O documento descreve um episódio no qual uma escrava se recusou a se casar sob ordens do seu senhor, revelando que não consentia no matrimônio. Isso mostra que os escravos tinham agência e se rebelavam contra determinações abusivas, embora corressem riscos de punição. O texto também discute evidências de que os escravos conseguiam formar famílias e redes de apoio, contrariando visões preconceituosas da época.
O documento descreve um episódio no qual uma escrava se recusou a se casar sob ordens do seu senhor, revelando que não consentia no matrimônio. Isso mostra que os escravos tinham agência e se rebelavam contra determinações abusivas, embora corressem riscos de punição. O texto também discute evidências de que os escravos conseguiam formar famílias e redes de apoio, contrariando visões preconceituosas da época.
O documento descreve um episódio no qual uma escrava se recusou a se casar sob ordens do seu senhor, revelando que não consentia no matrimônio. Isso mostra que os escravos tinham agência e se rebelavam contra determinações abusivas, embora corressem riscos de punição. O texto também discute evidências de que os escravos conseguiam formar famílias e redes de apoio, contrariando visões preconceituosas da época.
O documento descreve um episódio no qual uma escrava se recusou a se casar sob ordens do seu senhor, revelando que não consentia no matrimônio. Isso mostra que os escravos tinham agência e se rebelavam contra determinações abusivas, embora corressem riscos de punição. O texto também discute evidências de que os escravos conseguiam formar famílias e redes de apoio, contrariando visões preconceituosas da época.
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UMA CENA CONSTRANGEDORA CAUSOU perplexidade entre os
convidados de um casamento a ser realizado no dia 30 de outubro de
1820 na freguesia de Pouso Alegre, sul de Minas Gerais. Os noivos eram Joaquim Crioulo e Feliciana, ambos escravos do fazendeiro Antônio José de Lima. Tudo corria bem até a hora decisiva do “sim”. Perguntado pelo padre se era de sua livre e espontânea vontade que se casava, Joaquim respondeu afirmativamente. A noiva, porém, disse o contrário. Alegou que chegara até ali “obrigada pelo seu senhor a casar, e que não consentia, nem tinha desejo de semelhante matrimônio”. Em seguida, revelou que, antes de sair de casa, o fazendeiro a advertira a não contrariar suas ordens. Se, diante do altar, ela afirmasse que não queria se casar, ele a “castigaria asperamente”. Perante tão surpreendente revelação, a cerimônia foi imediatamente cancelada pelo padre. Pelas normas da Igreja, sem o consentimento de um dos noivos, não poderia haver casamento. E assim a história ficou registrada nos autos: Pelo depoimento da contraente foi constatado que é constrangida e violentada pelo seu senhor a [se] casar, faltando [...] o livre consentimento de sua pessoa [...], o que é incidente que anula o matrimônio; para tanto e mais dos autos julga aos contraentes inabilitados para se casarem. [1] O relato singelo desse episódio, descoberto nos arquivos da Cúria Metropolitana de Pouso Alegre pelo historiador Isaías Pascoal, embute lições importantes sobre a vida dos escravos no Brasil. [2] A primeira é que, ao contrário do que por muito tempo sustentou parte da historiografia, os escravos tinham a oportunidade de se casar formalmente, na Igreja e de acordo com as leis civis e canônicas então vigentes. A segunda é que nem sempre eram livres para escolher seus parceiros, estando sujeitos a aceitarem candidatos impostos pelos senhores de forma arbitrária. Isso, porém, não fazia deles agentes passivos no processo de constituição de suas famílias. Mesmo correndo o risco de serem punidos, como foi o caso de Feliciana, os cativos tinham vontade própria e se rebelavam sempre que possível diante de determinações consideradas abusivas. A família escrava é um dos campos mais ricos e fascinantes no estudo da história da escravidão no Brasil. Uma série de novos livros e trabalhos acadêmicos tem apresentado novidades que