada em
Nova Lima em 1902, preconizava entre seus princípios basilares o incentivo para que os sócios
Em nosso banco de dados possuímos 417 associações listadas, sendo que as mutuais (de ofício, mistas, étnicas, literárias e comemorativas)
32
correspondem a 36,92% do universo (154 sociedades). Deste universo temos informações mais abrangentes sobre 58 delas.
33
Jornal O Confederal, 2 de maio de 1907. Belo Horizonte, p. 2 e edição de 1 de julho de 1907, p. 4.
enviassem seus respectivos filhos às escolas primárias.34 O Centro Operário de Corinto, fundado
em 1922, tornava claro o motivo que o levava a investir na educação: para que os filhos dos
associados pudessem iniciar a vida prática, ou seja, tornarem-se trabalhadores mais qualificados
que seus pais.35 A União Operária Beneficente de Diamantina, fundada em 1891, definia-se como
uma sociedade de caráter beneficente e cultural. Para tal se propunha a promover os meios de
instruir e educar os operários, por meio da instituição de uma escola noturna e de uma biblioteca
para adultos, franqueada ao público, bem como reorganizar sua escola dramática.36 A Sociedade
Italiana Humberto Primo, que reunia parte da colônia italiana em Juiz de Fora, mantinha a sua
própria escola.37 Seus alunos eram convidados a participar de todas as suas festividades, compondo
paradas e desfiles em homenagem a lideranças que se queria prestigiar. A Associação Beneficente
Operária de Juiz de Fora, fundada em 1918, tinha como um de seus mais primordiais objetivos o
de criar um Instituto Profissional, o qual ofereceria aos filhos dos sócios o ensino prático de artes.
O Instituto seria aberto aos não sócios, mediante pagamento de mensalidades.38
Por meio desses inúmeros exemplos é possível identificar a presença de um valor comum
entre os sócios: o encaminhamento de seus filhos ao trabalho, perpetuando-se gerações de
operários. Na ausência de perspectivas mais amplas – como o ensino superior, por exemplo – os
trabalhadores associados planejavam garantir a seus filhos uma melhor formação técnica, sem
ousar ofertar-lhes uma capacitação que os qualificasse, por exemplo, para o trabalho intelectual.
Inúmeros exemplos poderiam aqui ser repetidos, dado o manifesto interesse por parte das
associações pela formação de seus associados e descendentes. Interessante que não observamos
em nenhuma delas a preocupação em sugerir ou mesmo reivindicar a participação do Estado
no campo educacional. As mutuais inspiravam-se num princípio basilar: o da autonomia. Ao
assumirem funções públicas por si mesmas, reforçavam um valor que para J. Murilo de Carvalho
era raro no Brasil, o da defesa de seus interesses privados sem que se recorresse ao Estado na
condição de súditos ou pedintes (CARVALHO, 1989). Preferiam resolver autonomamente seus
próprios problemas e quando ao Estado recorriam era para defenderem-se de sua intervenção
sobre sua própria organização.39 Mas voltaremos a este ponto.
Estatuto da Junta Auxiliar dos Operários, 1904. Villa Nova de Lima. Jornal Estado de Minas, 14 de janeiro de 1906, Belo Horizonte, p.
34
Estatuto da União Operária Beneficente de Diamantina. Jornal O Operário, 15 de maio de 1904 e 23 de junho de 1904, p. 2 e 3,
36
surgimento e a organização de cidadãos ativos. Já com o advento do Estado Social, recuperar a autonomia da sociedade civil tornou-
se muito difícil.
4.3 A Ética
Estatutos da União Operária e Patriótica de Montes Claros, 1929. Arquivo Público Mineiro.
41
Neste outro estatuto são novamente reafirmados os valores familiares, além da inocência
e da virgindade, características relacionadas à pureza. A moralização dos costumes por meio da
educação profissional e artística também se fazia presente no universo cognitivo desta Associação.
Na seção de lançamento da Associação Beneficente dos Condutores e Motorneiros da
Companhia Mineira de Eletricidade de Juiz de Fora, ocorrida em 31 de dezembro de 1911, seu
orador oficial, dr. Silva Braga, exortava os operários, sócios da associação recém-criada com relação
ao papel que deveriam cumprir:
[Devem os operários ser] leais, sinceros (...) respeitadores da hierarquia, para que tenham
a estima e consideração dos seus chefes e patrões, e consigam o levantamento de sua
condição moral, que é o que sobretudo importa!42
Importava aos trabalhadores respeitarem seus patrões para que pudessem cultivar
sua estima. Longe estavam de empunharem a bandeira da luta ou da resistência contra eles. Ser
moralizado significava respeitar a ordem, aceitar as hierarquias, não se envolver em conflitos contra
os patrões, combater os vícios, valorizar a pureza e a família.
Uma das mais importantes mutuais de Minas Gerais foi a Sociedade Beneficente de Juiz
de Fora, fundada em 15 de março de 1885. Em seu primeiro estatuto impunha alguns critérios de
admissão de novos sócios que destacamos: ser de condição livre, ter bom comportamento, gozar de
boa saúde, residir em Juiz de Fora e possuir meio decente de subsistência. Definia igualmente seus
critérios de expulsão: a prática de atos reprovados, a condenação por crimes contra a honra, a vida e
a propriedade; a crítica à administração da sociedade contribuindo para seu eventual esvaziamento;
o extravio de recursos da instituição.43
Neste caso tornam-se explícitos os critérios de inclusão e de exclusão desta mutual, os quais,
por sua vez, nos conduzem a entender valores reforçados e rejeitados. Criada antes da Lei Áurea, a
sociedade excluía os escravos, além dos doentes, desempregados e os que moravam fora dos limites
de sua área de abrangência. Mesmo os que não se inseriam em tais critérios de exclusão poderiam
ser expulsos, desde que se envolvessem em crimes ou que maldissessem a associação em público.
Os critérios de exclusão são igualmente reveladores da complexa moralidade defendida
pelas mutuais. Raça, lugar, idade, saúde, condição financeira, idoneidade e gênero eram os mais
comuns. Classe social não funcionava como um critério de inclusão ou exclusão, pois que das mutuais
participavam trabalhadores empobrecidos e qualificados, elites econômicas e políticas, setores médios.
Para que tais diferenças sociais fossem obscurecidas, ou mesmo negadas, as associações tiveram que
oferecer outras categorias de diferenciação social, como as de gênero, raça, idade, entre outras.
De certa forma tais critérios de exclusão se contrapunham ao discurso fraternalista e
igualitário das associações. Este paradoxo deveria ser resolvido por meio de outros instrumentos.
Coube aos rituais e às festividades este papel.
42
Jornal O Pharol, Juiz de Fora, 1 de janeiro de 1912, p. 1.
43
Jornal O Pharol. Juiz de Fora, 5 de maio de 1885, p. 1 e 2 e de 27 de setembro de 1887, p. 1.
4.4 A Morte
Não quer-se luz, quer-se uma luminosidade que acenda em todos os peitos cristãos a
lembrança diária, a fervorosa súplica que a noite propícia ergamos ao Redentor, quer nos
tempos de paz, quer ainda com maior razão nos tempos atuais de morticínio, de fome e de
peste.(...) Ademais é dever da Municipalidade concorrer e patrocinar as justas aspirações de
seus habitantes, ainda mesma em se tratando de um ato cristão que demonstre a perfeita
44
Jornal do Comércio, Juiz de Fora, 8 de julho de 1906, p. 1.
Estatuto do Centro Operário, 1924, p. 3-5. Arquivo Público Mineiro.
45
Ao sugerir uma ação pública com o fim de fortalecer um símbolo religioso, esqueciam-se
do caráter laico do Estado. A presença de rituais religiosos, mesmo em associações não católicas,
era muito grande entre as mutuais. Muitas das festividades que eram por elas organizadas
envolviam símbolos e cânticos religiosos e contavam vez por outra com a celebração de uma
missa. O laicismo, valor novo introduzido pela constituição de 1891, era rejeitado ou esquecido
pelas mutuais.
Mas nem só de rituais religiosos elas viviam. As cerimônias e festas serviam como palcos
privilegiados da experiência ritualística.
4.5 As Festas
Entre as mutuais pesquisadas, reparamos que as de caráter étnico eram as que mais
promoviam festas, não só para angariar recursos, como para comemorar datas importantes de suas
regiões de origem.47 Nessas ocasiões eram entoados hinos, apresentados estandartes à comunidade
e enaltecidas lideranças para que permanecessem na memória dos sócios.
A Sociedade Alemã de Socorros Mútuos, fundada em 1872, realizava quermesses no
pátio de uma cervejaria alemã de Juiz de Fora, para a qual angariava prendas a serem vendidas
à comunidade, com o fim de auxiliar os cofres da sociedade. A Sociedade Beneficente Brasileira-
Alemã, em quermesse realizada no ano de 1902, divulgou na imprensa as doações recebidas,
bastante modestas, por sinal. Tal agremiação costumava exibir seu estandarte bordado e composto
pelas bandeiras da Alemanha e do Brasil. Para a inauguração de seu estandarte, em 1906, foram
convidadas outras mutuais da cidade, bem como autoridades políticas, para que cada uma fosse
responsável pela colocação de um prego que fixaria o estandarte na sede. 48
As festas incluíam uma série de opções de lazer para os convidados, como o jogo de bolas,
tiro ao alvo, jogo de croquete (consistia em acertar com arco bolas de madeira), corrida de sacos,
queima de fogos, apresentação de fonógrafos e bandas de música. Em muitas dessas ocasiões as
autoridades locais, nacionais e até internacionais tinham seu comparecimento garantido. Temos um
46
Ofício da Secretaria da Associação Beneficente Operária ao Dr. José Procópio Teixeira em 10 de outubro de 1918. Arquivo Histórico
de Juiz de Fora/ Fundo República Velha- Associações Filantrópicas Diversas, doc. 26.
Cláudio Batalha (Batalha, Silva e Fortes, 2004) dedicou um capítulo ao estudo do que chama “cultura associativa” no qual se atém
47
às comemorações realizadas pelas associações operárias, sobretudo as do primeiro de maio. Não encontramos muitas referências às
festividades alusivas à data em nossa pesquisa, mesmo porque, nossa investigação se fez sobre as mutuais, delas excluindo associações
tipicamente sindicais. Do universo de 58 mutuais sobre as quais aprofundamos nossa investigação, 18 eram de ofício, um pouco mais de
30% de nossa amostra.
48
Jornal O Pharol, Juiz de Fora, 13 de fevereiro de 1894, p. 2 e 6 de agosto de 1902, p. 1, Jornal do Comércio, Juiz de Fora, 6 de setembro
de 1906 e 19 de outubro de 1906, p. 3.
relato da presença do vice-cônsul alemão nessas festividades, bem como de intendentes municipais,
pastores protestantes ente outras autoridades. 49
Mas não só os alemães festejavam. A colônia italiana de Juiz de Fora, por meio de suas
variadas associações, comemorava com frequência seu aniversário de fundação, bem como o dia
20 de setembro, data comemorativa da unificação italiana. Os convites para as festividades eram
publicados em idioma italiano nos jornais da cidade.50
Acerca de uma dessas comemorações foi feito o seguinte relato:
Ao romper o dia de ontem, a excelente banda de música italiana Garibaldina, regida pelo
maestro Zanini, percorreu as principais ruas dessa cidade, executando os hinos italiano e
brasileiro, ao estrugir de valsas, para saudar a aurora do dia que lembrava o sucesso político
da bela Itália. (...) Em seguida dirigiram-se às redações dos jornais, parando em frente ao
escritório desta folha, onde a banda de música executou o nosso hino e o hino italiano. 51
Todo dia 20 de setembro a cidade era agraciada com as festividades comemorativas das mutuais
italianas, fenômeno que se sucedeu por diversas décadas. Há relatos da confecção de escudos, bandeiras
e estandartes, os quais faziam sempre referência à Itália, bem como ao Brasil. A colônia participava
ativamente das comemorações, enfeitando suas casas com bandeiras italianas. Em tais ocasiões o vice-
cônsul era saudado, em geral pelos estudantes de uma escola mantida por uma das associações.
Mesmo passados muitos anos da chegada ao Brasil, a colônia italiana fazia questão de
manter reforçados seus elos com o país de origem e tais comemorações eram valiosos instrumentos
de preservação da memória e reconstrução de identidades nacionais. No ano de 1926 encontramos
a colônia se mobilizando pela celebração de missas em razão da morte da rainha consorte Margarida
de Sabóia, esposa do Rei Humberto I, o qual dava nome a uma das mais importantes mutuais italianas
de Minas. Era comum que jovens italianos ou descendentes mantinham seus vínculos com a o país de
origem por meio das artes. Havia uma companhia teatral intitulada “Cia Dramática Dilettanti”, a qual
organizava espetáculos com renda destinada à mesma Sociedade Humberto I.52
A Sociedade Auxiliadora Portuguesa concentrava suas festividades na comemoração da
restauração de Portugal, ocorrida em dezembro de 1640. Aproveitava a ocasião para inaugurar obras,
promover congraçamentos entre os sócios, enaltecer lideranças e, principalmente, comemorar o
seu aniversário de fundação. Nessas ocasiões era entoado o hino da restauração portuguesa pela
banda do batalhão policial da cidade, além de outras canções. Nas comemorações do ano de 1901
participaram o presidente da Câmara Municipal, o juiz de paz, o comandante da Guarda Nacional, o
delegado de polícia, o cônsul italiano, o vice-cônsul português, além de jornalistas de Juiz de Fora e da
capital da república. Em 1905, esteve presente às festividades um ministro português. A festa de 1909
49
Jornal O Pharol, Juiz de Fora ,10 de setembro de 1905, p. 2 e 21 de maio de 1912, p. 1.
Diário de Minas, Juiz de Fora ,14 de setembro de 1889.p. 3.
50
51
Jornal O Pharol, Juiz de Fora , 21 de setembro de 1889, p. 1.
52
Jornal O Pharol, Juiz de Fora, de 21 de setembro de 1901, p. 2, 21 de setembro de 1902, p. 1, 20 de setembro de 1906, p. 2 e 23 de
abril de 1910, p. 2 e 28 de agosto de 1901, p. 1. Jornal O Dia, Juiz de Fora, 3 de fevereiro de 1926, p. 1
iniciou-se às cinco horas da manhã com uma banda de música a despertar a cidade, relembrando-a
da importância da restauração de Portugal. Para esta festa o poeta Belmiro Braga encarregou-se de
proferir uma conferência e foram convidados oradores oficiais para conduzirem a cerimônia.
A proclamação do regime republicano em Portugal, ocorrida em 5 de outubro de 1910,
deu novo destino às festividades. Passou-se então a comemorar não mais a restauração, mas a
proclamação do novo regime. Rapidamente, a sociedade retirou de seu nome a palavra “Real”
(título que havia sido concedido à Associação em 1898, a seu pedido), demonstrando rápida adesão
ao golpe que havia encerrado a monarquia portuguesa. Três anos mais tarde a mudança de nome
foi sucedida pela substituição dos símbolos monárquicos da sede da Sociedade por novos símbolos
que retratassem a república, tendo para este fim, que ser alterada a mudança da fachada do prédio,
para que uma coroa dela fosse retirada. 53
Percebe-se que mesmo distantes de seu país de origem, os imigrantes esforçavam-se em
estreitar seus vínculos, estabelecendo estratégias de construção e reconstrução de sua memória
em solo brasileiro, por meio das festividades. Como tais ocasiões eram abertas ao público em geral,
demonstravam o desejo de inserção numa nova cultura, estabelecendo uma relação simbólica de
reciprocidade, ao compartilhar com aos moradores locais seus valores, seus símbolos, sua arte e
suas visões de mundo, suas memórias.
Outros trabalhos já produzidos sobre a imigração em Minas Gerais revelam que tal inserção
não foi marcada exclusivamente pelo consenso. Em geral, baseados no uso de processos criminais
como fonte, tais pesquisas revelam outro tipo de interação entre imigrantes e nacionais, marcada
pelo conflito, pelo racismo e pela violência (BORGES, 2000, CARNEIRO, 2004, TEIXEIRA, 2011). O
mutualismo apresentava-se como um contraponto a este tipo de inserção, saudando por meio de
suas festividades e cerimônias o congraçamento entre povos de origens distintas, em que pese à
restrição de sócios brasileiros, por parte de algumas mutuais étnicas.
53
Jornal O Pharol, Juiz de Fora, 24 de novembro de 1895, p. 2, 30 de novembro de 1900, p. 2, 3 de dezembro de 1901, p. 1, 2 de
dezembro de 1905, p. 2, 2 de dezembro de 1909, p. 1, 6 de outubro de 1911, p. 1, 1 de outubro de 1913, p. 1. Ofício do Secretário
da Sociedade Auxiliadora portuguesa ao Presidente da Câmara, de 15 de novembro de 1897. Fundo República Velha, VII – Entidade
Filantrópicas, 201. Arquivo da PJF.
54
Jornal O Pharol, Juiz de Fora, 6 de abril de 1886, P. 3.
Em primeiro de março de 1885, nascia mais uma mutual em Juiz de Fora, a qual justificou
a sua criação com base no argumento acima retratado. Claramente encontram-se expressos os fins
a que se destinava a sociedade e qual a visão que seus fundadores tinham de si próprios e de seus
futuros sócios. Pelo texto se infere que a sociedade reproduziria simbolicamente uma família, unida
por laços de solidariedade, com o fim de amparar-se mutuamente para que todos saíssem mais
fortalecidos. Destinava-se a um público pobre e tinha a expectativa de que os mais ricos também
se tornassem sócios ou com ela contribuíssem, com o fim de auxiliarem os mais pobres. Como a
ninguém era dado o poder de adivinhar o futuro, a ajuda mútua seria uma garantia para todos.
Quem tem acesso à vasta documentação sobre o mutualismo perceberá que tais visões
não são exclusivas desta mutual, mas integram o horizonte de muitas outras, espalhadas aqui e
em outros lugares do mundo. A retórica fraternal, o uso da metáfora da família, o apelo à ajuda
mútua e o reforço da ideia de que o altruísmo é preferível ao individualismo, compunham parte
do universo cognitivo, não só das mutuais, mas das irmandades, das guildas, das corporações, das
lojas maçônicas e de outras associações que faziam parte do vasto universo associativo ao longo
do tempo. Trata-se de um modelo compartilhado por muitas organizações da sociedade civil pré-
capitalista, unidas por uma mesma tradição ao longo dos séculos.
A crença na indissolubilidade dos elos humanos levaria às mutuais a atuarem à semelhança
das corporações. Para Clawson (1989, p.38-42), a metáfora do corpo induz à ideia de interdependência
mecânica entre as partes. Tais partes seriam formadas por grupos e não indivíduos, unidos por
laços semelhantes aos de sangue, uma família artificial. Desta forma, a ajuda mútua estaria mais
fundamentada na virtuosidade dos irmãos do que na necessidade de praticar-se a caridade. Os sócios,
em que pesem suas muitas diferenças, equiparavam-se na condição de irmãos, fazendo com que
hierarquias e desigualdades não levassem às situações de conflito. Cordery (1996, p.98-99) afirma
que a retórica fraternal se constituía num discurso igualitário dentro de uma ordem naturalmente
desigual. Desta forma, se remetia ao passado pré-industrial, idealizado como tendo sido solidário,
fraterno e mais igualitário.
Mas nem só de fraternidade viviam as mutuais. O conflito esteve presente em suas
histórias, e muitas vezes, o palco foram folhas de jornal. Na imprensa vimos relatados ao público
inúmeros casos de disputas internas, acusações mútuas, protestos na justiça, que nada lembravam
os sentimentos de fraternidade e de ajuda mútua.
Dois anos depois de criada, esta mesma sociedade estabelecia em seus estatutos que
perderiam seus direitos sociais todos aqueles que mentissem aos dirigentes, tentassem destruir a
agremiação, desmoralizassem ou menosprezassem seus gestores ou furtassem seu patrimônio55.
As alterações no discurso sucederam divergências internas ocorridas tão logo a agremiação fora
fundada. A mudança foi tão grande, que o estatuto não parecia ter pertencido à mesma sociedade.
55
Jornal O Pharol, Juiz de Fora, 27 de setembro de 1887, p. 1.
A diretoria da Sociedade nada tem a ver com os artigos ou pasquins (...) e, como não envolve
a Associação nos casos particulares de seus sócios, também não aceita indiretas e nem
discussões baixas de quem quer que seja; vedando desde já, mesmo aos senhores sócios,
utilizarem-se do nome desta sociedade para discutirem divergências entre si ou particulares.56
O esforço pela preservação do bom nome por meio do combate à exposição pública de
conflitos inerentes às agremiações, explicava-se também pela necessidade constante de reforço do
sentimento fraternalista a unir os sócios, ameaçado todas as vezes em que as brigas ganhavam as
páginas dos principais jornais.
O Centro Operário de Corinto estabelecia estatutariamente que seus fins eram o de
“estender a todos os seus sócios os laços fraternais para que todos sejam por um e por todos; conciliar
as questões que porventura suscitadas entre patrões e sócios”, estendendo seu papel pacificador de
eventuais conflitos entre capital e trabalho. 57
O sentimento fraterno das mutuais as levava comumente à prática da filantropia, destinada
a seus próprios sócios ou àqueles que delas não faziam parte. Observamos no capítulo 1, voltado
para algumas associações cuja documentação estava na Secretaria de Negócios do Conselho de
Estado, que nem os próprios gestores públicos, responsáveis por autorizar o funcionamento das
associações no período, conseguiam demarcar os limites entre o mutualismo e a filantropia. Para
além do socorro aos sócios, muitas mutuais se envolviam na assistência aos pobres.
Esta expressão da cultura fraternalista encontrava-se presente em diferentes tipos de
mutuais. Nas étnicas, que pudemos observar em Minas, havia uma preocupação com o envio de
recursos aos necessitados de seus países de origem, normalmente, em momentos de desastres
naturais. Este foi o caso da Sociedade Auxiliadora Portuguesa, que em 1896 mobilizou a comunidade
lusa com o fim de arrecadar ajuda para “viúvas e órfãs das vítimas do incêndio de Santarém e dos
patriotas e valentes soldados, que em defesa da honra nacional portuguesa, deixaram suas vidas em
56
Jornal O Pharol, Juiz de Fora, 11 de julho de 1896, p. 2.
