Ari Rehfeld - Cap 5
Ari Rehfeld - Cap 5
Ari Rehfeld - Cap 5
12 mil
1ntormes e discussões na clínica, onde ocorrem
aLendimentos por ano. Por fim, meus pacientes particulares
no consultório também são uma importante fonte para as
reflexões a seguir.
Muito já se falou sobre a atualidade. Todos os dias
artigos, jornais, televisão etc. falam sobre o assunto. O que e
posso afirmar é que me parece que este evento que passamos
é histórico. Nossos netos e descendentes vão estudá-lo, assim
como já estudamos a peste bubónica ou a gripe espanhola.
Nós estamos no meio de um grande vendaval e, justamente
por estarmos no meio dele, não no fim, ainda não temos a
possibilidade de fazer uma leitura de caráter histórico. Preci-
saríamos, para isto, de um distanciamento temporal, mas nós
estamos analisando a partir do meio desse furacão. Então,
eu quero apresentar algumas dimensões, alguns aspectos e
consequências de como podemos cuidar e lidar com isso,
sem ter a pretensão de esgotá-los.
Inicio lembrando que quando a epidemia começou,
em um primeiro momento na China, e em um segundo
momento na Europa, muito se dizia que não chegaria ao
Brasil. Dizia-se que o vírus precisaria do frio e nosso país
é quente; que talvez nem chegasse ou que chegaria muito
fraquinho. Depois que chegou, falou-se que seria rápido,
que duraria dois meses. Hoje, já estamos há um ano e meio
nessa história e, aparentemente, ela continuará por um bom
tempo. Há várias questões que não conhecemos plenamente;
há discursos em diversas direções.
A pandemia de COVID-19 tem promovido a presença
da morte constantemente (REHFELD, 2000). Na verdade, essa
e nossa condição humana, nós sempre sabemos que nosso
102
ai. Não só a minha morte, mas a morte
está constantemente
Nao somente eu morrer, mas também eu
de gente querida.
matar, seja, eu ser responsavel pela transmissão de um
ou
outro. E eu matar é complicado.
vírus que pode matar o
A constante presença da morte é bastante complicada.
de 2022
mais presente, do ponto de vista da política, eleição
a
de hoje e o
do que uma preocupação com a nossa condição
bem maior para a população. E isso nos deixa desamparados,
sentindo-nos órfãos.
Como resultado, temos aumento de depressão, ansie-
dade, medos- especificamente medo de contaminação
fobias, estresse, insônia. Aumentam irritabilidade, pânico.
Aparecem tédio, raiva, de perda de liberdade,
sentimento
solidão, perdas econômicas, perda de qualidade de vida, seja
confinamento. Manifes-
pelas perdas econômicas, seja pelo
familiares. Temos
tam-se problemas conjugais e problemas
traumáticas, como
pensamentos negativos. Ocorrem vivências
Viven-
quem passa pelo processo de intubação, por exemplo.
morrem
Ciamos luto por pessoas distantes e conhecidas, que
diariamente.
Eu tenho, no consultório, várias falas de pacientes
o tratamento fica
enfrentam uma piora, inclusive porque
dentistas. Fi-
dihcultado. Evita-se ir ao hospital, a médicos,
faz tanto exercici0 e isso
Ca-se muito tempo em casa, não se
Aumentam distúrbios
dcarreta mais problemas fisiológicos.
103
alimentares e pånico, irritabilidade, desconforto'. Ou
vivemos uma mudança radical de modo de vida. seja,
Então, a condição humana está batendo inexoravel
mente à porta, como propõe Holzhey-Kunz (2018). Repito.
sempre foi assim, mas agora éo tempo todo, o tempo inteiro
estou com isso presente. Fica mais dificil a vivência inautên-
tica, encobridora de minha condição humana.
Somos pessoas gregárias e, ao mesmo tempo, o outro
se apresenta como perigo; 0 outro que era colo, afeto, carícia,
abraço, beijo, apresenta-se como ameaça. Os obstáculos à
socialização têm sido acirrados, quem tem dificuldade de
socializar, nessa condição tem essa dificuldade ampliada.
Percebemo-nos como dependentes dos outros, mas depen-
dentes no mau sentido, isto é, de que somos dependentes de
médicos, de equipamentos, de vacinas, de políticas de saúde.
E aí vêm difíceis perguntas éticas, como quem deveria ter
prioridade para ser vacinado antes.
Todos esses sofrimentos, preocupações e questões vëm
para o consultório, seja online, seja presencial. A situaçao
online é muito interessante. Por um lado, nós temos reduzl-
das as nossas capacidades de sensibilidade quando estamos
na casa das
em uma telinha. Ao mesmo tempo, entramos
parede. Ha uma
pessoas, vemos o que está pendurado na
desde
Fesquisas convergentes com estas análises têm sido pubic
Bolze
meados de 2020. Cf. Zhang, Wu, Wu &Zhang (2020), Crepa
Neiva-Silva & Demenech (2020) e Maia & Dias (2020)
104
1) Desenvolvimento e estimulação do altruísmo. Exis-
tem vários estudos que mostram que o universo e a natureza
são altruístas, a relação entre as árvores em uma floresta é
altruísta, o modo de relação da grande maioria dos animais
entre eles é altruísta. Os animais, em geral, matam para
comer. Eles não destroem, efetivamente, direto todas as
coisas. E assim funciona também no microcosmo, como,
por exemplo, o nosso corpo. Este pode ser comparado com
uma galáxia; nós temos em média 37 trilhões de células, que
se relacionam uma com as outras, em geral, de um modo
harmónico. Nós temos mais ou menos 20 bilhöes de bacté-
rias, que, em geral, se relacionam de um modo construtivo
com as diversas células e as outras bactérias. As vezes não,
às vezes nós temos um câncer. Um câncer seria uma forma
egoísta da célula, que não leva mais em consideração seu
entorno e que hca muito semelhante å maioria dos nossos
politicos, simplesmente querendo crescer por si próprios.
