Dissertacao de Mestrado - Lucas Nerua
Dissertacao de Mestrado - Lucas Nerua
Dissertacao de Mestrado - Lucas Nerua
FORTALEZA
2016
LUCAS ALBERTO ESSILAMO NERUA
FORTALEZA
2016
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca de Ciências Humanas
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Prof.ª Dr.ª Andréa Borges Leão (Orientadora)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Mariana Mont’ Alverne Barreto Lima
Universidade Federal do Ceará (UFC)
__________________________________________
Prof.ª Dr.ª Sinara Mota Neves de Almeida
Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB)
DEDICATÓRIA
Quero dedicar este trabalho a minha família, que é o meu porto seguro, onde
atraco o meu barco sempre, que as ondas do mar da vida se enfurecem. Em especial, ao
meu fiel amigo, companheiro e amado pai, Alberto Essilamo Nerua, meu herói. Dedico
igualmente, este trabalho a minha irmã e heroína, Lucia de Fátima, a meu irmão e
amigo, Essilamo Nerua, a Nilces e dona Manueala, duas mulheres virtuosas.
Dedico-o também, a todos aqueles que buscam humanidade nas pessoas, aqueles
que olham além da cor da pele, da condição econômica, da nacionalidade, e de tantos
outros estereótipos, aqueles que acreditam que existem tesouros por se descobrir em
cada ser humano e que os estereótipos são os obstáculos que temos que ultrapassar para
achá-los. Falo da Mariana Santos, Mecilde Gonçalves, Messi Vieira, e Hannah
Almeida, quatro fascinantes mulheres que adoram fazer do sorriso uma condição
imprescindível para manter a paz com os amigos. A estas quatro guerreiras, semeadoras
de sonhos e esperança dedico esse trabalho.
“Isto vos ordeno: que vos ameis uns aos outros assim como eu vos amei”
AGRADECIMENTOS
“Kanimabo”, pai por me teres mostrado desde cedo que a escola era o melhor
caminho pelo qual seguir, obrigado, por teres te sacrificado a todo tempo para que não
faltassem condições para que eu fosse a escola, estudasse. Obrigado pelos inumeráveis
sacrifícios que fizeste por mim, meu provedor, amigo e fonte de inspiração. Saiba que a
maior herança que pudeste me dar, deste-me em vida, a educação, respeito e amor para
com o próximo. Obrigado paizão, Alberto Essilamo Nerua. Te amo pai.
Obrigado, Ana Paula e Tassia Pinheiro, duas amigas que conheci na faculdade
de Educação da UFC, obrigado pelo companheirismo, amizade, alegria e pelos
momentos impares que passamos juntos, que a saudade seja testemunha eterna de nossa
amizade e do carinho que tenho por vocês. Para Fabricio, Maria Helena, meus vizinhos
e amigos, amáveis criaturas que Deus colocou em minha vida vai um abraço com
tamanho do mundo, vai um muito obrigado também ao meu amigão Floriano e Lazaro
do Santos.
Espero que os que aqui não foram citados, não se sintam excluídos, as paginas
são limitadas, mas a minha consideração por vocês é imensurável, por isso, a todos que
me acompanharam direta ou indiretamente durante esta caminhada vai o meu muito
“Kanimambo” (obrigado).
“A Libertação da Mulher é uma Necessidade da Revolução, Garantia da sua
Continuidade, Condição do seu Triunfo” (SAMORA MOISÉS MACHEL).
“As pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os
inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza”.
(BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS)
RESUMO
It is from the importance, role and specific ideological role that school education
in particular textbooks had in the national reconstruction process, training and
dissemination of new Mozambican identity in the post-independence (1975), which this
thesis proposes to reflect on the ideological role of education, particularly of textbooks
for primary education in the process of designing, building and institutional differences
or reproduction of gender equality. For this purpose, we analyze how the textbooks are
gender relations between men and women in their content and verify that question or
reproduce socially accepted roles for men and women. We took as empirical material of
our research textbooks of the first seven years of schooling primary school of public
administration in particular the Portuguese language (reading book), Moral and Civic
Education, Crafts and Mathematics. Away from the pedagogical conceptions of the
textbook, the study sees through the assumptions of the book "male domination" of
Bourdieu, the textbook in question as a special area of diffusion of stereotypes, gender
differences between man and woman They tend to represent the first as provider and the
second as a subaltern / submissive. In this respect, the results of this research suggest
that school education through textbooks of primary education in Mozambique tends to
institutionally reproduce gender differences when transcribing arbitrary and unequal
gender relations as the ideal type of behavioral patterns of gender, showing the place
and the activities that should be occupied by women and not by men and vice versa.
What perpetuates the students the male cultural arbitrary that happens to be exposed and
taken as desirable role model, although that hides within itself a discrimination against
women, its concealment and submission to this male social order to repress and
confines doxa of patriarchal domination gender.
LISTA DE QUADROS
LISTA DE MAPAS
1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 13
2. SISTEMA NACIONAL DE EDUACAÇÃO. ......................................................... 21
2.1 Sobre Moçambique ............................................................................................. 21
5.5.1 Perfil dos autores, editores e leitores dos livros didáticos em análise.......... 124
6. ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DO CONTEÚDO DOS LIVROS
DIDÁTICOS. .............................................................................................................. 136
6.1 Processo de construção social do corpo da mulher e do homem. ................. 137
6.2 Divisão do trabalho Social entre homem e mulher no lar ............................. 137
6.4 A construção social do corpo do menino e menina por meio das atividades
domésticas, brincadeiras e brinquedos. ................................................................ 162
1. INTRODUÇÃO
1
25 de Junho de 1975, proclamação da independência de Moçambique contra o jugo colonial português.
2
Estado construído pelos moçambicanos após a independência, após a libertação colonial.
3
A categoria do Homem Novo foi subsumida pela ideologia da Frelimo para referir-se aos novos sujeitos
moçambicanos livres da ideologia colonialista; moçambicanos emergidos da revolução, capacitados para
construir uma nova identidade sócio-política; o ‘novo’ tem um sentido temporal, nascido de um tempo e
de uma realidade revolucionária contra a opressão colonial e o tribalismo e obscurantismo embasado na
tradição.
14
Entretanto, nos chama a atenção nesses trabalhos o destaque que eles dão a
importância e o papel que ao estado, em particular a educação escolar, políticas, leis
educacionais, currículo e livros didáticos na qual se objetivaram desempenharam na
execução desses objetivos, da formação do Estado e homem novo, garante da unidade
nacional e construção dessa identidade moçambicana. Questionamo-nos, como essas
políticas, leis, currículo e o sistema nacional de educação contribuiu para formação
desse novo homem e Estado? Para a difusão da identidade moçambicana que garantiria
a unidade nacional no meio a tanta diversidade étnica e cultural que marcava o pós-
colonial?
Embora, o nosso foco não seja buscar a resposta da questão anteriormente feita,
é sobre esse raciocínio acima colocado, que buscaremos neste trabalho, por meio da
análise documental do sistema educacional, currículo dos livros didáticos ver o papel
que a educação escolar, em particular o livros didáticos do ensino primário tem
desempenhado na promoção das diferenças ou igualdade de gênero entre homem e
mulher em Moçambique. Pois, se após a independência, por meio dos livros didáticos
fundamentados nas políticas, currículo e sistema nacional de educação, a educação
escolar mediado pelo projeto político da FRELIMO impulsionou uma educação que
assumisse a tarefa de desmistificar o paradigma colonial, passando a ser instituição de
difusão da ciência, tecnologia e ideologia do movimento de libertação assente no ideário
do homem e Estado Novo. É relevante pensar o papel que os livros didáticos podem ter
desempenhado ou vem desempenhado na ocultação das diferenças, ou na promoção da
igualdade de gênero no país. Para isso, nos propomos a refletir sobre a educação escolar
e gênero em Moçambique, por meio da analise das representações de gênero nos livros
didáticos do ensino primário em Moçambique.
Sob ponto de vista sociológico tornou-se relevante na medida em que pode nos
possibilitar mostrar os aspetos de ordem socioculturais que determinam ou estariam por
detrás da maneira como se encontram representados os papéis de gênero nos livros
didáticos de ensino primário em Moçambique. Entendemos que o contributo teórico
que este trabalho trás para área de investigação sociológica sobre gênero e educação é o
fato de poder indicar-nos construções culturais, criação inteiramente social de ideias
sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres (relação de poder entre os
sujeitos), no qual, o gênero é social e culturalmente construído.
Para a reflexão e análise teórica das representações de gênero patentes nos livros
didáticos, usamos os pressupostos teóricos trazidos pelo sociólogo francês Bourdieu em
sua obra intitulada: “A Dominação Masculina”, pois apoiado nesta obra podemos
abandonar a romântica e ilusória ideia que tende a reduzir à equalização nas relações de
gênero a entrada das mulheres no espaço público (embora importante, especialmente no
acesso ao trabalho e principalmente educação, da qual o trabalho muitas das vezes
depende) deixando do lado o papel que as estruturas objetivas têm na inculcação do
arbitrário cultural da dominação, mesmo em face de uma igualdade numérica, o que
Bourdieu chamara de “diferenças na igualdade” (BOURDIEU, 2003).
É baseado nesta constatação que Bourdieu parte para demonstrar que a mudança
social, que gere igualdade nas relações de gênero, deve partir das instituições que
produzem e reproduz o imaginário androcêntrico, a família, a escola, a Igreja e o
19
Estado. Pois, é onde este imaginário continuamente se reforça, criando nos corpos e nas
mentes de homens e mulheres disposições permanentes para perceber a dominação
masculina como algo naturalmente justificável. Para esta importante tarefa, ainda não
plenamente (ou apenas superficialmente) realizada, que Bourdieu se dedica na obra a
dominação masculina. O que nos ajuda, por meio da analise das representações de
gênero nos livros didáticos do ensino primário em Moçambique a não sermos reféns das
estatísticas (que apontam para uma equidade de gênero entre homens e mulheres no
ensino primário nacional, olhando somente para o crescimento do índice de acesso das
meninas ao ensino primário), mas a buscarmos analisar como a mulher e homem são
representados nos materiais didáticos, tentando assim, averiguar se as políticas,
currículo e os planos estratégicos educacionais assentes nas perspectivas de gênero
estão sendo incorporados nos manuais didáticos usados no processo de ensino e
aprendizagem no ensino primário nacional.
Moçambique foi uma das colônias portuguesas que se libertou do jugo colonial em
25 de junho de 1975 e começou o projeto da reconstrução nacional que culminou com a
reestruturação das instituições sociopolíticas e econômicas, da história e das identidades
nacionais. Geograficamente, Moçambique situa-se no sudeste do continente africano, na
região da África Austral, entre os paralelos 10º 77´ e 26º 52´ de latitude sul e entre 30º
12´ 40º 51´ de longitude a leste. Tem uma superfície territorial de 799.380km2 e
20.530.714 habitantes, segundo o censo de 2007. A densidade populacional perfaz 24
habitantes por km2. Em termos de limites, confina-se com a Tanzânia ao norte; Malawi,
Zimbabwe e Zâmbia ao oeste; África do Sul e Suazilândia ao Sul e o Oceano Índico a
Leste, de acordo com o mapa do continente africano. Nessa região e em todo Oceano
Índico, é o único país de língua portuguesa. Todos os países confinantes, por tradição
colonial ou influência política, têm o inglês como língua oficial (PGM6, 2014).
6
Portal do Governo de Moçambique (http://www.portaldogoverno.gov.mz/)
22
Na capital do país, a Cidade de Maputo, vive cerca de 5,3% da população. Nas duas
províncias mais populosas, Nampula e Zambézia vivem quase 40% da população.
Segundo o Censo de 2007, mais de metade da população (51,8%) é do sexo feminino,
variando de 55% nas províncias de Gaza e de Inhambane a 50,5% nas províncias de
Nampula e Niassa. O crescimento anual da população é de 2,6%. Mais de metade da
população (52%) está no grupo etário de 0-18 anos e 20% no grupo etário 6-12 anos.
Uma população tão jovem, que ainda não produz, coloca uma forte pressão sobre a
economia do país que tem que assegurar a realização das necessidades básicas deste
grande grupo de consumidores de produtos económicos e de serviços públicos (PGM,
2014).
Após a guerra civil7 dos 16 anos, a reconstrução do país começou em 1992, com
a assinatura do Acordo Nacional de Paz. Desde então, a economia do país vem
crescendo a um ritmo de cerca de 7-8% por ano (PIB). A inflação é de cerca de 10%. A
despesa do Estado representa cerca de 30% do PIB. A despesa financiada por recursos
externos através de donativos e créditos atinge os 45% do Orçamento de Estado (OE). O
crescimento económico ao longo dos últimos anos tem facilitado a expansão dos
serviços básicos em todo o país em termos de acesso à educação, saúde e saneamento,
com maiores progressos nas zonas rurais (Idem, 2014).
7
Guerra entre a Frelimo e Renamo, que inicia após a independência, em 1976 e termina com os acordos
de paz de Roma em 1992. Guerra causada pelos membros desertores da FRELIMO que criaram seus
próprios movimentos de resistência contra a FRELIMO, alegando terem estes últimos, traído os ideários
que norteavam a luta de libertação nacional e da criação de uma nova nação.
