O Jogo Da Face
O Jogo Da Face
O Jogo Da Face
São Paulo
2017
MARÍLIA BUENO DE ARAÚJO ARIZA
Versão original
São Paulo
2017
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Aprovado em:
Banca Examinadora
Based on the analysis of work contracts, newspaper articles and mainly judicial
records produced at the Ohphans’ Court, this dissertation aims at discussing the
conditions under which underage laborers were recruited in the city of São Paulo over the
Nineteenth Century – especially during its second half, when abolition and its
developments approached. It focuses on the dimensions of such structural changes
experienced by underage workers themselves, as well as by their mothers, mostly single,
poor head-of-family women coming out of slavery. The dissertation intends to investigate
the family arrangements and mothering practices adopted by such women, which were
deeply impacted by the establishment of social norms enshrining the parameters of
bourgeoisie motherhood. Faced with unattainable representations of the ideal maternity,
impoverished women were characterized as unfit tutors to their own children, who thus
were conducted to the care and services of third parties. Furthermore, the dissertation also
focuses on the underage workers, who had historically been engaged in urban service
provision and informal work arrangements in the city. In the face of social turmoil brought
on by pressures on the advancement of emancipation and the aftermath of abolition, such
workers were forced into formal service arrangements, which intended to keep them
under control the of their employers or former masters. Between the worlds of labor
formality and informality,) experiences of exploitation and violence were constant, and
child workers acted upon them the best they could. At the same time as it discusses the
specificities of the experiences lived by underage workers and their mother, however, this
dissertation intends to link their histories to a broader context of elaboration of free labor
protocols forged over the Nineteenth Century which, even in the dawn of abolition,
mirrored forms of exploitation, domination and resistance bequeathed by slavery.
T3. Registros de tutelas de menores de idade despossuídos por década sem soldadas
(São Paulo, 1840-1900) 197
T4. Menores de idade contratados no período analisado (São Paulo, 1820-1910) 201
T5. Divisão por sexo e década, por menores e registros (São Paulo, 1820-1910) 222
T15. Contratos e tutelas com menores com e sem relação com experiências de
escravização (São Paulo, 1820-1910) – Apêndice D 362
T16. Contratos com menores com e sem relação com experiências de escravização
(São Paulo, 1820-1910) – Apêndice D 362
T17. Menores tutelados e contratados por categorias raciais (São Paulo, 1820-1910) –
Apêndice E 363
T21. Incidência de contratos por categoria racial e década (São Paulo, 1820-1910) –
Apêndice F 365
T22. Incidência de tutelas por categoria racial e década (São Paulo, 1820-1910) –
Apêndice F 365
T26. Distribuição de contratos por sexo, idade e categoria racial (São Paulo,
1820 -1910) – Apêndice I 369
T27. Duração de contratos por sexo e origem social (São Paulo, 1820-1910) –
Apêndice J 370
T28. Contratos com remuneração fixa por década (São Paulo, 1820-1910) –
Apêndice L 371
T29. Contratos com remuneração progressiva por década (São Paulo, 1820-1910) –
Apêndice L 372
T30. Faixas salariais por sexo e origem social (São Paulo, 1820-1910) –
Apêndice M 373
Sumário
Introdução 18
Apêndices
Apêndice A 356
Apêndice B 358
Apêndice C 359
Apêndice D 361
Apêndice E 363
Apêndice F 365
Apêndice G 366
Apêndice H 368
Apêndice I 369
Apêndice J 370
Apêndice L 371
Apêndice M 373
18
Introdução
1
APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05455, documento 6329, 1888.
19
trabalho livre. Permaneceria sob a autoridade de seu tutor até a emancipação pelo
casamento, sem poder pleitear novas e eventualmente melhores condições de trabalho e
de vida nesse ínterim.
Revirando-se os autos do Juízo de Órfãos da capital, muitas outras mulheres e
filhos em circunstâncias semelhantes às de Carolina e Olympia são encontrados.
Depauperados, livres ou, em muitos casos, egressos da escravidão, são sujeitos cujas
histórias povoaram, ao longo de todo o século XIX, os mundos do trabalho na cidade de
São Paulo. A arregimentação do trabalho de menores de idade em condições de
informalidade enredou-se inextricavelmente à separação de famílias majoritariamente
chefiadas por mulheres trabalhadoras. Em muitas medidas, a construção de arranjos
familiares fragmentários foi fundamental para a própria subsistência destas famílias – o
trabalho das crianças e jovens compunha a sua renda ou aliviava suas despesas e era
frequentemente agenciado pelas próprias mães que procuravam ativamente garantir aos
filhos as mais adequadas condições de trabalho, associadas aos melhores proventos.
Ainda assim, havia uma outra e mais hostil face desses modos de vida determinados
pelo imperativo da sobrevivência. A partir da construção de representações
depreciativas das mulheres pobres, consideradas moral e materialmente incapazes de
exercer os sublimes deveres da maternidade, muitas vezes seus filhos eram
forçosamente arrancados de sua companhia e alienados de sua autoridade para seguir às
casas de “boas famílias” paulistanas que, a propósito de caridade e bons sentimentos,
arregimentavam a mão de obra destes pequenos e jovens trabalhadores.
As tutelas e contratos de soldada, conformados segundo determinações das
Ordenações Filipinas, eram expedientes úteis ao recrutamento judicial de pequenos e
jovens trabalhadores apresentados nos autos como desafortunados e abandonados, filhos
de mães destituídas do amor e da vocação maternas. Apesar de sua longa existência,
esses mecanismos formais de arregimentação de trabalho foram utilizados com maior
frequência por empregadores da cidade, somente a partir da década de 1880 – quando os
tumultos em torno da emancipação e da reordenação e controle do trabalho acirravam-se
a olhos vistos. À medida que se ampliava o recurso às tutelas e soldadas na cidade,
recrudesciam também as representações da impropriedade materna das mulheres das
camadas populares – insufladas pela emergência de padrões burgueses e médico-
científicos, intimamente associados ao pensamento racial emergente no Brasil, em fins
do século XIX, que alçavam às alturas as definições da boa mãe, doméstica e extremosa
zeladora do futuro da nação encerrado em seus filhinhos.
20
2
De acordo com Richard Morse, nos três primeiros quartos do século XIX, a população paulistana
estabilizara-se entre 20 e 25 mil habitantes. MORSE, Richard. Formação histórica de São Paulo (de
comunidade a metrópole). São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970, p. 171.
3
MORSE, Richard. São Paulo: Raízes Oitocentistas da Metrópole. Anais do Museu Paulista, tomo 14,
São Paulo, 1950, pp. 445-487 apud BRUNO, Ernani da Silva. História e Tradições da Cidade de São
Paulo (Vol. II: Burgo de Estudantes, 1828-1872). São Paulo: Hucitec,1984, pp. 446-7; BRUNO, Ernani
da Silva. História e Tradições da Cidade de São Paulo (Vol. III: Metrópole do Café, 1828-1872; São
Paulo de Agora, 191-1954). São Paulo: Hucitec,1994.
4
BRUNO, E.S. História e Tradições da Cidade (vol. III) ..., op. cit.
21
5
BRUNO, E.S. História e Tradições da Cidade (vol. III) ..., op. cit.
6
MACHADO, Maria Helena P.T. Sendo Cativo nas Ruas: a Escravidão Urbana na Cidade de São Paulo.
In: PORTA, Paula (Org.). História da Cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 59-99;
SANTOS, Carlos José Ferreira. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza (1890-1915). São Paulo:
Annablume /Fapesp, 2008. Fraya Frehse oferece um minucioso apanhado crítico da literatura dedicada ao
tema do crescimento urbano de São Paulo no século XIX, demonstrando haver três linhas interpretativas
sobre o advento da modernidade na urbe paulista: a primeira dando conta de uma profunda ruptura no
processo de urbanização, decorrido especialmente a partir da década de 1880; a segunda referindo-se à
continuidade das estruturas provincianas na cidade do fim do século; e a terceira, a que a autora se filia,
advogando a coexistência entre continuidade e ruptura – ou tradições e modernidade – e a existência de
múltiplas temporalidades na cidade, na transição do Império à República. FREHSE, Fraya. O tempo das
ruas na São Paulo de fins do Império. São Paulo: Edusp, 2005, pp. 43-92.