Estatuto do Centro Operário, 1924. Arquivo Público Mineiro.
57
África” 58 A colônia italiana de Juiz de Fora, sob o comando da Sociedade Humberto Primo, contribuiu
com doações para as vítimas do terremoto na Calábria, em 1905. A mesma sociedade não se limitava
à ajuda externa, porque cinco anos antes havia recolhido recursos para ajudar as vítimas da seca do
estado do Ceará.59
O mesmo ocorria com as mutuais de ofício. A Liga dos Operários Mineiros, fundada em
1917 em Belo Horizonte, estabelecia como um de seus fins proporcionar “amparo aos menores
desvalidos, aos órfãos e aos filhos menores dos associados operários.” Em congresso convocado
pela Associação e ocorrido em 1918, discutiu-se a criação de patronatos agrícolas, voltados para
a proteção das crianças desamparadas (DUTRA,1988, p.118-119). A Sociedade Beneficente dos
Cocheiros e Carroceiros, fundada em Belo Horizonte em 1909, definia-se como uma sociedade
filantrópica, embora fosse uma mutual de ofício. O já citado Centro Operário de Corinto também
estabelecia como um de seus fins a criação de caixas pias. O mesmo ocorreu com a União Operária
e Patriótica de Montes Claros, fundada em 1894 como uma associação mutual, mas que se
comprometia em levantar fundos destinados a fins pios. 60
Tais exemplos poderiam ser sobejamente repetidos. Revelam que o compromisso com a
ajuda mútua extrapolava o círculo de sócios em um contexto em que a proteção social se encontrava
relegada à ação privada. Por outro lado, os próprios gestores públicos incentivavam esta ação,
isentando de alguns impostos e taxas aquelas associações que se voltassem para a filantropia. Havia
assim, por parte do Estado, uma expectativa de ação das mutuais neste campo, embora no período
houvesse pessoas convencidas de que este deveria ser um papel primordial do Estado. A prática
filantrópica extramuros compunha o ethos cultural mutualista, reforçando o fraternalismo.
Considerações finais
A partir do que foi visto, acreditamos que o mutualismo no Brasil foi herdeiro de três tradições
fraternalistas distintas que o antecederam: as corporações de ofício, a maçonaria e as irmandades.
Por esta razão compunham o seu ethos as manifestações religiosa, ritualística e filantrópica,
herdadas das irmandades e das lojas maçônicas. E como herança da tradição corporativa, tinha uma
preocupação com a educação profissionalizante e com a valorização e a dignificação do trabalho,
estes últimos valores mais comuns nas associações de ofício.
Embora tais iniciativas, que refletem um contínuo processo de organização da sociedade
civil brasileira, possam apresentar algumas características em comum, claramente não se tratavam
da mesma coisa e nem mantinham, necessariamente, uma relação de continuidade entre si. O que
há é continuidade cultural e não institucional.
58
Jornal O Pharol, Juiz de Fora, 11 de abril de 1896, p. 2.
59
Jornal O Pharol, Juiz de Fora, 17 de setembro de 1905, p. 1 e de 2 de novembro de 1900, p. 2.
60
Jornal Diário de Minas, Belo Horizonte, 7 de agosto de 1909, p. 3 e Estatuto do Centro Operário. Montes Claros, 1924, p. 3 a 5.
Estatutos da União Operaria e Patriótica de Montes Claros, 1929, Arquivo Público Mineiro.
Tomassini (1996, p.259) afirma que o mutualismo italiano, tardio quando comparado a
outras experiências do continente, teria se inspirado mais nos modelos europeus vizinhos do que
na sua própria realidade pregressa. Talvez tenha sido este também o caso do Brasil para as regiões
que receberam um maior número de imigrantes. A experiência mutualista trazida por eles pode ter
fundamentado de forma mais efetiva o modelo nelas construído - sobretudo naquelas de ocupação
mais recente - do que as corporações e as irmandades. Mas é claro que uma opção não exclui a outra
e estudos adicionais ainda têm que ser feitos.
A despeito de suas origens o fato é que se constituiu aqui um modelo próprio de mutualismo,
revelador de práticas e representações de um período de intensas mudanças que marcaram o longo
processo de construção da cidadania no Brasil.
R. (Org.). Trabalho, Proteção e Direitos - O Brasil além da Era Vargas. 1. ed. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2010
62
Para o debate parlamentar acerca de algumas das regulamentações abordadas ver: Vianna, 1978 e Gomes,1979, entre outros.
Ao longo da Primeira República uma série de iniciativas ocorreu com vistas a conferir
ao trabalhador algum tipo de amparo. Inicialmente eram medidas muito pontuais, voltadas
exclusivamente para garantir o mercado de trabalho livre e contribuir, mesmo que modestamente,
com a manutenção das condições mínimas de sobrevivência dos trabalhadores.
O decreto 843, de 11 de outubro de 1890 foi uma das primeiras ações implementadas neste
campo. Por meio da criação de um Banco dos Operários, o governo federal disponibilizou recursos
com o fim de construir moradias populares para os trabalhadores da cidade do Rio de Janeiro. O
objetivo era construir casas para duas mil pessoas num prazo de dois anos, contados a partir da
aprovação dos projetos. Caberia ao banco custear as obras e administrar o pagamento dos alugueis,
bem como financiar o imóvel, caso o trabalhador desejasse comprá-lo. Interessante notar no texto
legal a extrema preocupação dos legisladores em garantir que as novas moradias fossem construídas
de forma a garantir a plena circulação do ar, dados os temores em relação à proliferação de doenças
que assolavam a capital da República.
O decreto também previa a isenção de impostos para que o banco pudesse comprar o
material de construção necessário às obras e lhe garantia o direito de desapropriação e de uso de
terras públicas. Caberia ao governo a fiscalização de todos os procedimentos.
Existe um conjunto de leis voltadas exclusivamente para a assistência pública em geral e, especificamente, para assistência aos
63
menores. Dado o volume deste conjunto de leis e os limites do capítulo, optamos apenas por abordar a regulamentação referente às
aposentadorias e pensões, ou seja, aquelas relacionadas diretamente à construção, mesmo que progressiva e lenta, de um projeto
de previdência social no Brasil.
Especificamente sobre este tema, um levantamento preliminar foi feito por Vitor FONSECA (2008, cap. 2), do qual partiremos,
64
Esta iniciativa, embora modesta e pontual, revelava uma preocupação dos gestores com os
problemas urbanos aflorados no imediato pós-abolição. É conhecida a extensa bibliografia produzida
no Brasil sobre a situação precária em que viviam as famílias nos centros urbanos, inflados pelas levas
imigrantistas e pelo êxodo rural (CHALHOUB, 1986 e PESAVENTO, 1998, entre outros). Caberia ao Estado
estabelecer algum tipo de política pública de caráter protecionista, para que a multidão de desvalidos,
que se amontoava nas cidades, não colocasse em risco o projeto republicano recém-inaugurado.
Anos mais tarde, novo decreto foi emitido, com o objetivo facilitar a aquisição da casa
própria pelos setores mais empobrecidos. Trata-se do decreto 2407, de 18 de janeiro de 1911. Por
meio dele, conferia-se às associações – sobretudo cooperativas e mutuais – a possibilidade de terem
acesso ao crédito público e à isenção de impostos, com o fim de construírem casas para a população
de baixa renda. Pelo decreto, o governo federal isentaria as entidades de vários impostos, entre
eles o de importação de materiais de construção, cederia gratuitamente terrenos públicos para a
construção de moradias e, por meio da Caixa Econômica, garantiria às construtoras o empréstimo
para a construção de seus lares.
Com o fim de proteger o futuro inquilino ou proprietário do imóvel a ser construído, o
decreto previa a regulamentação futura do tipo de construção, do custo máximo da compra ou do
aluguel, do tipo de material empregado na construção, entre outros detalhes. Limitava a margem de
lucro dos empreendedores a 10% do custo total da obra e o valor do aluguel a 15% do valor.
Embora tenha sido uma iniciativa limitada e sujeita a fraudes constantes, o decreto revelava
preocupação com a política habitacional urbana, contando para este fim com a participação de
setores já organizados da sociedade civil, como as cooperativas e mutuais de trabalhadores, em uma
parceria – hoje muito conhecida – entre o setor público e o privado com vistas à melhoria do nível
de vida dos setores menos privilegiados da sociedade brasileira.
Dando continuidade às políticas de construção de moradias populares, a lei 4.474, de 14
de janeiro de 1922, promoveu abertura de concorrência para empresas que desejassem atuar como
construtoras de casa própria para funcionários públicos da União, residentes na cidade do Rio de
Janeiro. Poderiam usufruir das benesses do financiamento da casa própria funcionários públicos civis
ou militares, como os ferroviários, policiais do Distrito Federal e os funcionários dos três poderes,
desde que residentes na capital.
Meses depois, um novo decreto foi emitido com o mesmo fim. Trata-se do decreto número
4.561, de 21 de agosto de 1922. Por meio dele o Poder Executivo construiria cinco mil prédios
destinados aos funcionários públicos da União. Tias prédios seriam vendidos aos interessados
que teriam suas prestações abatidas em folha de pagamento, ao longo de 15 anos, com juros de
mercado. O decreto também previa a concessão de empréstimos para a construção da casa própria,
desde que o servidor público dispusesse do terreno.
Entre as medidas que visavam a apoiar a formação de um mercado livre de trabalho,
destacam-se as reformas feitas no Código Penal. Em um contexto muito próximo à escravidão, era
comum que patrões abusassem de seu poder e controle, atentando contra a autonomia e liberdade
dezembro de 1906.
Reproduzimos aqui o Artigo 3, na íntegra: Art. 3º- São considerados operários, para o efeito da indenização, todos os indivíduos, de
66
qualquer sexo, maiores ou menores, uma vez que trabalhem por conta de outrem nos seguintes serviços: construções, reparações
e demolições de qualquer natureza, como de prédios, pontes, estradas de ferro e de rodagem, linhas de tramways elétricos, redes
de esgotos, de iluminação, telegráficas e telefônicas, bem como na conservação de todas essas construções; de transporte carga e
descarga; e nos estabelecimentos industriais e nos trabalhos agrícolas em que se empreguem motores inanimados.
A indenização a ser paga era proporcional aos danos causados ao trabalhador que poderiam
ser: morte, incapacidade total, incapacidade permanente (superior a um ano), incapacidade
temporária e incapacidade parcial. Em casos mais graves, como os de morte ou de incapacidade
total, a família receberia a soma correspondente ao salário de três anos do trabalhador, paga de
uma só vez, desde que o teto máximo fosse respeitado (o de 2:400$ anuais), além dos custos de um
eventual enterramento. Caso a vítima não fosse casada ou não tivesse filhos, os números seriam
reduzidos. Os valores eram igualmente proporcionais à gravidade dos malefícios gerados.
Caberia também aos patrões a prestação imediata de socorros médicos, farmacêuticos ou
hospitalares. No momento da ocorrência deveriam comunicar-se de imediato com a polícia, que faria
um inquérito do ocorrido, enviando-o, posteriormente, ao juiz competente para que um processo
fosse instaurado. Tal processo deveria estar concluído em até 12 dias depois do fato ocorrido, para
que a sentença fosse proferida e o trabalhador ou sua família recebesse a indenização sem delongas.
A interferência da polícia neste processo é explicada por Santos (1979, p.23). Como o
acidente era visto como um risco inerente ao próprio processo de trabalho, ele se dava na esfera
dos conflitos privados entre trabalhadores e patrões e por eles deveria ser administrado. Daí o
envolvimento da polícia no processo.
O texto original da lei previa a sua regulamentação posterior, a qual se deu por meio de
outros dois decretos. O primeiro deles foi o de número 13.493, emitido em 5 de março de 1919,
que corrigia valores de algumas indenizações. E um segundo, de número 13.498, editado em 12 de
março do mesmo ano, que detalhava o decreto anterior e introduzia algumas mudanças no texto da
lei, importantes de serem observadas.
Um primeiro detalhamento dizia respeito à definição de acidente de trabalho, sobretudo
em relação às moléstias profissionais. A legislação listava uma série de moléstias que deviam ser
as mais comumente encontradas no período, a exemplo de intoxicação por chumbo, mercúrio e
outros produtos químicos. Detalhava mais ainda as profissões a serem abarcadas pela lei. Para tal,
o artigo sexto estabelecia quatro grupos profissionais e em cada um deles listava as profissões que
seriam abarcadas. Eram elas: 1) Trabalhadores de empreendimentos industriais e agrícolas que
empregassem maquinários diversos; 2) Trabalhadores encarregados da execução, conservação,
reparação ou demolição de construções de qualquer espécie; 3) Empregados em serviços de
transportes terrestres, marítimos, fluviais e aéreos; 4) Trabalhadores do setor de carga e descarga.
Outro detalhamento importante se referia à definição do que era incapacidade total e
permanente, derivada de um acidente de trabalho. Para cada situação havia a delimitação de um
valor indenizatório a ser pago. Era considerado incapacitado permanentemente o trabalhador que
fosse vítima de alienação mental incurável, impotência funcional de ambos os membros, inferiores
ou superiores, perda de visão total ou parcial e perda irreparável de funções vitais como as cerebrais,
circulatórias e respiratórias. À cada função perdida correspondia uma indenização específica, prevista
em uma tabela, publicada ao final do decreto. Havia também uma tabela detalhada de indenizações
relativas às perdas parciais. Como era comum no período o pagamento de remunerações em espécie
(não monetizados) o decreto cuidou de garantir a realização de cálculos monetários proporcionais
para que o pagamento das indenizações fosse feito em dinheiro.
A maior contribuição da regulamentação relativa à lei de acidentes de trabalho dizia
respeito às garantias dadas aos patrões. Para viabilizar o pagamento das indenizações os legisladores
permitiram a contratação de seguradoras, que se responsabilizariam pelo seu pagamento, desde que
tivessem seu funcionamento autorizado pelo governo. Por esta razão acompanhamos a proliferação
de montepios e seguradoras ao longo de toda a década de 1920, criados com o objetivo explícito
de ocupar esta fatia de mercado disponibilizada pela lei. Os próprios sindicatos poderiam ocupar-se
desta função, caso desejassem.
Diferentemente das associações mutualistas, das quais trataremos nos próximos capítulos,
as seguradoras tinham fins lucrativos e não eram sustentadas pela contribuição de seus sócios.
Não era permitido pela lei que os patrões cobrassem de seus funcionários quaisquer quantias
para o pagamento das seguradoras ou sindicatos, cabendo tal responsabilidade exclusivamente a
eles. Caberia ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio a fiscalização sobre a rotina das
seguradoras para que elas oferecessem garantias de pagamento das indenizações. O Ministério
exerceria um controle direto sobre a movimentação financeira dessas instituições, com vistas a
observar sua salubridade financeira.
A partir desta mudança percebe-se que a legislação, por meio de subterfúgios, tirava
dos patrões a responsabilidade direta pelo pagamento das indenizações, transferindo-a para
as seguradoras. Ao invés de fiscalizar o pagamento dos patrões, permitia a terceirização da
responsabilidade e investia no controle e fiscalização das seguradoras.
Em estudos realizados sobre o associativismo urbano no período (VISCARDI E JESUS, 2008,
p. 41-42) pudemos perceber uma falência generalizada destes empreendimentos ao final da década
de trinta. Muitas seguradoras foram criadas à revelia e muitas faliram. Neste caso, a legislação
previa que na falência das seguradoras os patrões deveriam arcar com as indenizações (Artigo 330),
garantindo ao trabalhador o seu direito. Podemos imaginar as dificuldades dos trabalhadores em
terem suas indenizações garantidas pelos patrões após a falência das seguradoras. Dificilmente o
prazo de doze dias, previsto como tempo máximo pela lei, seria cumprido.
O detalhamento do decreto referiu-se também à realização de perícias médicas para que
o real estado de saúde do trabalhador fosse avaliado, dando maiores garantias aos patrões em
relação ao decreto anterior. Toda a documentação referente ao acidente, sobretudo o inquérito
policial realizado, seria enviada não mais ao Judiciário, mas ao Ministério da Agricultura, Indústria
e Comércio. A lei garantia também ao operário, vítima de acidente, assistência judiciária caso se
sentisse lesado em seus direitos, por meio do Ministério Público.
Em 9 de abril de 1919, foi criada uma Comissão Consultiva para o acompanhamento
da Lei, por meio do decreto 13.543. A referida comissão seria constituída de quinze membros,
Um decreto posterior, o de número 14.109, de 24 de março de 1920, elevava o número de membros da comissão para dezoito e
67
permitia a deliberação com no mínimo seis de seus membros presentes (no decreto original eram quatro).
Sua criação esteve vinculada à proliferação de conflitos entre capital e trabalho, aflorados
após o sucesso da Revolução Russa e da onda grevista que lhe sucedeu nos principais centros urbanos
brasileiros. O acirramento das relações entre patrões e empregados requeria a criação de uma
instância de arbitragem, capaz de propor regulamentos e acompanhar a sua aplicação prática, com o
fim de contribuir com a amenização dos conflitos sociais. Tal mudança institucional não consistia em
medida de amparo ao trabalhador, mas revelava um esforço organizacional do Estado para adaptar-
se a uma nova conjuntura, marcada pelo fortalecimento dos protestos e pela maior organização
dos trabalhadores em suas entidades sindicais. Tratava-se de uma medida reativa frente à nova
conjuntura que se delineava. Por outro lado, tendo em vista a formatação liberal da Constituição
Federal de 1891, a organização de comissões arbitrais coma a participação do Estado implicava em
importante inovação, só possível de ocorrer em um período como o da década de 1920, em que o
aumento da participação do Estado era requerido e bem visto por vários setores da sociedade civil
brasileira, bem como por parte da elite política governante.
No que tange ao amparo aos trabalhadores imigrantes, excluídos da maior parte dos
benefícios relativos aos nacionais, até então observados, encontramos apenas acordos internacionais
que envolveram os governos brasileiro e italiano. O decreto 16.051, de 26 de maio de 1923 era
um deles. Resultado de um tratado assinado entre o Monarca italiano e o Presidente do Brasil
previa o tratamento igualitário entre os trabalhadores dos dois países, no que se referia a eventos
considerados como “infortúnios do trabalho”. Visava igualmente o decreto a incentivar a emigração
de ambos os países.
Pelo decreto, os trabalhadores italianos, desde que residentes no Brasil, usufruiriam de toda
e qualquer benesse atinente aos trabalhadores brasileiros e o mesmo se daria com os brasileiros
residentes na Itália. Previa também que contratos coletivos assinados pelos italianos, para serem
praticados no Brasil, deveriam ser respeitados integralmente.
Conhecidas eram na Itália as péssimas condições de trabalho a que eram submetidos seus
cidadãos no Brasil. Com o fim de resguardá-los, o governo italiano garantiu a aprovação do artigo
terceiro do referido decreto, que previa a obediência dos patrões brasileiros às condições de trabalho
pré-pactuadas no Comissariado Geral da Emigração Italiana, desde que aprovadas previamente
no Brasil. O decreto atribuía ao CNT a responsabilidade pela fiscalização e acompanhamento das
decisões previstas pelo tratado entre os dois países.
Por fim, previa ampla liberdade aos trabalhadores italianos para organizarem cooperativas
urbanas ou rurais, cabendo ao governo brasileiro facilitar a expansão desta modalidade associativa.
Interessante destacar que não se faz no decreto nenhuma referência à liberdade sindical dos
trabalhadores italianos, vítimas constantes de prisões e extradições, resultantes de seu envolvimento
com os movimentos grevistas. Continuavam a vigorar as leis que facilitavam sua expulsão e contra
este arbítrio o tratado não se manifestou.
Além dos trabalhadores imigrantes o ano de 1923 contemplou uma outra categoria
profissional que sempre ficara – e assim permanece até hoje – aquém do usufruto de muitos direitos
obtidos pelos demais trabalhadores: os servidores domésticos.
O decreto número 16.107, de 30 de julho de 1923 constituiu-se numa primeira tentativa
de regulamentação do exercício da profissão. Incluímos este decreto em nossa análise por ele
contemplar, em algumas de suas cláusulas, alguns direitos dos trabalhadores domésticos, embora
seu fim primordial tenha sido o de salvaguardar os interesses dos empregadores. É imperioso
destacar que o referido decreto tinha o seu exercício limitado ao Distrito Federal.
A grande novidade introduzida pelo mesmo foi a implantação de um documento semelhante
ao que hoje denominamos “carteira de trabalho” para os servidores domésticos.68 Por meio deste
procedimento, o governo planejava possuir um cadastro de todos os trabalhadores do ramo no
Ministério da Justiça e Negócios Interiores.
A carteira possuiria uma foto do servidor, além de sua impressão digital, seguida de vinte
e cinco folhas em branco para o registro dos empregos. Caberia ao Gabinete de Identificação e
Estatística a autenticação de todas as páginas do documento, bem como o acompanhamento de
toda e qualquer alteração por ele sofrida. Para que pudesse fazer jus a sua carteira, o trabalhador
doméstico deveria demonstrar, junto ao Gabinete, comprovantes que atestassem a sua idoneidade
moral, garantida por uma declaração policial de bons antecedentes. Por meio deste procedimento,
os empregadores estariam resguardados de terem seus bens ameaçados por seus empregados.
Em caso de demissão, o servidor deveria apresentar no Gabinete a sua carteira, para
que fosse atestada. Caberia aos empregadores registrar na mesma o contrato de trabalho e fazer
uma avaliação final da conduta e aptidão do servidor doméstico. Este subterfúgio legal deixava os
empregados completamente dependentes dos humores de seus patrões, que poderiam prejudicá-
los em seus futuros empregos. Caso o empregado fosse demitido por justa causa, caberia ao
empregador entregar diretamente à polícia a carteira do empregado, constando nela a denúncia,
sem que seu proprietário tivesse sequer conhecimento do evento relatado. Diga-se de passagem, a
carteira do empregado ficava sob a guarda do empregador, fragilizando-o, ainda mais, nesta relação.