abalam os alicerces de convicções durante muito tempo bastante arraigadas entre os brasileiros. Pela visão tradicional, o cativeiro teria dificultado, quando não inviabilizado, a constituição de lares estáveis entre os cativos. Uma razão citada com frequência nos compêndios de história seria o número desproporcionalmente maior de homens que desembarcavam dos navios negreiros, dada a preferência dos senhores escravocratas por mão de obra cativa jovem e masculina. Isso teria gerado um desbalanceamento sexual, impedindo que os escravos encontrassem parceiras em número suficiente para se reproduzir e constituir família. Outro motivo seria o risco, sempre presente, de separação das famílias mediante a venda in- discriminada de pais, mães e filhos para diferentes destinos e proprietários. A isso se somariam as jornadas exaustivas de trabalho, a precariedade na alimentação, na higiene, na moradia e outros quesitos que reduziam a expectativa de vida média dos cativos, fazendo com que morressem cedo e sem esperanças de constituir um lar. Com base nessas evidências, o historiador e abolicionista Joaquim Nabuco afirmava na segunda metade do século XIX: A escravidão, operando sobre milhões de indivíduos, em grande parte desse período sobre a maioria da população nacional, impediu o aparecimento regular da família nas camadas fundamentais do país; reduziu a procriação humana a um interesse venal dos senhores; manteve toda aquela massa pensante em estado puramente animal; não a alimentou, não a vestiu suficientemente. [3] Uma segunda razão, puramente preconceituosa, apresentada na historiografia tradicional como barreira para a formação da família escrava baseava-se na ideia, prevalente entre os europeus, de que as senzalas seriam ambientes promíscuos, em que os cativos se envolveriam com múltiplas parceiras, sem nenhum compromisso com laços familiares ou afetivos duradouros. Assim pensava, também no século XIX, Perdigão Malheiro, jurista e senhor de escravos: As escravas, em geral, viviam ou vivem em concubinato, ou, o que é pior, em devassidão: o casamento não lhe garante, senão por exceção, a propagação regular da prole. [4] Inúmeros relatos de viajantes estrangeiros reforçaram a imagem de libertinagem relacionada ao comportamento sexual e à vida no cativeiro. O francês Charles Ribeyrolles, que esteve no Brasil em 1859, dizia que o lundu, ritmo musical de raiz africana precursor do samba, era “uma dança louca, na qual o olhar, os seios, as ancas provocam; [...] uma espécie de convulsão ébria”. Nesse ambiente de “alegrias grosseiras, cheias de voluptuosidades e febres libertinas”, não seria possível haver famílias, “só ninhadas”. Assim sendo, Ribeyrolles avaliava que na senzala não haveria “nem esperanças nem recordações”, ambas estilhaçadas pelo escravismo. O pintor alemão Johann Moritz Rugendas, que percorreu o país na primeira metade do século XIX, também se referia à “devassidão de costumes dos escravos”. Segundo ele, “as relações entre escravos do sexo feminino e do sexo masculino tornam impossível a severa observância da moral e a perseverança conscienciosa na fidelidade conjugal”. Na mesma época, o também pintor Jean-Baptiste Debret, francês, afirmava: Como um proprietário de escravos não pode [...] impedir aos negros de frequentarem as negras, tem-se por hábito, nas grandes propriedades, reservar uma negra para cada quatro homens; [...] essa concessão é feita tanto para evitar os pretextos de fuga como em vista de uma procriação destinada a equilibrar os efeitos da mortalidade. Os novos estudos têm contribuído para desfazer essas e outras visões equivocadas a respeito da escravidão no Brasil. Durante todo o período escravista, os cativos foram, de fato, tratados como mercadoria, uma propriedade que podia ser leiloada, comprada, vendida, emprestada, doada, penhorada, oferecida como garantia de empréstimos e depósito judicial ou transmitida como herança. A disciplina de trabalho era mantida sob a ameaça do chicote. A expectativa de vida era curta devido à alta mortalidade