7
MORENO, Alessandra Zorzetto. Na roda da vida: os filhos de criação em São Paulo colonial. In:
VENANCIO, Renato Pinto. Uma história social do abandono de crianças. De Portugal ao Brasil:
séculos XVIII – XX. São Paulo: Alameda, 2010, p. 99-121.
22
8
MEZNAR, Joan. Orphans and the transition from slave to free labor in the Northeast Brazil: the case of
Campinas Grande, 1850-1888. Journal of Social History, vol. 27, n.3, 1994, p. 499-515; SOUSA, José
Weyne de. Artífices, criadas e chicos: as experiências urbanas das crianças órfãs e pobres em Fortaleza
(1877-1915). 2004. 219f. Dissertação (Mestrado em História Social). Pontifícia Universidade Católica,
São Paulo, 2004.
9
TEIXEIRA, Heloísa Maria. A não infância: crianças como mão de obra em Mariana (1850-1900). Tese
(Doutorado em História Econômica). 2007. 302f. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo
10
Exemplos desta primeira abordagem são: DAVID, Alessandra. Tutores e tutelados: a infância
desvalida em Franca (1850-1888). 1997. 147f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de
História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista, Franca; PINHEIRO, Luciana de
Araújo. A civilização do Brasil através da infância: propostas e ações voltadas às crianças pobres no
final do Império (1879-1889). 2003. 144f. Dissertação (Mestrado em História Moderna e Contemporânea)
– Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2003; SIQUEIRA, Lucília. As crianças pobres nas franjas da
economia cafeeira: os contratos de órfãos em Socorro/SP na década de 1880. Revista Brasileira de
História e Ciências Sociais, vol. 2, nº4, dez. 2010, pp. 22-34; CARDOZO, José Carlos da Silva Araujo.
O Juízo de Órfãos e a organização da família por meio da tutela. História Social, n. 20, 1º sem. 2011, pp.
2020-220. Entre os estudos que se alinham à segunda perspectiva destacada, ver: ALANIZ, Anna Gicelle
García. Ingênuos e libertos: estratégias de sobrevivência familiar em épocas de transição (1871-1895).
Campinas: CMU/Unicamp, 1997; PAPALI, Maria Aparecida. Escravos, libertos e órfãos: a construção
da liberdade em Taubaté (1871-1895). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001; ZERO, Arethuza Helena. O
preço da liberdade: caminhos da infância tutelada – Rio Claro (1871-1888). Dissertação (Mestrado em
História). 2004. 141f. Universidade Estadual de Campinas, Campinas; GEREMIAS, Patrícia Ramos. Ser
“ingênuo” em Desterro/SC: a lei de 1871, o vínculo tutelar e a luta pela manutenção dos laços familiares
das populações de origem africana (1871-1889). 2005. 117f. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal Fluminense, Niterói; GUIMARÃES, Elione Silva. Múltiplos viveres de
afrodescendentes na escravidão e no pós-emancipação (Juiz de Fora – Minas Gerais, 1828-1928). São
Paulo: Anablumme; Juiz de Fora: Funalfa Edições, 2006; Ione Celeste de J. “Porque um menor não deve
ficar exposto à ociosidade, origem de todos os vícios”: Tutelas e Soldadas e o trabalho de Ingênuos na
Bahia, 1870 a 1900. In: MACHADO, Maria Helena P.T.; CASTILHO, Celso Thomas (Orgs.).
Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição. São Paulo: Edusp, 2015,
pp. 189-21.
23
11
AZEVEDO, Gislane Campos. De Sebastianas e Geovannis: o universo do menor nos processos dos
juízes de órfãos da cidade de São Paulo (1871-1917). 1995. 181f. Dissertação (Mestrado em História) –
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo; ______. A tutela e o contrato de soldada: a reinvenção do
trabalho compulsório infantil. História Social, n.3, 1996, p. 11-36.
12
Patrícia Geremias nota, no entanto, que a prática de tutelas aplicadas a outros grupos, como os
africanos livres e os indígenas, era constitutiva das bases do trabalho compulsório amplamente
arregimentado no Império. GEREMIAS, P. Ser ingênuo em Desterro..., op. cit., p. 45-46. A este respeito
ver também o trabalho de Beatriz Mamigonian: MAMIGONIAN, Beatriz Galotti. Africanos Livres e os
Dois Impérios: Tráfico, Direito e Trabalho no Brasil Oitocentista. Manuscrito não publicado.
24
Como demonstra a leitura dos jornais que circulavam na província de São Paulo,
alguns inclusive replicando notícias de outras paragens do Império, acentuava-se de fato
o interesse sobre as crianças trabalhadoras, nas décadas finais do XIX. De modo geral,
no entanto, o tratamento dado pela literatura especializada ao tema das tutelas e
soldadas tem abordado estas preocupações emergentes com os pequenos e jovens
trabalhadores de forma segmentada, dedicando maior atenção ora aos menores egressos
da escravidão, ora aos menores genericamente designados como livres pobres13. Muitas
contribuições foram feitas à compreensão das dinâmicas do gradualismo que
estenderam seus tentáculos ao pós-Abolição, pelos estudos particularmente dedicados
aos ingênuos. Do mesmo modo, as atenções dispensadas ao tratamento das tutelas e
soldadas envolvendo menores livres e pobres muito colaboraram para a compreensão do
lento desenvolvimento de políticas públicas de assistência social na passagem do
Império à República.
O foco ajustado especificamente sobre um desses grupos, entretanto, corre o risco,
por vezes, de obliterar a inserção dos pequenos trabalhadores num movimento ampliado
de transformações que acometia a sociedade imperial, cujos protocolos de trabalho livre
viam-se forçados à reinvenção pelas circunstâncias historicamente dadas. Esse eventual
descolamento de uma perspectiva expandida da história social do trabalho espelha, em
certa medida, a reprodução de antigos paradigmas sobre a “transição da escravidão ao
trabalho livre” no Brasil, no final do século XIX – paradigmas estes que se tornaram,
nas últimas décadas, alvo de intensa e criativa reavaliação14. Ao retomar uma divisão
algo artificial entre os trabalhadores escravizados e livres e projetá-la sobre as
experiências e políticas de administração da força de trabalho de jovens e crianças,
incorre-se no perigo de obscurecer a importância da longa história da escravização para
13
Exceção feita, de forma mais clara, por Lucília Siqueira e Maria Aparecida Papali. Referindo-se à
emergência de preocupações com a formação do jovem trabalhador, Papali situa crianças empobrecidas,
órfãos e ingênuos nos quadros ampliados das transformações do trabalho livre nas décadas finais do
século XIX. De forma semelhante, Siqueira define um arco ampliado e complexo de transformações
sociais no bojo das quais crianças livres pobres e egressas da escravidão foram contratadas por meio de
soldadas, atendo-se às décadas finais do XIX. As considerações iniciadas pela autora a respeito das
dinâmicas do trabalho de menores no município de Socorro, contudo, não tiveram ainda continuidade.
PAPALI, Maria Aparecida C.R. Ingênuos e órfãos pobres: a utilização do trabalho infantil no final da
escravidão. Estudos Ibero-Americanos, vol. XXXIII, num. 1, 2007, p. 149-159; SIQUEIRA, L. As
crianças pobres nas franjas da economia..., op. cit.
14
Referências fundamentais são: LARA, Silvia Hunold. Escravidão, cidadania e história do trabalho no
Brasil. Projeto História, São Paulo, n. 16, 1999, p. 25-38; FRENCH, John. As falsas dicotomias entre
escravidão e liberdade: continuidades e rupturas na formação política e social do Brasil moderno. In:
LIBBY, Douglas C.; FURTADO, Júnia Ferreira (Orgs.) Trabalho Livre, Trabalho Escravo: Brasil e
Europa, Séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006; NEGRO, Antonio Luigi; GOMES, Flávio.
“Além das senzalas e fábricas: uma história social do trabalho”. Tempo Social, v. 18, n.1, 2006, p. 217-
240.
25
15
MESGRAVIS, Laima. A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (1599?-1884): contribuição ao
estudo da assistência social no Brasil. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1976 (Coleção Ciências
Humanas, 3); MARCÍLIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec,
1998; VENANCIO, Renato Pinto. Famílias abandonadas: assistência à criança de camadas populares no
Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVII e XIX. Campinas, SP: Papirus, 1999.