No entanto, o vigésimo artigo garantia aos trabalhadores domésticos algum tipo de proteção.
Permitia que ele desse fim ao contrato de trabalho todas as vezes que se sentisse inabilitado para
o exercício das funções previstas: quando fosse levado a desempenhar funções extracontratuais,
quando fosse vítima de excessivo rigor por parte de seus mandatários, quando não lhes fosse
disponibilizada alimentação suficiente e de qualidade para o exercício de suas atribuições ou quando
sofresse ameaças ou fosse injuriado. O artigo vigésimo - quarto completava a lista de direitos do
servidor doméstico, ao determinar algumas regras de comportamento para o empregador, que
previam o bom trato e a assistência/indenização no caso de acidentes de trabalho (conforme lei em
68
Pelo decreto eram servidores domésticos, chamados de “locadores” os seguintes profissionais: “os cozinheiros e ajudantes, copeiros,
arrumadores, lavadeiras, engomadeiras, jardineiros, hortelões, porteiros ou serventes, enceradores, amas secas ou de leite, costureiras,
damas de companhia e, de um modo geral, todos quantos se empregam á soldada, em quaisquer outros serviços de natureza idêntica,
em hotéis, restaurantes ou casas de pasto, pensões, bares, escritórios ou consultórios e casas particulares.” (Artigo terceiro)
vigor). Por fim, o decreto previa a aplicação de multas para todo empregador que aceitasse admitir
servidor doméstico sem a carteira de trabalho. Mediante tal procedimento o governo esperava ter
um controle absoluto desta relação, nos parâmetros previstos pelo decreto.
Em um país saído recentemente da escravidão, o serviço doméstico era o mais próximo da
cultura paternalista e escravocrata do passado. O abuso de poder, os castigos físicos e as humilhações
a que eram submetidos os trabalhadores em geral, tinham sua condição agravada quando se tratava
de servidores domésticos. O decreto tinha por objetivo conter os abusos praticados, mas ao mesmo
tempo, garantir o poder dos empregadores.
No ano de 1925, encontramos mais um esforço do poder público em atender a uma antiga
reivindicação dos trabalhadores organizados: a lei de férias (a primeira vez havia sido na lei de
acidentes de trabalho). Aprovada em 24 de dezembro de 1925, a lei 4982 conferia o direito a quinze
dias de férias a algumas categorias de trabalhadores, a saber: comerciários, operários de fábricas,
bancários, empregados dos jornais das instituições de caridade.69
O decreto 17.496, de 30 de outubro de 1926 regulamentou a referida lei. Em seu artigo primeiro
foram delimitadas algumas ocupações que seriam incluídas. Além das citadas anteriormente, foram
incluídos os funcionários do setor de saúde, das agremiações artísticas e literárias, os empregados
das instituições artísticas (teatrais e cinematográficas), do setor de transporte e comunicação e de
quaisquer estabelecimentos abertos ao público. Foram excluídos os trabalhadores autônomos.
As férias seriam remuneradas, ao longo de quinze dias úteis, após terminado cada ano
de trabalho ininterrupto. O período de usufruto seria determinado pelos empregadores e seu
pagamento se daria ao início do exercício.
O decreto previa a necessidade de registro, por parte dos patrões, do usufruto das férias
pelos seus empregados. Instituía-se a carteira de trabalho para os demais setores, além dos
servidores domésticos (exceto os comerciários), onde deveriam ser feitos os registros de férias e
demais informações concernentes à vida do trabalhador. Caberia ao CNT o controle e a fiscalização
dos regulamentos postos em vigor. Cada empresa teria a obrigação de enviar ao órgão a relação
completa de seus empregados registrados.
Interessante destacar que a implantação de sucessivas leis de proteção ao trabalho tinha
a sua eficácia comprometida em razão da inexistência de uma política efetiva de fiscalização
e punição de infratores. Pelo texto constitucional, aprovado em 1891, caberia aos estados a
responsabilidade por este controle. A experiência ao longo dos anos acabou por demonstrar a
ausência de operacionalidade das ações por parte dos estados, o que foi levando gradativamente a
União a uma intervenção maior neste campo. Tal intervenção, que se deu a partir da criação do DNT,
e posteriormente do CNT, revelava uma disposição em alterar as responsabilidades neste campo,
o que ocorreu efetivamente a partir da reforma constitucional de 1926. Somente após a referida
reforma é que a federação ficou oficialmente responsável pela organização do trabalho, chamando
69
Wanderley G. dos Santos (1979, p.19) afirma que os trabalhadores no abastecimento de água do Distrito Federal, bem como os
ferroviários, já dispunham do direito de férias desde 1889.
O artigo oitavo tornava esta função mais explícita. Segundo o novo decerto, caberia ao CNT: “intervir, quando solicitado por uma ou
70
ambas as partes, nas questões coletivas entre operários e patrões, podendo servir de mediador para acordo ou arbitragem, desde
que os interessados se obriguem previamente a aceitar o acordo ou a cumprir a decisão arbitral.”
intervenção do Estado, não só na proposição de novas políticas de proteção social, como no esforço
em garantir o cumprimento de benefícios já aprovados. Mesmo sabendo que tal esforço era financiado
pelos próprios trabalhadores e seus patrões – por meio das cotas pagas pelas Caixas de Aposentadorias
e Pensões – ele foi um passo a mais na direção de uma maior intervenção do Estado no setor.
Tal esforço confluiu na criação de uma nova secretaria de estado, com a denominação de
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, em 1930. O decreto que instituiu esta modificação
foi posterior à revolução, mas cabe aqui ser destacado, dada a sua relação com os eventos que
o antecederam de forma imediata. O decreto 19.433, de 26 de novembro de 1930 encarregava o
referido Ministério de todos os assuntos relativos ao trabalho, além dos relacionados à indústria e
ao comércio. Em seu âmbito foram criadas várias secretarias, passando o CNT a funcionar como uma
delas, sem perder o status de Conselho.
Embora se possa alegar que o governo provisório, chefiado por Vargas, e que continuaria
ainda por muitos anos na gestão do país, tenha sido responsável pela criação do Ministério do
Trabalho, na prática o que ocorreu foi apenas uma mudança administrativa, que submeteu o CNT a
uma pasta ministerial nova, mas não exclusiva. Suas funções e estrutura permaneceram as mesmas,
pois já haviam sido consideravelmente ampliadas pelo decreto de 1928.
A partir da observação das medidas tomadas pelos legisladores republicanos, foi possível
perceber que até os trinta primeiros anos do novo regime, muito pouco havia sido realizado. As
regulamentações limitavam-se a ampliar um pouco conquistas já adquiridas no período imperial.
Mudanças efetivas começaram a ocorrer somente a partir da aprovação da lei de acidentes
de trabalho, já no final da segunda década republicana. A criação de mecanismos institucionais
que acompanhassem o seu cumprimento – o DNT e posteriormente o CNT – foram medidas
complementares de destacada importância, as quais apontavam para a abertura de um espaço,
dentro do poder público, voltado exclusivamente ao trato dos problemas relativos ao mundo do
trabalho. Tais órgãos, embriões do Ministério do Trabalho, funcionariam como instâncias arbitrais,
que na ausência de outros mecanismos, se constituíam em canais, mesmo que modestos, de
manifestação de interesses dos trabalhadores.
Angela Gomes (1979, p.44) afiança que não havia coerência no discurso da burguesia
brasileira em relação aos pressupostos de intervenção ou não intervenção estatal no trato com a
questão social. Os gestores legislavam em resposta a visões pragmáticas, carentes de ideologia.
No entanto, o patronato em geral não era contrário à proteção social, a não ser em ocasiões que
revelassem interferências sobre as livres relações entre capital e trabalho.
Conforme analisaremos no capítulo 5, percebemos que nos últimos anos da década de
1920 construiu-se um consenso em torno da necessidade de uma maior intervenção do Estado
para a resolução dos incontáveis problemas sociais que afligiam a sociedade brasileira. Embora
não houvesse ainda um acordo em torno da necessidade de uma previdência estatal - sustentada
pelas contribuições compulsórias de todos e capaz de prover pensões, aposentadorias e amparo à
saúde - alguns legisladores e filantropos percebiam que a solução para os graves problemas sociais
escapava das mãos do setor privado. Ou seja, percebiam que os esforços da sociedade civil, sem
uma coordenação do Estado, se esvaíam em atividades improvisadas, descontínuas e, muitas vezes,
ineficientes no trato com o problema.
Ao analisarmos a legislação ao longo do período, percebemos como ela reflete esta lenta
mudança de paradigmas. No final do século XIX e primeira década do XX, apenas algumas categorias
de trabalhadores recebiam do Estado uma proteção, em um contexto em que poucos trabalhadores
a tinham. Aos poucos, outras categorias foram paulatinamente inseridas. Entre este período e a
universalização do amparo, que se deu somente com a Constituição de 1988, um longo caminho
teve que ser trilhado.
Entre as poucas categorias que faziam jus a este direito estava a dos servidores públicos. É
conhecida pela historiografia a dinamicidade do movimento reivindicatório deste setor, sobretudo
dos ferroviários. Por meio de suas greves e demais instrumentos de reivindicação, conseguiram
conquistar direitos mais rapidamente que outras categorias menos mobilizadas (BATALHA, 200, p.13-
14). Daí se explica a implantação de políticas de proteção social voltadas exclusivamente para eles.
Este era o caso dos empregados da Estrada de Ferro Central do Brasil, que por meio do
decreto 221, de 26 de fevereiro de 1890, antes ainda de instituída a República, passaram a usufruir
dos mesmos direitos que o Império já havia concedido aos funcionários dos correios.71 Com base na
equiparação realizada, os ferroviários teriam direito às licenças de saúde remuneradas de no máximo
seis meses, e teriam direito à aposentadoria (por doença ou por tempo de serviço). Este também
era o caso dos funcionários da Imprensa Nacional e do Diário Oficial, que desde o final do período
imperial já tinham suas aposentadorias garantidas, a partir da contribuição mensal correspondente
a um dia de trabalho.72
O decreto imperial relativo aos Correios era o de número 9.912 A, de 26 de março de 1888. Tratava do tema em seu capítulo XVIII.
71
O decreto 498, de 19 de junho de 1890 estabelecia o direito das esposas dos oficiais do Exército e da Armada de receberem pensões,
72
soldos e montepios de seus maridos, independente de terem sido por eles outorgadas. O decreto revela uma exceção em relação às
normas vigentes para outras categorias, as quais não previam este direito às mulheres. Além deste ver: decretos 565 de 12 de julho
de 1890 e 10.269 de 20 de julho de1890.
No que tange aos servidores militares, a margem de proteção era maior, sobretudo após as mortes ocorridas na Guerra do Paraguai.
73
Os servidores militares já dispunham de um montepio, subsidiado pelo Estado e regulamentado pelos decretos 3607, de 10 de
fevereiro de 1866, 475, de 11 de junho de 1890 e pelo decreto 2.484 de 14 de novembro de 1911.
tanto em ambulatórios como na rede hospitalar, com carência de dois anos entre um tratamento e
outro e pensões em caso de aposentadoria, falecimento ou invalidez, com valores proporcionais ao
tempo de contribuição. Para o usufruto de tais direitos o contribuinte era submetido à inspeção de
sua saúde por uma junta médica especializada, indicada pela Diretoria de Saúde.
Em caso de falecimento, familiares receberiam as pensões, desde que as mulheres se
mantivessem viúvas (e não tivessem se divorciado antes) ou se casadas, não vivessem às expensas
do novo marido. A pensão por invalidez estaria limitada a ocasiões em que as vítimas não tivessem
sido responsáveis pelas moléstias contraídas.
A gestão da Caixa seria feita por um corpo técnico remunerado com os recursos gerados
por ela mesma. A preocupação com o equilíbrio financeiro da instituição revelava-se muito grande
no decreto, limitando-se os direitos de associados portadores de moléstias previamente adquiridas
ou que não gozassem de boa saúde. Da mesma forma, quando os gastos sobrepujavam as receitas,
os socorros seriam automaticamente diminuídos ou as contribuições aumentadas. Manter-se-ia
igualmente um fundo de reserva permanente.
Ao observarmos os detalhes desta Caixa de Aposentadorias e Pensões percebemos como
a cultura mutualista, existente no Brasil desde as primeiras décadas do século XIX, e analisada
anteriormente, contribuiu para o acúmulo de experiências que resultaram numa legislação como
esta que acabamos de observar. A forma como a Caixa se estruturava – inclusive com o pagamento
de joias e a previsão de recebimento de doações – a sua organização interna, bem como os socorros
prestados, em muito se assemelhavam à prática cotidiana de várias mutuais.
Conforme observado no capítulo dois, a pesquisa realizada sobre o mutualismo na capital
federal revelou-nos um alto índice de inadimplência das mutuais, exatamente por não disporem
de um corpo técnico profissionalizado, capaz de calcular riscos. O envelhecimento dos associados
provocava, na maioria das vezes, o fechamento das associações, por falência generalizada. Esta
experiência acumulada, facilitada pela possibilidade de realizar as cobranças das mensalidades
por meio de folha de pagamento (o que evitava a inadimplência), permitiu com que a Caixa se
estruturasse com mais segurança e com garantias de longevidade, o que não ocorria com as mutuais.
Outra categoria detentora de direitos previdenciários era a dos guardas civis, cuja proteção
se dava mediante o decreto 3.065, de 11 de dezembro de 1918. Todos aqueles profissionais feridos
ou mortos em conflitos com delinquentes ou que contraíssem moléstias derivadas do exercício
profissional fariam jus às pensões equivalentes a dois terços de seus respectivos vencimentos.
Teriam também direito a licenças para tratamento médico.
Mas este conjunto de iniciativas ainda ficava limitado aos servidores públicos de algumas
categorias e seu impacto sobre o conjunto dos trabalhadores era mínimo. Mudanças no campo
da previdência pública começariam mais tarde. Até lá os trabalhadores ficavam sem proteção ou
recorriam às mutuais. Como visto, por meio delas poder-se-ia contribuir mensalmente com um
pecúlio capaz de oferecer uma pequena garantia em situações de acidente de trabalho, invalidez ou
morte. Durante muitos anos, milhares de trabalhadores recorreram às mutuais com este fim.
A lei 4682 de 24 de janeiro de 1923, pela sua maior amplitude, foi um marco diferenciador
entre um período de total ausência de envolvimento do Estado no campo da previdência pública e
uma nova fase, inaugurada pela lei, em que o consenso em torno da pertinência da proteção estatal
se solidificava.
A lei ficou conhecida pelo nome de seu proponente, o deputado paulista Eloy Chaves. Criava
em cada empresa de estrada de ferro existente no país uma Caixa de Aposentadorias e Pensões
(CAPs) para todos os seus empregados.
Ao mesmo tempo em que estabelecia parâmetros que serviriam de base para o futuro,
ela espelhava todo um conjunto de experiências prévias acumuladas pelas associações mutualistas,
e, sobretudo, pela Caixa dos Servidores da Diretoria de Saúde, que havia sido criada em 1916.
Sem contar com os modelos europeus, disponíveis para os legisladores do período, que também
contribuíram para a sua formulação.
A lei previa o pagamento de aposentadorias, pensões e indenizações (em caso de
acidentes de trabalho) para os empregados segundo regras pré-pactuadas. Os recursos para o
pagamento derivariam de variadas fontes, assim discriminadas: 3% do vencimento mensal de cada
empregado; 1% da renda anual bruta da empresa; a soma derivada do aumento de 1,5% sobre as
tarifas ferroviárias, aumento este previsto no âmbito da lei quando publicada (Artigo 47); recursos
resultantes do pagamento de joias pagas na data da criação das Caixas, correspondentes a um
mês de trabalho; outras somas eventualmente pagas e não reclamadas; recursos resultantes de
multas aplicadas; verbas sobre quaisquer vendas realizadas pelas Caixas; por fim, donativos e juros
decorrentes de aplicações financeiras.
A salubridade financeira de cada Caixa estaria garantida pelo desconto compulsório das
mensalidades em folha de pagamento dos empregados, tal como apontava a experiência anterior.
Conforme afirmamos, desta garantia não possuíam as mutuais, daí os problemas por elas vivenciados
em razão da inadimplência dos sócios, o que normalmente as levava ao seu fechamento. A experiência
prévia acumulada permitiu que a iniciativa da Caixa de 1923 fosse bem-sucedida.
A Caixa seria responsável por garantir as seguintes coberturas: socorros médicos em caso de
doença do empregado ou de membros de dependentes; medicamentos; aposentadoria e pensões
em caso de morte. Eram exatamente estes os pecúlios cobertos pela maior parte das mutuais como
nos foi possível observar, exceto pelo fato de que as pensões se limitavam a três meses ou menos,
dadas as conhecidas dificuldades financeiras das mutuais. Já as pensões da Caixa Eloy Chaves eram
vitalícias, exatamente por terem a garantia do pagamento por parte dos empregados.
O valor da aposentadoria seria calculado com base na média dos vencimentos dos últimos cinco
anos de trabalho, desde que o empregado tivesse completado trinta anos de serviço e tivesse, no mínimo
50 anos de idade. Havia também a pensão por invalidez, desde que o empregado tivesse, no mínimo, dez
anos de contribuição para a Caixa. A pensão por acidentes de trabalho seria paga independente do tempo
de contribuição. Neste caso, o trabalhador fazia igualmente jus a uma indenização. Mesmo que demitidos,
os trabalhadores poderiam continuar contribuindo com a Caixa para não perderem direitos adquiridos.
Para estes casos a Caixa funcionaria exatamente como uma mutual.
As pensões por morte seriam recebidas pelas viúvas e filhos solteiros, pais ou irmãs
do falecido empregado. Correspondia a 50% da aposentadoria recebida. Caso o pensionista
demonstrasse ter uma vida desonesta ou ligada à vagabundagem, perderia a pensão. Percebe-se
claramente, mais uma vez, a influência do mutualismo nesta prerrogativa legal. As mutuais estavam
muito atentas a só admitirem sócios que tivessem uma vida considerada moralmente regrada para
a época. Esta exigência era mais rígida em relação às mulheres. Embora a Caixa se constituísse
sobre uma legislação racional e laica, por ser um instrumento de transição entre a ausência total
do Estado e sua participação efetiva no campo da proteção social, ainda era portadora de valores
compartilhados no passado pelas mutuais.
Outro elemento a ser destacado, que guarda também relação com o mutualismo, mas que
difere da Caixa de 1916, era a proibição de remuneração de seus gestores. Ela seria dirigida por um
Conselho Administrativo, que por ser voluntário, dificilmente se profissionalizaria, tal como ocorria
nas mutuais.
Aproximadamente três anos depois de instituída a Lei Eloy Chaves, foi editada nova lei
que resolvia alguns problemas derivados de sua aplicação. Em 20 de dezembro de 1926 o Senado
aprovava a lei 5.109, voltada exclusivamente para detalhar a regulamentação da lei anterior.74
Por meio desta nova lei, o número de empregados protegidos pela Lei Eloy Chaves passou
a ser maior e mais diversificado. Foram incluídos todos os funcionários das empresas de navegação
marítima ou fluvial e os portuários (de portos públicos e privados), enfim, todos os empregados,
que direta ou indiretamente estivessem envolvidos com o sistema ferroviário de transportes,
inclusive os aposentados. Eram então considerados “ferroviários” os funcionários das cooperativas,
das contadorias, os médicos e farmacêuticos das Caixas, bem como seus auxiliares, os professores
das escolas mantidas ou subvencionadas pelos ferroviários, os trabalhadores da construção das
estradas, bem como o corpo técnico responsável pelas obras nas estradas e quaisquer funcionários
regulares que prestassem serviço às ferrovias.
As rendas de sustentação das Caixas seriam as mesmas, porém acrescidas de percentual
sobre as taxas de exploração de portos e das tarifas por eles cobradas. Novo aumento foi concedido
sobre as tarifas das estradas de ferro, com o fim de aumentar as rendas das Caixas, agora responsáveis
por um contingente bem maior de trabalhadores.
Uma série de medidas administrativas passou a ser incorporada na legislação com o fim de
garantir a salubridade financeira de tais instituições. Todas as vezes que se percebesse a existência
de um déficit orçamentário nas Caixas, caberia às estradas aumentar suas tarifas para cobrir
a eventual lacuna observada. Sobre o consumidor, usuário dos serviços das estradas ou portos,
Dois outros decretos foram emitidos para complementar a lei: o decreto n. 17.940, de 11 de outubro de 1927 e o decreto n. 17.941,
74
da mesma data. No ano seguinte, um novo decreto (18.260, de 30 de maio de 1928) isentava os jornaleiros da Estrada de Ferro
Central do Brasil do pagamento de joias e de percentuais sobre aumentos salariais.
30% dos prêmios concedidos, desde que os contribuintes estivessem em determinada faixa salarial.
Pela primeira vez os recursos proveriam do Ministério da Fazenda. As pensões pagas poderiam
ser vitalícias ou temporárias e suas regras eram muito semelhantes as da Lei Eloy Chaves. A única
diferença fora a retirada das exigências em relação à moralidade das pensionistas. Havia uma
previsão, inexistente na Eloy Chaves, mas que se constituía em prática corriqueira entre as mutuais,
que era o pagamento do funeral do contribuinte, pago pelo IPFP.
Em relação aos empréstimos para a aquisição de casa própria, o Instituto se encarregaria
de financiar imóveis a taxas anuais de 12%. O imóvel ficaria arrendado aos contribuintes até a
sua quitação, que se daria, no máximo, em 20 anos. Empréstimos consignados estavam também
disponíveis aos empregados públicos.