provocada por doenças. Sequer a própria sexualidade lhes pertencia. A reprodução nas senzalas era considerada prerrogativa dos senhores, que, frequentemente, assediavam sexualmente as escravas. Nada disso impediu, no entanto, que os escravos conseguissem constituir famílias e ter filhos. Foram igualmente bem-sucedidos em organizar parentelas estendidas, que incluíam, além dos laços de sangue, compadres e padrinhos, entre os quais, algumas vezes, apareciam até mesmo pessoas brancas e donas de escravos. “Forçados a trabalhar para outros e com escasso controle sobre a própria vida, os cativos trataram de aprender ofícios, formar famílias e criar redes de parentesco e amizade que sobreviveriam à instituição escravista”, observaram os historiadores Herbert S. Klein e Francisco Vidal Luna. [5] Os elos dessas famílias alargadas tiveram papel fundamental na organização de redes de apoio e de solidariedade que permitiram não apenas a sobrevivência e a reprodução biológica dos escravos, mas, principalmente, a reconstrução de suas identidades e seus papéis sociais estilhaçados na traumática experiência do navio negreiro. Permitiram também que alcançassem o sonho da liberdade em processos de alforrias que estavam intimamente ligados à vida familiar e comunitária, como se verá mais adiante. “Os escravos conseguiram casar-se, manter unidas suas famílias conjugais e até construir redes de parentesco extensas, com mais frequência do que os historiadores haviam pensado”, escreveu o historiador Robert W. Slenes, cujas pesquisas e análises são referência no estudo do tema no Brasil. [6] Outros dois especialistas no assunto, Manolo Florentino e José Roberto Góes, demonstraram que a construção da família escrava era do interesse não apenas dos cativos, mas também dos senhores. A estabilidade e a permanência do sistema escravista não poderiam se sustentar apenas na lei do chicote. Eram necessários outros mecanismos que mantivessem a “paz na senzala”, segundo a expressão cunhada pelos dois historiadores. Entre eles, estavam as uniões conjugais e as relações de parentesco, porque fixavam o escravo ao local de trabalho e dificultavam aventuras que poderiam desorganizar a ordem escravista, como fugas, formação de quilombos ou rebeliões. A longevidade do regime, portanto, sustentava-se em um complexo sistema de punição e recompensa, habilmente explorado tanto pelos senhores como pelos cativos. Paz e violência estavam sempre presentes na realidade do cativeiro, sem que fosse possível traçar uma divisa clara entre esses dois mecanismos. “Era o parentesco escravo a possibilidade e o cimento da comunidade cativa”, escreveram Florentino e Góes. “Era o amálgama imprescindível a senhores e escravos, por intermédio do qual se tecia a paz das senzalas.”[7] Estudos realizados por Manolo Florentino em parceria com outra historiadora, Márcia Amantino, nos arquivos do Rio de Janeiro e de Taubaté, revelam que, entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, as fugas eram bem menos frequentes do que se imagina, especialmente aquelas que resultavam na formação de quilombos ou bandos de cativos organizados. Apenas entre 1% e 2% dos 14 mil escravos que aparecem nas listas de 1.200 inventários nessas duas comarcas são registrados como fugitivos. Muitos deles acabavam retornando aos seus donos por vontade própria ou depois de recapturados pelos capitães do mato. Uma razão era a possibilidade de, mesmo permanecendo no cativeiro, constituir famílias. Mais do que fugir, os escravos optavam por certas estratégias de acomodação que, no longo prazo, resultariam em certos benefícios ou vantagens. Eles contavam com a possibilidade de formar suas próprias famílias, cultivar pequenas hortas e lavouras e, principalmente, obter a alforria. Esses estudos demonstram que na América Portuguesa do século XVIII o número de escravos fugitivos era infinitamente menor entre aqueles que tinham famílias do que entre os outros, solitários e sem laços sociais mais estáveis. “A família escrava funcionava como um poderoso mecanismo de