26
16
ALANIZ, A.G.G. Ingênuos e libertos...; TEIXEIRA, H.M. A não infância.... Destacam-se a este
respeito os estudos de Maria Aparecida Papali, que discutem em profundidade um pouco maior a
recriminação social e jurídica de mulheres pobres e solteiras, consideradas inaptas para ocupar o cargo de
tutoras dos próprios filhos. PAPALI, M.A. Escravos, libertos e órfãos..., op. cit.; PAPALI, Maria
Aparecida C.R. A legislação de 1890, mães solteiras pobres e o trabalho infantil. Projeto História, n.33,
2009, p. 209-16.
17
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Mulheres sem história. Revista de História, n. 114, 1983, p. 31-45;
Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo, Editora Brasiliense, 1984, p. 40.
18
DIAS, M.O.L.S. Quotidiano e poder..., op. cit.
19
COWLING, Camillia. Conceiving Freedom: Women of Color, Gender and the Abolition of Slavery in
Havana and Rio de Janeiro. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2013.
27
tempo algo distinto da velocidade dos trens, dos ritmos apressados de transeuntes numa
cidade cada vez mais abarrotada de trabalhadores e da marcha do progresso nacional.
Buscando contínua e ativamente escapar à arregimentação compulsória por meio de
tutelas e soldadas, mães e filhos empobrecidos e egressos da escravidão forçavam, como
podiam, sua entrada no prometido mundo dos cidadãos livres.
por meio dos contratos de soldada, esclarecendo quem eram os menores assoldadados,
quantos anos tinham, que serviços desempenhavam e como eram remunerados. São
também investigadas as origens sociais dos menores formalmente arregimentados,
procurando-se deslindar a participação dos diversos grupos sociais existentes na cidade
à época dos registros – entre imigrantes, “nacionais livres”, brancos e afrodescendentes.
Finalmente, é também objetivo deste capítulo debater o papel desempenhado pelos
contratos de soldada e tutelas na conformação de um mercado de trabalho livre e seus
protocolos na cidade de São Paulo, em fins de século XIX ,– situando tais expedientes
num amplo espectro de práticas de arregimentação formal de trabalho dependente e
tutelado que incluiu, ao longo do século, experiências como a arrematação dos serviços
de africanos livres e os contratos de locação de serviços de libertandos.
Finalmente, após detalhados os contornos formais dos arranjos de trabalho
judicialmente celebrados, o capítulo 5 debruça-se sobre as práticas cotidianas de
trabalho de crianças e jovens na cidade, procurando transitar entre as ambiguidades da
informalidade dominante ao longo do oitocentos e da crescente formalização registrada
nas décadas finais daquele século. Neste sentido, o intuito da seção final da tese é
investigar como estas relações de trabalho se deram na prática social, e se foram ou não
afetadas pela terminação efetiva da escravidão. Assim, o capítulo contempla as
explorações e violências sofridas por crianças e jovens em casa de seus empregadores,
bem como a agência dos mesmos diante destas violações – que redundavam em fugas,
insubordinações e também na ativa participação destes pequenos trabalhadores na
articulação de novos arranjos de trabalho que lhes oferecessem melhores condições de
vida. Consideram-se, assim, algumas questões fundamentais: quais eram os benefícios
trazidos aos menores trabalhadores pela formalização das tutelas e soldadas? Em que
medida arranjos sancionados pela justiça protegiam de fato os interesses dos menores
trabalhadores – e, por conseguinte, os de suas famílias? A quem as tutelas e soldadas
interessavam, enfim?
Mirando o cenário ampliado da emancipação gradual, suas tensões e pressões sob
esses dois pontos de vista fundamentais, a tese procura seguir os rastros deixados por
mulheres pobres e seus filhos, entendidos como importantes atores sociais deste
processo. A busca, afinal, é por um jogo de espelhos a partir do qual se possa
compreender de que maneira estes sujeitos foram enquadrados por autoridades públicas
e interesses privados e, sobretudo, com que olhos eles próprios observaram as
30
Capítulo 1
Mãe é quem pode
Treze de maio de 1881. Exatamente sete anos antes da outorga da Lei Áurea, Luiz
Gama, o notável advogado provisionado, que se tornou baluarte do abolicionismo
organizado às barras dos tribunais nas últimas décadas da escravidão, submetia ao Juízo
de Órfãos da capital da província de São Paulo uma petição em que se registravam as
aflições de Sophia, mãe da pequena Maria do Carmo:
Sophia Sant’Anna Gavião, solteira, é mai da menor Maria do Carmo,
de sette annos de idade, e a expensas proprias, fruto do seu trabalho, a
tem creado e regularmente educado.
Acontece que alguem, cuja perversão de sentimentos e notoria, dera
noticias entre amigos que pretendia-se aprezentar perante o Juizo, para
tutor da dita menor, e com o calculado intuito de arrebatal-a da
peticionaria. É certo que se-vai, entre nos, introduzindo o habito de
povoar as casas dos ricos, e dos abastados, com os filhos dos pobres, a
pretexto de hua certa determinada educação servil, imoral e torpe.
Os escandalos de tal systhema atingem a crimes horrorosos, que ficam
impunes. A peticionaria, pois, para evitar males similhantes, requer a
V. Excia, com o devido respeito, que ouvido o digno Dr Curador
Geral dos Orphans, se digne nomear tutor idoneo á filha della, que
respeitando os sentimentos e os direitos maternos, naum consita em
violencias contra quem até hoje há sabido cumprir os seus deveres1.
1
Cf. APESP - Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05455, documento 9206, 1881.
2
FERREIRA, Lígia Fonseca. Primeiras trovas burlescas de Luiz Gama e outros poemas. São Paulo:
Martins Fontes, 2000; ______. Poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial, 2011;
AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo.
Campinas: Unicamp, 2005.
33
3
Sobre a importância do princípio latino na reprodução da escravidão no Brasil e em Cuba, ver:
COWLING, Camillia. Conceiving Freedom: Women of Color, Gender and the Abolition of Slavery in
Havana and Rio de Janeiro. Chapel Hill, NC: The University of North Carolina Press, 2013. A discussão
sobre a temática da reprodução − ou o “trabalho reprodutivo” das mulheres escravas − e as políticas
desenhadas para controlar seus corpos é bastante diversa, sobretudo entre os estudiosos da escravidão do
Caribe inglês (notadamente na Jamaica) e do sul dos Estados Unidos. Ressalte-se que, enquanto parte
desta literatura concentra-se nos temas das políticas escravistas, outros estudos dedicam-se à compreensão
de práticas contraceptivas, controle de natividade e abortos como manifestações da agência de mulheres
escravizadas. Referências importantes dessas diferentes abordagens são: MORGAN, Jennifer L.
Laboring Women: reproduction and Gender in New World Slavery. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 2004; SCHWARTZ, Marie Jenkins. Birthing a Slave: Motherhood and Medicine in
the Antebellum South. Cambridge: Harvard University Press, 2009; TURNER, Sasha. Contested Bodies:
Pregnancy, Childrearing, and Slavery in Jamaica (1780-1834). University of Pennsylvania Press, 2017;
BUSH, Bárbara. "Hard Labor: Women, Childbirth, and Resistance in British Caribbean Slave Societies.
In GASPAR, David Barry; HINE, Darlene Clarke (Ed.). More than Chattel: Black Women and Slavery
in the Americas. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1996, p. 193-217; ROTH,
Cassia. Reproducing Slavery in Nineteenth-Century Rio de Janeiro. UCLA Historical Journal, v. 1, n.
24, 2013.
4
No limite, como sugere o artigo de Maria Lúcia Mott, o aborto e o infanticídio, adotados como opções
extremas de resistência por mulheres escravizadas que procuravam poupar os futuros filhos das condições
do cativeiro, poderiam também ser considerados interrupções das experiências de maternidade. MOTT,
Maria Lúcia de Barros. Ser mãe: a escrava em face do aborto e do infanticídio. Revista História, São
Paulo, n. 120, 1989, p.85-96.