Diferentemente da lei anterior, o corpo administrativo do Instituto era profissionalizado,
remunerado com as verbas do órgão, e seu diretor indicado pelo Presidente da República. Seu
Conselho Administrativo era composto por Ministros de Estado e representantes dos poderes
Legislativo e Executivo.
Alguns meses depois, um novo decreto foi instituído de forma a corrigir algumas distorções que
envolviam a criação do IPFP. Trata-se do decreto 5.407, de 30 de dezembro de 1927. Ele eximia algumas
categorias profissionais de fazerem parte obrigatoriamente do Instituto – principalmente aquelas já
contempladas pelas Caixas de Aposentadorias e Pensões e as de renda muito pequena. Alterou também a
idade máxima de inscrição e de contribuição, bem como limites de empréstimos consignados.
A mais importante modificação da lei anterior dizia respeito ao papel do CNT, que teria suas
funções ampliadas com a criação do Instituto. Para que pudesse dar conta dos trabalhos adicionais,
ficou definido que as Caixas de Aposentadorias e Pensões dos ferroviários, portuários e marítimos
pagariam uma cota financeira para cobrir os custos adicionais das ações do CNT.
A experiência do IPFP demonstra que a categoria dos funcionários públicos federais usufruía
de maiores vantagens em relação às demais no período. A participação mais efetiva do Estado,
garantindo a salubridade financeira do Instituto e cuidando de sua gestão o eximia dos riscos de
falência, que prejudicariam em muito os associados.
O decreto 5485, de 30 de junho de 1928 criou as Caixas de Pensões e Aposentadorias para
empresas privadas, distribuidoras de serviços telegráficos e radiotelegráficos. O decreto tinha como
base as caixas dos ferroviários e portuários, que haviam sido aprovadas anteriormente, apresentando
poucas variações. Entre elas destacavam-se os itens que compunham a renda das Caixas. O público
consumidor dos serviços se responsabilizaria por 2% sobre as tarifas a ele cobradas; os empregados
contribuiriam com 3% mensais; as empresas contribuiriam com 1,5% de sua renda bruta anual.
Complementavam o fundo as joias pagas pelos associados, os eventuais donativos recebidos, os juros
decorrentes das aplicações financeiras, recursos provenientes de multas aplicadas, vencimentos
não reclamados e a contribuição de aposentados e pensionistas, que mesmo usufruindo do fundo
deveriam continuar contribuindo com o fundo até que completassem trinta anos de pagamento.
Em comparação com as CAPs dos ferroviários, esses trabalhadores estavam excluídos das proteções
referentes aos socorros médicos, obtenção de medicamentos e internação hospitalar.
Observamos a partir das experiências relatadas, que o modelo de Caixa de Aposentadorias
e Pensões, inaugurado para os trabalhadores da Diretoria de Saúde em 1916, serviu de referência
para outras categorias dos servidores públicos. Inúmeras adaptações foram feitas para que
distorções fossem corrigidas, todas elas derivadas da experiência vivida pelos gestores públicos neste
campo. A necessidade de ampliar e profissionalizar o CNT, mesmo que tal iniciativa se viabilizasse
a partir da contribuição financeira das próprias Caixas, revelava uma ampliação do controle estatal
sobre as aposentadorias e pensões, o que no início do século, era impensável. Os anos de 1920
descortinariam os limites do laissez-faire reafirmados pela carta de 1891. As pressões dos setores
organizados, aliadas a uma conjuntura internacional que apontava para o advento de nacionalismos
e autoritarismos extremistas, confluiriam numa maior centralização do Estado (reforma de 1926) e
na sua maior intervenção sobre a sociedade civil.
em tom clientelista na cidade ou coronelista no campo. O período pós 30, essencialmente urbano,
industrializado, de relações menos hierárquicas e com uma sociedade civil mais organizada.
No entanto, estudos recentes (SILVA JR., 2005, JESUS, 2006, RIBEIRO, 2009, entre outros)
têm atestado a existência de uma sociedade civil mais organizada do que se imaginava até então,
desde as últimas décadas do período imperial. Associações literárias, científicas, artísticas, esportivas,
mutualistas, filantrópicas, dente outras, reuniam em seu seio numerosos membros da sociedade
civil brasileira. Para além das práticas coronelistas e clientelistas, forjava-se uma sociedade civil
razoavelmente organizada, a se defender do arbítrio, a resistir às mudanças que não lhes convinha
ou a construir estratégias privadas de subsistência, em meio a pobreza que se generalizava.
Tais trabalhos têm procurado esmiuçar este processo de construção da cidadania brasileira,
que se deu lentamente, mesmo no contexto da Monarquia e da escravidão. Os períodos imperial
e da Primeira República, especialmente, vem sendo revisitados a partir desses novos paradigmas,
os quais têm revelado uma sociedade civil mais organizada do que se imaginava e um Estado mais
atuante, não só na tentativa de controlar essa organização, como dando respostas às reivindicações
que demonstravam maior poder de pressão. A ampliação da cidadania se dava pari passu com a
expansão da autoridade pública, conforme nos afiança Bendix (1996), em seu já clássico estudo
sobre a expansão da cidadania.
Uma das maneiras de se observar a dinamicidade das organizações sociais no período é
por meio do estudo das medidas legais aprovadas e postas em vigor. Não fosse a proliferação de
associações de diversos tipos, o Estado não teria tanta preocupação em regulá-las. Um primeiro
levantamento que realizamos – que de forma nenhuma pretende esgotar todo o arcabouço jurídico
construído acerca do tema – revelou a existência de dezoito regulamentos (entre leis e decretos)
num período de trinta e oito anos, exclusivamente voltados para a questão associativa.
Ainda no período imperial, de 1860 a 1882, toda associação a ser criada teria que submeter
seus estatutos à Secretaria de Negócios do Conselho de Estado. Em pesquisa anterior (Viscardi,
2006) pudemos perceber que até 1888, as associações se utilizavam deste procedimento, embora
não fosse mais requerido. Os conselheiros debruçavam-se sobre os estatutos e emitiam pareceres
que produziam uma normatização paralela à lei, mas que deveria ser necessariamente seguida pelas
associações para que pudessem obter o aval de funcionamento.
Os primeiros decretos republicanos referentes ao associativismo urbano e rural tenderam
a manter as regras anteriores, consolidadas no período imperial. Este foi o caso do decreto número
164, de 17 de janeiro de 1890. Embora voltado para a regulação das sociedades anônimas, mantinha
os procedimentos legais anteriores, especialmente a lei 3.150, de 4 de novembro de 1882, que
permitia uma organização mais livre das associações de diferentes modalidades sem anuência prévia
do governo. Pode-se comprovar tal assertiva a partir do artigo abaixo:
Acessado em 17 fev.2011.
Decreto 997, de 11 de novembro de 1890, decreto 1.362, de 14 de fevereiro de 1891, decreto 1.386, de 20 de fevereiro de 1891 e
76
Estavam excluídas desta regulamentação as Sociedades Anônimas, que, conforme vimos, tiveram regulamentação própria.
78
Em 12 de janeiro de 1894, o decreto 1.649 estipulava um roteiro de como deveriam ser feitos os registros das associações. Em 1903,
79
para facilitar os registros, foi criado no Distrito Federal um Registro Especial de Títulos e Documentos, como previra a lei 973 de 2 de
janeiro de 1903. Outro decreto especificava as maneiras de o novo órgão realizar os registros (decreto 4.775, de 16 de fevereiro de
1903)
Um decreto do ano de 1907 (número 1637) substituiu “associação comercial” por “junta comercial”.
80
Era este o objetivo dos sindicatos, expresso pela legislação, o de ser um instrumento de
conciliação entre capital e trabalho.
O decreto previa igualmente a criação de sindicatos rurais, bem como de mutuais e
cooperativas agrícolas. As últimas seriam detentoras de isenções de alguns impostos para que
pudessem consolidar-se com mais facilidade.
O decreto 6532, de 20 de junho de 1907, conferia às cooperativas maior liberdade para a consecução de operações financeiras e
81
comerciais. Mais tarde dois outros decretos foram emitidos com vistas ao detalhamento da regulação sobre as cooperativas. Foram
eles: o decreto 17.339, de 2 de junho de 1926 e o decreto 22.239 de 19 de dezembro de 1932.
Por fim, o Código Civil brasileiro, aprovado em 1916, tinha em uma de suas seções uma
relativa exclusivamente às sociedades ou associações civis. Nele eram resguardadas a liberdade
de organização livre das associações, conforme norma em vigor, excetuando-se as seguradoras,
montepios e caixas econômicas.82
Considerações Finais
82
Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=102644&tipoDocumento=LEI&tipoTexto=PUB.
Acessado em 17 fev.2011.
Este capítulo foi publicado anteriormente sob o formato de artigo: VISCARDI, Cláudia. M. R.. Pobreza e Assistência no Rio de Janeiro
83
na Primeira República. Revista História, Ciências, Saúde-Manguinhos (Impresso), v. 18, p. 179-225, 2011.
bispos a fazerem inúmeras doações como exemplos de generosidade. Nesse contexto, a pobreza era
considerada mais como categoria teológica do que propriamente social. A segunda interpretação
proposta por Roberts, o modelo de caridade discriminada, predominante a partir da segunda metade
do século XII, sugeria que a ajuda aos pobres estivesse condicionada a seu real merecimento. Com a
diminuição da pobreza voluntária e o aumento dos pobres em geral, a Igreja passou a propor critérios
que definiriam os direitos e deveres dos pobres, ajudando alguns e condenando outros à miséria.
Do século XIII ao XV a Europa ocidental foi marcada pelas crises econômicas que geraram
escassez, pelo avanço da peste bubônica e pela Guerra dos Cem Anos. Tais reveses contribuíram
sobejamente para as migrações internas e conduziram milhares de trabalhadores para as cidades
em busca de sobrevivência. O abandono do campo correspondeu à ruptura de laços sociais de ajuda
mútua, o que conferiu à pobreza caráter ainda mais drástico. Surgiu então uma nova categoria de
pobre, a dos trabalhadores válidos, desempregados ou subempregados. A pobreza deixou de ser
oportunidade espiritual para ser problema social (Roberts,1996, p. 48). Tal mudança de valores em
relação à pobreza abalou as bases do modelo evangélico e a pobreza voluntária perdeu seu caráter
sagrado; os pobres se tornaram perigosos e marginais.
A antropóloga Mary Douglas (1996, p.118), em texto que questiona o emprego da teoria da
escolha racional para explicar o comportamento filantrópico do homem, afirma que existem duas
formas de ver a pobreza e de com ela se relacionar: a comunitária e a individualista. A primeira, que
remete ao modelo evangélico de Roberts, recomenda que os pobres sejam ajudados porque não são
responsáveis pela situação em que se encontram. A outra, que remete ao segundo modelo de Roberts,
observa que alguns pobres são diretamente responsáveis pela situação em que se encontram, outros
não. Por essa razão, só devem ser ajudados estes últimos. Daí a necessidade de discriminação.
Certamente, foram a Reforma Protestante e a difusão dos valores renascentistas os
eventos que mais contribuíram para mudanças nas concepções relativas à pobreza. Embora não se
possa afirmar com convicção que a pobreza fosse uma virtude na Idade Média, era de fato menos
desprezada do que passou a ser após as transformações iniciadas no século XVI. Geremeck (1997,
p.75) atenta para o fato de que, apesar de o século XVI ter sido considerado marco do advento
de uma “era moderna”, as raízes dessa suposta modernidade encontravam-se entre 1320 e 1420,
período da crise da sociedade feudal. Segundo o autor, só no século XVI se teve consciência das
mudanças que se haviam processado.
Esse período marcou também uma mudança de responsabilidades. Até então, explicar a
pobreza e cuidar dela eram atribuições religiosas. No novo contexto, os leigos foram envolvidos nesse
debate. As escolas de Bolonha, Paris e Oxford assumiram o tema como objeto de reflexão teórica.
O livre acesso ao trabalho, ocorrido a partir do século XVIII, após a ruptura das amarras
impostas pelas relações paternalistas no campo, acabou por condenar o trabalhador à liberdade, na
ausência de mecanismos formais de proteção social para aqueles que não encontravam ocupação
(CASTEL, 1998, p. 43). Longe da proteção de seu senhor, restava ao trabalhador abandonar sua
se longo caminho. Para que se atingisse o nível de proteção social vigente em muitos países da
atualidade, os valores acerca da pobreza, suas causas e as alternativas para sua redução tiveram que
mudar sensivelmente.
Este breve panorama dos olhares sobre a pobreza na Europa ocidental guarda relações com
a situação brasileira no final do século XIX e primeiras décadas do XX, período sobre o qual temos
concentrado nossas pesquisas.
Castel (1998, p. 61-73) discorda da tese razoavelmente consolidada de que o século XVI
constituiu marco divisório entre a assistência à pobreza menos e mais racional. Para muitos autores,
a partir do século XVI, os pobres passaram a ser considerados ameaça, e a assistência generosa foi
substituída por ação laica, racional, contábil e, por assim ser, mais rígida em relação aos necessitados.
Segundo o autor, tais preocupações já estavam presentes muito tempo antes, uma vez que o caráter
gerencial existente na caridade cristã da alta Idade Média manifestava-se por meio de uma série de
exigências feitas aos pobres: ter domicílio fixo, ter cadastro que os habilitasse a receberem ajuda ou
abrigarem-se em hospitais, por exemplo.
Muito antes, então, a assistência já se encontrava organizada em bases territoriais distintas
e sua gestão já não estava mais sob o controle exclusivo da Igreja. Dessa forma, os leigos participavam
ativamente do processo de assistência, embora a Igreja ainda garantisse sua preponderância. As
formas de ajuda, tanto dos leigos como dos religiosos, eram bastante semelhantes.
Roberts (1996, p.30) tende a concordar com o marco proposto por Castel, ao destacar o papel
das crises dos séculos XIII e XIV, que modificaram a forma como a pobreza era vista e as propostas
oferecidas para resolução do problema. Em razão do aumento do número de pobres e da diminuição
de recursos disponíveis para assisti-los, teria surgido no período a caridade discriminatória, ou seja,
aquela que separava os pobres em bons e maus. Tal contexto gerou a necessidade de maior intervenção
racional do poder público visando a otimização dos parcos recursos destinados à assistência.
Por serem tênues as fronteiras entre o público e o privado, em meados do século XIII,
tanto na Inglaterra como na França, o socorro aos aflitos era responsabilidade partilhada pelo setor
privado e poder público. Há que destacar, porém, o fato de que toda e qualquer ação em prol da
comunidade, a exemplo da manutenção de estradas, ruas e pontes, era considerada ação pia ou
trabalho caritativo (ROBERTS, 1996, p. 43).
Cabia às municipalidades vasto campo de tarefas, como o recolhimento das doações e
seu gerenciamento, a coleta de impostos que garantiam os orçamentos de algumas instituições, a
fiscalização do uso dos recursos repassados, entre outras. Contava o poder público com certa margem
de autonomia, que lhe garantia o direito de, por exemplo, desviar tais recursos para a defesa.
Em geral, o uso dos termos caridade e filantropia relaciona-se a ações que visam minorar o sofrimento dos pobres. Para alguns
85
estudiosos, a caridade se refere às práticas assistenciais motivadas por crenças religiosas – das mais diferentes colorações –, e a
filantropia teria caráter laico. A primeira seria uma virtude cristã, e a segunda, uma virtude social. Para discussão mais aprofundada
do tema, ver Sanglard (2008-A, p. 24-25, 32-38).
Até 1834, quando foi reformulada, a lei funcionava como miniatura do Estado de Bem-
Estar Social, só implantado definitivamente na Inglaterra em meados do século XX. Oferecia-se
mais do que uma ajuda básica; além do salário, os pobres poderiam contar com o pagamento do
aluguel, da comida, de itens de vestuário, do carvão e do funeral (Kidd, 1999, p.17). O sistema era
descentralizado, fazendo com que a assistência fosse gerenciada localmente. Cada administrador
tinha autonomia suficiente para assistir à sua comunidade, a qual conhecia de perto.
O caso italiano afastou-se um pouco das experiências britânicas. O século XVI foi marcado
igualmente pela laicização do socorro público, por meio da proliferação de instituições como as
guildas e as irmandades e dos socorros proporcionados pela administração das cidades (CAVALLO,
1998, p.112). Ao longo desse período, a assistência ainda se processava de maneira impessoal e
anônima, voltada para aqueles que mantivessem suas raízes comunais bem fincadas. Tais práticas
serviam para reforçar valores como o de pertencimento, o que redundava na percepção da assistência
como um direito comunal. Segundo Sandra Cavallo:
As implicações ideológicas desse modelo de caridade são evidentes. Como nas irmandades,
na caridade que prevaleceu no século XV, a distância social era obscurecida pela
transferência caritativa que apelava para uma retórica de identidade compartilhada. A
caridade era apresentada como forma de ajuda mútua entre membros da mesma sociedade.
(CAVALLO,1998, p.113)
Ainda segundo a autora, a dependência recíproca não atuava como fator desmobilizador
das relações hierárquicas; ao contrário, as diferenças de status eram reforçadas por tais ações de
ajuda mútua.
O modelo de caridade italiano sofreria alterações substanciais somente ao final do
século XVII, sendo a mais marcante a personificação da ajuda aos pobres, o que fez com que sua
prática se tornasse sinal inequívoco de distinção para o doador. Tais mudanças se explicariam pela
transformação das cidades em arenas competitivas dos diferentes setores da elite, que se sentiam
ameaçados pela emergência social de novos grupos (CAVALLO,1998, p.119).
Como parte de uma estratégia de acumulação de capital simbólico, tais setores investiram
na construção de instituições de segregação dos pobres, que se expressavam arquitetonicamente
em grandiosos prédios barrocos, os quais celebravam a generosidade de seus construtores. Em
vez do pobre inserido no espaço comunitário, observou-se seu progressivo isolamento; em vez das
celebrações comunitárias, os cultos entre quatro paredes; em vez de a assistência ser lida como
direito, passou a ser um favor. Esse conjunto de mudanças alterou as relações de reciprocidade
comunais, uma vez que o pobre jamais esperaria poder retribuir o socorro recebido.
Sandra Cavallo (1998, p.109) afirma que uma das especificidades das formas de assistência
praticadas na Itália foi a longa permanência da caridade privada. Embora as instituições – pias ou
leigas – recebessem subsídios do Estado, a elas cabia todo o gerenciamento da assistência aos
pobres. De forma diferente do que ocorreu na Inglaterra, cuja Coroa cobrava imposto para sustentar
as variadas ações da Lei dos Pobres, na Itália o Estado limitava-se a agenciar alguns empregos para
trabalhadores que momentaneamente estivessem sem postos de trabalho.
O caso francês mantinha também algumas especificidades e analogias com o inglês. No
período pré-revolucionário os recursos para a assistência pública provinham de um fundo nacional
controlado pelo Estado, distribuído entre as variadas localidades. Embora após a Revolução
Francesa tenha havido iniciativas com o propósito de centralizar a distribuição desses recursos, eles
continuaram a ser controlados pelos chefes locais, proprietários de terras, que aduziam ao fundo
seus próprios recursos. A separação de recursos públicos e privados só ocorreu no final do século
XIX (INNES, 1998, p.29).
Como visto, a despeito da preexistência de ações públicas, pretensamente mais racionais,
em meados do período medieval, a partir do século XVI ocorreu uma progressiva e rápida laicização
da caridade. O crescimento populacional e econômico inaugurado pelo período moderno permitiu
que os recursos destinados à assistência também fossem ampliados e a criação dos Estados nacionais
fez com que aumentasse a intervenção do poder público sobre a pobreza.
A discussão sobre o estatuto legal dos pobres e dos benfeitores levou juristas de ocasião
a defender a tese de que um bem recebido pelo pobre gerava apenas o direito de posse e não
de propriedade. Critérios mais rígidos de controle de bons e maus pobres foram estabelecidos e
fiscalizados sob a égide do Estado. A fixação de preços e salários, o controle da mobilidade dos
trabalhadores pela implementação de contratos rígidos de trabalho, a proibição da vagabundagem
e da mendicância, o ostensivo controle exercido pelos hospitais, que passaram a não mais
acolher indiscriminadamente quem lhes batesse à porta, foram medidas significativas a atestar
as efetivas mudanças da assistência conferida aos pobres. Tais mudanças destruíram as relações
de reciprocidade próprias da prática evangélica da caridade, além de ter alterado o exercício das
relações de solidariedades primárias, principalmente as de caráter familiar (CASTEL, 1998, p.114;
ROBERTS, 1996, p.49).
Retomando o caso inglês, no início do século XIX, o impacto das teorias demográficas
de Malthus e do Darwinismo Social sobre as principais lideranças políticas fez com que a Lei dos
Pobres perdesse força, vítima das pressões daqueles que queriam sua extinção. Em uma sociedade
que estaria fadada à fome devido à desproporção entre o alimento produzido e o crescimento
populacional, disseminou-se a crença de que o Estado liberal deveria limitar sua atuação, não
interferindo no âmbito da assistência, para que a seleção natural cuidasse de preservar os mais
aptos e extinguir os menos aptos.
Em contraposição a essas teses – que estavam longe de ser unânimes – os filantropos
cerraram fileiras em prol da ampliação da proteção oferecida pelo Estado. O consenso entre essas
duas posturas foi possível por meio da reforma da Lei dos Pobres, ocorrida em 1834. Na época
ocorreram, no Leste e no sudeste da Inglaterra, importantes motins, cujos objetivos eram conseguir
que essa lei não fosse extinta e que os recursos a ela destinados fossem ampliados (HOBSBAWM,
RUDÉ, 1969). Na ocasião os parlamentares perceberam, com espanto, que a Lei dos Pobres era
entendida pelos assistidos como um direito e não como uma concessão do Estado. A reforma de
1834 implicou a redução dos investimentos estatais, tornando a Lei dos Pobres menos inclusiva. Sua
principal mudança, porém, foi enrijecer ainda mais a separação entre os pobres merecedores e os
não merecedores de assistência.
A partir de então foram excluídos dos socorros todos os trabalhadores aptos, mesmo
aqueles que não se encontrassem desempregados por opção, mas por falta de postos de trabalho.