estabilização dentro do status quo escravocrata”, escreveram Manolo Florentino e Márcia Amantino. [8] Uma prova de que a família cativa estava longe de ser uma exceção no Brasil escravista foi mais uma vez observada por Manolo Florentino e José Roberto Góes, ao analisar, no acervo do Arquivo Nacional, o inventário de Ana Maria de Jesus, moradora da freguesia do Irajá, no Rio de Janeiro, proprietária de dois grandes engenhos de açúcar, falecida em 1795. Oitenta e cinco de seus 225 escravos estavam unidos por relações familiares, formando um total de 33 famílias, das quais vinte (60,6%) eram do tipo nuclear — ou seja, composta por pai, mãe e filhos. Outras dez (30,3%) eram matrifocais, encabeçadas apenas pela mãe. Doze cativos eram donos de pequenas áreas de terras, que cultivavam para o próprio sustento. Todas essas famílias estavam juntas havia muitos anos e nenhuma foi separada depois da morte e da distribuição da herança da proprietária. A morte dos senhores era considerada a etapa mais delicada na vida das famílias escravizadas pela possibilidade de separação de seus membros entre os diferentes herdeiros. Nos demais inventários analisados pelos dois historiadores, observou-se que três entre quatro grupos familiares permaneciam unidos após a partilha dos bens. [9] Os historiadores João Fragoso e Ana Rios, ao estudar os registros batismais da paróquia de São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro, surpreenderam-se com as complexas redes de relacionamentos que os escravos conseguiam fazer através de alianças que incluíam o apadrinhamento de crianças na pia batismal. Algumas famílias escravas estabeleciam compadrio com proprietários de outros escravos. Outras tinham negros e libertos como padrinhos de seus filhos cativos. Havia também madrinhas escravizadas. E donos de escravos que se declaravam pais ou padrinhos de crianças escravas e mestiças. [10] Tudo isso mostra o quão fluidas eram as relações sociais e familiares no Brasil escravista. As alianças transcendiam em muito as rígidas fronteiras entre brancos e negros ou entre pessoas cativas e livres. Herbert Klein e Francisco Vidal Luna se referem ao compadrio como “um sistema de parentesco secundário” tipicamente brasileiro. [11] No Brasil colonial, em que Igreja e Estado se misturavam e se confundiam, a certidão de batismo tinha o mesmo valor de uma certidão de nascimento lavrada em cartório atualmente. Era o primeiro e o mais importante documento civil na vida de uma pessoa. Embora nem todos os casamentos fossem sacramentados na Igreja, os nascimentos eram sempre que possível reconhecidos oficialmente na pia batismal. A madrinha e o padrinho em geral tinham sólida amizade com os pais da criança e a responsabilidade de, a partir do batismo, ajudar o afilhado em todas as possíveis circunstâncias, incluindo a possibilidade de incorporá- lo à própria família caso os pais morressem, se ausentassem ou não tivessem mais condições de criá-lo. Isso valia para os escravos, mas também para a população branca. Um exemplo bem conhecido, e também ligado à história da escravidão, é o do abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco, que passou a infância aos cuidados da madrinha, Ana Rosa Falcão de Carvalho, no Engenho Massangana, localizado 44 quilômetros ao sul do Recife, enquanto o pai, o senador Nabuco de Araújo, desempenhava importantes funções públicas no Rio de Janeiro. O compadrio era, portanto, uma forma de ampliar as relações de parentesco para além dos laços sanguíneos e criar uma rede de apoio e solidariedade entre compadres, comadres e afilhados. No caso dos escravos, o compadrio muitas vezes era também o caminho mais curto para a liberdade. São muitos os registros de padrinhos que alforriavam seus afilhados ainda perante a pia batismal. Normalmente, o compadrio tendia a se estabelecer dentro do mesmo grupo social: fazendeiros convidavam fazendeiros para batizar seus filhos; mestiços e crioulos se tornavam compadres de mestiços e crioulos; escravos, de escravos; e assim por diante. Mas havia