25
seus direitos sociais” (SANTOS; CRUZ E SILVA, 2004, p. 20). Foi nesse contexto que
o governo nacionalizou as áreas econômicas e serviços sociais como saúde, habitação,
justiça e educação com o fim de construir e consolidar um Estado democrático
monopartidário que pretendia atingir elevados índices de participação popular.
De outro lado, funcionava o ensino oficial que tinha por objetivo inculcar nos
alunos o conceito de Portugal como pátria-mãe e nação intercontinental. Esse ensino foi
assumido pelas organizações religiosas. Como destacam Castiano, Ngoenha e Berthoud
(2005, p. 13) toda “a educação dos filhos dos portugueses é garantida por padres, alguns
professores particulares, escolas regimentais, etc., já que só em Agosto daquele ano é
que foi estabelecido o regime das escolas públicas em Moçambique”. Os dois currículos
objetivavam inculcar aos moçambicanos uma identidade estrangeira, portuguesa.
9
O termo classe é usado em Moçambique e é equivalente ao termo série no Brasil. Contudo, a pesquisa
usa o temo classe no lugar de série como é usual em Brasil.
30
até 4ª classe; 2) professores da 4ª classe mais quatro anos de formação profissional para
lecionar até 3ª classe; 3) professores cuja habilitação era 4ª classe mais um curso de
duração de dois meses para lecionar até 2ª classe. Esses professores asseguravam a
educação indígena em Moçambique, embora sua formação fosse deficiente (SILVA,
2007; BASÍLIO, 2010).
Contudo, o ensino oficial foi organizado e destinado apenas para os filhos dos
colonizadores e assimilados. Os conteúdos deste último giravam em torno da formação
para cidadania e as competências eram: leitura, escrita, cálculo, domínio da história e
geografia de Portugal. Segundo as declarações de Silva Cunha, ministro do Ultramar, a
educação oficial tinha o compromisso de formar os “cidadãos capazes de compreender
plenamente os imperativos da vida portuguesa, interpretá-los e transformá-los numa
realidade constante, a fim de assegurar a continuidade da nação” (MATEUS, 1999, p.
38). Portanto, a tarefa do ensino oficial era inculcar nos alunos a cidadania portuguesa e
pertença a Portugal como pátria-mãe. Esse ensino foi assumido mais tarde pela igreja
católica.
10
Primeiras províncias conquistadas durante a luta armada de libertação Nacional.
32
para a FRELIMO, devia ser uma base de formação militar, política, científica e humana
das pessoas, (a escola parece sempre atender a necessidade do momento de quem detém
o poder político). Segundo Eduardo Mondlane11, era preciso educar o povo, para este
descobrir o “feitiço” do colonialismo, mas também assimilar a nascente ideologia
política de vertente socialista da FRELIMO. Só com a educação, o povo poderia tomar
o poder dizia o saudoso patrono da unidade nacional (BASÍLIO, 2010).
11
Fundador da Unidade Nacional e Primeiro presidente da FRELIMO.
33
que deram origem as três subsequentes “ondas” de reforma educacional que marcaram o
sistema nacional de educação dos anos 80 até os dias atuais.
políticas. A partir desses seminários, nasceram visões mais claras de uma concepção de
currículo nacional impregnado da realidade moçambicana (BASÍLIO, 2010).
12
Ministério da Educação, atualmente Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano.
13
Primeiro presidente de Moçambique independente.
14
Em Moçambique, a noção do currículo como organização do conhecimento escolar a partir do
repertório cultural, ou seja, como artefato sociocultural organizado para a escola é muito recente. O seu
uso na escola remonta à reforma de 2003, devido à presença significativa de peritos nacionais na área de
Educação e Currículo. As duas grandes transformações operadas nos anos de 1983 e 2012, segundo os
documentos oficiais, usaram o termo “Novo Sistema de Educação”, em lugar do novo currículo, opondo-
35
16
Boletim da República de 1983
37
uma cultura única, a cultura do Estado; como uma ferramenta de transformação humana
e de difusão ideológica dos princípios da soberania, da cidadania e da unidade política
que passou por cima dos núcleos étnicos, mas este teve grandes fracassos ao fomentar a
exclusão das culturas e línguas locais. Aqui, a nosso ver a igualdade de gênero resume-
se no anuncio de garante de mesmas oportunidades de acesso à educação entre homem e
mulher, resumindo-se a isso, pois nenhuma referencia é feita com relação à necessidade
da promoção da igualdade de direitos, deveres, garante de mesmos prestígios,
expetativas entre homem e mulher no próprio processo de ensino aprendizagem.
A exclusão das culturas e línguas locais se deve ao fato de a escola ter priorizado
a criação de um forte laço de unidade e de sentimento coletivo; uma moçambicanidade
coesa politicamente e, ter cimentado a consciência da nação única e o espírito de
pertença à pátria. Nessa esteira, a escola proporcionava aos alunos conhecimentos sobre
a Educação Política, a História e Geografia de Moçambique; um saber sobre os heróis
nacionais e, exigia o respeito pelos símbolos da pátria: o hino e a bandeira17. A escola
pretendia, com isso, inculcar nos alunos a consciência da moçambicanidade e garantir
“uma educação uniforme das crianças, jovens, mulheres, adultos, idosos, camponeses,
operários, antigos combatentes da luta armada” (CASTIANO, 2005, p.65).
17
Razão pela qual daquele período até então os livros didáticos levam estes símbolos em suas capas e a
letra do hino nacional, sendo que também é entoado o Hino Nacional nas escolas do ensino primário ate
os dias atuais, em cada inicio dos turnos escolares.
38
Em sua lei o SNE funda uma unidade dialética entre educação científica e a
educação (ou instrução) ideológica, fazendo assim com que os programas e currículo e
manuais didáticos e seus conteúdos de ensino refletissem a orientação política e
ideológica do Partido Frelimo. Aqui a escola se faz não só um fator dinamizador do
desenvolvimento socioeconômico e cultural da comunidade, mas também inculcador e
difusor de uma visão de mundo imbricada nos designíos políticos assente na ideia do
homem novo da Frelimo.
No que concerne à estrutura, a lei 4/83, demonstra que o sistema de educação foi
organizado em cinco subsistemas que se complementam entre si, nomeadamente:
Subsistema de Educação Geral (SSEG), Subsistema de Educação de Adultos (SSEA),
Subsistema de Educação Técnico-Profissional (SSETP), Subsistema de Formação de
Professores (SSFP) e Subsistema de Educação Superior (SSES). Cada um desses
subsistemas tem características peculiares. Além dos subsistemas, o sistema de
educação foi estruturado em quatro níveis de ensino: Primário, Secundário, Médio e
Superior, merecendo nosso destaque nesse trabalho o subsistema de educação geral no
nível de ensino primário, pois é destes que retiramos os livros que pretendemos analisar.
18
Guerra Civil entre a Frelimo e a Renamo que durou 16 anos, de 1976 a 1992.
44
Essa primeira onda de reforma educacional marcada pela lei que dá origem ao
sistema nacional de educação pôs-independência permite-nos ver o quão às políticas,
currículo e o material didático serviram o projeto político-ideológico da Frelimo de
construção do homem novo, identidade moçambicana e preservação da unidade
nacional, e para o desmascaramento da opressão do sistema educacional colonial e
alienante do sistema tradicional. E a segunda lei que marca a segunda “onda” de
reformas mostrara o quão o sistema educacional se reajusta as novas condições
históricas, econômicas e políticos-ideológicos que vão caracterizar o país depois dos
anos 90. E, se assim acontece é também esperado que com tantas leis e instrumentos
legais no plano econômico, social e educacional reivindicando a emancipação de
gênero, que os políticas, planos estratégicos de educação, curriculum e os materiais
didáticos também incorporem essas mudanças.
19
O termo educação básica varia de um país para o outro. Na África Subsaariana, a educação básica
inicialmente referia-se à educação formal destinada a dar aos jovens e adultos instrumentos para leitura,
escrita e cálculo. O termo foi evoluindo passando a designar a educação do primeiro grau. Assim, a
educação básica é a “educação de primeiro grau acrescida do primeiro ciclo da educação secundária
estimando-se que a aquisição de ‘o conhecimento, as habilidades e as atitudes essenciais para funcionar
de maneira efetiva na sociedade’ se dá no equipamento escolar e requere aproximadamente oito anos de
instrução” (TORRES apud BASÍLIO, 2007:132). Em Moçambique, o termo educação básica equivale ao
ensino básico que responde as sete classes iniciais. Essas concepções de educação básica afastam-se da
visão ampliada dos países desenvolvidos em que a educação básica inclui crianças, jovens e adultos e
46
abrangem os 12 anos de escolaridade. No Brasil, a educação básica divide-se em: educação infantil,
fundamental e médio cobrindo, assim, os 12 anos de instrução escolar.
47
Assim, em maio de 1992 aprovou-se a lei 6/92 de seis de maio de 1992, que
reajusta os fundamentos políticos, filosóficos e a estrutura do sistema de educação. A lei
6/92 redefiniu os objetivos da educação e potenciou a escolaridade obrigatória e gratuita
para cumprir o princípio da educação para todos, consagrado na conferência de
Jomtein20, em 1990. A lei modificou os princípios gerais preconizados no Art. 1º; além
de definir a educação como um direito e dever, o Estado abriu a possibilidade de
intervenção das entidades comunitárias, cooperativas, empresariais e privadas no
processo da educação, e responsabilizou-se pela organização e promoção do ensino. O
princípio de Homem Novo é especificado pela lei 6/92 como princípio da
moçambicanidade e não mais como ideário oposto a visão da educação capitalista ou
mercantilizada. Em termos de objetivos gerais, a nova lei priorizou a erradicação do
analfabetismo21, a garantia do ensino básico (compreende as sete primeiras classes) a
todos os cidadãos de acordo com o desenvolvimento do país e a formação profissional.
A lei defende uma moçambicanidade construída a partir da pluralidade política e étnica.
20
Conferência Mundial sobre Educação para Todos, ocorrida em Jomtien, Tailândia de 5 a 9 de março de
1990 com o objetivo de garantir por parte dos países participantes Satisfação das Necessidades Básicas de
Aprendizagem, garantindo a educação como um direito inalienável.
21
Pelo menos essa lei já de viés capitalista fez em 2012 a promessa da erradicação do analfabetismo,
embora a taxa de analfabetismo fosse de 48,1% em 2008.
49
22
PROJETO BOLONHA UMA. Informação explorada no âmbito da justificação da terceira vaga da
reforma curricular em Moçambique, disponível em http://www.bolonha.uma.pt.Acesso em 16 de Agosto
de 2015.
52
23
Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral.
53
Vemos que Cabaço (2009) está a favor de uma escola que articule o universal
com o local e que permita adaptação aos novos contextos, mas também que tenha em
conta à moçambicanidade, aqui parece que cabaço já via o projeto pós-colonial do
homem novo livre da opressão capitalista colonial se silenciar nas imposições
internacionais. Por isso, realçava, a escola moçambicana deve ter um referencial e uma
política adequada à realidade local. Para isso “exige um trabalho dos moçambicanos”.
Isto significa que o currículo nacional colocado em causa tem de ser reconstruído por
moçambicanos, ou seja, os próprios moçambicanos têm de se comprometer na
reconstrução do currículo e se dedicarem à nova escola onde se democratize e se
disponibilize o saber às massas populares e onde reine a qualidade e equidade.
24
Podem ser vistas com mais detalhes que esses que colocamos de maneira resumida na Tese de
Doutorado de Guilherme Basílio (2010) intitulada “O Estado e a Escola na Construção da Identidade
Política moçambicana”.
56
25
Segundo Plano Curricular do Ensino Básico (PCEB), o Ensino Básico Integrado, em Moçambique, é “o
Ensino Primário Completo de sete classes articulado do ponto de vista de estrutura, de objetivos, de
conteúdos, do material didático e da própria prática pedagógica. O Ensino Básico Integrado caracteriza-se
por desenvolver, no aluno, habilidades, conhecimentos e valores de forma articulada e integrada de todas
as áreas de aprendizagem, que compõe o currículo, conjugados com as atividades extracurriculares e
apoiado por um sistema de avaliação que integra as componentes somáticas e formativas, sem perder de
vista a influência do currículo oculto”. (INDE; MEC, 1999:28).
26
A introdução do currículo local é uma questão estratégica para abordagem de conteúdos relevantes para
aprendizagem local. Não se trata de um conjunto de conhecimentos programados para a escola, muito
menos de uma disciplina, mas apenas introdução diversificada de saberes locais em cada disciplina.
57
Básico apresenta uma especificidade orgânica que permite uma abordagem integrada.
As disciplinas estão organizadas em áreas curriculares que articulam um conjunto de
saberes, atitudes e valores inter-relacionados. Sendo assim, ele apresenta eixos que o
INDE27 designa de áreas curriculares: Comunicação e Ciências Sociais; Matemática e
Ciências Naturais e Atividades Práticas e Tecnologias; área de Comunicação e
Ciências Sociais e área de Matemática e Ciências Naturais.