5
O início precoce dos pequenos escravos no mundo do trabalho adulto era, igualmente, circunstância que
poderia acarretar a separação entre mães e filhos – não necessariamente pela venda, mas pela interrupção
da convivência. Ver: MOTT, M.L. Ser mãe..., op. cit; MATTOSO, Kátia. O filho da escrava: em torno da
Lei do Ventre Livre. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.8, n.16, p.37-55, 1988.
6
Os resultados desta negligência forçada poderiam ser dramáticos, como demonstra Maria Helena
Machado ao recontar a história da ama Ambrosina, acusada de assassinar por sufocamento o bebê
senhorial de cujo aleitamento e cuidados era incumbida: MACHADO, MARIA HELENA P. T. Entre dois
Beneditos: histórias de amas de leite no ocaso da escravidão. In: XAVIER, Giovana, FARIAS, Juliana
Barreto e GOMES, Flávio dos Santos (Org.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-abolição.
São Paulo: Selo Negro, 2012, p. 199-212. Encontra-se no prelo um número especial da revista “Slavery &
Abolition” no qual as práticas de maternidade e cuidados de filhos, suas possibilidades e impedimentos
diante da escravidão são abordadas sob diversos ângulos. MACHADO, Maria Helena et alli (Ed.).
Mothering in Slavery, Slavery & Abolition, Número Especial. No prelo.
35
Os temores de Sophia quanto à privação da tutela de sua filha, decerto, não eram
sem razão. Entre as décadas de 1880 e 1890, o Juízo de Órfãos da cidade de São Paulo
receberia diversas solicitações de tutela e de contratação à soldada de meninos e
meninas empobrecidos, muitos deles portadores de íntimas ligações com experiências
pregressas de escravização, fossem suas próprias ou de seus parentes. Isso não significa
que antes desse momento tais modalidades de arregimentação compulsória de trabalho
13
A referência ao crescimento urbano problemático de São Paulo encontra-se em: DIAS, Maria Odila
Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo do século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 15.
38
14
O recorte cronológico adotado pela pesquisa abarcou todos os registros formais localizados no fundo
Juízo de Órfãos do APESP – daí a abrangência da maior parte do século XIX bem como de inícios do
XX. Registre-se, entretanto, que, uma vez que a pesquisa se interessa por menores empobrecidos e
trabalhadores, as tutelas de menores possuidores de bens ou herdeiros de patrimônio não foram
incorporadas ao conjunto documental.
15
Este padrão, solidamente verificado para primeira metade do XIX na cidade de São Paulo, tem
ressonâncias explícitas na organização familiar de parte significativa das mulheres empobrecidas nas
décadas finais do dito século, como apontado nos autos de tutela e contratos de soldada pesquisados, que
se acumulam justamente nesse período. Estudos demográficos e modelares a este respeito são: SAMARA,
Eni de Mesquita. Estratégias Matrimoniais no Brasil do Século XIX. Revista Brasileira de História, São
Paulo, v. 8, n. 15, p. 91-105, 1988; ______. As mulheres, o poder e a família: São Paulo, século XIX.
São Paulo: Marco Zero e Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1989; KUZNESOF, Anne
Elizabeth. Household Economy and Urban Development: São Paulo, 1765 to 1836. Boulder, Colorado:
Westview Press, 1986; ______. A Família na Sociedade Brasileira: Parentesco, Clientelismo e Estrutura
Social (São Paulo, 1700-1980). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 9, n. 17, p. 37-63, 1989.
Padrões semelhantes são verificados para a São Paulo colonial em: METCALF, Alida C. Family and
frontier in colonial Brazil: Santana de Parnaíba, 1580-1822. Berkley, Carlifornia: University of
California Press, 1992. Para o detalhamento dos dados de filiação dos menores formalmente assoldadados
e tutelados em São Paulo, consultar o Apêndice A no fim desta tese (p.356-357).
39
pais dos filhos que a Justiça procurava lhes tomar. Alguns documentos referem-se aos
pais dos menores arregimentados, e não raro indicam a existência de pais e mães que
aparentemente haviam vivido em uniões consensuais – a maior parte deles falecidos.
Ainda assim, em se tratando das famílias dos pequenos e jovens assoldadados e
tutelados da cidade, pode-se dizer com segurança que eram, em sua maioria, filhos de
mulheres sós16.
Algumas eram identificadas como viúvas, outras abertamente referidas como
solteiras – descrição da qual depreendia-se tanto a condição de ilegitimidade de seus
filhos como a sua própria moralidade reprovável. Interessante é observar, neste sentido,
que a condição de “mulheres sós” não implicava necessariamente o total desprovimento
de redes de apoio ou de estruturas familiares consistentes. Conforme observou Maria
Odila Leite da Silva Dias a respeito das décadas iniciais do século XIX, São Paulo
constituiu-se, de fato, como uma cidade largamente habitada por mulheres
empobrecidas, muitas delas brancas, chefes de fogos onde viviam acompanhadas por
seus filhos – e eventualmente os filhos de suas filhas –, agregados e poucos escravos17.
Era também uma cidade povoada por escravas e libertas que costuravam, no comércio
miúdo de gêneros, o tecido improvisado da sobrevivência – a sua própria e a dos seus18.
Mais do que a vida em plena solidão, portanto, a condição de “mulheres sós”
correspondia às circunstâncias daquelas que, desprovidas da representação legitimadora
do marido, do reforço moral do casamento, ou mesmo da “proteção” informal de uma
figura masculina, improvisavam e engendravam autônoma e cotidianamente suas
subsistências.
Apoiadas nessa ampla realidade, representações da maternidade ideal, em tudo
oposta às vidas de mulheres empobrecidas na cidade de São Paulo, eram forjadas e
esgrimidas nos autos para justificar a concessão de tutelas e soldadas. Decerto, essas
representações manifestaram-se com particular força no contexto da derrocada da
16
Observe-se que a prevalência de mulheres sós entre as mães de crianças e jovens formalmente tutelados
ou contratados à soldada não foi exclusividade da cidade de São Paulo, tendo sido também constatada por
Maria Aparecida Papali e Heloísa Teixeira para as cidades de Taubaté e Mariana, respectivamente:
PAPALI, Maria Aparecida. Escravos, libertos e órfãos: a construção da liberdade em Taubaté (1871-
1895). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001; TEIXEIRA, Heloísa Maria. A não infância: crianças como
mão de obra em Mariana (1850-1900). 2007. 302f. Tese (Doutorado em História Econômica) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
17
DIAS, M.O.L.S. Quotidiano e poder..., op. cit.
18
Ver: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Nas Fímbrias da Escravidão Urbana: negras de tabuleiro e de
ganho. Estudos Econômicos, São Paulo, n. 15, p. 89-109, 1992; ______. Resistir e sobreviver. In:
PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Nova História das Mulheres (Org.). São Paulo:
Contexto, 2012, p. 360-381.
40
19
Sobre a exposição de menores e a condição do “abandono materno”, ver: VENÂNCIO, Renato Pinto.
Famílias abandonadas: assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador –
séculos XVII e XIX. Campinas, SP: Papirus, 1999.
20
Para dados exatos da distribuição dos arranjos formais de tutelas e soldadas na cidade de São Paulo ao
longo do período pesquisado, ver: T1 (Tabela 1, p.183), T2 (Tabela 2, p.196).
21
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de denúncia, lata C05357, documento 11263, 1855.
41
22
Sobre a sexualidade feminina materna e sua situação limítrofe com a prostituição no pensamento
europeu e também brasileiro, ver: ALMEIDA, Angela Mendes de. Mães, esposas, concubinas e
prostitutas. Seropédica: EDUR, 1996.
43
tutelas e soldadas de menores empobrecidos, nas décadas finais do século XIX, quando
seria revestida do verniz das emergentes concepções familiares burguesas e médico-
científicas que abarcavam, sob o signo da prostituição, todo o tipo de comportamento
feminino considerado desviante23. Nota-se, porém, que suas bases já estavam lançadas,
ao menos desde a década de 1850 – por mais ordinária que fossem as condições de
mulher só e chefe de família naquela cidade, as idealizações do “dever ser feminino”
puderam sempre sobrepujá-las nas disputas formais por direitos sobre seus filhos24.