Dessa forma, passaram a receber ajuda apenas os miseráveis, indigentes ou inválidos. Para os
recalcitrantes, restavam as workhouses (casas de trabalho, muito semelhantes a asilos e orfanatos),
que funcionavam como alternativa derradeira. Lá se trabalhava arduamente, sob rígida disciplina e
em condições humilhantes; a dieta era magra, e as acomodações, espartanas. A ideia era torná-las
detestáveis ao máximo, para que a elas só recorressem os completamente destituídos de condições
mínimas de sobrevivência (KIDD, 1999, p.28).
Diante dos reduzidos impactos da reforma de 1834 e das denúncias de que a caridade
indiscriminada continuava a ocorrer à revelia da legislação, foi criada a Charity Organization Society,
cujo fim último era coordenar todas as ações públicas e privadas, para que o sistema de assistência
aos pobres não fosse duplicado ou entregue a pessoas que não o mereciam (HUMPHREYS, 1995).
Como se pode perceber, até então, não havia muita diferença entre assistência pública
e privada, pois ambas as iniciativas atendiam aos pobres. A própria Lei dos Pobres era conhecida
como “caridade legal”. Muitos voluntários com vinculações religiosas atuavam a serviço da Lei dos
Pobres e muitas das arrecadações para caridade eram repassadas aos pobres pelos agentes estatais.
Sem a ação voluntária dos religiosos e leigos, a Lei dos Pobres não conseguiria atingir seus fins
(CUNNINGHAM, INNES, 1998, p.2).
Antes que o Estado assumisse de fato seu papel, responsabilizando-se pela assistência
à pobreza, houve um período de transição no qual as instituições de caridade determinavam sob
quais condições o Estado, ainda que timidamente, contribuiria. Aceitando seu status de iniciante na
parceria, o governo deixou as sociedades livres para levar adiante, durante décadas, a assistência,
o que contribuiu para o atraso de sua entrada no sistema. (PROCHASKA, 1988, p.67). Tal período,
conhecido como o de mixed economy of welfare, caracterizava-se pela divisão de tarefas entre os
setores público e privado. Para os contemporâneos pouco importava se as ações eram do Estado, dos
leigos ou dos religiosos. Os filantropos acreditavam na primazia da ação privada sobre a pública, o que
era conveniente para o Estado. Para eles o Estado deveria limitar a sua ação em benefício daqueles
que fossem por eles identificados como não merecedores de ajuda, ou seja, os pobres “enganadores”.
A Guerra Civil americana, ao interromper a exportação de algodão para a Inglaterra,
matéria-prima fundamental para sua indústria têxtil, provocou aumento do desemprego, ampliando
a demanda de recursos assistenciais. Pela primeira vez percebia-se na prática a existência de pobres
vítimas de um contexto socioeconômico adverso e não pobres por opção ou indolência. O aumento
dos motins contra a fome e o desemprego (como o Black Monday em 1886 e o Bloody Sunday no
ano seguinte) fez com que muitas autoridades reconhecessem a injustiça da repressão policial e a
necessidade de romper com as políticas discriminatórias da Sociedade de Organização da Caridade
(KIDD, 1999, p.58). A partir daí investiu-se mais na oferta de postos de trabalho no setor público, e as
formas de assistência aos pobres foram diversificadas. Essas soluções, no entanto, eram insuficientes,
e fizeram crescer a expectativa de que só com a ampliação da intervenção do Estado seria possível
aplacar ou reduzir os alarmantes índices de empobrecimento dos trabalhadores britânicos.
A partir do momento em que se entendeu que as causas da pobreza eram resultantes do
contexto econômico e social e que a caridade privada era insuficiente para resolvê-las, estabeleceu-
se um consenso em torno da obrigação do Estado como provedor de assistência efetiva, consenso
fundamental para o estabelecimento do Welfare State britânico no século XX. Tal postura revelava
uma mudança de mentalidade em relação ao problema.
Mesmo após a entrada do Estado como financiador da assistência à pobreza, afirma Frank
Prochaska (1988, p.40-41), o dinheiro destinado aos pobres pela filantropia excedeu em muito o
investimento estatal, mesmo tendo sido a Inglaterra o país em que mais recursos o Estado destinou
à assistência aos pobres. Segundo o autor, a primeira metade do século XIX vira a ascensão da
filantropia, e a segunda, seu triunfo, ou seja, em que pese a entrada do Estado como relevante
parceiro na ação de assistência pública no período, as ações filantrópicas não sofreram refluxo.
A conjuntura de guerra no século XX gerou imensa demanda de políticas de proteção social,
acelerando a entrada do Estado como promotor da assistência pública. Foram criadas instituições
de acolhimento de necessitados, ampliando-se as distâncias entre doadores e receptores. Após a
Segunda Guerra Mundial, consolidaram-se as inúmeras iniciativas características do Welfare State
na Inglaterra e em várias regiões da Europa continental.
Constam na apresentação do estudo referências elogiosas ao prefeito Pereira Passos, segundo o autor, por ter sido ele o responsável
86
pela iniciativa de se fazer tal levantamento. O prefácio dessa obra já havia sido publicado em 1916, sendo reproduzido na obra de
1922 com a inclusão de outras informações, sobretudo estatísticas.
A técnica utilizada foi o envio de questionários para as instituições, além de algumas visitas realizadas in loco pelo autor. Para que
87
levantadas e expressou sua avaliação em relação aos serviços de assistência aos pobres do Rio de
Janeiro, propondo alternativas para melhorá-lo.
Sem dúvida, se lhe foi atribuída tão importante tarefa, desfrutava de vasto conhecimento
sobre o assunto, o que se comprova na leitura do trabalho. Conhecia também amplamente os
serviços de assistência à pobreza na Europa, por ter representado o Brasil em dois congressos
internacionais voltados para a discussão do tema, um em Paris (1903) e outro em Milão (1906).
Dada a circunstância em que a obra foi escrita e tendo em vista os fins aos quais se destinava,
acredita-se que possa ser um bom material, entre outros disponíveis, a nos conferir acesso ao modo
como pensavam as pessoas que se preocupavam com a pobreza e se mobilizavam para amenizá-la.
Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX, destacaram-se na sociedade civil
brasileira intelectuais, políticos, lideranças religiosas ou leigas que, preocupados com a situação de
uma crescente multidão de desvalidos, mobilizavam seus recursos – materiais e imateriais – para
amparar as vítimas do pauperismo. Chamaremos esse grupo de reformadores pois, além de terem
atuado como filantropos, sugeriram políticas públicas a adotar no combate à pobreza88.
Pretende-se, por meio de da análise de algumas de suas obras89, ter acesso ao pensamento
daqueles que se empenhavam em propor ações assistenciais, de caráter público ou privado. Objetiva-
se também perceber de que forma tais reformadores encontravam-se conectados às experiências e
às discussões teóricas que se processavam no continente europeu. Para esse fim, foram escolhidos
três temas por eles abordados: a necessidade de organização da caridade, a proposta de se realizar
no Brasil a filantropia científica e o papel do Estado em relação à assistência aos pobres.
88
Para uma análise das propostas de alguns desses reformadores no que tange à questão da saúde, em especial dos hospitais, ver
SANGLARD, (2008-B, p.59-88).
89
Além da obra citada, serviram como subsídios os seguintes trabalhos: FERREIRA DA ROSA, 1905; MONCORVO FILHO, 1907; LUIZ
BARBOSA, 1908; HENRIQUE AUTRAN, 1909; e um segundo livro de Ataulpho de PAIVA, de 1916. Essas obras estão depositadas
na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. No levantamento de publicações específicas sobre o tema, não foi encontrada vasta
quantidade de obras. Cabe lembrar que o país era majoritariamente iletrado e que o número de intelectuais, em si mesmo diminuto,
voltava-se para outros temas. Em que pesem tais limitações, dada a proeminência que tais reformadores tiveram em seu meio,
não só como escritores, mas sobretudo como porta-vozes do Brasil no exterior, suas propostas contribuíram para a composição
de uma opinião pública sobre o tema, a qual se corporificou em práticas assistenciais reais. Cabe também destacar que boa parte
desses autores era dirigente de instituições filantrópicas e atuou, em variadas ocasiões, como gestor público. Esse conjunto de
circunstâncias torna suas obras contribuições efetivas para formar uma ideia de como a pobreza era vista e dos meios sugeridos
para sua amenização.
Olavo Bilac (1865-1918) foi jornalista e poeta, membro fundador da Academia Brasileira de Letras. Envolveu-se em campanhas pela
90
difusão do ensino primário e pelo recrutamento militar obrigatório. O Congresso foi criado pelo decreto 685 de 6 de fevereiro de
1908 e foi uma das atividades da Exposição Nacional ocorrida no mesmo ano.
em quatro seções de discussão, cada uma privilegiando uma modalidade de assistência: pública,
médica, à infância e externa.
As teses defendidas no congresso de 1908 muito se assemelhavam às propostas de
Ataulpho de Paiva em sua publicação de 1922. Portanto, é possível notar que entre a realização do
congresso (1908) e as comemorações do primeiro centenário da independência (1922) pouca coisa
havia mudado; e que as propostas de Paiva, expostas em 1922, eram compartilhadas por boa parte
da sociedade civil brasileira organizada, que se reunira no congresso de 1908. Será retomada adiante
a análise das conclusões do congresso.
Outro problema relativo à assistência pública no Brasil, segundo Paiva, era que essa resumia-
se ao combate de epidemias e à difusão dos preceitos de higiene, o que permitia perceber suas
profundas limitações. Diante de tal panorama, uma das soluções apontadas por Paiva era o princípio
da discriminação da caridade. Como dito anteriormente, em vários países europeus, desde o período
medieval, discriminava-se o bom e o mau pobre para que os recursos destinados à caridade não
fossem desperdiçados com aqueles que não os merecessem. Tal ideia está fortemente presente nas
propostas de Paiva, de realização de inquéritos sobre a situação material e moral dos mendigos.
Condenando a doação de esmolas sem a prévia realização desses inquéritos – que deveriam
ser feitos pelas comissões encarregadas da realização de visitas domiciliares e cujos resultados
deveriam ser enviados para uma comissão central que fiscalizaria continuamente as ações de
socorro público, Paiva (1922, p.51) acreditava que a “esmola disciplinada” impediria o desperdício
de dinheiro. Ele defendia a proposta de que apenas os indigentes inválidos deveriam ser ajudados,
cabendo aos demais responsabilizar-se por si, tal como ocorrera na Inglaterra a partir de 1834.
Percebe-se que o diagnóstico de Paiva sobre a assistência aos pobres no Brasil apontava
para a dispersão e a desorganização das iniciativas assistencialistas. Embora fossem os brasileiros
sensíveis às duras condições de vida dos pobres, agiam de forma desorganizada, desperdiçando
recursos. A solução seria a organização das iniciativas de caridade, o que passava pela discriminação
dos pobres, com o fim de só ajudar aqueles que merecessem ajuda. Mas de que forma organizar as
ações de assistência? A resposta seria a implantação da filantropia científica.
A assistência pública não é obrigatória sob o ponto de vista higiênico como sob o ponto de
vista moral; o zelo sanitário da sociedade deve abranger o corpo e a alma. Os vícios fazem
devastações mais tremendas do que as que resultam das epidemias. A nossa sociedade, pela
sua constituição sociológica, tem o dever de criar os órgãos de assimilação moral de almas
que ela mesma corrompeu pela ação nefasta da escravidão. A Assistência Pública, sobre ser
cientificamente um fator necessário do saneamento étnico, é socialmente uma reparação
devida a grande parte de nossa população (PAIVA, 1922, p.59).
Essa citação apresenta alguns valores compartilhados por Paiva, em cuja opinião a assistência
pública consistia no combate aos vícios do corpo e da alma, do que se infere que, em sua concepção, a
pobreza resultava de um desvio moral do indivíduo. Sob esse aspecto, o autor se aproxima das concepções
já discutidas, comuns aos europeus em períodos anteriores ao século XIX. Ao mesmo tempo, destaca
o fato de a escravidão ter tido ação nefasta sobre a pobreza. Nesse caso confere ao contexto social
um caráter explicativo, aproximando-se de interpretações mais contemporâneas do tema. Considera a
assistência aos pobres uma ação reparadora, específica de um país que fora escravista.
Outro valor que se pode inferir de sua citação é o do cientificismo como forma de promover o
saneamento étnico. Paiva compartilhava dos ideais da chamada “geração de 1870”, a qual compartilhava
das teses cientificistas e apostava no progressivo melhoramento das raças (BARROS, 1986; SCHWARCZ,
1993). Partia do princípio de que para o pauperismo não havia solução. Tratava-se de um fenômeno
da natureza que, por mais que fosse combatido, jamais poderia ser vencido, apenas enfraquecido. A
pobreza era vista como uma mazela natural e não como um fato social, de causas históricas.
De acordo com Paiva (1922, p.50), o Brasil ainda cultivava uma forma ineficaz e primitiva
de solidariedade humana, que se limitava à caridade religiosa. Embora tivesse certa importância,
seus resultados eram utópicos e limitados “porque a verdadeira beneficência é a que promove, não
a preguiça, o descuido e a degenerescência da raça, mas o trabalho, a economia, o progresso moral
e físico das gerações”. Nessa citação transparece também a preocupação racial no pensamento de
Paiva. A ideia de que só o trabalho é capaz de evitar a degenerescência racial integrava um conjunto de
valores compartilhados pelas elites brasileiras formadas no final do século XIX. As soluções apontadas
por ele passam pela racionalização das ações e pela laicização das práticas assistencialistas, bem como
pela superação dos problemas raciais brasileiros, que remontariam à formação de nosso povo.
O cientificismo como valor relevante pode ser facilmente percebido também no conjunto
das obras dos demais reformadores, para quem a caridade deveria ser parceira da ciência a fim de
melhor cumprir seus objetivos. Só a ciência seria capaz de conferir à caridade organização metódica.
Para isso inspiravam-se no exemplo inglês. Em muitos trabalhos elogiam-se os resultados obtidos
pela Charity Organization Society, que fora capaz de produzir excelentes resultados em terras
britânicas. Referem-se igualmente à experiência francesa, na qual, com a criação do Ofício Geral
das Obras de Beneficência, o Estado conseguira controlar toda a ação das associações privadas de
caridade (AUTRAN, 1909, p.3; BARBOSA, 1908, p.23).
Em trabalho anterior Ataulpho de Paiva (1916, p.102) afirma ser a assistência pública no
Brasil marcada por confusão e anarquia e lamenta a ausência do país nas discussões internacionais
travadas no final do século XIX e que pouca repercussão tiveram no Brasil – refere-se a pelo menos
duas delas: o Congresso Internacional de Direito Comparado e o Congresso Internacional de
Assistência Pública e Beneficência Privada (Paris, 1903).
Por suas considerações, infere-se que Paiva responsabiliza esses eventos pela criação de uma
“nova ciência da filantropia”. Mais adiante ele diria o que foi essa assembleia, o que ela conseguiu
estudar, discutir e resolver; como procurou ela fundar uma ciência nova, elevando a beneficência pública
à alta dignidade de uma organização racional e lógica; como os problemas da filantropia e o ensino da
solidariedade, respeitadas as grandes obras de nossos maiores, passaram, inteiramente transformados,
a constituir uma nova e surpreendente atmosfera, em que a concepção social, maior que a concepção
política, formou um complemento necessário de cultura e educação cívica (PAIVA, 1916, p.104).
A filantropia científica era metódica, devendo, portanto, levar em conta a jurisprudência,
pois faltavam leis reguladoras no Brasil. Embora já tivessem sido aprovados alguns decretos que
previam o amparo à infância ou aos doentes mentais, esses eram descumpridos ou insuficientes, ou
não funcionavam como instrumentos uniformizadores das ações dispersas. Contra esse problema
sugeria a implantação de uma filantropia jurídica.
Vê-se que a ideia de estabelecer uma assistência metódica passava pelo cientificismo, pela
laicização, pelas teorias raciais e pelo saber jurídico, alicerces culturais da geração de 1870, da qual
Paiva e os demais reformadores faziam parte. A quem, entretanto, caberia a responsabilidade pela
organização científica da assistência? Veremos agora o que pensavam nossos reformadores sobre a
participação do Estado no trato com a questão social.
Arthur Moncorvo Filho (1871-1944), médico e higienista, fundou o Instituto de Proteção e Assistência à Infância no Rio de Janeiro,
91
De fato, na vida orgânica das sociedades atuais o poder objetivo dos governantes invariavelmente
se tem exercido e se exerce considerando a assistência como um dever estrito do poder público,
embora à iniciativa privada se confira toda a liberdade de ação para desenvolver, cultivar e
produzir os milagres da sua benéfica e sagrada missão” (PAIVA, 1922, p.53).
Segundo o congresso de 1903, ao Estado caberia o dever da proteção social, sem impedir
a realização das iniciativas individuais, de âmbito privado, embora sob sua organização e vigilância,
por meio da criação de Ofícios de Assistência, responsáveis por coletar as doações e distribuí-las aos
necessitados, com base em critérios racionais. Caberia também ao Estado incentivar as doações e
criar instituições, desde que orientadas cientificamente. Para isso, conferiria todo o apoio jurídico
que se fizesse necessário.
Os trabalhos de Paiva de 1916 e de 1922 propunham essas teses. Em sua análise dos
modelos inglês e francês, Paiva não leva em conta as dificuldades dessas iniciativas, só mencionando
os êxitos da experiência francesa que, ao criar o Ofício Geral de Assistência, ampliou grandemente
o número de instituições de amparo e de pessoas socorridas. Por essa razão, propôs a criação no
Brasil do Ofício Geral de Assistência Pública, órgão estatal responsável pela gestão dos socorros em
todas as suas dimensões.
Para a implantação de uma ‘filantropia científica’, Paiva propunha que se concedesse ao
Estado o direito de intervir sobre a rotina das instituições de caridade com o fim de coibir fraudes,
evitar maus-tratos, desvendar crimes e corrigir injustiças. Tal ação não significaria, em sua visão,
uma intervenção do poder público sobre a sociedade civil, mas apenas o cumprimento de um papel
complementar na administração da economia da caridade. Um governo que anunciasse que só ele
concederia socorros completos aos indigentes, quaisquer que fossem as idades destes, carregaria
um fardo enorme, aniquilaria a indústria, favoreceria a indolência do rico, do pobre mesmo, e
quebraria a grande mola da sociabilidade – a beneficência privada. Dois laços poderosos devem
ser empregados para socorrer a massa dos pobres: a beneficência governamental e a beneficência
particular – uma limitada, variável e considerada sob todos os pontos de vista como um simples
exemplo dado às classes abastadas; a outra reputada um dever (PAIVA, 1922, p.60).
Outro reformador interessado no assunto foi Henrique Autran. As teses por ele apresentadas
no 4o Congresso Latino-Americano (AUTRAN, 1909, p.1-2) também apontavam como dever do Estado
responsabilizar-se pela assistência pública. Em seu trabalho, fez duras críticas às teses inspiradas
pelo darwinismo social, que sugeriam que a sociedade deveria regular-se pela lei do mais forte. E
exaltou o governo francês, que amparava os pobres regulando as atividades assistenciais, mas sem
interferir na autonomia da caridade privada. Referia-se também ao modelo alemão como o mais
adequado no amparo aos idosos, destacando o repasse de recursos pelo Estado para as famílias
cuidarem de seus velhos, tornando a hospitalização uma exceção.
Autran (1909, p.3-5) tece longos elogios à Lei dos Pobres na Inglaterra, sustentada pela
contribuição compulsória de toda a população que possuía propriedades. Tal amparo estatal,
segundo o autor, permitiu que os indigentes recebessem abrigo após Henrique VIII ter fechado
todos os conventos, em decorrência de suas disputas religiosas. O autor demonstra razoável
conhecimento acerca dos mecanismos de funcionamento da Lei dos Pobres e elogia bastante seus
resultados. Refere-se também às experiências austríaca, dinamarquesa e sueca, o que revela estar
esse brasileiro plenamente conectado às experiências internacionais, utilizando-as para compor suas
próprias propostas de assistência pública. Provavelmente inspirado pelo exemplo inglês, recomenda
medidas repressivas contra os mendigos válidos, propondo a criação de casas de trabalho forçado
(semelhantes às workhouses inglesas) administradas pela polícia, onde fossem recolhidos e detidos
por longo tempo. Os asilos e hospitais limitariam seu acolhimento aos doentes e inválidos. Para
atestar a viabilidade dessas iniciativas, o exemplo inglês é novamente referência. Autran propõe a
criação de um imposto de invalidez (a poor rate britânica), uma percentagem fixa a ser cobrada dos
setores produtivos brasileiros (Autran, 1909, p.15-18).
Nota-se que existia consenso dos reformadores em dois aspectos: as assistências pública
e privada deveriam coexistir e a ação do Estado deveria ser mais efetiva. Todos se inspiravam em
modelos europeus e estavam conectados às mudanças lá ocorridas a partir do século XIX.
Considerações finais
ambiguidades. Por um lado, considerava-se a pobreza fenômeno social; por outro lado, um fenômeno
natural ou moral. Tal dualidade no trato da questão revelava o choque de duas concepções distintas,
próprias de um país que transitava para a modernidade capitalista, embora mantendo ainda muito
rígidas as concepções próprias de seu passado escravista, ameaçado pelo rápido processo de
urbanização, industrialização e modernização.
Apesar de acompanharem as experiências europeias a partir dos congressos internacionais,
nem sempre tinham acesso aos problemas gerados pelas diferentes experiências implantadas, seus
fracassos e limitações. Ao mesmo tempo, suas propostas de maior participação do Estado no trato
com a questão social encontravam-se limitadas por duas circunstâncias: a prevalência do ideário
liberal, que via na intervenção do Estado um mal capaz de pôr em risco a República, e a incapacidade
do Estado brasileiro, em razão de seu pequeno tamanho e da escassez de recursos, de se fazer
presente em todas as regiões do país.