27
Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação.
58
O segundo projeto que justifica a reforma do ESG é Agenda 2025. Segundo esse
projeto, a educação deve se fundamentar em quatro pilares propostos por Jacques
Dellors (apud, BASÍLIO, 2010), que são: saber ser, saber conhecer, saber fazer e saber
viver junto com os outros. O terceiro projeto é Plano de Ação para a Redução da
Pobreza Absoluta (PARPA). Esse plano apontou como desafio a redução do índice da
pobreza para 45% até em 2009. A pobreza absoluta não se refere nesse plano apenas à
falta de bens materiais, mas também o baixo nível de escolarização. Por isso, é a tarefa
da educação tirar o país da linha vermelha formando cidadãos capazes de desenvolver o
país.
28
O termo gênero é usado politicamente como forma de reconhecimento dos direitos da mulher. O termo
é usado, gramaticalmente, para uma distinção sexual (masculino e feminino). O termo ganhou, hoje, um
estatuto mais político passando a designar promoção dos direitos da mulher.
59
“se centre nas habilidades para a vida, para o mercado do trabalho, do que apenas para o
ensino superior” (INDE, 2007, p.4). De certa forma, as orientações voltadas à
homogeneização curricular da região da África Austral e as exigências da UNESCO
sobre a revisão da estrutura curricular, dos programas, dos objetivos e das estratégias de
aprendizagem do currículo do ESG tiveram impacto forte nesta última reforma. Foram
evidenciadas nessa reforma as questões da soberania, de cidadania, da unidade e da
moçambicanidade que substitui o Homem Novo e definiram como objetivos principais:
1º Ciclo
Áreas\disciplinas 8ª 9ª 10ª
Português Português Português
Inglês Inglês Inglês
I. Comunicação e Ciências sociais Geografia Geografia Geografia
Disciplinas opcionais História História História
Línguas Moçambicanas, Francês, Artes Cênicas
(Opcionais no ciclo)
Matemática Matemática Matemática
Biologia Biologia Biologia
II. Matemática e Ciências Naturais Química Química Química
Física Física Física
III. Atividades Práticas e Tecnologias Educação Educação Física Educação Física
Disciplinas\Módulos Física
profissionalizantes Educação Educação Visual Educação Visual
Visual
- - TICs
- Noções de Noções de
empreendedoris empreendedoris
mo mo
O Numero de disciplinas 11 11 12
Fonte: INDE, 2007, p.68.
No que diz respeito ao 2º ciclo (ESG2), o INDE (2007) definiu além das áreas
curriculares, o Tronco Comum que contém disciplinas obrigatórias. Inicialmente o
tronco comum era constituído pelas disciplinas de Língua Portuguesa, Língua Inglesa,
Matemática, Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) e Educação Física.
Mais tarde, as TICs foram substituídas pela disciplina de Introdução à Filosofia. Em
termos de áreas de conhecimento, a primeira é Área de Comunicação e Ciências Sociais
que compreende as seguintes disciplinas: Línguas moçambicanas, língua francesa,
História, Geografia e as TICs; a segunda área é denominada por Área de Matemática e
Ciências Naturais comportando a Biologia, Química e Física e a terceira é Área de Artes
62
2º Ciclo
Áreas\disciplinas
11ª classe 12ª classe
Português Português
Inglês Inglês
Tronco Comum Matemática Matemática
TIC’s TIC’s
Educação Física Educação Física
Disciplinas\ módulos profissionalizantes (o Noções de Empreendedorismo, Introdução à
aluno escolhe uma no ciclo) Psicopedagogia, Módulos técnico-profissional
Geografia Geografia
História História
OPÇÃO A: Comunicação e Ciências Sociais Filosofia Filosofia
(escolhe duas disciplinas)
Línguas
Línguas Moçambicanas
Moçambicanas
Francês Francês
Biologia Biologia
OPÇÃO B: Matemática e Ciências Naturais Química Química
(o aluno escolhe duas disciplinas) Física Física
Geografia Geografia
Desenho e Geometria
OPÇÃO C: Artes Visuais e Cênicas Desenho e Geometria
descritiva
(o aluno escolhe duas disciplinas) descritiva
Esse Plano de estudo foi reestruturado de forma que o ESG2 pudesse seguir os
cursos oferecidos nas Universidades Públicas: Universidade Eduardo Mondlane e
Universidade Pedagógica e que algumas disciplinas passassem de opcionais para
63
Há enfim, também que realçar que a segunda e terceira “ondas” das reformas do
SNE levam em sua elaboração a incorporação da componente gênero, pois se acredita
que garantir a educação como direito dos indivíduos e dever do estado passava não só
pela extensão do ensino e melhoramento das condições de estudo, mas também pela
inclusão das mulheres, que significava aumento dos ingressos femininos, em todos os
níveis do sistema educativo, uma vez que a maioria das crianças que não ingressavam
na escola eram ontem e são hoje as meninas/mulheres.
Para Silva & Osorio (2008) cabia a esses programas, políticas e planos garantir
que as reformas do sistema nacional de educação seus currículos e políticas não apenas
vislumbrem apenas o acesso das meninas à escola, mas a sua manutenção e
principalmente, a alteração dos estereótipos de gênero carregados pelos professores e
profissionais de educação. Portanto, só seria possível mensurar se estes estereótipos
foram superados ou não, estudando não apenas a inclusão das mulheres, estatísticas
sobre o índice de ingresso das meninas no sistema nacional de ensino, mas os manuais
didáticos usados, pois nos possibilitaria ver como essa mulher inclusa nesse sistema
outrora excludente é vista representada no que concerne à questão de gênero.
67
Não podemos deixar de reconhecer que grande parte do conteúdo referente a essas
reformas foi alicerçada nos trabalhos de ANDRE MINDOSO29, GRABIELA SILVA30 e
com grande destaque para a Tese de Doutorado de GULHERME BASÍLIO 31,
29
Autor da Dissertação de mestrado (2012), intitulada: A construção Simbólica da Nação Nos Livros
Escolares no Moçambique Pós-Colonial (1975-1990), Fortaleza, UFC.
30
Autora da obra (2007): Educação E gênero Em Moçambique, Centro de Estudos Africanos da
Universidade do Porto.
31
Autor da Tese de Doutorado (2010) intitulada: O Estado e a Escola na Construção da Identidade
Política moçambicana. São Paulo, PUC-SP.
68
O ensino, de acordo com Worsley (apud MINDOSO, 2012), é uma das formas
de transmissão e aquisição de conhecimentos, o que se designa no âmbito das Ciências
Sociais por socialização. Contudo, a transmissão do conhecimento não é feita apenas
pelo ensino, pois, para este autor, a socialização está presente em vários processos de
interação nos quais indivíduos se envolvem durante a sua vida, seja na família, igreja,
ciclo de amigos, ou em outros espaços de sociabilidade. É nesta ordem de ideias que
Peter Berger e Thomas Luckmann (2010) defendem que esse processo é
caracterizado por duas fases: a socialização primária e a secundária32.
32
Durkheim (2008) chama essas duas fases de primeira e segunda infância.
69
Deste modo, acreditamos que o ensino visa, por um lado, conferir aos indivíduos
habilidades técnicas e especializadas de modo que estes se integrem na estrutura
ocupacional duma sociedade; por outro lado, fornece conhecimentos que têm a ver com
o domínio e interpretação dos códigos da sociedade, tais como a escrita, as contas, a
70
moral. Esta afinidade entre ensino e moral já tinha sido evidenciada por Emile
Durkheim em seu livro intitulado Educação Moral (2008). Nesta obra o autor
argumenta que a educação escolar constitui o núcleo da moralização da sociedade, pois
está convencido de que ela, usando procedimentos assente na disciplina e autoridade,
está mais apta (em relação a outras instituições socializadoras) a criar na criança o
espírito altruísta em relação à comunidade política a que pertence e, por conseguinte,
em nosso entender, a fazê-la interiorizar o habitus nacional.
as normas escolares. Assim, nos casos de incumprimento das normas escolares pelos
alunos a escola tem mecanismos de punir tais condutas visando sua correção. Tal
punição consiste para Foucault em tudo aquilo que é capaz de fazer o indivíduo sentir a
sua falta e, ao mesmo tempo é capaz de humilhá-lo, confundi-lo ou destituí-lo. É
importante notar que a sanção não é apenas o ato de punir, mas também é o ato de
remuneração, pois, segundo Foucault, os indivíduos que se conformam a tais normas
são premiados ao passo que os que não as observam são punidos.
Por outro lado, firma Osório (2006), que o fato de todas/os entrevistadas/os
terem afirmado a ausência de moças chefes de turma (mas a maioria dos adjuntos de
chefes são moças) é um bom exemplo de como se realizam as compatibilidades entre a
modernidade escolar e a tradição cultural da subalternidade da mulher, patente no
patriarcado. Assim, o que é comum na casa é também na escola, e para além da
impossibilidade de questionamento, há manutenção de uma estrutura de poder que tem
o gênero como determinante da submissão da mulher ao homem nas relações de gênero
dentro do sistema educacional.
Por outro ângulo, para Osório & Silva (2008), na obra intitulada, “Buscando
Sentidos: Gênero e sexualidade entre jovens estudantes do ensino secundário em
Moçambique”, com a socialização escolar, pelos conteúdos disciplinares, pela
explicitação de saberes e pela elaboração de novas hierarquias espera-se, que se rompa
com os estereótipos de gênero patentes na socialização familiar e se encontre pontos de
acordo que permitam a convivência entre os dois espaços e agentes de socialização. A
este nível, mostram as autoras que a escola deve-se apresentar como uma instituição
neutra e capaz de lidar com as divergência e particularidades provenientes da cultura
74
dos alunos, para garantir uma educação justa e democrática assente no princípio de
igualdade nas diferenças, e não diferenças na igualdade.
Assim, por meio de sua pesquisa, Osório & Silva (Ibidem) constataram que a
escola embora com novas ferramentas, como livros, língua portuguesa, ela não se
distancia do propósito de reprodução e legitimação da ordem social assente nas relações
de poder, onde as alunas são reféns dos papéis tradicionais de “cuidadoras, domésticas,
mães” e os alunos ao papel de “Pai de família”. Salientam as autoras, que a escola não é,
mais do que um agente de formalização e legitimador dos papéis desiguais de gênero
entre alunos e alunas. Embora, isso pareça passar despercebido a olhares desatentos que
preferem resumir a igualdade de gênero e a consequente emancipação da mulher ao
elevado índice de ingresso de meninas no sistema nacional de ensino. Esquecendo-se
como disse Bourdieu (2003) que existem diferenças na igualdade.
Assim, para Osório & Silva (2008), a entrada da mulher na escola e os seus
diplomas não garantem por si só o sucesso escolar ou profissional (muito menos a plena
igualdade de gênero) na vida delas. Pois, podemos notar que embora estejam na escola,
às mulheres exclusivamente continua cabendo obrigatoriamente desempenhar as
atividades domésticas quando estas regressam da escola, o que lhes ocupa, e contribui
para um baixo rendimento escolar, por falta de tempo de rever as matérias. Fraqueza
social e culturalmente aceita pelas escolas na pessoa dos profissionais de educação, ao
não esperarem o mesmo sucesso escolar das meninas, uma vez que, alegam justificar o
seu insucesso pela sua fragilidade de ser mulher e pelo fato de ter já o seu futuro como
garantido no matrimónio, diferentemente do homem que deve estudar e lutar para
garantir o sustento da família.
Para Osório (2007), Arthur (et al., 2007) e Loforte (1998) a instituição escolar
mostra-se, como reprodutora brutal de relações de poder, que rompem com a
possibilidade de igualdade de gênero entre homem e mulher. Pois, embora se tenha
aberto para as meninas constrói e legitima a vulnerabilidade dessas (alunas), no sentido
de que, embora elas estejam, nos mesmos espaços sociais (esfera pública/escola) que os
homens, não conseguem almejar a tão sonhada autonomia ou igualdade de
oportunidade, sinal de que estamos juntos, mas separados pelos privilégios
socioculturais designados a cada gênero. É aqui, que segundo as autoras, se constata que
75
Entretanto, se como diz Bourdieu (et al., 2003) aqueles que não se sentem feitos
para a escola também acabam se convencendo de que não são feito para as posições às
quais a escola dá (ou não) acesso, isto é, as profissões não manuais, e especialmente as
posições dirigentes dentro destas profissões. É certo dizermos que se os professores
concebem as relações de gêneros de maneira desigual, fazem não só que as mulheres
não se sintam feitas para a escola, mas que também consequentemente se assumam
como não merecedoras das posições, prestígios e privilégios ligados aos espaços tidos
como dos homens pelos professores. Nesse sentido, percebermos como viu Bourdieu
que não é suficiente ter acesso ao ensino primário ou secundário para ter sucesso nele, e
que não era suficiente ter sucesso nele para ter acesso às posições sociais tidas e
reservadas aos homens.