Convencido pelos depoimentos das testemunhas, o juiz de órfãos deliberou pela
concessão da tutela das cinco filhas de Ermelinda ao depoente Antonio Joaquim
Maurício Pereira que as levou a viver em sua companhia. Em inícios da década de 1870,
uma a uma as irmãs acorreram ao Juízo assim que atingiram a maioridade para solicitar
a emancipação de seu tutor. Sobre sua mãe, não restaram notícias nas páginas dos autos.
Talvez sobreviver como mulher pobre na cidade tivesse se tornado, de fato, tarefa
menos impraticável, uma vez que não lhe competia mais a obrigação de alimentar seis
bocas – a sua própria incluída. A escolha por esse arranjo que potencialmente esgarçava
os vínculos entre mães e filhas, no entanto, jamais foi feita autonomamente por
Ermelinda.
Outros estereótipos da mulher inadequada para o exercício materno que
igualmente se disseminariam nos autos de disputas judiciais pela tutela e contratação de
menores de idade, nas décadas de 1880 e 1890, são visíveis também em meados do
XIX. Em 1856, Anna Francisca, mãe da “preta” Maria Benedicta, fruto de sua união
aparentemente ilegítima com Luis Mendes, recolhido ao Hospital de Alienados, era
descrita nos autos de disputa da tutela e soldada da filha como “mulher ébria”, “sem
morada certa”, e “de vida desregrada” – não possuindo, deste modo, os mais
elementares predicados morais para “tractar sua filha como convem”25. Colocada pela
mãe em companhia de Joana Maria da Luz, a pequena Benedicta, de 10 anos, recebia de
sua tutora informal sustento e vestuário, além de com ela aprender a costurar –
23
A este respeito ver: CAUFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no
Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas, SP: Editora Unicamp, 2000. O contraponto à normatividade
sexual que dominava o cenário da passagem do oitocentos ao século XX e do Império à República
encontrava-se nas relações afetivas e no comportamento sexual das camadas populares, abordado por
Martha Abreu: ESTEVES, Martha Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano de amor no Rio
de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
24
A expressão “dever ser feminino” é empregada por Marina Maluf e Maria Lúcia Mott em: MALUF,
Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau (Org.). História
da Vida Privada no Brasil, vol. 3. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, pp. 367-421.
25
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05453, documento 12055, 1856.
44
26
DIAS, M.O.L.S. Quotidiano e poder..., op. cit.
27
Sobre as lavadeiras, muitas das quais libertas e escravas, como grandes agentes da desordem públicas,
criadoras de tumultos e perturbação pública e, ao mesmo tempo, provedoras de essenciais serviços para as
casas das famílias remediadas e abastadas da cidade de São Paulo, há referências em: SANTOS, Carlos
José Ferreira. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza (1890-1915). São Paulo: Annablume /Fapesp,
2008; TELLES, Lorena Feres da Silva. Libertas entre sobrados: Mulheres negras e trabalho doméstico
em São Paulo (1880-1920). São Paulo: Alameda Editorial, 2014. Maria Cristina Wissenbach refere-se ao
ambiente caótico das áreas de pontes do Acu, do Carmo e de Santana, que acolhiam toda a sorte de
sujeitos subalternos da cidade inclusive as lavadeiras: WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos
africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1888). São Paulo: Hucitec, 1998, p.
179-208.
45
28
Conforme argumenta Mary del Priore, esta concepção da figura materna colonial, amplamente
emanante dos princípios tridentinos da Igreja, tinha como propósito “combater o concubinato e dar um
papel para as mulheres no sagrado matrimônio”, cumprimento de importante papel no controle e
disciplinamento social da população colonial. Ao papel da “santa- mãezinha”, diligente guardiã do lar e
dos princípios cristãos, opunha-se o da “mulher sem qualidades”, amplamente definida por suas uniões
consensuais ilegítimas. PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e
mentalidades no Brasil Colônia. São Paulo: UNESP, 2009.
29
Sobre a afirmação da “natureza feminina”, marcadamente biológica, ver: MALUFF, Marina;
ROMERO, Mariza. A sublime virtude de ser mãe. Projeto História, n. 25, São Paulo, 2002, p. 221-241.
Sobre a ascensão das teorias científicas entre autoridades médicas e jurídicas, intimamente associadas à
emergência do pensamento racialista, ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças:
cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
30
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Brasil, 1890-1930. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1985, p.117.
31
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém: relações sociais e experiência da
urbanização. São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda Editorial, 2005.
46
boas famílias da cidade deveriam prezar pela contenção e disciplina dos hábitos, bem
como preservar os papéis específicos atribuídos a cada ente familiar nuclear – marido,
esposa e filhos. No espectro dessa renovada ordem familiar, que reduzia a amplitude das
parentelas extensas típicas do modelo patriarcal rural, sem, contudo, reduzir a
importância das figuras masculinas como cabeças de família, a representação da mulher
e de suas vocações surgia adornada com os predicados da mãe extremosa: terna rainha
do lar, que sobretudo adorava e servia ao marido e aos filhos32. Se ao pai de família
cabia o papel de autoridade provedora, chefe da sociedade conjugal e se seu lugar
precípuo era o mundo do trabalho, o que fazia dele um sujeito público, à mulher
competia justamente o mundo íntimo do lar33. Frágil e emocional, porém inteiramente
devotada ao bem-estar de sua família, a representação da mãe burguesa carregava em si
o ideal do devir feminino, biologicamente determinado e inscrito em sua anatomia, de
“casar, gerar filhos e plasmar os cidadãos do amanhã”34. Assim, a despeito do caráter
essencialmente recolhido da mulher-mãe, o abnegado desvelo aplicado à criação dos
filhos tinha funções que ultrapassavam os limites do mundo doméstico: criar os filhos
era criar os sujeitos que povoavam e faziam a nação.
Desde os anos 1870, jornais de diferentes tendências políticas circulando na
capital da província incensavam a mãe extremosa e traziam referências cada vez mais
frequentes às responsabilidades femininas maternas e seu vulto nacional em editoriais e
artigos assinados por autoridades públicas e homens ilustrados. Os exemplos são
muitos. Em 1879, um editorial do Jornal da Tarde intitulado “Os direitos da mulher”
chamava atenção para as virtudes femininas – próprias do “sexo afetivo”, em oposição
ao “sexo ativo”, masculino – e louvava a maternidade como “base da família, e o
principal elemento de amor, de ordem e de progresso” 35. Em 1880, um artigo de título
32
Este processo de consagração do modelo familiar nuclear burguês, em cujo cerne reinavam a mãe e seu
filho, é claro, não era uma exclusividade brasileira. Sobre seu desenvolvimento na Europa, ver:
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986; PERROT, Michele. Os excluídos da história: operários, mulheres, prisioneiros. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 167-231; DAVIN, Anna. Imperialism and Motherhood. In: COOPER,
Frederick; STOLER, Ann Laura (Ed.). Tensions of Empire: colonial cultures in bourgeois world.
Berkeley: University of California Press, 1997, p. 89-151.
33
Sobre as representações de masculinidade burguesa, ver: MALUF, M; MOTT, M.L Recônditos do
mundo feminino..., op. cit; COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro:
Graal, 2004.
34
MALUF, M; MOTT, M.L. Recônditos do mundo feminino..., op. cit., p. 373-74.
35
Cf. Jornal da Tarde – Os direitos da mulher, 24.04.1879, p. 01. Fundado em 1878 e descrito por
Affonso Freitas como “imparcial”, o Jornal da Tarde encerraria suas atividades ao fim de 1879. Seus
proprietários fundariam, neste mesmo ano, a folha A Gazeta do Povo, qualificada pelo mesmo autor como
“republicana e independente”. FREITAS, Affonso. A imprensa periódica de São Paulo desde seus
primórdios em 1832 até 1914. São Paulo: Typographia do Diario Official, 1915, p. 257; 263-63.
47
36
Cf. BN-HDB – A Constituinte – A importância da educação da mulher, 03.06.1880, p. 02. De vida
curta e orientação liberal, a folha A constituinte foi editada entre 1879 e 1880, tendo entre seus
proprietários e redatores membros da tradicional família paulista Paula Souza. FREITAS, A. A imprensa
periódica..., op. cit., p. 261.