Embora algumas políticas de proteção social, mesmo que mínimas, tenham sido
implantadas, e o Estado tenha subsidiado algumas iniciativas de proteção social no período 92, fato
é que a ausência de políticas públicas de amparo à saúde, à educação, ao emprego e à renda, aos
inválidos, aos idosos e à infância abandonada deixavam significativa parcela de brasileiros relegada
à caridade de setores religiosos e/ou leigos que, por mais que se empenhassem, não conseguiriam
resolver o problema da pobreza no país.
Nossos reformadores e filantropos conheciam bem tais limitações e muito fizeram para
superá-las. Sua crença no cientificismo, na organização metódica da assistência e na possibilidade
de o Estado assumir a responsabilidade pelo problema os mobilizava. Mas tal empenho não era
suficiente. Seriam ainda necessários muitos anos até que o Brasil começasse a amparar seus
miseráveis de forma eficaz. Mais de cem anos se passaram, e uma série de políticas de proteção
social foi implementada por sucessivos governos; ainda assim, se nossos reformadores aportassem
hoje no Brasil talvez ficassem mais indignados do que estavam no início do século XX.
Aqui destaco e lei contra acidentes de trabalho (1919), a regulamentação do trabalho do menor (1923 e 1926) e a criação das caixas
92
Corporativismo: cartografia
de um conceito 93
Foi significativo o impacto das análises de Koselleck (2006) na historiografia, em que pese
o fato de o autor ter sido publicado tardiamente no Brasil. Sua análise diacrônica dos conceitos nos
campos da História Política e Social foram de fundamental importância para a compreensão que
os contemporâneos possuíam acerca de suas instituições, na medida em que o autor alemão nos
fornecia instrumentos analíticos capazes de nos prover acesso à gramática política por meio da qual
os atores liam e escreviam sobre o seu próprio tempo, constituindo-se em ferramenta eficaz para
evitar-se o anacronismo, risco comum nas análises historiográficas.
Por meio de suas abordagens percebemos que conceitos são compostos por múltiplas
camadas de significados que se sobrepõem ao longo do tempo. Algumas vezes, os mesmos signos
assumem diferentes significados ou os mesmos significados passam a ser expressos por meio das
mesmas palavras, circunstâncias também observadas pelos pesquisadores da história intelectual
reunidos na Universidade de Cambridge do Reino Unido (JASMIN E FERES JR, 2006).
O uso político de um conceito é fundamental para a compreensão das estratégias dos
atores sociais. Da mesma forma, a análise de apropriações alternativas de um conceito em relação
ao seu significado original nos diz muito sobre o debate político em curso. É importante estar atento
a tais variações. É o caso do conceito de corporativismo, objeto primordial de nossa análise. Como
veremos, o termo passou por inúmeras mudanças, dentro e fora do Brasil e foi apropriado de
diversas maneiras.
Como título alude metaforicamente, pretendemos fazer uma cartografia do conceito de
corporativismo, ou seja, analisar suas variadas representações em múltiplos espaços. Elegemos para
este fim algumas estratégias. A primeira delas consiste em acompanhar as representações iniciais
que deram origem ao conceito; em seguida, analisamos como o conceito foi apropriado no Brasil
pelos seus intelectuais e de que forma eles fundamentaram as primeiras experiências políticas
corporativas. Em um terceiro momento, procuramos analisar como a imprensa abordou o conceito.
E por fim, como a literatura especializada o modificou nos anos recentes.
As fontes e parte dos argumentos desenvolvidos neste capítulo serviram de subsídios a duas outras produções anteriores, a saber:
93
VISCARDI, Cláudia M. R. Ensaio bibliográficos: Corporativismo e neocorporativismo. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro,
CPDOC/FGV, vol 31, nº 64, p. 244-256, maio-agosto 2018 e VISCARDI, CLÁUDIA M. R. Corporativismos: uma análise conceitual e
historiográfica. In: Luciano Arone Abreu; Marco Aurélio Vannucchi. (Org.). Corporativismos Ibéricos e Latino-Americanos. 1ed.Porto
Alegre: EdPUCRS, 2019.
não levassem a situações de conflito (CLAWSON, 1989, p.38-42). Ou seja, associações corporativas
tinham por fim estabelecer um formato de associação e representação de interesses a par das
disputas intra ou interclassistas, desde sua mais remota origem.
Álvaro Garrido (2016, p.18-19) afirma que as corporações deram origem a variadas instituições,
cujos princípios eram semelhantes: cooperação, reciprocidade, solidariedade e responsabilidade
coletiva. Juntas, compunham o que o autor chama de “economia social”, expressão que no Brasil se
encontra mais próxima à ideia de economia solidária. Em Portugal, a mais forte delas foi o mutualismo.
Mas esses diferentes tipos de associação de ofício, embora mantivessem princípios semelhantes, não
eram tratados como corporações. A palavra que melhor os definia era “cooperativismo”.
Do sentido original, vinculado às corporações de ofício do medievo restou apenas a ideia
de que o corporativismo é uma organização societária que tem por base um ofício ou uma profissão
e que pode ser incorporada pelo Estado como uma modalidade específica de representação de
interesses. Portanto, o fato de a associação corporativa integrar o repertório de organizações
disponíveis à sociedade civil mobilizada não garante, por si só, a existência do corporativismo.
Sindicatos, associações mutualistas, centrais sindicais ou federações de associações trabalhistas ou
patronais, embora possam ser organizados em torno de ofícios específicos, não são suficientes para
qualificar um regime como corporativo. Outros ingredientes se fazem necessários para o sucesso da
receita. É preciso que tais corporações atuem nos processos decisórios como representantes de suas
respectivas categorias e que os marcos legais de sua atuação sejam definidos pelo Estado. Da mesma
forma, é preciso que interfiram sobre os rumos dos acontecimentos, ou seja, que tenham capital
político de efeito real ou simbólico sobre eles. Em alguns momentos específicos, as associações
corporativas tiveram sua autonomia limitada ou condicionada por interesses outros que não o de
seus próprios membros e detiveram o monopólio da representação de determinada categoria.
A definição mais clássica do fenômeno, à qual a maioria dos escritos acerca do tema faz
referência, é a de Philippe Schmitter, que diz:
Antes mesmo da associação feita por Schmitter entre o corporativismo e os regimes au
toritários do entre guerras, o renomado jurista Hans Kelsen (2013) já havia afirmado na década
de 1920 que, ao contrário do que divulgavam seus teóricos, o corporativismo não tinha nenhu
ma relação com os regimes democráticos, pois se encontrava fundamentado nas ditaduras, ao
esvaziarem os parlamentos em suas funções deliberativas. Essa visão se tornou predominante para
a maior parte dos acadêmicos que se debruçaram sobre o tema. No entanto, o conceito já existia
anteriormente à referência de Kelsen e ainda é utilizado hoje largamente com outro significado, ou
seja, distinto do de autoritarismo.
Manoilescu, professor de economia da Escola Politécnica de Bucareste, que teve sua obra
publicada em vários idiomas, inclusive em português, via o corporativismo como um modelo de
organização da sociedade civil em sua relação com o Estado e o mercado que consistiria numa terceira
via, alternativa às relações existentes nas sociedades autoritárias e/ou liberais. O autor propunha,
entretanto, uma separação do conceito de sua vertente autoritária ao dizer: “Se todos os fascismos
foram corporativistas, nem todos os corporativistas foram fascistas” (GARRIDO, 2016, p. 192, apud).
Embora Manoilescu tenha reivindicado a separação entre formatos corporativos de intermediação de
interesses e estados autoritários, as experiências históricas conectaram as duas coisas, associando a
prática corporativa ao fascismo ou aos demais regimes autoritários do entre guerras. Isso fez com que
o conceito assumisse um caráter acentuadamente pejorativo, sobretudo no Brasil.
Outros teóricos autoritários dos anos 1930 defendiam a proposta corporativista, o que se
tornou mais fácil depois das experiências francesa, portuguesa e espanhola, além da italiana. Tanto
Francisco Campos quanto Azevedo Amaral apostaram na representação profissional como meio
de resolver os problemas que eles viam no funcionamento dos parlamentos. Campos teve efetiva
intervenção sobre os formatos de participação corporativa criados no Brasil antes, durante e depois
do Estado Novo.
O uso do conceito de corporativismo não se limitou aos intelectuais. Vargas, em seu
primeiro discurso proferido sobre o tema, no imediato pós Revolução de 30, em dois de janeiro de
1931, defenderia o modelo:
Embora o conceito já fosse conhecido pelos brasileiros, a opção por omiti-lo e por adotar
a expressão “representação classista” explica-se, a nosso ver, pela tentativa em desassociá-lo do
modelo italiano, tanto para que pudesse ter um formato próprio no Brasil, quanto para que se
desvencilhasse do fascismo, em curso desde os anos 20. Dois meses depois, um decreto já garantia
a representação classista dos trabalhadores sindicalizados no Estado.
O Código eleitoral de 1932, que organizou as votações para a Assembleia Constituinte,
garantia aos trabalhadores sindicalizados uma representação específica no Parlamento. Até então,
o conceito de corporativismo não aparecia nos decretos oficiais e, como vimos, nem na imprensa,
com pequenas exceções pontuais.
Agamenon Magalhães, Ministro de Vargas, concedeu uma entrevista ao jornal “Correio
da Manhã” em 28 de setembro de 1936 em que enaltecia os benefícios do corporativismo para o
combate à depressão econômica:
Enquanto o marxismo prega a luta de classes e a supressão de uma delas pela violência ou
ditadura proletária, o corporativismo substitui o conceito de uma luta pelo de integração
das classes em unidades econômicas. (...) No Brasil o Estado criando o sindicato, dando-
lhe função pública e representação no Parlamento, juntas de conciliação e conselhos
administrativos dos Institutos de Previdência, lançou as bases para o movimento corporativo,
que poderá desabrochar com modalidades da economia brasileira.
Percebe-se claramente uma defesa do modelo pelo ministro, visto como uma solução
de resolução dos conflitos entre capital e trabalho, além de ser uma fórmula capaz de auxiliar o
desenvolvimento econômico nacional. As referências ao conceito pareciam estar alterando-se em
meados da década de 30.
Conforme antes aludido, o ano de 1934 foi o da publicação na Europa da obra “O Século
do Corporativismo”- do romeno Manoilescu, traduzida e publicada no Brasil quatro anos depois,
na qual seu autor se valeu do conceito para designar um modelo específico de organização da
sociedade civil em sua relação com o Estado e o mercado. Tal modelo consistiria em uma terceira
via, alternativa às relações existentes nas sociedades autoritárias e/ou liberais. O autor propunha,
no entanto, uma separação do conceito de sua vertente autoritária, ao dizer: “Se todos os fascismos
foram corporativistas, nem todos os corporativistas foram fascistas” (GARRIDO, 2016, p.192, apud).
A mesma desvinculação era proposta no Brasil por um dos juristas mais renomados do
Estado Novo, Themístocles Cavalcanti, que ao comentar a obra traduzida de Roger Bonnard
(“Sindicalismo, Corporativismo e Estado Corporativo”, de 1938), afirmava: “ O corporativismo pode
ser, dessa forma, uma solução tanto para a democracia como para o estado autoritário porque,
sob o prisma econômico, o seu aproveitamento constitui, já hoje, uma imposição da própria vida
contemporânea” (1938, p.V).
A ideia de o corporativismo ser a terceira via entre as experiências totalitárias e liberais contou,
também, com a adesão de Francisco Campos, o autor da Carta de 1937, além de outros intelectuais
estado novistas. Em entrevista concedida em 1937, Campos afirma que o corporativismo é inimigo
tanto do liberalismo quanto do comunismo, pois permite o exercício da liberdade individual dentro
da corporação, ao mesmo tempo que o seu excesso seria limitado pelo grupo (CAMPOS, 2001, p.63).
Como base nessas análises, acreditamos que o conceito de corporativismo tenha sido
introduzido no Brasil a partir da década de 1910 para identificar as primeiras experiências corporativas
europeias, generalizando-se por meio da obra de Manoilescu, traduzida para o português por
Azevedo Amaral em 1938. A partir das discussões teóricas e experiências históricas, o conceito de
corporação mudou de significado, relacionando-se não mais às associações oitocentistas, mas a uma
forma alternativa de representação de interesses em conjunturas autoritárias.
Embora Manoilescu tenha reivindicado a separação entre formatos corporativos de
intermediação de interesses e estados autoritários, as experiências históricas conectaram as duas
coisas, associando a prática corporativa ao fascismo ou aos demais regimes autoritários do entre
guerras. Isso fez com que o conceito assumisse um caráter acentuadamente pejorativo, sobretudo no
Brasil. Já na Europa e no restante da América Latina, tal associação foi rompida, como veremos a seguir.
notícia sobre os diferentes gabinetes portugueses, desde a Proclamação da República em 1910, até o
governo de Afonso Costa. Como não havia nenhuma alusão ao Brasil na reportagem, provavelmente
destinava-se ao público português ou a seus descendentes que residiam na capital maranhense. O
conceito, no entanto, era portador de um significado diverso, ou melhor, aparecia como uma metáfora
alusiva às distintas divisões políticas que assombravam a Primeira República Portuguesa. Embora,
como visto, já fosse conhecido no Brasil por meio da obra de Alberto Torres, o conceito aparecia no
periódico com um significado de “corrente política” e não como representação corporativa.
Em julho do mesmo ano, o jornal publicou um artigo crítico ao fenômeno mutualista devido
a seu caráter essencialmente corporativo e aos altos preços cobrados para que os pecúlios fossem
garantidos pelas mutuais. O conceito era usado como um adjetivo de cunho pejorativo. Em 1o de
março de 1923, o jornal referia-se, novamente de forma crítica, ao corporativismo:
Para o deputado, que não era um representante classista, escrevendo em jornal não
operário, tanto a representação corporativa como as mutuais – colocadas no mesmo patamar – não
ajudavam os trabalhadores na defesa de seus interesses, por não induzirem à consciência de classe.
Mesmo entre membros da elite política local, o corporativismo podia ser visto como um entrave à
organização dos trabalhadores.
No entanto, esse discurso não era unívoco. A representação corporativa tinha também
seus defensores.
A centésima edição do “Jornal do Brasil”, que veio a público no dia 27 de abril de 1927,
apresentava uma coluna intitulada “Documento Fundamental da Revolução Fascista: A Carta do
Trabalho”. Como se infere do próprio título, o texto fazia alusão à Carta del Lavoro de Mussolini.
O artigo vinha sem assinatura, o que provavelmente revelava a opinião do próprio jornal. Em
tom elogioso, destacava os benefícios para os trabalhadores e para as suas organizações sindicais
conferidos pela nova Constituição italiana. Em contraposição ao socialismo soviético, que fomentava
os antagonismos entre capital e trabalho, o corporativismo econômico proposto pela Carta
harmonizava tais relações. O jornal evitava o aprofundamento sobre as discussões teóricas, mas
afirmava que o novo modelo fascista não se contrapunha aos valores liberais da Revolução Francesa,
como revela o trecho abaixo:
Os elogios não partiam apenas dos editores e/ou jornalistas. A própria classe política,
comprometida com o liberalismo oligárquico, via com bons olhos, ainda na década de 1920, as
inovações propostas pelo líder italiano. Esse foi o caso do Ministro das Relações Exteriores do
Governo Arthur Bernardes, Félix Pacheco, ao proferir um discurso enaltecendo o fascismo de
Mussolini, no dia 7 de abril de 1924, em banquete oferecido ao Embaixador Extraordinário da Itália,
que se encontrava em missão no país. Após realçar a raça italiana e seus grandes feitos, afiançava:
Pode-se dizer, sem favor, que o Universo respirou, desopresso e aliviado, quando viu erguer-
se, altiva, a formidável muralha de peitos de aço constituída pelos abnegados camisas pretas,
contendo e repelindo a onda maligna e restaurando, na magnífica e severa plenitude, o
equilíbrio e o prestígio do poder civil, dentro das fórmulas enérgicas que salvaram, nessa
difícil emergência, a noção essencial da autoridade e vieram, ao cabo, permitir que a nobre
Itália de sempre ressurgisse das suas amargas provações ainda maior do que dantes.95
Esse foi também o caso do Senador Antônio Azeredo, líder da oligarquia mato-grossense, que,
em entrevista concedida a um jornal italiano e reproduzida pelo Jornal do Comércio em 1928, afirmava:
A entrevista foi reproduzida em outros jornais. Alguns leitores e articulistas viam com
alguma desconfiança o desenrolar dos novos acontecimentos na Itália. No entanto, era de suma
importância que um dos mais destacados senadores da Primeira República houvesse se posicionado
tão claramente a favor do fascismo. Em meio à crise vivida pelo Brasil nos anos 20, as saídas autoritárias
e claramente antiliberais recebiam adesões significativas por parte da elite liberal-oligárquica.
Esse também foi o caso de Alberto Rego Lins, que, em coluna intitulada “O estatismo Italiano”,
publicada no jornal “Correio da Manhã” de 29 de janeiro de 1928, teceu elogios incontestáveis ao
fascismo. Segundo o articulista, as pessoas associam o fascismo à vertente ideológica de oposição
ao socialismo, porém é preciso conhecer bem a gênese das ideias para se ter uma percepção
correta do que acontece hoje na Itália. Pode-se louvar os benefícios do fascismo sem desconhecer
a intolerância que ele gera. Ele implantou-se na Itália de forma revolucionária, o que implicou certa
dose de violência. Para o autor, a revolução Francesa também se valeu do terror, o que é comum nas
mudanças bruscas e de forte impacto. Não se pode, pois, reduzir seus agentes a um grupo de terror
fevereiro de 2018. Agradeço ao meu orientando Filipe Queiroz pela indicação da fonte.
96
Jornal do Comércio. 12 de julho de 1928. Rio de Janeiro, ed. 165. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.
aspx?bib=364568_11&pesq=corporativismo&pasta=ano%20192. Acesso em 15 de janeiro de 2018.
fanático. A realidade prova o contrário. “O Fascio realiza nesse instante o tipo de estado unitário,
soberano, nacional e ético. Ele não desconhece o direito individual, de que se tornam o limite e a
norma os interesses da nacionalidade italiana. ”97
Para Lins, o corporativismo não seria uma criação do fascismo, pois já existia no medievo
italiano com o fim de substituir a casta parlamentar. Ele teria gerado esplendor e grandeza à vida
pública florentina. O gênio Dante teve de inserir-se em uma corporação para poder participar
politicamente. Lins reconhecia, no entanto, que a obra de Mussolini ainda não se encontrava pronta
e que seria preciso esperar pelo desempenho do novo parlamento corporativo. Em que pese esse
fato, a energia dos métodos do fascismo inspirava confiança, revelada pelas conquistas econômicas
recentemente obtidas pelos italianos.
Os elogios não se limitavam aos jornais da capital federal. O “Diário de Pernambuco”,
de 26 de setembro de 1928, analisava a Constituição fascista em artigo intitulado “A Reforma
Constitucional Fascista”. Seu autor valeu-se do pseudônimo E.F. para realizar clara defesa do novo
regime, o qual dizia representar o golpe de morte do parlamentarismo democrático em razão dos
erros da geração passada. Considera Mussolini melhor que Napoleão, pois realizou muito sem ter
de recorrer à violência da qual o segundo valeu-se. Reconhece a genialidade do plano político de
Maurras por trás das ideias fascistas.
O parlamentarismo nos países latinos era uma imensa chaga aberta; o sufrágio universal, o
regime da incapacidade; a noção romântico-revolucionária da soberania popular, uma expressão
vazia. A todas essas ideias Mussolini opôs um conjunto de reformas práticas e objetivas. ”98
Nesse caso, o articulista era um crítico à democracia e manifestava claramente sua insatisfação
em relação ao liberalismo, sobretudo ao que se encontrava em vigor no Brasil. Sugeria a implantação
de medidas, estando entre as mais urgentes “o sufrágio corporativo que corresponde verdadeiramente
às aspirações nacionais, e não o ridículo voto secreto, que é ainda mais indesejável que o sufrágio
universal a descoberto. ” Como se sabe, a campanha pelo fim voto a descoberto era intensa no Brasil,
por parte dos setores médios urbanos, dos tenentes rebelados e de alguns setores oligárquicos. Na
contramão desses setores, o articulista manifestava claramente seus ideais autoritários.
Nem todos os jornais operários contrapunham-se à organização corporativa. As organizações
mais reformistas manifestaram-se favoravelmente ao modelo. Esse foi o caso de um artigo publicado
pela Federação Gráfica do Brasil, no jornal pernambucano “A Província”, de 8 de fevereiro de 1929.
Em data que homenageava o Dia do Gráfico, a Federação, que reunia todos os profissionais do ramo,
afirmava que, durante muito tempo, o gráfico ficara sem proteção, pois lhe faltava a corporação.
Com o advento dos ideais corporativos, as coisas melhorariam, pois é pela corporação que as
Alberto Rego Lins. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 29 de janeiro de 1928 (Ed. 10.138). Disponível em: http://memoria.bn.br/
97
questões operárias deveriam ser resolvidas, dentro da ordem e fora da revolução. O corporativismo
deu fim aos ideais anárquicos que só geravam conflito. Daí o seu desenvolvimento em países mais
avançados. Resta claro que a Federação se opunha às organizações anarquistas e colocava-se mais
à direita do espectro político. Por se tratar de uma importante organização, é relevante destacar
que nem todos os trabalhadores organizados opunham-se de forma veemente ao novo modelo de
representação em curso na Itália.
pluralismo estivesse na natureza dos atores envolvidos, no contexto em que se dava a disputa pelo
poder e nas formas internas de sua organização.
A aceitação do corporativismo como parte do repertório da sociedade civil organizada
não escapou ao olhar atento dos demais cientistas sociais, inclusive o dos neomarxistas Guillermo
O’Donnell, nos anos 1970, e Clauss Offe, nos anos 1980. Para Offe (1981), o corporativismo era
visto como uma das instituições — ao lado dos partidos e dos parlamentos — que compunham
as mais variadas redes a conectar Estado e sociedade civil, conferindo uma dimensão pública à
prática política dos atores nelas envolvidos. Para O’Donnell (1976), em análise sobre os casos latino-
americanos, o corporativismo teria uma natureza bifronte, que poderia ser estatizante — de matriz
autoritária — ou privatista, a ocorrer em sociedades democráticas.