Com as ideias acima citadas, notamos uma vez mais, que há uma necessidade de
colocar a critica a ideia de que a massificação do ensino para homens e mulheres é por
si só o exclusivo impulsionador da igualdade de oportunidade e de conhecimento entre
ambos. Pois, ainda que tenham acesso a mesma escola, podem-se notar outros
mecanismos de distinção e desigualdades incorporados aos próprios processos
educacionais. É dai que ressalva-se a ideia de olhar também para os materiais didáticos
usados pelos profissionais de educação no processo de ensino e aprendizagem, pois, as
representações de gênero contidas neles são apresentadas, discutidas e tidas no ambiente
escolar como guia dos alunos/as e professores e tem um papel fundamental na
construção e legitimação da identidade social, sexual e de gênero dos alunos/as.
homem e mulher se descriminam em função do gênero, reconhecem por outro lado, que
os rapazes são os que devem investir no seu futuro escolar, uma vez que disso depende
o seu futuro, enquanto o da mulher depende do homem. Esta realidade patente na
educação formal, constatada pela pesquisa de Osório (2006), exprimiu explicitamente a
permanência de uma relação entre professor e alunos/as, que acentua papéis sociais
classificatórios segundo os estereótipos de gênero. Com isso, podemos dizer que a
maneira como os livros didáticos apresentam os papéis sociais de gênero, pode embora
não seja de maneira mecânica, influenciar na construção de identidades de gênero
estereotipadas por parte dos alunos, interferindo em suas aspirações profissionais e
académicas. Pelo que, nos interessa aqui não olhar como tantos outros trabalhos para os
professores, os valores normas e as regras da socialização escolar, mas em particular
para as ferramentas didáticas por estes usadas no processo de ensino e aprendizado.
33
Refere-se, a introdução e uso de línguas maternas no processo de ensino e aprendizagem.
78
Por sua vez, com sua obra intitulada Relações de Gênero em Moçambique:
Educação, Trabalho e Saúde Loforte (et al.,1998) constatou que embora a escola se
tenha aberto para todos e, as mulheres tenham aderido massivamente à educação formal,
tanto como os homens, a sua saída a esfera pública por meio da ida a escola, não a
tornou igual, nem lhe conferiu mesmas oportunidades de conhecimentos, status e
prestígios com os homens. Pois, a escola continua, embora aberta para todos, a
representar uma relação de gênero entre homem e mulher assente nas relações de poder,
vinculadas aos preceitos do patriarcado, onde a mulher é vista como subalterna ao
homem devido a sua condição de gênero, ligado ao estereotipo de sua fragilidade
“natural” e incapacidades de desempenhar as mesmas atividades que os homens, que
requerem inteligência e força, caraterísticas tidas como masculinas.
79
Para Silva (2006) e Loforte (1998) fica claro que não é o seu gênero (mulher)
que a torna subalterna em relação ao homem, nem seu baixo nível de escolaridade, mas
o poder masculino sobre a mulher, que é social e culturalmente construído, desde que
no seio da família e da escola, por meio da socialização escolar, os rapazes são
preparados para assumirem papéis de comando na comunidade e na sala de aulas e nas
atividades escolares, e as mulheres sempre adjuntas. Assim, a forma como a família
organiza a divisão de trabalhos ritos e cerimonias tradicionais que se desenvolvem ao
longo do ciclo de vida fundamentam a subalternidade da mulher. Afirma ainda, Loforte
(apud ARTHUR, 2007) que a investigação chega à conclusão de que tanto ao nível do
conhecimento transmitido e exigido como dos comportamentos construídos, escola
reproduz e legitima as desigualdades de gênero, as encobrindo, como naturais (uma vez
que não as questiona) e necessárias para manutenção da ordem social assente em bases
patriarcais da dominação masculina.
Aqui podemos notar que os autores anteriormente citados, embora, tenham visto
que a escola ao complementar a socialização dos alunos, com os mesmos pressupostos
dados na esfera privada na socialização primária (preceitos assentes no patriarcado)
contribua para a reprodução e legitimação das desigualdades entre homem e mulher e o
não questionamento das mesmas, parecem estes autores não ter-se preocupado, em
mostrar o papel que o material didático no caso específico os livros didáticos do ensino
primário em Moçambique, tem ou teria na reprodução, legitimação ou questionamento
destas desigualdades de gênero. Uma vez que o profissional de educação tem como seu
guia no processo de ensino e aprendizagem o livro didático.
Entretanto, aqui podemos advogar que sendo o livro didático uma ferramenta
fundamentalmente importante no processo de ensino e aprendizagem, e muitas das
vezes o único livro que os estudantes e professores tem acesso, e que assume o status de
autoridade e o conteúdo por ele transmitido podendo ser adoptado por professores/as e
alunos/as como a expressão da verdade. Acreditamos que ver somente os profissionais
de educação em particular os professores/as como únicos impulsionadores das
desigualdades de gênero entre os alunos/as, pode ocultar o papel das políticas, currículo
e em particular dos livros didáticos no processo de ensino e aprendizagem, uma vez que
estas expectativas desiguais e diferenciais trazidas pelos professores/as em função do
sexo dos alunos na socialização escolar podem ser o espelho, da maneira como os livros
82
por eles usados, representam as questões de gênero, pois os professores devem espelhar-
se na sua ferramenta de trabalho “o material didático”, neste caso específico nos livros
didáticos.
Dentre os vários instrumentos que o sistema de ensino usa para inculcar nas
crianças a consciência de pertencerem a uma comunidade nacional elegemos, para fins
de pesquisa, o livro didático. O livro didático goza de um papel central na cultura
escolar. Podendo, de acordo com Alain Choppin (2004), desempenhar várias funções,
entre elas, a de vetor de práticas ideológicas. Efetivamente, o autor identifica no livro
didático algumas de suas funções típicas, a saber, a referencial, a instrumental, a
documental e finalmente a função cultural (ou político-ideológica). Passamos a explicar
casa uma delas.
83
Segundo Batista (et al., 2002) após no século XIX e inicio do XX a escola ser
institucionalizada como o principal espaço social de educação, os livros didáticos
passaram a ser os textos legais aos quais coube a tarefa de coordenar a instrução formal.
Assim, segundo este autor, nesta fase, os livros se faziam referência no processo de
ensino e aprendizagem, dando instruções aos professores e profissionais de educação
sobre como e o que leccionar, e estes aos alunos, na construção da identidade dos
mesmos dentro e fora do recinto escolar. Sendo então, vistos como base para formação
do aluno para a vida social, há necessidade dessa ferramenta didática (livros escolares)
85
mudar do seu conteúdo em função das transformações sociais de cada época, de modo
que acompanhe a dinâmica constituidora da vida social, econômica e, sobretudo política
na qual se encontram inseridos os alunos e professores. O que no nosso ver ajudaria a
incorporar as transformações de gênero que vem ocorrendo na sociedade moçambicana.
Para Batista, mas do que uma ferramenta de formação e instrução do aluno, a ler
e a escrever, os livros escolares vão assumindo em cada época, diferentes formas e
funções escolares, sociais, culturais e políticas como de ensinar, e principalmente vão
servindo de ferramenta central na transmissão de valores cívicos e morais aos alunos, o
que lhes equipa como uma ferramenta escolar preponderante na formação e socialização
da personalidade do aluno e do futuro cidadão, membro da sociedade.
Por sua vez, Capelato (2009), em seu estudo “Ensino primário franquista”: os
livros escolares como instrumento de doutrinação infantil teve como objetivo central de
seu trabalho, analisar o conteúdo dos livros produzidos durante o franquismo e
destinados ao ensino primário, mostrando como eles foram instrumentos importantes de
doutrinação infantil, marcada pela intolerância e totalitarismo.
86
Mostrou-nos Capelato (2009), por meio dos resultados de seu trabalho que
durante o regime franquista (na Espanha) o controle sobre a educação estava a cargo de
nacionalistas católicos, o que fazia com que fossem produzidos inúmeros livros
escolares infantis orientados por forte sentido patriota e religioso. Os autores tinham
como objetivo fazer o livro moldar as consciências mirins com base nos pressupostos
básicos da mentalidade que dava sustentação ao regime: autoridade, hierarquia, ordem,
obediência, temor e devoção a Deus e ao Chefe Francisco Franco. Para isso, mostra a
autora por meio de seu estudo, que os conteúdos e as imagens presentes nos livros
didáticos desta época contribuíram para construir uma identidade nacional excludente, a
qual estimulava o heroísmo, o martírio, o sacrifício infantil e o ódio aos inimigos da
religião e da “Madre España”. Se em qualquer tipo de governo a escolha e a aprovação
do material didático é uma questão política, como afirma a autora, não resta dúvida de
que a interferência do poder no campo educacional é muito mais intensa do que
possamos mensurar. Então, sendo o livro o lugar de memória e como formador de
identidades, evidenciando saberes já consolidados, aceitos socialmente como as
“versões autorizadas” da história da nação e reconhecidos como representativos de uma
origem comum, estes tomam um caráter não só político mais sociocultural de
transmissão de valores de uma ordem social e costumes que se desejam manter e
defender.
que mais do que ensinar a ler e a escrever a educação escolar, por meio do material
didático (livros didáticos) pode reproduzir e legitimar um tipo de sociedade e política
nela vigente ou desejada, mas com clareza, pois a educação, não é algo isolado, se não
reflexo da sociedade, sua cultura e ideologia.
Por suas páginas, os livros analisados por Capelato (2009) desfilam as figuras de
heróis e santos34 que servem de exemplo para as crianças: a elas deveriam ser ensinadas
as características da raça que deveriam admirar a fé cristã. Os livros além de alimentar
devoção religiosa, sentimentos patrióticos e valores morais, as mensagens contidas
neles estimulavam a veneração ao chefe identificado como salvador da pátria, o amor à
família e o respeito à tradição. Assim a criança patriota e temente a Deus era exaltada
no livro e a que era contrária a esse princípio era tida como não patriota e ameaça para o
bem-estar da nação. Assim, os livros mostravam as recompensas e castigos aos que
aceitassem a doutrina por meio dos livros e os que rejeitavam respectivamente. E essa
aceitação ou rejeição era avaliada nos exames e avaliações escolares.
Como se pode notar, os desenhos, imagens, gravuras e contidos nos textos nos
livros escolares, em particular usados durante o período franquista na Espanha, além do
conteúdo patriótico e religioso, tem forte apelo emocional; e se tratando de um público
infantil, a possibilidade de sucesso em relação ao estímulo da pulsão combativa
direcionada para a missão redentora da sociedade é maior porque esse estímulo é
direcionado a uma personalidade ainda não formada completamente.
34
Membros do governo franquista e padres da igreja que colaboravam com o regime franquista.
89
Por outro lado, com o objetivo de identificar o lugar social ocupado pela cartilha
de primeira leitura nos usos e costumes da história da moderna escolarização primária,
Boto (2004), por meio de seu estudo intitulado “Aprender a ler entre cartilhas:
civilidade, civilização e civismo pelas lentes do livro didático¨, averiguou o
entrecruzamento entre o livro didático e as práticas da escola primária, mediante a
clivagem analítica do campo da carência de métodos e técnicas adequadas ao ensino e
dos manuais de instrução.
Boto (2004) considera que a instrução primária além de ser vista como uma
moeda de uma face, frequência nas escolas, extensão da instrução escolar massificação
do ensino é mister olhá-la, por outra face que é o aproveitamento dos alunos, ou seja, a
intenção da instrução. Por isso, para a autora se a ferramenta didática traz em si uma
fragilidade na sua maneira de instruir, não se tem que esperar algo do professor que por
ele é guiado e orientado no processo de formação e capacitação dos alunos no processo
de ensino e aprendizagens. Para Boto, os livros escolares transcrevem um tipo ideal de
costumes, valores, deveres que devem ser seguidos pelos alunos, por isso, há
necessidade deles prescreverem também sugestões que impulsionassem a unidade da
escola, tendo em vista dois objetivos matriciais: a eficácia do intuito de ensino das
primeiras letras, o ler, o escrever e o contar, mas, além disso, a observação de valores
morais que os promovam os indivíduos enquanto cidadãos livres e iguais.
mais tendência de se formar e reproduzir tal ordem sem questionamento nas práticas
corriqueiras resultantes das mesmas, tomando-as, assim, como naturais, pois a educação
escolar se faz como lente orientadora da vida escolar e profissional dos indivíduos e o
livro didático seu “manual de guia”.
Para Caldas Aulete (apud BOTO, 2004), o livro didático expressava, antes de
tudo, uma possibilidade de contribuir para formar e orientar quotidianamente o aluno
dentro e fora da escola. Embora, apele para a necessidade de incluir o moralismo nos
livros didáticos, de modo a não formar somente leitores, mas cidadãos, a autora nos
mostra o papel forte que o próprio livro tem na transmissão de valores aos indivíduos
durante o processo de ensino e aprendizagem. Tendo por isso, necessidade de ser neutro
e promover liberdades, diversidades culturais, e possibilidades de ação que não se
limitem a padrões comportamentais excludentes e desiguais que assaltam protótipos de
uma determinada classe em detrimentos das demais. Mas promovam o dialogo entre as
diferenças.