37
Fundado em 1888 em São Paulo pela jornalista e feminista, o jornal transferiu-se no ano seguinte ao
Rio de Janeiro, onde foi impresso até 1897. Defendendo causas como o voto e a educação feminina, a
publicação não deixava de registrar pontos de vista intimamente associados à normatividade da família
burguesa, como o perigo representado pelas criadas domésticas e a sublime missão da maternidade. Sobre
a publicação e sua fundadora, ver: SOUTO, Bárbara Figueiredo. Senhoras do seu destino: Francisca
Senhorinha da Motta Diniz e Josephina Alvares de Azevedo – projetos de emancipação feminista na
imprensa brasileira (1873-1894). 2013. 197f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Ver também:
HANER, June Edith. Emancipating the female sex: the struggle for women’s rights in Brazil. Durham:
Duke University Press, 1990.
38
Cf. BN-HDB – A Família – O amor materno, 08.12.1888, p. 04; Os filhos, 08.12.1888, p. 03; Mãe,
15.12.1888, p. 02.
48
cidadão, e elle será todo ao seu molde; della provem o caracter de seus
filhos e destes a importancia de sua patria. Que grandeza em sua nobre
missão!39
39
JAGUARIBE FILHO, Domingos José Nogueira. A respeito das mães. In: Almanach Literário
Paulista, 1875 a 1884, pp. 48-53. Publicado entre 1876 e 1885 (com interrupções entre 1882 e 1883), o
Almanach Literario Paulista agregava importantes nomes de um amplo espectro político da
intelectualidade paulista e publicava reuniões de “ensaios, poemas, ensinamentos morais, estudos
históricos e geográficos”, entre outros, conforme demonstra Roni Cleber Menezes: MENEZES, Roni
Cleber Dias. O grupo do Almanaque Literário de São Paulo: paradigmas da sociabilidade republicana
no tempo da propaganda (1876-1885). 238f. 2006. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de
Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. O autor do artigo citado, Domingos Jaguaribe
Filho, filho do eminente Visconde de Jaguaribe, foi como o pai sujeito de destacada extração intelectual
no Império, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundador do Instituto Histórico
Paulista e organizador do 1º Congresso Agrícola de 1878. NOBRE, F. Silva. 1001 Cearenses Notáveis.
Rio de Janeiro: Casa do Ceará Editora, 1996.
40
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica..., op. cit.
41
RAGO, M. Do Cabaré ao Lar..., op. cit, p. 119. Desenvolvendo-se ao longo da segunda metade do
século XIX, a puericultura atingiria seu ápice nas décadas iniciais do XX, reforçando neste percurso a
importância do papel da mãe nos cuidados cientificamente aprovados e concebidos aos filhos. GONDRA.
José G. A sementeira do porvir: higiene e infância no século XIX. Educação e Pesquisa, v. 26, n. 1, p.
99-117, 2000; MALUF, M; ROMERO, M. A sublime virtude..., op. cit; FREIRE, Maria Martha de Luna
Freire. Mulheres, mães e médicos: Discurso maternalista no Brasil. Rio de Janeiro: editora FGV, 2009.
42
GONDRA, J.G. A sementeira do porvir..., op.cit.
49
43
Não era somente no corpo das crianças, é claro, que as mazelas sociais se manifestavam. O corpo
feminino, e notadamente o corpo das mulheres egressas da escravidão ou escravizadas era dado a
conhecer por meio de abordagens e intervenções científicas que nele localizavam toda a origem da
imoralidade e atraso sociais, sintomas da reprodução da escravidão. A este respeito, ver: MACHADO,
MARIA HELENA P.T. Corpo, Gênero e Identidade no Limiar da Abolição: a história de Benedicta Maria
Albina da Ilha ou Ovídia, escrava (sudeste, 1880). Afro-Ásia, n. 42, 2011, p. 157-193.
44
A recuperação e a prevenção da delinquência infantil por meio da disciplina do trabalho, bem como o
adequado cultivo da infância segundo parâmetros médico-higiênicos, eram passos fundamentais ao
desenvolvimento nacional. Juristas, médicos e especialistas nas emergentes ciências criminais dedicavam
especial atenção à infância, como se verá em maiores detalhes no capítulo seguinte. Sobre a formação de
trabalhadores disciplinados como tarefa materna, ver comentários de Rachel Sohiet: SOIHET, Rachel. É
proibido não ser mãe. In: VAINFAS, Ronaldo (Org.). História e Sexualidade. Rio de Janeiro: Graal,
1986, p. 191-212.
45
COSTA, J.F. Ordem médica..., op. cit., p. 174
46
As íntimas implicações entre escravidão, abolição e maternidade em outros contextos atlânticos estão
demonstradas também, entre outros, em: COWLING, C. Conceiving Freedom..., op. cit.; GOLDEN,
Janet. From Breast to Bottle: A social history of Wet-Nursing in America. Columbus: Ohio State
University Press, 2001.
50
47
As amas, de fato, sintetizaram exemplarmente a ambiguidade fundante das relações íntimas e violentas
havidas no interior da escravidão. As contradições entre sua exaltação como símbolo das relações
escravistas docilizadas e os conflitos escamoteados por tal representação são discutidas em: MACHADO,
M.H.P.T. Entre dois Beneditos..., op. cit.; KOUTSOUKOS, Sandra Sofia, Amas na fotografia brasileira
da segunda metade do século XIX. Disponível em: <
http://www.studium.iar.unicamp.br/africanidades/koutsoukos/>. Acesso em: 29 mar. 2017. Não apenas no
Brasil, entretanto, as amas cumpriram o papel da representação afetiva da escravidão e de seu legado,
como bem demonstra Kimberly Wallace-Sanders em seu estudo sobre as “mammys” do sul norte-
americano: WALLACE-SANDERS, Kimberly. Mammy: a century of race, gender and souther memory.
Ann Arbor: Uniservity of Michigan Press, 2008.
48
De fato, Luiz Carlos Nunes Martins indica que as primeiras recomendações médicas a respeito da
necessidade da amamentação materna surgiam nas teses de medicina da faculdade do Rio de Janeiro
desde a década de 1840. MARTINS, Luiz Carlos Nunes. No seio do debate: amas de leite, civilização e
saber médico no Rio de Janeiro. 163f. 2006. Dissertação (Mestrado em História das Ciências da Saúde) –
Casa de Oswaldo Cruz, FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2006.
49
MARTINS, L.C.N. No seio do debate..., op. cit., p. .98
50
A crença nos “perigos” do aleitamento mercenário e notadamente das próprias amas ganhavam força no
fim do século XIX com a emergência da racionalidade médico-científica, com os discursos racialistas,
que miravam a reconstrução da nação, e a própria desagregação da escravidão. Este caldo de cultura
fomentava as campanhas pelo aleitamento materno que procuravam alertar os pais e mães das “boas
famílias” sobre a contaminação física e moral levada pelas amas escravas e egressas da escravidão ao
íntimo de seu lar e à célula de reprodução de sua família – seus filhos. Note-se, entretanto, que as
predicações médicas não foram prontamente seguidas pelo abandono efetivo do aleitamento mercenário,
tendo o amplo recurso às amas de leite se perpetuado entre as famílias abastadas e remediadas até
princípios do século XX, quando as campanhas pelo aleitamento materno seguiam vigorosas e
intimamente associadas à difusão da eugenia entre os intelectuais e médicos brasileiros. Sobre estes temas
ver: CARNEIRO, Elisabeth Ribeiro. Procura-se uma “preta com muito bom leite, prendada e
carinhosa”: uma cartografia das amas de leite na sociedade carioca (1850-1888). 2016. 419f. Tese
(Doutorado em História). Universidade de Brasília, Brasília, 2006; MACHADO, M.H.P.T. Entre dois
Beneditos..., op. cit.; STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América
Latina. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2005. Dinâmicas semelhantes foram observadas por Janet Golden no
51
“Débil ser”, o exemplar materno de mais alta qualidade, portanto, definia-se pela
sexualidade controlada, pela legitimidade de seus filhos e a adesão ao papel dócil,
doméstico e majestoso da mulher casada e rainha de seu lar. Que não se enganassem os
leitores, no entanto, acreditando que tal elevada condição estivesse ao acesso de toda a
mulher observadora dos princípios da moral burguesa: a coroa da mãe somente se
assentava sobre “cabelos de ouro” – sugestão altamente evocativa dos recortes raciais
implicados na definição da maternidade ideal. Quais mulheres da São Paulo oitocentista
poderiam atender a todos esses requisitos e personificar essa rigorosa representação?