inúmeras exceções nessa regra, especialmente no século XIX, no período anterior à abolição da escravatura. Entre 1.970 crianças escravas batizadas em Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, em Minas Gerais, entre 1838 e 1887, apenas 31% dos padrinhos eram também cativos. Os demais 69% eram pessoas negras livres. O compadrio era uma ferramenta tão importante na inserção social dos escravos que, em alguns momentos, enfrentou a oposição das autoridades coloniais. No início do século XVIII, o conde de Assumar mostrava-se preocupado com as notícias de que alguns escravos alcançavam posições de certo prestígio social, sendo convidados a ser padrinhos de batismo de inúmeras crianças nascidas em famílias também cativas. Segundo ele, isso poderia acarretar “dano de seus senhores”. Além disso, argumentava que negros recém-chegados da África, “ainda bárbaros”, jamais poderiam doutrinar seus afilhados “com a ciência e o zelo como farão os homens brancos”. O conde queria total submissão dos cativos aos seus mineradores e fazendeiros escravocratas. Por isso, ordenou que só os brancos pudessem ser padrinhos de batismo ou de casamento de escravos, ordem que nunca foi respeitada. [12] Ao analisar os registros de batizados da paróquia de Catas Altas do Mato Dentro, hoje município mineiro situado na serra do Caraça, região metropolitana de Belo Horizonte, o historiador Tarcísio R. Botelho produziu uma curiosa e reveladora fotografia da formação da família escrava em Minas Gerais do século XVIII. [13] Nela misturam-se elementos importantes para o entendimento da dinâmica do escravismo em todo o Brasil, como a miscigenação racial resultante do relacionamento sexual entre senhores brancos e suas escravas negras ou pardas, os casamentos entre cativos — mais frequentes do que se imagina — e a existência de um elevado número de lares em que mulheres eram chefes de família, muitas delas já alforriadas e mães de filhos gerados em relacionamentos com seus senhores ou com diferentes homens, que poderiam ser brancos, negros escravos ou forros. A união consagrada pelo casamento religioso, constituída de acordo com os preceitos da Igreja Católica, não era a única pela qual se formavam as famílias negras, escravas ou libertas. Cerca de 80% das crianças batizadas em Catas Altas eram registradas apenas com o nome da mãe, indicativo de que, em todos esses casos, tratava-se de famílias matrifocais, chefiadas por mulheres. Na condição de alforriadas, muitas delas aparecem não apenas como chefes de família, mas também como proprietárias de escravos ou madrinhas de outros cativos. As uniões conjugais relativamente estáveis apareciam nas mais diversas combinações possíveis. Havia a família negra, com ambos os pais escravizados ou um deles liberto e outro cativo. Muito comuns eram também os núcleos familiares em que pelo menos um dos pais era africano ou filho de alguém que viera da África. Alguns já eram libertos. Outros buscavam meios para obter a liberdade, para si e para seus filhos. Eram também famílias relativamente prolíferas. Antônia, identificada como sendo da etnia mina, e Antônio, angola, escravos de Manoel Carvalho de Araújo, por exemplo, compareceram cinco vezes à pia batismal entre 1776 e 1788, o que significa que, em média, tiveram um filho a cada dois anos, sem contar os que eventualmente não sobreviveram tempo suficiente para serem batizados devido à elevada taxa de mortalidade infantil entre os escravos. A família escrava passava a figurar, assim, não mais como uma exceção, mas como um traço estrutural do escravismo brasileiro, como observou Botelho. O primeiro registro de batismo em Catas Altas foi de uma criança escravizada, no início da corrida do ouro, no dia 15 de julho de 1712. Henrique era filho natural (ou ilegítimo) da escrava Domingas e de seu senhor Manuel Vieira Borges. Em 29 de setembro de 1714 aparece o registro de mais uma criança nascida no cativeiro, Miguel, filho natural de Francisca Mina (sobrenome indicativo de que seria africana, da região do Golfo do