Por outro lado, em seu trabalho intitulado: ¨Das mãos do autor aos olhos do
leitor. Um estudo sobre livros escolares: A Série de Leitura Graduada¨, Cunha (2011)
buscou estudar o objeto mais importante da cultura escolar, os manuais escolares e
mostrar de que forma se firmam como elemento material para uso de professores e
alunos e como representação de todo um modo de conceber e praticar o ensino. A autora
constatou que os livros escolares funcionam como instrumentos de conversão desde a
Idade Moderna e condicionaram um modo de organização da cultura escolar, seus
saberes e suas práticas, transcendendo assim o seu papel de ensinar e instruir para o de
formação de cidadãos aceitáveis pela ordem social vigente em cada época.
Para Cunha (2011) a grande repercussão de vendas desses livros pode ser
pensada, para além da popularidade de seus autores, como um desejo de, pela leitura,
mas, de normalizar comportamentos, internalizar regras e preceitos para a formação do
bom cidadão, bem como contribuir para a formação do caráter em um período em que a
vida nas cidades se firmava, onde se definiam regras para o controle e a contenção de
sentimentos e ações, produzindo certa experiência do que é civilizado, polido, educado.
¨Por intermédio das imagens visuais e discursivas, materializadas nas gravuras e nos
comentários que alimentavam o imaginário do futuro leitor, forjavam-se imaginários
sobre o poder ideológico do livro e da leitura¨ (VALDEMARIN, apud, CUNHA 2011,
p. 212).
Portanto, se faz pertinente mostrar por meio da análise do livro didático como
são representados os gêneros em diferentes momentos da vida social (escola, casa,
comunidade, família, etc.). Porque como diz Silva e Carvalho (2005) em consonância
com Chartier (1998), o livro didático não pode construir seus significados a partir de
valores indesejáveis. Não pode, por exemplo, endossar discriminação contra certos
grupos sociais, nem propor a lei do mais forte como estratégia para solucionar
diferenças. Em hipótese alguma um livro didático pode endossar, nem mesmo de
maneira indireta, comportamentos inspirados em tais valores ou aplaudir atitudes que os
reforcem ou incentivem, porque tais comportamentos e valores não fazem (e nem
devem fazer) parte do alicerce ético de uma sociedade democrática. Além de serem
agentes impulsionadores de uma educação assente em preceitos desiguais,
discriminatórios e preconceituosos.
É neste sentido acima citado que Vasconcellos (2000) afirma que a utilização do
livro didático deve passar por uma crítica que envolva escola e alunos, para que possam
ser adotados livros que contemplem questões de gênero, etnia, classe social,
multiculturalismo, culturas locais, dentre outras, empenhadas em desmistificar supostas
verdades absolutas, que coincidentemente procuram legitimar os valores e ideais de
culturas hegemônicas.
Como enfatiza Paniago (2013), o livro didático, muitas vezes, atua como difusor
de preconceitos, através das ideologias que carregam seus discursos. Fazendo-se assim,
relevante analisar como se comportam em matéria de representação de gênero. Neste
sentido, alerta-nos Chartier (2001), Oliveira & Guimarães (1984) que ao pensarmos ou
ler um livro seja ele de literatura, escrituras sagrada ou didático nunca devemos nos
esquecer de que a produção desses textos leva sempre em conta o contexto histórico,
condições políticas, econômicas e sociais do local de onde são pensados, escritos e
publicados. Porque, o texto para chegar à mão do leitor passa por muitas decisões e
operações que lhe dão forma de livro ou sem as quais não pode chegar a ser concebido e
aceite como livro.
Após, a leitura das obras sobre os livros didáticos, sua função e papel
sociocultural que tem na transmissão de valores, normas e padrões de condutas e
reprodução da ordem social, podemos constatar que há uma grande limitação dos
estudos moçambicanos, na análise da reprodução das desigualdades de gênero na
educação escolar. Pois, embora sejam os profissionais de educação a transmitir os
ensinamentos como constatam, limitarmo-nos, a vê-los, como os únicos
impulsionadores das desigualdades no processo de ensino, faz-nos ver o manual
didático como um neutro e simples instrumento de capacitação à leitura e escrita, faz
deixarmos de analisar o material didático na qual se objetiva os currículo e políticas
educacionais.. E nos esquecemos de que, os profissionais da educação não ensinam
segundo os seus critérios, mas tem a obrigação de seguir como modelo e guia na
transmissão de conhecimento o material didático, neste caso particular o livro didático
do ensino primário.
Para a reflexão e analise teórica das representações de gênero patentes nos livros
didáticos do ensino primário em Moçambique, que constituem os nossos dados de
pesquisa, recorremos à obra “A Dominação Masculina” do sociólogo francês Pierre
Bourdieu (2002). Nesta buscamos os pressupostos teóricos centrais sobre os quais, o
autor explicita a maneira como se configura, se reproduz e se naturaliza a dominação
masculina nas relações entre homem e mulher (gênero). Destacamos aqui o papel das
estruturas objetivas (instituições socializadoras) e de suas formas cognitivas, na
fundamentação desta dominação que encontra, segundo Bourdieu (2002) seu maior
fundamento, na eternização do arbitrário cultural masculino (habitus) e na violência
simbólica daí decorrente.
35
Termo cunhado pelo sociólogo americano Lester F. Ward em 1903 está intimamente ligado à noção de
patriarcado, porém não se refere apenas ao privilégio dos homens, mas também da forma como as
experiências masculinas são consideradas como as experiências de todos os seres humanos e tidas como
uma norma universal tanto para homens quanto para mulheres, sem dar o reconhecimento completo e
igualitário à sabedoria e experiência feminina. A tendência quase universal de se reduzir a raça humana
ao termo "o homem" é um exemplo excludente que ilustra um comportamento androcêntrico. O seu
oposto, relacionando-o com a mulher, designa-se por ginocentrismo.
36
O habitus é uma noção mediadora que analisa a maneira como as estruturas sociais são incorporadas
pelos indivíduos na forma de disposições duráveis acerca de modos de agir, pensar e sentir, na forma de
esquemas de percepção e apreciação. Explica como as estruturas sociais se tornam estruturas
mentais/cognitivas, como a ordem social se reproduz objetiva e subjetivamente. É importante destacar
que isso não significa que, o habitus seja algo estático ou eterno; muito ao contrário, ele é socialmente
forjado, está sempre em construção e é resultado de um exaustivo processo de inculcação e de
incorporação, pois exige uma transformação duradoura dos corpos e das mentes dos indivíduos.
99
as mulheres do espaço público não representou uma equalização nas relações de gênero.
O processo de diferenciação entre homens e mulheres se deslocou, atuando muito mais
na apreciação do valor da atividade masculina e feminina. Em poucas palavras, para
Bourdieu (2002) a forma de organização social androcêntrica permanece.
É baseado nesta constatação que ele parte para demonstrar que a mudança
social, que gere igualdade nas relações de gênero, deve partir das instituições que
produzem e reproduzem o imaginário androcêntrico, como a família, escola, Igreja e
Estado. Pois, é por meio dessas instituições, que este imaginário continuamente se
reforça, criando nos corpos e nas mentes de homens e mulheres disposições permanente
para perceber a dominação masculina como algo eterno e naturalmente justificável. É
para esta importante tarefa, ainda não plenamente (ou apenas superficialmente)
realizada, que Bourdieu se dedica na obra A Dominação Masculina.
O comentário acima expõe aquilo que Bourdieu (2002) compreende como parte
do processo de construção dos corpos. O princípio de divisão social que naturaliza as
diferenças corporifica-se no homem a tal ponto de criar nele o próprio desejo pela
dominação, enquanto que na mulher, a qual, por causa deste processo vicioso e
inconsciente, contribui para sua dominação, existe o desejo e o prazer, como de quem
realiza sua vocação, em ser dominada e subordinar-se, até mesmo em nível sexual, à
agressão de ser possuída, violentada, dominada (BUTTELLI, 2007). Não sem críticas
permanece esta postura de Bourdieu, sobretudo pelo trabalho de feministas.
Bourdieu (2002) reconhece que essencial neste trajeto de construção dos corpos
é a maneira como acontece a “somatização das relações sociais de dominação”, ou a
“incorporação da dominação”. A partir das oposições homólogas (alto-baixo, reto-
curvo, fora-dentro, entre outras), formam-se categorias de percepção que projetam sobre
o corpo (biológico) as categorizações dos dominantes, formando-os em corpos sociais
(ainda que se queira considerá-los naturais) que já carregam de antemão as insígnias
distintivas que estabelecem funções, lugares, posturas sociais diferenciadas para
homens e mulheres. Indo um pouco além na sua reflexão, ele menciona que há duas
operações imprescindíveis nesta sociodicéia masculina: “ela legitima uma relação de
dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela uma
própria construção social naturalizada” (BUTTELLI, 2007; BOURDIEU, 2002 p.32).
Nesse sentido para o Bourdieu:
violência simbólica não minimiza a violência física e não quer desvirtuar a importante
discussão sobre violência doméstica. A violência simbólica é o fundamento, aquilo que
justifica a agressão, no sentido de oferecer razões para que homens possam arrogar-se a
prerrogativa de tornarem-se agressores. Violência simbólica não é irreal, não efetiva,
ou como ele expressa, “espiritual”, e, por isso, desvendá-la é importante para
compreender a “objetividade da experiência subjetiva das relações de dominação”
(BOURDIEU, 2002, p.46).
dominação, fundamentada numa ordem simbólica dominante, que Bourdieu (2002) não
cai no alternativismo entre a coerção mecânica (que seria a imposição social sobre o
indivíduo) e a submissão voluntária (escolha individual, livre, deliberada ou calculada).
Seus críticos o acusam, ora de pender para um lado, ora para outro, pelo fato de não
haverem percebido que:
espaços, profissões, atividades e a historia das relações entre os sexos, que se resumo na
conscientização da mulher, sua entrada na esfera pública, escola e trabalho, nos
preocupamos com os mecanismos objetivos por meio dos quais as instituições
socializadoras em particular a escola, criam hierarquias e qualificações que levam as
mulheres a serem excluídas de tais posições. Pois, como afirma Bourdieu (2002), uma
verdadeira mudança na estrutura das relações de gênero não se limita, a transformação
das condições das mulheres, no simples acesso a escola e trabalho, mas na
transformação dos mecanismos e da maneira de operar das instituições encarregadas de
garantir a perpetuação da ordem hegemônica (masculina) de gênero. Porque são
segundo Bourdieu (2002), essas instituições em particular, a família e a escola que cabe
o papel principal na reprodução da dominação e da visão masculina, é na família que se
impõe a experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação legitima
dessa divisão, garantida pelo direito e inscrita na linguagem.
Bourdieu (2002) muito bem nota e nos chama atenção para não confundirmos a
igualação na oportunidade de acesso e índices de representação das mulheres na
educação com o consumar do ideário da igualdade e anulação das desigualdades de
gênero, pois, por vezes a dominação tem sua essência oculta em sua capa de igualação
ao acesso a escola e trabalho, ocultando assim a distribuição entre as carreiras e
posições que acontece após tal ação de aparente igualação entre homem e mulher.
Nesse, sentido, mas do que comtemplar, o elevado aumento do índice de meninas
ingressando no sistema primário, secundário e superior de ensino nacional, deve-se,
observar como os materiais didáticos usados pelas instituições internalizadoras do
arbitrário cultural, em particular a escola incorporam tais iniciativas de igualdade entre
gêneros. Porque, como bem alerta-nos Bourdieu (2002) é através de uma experiência de
uma ordem social “sexualmente” ordenada que são explicitadas pelos professores e
material didático e aditados de princípios de divisão excludentes e desiguais que as
mulheres adquirem suas experiências do mundo, elas incorporam sob forma de
esquemas de percepção e da avaliação os princípios da visão dominante como normal,
assim, se atrelam as posições espaços que lhes são confinados como destino social, pois
formação, quando conseguem se formar.
Portanto, nos chama atenção Bourdieu (2002), que mais que anunciar a
elucidação da consciência e aclamar pela necessidade da promoção da igualdade de
gênero, devemos olhar para como as políticas, os currículo, e estratégias educacionais
(educação escolar-escola) incorporam e colocam em pratica por meio do material
didático esses temas. Pois, para Bourdieu (2002) é a educação primaria que estimula
desde cedo desigualmente meninos e meninas a se engajarem nesses jogos e favorece
mais nos meninos as diferentes formas de libido dominante que pode encontrar
expressões sublimadas nas formas mais “puras” de libido social. São essas injunções
continuadas, silenciosas e quase que invisíveis à compreensão dos meninos e meninas
nessa fase de aprendizagem, que o mundo sexualmente hierarquizado no qual elas são
lançadas lhes dirige à ordem, “a aceitar como evidentes, naturais e inquestionáveis
prescrições e proscrições arbitrarias que, inscritas na ordem das coisas, imprimem-se
insensivelmente na ordem dos corpos”, pois embora aparente a violência simbólica
enraizada na dominação masculina não ocorre na ordem de intenções conscientes
calculadas e previamente selecionadas (BOURDIEU, 2002, p.70).