Por isso também é possível pensar o homem como o câncer
da natureza: ele destrói a natureza com fins muito peque-
nos e muito imediatos, com pouco compromisso com as
novas gerações.
Mas voltando para o micro, voltando para o paciente
la no consultório. A vivència daquele que faz um trabalho
em prol do outro, aquele que de algum modo cuida do ou-
tro, é extremamente enriquecedora. Quem faz um trabalho
Deneicente ou filantrópico, por exemplo, ou que cuida do
105
um em sua casa,
conversando pela internet. Isso &é
cada
extremamente prazeroso!
4) Contato com a natureza. Contato com a natureza é
fantástico e extremamente importante. A natureza te dá um
108
(2019) descobriu que Sucumbiam aqueles que se rendiam,
e humanamente. Mas somente
entregavam pontos espiritual
não tinha mais em que se
entregava os pontos aquele que
O que mantinha vivos os
segurar interiormente (p. 93).
era a perspectiva de um futuro.
prisioneiros
A pessoa cuja situação não permite prever um final
de uma forma provisória de existència também não
consegue viver em função de um alvo. Ela também
não consegue mais existir voltada para o futuro,
como o faz a pessoa numa existëência normal. Con-
comitantemente, altera-se toda a estrutura de sua
vida interior (FRaNKL, 2019, p. 94).
Psicoterapia e compreensão
109
individuo seguro, posicionado, calmo e acolhedor. Éo Ques
na
Psicanálise chama-se "transterência. Isso torna o terapenta
alguém poderoso, principalmente se ele for o único
contato
que esse paciente tem efetivamente, isto é, a
única pessoa
com quem ele conversa. Não é muito comum esta
situacão.
Espera-se deste terapeuta que ele possa substituir um estado
ou,eventualmente, uma familia errática e confusa.
Esse psicólogo imaginário pode
produzir duas ver-
dades antagônicas: segurança, por ser alguém tão
poderoso
capaz de acolher e, simultaneamente, um sentimento de
pequenez frente a esse podere às adversidades. É dificil a
tarefa de ser terapeuta! Se o terapeuta tiver feridas
narcísicas,
pode facilmente se identificar com esse poder imaginado ou
imaginário, e isso trará dificuldades para o processo e para
o terapeuta.
l10
Mas quando eu entro na casa dele e vejo o quadro na parede
ou uma flor com um abajur, ele também está vendo a minha,
está tendo contato com as minhas coisas. Abriu-se espaço
Dara uma certa informalidade na relação
terapeuta-paciente.
Eisso abre um pouco de espaço para o humano. Porque, antes
de terapeuta e paciente, somos dois humanos nos relacionan-
do. Então, evidentemente, não estamos em
igualdade plena
de poder, mas há uma aproximação nesse sentido. E isso
tem facilitado para o paciente perguntar coisas que, naquele
outro ambiente, mais formal, talvez ele quisesse, mas não
sesentisse capaz ou não sentisse disponibilidade por parte
do terapeuta. Tem propiciado que, às vezes, o paciente cuide
do terapeuta, por exemplo, perguntando, verdadeiramente,
como ele está lidando com a pandemia.
Isso pode produzir uma profundidade muito maior
na relação. Eu sempre defendi que o modo suave chega de
modo mais economicamente ao fundo do que o fórceps. Se
vOce força as coisas, promove resistência e fechamento do
Outro. A proximidade que a redução da terapia ao essencial
tem propiciado pode facilitar muito um aprofundamento
mais suave com coisas que são dificeis e doloridas.
2
ncluo nesta expressäo o analista existencial e a gestalt-terapia que se
reconhece fenomenológico-existencial.
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amplo do termo, que envolve tudo o que mencionei acima
e muito mais. Implica sentimento de incompletude, de va-
zio, a necessidade de sermos mais do que estamos senda e
a percepção que somos menos do que gostaríamos de ser,
Sofrimento, neste contexto, signiica restrição de mundo.
Mundo precisa ser entendido como conceito fenomenoló-
gico (HEIDEGGER, 1927/2012), indicando como as coisas
chegam a nós fenomenicamente, isto é, como as colorimos,
sublinhamos e lhes damos significado. Isso ocorre em um
ambito de tempo vivido (kairos), que é diferentemente do
tempo cronológico (cronos). A diferença entre os dois-cro-
nos e kairós- fica visível quando se compara 10 minutos na
cadeira do dentista com 10 minutos de um bom namoro. E
que o relógio foi construido a partir da vivncia em relação
à natureza.
Do ponto de vista do vivido, podemos querer e não
querer simultaneamente. Não somos lógicos, muito pelo
contrário. Somos contraditórios, ambivalentes. Só a ciência
encontra problemas nisso. Do ponto de vista do tempo vivi-
do, o
tempo passado somente é passado se estiver presente,
senão não se teria acesso a ele. O mesmo vale para 0 espaço.
Posso imaginar, sonhar, fantasiar que sou o ator principal
numa peça de teatro, ao mesmo tempo que sou parte do
agravada e
agudizada por um confinamento espacial e po
uma
restrição muito grande no mundo relacional. Abraços»
beijos, carícias, encontros, são sempre vistos como aeeaça
ae morte.
Morte minha, morte do outro e a minha e
tual
responsabilidade nisso. Esse confinamento Pi oduz
muito sofrimento.
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Considerações finais
Referencias
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CREPALDI, M., SCHMIDT, B.
de
e luto na pandemia
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