Quais caberiam neste apertado modelo burguês e racializado da “natureza feminina”?
Certamente não era este o caso das mães dos menores tutelados e contratados à
soldada, ou ainda disputados por empregadores informais na justiça da cidade,
especialmente nas décadas finais do século XIX e nos anos iniciais do século XX.
Formando um grupo relativamente heterogêneo, composto por mulheres brancas pobres,
imigrantes, pardas e libertas, parte importante do que as identificava era a combinação
lento processo de substituição do aleitamento mercenário pelo artificial nos Estados Unidos: GOLDEN,
Janet. From Breast to Bottle…, op. cit.
51
Cf. BN-HDB – Diário de S. Paulo - As mãis, Seção de Variedades, 30.11.1877, p. 01
52
entre a acachapante pobreza e os arranjos familiares não normativos que deram a tônica
da formação social paulistana desde a Colônia, desenhando importantes continuidades
no avançar dos oitocentos52. Do ponto de vista racial, entretanto, um grupo se destaca na
barafunda mais ou menos anônima de mães pobres compulsoriamente destituídas dos
filhos engajados em serviços: o das mulheres portadoras de íntimos vínculos com
experiências pregressas de escravização. Ainda que na cidade de São Paulo a pobreza
tenha atravessado fronteiras raciais e de nacionalidade, como bem atestam as pesquisas
sobre a penúria de mulheres brancas no início do XIX e o generalizado pauperismo de
imigrantes europeias no fim do mesmo século, eram as mulheres egressas da escravidão
ou delas descendentes − identificadas como “pretas”, “pardas”, “escuras” e afins –
aquelas que mais frequentemente viam-se atingidas pela destituição de filhos
judicialmente arregimentados aos serviços de terceiros.
Esse recorte racial torna-se explícito quando avaliados a fundo os marcadores
raciais recolhidos nos autos de tutela e soldada. Nem todos referem-se às origens raciais
de menores trabalhadores ou de suas mães. Ainda assim, entre aqueles que o fazem,
destacam-se amplamente os que se referem às mulheres sós escravas ou libertas, pretas
ou pardas como mães dos menores formalmente arregimentados, bem como a menores
pretos ou pardos, ingênuos ou libertos, filhos de mulheres sós não identificadas
racialmente. Agregando-se os dados disponíveis para mães e filhos, têm-se que os
números de mulheres afrodescendentes e portadoras de estreitos vínculos com
experiências de escravização cujos filhos eram formalmente arregimentados saltam a
mais da metade de tutelas e soldadas localizadas pela pesquisa (T8 e T9, Apêndice A,
p.356-357).
De fato, como bem demonstra Lorena Telles, as mulheres libertas constituíam
uma camada que despertava especial suspeita entre a “boa sociedade” da cidade de São
Paulo, nas décadas finais do século XIX. Massivamente engajadas na prestação de
serviços domésticos de portas adentro e de portas afora, procuravam ativamente
subverter a ordem paternalista que seus empregadores – senhores de escravos ou
membros destituídos da camada senhorial – planejavam manter em vigor. Por um lado,
a frequente obrigação de ter de residir em casa dos patrões e, portanto, distante de filhos
e demais parentes tolhia a estas mulheres quaisquer possibilidades de requerer para si as
prerrogativas da maternidade doméstica encerrada no lar. Por outro, uma vez libertas
52
SAMARA, E.M. Estratégias Matrimoniais no Brasil ..., op. cit.; ______. As mulheres, o poder..., op.
cit.; KUZNESOF, E.A. A Família na Sociedade Brasileira..., op. cit.
53
53
TELLES, L.F.S. Libertas entre sobrados..., op. cit. A busca de mulheres forras por autonomia não
era, evidentemente, uma peculiaridade das libertas da cidade de São Paulo. Estudos interessantes sobre o
tema são, entre outros: SOARES, Cecília Moreira. As ganhadeiras: Mulheres e resistência negra em
Salvador no século XIX. Afro-Ásia, Salvador, n. 17, 1996, p. 57-71; COWLING, Camillia. Negociando a
liberdade: Mulheres de cor e a transição para o trabalho livre em Cuba e no Brasil (1870-1888). In:
LIBBY, Douglas Cole; FURTADO, Junia Ferreira (Org.). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e
Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006; SILVA, Maciel Henrique Carneiro da.
Pretas de honra: trabalho, cotidiano e representações de venderias e criadas no Recife (1840-1870).
2204. 299f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2004.
Scheila de Castro Faria argumenta em favor de uma compreensão social das mulheres libertas que supere
o estigma de desclassificação social e pobreza a elas comumente atribuídas pela historiografia: FARIA,
Scheila de Castro. Mulheres forras: Riqueza e estigma social. Tempo, Rio de Janeiro, n. 9, 2000, p. 65-
92.
54
Não se pode negar que os casos de mulheres libertas ou escravizadas, mães de filhos ingênuos ou
libertos, guardavam suas particularidades − a começar pelo fato de que seus filhos, não raro, enfrentavam
a ameaça da reescravização ilegal, como se verá em maiores detalhes no capítulo três. O recurso à retórica
paternalista dos afetos nutridos entre pleiteantes ao cargo de tutores ou contratantes e menores
trabalhadores, embora comum em diversos autos, é ainda mais recorrente naqueles relacionados aos filhos
de mulheres libertas. Neste sentido, a ideia da “miscigenação da pobreza”, proposta por Maria Aparecida
Papali e que procura dar conta da vulnerabilidade comum às mulheres pobres de todas as origens raciais,
estigmatizadas como mães inadequadas e, assim, igualmente expostas ao risco da perda da tutela dos
filhos, não parece de todo acertada. Esse tema será retomado ao longo da tese, notadamente no capítulo
cinco. PAPALI, M.A. Escravos, libertos e órfãos..., op. cit., p.160.
54
55
Sobre o tema do “apagamento” das mulheres empobrecidas como agentes históricos, ver: DIAS, Maria
Odila Leite da Silva. Mulheres sem História. Revista de História, São Paulo, n. 114, 1983, p. 32-45.
56
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05455, documento 6032, 1887.
55
57
Sobre os serviços domésticos como domínios por excelência da mão de obra de mulheres empobrecidas
nas cidades, ver: TELLES, L.F.S. Libertas entre sobrados..., op.cit.; SILVA, M.H.C. Pretas de
honra..., op.cit.; SOUZA, Flávia Fernandes de. Para casa de família e mais serviços: o trabalho
doméstico no Rio de Janeiro no final do século XIX. 2009. 255f. Dissertação (Mestrado em História
Social) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2009; ______. Escravas do lar:
mulheres negras e o trabalho doméstico na corte imperial. In: XAVIER, Giovana, FARIAS, Juliana
Barreto e GOMES, Flávio dos Santos (Org.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-abolição.
São Paulo: Selo Negro, 2012, pp. 244-260.
58
Papali atenta para o contraponto entre a incapacidade materna de mulheres empobrecidas e de famílias
abastadas implicitamente produzido nos autos judiciais: PAPALI, M.A. Escravos, libertos e órfãos...,
op. cit., p. 157.
56
59
FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009.
60
A circulação de crianças de famílias empobrecidas entre redes de solidariedade e criação, que implicava
a separação de pais e filhos por longos períodos, é apontada por Cláudia Fonseca em estudo sobre as
famílias populares em Porto Alegre entre a segunda e a terceira décadas do século XX. A autora chama a
atenção, neste sentido, à necessidade de atentar-se a “sistemas familiares de grupos populares com lógica
e histórias próprias”, fundados em famílias extensas e distanciados de padrões normativos burgueses. De
forma semelhante, Alessandra Zorzetto refere-se a práticas sociais de agregação social e circulação de
crianças entre famílias pobres na São Paulo colonial. Ainda que interessante, no caso de Zorzetto observa-
se que o argumento carece de certo lastro histórico, como se verá em discussões propostas à frente nesta
tese. FONSECA, Cláudia. Pais e filhos na família popular. In: D’INCAO, Maria Ângela. Amor e família
no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989, p. 95-128; ZORZETTO, Alessandra. Na roda da vida: os filhos de
criação em São Paulo colonial. In: VENÂNCIO, Renato Pinto (Ed.). Uma história social do abandono
de crianças. De Portugal ao Brasil: séculos XVIII – XX. São Paulo: Alameda, 2010, p. 99-121.