Talvez isso, seja visível quando pais e professores desestimulam, ou seja, não
estimulam a orientação das meninas para certas carreiras (engenheira, arquiteta,
mecânica, dentre outras), sobre tudo técnicas e cientificas, o que conduz as mulheres ao
confinamento ou serve para justifica-lo, pois as mantem afastadas de todo contato com
todos os aspetos do mundo real para qual elas não foram feitas porque não foram feitos
para elas, a essa subordinação dos profissionais de educação e o material didático nem a
entrada massiva das mulheres na educação escolar poderia resistir para garantir a
igualação entre homem e mulher.
109
ver passaria também por desvendar a maneira como são representadas as relações de
gênero entre homem mulher pelas instituições internalizadoras do arbitrário cultural
androcêntrico, em particular a instituição escolar.
Bourdieu (2002) situa a mulher, ainda hoje, como personagem importante dentro
do mercado de bens simbólicos, sendo elas astutas nas estratégias de reprodução do
capital simbólico e social. Ainda que de maneira diferente daquela retratada na
tradição cabila, na qual as mulheres eram objetos de trocas simbólicas entre homens.
Para o autor, na sociedade atual, as mulheres preservam, no ambiente público
(sobretudo empresarial) e doméstico, a tarefa de serem responsáveis por manter a
empresa, por exemplo, ou seus filhos e o próprio marido (e ela mesma,
evidentemente) esteticamente apresentáveis, de maneira que demonstrem as
insígnias de distinção social da família, ou do meio de trabalho, e adquiram maior
projeção simbólica e social. Por isso, para Bourdieu:
113
“Só uma ação política que leve realmente em conta todos os efeitos de
dominação que se exercem através da cumplicidade entre estruturas
incorporadas (Tanto entre as mulheres quanto entre os homens) e as
estruturas de grandes instituições em que se realizam e se reproduzem
não só a ordem masculina, mas também toda ordem social (a começar
pelo Estado, estruturado em torno da oposição entre sua “mão direita”,
masculina, e sua “mão esquerda”, feminina, e a escola, responsável pela
reprodução efetiva de todos os princípios de visão e de divisão
fundamentais, e organiza também em torno de operações homólogas)
poderá, a longo prazo, sem dúvida, e trabalhando com as contradições
inerentes aos diferentes mecanismos ou instituições referidas, contribuir
para o desaparecimento progressivo da dominação masculina”
(BOURDIEU, 2002, p.138).
Contudo, afirma Bardin (1977) que para além destas maneiras de abordar os
textos cuja tradição é longínqua, a precisão histórica refere alguns casos geralmente
isolados, que, numa certa medida seriam análises de conteúdo prematuras. Por exemplo,
a pesquisa de autenticidade feita na Suécia por volta de 1640 sobre os hinos religiosos.
Com o objetivo de se saber se estes hinos, em número de noventa, podiam ter efeitos
nefastos nos Luteranos, foi efetuada uma análise dos diferentes temas religiosos, dos
seus valores e das suas modalidades de aparição (favorável ou desfavorável), bem como
da sua complexidade estilística. Davam-se, os primeiros indícios da excelência analítica
da analise de conteúdo, no desvendar das latências que se escondem por trás de meros
hinos, letras de musicas, documentos e até hoje em dia nos livros didáticos.
Segunda assinala Bardin (1977), o primeiro nome que de fato ilustra a história
da análise de conteúdo é o de Harold Dwight Lasswell, que fez análises de imprensa e
de propaganda desde 1915 aproximadamente. É nos Estados Unidos, onde os
departamentos de ciências políticas ocuparam um lugar de destaque no desenvolvimento
da análise de conteúdo. Os problemas levantados pela Segunda Guerra Mundial
acentuaram o fenómeno. Durante este período, 25 % dos estudos empíricos que relevam
da técnica de análise de conteúdo pertencem à investigação política. Pesquisa esta muito
pragmática que teve por objetivo específico o conflito que agitava o mundo. Por
exemplo, durante os anos da guerra, o Governo americano exortou os analistas a
desmascararem os jornais e periódicos suspeitos de propaganda subversiva
(principalmente nazi). Foram empregues vários processos de despistagem:
por detrás da mera comunicação e propaganda. Ajudava a ver o não dito “explicitando”
que por detrás das aparências anunciadas existem latências escondidas que só seriam
capazes de ser desvendadas por meio de uma leitura e análise não apriorística, que
caberia a análise de conteúdo (BARDIN, 1977).
Assim, nos anos seguintes a 50, a análise de conteúdo percorreu um caminho por
diversas fontes de dados: as notícias dos jornais, os discursos dos políticos, as cartas
trocadas, os anúncios publicitários, os romances autobiográficos e os relatórios oficiais.
Servia como a explicitação do que era silenciosa nas palavras e quase invisível para
leitores comuns. Mas, no início desse caminho, a objetividade da análise era perseguida
com empenho. Baldiwn (apud BARDIN, 1977), numa tentativa de análise das estruturas
de personalidade pelo estudo sistemático de cartas, propõe uma das primeiras tentativas
de análise de contingência, ou seja, análise de co-ocorrências de associações ou
exclusões de palavras ou temas presentes no material de análise. Aos poucos, a análise
de conteúdo foi interessando pesquisadores da linguística, da etnologia, da história, da
psiquiatria, da psicanálise, que vieram para somar com suas pesquisas aos trabalhos de
colegas nas áreas da psicologia, das ciências políticas e do jornalismo.
Entretanto, com essa difusão da análise de conteúdo por outras áreas, surgiram
as discussões sobre as diferenças que existiriam na análise de conteúdo se fosse
enfatizada a abordagem qualitativa ou quantitativa nas pesquisas. Na análise
quantitativa, o que serviria de referencial seria a frequência com que surgem certas
características do conteúdo. Enquanto, na análise qualitativa seria a presença (ou a
ausência) de uma dada característica de conteúdo ou de um conjunto de características
num determinado fragmento de mensagem que é tomado em consideração. Assim, aos
poucos, a exigência da objetividade tornou-se menos rígida e se aceitou a combinação
119
Com bases nas colocações de Bardin (1977) vai ficando claro que a análise de
conteúdo é usada quando se quer ir além dos significados, da leitura simples do real
(Livros didáticos). E aplica-se a tudo que é dito em entrevistas ou depoimentos ou
escrito em jornais, livros, textos ou panfletos, como também a imagens de filmes,
desenhos, pinturas, cartazes, televisão e toda comunicação não verbal: gestos, posturas,
comportamentos e outras expressões culturais que não revelam suas latências na
brevidade da leitura de suas aparências. Em suma, a análise permitira-nos, esclarecer as
causas da mensagem ou as consequências que as representações de gênero patente nos
livros didáticos podem provocar na maneira como os alunos percebem e concebem as
relações de gênero. Em suma, “a análise de conteúdo é uma busca de outras realidades
através das mensagens, vídeos e imagens que se fazem ocultadas às leituras simplistas e
desinteressadas no não dito que está no dito” (BARDIN, 1977, p. 29).
120
Por último aponta Bardin (1977) o percurso do trabalho com dados de pesquisa a
partir da perspectiva da análise de conteúdo, salientando que a análise de conteúdo se
organiza em três momentos que passamos a mencionar e caracteriza-los como serão
usados em nosso trabalho, falamos da: Pré-análise, da exploração do material e por
último o tratamento dos resultados.
5.1 Pré-análise
geral da pesquisa é sua finalidade maior, de acordo com o quadro teórico que embasa o
conhecimento. Nem sempre as hipóteses são estabelecidas na pré-análise, afirma Bardin
(1979); elas podem surgir, assim como as questões norteadoras, no decorrer da
pesquisa. Mas no nosso caso surgiram quando da pré-analise dos livros didáticos, foi
essa primeira leitura dos livros didáticos que nos permitiram traçar a nossa hipótese e
objetivos da pesquisa.
Por último temos o tratamento dos dados. Aqui, salienta-se que, para que as
inferências tenham fundamento sistemático e científico não se limitando a meras
observações pessoais, durante a interpretação dos dados, é preciso voltar atentamente
aos marcos teóricos pertinentes à investigação, pois eles dão o embasamento e as
123
perspectivas significativas para o estudo, para que a analise não se resuma a mera
descrição. A relação entre os dados obtidos e a fundamentação teórica é que dará
sentido à interpretação. As interpretações a que levam as inferências serão sempre no
sentido de buscar o que se esconde sob a aparente realidade, o que significa
verdadeiramente o discurso enunciado, o que querem dizer, em profundidade, certas
afirmações, aparentemente superficiais. É neste sentido que usaremos os pressupostos
da “a dominação masculina” de Bourdieu para a interpretação teórica dos conteúdos
dos livros didáticos após sua categorização e descrição.
Portanto, para compreender a fala de outrem não basta entender as suas palavras,
temos que compreender o seu pensamento. Mas nem mesmo isso é suficiente, também é
preciso que conheçamos a sua motivação. Nenhuma análise psicológica de um
enunciado estará completa antes de se ter atingido esse plano, precisamos ouvir e ver o
que não foi mostrado e anunciado (Bardin, 1977).
disciplina de Educação Moral e Cívica (6ª e 7ª classe) e por último dois da disciplina de
Ofícios (6ª e 7ª classe). A escolha desses livros em detrimento dos de ciências naturais,
sociais, dentre outros, deve-se ao fato de nestes livros escolhidos ocorrerem com mais
frequência às imagens representando a questão de gênero em diferentes momentos, com
relação aos outros livros não selecionados para a análise.
5.5.1 Perfil dos autores, editores e leitores dos livros didáticos em análise.
Fazendo uma análise dos livros de leitura usados nas escolas francesas entre
1880-1980, Chartier e Hébrard (apud MINDOSO, 2012) constroem uma tipologia das
funções que os livros de leitura tiveram nesse período. Eles constataram a existência de
três tipos de livros de leitura: enciclopédicos, moralizantes e estéticos. Os livros de
leitura enciclopédicos caracterizavam-se por serem manuais únicos, onde estavam
compilados textos dos mais diferentes conteúdos (História, Arquitetura, Moral,
Biologia, etc.) num único livro e a sua função era meramente instrutiva. O livro de
leitura moralizante, por seu lado, surge quando os outros conteúdos, sobretudo os das
ciências naturais, passam a se autonomizar e ter manuais específicos; aqui, os livros de
leitura passam a ter uma função mais moralizante (e menos instrutiva) através de
narrativas em forma de contos, lendas ou fábulas cuja intenção era inculcar nos alunos a
moral dominante naquela época. Finalmente, os livros de leitura literários, embora
contenham alguma dose de moral, tem como principal função a estética, assim como a
preservação do patrimônio cultural da nação através de leitura de autores eruditos e
basilares da comunidade nacional.
125
37
Salientar que todos os autores são moçambicanos.
38
Só colocamos o ano de publicação por que o local é comum para todos os livros, Maputo, cidade capital de Moçambique.
39
Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação, órgão subordinado ao MEC: Ministério da educação e desenvolvimento Humano.
40
Editoras estrangeiras com filiais em Moçambique.
41
Instituto Nacional do Livro Didático. Salientar que embora exista um instituto do livro didático não temos um política do livro em Moçambique.
127
Nós e os Outros, 6ª João Fenhane & Professores universitários em Texto 2011 Incorporam unidades
Classe, Educação moral Jó Capece instituição de ensino superior Editores que inculcam valores,
e Cívica. pública, afetos ao INDE. normas, padrões
2011
comportamentais que
Texto
Ame o Próximo, 7ª Professor universitário em uma INDE-MEC inserem os educandos
Editores dentro de seus papeis,
Classe, Educação Moral João B. Fenhane instituição de ensino superior
e Cívica. pública. funções e posições na
sociedade.
O Saber Das Mãos, 6ª André Zandamela Professor do ensino médio Incorporam unidades
42
Única editora Nacional.
128
43
Excetuando os de matemática e ofícios, cuja unidades não incorporam essa mesma configuração.
130
Segundo Chartier (1998) ao se analisar o livro seja ele de que gênero for, deve-
se ter em conta que até o texto chegar a formato de livro, varias são as decisões e
operações técnicas, políticas, culturais, que precisam ser observadas, para que não se
caia na ilusão da neutralidade do livro e da liberdade absoluta do autor na sua produção.
Para este autor, não podemos pensar no texto já na forma do livro sem antes pensar nos
órgãos de censura pelo qual o texto passa antes e às vezes depois de chegar à editora
que o dará forma de livro. Pois, o texto antes de chegar a livro precisa estar de acordo
com aquilo que é tido como publicável e desejável dentro da ordem vigente se não do
arbitrário cultural vigente que reproduz, legitima e mantem a ordem dominante
(BOURDIEU, 2002).
Entretanto, retomando a autoria dos livros didáticos, podemos dizer que os livros
são produzidos somente e exclusivamente por agentes do estado, professores vinculados
ao MEC, INDE e INLD, cabendo às editoras somente sua impressão, revisão técnica,
publicação e distribuição nacional.
44
Instituto Nacional do Livro Didático.