Benim) e de seu senhor Francisco Queimado. Um mês depois foi registrado Marcos, filho natural de Josefa, escrava do sargento-mor Antônio Correia Sardinha. O primeiro casamento de escravos ocorreu no dia 1o de março de 1718, entre Miguel e Joana, ambos escravos de Bento Barros. Por essa mesma época, aparecem os registros de crianças escravas filhas de casais também escravos ou nascidas em lares nos quais pelo menos um dos pais já era liberto. Teodózio, filho de Maurício e Domingas, escravos de Manoel Vieira Borges, foi batizado em 1o de agosto de 1715. Clara, filha do liberto Martinho e de Domingas, escrava de Manoel Gomes de Araújo, compareceu à pia batismal em 11 de agosto de 1715. Outro caso exemplar observado por Tarcísio R. Botelho diz respeito ao plantel de Manoel Jorge Coelho, um dos maiores proprietários de escravos da região de Catas Altas no século XVIII. Entre 1717 e 1729, Coelho batizou onze crianças, nascidas entre os seus cativos. Dessas, quatro eram filhas de Maria, identificada como escrava benguela (da região sul de Angola), e Sebastião, ou seja, aparentemente nascidas dentro de um casamento estável. Outras quatro, porém, eram filhas de Suzana, “negra angola” (muito provavelmente embarcada no porto de Luanda, de onde provinham os cativos com essa denominação), com diferentes pais, alguns escravos e outros livres. No plantel de 76 cativos desse senhor escravocrata, havia 57 homens africanos e sete nascidos no Brasil. As mulheres eram onze, das quais apenas uma nascera em nosso país. Havia, portanto, cinco homens para cada mulher. Entre as onze mulheres, porém, cinco eram casadas. Dentre as outras, três registraram filhos no período analisado pelo pesquisador. Outro historiador mineiro, Eduardo França Paiva, encontrou nos registros de São João del-Rei um caso interessante por revelar que, numa única geração, um homem e uma mulher, recém-chegados da África como cativos, tiveram a oportunidade de ganhar a liberdade, constituir família, acumular bens avaliados no total em dois contos de réis, o que seria uma fortuna razoável para a época, equivalente a 5,5 quilos de ouro, cerca de 1,7 milhão de reais em valores atualizados de 2021, além de virar, eles próprios, donos de escravos. [14] Quando Alexandre Correia e Maria Correia de Andrade, casal de negros africanos moradores de São João del-Rei, contraíram matrimônio (“em face da Igreja”, segundo aparece nos documentos), a noiva já era mãe de um filho e uma filha “que ela teve de outro pai no estado de solteira”. Depois do casamento, nasceram mais cinco filhos. A liberdade de ambos, aparentemente, tinha sido obtida por meio da mineração de ouro. Os bens de raiz, declarados pelo chefe do clã em seu testamento, de 1761, incluíam “uma morada de casas” com “um quintal cercado de muro de pedra” avaliada em 180 mil réis, mais “uma morada de casas pequenas [...] com seu quintal e todos os seus pertencentes”, avaliada em 50 mil réis, “umas terras minerais”, ou seja, lotes de extração de ouro, avaliadas em 450 mil réis, diversos instrumentos de mineração e agricultura e, por fim, doze escravos. A inserção e o prestígio social adquiridos pelo casal podem ser medidos pelas roupas arroladas no testamento, “uma casaca de lemiste [pano preto e fino, de lã], uma véstia [casaco curto ou jaqueta] de cetim, um calção de veludo, tudo forrado de tafetá” e pelo desejo final manifestado pelo marido antes de morrer: “Mando que no dia do meu falecimento se deem de esmola a doze pobres que acompanharem meu corpo à sepultura quatro vinténs de ouro a cada um, pelo amor de Deus”. Dois anos após o falecimento do marido, a viúva requereu ao juiz de órfãos da vila de São João del-Rei licença para sacramentar o casamento de duas filhas. Os novos genros — Luciano Rodrigues de Carvalho e João de Sá Ferreira — eram ambos “crioulos forros” (escravos alforriados nascido no Brasil) e mineradores de ouro. As despesas com os dois casamentos somaram 297 mil réis, valor aproximado de setecentos gramas de ouro, cerca de 218 mil reais em valores de 2021. A