Duas variações complementares do conceito surgiram na década de 1980: o mesocor
porativismo e o micro corporativismo. O primeiro, segundo abordagens de Wassenberg (1982),
consistia na ação de atores coletivos, não necessariamente vinculados às associações de classe,
a defenderem interesses próprios a determinados setores ou ramos da economia. Por meio dele,
atuariam diretamente com as agências estatais em benefício de suas respectivas corporações.
Como as negociações entre os agentes ocorreriam num nível intermediário de poder — um setor
específico da economia, uma região ou uma área de competência bem definida —, o prefixo meso se
justificava. O segundo, como o próprio conceito expressa, se refere mais à defesa de interesse de um
ator ou um pequeno conjunto de atores vinculados a uma microunidade econômica, a exemplo de
uma empresa, um setor específico do comércio ou um banco. Ao contrário do macro corporativismo,
que tem por horizonte problemas nacionais, o micro corporativismo se concentra na solução de
problemas localizados, geograficamente delimitados (OLIVEIRA, 2004, p. 248).
Com o advento do neoliberalismo em boa parte das economias europeias e americanas, o
conceito perderia um pouco de sua pujança, em paralelo à desmobilização dos trabalhadores e de
suas associações de interesse. O efeito imediato foi a perda do poder de barganha e a redução das
possibilidades de intervenção dos trabalhadores sobre a definição de políticas públicas, sobretudo
as econômicas e sociais. Mas tal esvaziamento se deu apenas no campo político, uma vez que deixou
de limitar-se à esfera do político, sendo usado para a compreensão das relações econômicas e de sua
intervenção sobre a definição de políticas mais amplas. Dessa forma, em vez de observarmos uma
erosão do conceito no contexto do neoliberalismo, ele se transmutou, uma vez que as negociações
corporativas continuaram a ser realizadas em nível micro ou intermediário. As crises econômicas que
resultaram do neoliberalismo foram respondidas igualmente por arranjos corporativos, conquanto
seja incontestável que o equilíbrio entre os atores tenha mudado em prejuízo dos trabalhadores.
O debate acerca do tema no Brasil pode ser dividido entre os que enfatizam o caráter
desmobilizador e desestruturante do modelo de representação corporativa de interesses e aqueles
que o veem como uma alternativa que, apesar dos problemas, possa ter contribuído de alguma
forma para o processo de organização dos trabalhadores. No primeiro campo, destacam-se a maior
parte das abordagens.
Há, no entanto, uma abordagem alternativa que, sem menosprezar o impacto desmo
bilizador da experiência corporativa, ressalta o espaço conferido aos trabalhadores para que
conseguissem fazer valer seus interesses. Nos anos 1980, Fábio Wanderley Reis (1989) reivindicava
o aumento do corporativismo para o bem da consolidação da democracia brasileira, que então
renascia após a ditadura militar. Em texto seminal, Reis destacava que, ao contrário do que ocorria
na ciência política europeia ou mesmo no restante da América Latina, o conceito de corporativismo
no Brasil era visto como incongruente com os avanços democráticos. Para ele, não só a experiência
pregressa teria resultado em ganhos para os trabalhadores, como seu aprofundamento poderia
melhorar os processos de democratização em curso.
Gomes, em A invenção do trabalhismo (1988), ao fim da mesma década, trouxe à tona
trabalhadores ativos, em luta pela ocupação de espaços de poder, mesmo nos contextos de mais
dura restrição à autonomia de suas organizações. A obra integrava uma renovação no campo da
historiografia do trabalho, que primava pela contestação da tese que ressaltava a fragilidade dos
trabalhadores brasileiros frente ao Estado. O poder das organizações sindicais, suas rupturas e
continuidades em relação aos movimentos da Primeira República, bem como seu papel como artífices
da cidadania ao longo de toda as décadas de 1930 e 1940, conferiam um caráter menos totalitário
e desmobilizador ao modelo corporativo varguista. Gomes reitera que um dos instrumentos mais
conhecidos da prática corporativa no Brasil, a instituição do imposto sindical, possibilitou, inclusive,
que os sindicatos alargassem suas bases, por meio da filiação em massa de trabalhadores, os quais,
interessados em usufruir da rede assistencial por eles montada, subsidiada pelos recursos da
contribuição compulsória, a eles se filiavam.
Em 2007, foi publicada a coletânea O corporativismo em português, que reuniu pesqui
sas sobre o salazarismo e o varguismo, de forma comparativa, com destaque para a organização
das instituições autoritárias e corporativas (MARTINHO E PINTO, 2007). Os textos alusivos ao Brasil
se colocam ao mesmo lado no debate ao destacarem a participação da sociedade civil brasileira
no projeto trabalhista, seja por meio da valorização de representação no âmbito do Estado, seja
em seus contatos diretos com a presidência da República, seja por meio de seus intelectuais que
almejavam uma participação mais ativa no regime ou dos trabalhadores que, mesmo em meio a
um regime autoritário, conseguiam integrar algumas esferas de um Estado que tinha por norte a
ampliação da cidadania social.
A ideia, até então difundida, de que o modelo autoritário brasileiro fora uma variação
menor do fascismo italiano daria lugar a análises que levavam em conta as especificidades das
experiências periféricas. Por sua vez, a ideia de que o povo se submetia ao regime estado-novista
como vítima do arbítrio deu lugar a uma participação mais autônoma dos atores sociais, por meio
de suas organizações em participação no Estado.
Na mesma direção, mais recentemente, caminharia Bruno Reis, ao contestar a oposição
entre corporativismo e pluralismo, a diferença entre corporativismo estatal e social, e ao defender que
empresários. Tendo por objeto advogados, dentistas e médicos, Vannucchi reitera que as referidas
categoriais escaparam ao monopólio da representação, previsto pelo modelo, na medida em que
suas associações competiam com os sindicatos pelas mesmas bases, com êxito significativo para
as primeiras. As associações de classe se tornaram mais representativas de interesses do que os
sindicatos, o que de algum modo fragilizou a categoria como um todo. Quanto ao Estado, teve sua
margem de manobra ampliada em relação a elas, na medida em que podia usar pragmaticamente
de uma ou outra representação, com base em seus interesses e afinidades.
O esforço dos cientistas sociais em retomar o conceito de forma renovada, todavia, não
foi suficiente para que ele perdesse sua carga majoritariamente pejorativa, pelo menos no Brasil.
Dissociar o corporativismo das experiências nazifascistas é um caminho interessante para que
sejam levadas em conta nossas peculiaridades e nossas formas específicas de apropriação de ideias
difundidas globalmente. Por outro lado, incorporar nas análises as relações de continuidade e
ruptura dos trabalhadores em relação ao seu passado recente — no qual os limites de manifestação
da cidadania eram sobejamente estreitos e foram ampliados de forma significativa, a despeito dos
controles nos processos de recrutamento — contribuiu para uma análise menos politizada do tema.
Há que se destacar que, com a introdução da representação corporativa no Brasil, a ausência total de
representação dos trabalhadores no Parlamento deu lugar a uma expressiva participação; a mudança
do código eleitoral e a criação da Justiça Eleitoral garantiram a ampliação do contingente eleitoral
e a tão almejada “verdade das urnas”. A ampliação das políticas sociais e o reconhecimento dos
trabalhadores como atores importantes do jogo político, de alguma forma, podem ser considerados
avanços em direção à ampliação dos direitos. Os estudos recentes caminham nessa direção.
Considerações finais
Procurou-se, neste capítulo, dividir a reflexão em dois momentos. No primeiro, focou-se a análise
sobre as transformações do conceito de corporação e corporativismo ao longo do tempo no Brasil. E, em
sua segunda parte, procurou-se acompanhar o debate nacional e internacional sobre o tema.
Por meio da pesquisa empírica realizada, foi possível perceber que o conceito de
corporativismo, até a primeira década do século XX, relacionava-se diretamente à ideia das corporações
de ofício, que remetia às noções de fraternalismo, solidariedade e união entre trabalhadores de um
mesmo ofício. Paulatinamente, esse quadro alterou-se, sendo possível encontrar o conceito com um
novo significado a partir da década de 1910, próximo a como o compreendemos hoje.
No contexto dos anos dez, parte dos trabalhadores organizados no sindicalismo à esquerda
tratava o conceito de forma pejorativa, associando-o ao mutualismo ou às demais organizações mais
reformistas dos trabalhadores. Interessante foi perceber que muitos setores da elite oligárquica
liberal receberam não só o corporativismo como também as primeiras experiências fascistas de
forma positiva e esperançosa. Quando a República entrava em crise na década de 1920, sendo objeto
de crítica por parte de variados setores organizados da sociedade civil, as experiências italianas eram
vistas como inovadoras e capazes de se colocarem como uma alternativa ao regime da Constituição
liberal de 1891. Foi somente após o avanço dos regimes totalitários que o discurso sofreria uma
mudança. Até então, nossas elites o viam como uma boa nova, investindo na ampliação dos elos
entre brasileiros e italianos por meio da recepção dos imigrantes.
Após o conceito associar-se às experiências totalitárias e ser refutado, voltaria a ser
apropriado pela Academia de forma mais autônoma e, de certa forma, positiva, pelo menos fora
do Brasil. No entanto, atualmente, para os pesquisadores brasileiros em sua maioria, ele ainda
opera como um adjetivo desqualificador. Posturas que defendam interesses de grupos socialmente
organizados são vistas como não solidaristas ou cartoriais. A defesa de interesses confunde-se com
o esforço pela manutenção de privilégios. Quanto mais à esquerda encontra-se uma instituição
sindical no Brasil, mais afasta-se da defesa da representação corporativa, embora, na prática, isso
não ocorra. Por outro lado, grande parte da sociedade civil organiza-se corporativamente. A bancada
parlamentar conhecida como BBB – boi, bala e bíblia – é uma das mais consistentes corporações
do legislativo brasileiro, reunida em torno da defesa do agronegócio, contra o desarmamento e
marcada por um extremo fundamentalismo religioso, à direita do espectro político.
O ideal seria que assumíssemos a importância das demandas corporativas como um valioso
instrumento de pressão da sociedade civil sobre o Estado, reconhecendo que nem toda luta por
direitos implica conquista de privilégios, mesmo em um país marcadamente desigual.
É interessante acompanhar o ressurgimento das discussões sobre a representação corpo
rativa num momento em que as instituições representativas liberais voltaram a ser objeto de
críticas. A apatia, as denúncias de corrupção por parte da classe política e a insuficiência dos canais
de representação de interesses certamente têm relação com a retomada dos estudos de formas
alternativas de representação, mesmo que fora do âmbito do modelo liberal. A expectativa é que
tais incursões teóricas sirvam para a proposição de saídas que excluam as soluções autoritárias, que
normalmente resultam da desqualificação das experiências parlamentares. Ruim com elas, o terror
esteve sempre presente quando delas abrimos mão.
O presente capítulo tem como fim propor uma reflexão acerca dos direitos da cidadania
política ao longo de dois períodos, o da primeira e segunda repúblicas (1889-1937), tendo como
eixos básicos as duas constituições em vigor no período, a de 1891 e a de 1934. Dada a amplitude
dos recortes cronológico e temático, escolhemos analisar apenas dois direitos políticos, inter-
relacionados em sua essência: o direito de escolha dos governantes (o direito ao voto) e o de ter
os seus interesses representados no Parlamento, com ênfase sobre a representação corporativa.
Reconhecemos que tais abordagens estão longe de corresponder às inúmeras possibilidades de
análise do tema. Mas preferimos recortá-lo a ter que o tratar de forma generalizante, sem levar em
conta toda a sua complexidade.
Pretendemos, pois, analisar a normatização jurídica dos processos eleitorais republicanos e
das alternativas de representação institucional de interesses neles condensadas, buscando relacioná-
los a dois contextos distintos, o da primeira e o da segunda república, de forma continuada, ou
seja, sem ver a Revolução de 30 como um divisor de águas. A transversalidade da cidadania política
entre duas repúblicas, cujas distinções são mais aparentes que reais, é uma das abordagens que se
pretende desvelar ao longo do texto.
A conferência de T.H. Marshall, proferida em 1949 e no ano seguinte publicada no livro
intitulado “Cidadania, classe social e status” (MARSHALL,1967) tornou-se clássica, tanto pela sua
capacidade de síntese do fenômeno da cidadania, quanto pelas controvérsias que gerou entre os
pares. A divisão tripartite dos direitos e seu ordenamento cronológico e progressivo facilitaram a
compreensão do conceito. O século XVIII teria sido caracterizado pela introdução e consolidação
dos direitos civis, resultantes das convulsões revolucionárias do período anterior na Inglaterra;
o século XIX teria sido o período da expansão dos direitos políticos, por meio do fortalecimento
dos parlamentos, e, por conseguinte, das eleições, dos partidos e do voto; e o século XX teria sido
marcado pela expansão dos direitos sociais, motivada principalmente pela crise de 1929 e pelas
duas guerras mundiais. O advento do Welfare State constituiu-se em sua mais visível expressão.
Em que pesem a criatividade e profundidade das análises, a tese de Marshall realçou o
caráter progressivo das conquistas, como se a cidadania fosse o resultado de um acúmulo de direitos
Este capítulo foi publicado anteriormente em formato de artigo: VISCARDI, Cláudia. Direitos políticos e representação no Brasil
99
em expansão ao longo do tempo. Em seu bojo prevalece a ideia de que uma vez conquistados, os
direitos não poderiam ser mais retirados, ou que a trajetória da História seria sempre ascendente.
Ademais, a pressuposição que se deixa antever é que o desenrolar dos direitos na Inglaterra
funcionaria como um “tipo ideal” a servir de paradigma para outras nações, dentro ou fora do
continente europeu. Resta claro que experiências que não tivessem trilhado esse caminho seriam
vistas como desviantes ou incompletas.
Como já se pode antecipar, o caso brasileiro foi, em sua maior parte, interpretado como
desviante, uma vez que o estabelecimento dos direitos de cidadania foi tardio, insuficiente e
instável.100 Não obstante a pertinência de tais avaliações acerca do quadro nacional, o caso inglês foi
muito mais uma exceção do que regra, pois raros foram os países que implantaram e mantiveram os
direitos conquistados ao longo do tempo. O Brasil não seria uma exceção, mas antes a regra.
Inúmeras outras críticas podem ser feitas ao trabalho de Marshall 101, mas, mesmo assim,
ele se tornou uma referência em várias abordagens sobre o estudo da cidadania no Brasil e fora dele.
Não nos cabe aprofundar sobre elas, dados os fins do presente texto. Apenas queremos destacar que
evitaremos ver a expansão dos direitos de forma progressiva, mas sim como resultado de avanços e
recuos, vitórias e derrotas dos diferentes grupos de interesse. E nem veremos direitos conquistados
como etapas garantidas, que uma vez vencidas, não possam voltar atrás. Temos acompanhado ao
longo de nossa história o fluxo e o refluxo de direitos, que podem ser ampliados ou reduzidos,
em meio à volatilidade dos governos. Ademais, embora levemos em conta o usufruto dos direitos
políticos por parte de outras nações, não tomaremos os casos mais paradigmáticos como referências
a partir das quais nossa cidadania seria avaliada como mais ou menos incompleta. Outrossim, cabe
ressaltar, como o faz Sérgio Tavolaro (2008), a ocorrência no Brasil de “modernidades múltiplas”, as
quais se constituem em configurações variadas de direitos em contextos marcados por variações e
assimetrias regionais e temporais, o que nos leva a evitar generalizações.
Charles Tilly (1996, p.28) afirma que uma experiência cidadã forte pressupõe a existência
de uma hierarquia de servidores púbicos que atue do centro para as periferias e delas de volta ao
centro, sendo o Estado um importante ator social no processo de expansão da cidadania. No caso
específico do Brasil, o protagonismo do Estado por meio de sua burocracia na promoção e ampliação
dos direitos políticos deve ser levado em conta, se quisermos compreender melhor nosso processo
de expansão dos direitos.
É dessa forma que pretendemos abordar o tema dos direitos políticos e das representações
na primeira e segunda república brasileira. Para tal, estaremos igualmente atentos à gramática política
compartilhada pelos principais atores e ao repertório de possibilidades disponíveis para os atores que
se mobilizaram a favor ou contra a expansão de alguns direitos, sendo eles entes públicos ou privados.
Esse é o caso das abordagens de SANTOS (1979), QUIRINO E MONTES (1987), CARVALHO (2002), PRADO 2005), entre outros.
100
Entre elas destacamos a linearidade de sua abordagem, a omissão dos conflitos étnico-raciais e de gênero, a subestimação das
101
lutas classistas, a ausência de uma análise geopolítica, entre outros problemas. A esse respeito ver: GIDDENS (1982), MANN (1987),
TURNER (1990).
Para a construção desse capítulo nos valemos de um conjunto variado de fontes. Não só os textos
constitucionais foram analisados, bem como boa parte da legislação infraconstitucional. Foram consultados
os Anais do Parlamento, manifestos, bem como as leis eleitorais. Para a compreensão do “mapa semântico”
disponível aos grupos sociais, o uso dos dicionários de época foi de grande valia. O diálogo com a vasta
historiografia sobre o tema será apresentado ao longo do texto. Ele também incorporou as análises dos
contemporâneos, referenciados ao final como fontes primárias bibliográficas.
O fato de a República ter sido proclamada por meio de um golpe civil-militar não desmerece
o forte movimento que a antecedeu em prol da mudança do regime, ocorrido em várias províncias
brasileiras, embora concentrado nos centros urbanos mais dinâmicos. O republicanismo das ruas,
cujos principais protagonistas eram setores emergentes que se encontravam à margem do poder no
regime imperial, era portador e divulgador de uma nova cultura política. Por meio dela, valores como
o da liberdade, meritocracia, descentralização e da soberania popular foram divulgados sob a forma
de projetos alternativos ao regime em curso. Estabelecia-se um novo horizonte de expectativas para
os contemporâneos, em que pese o movimento ter sido restrito às elites econômicas e políticas,
letradas e apartadas da maioria da população brasileira (ALONSO, 2002).
Para um melhor entendimento das propostas dos republicanos, que acabaram por definir
a normatização dos direitos políticos após a Proclamação, a análise do vocabulário compartilhado
pelos contemporâneos é muito valiosa. Nem sempre os dicionários nos garantem que um conceito
uma vez publicado expresse uma relação única entre o significante e o seu significado. Mas ao
ser formalizado em “língua culta”, ele passa a ser referência, tornando-se usual. Dessa forma, os
dicionários são capazes de nos dar acesso à gramática política de um período, embora de forma não
exclusiva. Para analisar os direitos políticos escolhemos três conceitos: o de povo, o de democracia
e o de cidadania.
Em relação ao primeiro, no Dicionário de Moraes e Silva (1831, p.499) pode ser encontrada a
seguinte definição de povo: “Vulgo é propriamente o comum do povo (...) que, ou por sua ‘ignorância’,
ou por seus ‘baixos sentimentos’ e ações pertencem ao comum da gente, ao que é mais ordinário, ao
maior número” Já no Dicionário de Vieira (1872-1874, p. 874-876) se lia: “ Plebe é a gente comum e
baixa do povo, o que não é nobre”.
Como se pode inferir, a participação do povo nos processos decisórios nos oitocentos estava
limitada à noção de povo como vulgo, ou seja, incapaz de ter uma atuação qualificada na política.
Portanto, antes de “temer” o povo, as elites republicanas o desqualificavam e o mantiveram apartado
dos canais deliberativos. O resultado foi dar continuidade à exclusão da maioria da população do
direito de voto, limitando-o à parcela mínima da população.
Para Hilda Sabato (2001, p.1303) a população nem sempre entendia que votar era um
caminho desejável de participação política. As elites políticas frequentemente reclamavam da
indiferença da população ou da falta de espírito cívico. Segundo a autora, na maioria das vezes, as
máquinas políticas se esforçavam menos por controlar votos e mais por fazer as pessoas votarem. Em
pesquisa recente encontramos altos índices de abstenção eleitoral para o caso brasileiro (VISCARDI
E FIGUEIREDO, 2019).
Um dos fatores responsáveis pelo baixo coeficiente eleitoral - para além do voto facultativo
e do voto literário - era a não previsão do voto feminino. O debate acerca do direito ao voto das
mulheres foi intenso na Constituinte de 1891. Havia inúmeros defensores, tanto na comissão
responsável por elaborar o anteprojeto, quanto no plenário. Assinaram a emenda propositiva 28
constituintes, liderados por Saldanha Marinho, que, no entanto, não foi aprovada.
A propositiva era inovadora, uma vez que na ocasião, em muitos poucos países vigorava o
direito da mulher ao voto.102 De certa forma, em sentido estrito, as mulheres já eram consideradas
cidadãs no Brasil, pois eram capazes de conferir cidadania a um estrangeiro pelo matrimônio. No
entanto, o Artigo 70, que previa quais seriam os eleitores, deixava a questão em aberto, ao definir
que eram eles os cidadãos maiores de 21 anos, que fossem alfabetizados, sem que as mulheres
fossem excluídas ou incluídas.
Em razão dessa “questão em aberto”, na década de 1910, alguns deputados tentaram
de novo rediscutir o direito ao voto feminino, sem muito êxito. Em 1926, no contexto da reforma
constitucional, o Rio Grande do Norte foi o primeiro estado a conferir o direito ao voto pelas mulheres.
Nas eleições de 1928 daquele estado, 15 mulheres votaram, embora seus votos não tenham sido
apurados (PORTO, 2002, p.235).
Foi somente no Código Eleitoral de 1932 que foi previsto o direito das mulheres de votar. O
Artigo 2 do referido Código estabelecia que seriam eleitores os maiores de 21 anos, sem distinção de
0
sexo. Para a Assembleia Constituinte de 1933 uma mulher foi eleita por São Paulo e a cientista Bertha
Lutz, conhecida por sua militância feminista, foi suplente de um deputado eleito pelo Distrito Federal.