132
estão sujeitos. Pelo contrário, Bittencurt (2002) na sua pesquisa sobre os autores dos
livros escolares brasileiros, defende que:
Como nos alerta (BITTENCURT, 200445) uma rápida leitura da ficha técnica,
por exemplo, apresentada na contracapa das obras didáticas produzidas a partir da
década de 1990 no Brasil, e diríamos também, o mesmo dos textos produzidos em
Moçambique a partir de 2003, comprova que o papel do autor de uma obra didática tem
45
Em seu texto: “Autores e editores de compêndios e livros de leitura (1810-1910)”
133
Posto isto, relevante salientar aqui que, existem textos nos livros didáticos de
autoria de poetas e escritores nacionais, mas estes são readaptados conforme os
interesses dos autores que se encontram subordinado às exigências do INLD-MEC para
aceitação e publicação dos seus textos para serem transformados em livros. Hoje em dia
é difícil ter o autor como figura central do livro, pois a autoria do livro didático tem
passado por transformações ligadas às especificidades desse produto cultural,
notadamente o retorno financeiro considerável que ele traz, sobretudo no caso de países
como Moçambique, com um expressivo público escolar e um mercado assegurado pelo
Estado na compra e distribuição de livros para as escolas públicas (gratuitos são só os
livros do ensino primário do 1° grau, 1ª a 5ª Classe, os livros das classes subsequentes
encontram-se a venda).
Destacamos ainda na lista das editoras dos livros didáticos em analise, a Plural
Editores que está ligada ao Grupo Porto Editora, líder do mercado português nas áreas
de livros escolares, de dicionários e produtos multimídia de carácter educativo e
cultural. A Plural Editores assume uma posição de destaque no contexto editorial
moçambicano, ao garantir a produção de grande parte dos conteúdos dos novos manuais
escolares do ensino básico moçambicano, onde se destaca neste trabalho, os livros de
educação moral e cívica da 6ª e 7ª classe, de português 4ª Classe. Paralelamente é
responsável pela edição de diversos títulos que vão desde a área jurídica até aos
dicionários, passando, entre outros, pelos mapas e atlas de Moçambique.
Por último, temos a Alcance Editores, que é uma empresa nacional, de capital
unicamente moçambicano, que é responsável pela edição da maioria dos livros didáticos
do ensino secundário que não são o nosso objeto de análise, fizemos referencia a esta
editora pelo fato de terem editado o livro de português da 5ª classe que é também parte
integrante de nossa amostra. Aqui podemos notar que as editoras responsáveis pela
edição, revisão técnica, publicação e distribuição dos livros didáticos são quase 100%
estrangeiras.
Quanto ao perfil dos estudantes, dos leitores dos livros didáticos em analise,
trata-se de alunos com idades compreendidas entre 6 a 10 anos para o nível primário do
primeiro grau (que vai da primeira a quinta classes). Sendo abrangidos pelos livros de
quinta e sexta classes, alunos de idade compreendida entre 11 a 12 anos (sexta e sétima
135
Para Boto (2005) em consonância com Cunha (2001), como as crianças não
estão preparadas para o exercício da crítica, as ideias e imagens que lhes são impostas
tendem a ser assimiladas como verdades incontestadas, única e exclusiva versão oficial
da verdade. Assim, as análises dos livros didáticos do ensino primário produzidos em
Moçambique podem orientar para uma concepção de identidade social e sexual baseada
na exclusão (ou inverso), dos que não comungavam com os valores predominantes no
período o que contribuiria para a reprodução das desigualdades de gênero. Pois, para
Boto, se os alunos submergem num mundo representado nos livros escolares que
preconiza a violência ou desigualdades sociais, raciais, ou de gênero, há mais tendência
de se formar e reproduzir tal ordem sem questionamento nas práticas corriqueiras
resultantes das mesmas, tomando-as, assim como naturais. Pois, a educação escolar se
faz como lente orientadora da vida escolar e profissional das crianças e o livro didático
seu “manual de guia”.
Sendo que a construção social dos corpos gera a divisão arbitraria entre homem
e mulher, por meio da sexualização dos espaços e atividades, nos é fundamental analisar
como é representada a divisão social do trabalho entre homem e mulher nos livros
didáticos de modo a vermos se essa divisão incorpora, a divisão arbitraria da dominação
138
1 2
3 4
“Havia uma rapariga que estava em idade de arranjar marido e a mãe foi-lhe
ensinando todos os trabalhos de uma casa, a mãe não se esquecia também dos
costumes que ela deveria seguir, tanto em casa dos sogros, como com o marido,
sendo que lhe dizia que cabia a ela respeitar o marido. Ao acordar, deveria lavar
os pratos, varrer o quintal e preparar o banho e o pequeno almoço para o seu
marido. Dizia à mãe que ela deveria se portar devidamente como uma mulher se
quisesse durar no lar como ela ate hoje dura” (Rodrigues & Chilundo, 2012b,
p.28).
140
5 6
7 8
inerentes ao cuidado com a casa, como lavar a roupa, tirar agua, varrer, limpar a casa,
lavar a louça, passar a roupa; tais atividades são naturalizadas e representadas nos livros
didáticos analisados como femininas, aonde cabe à mulher, a típica dona de casa e
zeladora do lar, desempenhar tais tarefas tidas tradicionalmente como femininas, o que
legitima o estereótipo da mulher como a única que deve cuidar das atividades
domésticas acima mencionadas, enquanto o homem provedor busca o sustento do lar.
quem lava, engoma a roupa, tira agua, lava a louça, limpa os móveis, varre a casa, o
quintal, etc., como é ilustrada pelo trecho acima citado, estas atividades representadas
como exclusivas da mulher são na educação dos filhos reproduzidas, e legitimadas
como naturais e como obrigação da mulher. Pois, como podemos ver a mãe ao ver que
sua filha vai se casar como mostra o trecho citado (Rodrigues & Chilundo), chama-a
para ensina-la, prepara-la para a vida de casada, e uma das principais atividades
recomendadas é o cuidado com o lar, e as atividades domésticas que eram o garante de
uma relação douradora e feliz. Aqui, a submissão da mulher ao marido por meio do
trabalho doméstico é representada como algo coroado e recompensado pelo casamento
feliz.
1 2
3 4
“Aquela linda velhinha leva ao colo uma criancinha de tez, tão pequena. A
criancinha não se sente sozinha, aquela velhinha é minha avozinha. Aquela
linda velhinha que embala a criancinha com o seu manto de linho, com todo o
carinho, aquela linda velhinha foi uma santa, criou a criancinha com tal amor
que espanta” (RODRIGUES & CHILUNDO, 2012, p.24).
145
Entretanto, o que mais chama a nossa atenção nas representações de gênero dos
livros didáticos analisados, no que concerne a esta categoria é que em nenhum
momento, podemos verificar uma figura masculina (homem), desempenhando alguma
atividade ou trabalho no cuidado com as crianças. O que nos leva a constatar que os
livros didáticos veem e representam o cuidado com as crianças, como uma tarefa
exclusivamente feminina, isentando assim a possibilidade do homem participar na
educação e no cuidado das crianças, naturalizando e legitimando, de maneira
estereotipada o papel de educar, ensinar e cuidar das crianças como exclusivo da mulher
(como feminino).
Assim, mostra-se, a educação das crianças como uma tarefa, ou seja, dever
natural e imprescindível da mulher, uma vez que em nenhum dos livros analisados,
chegamos a verificar o homem a desempenhar semelhante tarefa ou exercer o papel de
educador, daquele que cuida, brinca com as crianças, prepara os filhos para escola ou
leva-os à vacinação. Notamos que as representações de gênero analisadas nos livros
didáticos estão vinculadas a ideia estereotipada de que o cuidado da família, a tarefa de
ser amorosa, cuidar das crianças, educar, ensinar são deveres, isto é, uma obrigação
exclusiva da mulher, devido a sua natureza delicada e frágil, cabendo a ela tarefas que
exigem menos força e coragem (como caçar), mas muito amor e carinho para educar e
cuidar das crianças enquanto o homem busca o sustento da família.
3
1 2
2
4 6
10
Tanto nos enunciados analisados nos livros como em particular nos acima
citados foi possível constatar, através da representação de gênero que, no que diz
respeito ao cuidado com alimentação, é somente e exclusivamente a mulher a quem
cabe cuidar da alimentação, como podemos ver nas figuras anteriormente citadas. Pois,
esta é a única representada como executora de tais atividades nos livros didáticos, o que
naturaliza tais atividades excludentemente como femininas e como uma obrigação da
mulher e não como uma opção ou possibilidade, atividade que também pode ser
desempenhado pelo homem. Assim, os livros analisados não incorporaram as
transformações nas relações sociais ocorridas nas últimas décadas, visto nas categorias
aqui apresentadas poderiam servir para mostrar tais transformações, pois, contemplam
os diversos momentos da vida dos homens e mulheres nas relações sociais na esfera
pública como na privada.
Como podemos ver (nas figuras e passagem textual) para consubstanciar o que
dissemos, a mulher é quem nas representações de gênero no que se refere ao cuidado
com alimentação que, prepara das refeições, desde a compra dos alimentos (embora o
dinheiro se represente como vindo do trabalho do homem que é o provedor), a higiene a
ter com eles (lavar), o cozer ou cozinhar, e a consequente limpeza da louça usada no ato
de preparação e depois das refeições. Aqui, o cuidado com alimentação é representado
pelos livros didáticos como papel exclusivo e obrigatório da mulher. Fomenta-se, aqui
150
uma vez mais a figura da mulher doméstica, dona de casa, cozinheira, e responsável
pelo lar, tarefa ou atividade doméstica não tida como masculina. Mas, o que se afigura
notável aqui é o fato de a mulher ser a única a desempenhar tais atividades, em
momento algum dos livros analisados o homem desempenha tais atividades ou ser
responsável pelo cuidado com a alimentação. Portanto, a mulher é inclinada de maneira
socialmente obrigatória as atividades domésticas, ao ser representada nas relações de
gênero nos livros como a única capaz ou merecedora de desempenhar as atividades
viradas ao lar, a inferiorizando na hierarquização dos papéis sociais.
Assim, fica claro que fonte das desigualdades nos papéis de gênero
representados nos livros didáticos no que tangi ao cuidado com a casa, crianças e
151
alimentação, não estão apenas nas diferenças entre as atividades desempenhadas por
homens e por mulheres, mas no estatuto que as representações de gênero nos livros
didáticos analisados, dão a essas diferenças e no tratamento que lhes reservam e por
terem uma representação unidirecional (feminizacão das tarefas domésticas).
Essa ordem simbólica construída e representada nos livros didáticos por meio da
divisão arbitraria entre homem e mulher nas relações de gênero, fundamentada na
dominação masculina, faz com que as alunas e alunos expostos a ela ao longo de sua
formação adiram a doxa da dominação masculina, passem a perceber e a conceber as
relações de gênero e a si mesmo com conformidade com o que a ordem da dominação
masculina imputa por meu de suas imagens e passagens textuais em sua unidades
temáticas. Entretanto, vincular a mulher a atividades (lavar roupa, cozinhar, cuidar das
crianças,) específicas, e a restringir somente a essas atividades de menos prestigio e
categorizadas como fáceis e colocando o homem como isento de tais atividades por
serem exclusivamente tidas como femininas, naturaliza as diferenças, e corporifica-se
no homem a tal ponto de criar nele o próprio desejo pela dominação, lugares e
atividades de prestigio (não femininas), enquanto que na mulher, a qual, por causa deste
processo vicioso e inconsciente representado nos livros didáticos, contribui para sua
dominação, e para que exista nela o desejo e o prazer, como de quem realiza sua
vocação, em ser dominada e subordinar-se, até mesmo em nível sexual, à agressão de
ser possuída, violentada, dominada.
somente leitores e escritores, mas para moldar e formar o caráter da criança como futuro
cidadão. Significando, que são livros, com os quais os alunos aprendem e incorporam os
papéis, espaços e tarefas a desempenhar na esfera privada como na pública em cada
sociedade. Assim, neste momento o livro didático torna-se, um aparelho ideológico no
processo de socialização escolar, podendo reproduzir e legitimar de forma sistemática,
tais atividades representadas exclusivamente como femininas, incorporando-as, assim
como modelos a serem seguidos por meninos e meninas que são por esses livros
instruídos. Em suma, os livros analisados produzem de maneira sistemática, diferencial
e desigual, quais espaços e atividades, maneiras de ser, estar, pensar e sentir são
adequadas para os homens e para mulheres em diferentes momentos inscritos nas
unidades temáticas em analise (BATISTA et al., 2002; CAPELATO, 2009).