predominância da família escrava organizada no Brasil foi maior no período próximo da abolição, já na segunda metade do século XIX, e nos plantéis pertencentes às grandes fazendas de café do interior de São Paulo, onde os cativos eram alienados com menor frequência do que nos engenhos e fazendas das regiões Norte e Nordeste — o que significava também menor risco de separação de maridos e mulheres, ou pais e filhos. O censo de 1872, o primeiro de abrangência nacional, mostrou que nas fazendas de grande e médio portes da região de Campinas, interior de São Paulo, 67% das mulheres escravizadas eram casadas ou viúvas. Oitenta por cento dos filhos menores de dez anos conviviam com os dois pais ou com a mãe ou o pai viúvo. No distrito de Bananal, no Vale do Paraíba, 83% dos 2.282 cativos viviam em unidades familiares. Na fazenda Resgate, situada na mesma região, 90% dos 436 cativos eram parentes de outros cativos ou de pessoas negras ou pardas livres. Um estudo abrangendo 2.245 escravos nos distritos vizinhos de Lorena e Cruzeiro apontou que, em 1874, o percentual de escravos que viviam em unidades familiares era de 55%. [15] Escravos recém-chegados ao Brasil tendiam a formar famílias com parceiros da mesma etnia a que pertenciam na África. O viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, de passagem pelo Brasil em 1816, registrou o seguinte depoimento de um africano residente em Minas Gerais: Vou me casar dentro de pouco tempo; quando se fica assim, sempre só, o coração não vive satisfeito. Meu senhor me ofereceu primeiro uma crioula, mas não a quero mais; as crioulas desprezam os negros da Costa. Vou me casar com outra mulher que minha senhora acaba de comprar; essa é da minha terra e fala a minha língua. [16] No distrito mineiro de Barbacena, entre 1721 e 1781, havia 717 africanos casados, sendo que 68% deles tinham cônjuges também africanos e, nesse caso, 96% — ou seja, quase a totalidade — pertenciam ao mesmo grupo étnico original. [17] Essa proporção, porém, mudava com o passar dos anos e das gerações. Entre os crioulos, os casamentos tendiam a acontecer com parceiros também nascidos no Brasil e dos mais variados grupos étnicos. Havia significativas diferenças regionais na composição da família escrava. Estudos apontam que as chamadas uniões livres, sem matrimônio formal na Igreja, eram mais comuns nas regiões Norte e Nordeste do que no Sul do Brasil. Um censo de 1855 realizado em Salvador revelou que, dos casais com filhos, 59% não eram legalmente casados. Entre 1830 e 1874, apenas 38% das mais de 9 mil crianças batizadas na paróquia da Sé, na capital baiana, foram registradas como filhos legítimos, nascidos dentro de um casamento sacramentado pela Igreja. [18] Outros estudos indicam que houve ainda mais escravos legalmente casados na área rural do que nos centros urbanos. Foi o caso das fazendas cafeeiras de Itu e Sorocaba, no interior de São Paulo, onde os percentuais de escravos adultos casados em 1804 eram de, respectivamente, 36% e 43%, taxa bem superior à registrada em cidades de outras regiões do país. Robert W. Slenes chama atenção também para uma bem-sucedida estratégia feminina no Brasil escravista. Mulheres africanas recém- desembarcadas tendiam a se casar ou se relacionar preferencialmente com homens muito mais velhos: “A mulher africana jovem e recém- chegada”, escreveu Slenes, “rapidamente se daria conta de que ‘o melhor partido’ (aquele que permitiria a ela e a seus futuros filhos enfrentarem melhor as condições incertas da escravidão, conseguirem mais rapidamente favores da casa-grande e recursos que pudessem levar eventualmente à alforria de algum familiar) não seria o ‘malungo’ bonito da mesma idade, mas o homem com mais experiência de Brasil: o cativo ladino, com laços de amizade e dependência já formados, talvez com ocupação diferenciada, em todo caso com algum pecúlio e com poder de poupança maior”. [19] Malungo, como já se viu em outros capítulos desta trilogia, era a denominação que se dava aos companheiros de viagem no navio negreiro.