Conforme afirmou-se, apesar da inclusão das mulheres, os níveis de participação eleitoral
ainda permaneceram muito baixos, até que o voto se tornasse obrigatório ou que os analfabetos
pudessem votar, o que ocorreu em 1934 e 1988, respectivamente. Embora tenhamos tido alguma
ampliação do número de eleitores no período entre as duas constituições, a extensão do direito de
voto às mulheres e o fim do voto facultativo não impactou por demasiado o percentual extremamente
baixo de participação eleitoral, uma vez que para que as mulheres votassem era necessário que
fossem economicamente autossuficientes, situação rara de ser encontrada na década de 1930 e
a obrigatoriedade do voto demorou a se tornar realidade. Se compararmos o coeficiente eleitoral
das eleições de 1930 com as de 1934, veremos que houve uma ampliação de menos de dois pontos
Destacam-se alguns exemplos: na Nova Zelândia as mulheres passaram a votar em 1893; na Austrália, em 1902; Noruega, em 1913 e
102
Na ausência de uma Justiça Eleitoral, que só seria criada em 1932, o regime republicano
recém implantado atribuiu a responsabilidade sobre a organização das eleições à duas comissões,
as distritais e as municipais. Dessa forma, o controle sobre os processos eleitorais ficaria a cargo
do Poder Executivo. A criação de distritos eleitorais em substituição às paróquias e comarcas
como mecanismos de divisão geográfica das seções foi outra mudança introduzida pela República.
Aparentemente inofensiva, ela abandonava os critérios de divisão eminentemente judiciários, em
prol da obediência à geografia dos municípios. As mesas eleitorais, compostas anteriormente pelos
juízes de paz, passaram a ser organizadas por indicação dos presidentes das câmaras municipais.
Tanto as eleições como a sua apuração eram feitas no município, sob o controle dos mesmos
agentes responsáveis pelo processo de alistamento e redação das atas eleitorais. As atas municipais,
nas eleições majoritárias, eram remetidas às capitais dos estados, nas quais uma junta eleitoral era
responsável pela contabilidade final dos votos, sob forte intervenção dos governadores.
Cabe destacar, que na maior parte do período em tela predominou o voto distrital misto em
lista fechada, condição alterada em 1932, conforme se verá. No Parlamento, um último escrutínio era
realizado, o processo de verificação de poderes, por meio do qual diplomava-se os eleitos com base
no número de cadeiras correspondentes a cada bancada estadual. A metáfora do “filtro” utilizada
largamente pela imprensa do período é perfeita para explicar as diferentes fases do processo eleitoral
republicano, do qual o excessivo número de candidatos considerados eleitos era subtraído até que
se atingisse a correspondência entre candidatos e vagas disponíveis.
O derradeiro processo de filtragem, pois, se dava por meio da verificação de poderes.
Embora pesquisas recentes tenham revisto o papel da “guilhotina final” sobre a composição das
legislaturas, até o advento da Justiça Eleitoral o Parlamento mantinha-se como o órgão responsável
final por sua própria renovação. 104
Ao longo de todo o processo eleitoral eram permitidas contestações. Por meio delas
os candidatos excluídos denunciavam fraudes ou irregularidades e para tal, poderiam se fazer
representar por meio de advogados especialmente contratados para esse fim. Podiam agregar
documentos ao processo de luta pela legitimidade de suas respectivas candidaturas, o que tornava
o processo altamente burocratizado e demandava dos envolvidos tempo e expertises diversas.
103
Para os dados das eleições de 1930 (5,7%) ver: CAVALCANTI (1975) e para os dados relativos a 1934 (7%) ver NICOLAU (2012, p.80).
Um estudo da década de 1980 fez um levantamento sobre os números de degolas ocorridas durante a Primeira República, chegando a
104
um índice inferior a 11%. Estudo mais recente analisou as inúmeras contestações às decisões das comissões de inquérito e mensurou
os impactos delas na alteração dos resultados. Para o primeiro caso ver: MAGALHÃES (1986) e para o segundo ver RICCI E ZULINI
(2012).
Demorava-se mais na definição dos resultados do que no processo de escolha em si. Toda essa
complexidade envolvida na disputa eleitoral extrapolava as eleições propriamente ditas.
Com o passar do tempo percebe-se uma ampliação progressiva do envolvimento do
Judiciário nos processos eleitorais. As leis eleitorais de 1916 (n. 3.139 e a de 3.208), duas das mais
importantes da Primeira República, anularam todos os alistamentos anteriores, incumbindo as
autoridades judiciárias da missão de requalificar todos os eleitores para as eleições presidenciais
que ocorreriam dois anos depois. Por meio delas, a apuração para as eleições majoritárias deixou
de ocorrer nas sedes dos distritos e foi centralizada nas capitais dos estados, por juntas apuradoras
compostas por membros exclusivamente do Judiciário. Tal mudança acabou por fragilizar a “política
dos estados” aprovada por iniciativa de Campos Sales em 1900, ao retirar dos executivos estaduais
o controle sobre os resultados das urnas (Viscardi, 2016).
A ideia de que as eleições eram muito pouco competitivas merece ser questionada. Na
maior parte das vezes, tendemos a generalizar para todo o país os processos políticos ocorridos em
estados nos quais as oligarquias eram mais unidas, como foram os casos de Minas Gerais, São Paulo
e Rio Grande do Sul. Em estados divididos politicamente, cujo controle derivava de lutas fratricidas
entre oligarquias regionais que se opunham, a competição eleitoral processava-se em campo aberto.
A fraude e as tentativas de controle do voto do eleitor se davam por ambas as partes em disputa,
ou seja, havia competição entre os que mais fraudavam. Portanto, afirmar peremptoriamente, que
as eleições no período, por abarcarem relações coronelísticas ou clientelísticas e por serem objeto
de contínuas fraudes, eram favas contadas, implica em subestimar as clivagens inter-regionais e a
existência de um mercado político com graus variados de competição.
Por outro lado, houve um investimento progressivo na coibição das fraudes por parte
dos legisladores. São incontestáveis as dificuldades encontradas para que tais leis efetivamente
pudessem ser cumpridas. A ausência de uma Justiça Eleitoral aliada à alocação do controle dos
processos eleitorais em dois poderes eleitos pelo povo, o Executivo e o Legislativo como instância
final, constituíam-se em obstáculos significativos a evitar que a vontade das urnas se fizesse valer.
O que se propõe não é a contestação da existência da fraude, mas a identificação de seu uso como
parte do jogo político. Os atores que competiam pelo poder dela se valiam
Em relação ao voto secreto, convém ressaltar que a Lei Eleitoral de 1892 o havia estabelecido.
No entanto, uma inovação significativa foi introduzida por uma nova lei decretada em 1896: a
instituição da possibilidade do voto a descoberto. “Será lícito a qualquer eleitor votar por voto a
descoberto, não podendo a Mesa recusar-se a aceitá-lo” (Lei no 426, de 7 de dezembro de 1896,
artigo oitavo). Abria-se um novo precedente, antes não previsto: o direito individual de optar-se
pelo voto aberto, tendo o eleitor, inclusive, a possibilidade de levar para casa uma cópia de seu voto
depositado na urna. Embora tal prerrogativa tenha sido colocada como uma opção do eleitor, as
conhecidas barganhas entre votos e favores poderiam, a partir daquele momento, ser autenticadas.
O Decreto 12.391, de 1917, alterou novamente essa previsão, proibindo o voto a descoberto, a não
ser em ocasiões em que o eleitor votasse em cartório.
Embora proibido, de alguma forma os eleitores continuavam a votar a descoberto. Não fosse
isso, o que justificaria as campanhas pelo voto secreto nos anos 20? Conhecida sempre foi a distância
entre o Brasil real e legal, desde tempos remotos. Para que o pacto coronelista de fato funcionasse,
as lideranças locais teriam que ter o controle sobre o resultado das urnas. Um dos caminhos era
conhecer a opção dos eleitores, seus clientes. Outro, seria o controle sobre os processos eleitorais,
que com a intervenção do Judiciário passou a ser cada vez menor.
Sem contestar a distância entre discurso jurídico e prática política, reconhecendo que
apenas uma parcela minoritária participava dos processos eleitorais e admitindo que a fraude era um
instrumento poderoso para a garantia de resultados eleitorais, ainda assim, é preciso destacar que o
voto era disputado e possuía valor de legitimação de candidaturas; que os legisladores esforçavam-
se por punir e controlar as fraudes; que as eleições envolviam competição entre candidatos; e que
por meio delas era possível promover a renovação das lideranças.
Apesar das dificuldades de se fazerem valer os preceitos da democracia liberal, os resultados
eleitorais atestam que havia renovação da classe política a cada legislatura. Dados de Santos
(2013) revelam que o regime republicano manteve os mesmos índices de renovação do período
imperial, que não era baixo, por representar cerca de 40% dos deputados. Atualmente, mesmo nas
democracias de massa, essa taxa é bem semelhante. No parlamento brasileiro, por exemplo, nas
eleições de 2014, o índice de renovação foi de 43,7%, bem próximo ao encontrado por Santos para
a Primeira República, o que nos leva a concluir que as oposições tinham expectativa de chegar ao
poder por meio do processo eleitoral, mesmo que viciado.
Desde as análises de Edmund Burke, em seu discurso aos eleitores de Bristol em 1774 é
sabido que a delegação de poder conferida a um deputado pressupõe que ele possua certa margem
de autonomia. Cabe a ele, como representante de seus eleitores, priorizar os interesses da nação
sobre o dos indivíduos. Caso isso não ocorra, a única sanção possível por parte de seus eleitores é não
o reeleger nas próximas eleições (PITKIN, 2006). Talvez a insatisfação dos representados explique,
entre outras razões, o alto índice de renovação encontrado no parlamento republicano.
O governo provisório que assumiu o poder após a revolução de 1930 criou duas comissões
para alterar as leis eleitorais em vigor. O Código Eleitoral que delas resultou em 1932 estabeleceu
o escrutínio uninominal – rompendo com a longa tradição do voto em lista fechada - ao lado
da representação proporcional (antes era maioria simples), que permanece até os dias de hoje
(PORTO, 2002, p. 230).
O referido Código manteve a possibilidade das candidaturas avulsas, ou seja, sem vinculação
a partidos políticos, o que já ocorria anteriormente. Tal possibilidade contribuiu para a imensa
dispersão de nomes votados e para a fragilização do próprio sistema partidário brasileiro. O eleitor
poderia votar em qualquer nome, mesmo que não fosse candidato e mesmo que não estivesse
vinculado a um partido. Tal situação só seria alterada em 1945.
Mas sem dúvida, a criação da Justiça Eleitoral foi o passo mais importante dado em direção
a um controle maior das fraudes e à organização geral do sistema eleitoral. A sua criação decorreu
de um decreto do Governo Provisório de n. 21.076 (artigo 50) com o fim de regular as eleições para a
Assembleia Constituinte de 1934. Mas ela não teria sido criada não fosse o progressivo aumento da
participação do Judiciário no processo desde os anos 1910, até que se tornasse consensual entre os
contemporâneos atribuir-se a um terceiro poder o controle sobre a renovação dos demais.
Convém ressaltar que a limitação do exercício de um direito político fundamental não
impediu a participação política dos que não tinham direito ao voto. Ela se processaria por meio
de mecanismos alternativos, a exemplo do associativismo, em suas diversas modalidades, como o
mutualista, sindical, filantrópico, literário, científico, entre outros, como visto ao longo dos capítulos
anteriores. Ao mesmo tempo, a imprensa funcionava como canal de expressão de interesses e de
formação de opinião. Muitas vezes eram os jornais os únicos meios de intervenção das oposições
sobre a política. Portanto, a liberdade de imprensa, mantida em quase todo o período, foi fundamental
para que a defesa dos direitos tivesse lugar.
É sabido que a República, ao adotar o regime federalista não isonômico, trouxe para a cena
política estados-atores, que passaram a disputar no Parlamento o controle sobre os rumos do novo
regime. A hegemonia dos estados fragilizou o quadro partidário nacional. Uma multiplicidade de
pequenas siglas foi criada, a maior parte delas de base local, a disputar parcelas do poder, que se
encontravam alocadas nos partidos regionais mais consolidados. Como os espaços para as minorias
eram diminutos, tais siglas conseguiam, no máximo, eleger lideranças municipais ou prover capital
político para alguns candidatos que, ao se tornarem mais conhecidos, poderiam ser chamados
a compor a chapa dos grandes partidos regionais (Figueiredo, 2016). Tal modelo institucional
de representação de interesses estava longe de abarcar a maioria da população, sobretudo os
trabalhadores. Ao longo de toda a Primeira República o número de representantes dos interesses
dos trabalhadores foi inexpressivo.
Angela Gomes (1988, p.29, 150 e 172) destaca que somente na década de 1920 as associações
operárias optaram por uma estratégia parlamentar, uma vez que a representação partidária era
rejeitada tanto pelos anarquistas, quanto pelos socialistas. Antes disso, apenas um representante dos
interesses dos trabalhadores ocupara a vaga de deputado constituinte em 1890, José Augusto Vinhaes.
Nos anos 20, Maurício de Lacerda e Azevedo Lima, que não eram operários mas defendiam as causas
trabalhistas, foram eleitos deputados, o primeiro pelo Bloco Operário Camponês. Portanto, pode-se
afirmar que o estabelecimento da representação corporativa dos trabalhadores, proposta por Vargas
em 1931, constituiu-se em significativo aumento da representação dos trabalhadores no Parlamento.
Discurso proferido em 2 de janeiro de 1931, em um banquete das Forças Armadas. Vargas, 1938).
105
conselhos com funções consultivas, capazes de conferir à gestão pública um saber técnico que, de
alguma forma, compensasse as fragilidades de um Parlamento pouco qualificado. Tal visão ia ao
encontro das ponderações de Oliveira Vianna, que não achava que as organizações da sociedade
civil brasileira estivessem aptas para o exercício de funções parlamentares. O caráter meramente
consultivo dos Conselhos foi inserido na Constituição estadonovista, embora nunca tivesse sido
colocada em funcionamento.
Costa Porto (2002, p.250) afirma que um dos motivos que levaram Vargas a defender a
representação profissional foi a intenção de fragilizar a presença de alguns estados hegemônicos,
que com suas grandes bancadas, conseguiam reverter facilmente decisões do Executivo. Como
ele teria possibilidade de interferir sobre a composição da representação dos trabalhadores, seria
possível reduzir o peso de algumas bancadas mais numerosas. Em levantamento realizado por Angela
Gomes (1980, p.449) da representação profissional por estado, é possível confirmar a afirmação de
Porto. A representação patronal esteve concentrada em cinco grandes estados, quase os mesmos
que controlavam na Primeira República cerca de 70% do Parlamento: DF, SP, MG, RS e PE. Já a dos
trabalhadores provinha de 12 estados diferentes, tendo a sua representação mais bem distribuída
entre as unidades federadas. Os objetivos de Vargas haviam sido atingidos.
Considerações finais
interior do país. Em grande parte, essa ausência de direitos se deve à ausência de Estado. Ou seja,
ocorreu a formalização legal do direito sem que houvesse capacidade real do Estado em garanti-lo,
gerando uma situação peculiar, distante em relação ao “tipo ideal”, mas que não pode ser tomada
como um desvio ou uma insuficiência, apenas como uma particularidade. E tal como afirmou Tilly
(1996), foi relevante o papel do Estado na ampliação desses direitos, embora não se possa descartar
a luta de variados setores sociais organizados para esse fim.
A previsão de direitos políticos nas duas primeiras constituições republicanas e das
alterações das regras de representação apontam para a ampliação da cidadania política ao longo do
período, sobretudo para aqueles que dela estavam excluídos, como as mulheres, os trabalhadores
e os indivíduos sem renda declarada. Cabe refletir até que ponto a representação corporativa de
fato funcionou como um instrumento valioso nas mãos dos trabalhadores em benefício de seus
representados, ou como aponta Pitkin (2006, p. 28 e ss), possa ter funcionado em atenção a meros
interesses individuais, em detrimento do bem público. Embora a experiência tenha sido curta, uma
análise mais aprofundada sobre o papel de tais grupos e seus interesses está por ser realizada.
Mas sabemos que tais avanços foram interrompidos três anos depois, transformando a
vigência da Carta de 1934 na mais breve de nossa história. O que só comprova a tese da provisoriedade
dos direitos, sempre em disputa por diferentes grupos de interesse.
Procuramos acompanhar as mudanças dos direitos políticos e dos mecanismos de
representação da sociedade civil no Parlamento por meio de uma análise transversal que perpassava
as “duas repúblicas”. Percebemos que o sistema eleitoral foi sendo aprimorado, com o fim de fazer
valer a vontade das urnas, por meio do combate às fraudes. A ampliação do corpo de eleitores
permitiu que um maior número de pessoas usufruísse do mais importante dos direitos políticos,
o de voto. Mas também observamos que o peso do estabelecimento do voto feminino sobre o
conjunto dos eleitores foi muito pequeno. Vimos que a representação corporativa, que vinha sendo
discutida desde a década de 1910, ganhou força nos anos 30, muito por influência do contexto
internacional do entre guerras. O quadro partidário brasileiro, já desde a implantação da República
muito fragilizado, manteve-se pouco estruturado nos anos seguintes. Durante todo o período os
partidos permaneceram regionalizados, não tendo se formado um sistema partidário nacional. A
representação corporativa contribuiria também para o seu esvaziamento.
Por outro lado, o crescente envolvimento dos trabalhadores nos processos de decison
making culminou com o incentivo à sindicalização e à representação profissional no Parlamento.
Não obstante a perda de autonomia de algumas agremiações por meio da intervenção estatal sobre
elas, a nova janela de oportunidades que se abriu aos trabalhadores contribuiu para o acúmulo
de experiência, o desenvolvimento de novas habilidades e realçou a importância da luta político-
partidária como uma das mais importantes estratégias de obtenção de direitos. Do patamar que
partiram ao fim do século XIX à representação formal no Congresso há uma grande distância.
Acreditamos que a sua superação tenha contribuído para fortalecer os anseios pela expansão de
seus direitos de cidadania.
Buscamos com este livro mostrar que tínhamos uma sociedade mais ativa que supúnhamos,
a requerer direitos, defender valores e sobretudo criar alternativas de sobrevivência face a um Estado
que se dizia e se queria mínimo. Pudemos observar as diferentes modalidades de organização, seus
interesses, normas, valores, práticas cotidianas, dificuldades, vitórias e fracassos.
Os estudos sobre cidadania no Brasil se iniciaram ao final dos anos setenta, quando o
regime autoritário já dava sinais de esgotamento e os movimentos sociais ressurgiam. Uma das
abordagens sobre o tema que mais o impactou foi o conceito de “cidadania regulada” de Wanderley
G. dos Santos, cunhado em 1979. No período analisado por ele, de 1930 a 1943, o modelo do
laissez-faire repressivo teria sido substituído pelo da predominância da cidadania regulada. O
autor a entende como uma modalidade de cidadania com base em um sistema de estratificação
ocupacional, legalmente estabelecido, de forma que sua ampliação dependia da regulamentação de
novas profissões ou dos direitos associados a estas profissões. Os direitos estariam restritos ao lugar
que se ocupava no processo produtivo. Em síntese, a garantia dos direitos estaria na posse de uma
carteira de trabalho. (SANTOS, 1979, p.75 -76)
O conceito é inovador, mas não se aplicava ao período anterior a Vargas. Para estes foram
relevantes as contribuições de José Murilo de Carvalho (1987 e 2002). Apontaram para a fragilidade
de nossa cidadania, a partir da perspectiva de que nossos direitos foram mais concedidos pelo Estado,
do que conquistados pela sociedade civil. Valendo-se da tese de Faoro, o Estado brasileiro teria se
formado antes e se antecipado às demandas da sociedade – ainda desorganizada – e desinteressada
pela extensão destes direitos. Tornou-se usual dizer que no Brasil ao invés de cidadania, predominara
a estadania (CARVALHO, 1987, p.146-147).
Publicada em 2003 no Brasil, mas defendida quase vinte anos antes, a tese de Marco
Pamplona se propôs a comparar a construção do projeto de República e de cidadania no Rio de Janeiro
e em Nova York. O autor concluiu que nas duas metrópoles a cidadania implantada foi restritiva.
Nos Estados Unidos, a permanência da escravidão, ao longo de um século após a implantação da
República, inviabilizou a extensão da cidadania a todos os setores sociais. Já no Brasil, a implantação
da República contribuiu para consolidar a permanência das elites oligárquicas no poder à revelia dos
interesses populares da maioria. (PAMPLONA, 2003)
Estudos mais recentes têm apontado para o lento processo de construção da cidadania no
Brasil, iniciado mais remotamente do que pensava Carvalho. As pesquisas sobre as organizações
populares revelaram a existência de uma sociedade civil mais organizada e mobilizada do que
se supunha, a partir da segunda metade do século XIX. Esta população valia-se de inúmeros
instrumentos para manifestar sua discordância ou pressionar por seus direitos, tornando-os não uma
concessão do Estado, mas uma conquista da sociedade civil. A crítica ao trabalho de Carvalho voltou-
se para a necessidade de romper-se com um modelo de construção de cidadania anglo-saxão, que
ao ser aplicado no Brasil levava necessariamente à conclusão de que fracassávamos. No entanto,
como afirmava o próprio Bendix (1996), o modelo anglo-saxão era mais exceção do que regra. Para
entender o processo de construção da cidadania no Brasil é necessário, para além das experiências
de outros países, que levemos em conta as nossas especificidades de forma privilegiada.
Este trabalho é parte deste esforço coletivo de aprofundar os estudos sobre o longo
processo de construção da cidadania no Brasil. Bem sabemos que há ainda muito que se caminhar
neste debate, para o qual esperamos ter prestado uma modesta contribuição.
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