Sendo assim, a escola expressa nos livros didáticos por meio das representações
de gênero, modelos de papeis a serem desempenhados na esfera privada e a quem cabe
executa-los, o que pode faz do livro didático como notou Lajolo (1996) e Chartier
(2001) um instrumento de reprodução e manutenção de preconceitos e fortalecimento
dos valores culturais do arbitrário da dominação masculina, através do “silenciamento”
sobre determinadas possibilidades de os homens também desempenharem tais tarefas
feminizadas e se incorporar nos protótipo dos livros representações que ressalvem
outras realidades, diversidades s e possibilidades que não se restrinjam na submissão
feminina a esfera privada.
dentro de casa isenta os homens na educação dos filhos, e tornam tal papel social e
culturalmente obrigatório para a mulher e somente como adequado para serem
desempenhados por elas. Fica claro aqui, que a “força socializadora do contexto” na
construção dos papéis de raparigas e rapazes, tanto no meio escolar restrito (como
sistema de ensino realizado principalmente na relação Professor-aluno), como na
família, permite uma construção indenitária em conformidade com a ordem social e
cultural dominante, assente nos preceitos do patriarcado, no qual o homem é o detentor
do poder e a mulher se subordina as suas ordens e ao espaço doméstico do lar enquanto
este por sua vez busca o sustento de sua casa. Como enfatiza Faria (1994), podemos
dizer que os livros didáticos em analise, atuam como difusor de preconceitos, através
das ideologias que carregam seus discursos, uma vez que representa uma única versão
da realidade, na qual há tarefas feminizadas, sendo obrigatórias que sejam
desempenhadas exclusivamente pelas mulheres.
1
2
3 4
3 4
“O meu tio é pastor. Ele acorda cedo para levar o gado a pastar e a beber agua no rio.
O senhor Pelembe e o Senhor Bento são pescadores. Eles passam muito tempo no mar
a pescar o peixe para vender no mercado. O meu pai é sapateiro o meu tio mecânico, a
mama da comida aos patos” (Bona, 2008, p.13; Dhorsan & Monteiro, 2007, p.98).
158
5 7
7
8
8
9 10
enfermeira e nas poucas exceções também a de médica, o que ainda a vincula ao seu
estereotipado papel natural de cuidadora, amorosa que possui delicadeza e afeto
suficiente para amar cuidar do lar, dos filhos e do seu marido.
que tangi os seus papéis de gênero são preceitos do patriarcado apresentados como
formais e legítimos, no processo de ensino e aprendizagem.
Contudo, podemos constatar uma vez mais, que os livros didáticos em suas
representações de gênero, não estão incorporando as transformações ocorrendo nas
relações de gênero na esfera privada como pública em Moçambique, nas quais as
mulheres têm ocupado cargos de chefia na esfera pública (política, economia, etc.).
Aqui os livros didáticos, em momento algum mostram através de seus enunciados e
ilustrações, alguns momentos de “inversão de papéis”, como representar a mulher como
provedora e o pai educador, a fim de mostrar que esta é uma situação possível e
atualmente ocorrente em Moçambique, com a efervescência de diferentes ONG´s que
promovem a igualdade de gênero.
Neste ponto como notou Chartier (2001) e Silva & Carvalho (2005), diríamos
que é pela escola em particular por meio do livro didáticos em suas unidades temáticas
que o arbitrário cultural dominante se internaliza nos educandos e se objetiva em suas
162
práticas ao adotarem tais modelos em seu cotidiano como versão única e oficial de
padrões comportamentais desejáveis e aceitáveis pela sociedade.
6.4 A construção social do corpo do menino e menina por meio das atividades
domésticas, brincadeiras e brinquedos.
evidenciar por meio das imagens que se seguem como é representado nos livros
didáticos em analise a divisão da tarefas, atividades domésticas, brincadeiras e
brinquedos usados pelos menino e menina.
2
1
3 4
“Quando voltamos a nossa casa, já estamos muito cansadas, mas eu ajudo a minha mãe
a fazer o jantar e a cuidar do meu irmão, diz a Lídia” (RODRIGUES & CHILUNDO,
2012ª, p. 19). “A Carmina tem apenas 9 anos, mas ela diz que já sabe o que quer ser
quando for grande. Ela diz que quer ser enfermeira como a sua mãe porque gosta muito
de ver como a sua mãe trata os doentes e como eles se sentem felizes” (RODRIGUES &
CHILUNDO, 2012b, p.157).“Ana- Queres brincar comigo, Luana? Luana, sim quero,
vou buscar as minhas bonecas. Ana até já” (DHORSAN & MONTEIRO, 2007, p.70).
Figura 5,6,7,8,9,10- construção social do corpo do menino e menina por meio das
atividades domésticas, brincadeiras e brinquedos
165
5 6 7
6 7
8
Figura 11,12, 13, 14- construção social do corpo do menino e menina por meio
das atividades domésticas, brincadeiras e brinquedos
11 12
11
14
13
meninos, o que pode influenciar nas escolhas profissionais dos mesmos. Como vimos
quando a Carmita sonha em ser médica como a mãe alegando querer cuidar das pessoas
como a mãe o faz e quando Rabia diz que será uma grande cozinheira como a mãe.
(Rodrigues & Chilundo, 2012b, p.157).
Aqui as meninas ao serem vistas como o ser frágil que nasceu para ser mãe, para
proteger, dar amor, a função da mulher passa a ser nesta visão a de cuidar da família, e
para isso a menina é educada desde pequena quando é incentivada a cuidar das suas
bonecas como se fossem bebés, e fazer comidinha, a brincar de casinha, brincadeiras
estas, que a fazem assumir papéis voltados para o lar, ou seja, para a esfera privada o
que não é sinônimo de desigualdade quando não se torna exclusivamente papel
feminino, mas uma possibilidade, que não é o caso. Por outro lado, os meninos são
incentivados a brincar de carinhos, andar de bicicleta, jogar futebol, enfim brincadeiras
que exigem tomadas de decisão, voltadas para rua, isto é, para esfera pública.
Contudo, sem grande esforço notamos que as meninas são desde cedo ensinadas,
representadas como futuras mães educadoras, amorosas, domésticas, e típicas donas de
casa, enquanto os meninos em momento algum passam ou aprendem tais atividades,
pois estes são vistos como os promissores, futebolistas, ciclistas, motobilistas,
intelectuais, provedores e “pais de família”. O que mostra o papel reprodutor de
desigualdades de gênero que o livro didático ajuda a reproduzir e a legitimar como
natural, padrão comportamental aceitável e desejável pela sociedade.
Outro item analisado de maneira breve nas representações de gênero nos livros
didáticos foi à postura dos meninos e meninas no que tange aos momentos de lazer, e
notou-se, que a figura masculina é representada como mostram as imagens 11, 13 e 14,
como o caçador, corajoso, aventureiro, qualidades intrinsecamente tidas como
masculinas, enquanto as meninas são representadas como as que cuidam de jardins,
admiram flores, caraterística tidas preconceituosamente como resultantes de sua
sensibilidade de mulher.
Aqui os meninos são desde cedo identificados com o cariz aventureiro, corajoso,
provedor que busca o sustento da família por meio da caça, o aventureiro, enquanto as
meninas são representadas como as que amam as flores, cuidar da casa, lavar a roupa, os
pratos e ajudar a mãe nas atividades domésticas. Esta visão dos papéis de gênero
170
O comentário acima expõe aquilo que Bourdieu (2002) compreende como parte
do processo de construção dos corpos. Pois, o princípio de divisão social que naturaliza
as diferenças por meio do livro didático corporifica-se no homem a tal ponto de criar
nele o próprio desejo pela dominação, enquanto que na mulher, a qual, por causa deste
processo vicioso e inconsciente, contribui para sua dominação, existe o desejo e o
prazer, como de quem realiza sua vocação, em ser dominada e subordinar-se, até mesmo
em nível sexual, à agressão de ser possuída, violentada, dominada Bourdieu (2002)
surge da noite para o dia. Não é através de um rito apenas que um menino se torna
homem e menina uma mulher conforme os padrões de determinada sociedade, muito
embora os ritos de instituição tenham um imenso poder de diferenciação e sejam
simbolicamente muito
eficazes. O trabalho de construção da realidade simbólica é um trabalho sútil que desde
cedo vão moldando os meninos e meninas logo no ensino primário por meio das
representações de gênero nos livros didáticos, gerando assim, nos alunos ainda na
primeira infância uma criação simbólica das categorias de percepção social do mundo.
É um trabalho de inculcação longo e duradouro que possibilita a construção de um
habitus adaptado à visão de mundo dominante, isto é, androcêntrica. Assim, ao se
fixarem nos corpos, já que esta construção simbólica efetivamente se somatiza, as
relações entre homens e mulheres só podem ser de conhecimento e reconhecimento
tácito e automático da legitimidade do exercício do poder de um sobre o outro
(BOURDIEU, apud BUTTELI, 2007).
Com o anteriormente citado, podemos concluir essa etapa afirmando que o lugar
subalterno que a mulher vem ocupando em casa (esfera privada) perpassa para a esfera
pública por meio da socialização secundária oferecida pela escola, o que faz com que a
mulher mesmo na esfera pública continue sendo vista como aquela que deve
exclusivamente exercer as atividades de educadora, de dona de casa e tantas outras
estereotipadas. O ilustrado nas imagens citadas mostra-nos, como se realizam as
compatibilidades entre a modernidade escolar e a tradição cultural da subalternidade da
mulher, patente no patriarcado. Assim, que é comum na casa é também na escola, e para
além da impossibilidade de questionamento, há manutenção de uma estrutura de poder
que tem o gênero como determinante da submissão da mulher ao homem nas relações
de gênero.
173
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desta feita, as atividades tidas como fáceis, que requerem pouca força física,
inteligência e menos coragem são representadas quase todas elas exclusivamente como
femininas (de mulheres), e as que exigem bravura, força, notamos que são em sua
generalidade representadas como masculinas (de homens). Talvez, seja por essa razão
que o homem quase não se encontra representado desempenhando atividades
domesticas, como cuidar dos filhos, cuidar da alimentação e dos afazeres domésticos
como lavar roupa, tirar agua, varrer o quintal, limpar os moveis do lar, lavar a louça,
dentre outras atividades do lar, tradicionalmente naturalizadas dentro do arbitrário
cultural da dominação masculina como tarefas femininas, de mulher.
Essa ordem simbólica construída e representada nos livros didáticos por meio da
divisão arbitraria entre homem e mulher nas relações de gênero, fundamentada na
dominação masculina, faz com que as alunas e alunos expostos a ela ao longo de sua
formação adiram a doxa da dominação masculina, passem a perceber e a conceber as
relações de gênero e a si mesmo em conformidade com o que a ordem da dominação
masculina imputa por meu de suas imagens e passagens textuais, em suas unidades
temáticas. Entretanto, vincular a mulher a atividades (lavar roupa, cozinhar, cuidar das
crianças,) específicas, e a restringir somente a essas atividades de menos prestigio e
176
categorizadas como fáceis e colocando o homem como isento de tais atividades por
serem exclusivamente tidas como femininas, naturaliza as diferenças, e corporifica-se
no homem a tal ponto de criar nele o próprio desejo pela dominação, lugares e
atividades de prestigio (não femininas), enquanto que na mulher, a qual, por causa deste
processo vicioso e inconsciente representado nos livros didáticos, contribui para sua
dominação, e para que exista nela o desejo e o prazer, como de quem realiza sua
vocação, em ser dominada e subordinar-se, até mesmo em nível sexual, à agressão de
ser possuída, violentada, dominada.
REFERÊNCIAS
ARTHUR, Maria José et al. Memórias do Ativismo: Pelos Direitos Humanos das
Mulheres. Maputo, WLSA Moçambique, 2007.
BOTO, Carlota. Aprender a Ler entre Cartilhas: Civilidade, Civilização e Civismo pelas
Lentes do Livro Didático. Educação e Pesquisa, V. 30, nº 3, p- 493-511, São Paulo,
2004.
CUNHA, Maria, T. Das Mãos do Autor aos Olhos do Leitor: a Serie de Leitura
Graduada Pedrinho de Lourenço Filho (1950-1970). São Paulo: V. 30, nº2, p-81-99,
2011.
CHOPPIN, Alain. “Historia dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte”.
In: Educação e Pesquisa. São Paulo, v.30, n3 p.549-566. Set/dez. 2004. Disponível
também em: http//www.scielo.com.br.
CHOPPIN, Alain. “Historia dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte”.
In: Educação e Pesquisa. São Paulo, v.30, n3 p.549-566. Set/dez. 2004. Disponível
também em: http//www.scielo.com.br.
LEÃO, Andrea Borges. “A nação e os livros infantis: autoria, edição e leitura”. In:
Tensões Mundiais. Fortaleza: Observatório das Nacionalidades, Jan/Jun, 2007. v.3, n.4,
p.391-425.
MATEUS, Dalila Cabrita, A luta pela independência: formação das elites fundadoras
da FRELIMO, MPLA e PAIGC. Portugal: editorial Inquérito, 1999.
OSÓRIO, C & SILVA C. Buscando sentidos Gênero e sexualidade entre jovens estudantes
do ensino secundário, Moçambique. Maputo: WLSA-Moçambique, 2008.
AMOS, Armindo et al. Como é bom Aprender: língua portuguesa 4ª Classe. Maputo:
Texto editoras, 2004.
BONA, Maria et al. É bom saber ler: Português 2ª Classe. Maputo: Longman Editora,
2008.
ISMAEL, Isabel & BICÁ, Firoza. Tempos e espaços: ciências sociais 6ª Classe.
Maputo: Porto editora e Plural editores, S/D.
MAZIVE, Alberto et al. O Saber das mãos: ofícios 7ª Classe. Maputo: Longman
Editora, 2004.