57
bairro da Cangaiba, e que segundo o solicitante vivia “em completo abandono, dias em
caza de um dias em caza de outros, sem ter uma pessoa que lhe possa dar o encino
necessario”61. Curiosamente, após ter-lhe sido concedida não apenas a tutela como
também a soldada do menor, foi na casa de sua mãe que João foi apreendido pelos
oficiais de justiça a serviço do Juízo de Órfãos – não “na casa de um”, nem “na de
outros”, mas na casa em que residia a própria Maria de tal, a “mulher relapsa” que
segundo o pleiteante abandonava o filho aos cuidados de terceiros. Em 1906, Cypriano
Serafim Rodrigues levava ao conhecimento do Juízo que a pequena Marieta, contando
nove anos de idade, de “côr parda” e filha da mulher simplesmente identificada como
Júlia, encontrava-se em sua companhia visto ter sua mãe “se retirado d’esta capital (...)
tendo-a abandonado”. A referida Júlia, acrescentava o peticionário, provavelmente teria
falecido no Rio de Janeiro, onde levava “uma vida pouco honesta”. Mais uma vez, o
Juízo aquiesceu às solicitações de sujeitos interessados em proteger as pequenas
crianças de suas “desalmadas mães” – Marieta ficaria contratada à soldada por
Rodrigues, somente podendo sair de sua companhia quando atingisse a maioridade62.
Curioso é constatar, nestes e nos demais casos envolvendo denúncias apresentadas
contra mulheres caraterizadas como mães impróprias, que aos seus delatores não se
constituía a necessidade de comprovar as acusações feitas. A infâmia destas mulheres
precedia à apresentação de provas de seus delitos ou imoralidades e mesmo as
autoridades públicas recorrentemente referiam-se a elas em termos desabonadores,
deliberando pelo afastamento de seus filhos e entregando-os a tutores considerados mais
bem equipados moral e materialmente para sua criação63. Assim, em 1903, o juiz de
órfãos determinava que a pequena Candida, de nove anos de idade, “filha da vagabunda
Margarida”, fosse formalmente tutelada pelo major Guido de Andrade64. Em 1906, o
mesmo Juízo estabelecia que Maria Benedicta, de 12 anos, filha de “mãe ébria” e pai
falecido, fosse formalmente assoldadada pelo capitão José Coelho de Souza65.
Alguns poucos homens identificados como pais sós – ou seja, desacompanhados
nos autos judiciais de menções às mães de seus filhos – tampouco eram poupados de
predicados desabonadores de sua moral e seus costumes. Descritos como despossuídos,
61
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 65, 1896.
62
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 36, 1906.
63
Conforme sinaliza Maria Aparecida Papali, os adjetivos usados para descrever mulheres solteiras,
pobres e libertas “mesclavam-se num único enunciado que parecia conter todas as informações
necessárias, dispensando maiores argumentações (...)”. PAPALI, M.A. Escravos, libertos e órfãos..., op.
cit., p. 155.
64
Cf. APESP – Juízo de órfãos, Autos de tutoria, lata C05354, documento 60, 1903.
65
Cf. APESP – Juízo de órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 35, 1906.
58
dados ao vício da bebida e aos hábitos da vagabundagem, muito longe passavam das
representações de masculinidade burguesa forjadas em torno do homem circunspecto,
provedor da família, autoridade que deveria ser internalizada pelos filhos, por
intermédio da educação materna para a garantia do comedimento e da morigeração
sociais66. Não era, decerto, uma moldura que bem enquadrava sujeitos como Jose
Antonio da Silva, pai de João da Silva, menor de 16 anos de idade que, em 1870, era
mais uma vez “preso como vagabundo dado ao roubo”. Denunciando o irremediável
caráter de João ao Juízo de Órfãos, o chefe de polícia informava que o mesmo já
houvera frequentado, por determinação judicial, a Companhia de Aprendizes
Marinheiros de Santos, e que, embora tivesse pai, este “não lhe presta a menor
protecção nem ao menor lhe dá o pao e o tecto”67. De forma semelhante, em 1891, o
juiz de órfãos da capital determinava que o menor João Arnaldo Soares, filho de João
Soares e sua finada esposa, pelo pai colocado em casa de Margarida de tal “por não ter
este residencia certa alem de ser dado ao visio da embriagues”, fosse dado à tutela de
Rafael de Divety, junto a quem aprenderia o ofício de marceneiro68. Em 1895, Sebastião
Vieira de Moraes, viúvo e pai de Pedro, de dez anos de idade, era descrito pelo alferes
da Guarda Nacional Manoel Laurindo de Oliveira e Silva, a cuja tutela informal
“entregara seu filho”, como “incapaz de crial-o e educal-o, porquanto se-da
continuamente ao vício da embriagues, e sendo paupérrimo tanto que o menor vivia em
companhia da avó”. Testemunhas interrogadas a favor da petição do alferes, que
pretendia formalizar a tutela sobre o menor, reiteravam as acusações: Sebastião Moraes
era retratado como “péssimo homem”, de “extrema pobreza”, que vivia “todos os dias
embriagado” e “sem meio de vida algum”69.
Se, ainda que em escala imensamente inferior, os adjetivos da miséria e do vício
poderiam ser compartilhados por alguns poucos homens empobrecidos, cujos filhos
órfãos de mãe viviam sob sua responsabilidade e a quem a justiça e os pleiteantes à
tutela e soldada consideravam inaptos para o exercício dos deveres do verdadeiro chefe
de família, outros vilipêndios eram reservados apenas às mulheres sós. Era
especificamente no universo de sua sexualidade “desregrada”, predicado
exclusivamente a elas atribuído, que residiam as mais cabais comprovações de sua
66
Sobre as representações de masculinidade burguesa, ver: MALUF, M; MOTT, M.L.Recônditos do
mundo feminino..., op. cit; COSTA, J.F. Ordem médica e norma familiar..., op. cit.
67
Cf. APESP – Juízo de órfãos, Autos de diligência, lata C05359, documento 32, 1876.
68
Cf. APESP – Juízo de órfãos, Autos de tutoria, lata C05457, documento 36203, 1891.
69
Cf. APESP – Juízo de órfãos, Autos de tutoria, lata C05458, documento 6312, 1895.
59
70
Note-se que a amamentação feminina, assumindo ares de tarefa materna sacralizante, distanciava-se por
completo de qualquer ideia de sexualidade – o seio era fonte de alimento, afeto e cuidados e não poderia
ser representado como signo de lubricidade. De fato, a amamentação há muito contrapunha-se à
sexualidade feminina – o que teria sido, segundo alguns autores, motivo para que a o aleitamento materno
fosse rejeitado nas famílias abastadas europeias e também brasileiras. Teorias médicas amplamente
difundidas na Europa e nas Américas, entre os séculos XVIII e XIX, afirmavam que relações sexuais
poderiam estragar o leite materno, prejudicando a nutrição do bebê e eventualmente causando sua morte.
Premidas pela necessidade de atender às exigências sexuais dos maridos e informadas ainda por ideias
que creditavam à amamentação a deformação do corpo feminino, muitas mulheres optavam pela entrega
de seus filhos aos cuidados de amas de leite. No Brasil e demais sociedades escravistas, como os Estados
Unidos, a tarefa da amamentação foi amplamente entregue às amas de leite escravizadas entre as famílias
de elite. BADINTER, E. Um amor conquistado..., op. cit.; PRIORE, M.D. Ao sul do corpo..., op. cit.;
MARTINS, L.C.N. No seio do debate..., op. cit.; CARNEIRO, M.E.R. Procura-se uma preta..., op. cit.;
MACHADO, M.H.P.T. Entre dois Beneditos..., op. cit.
71
A respeito da oposição fundamental entre a prostituta (mulher domada por seus baixos instintos e
paixões, avessa à maternidade) e a “esposa-mãe” (dona de sexualidade controlada e saneada pela
legitimidade da família), ver especialmente as considerações de Magali Engel: ENGEL, Magali.
Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São Paulo:
Brasiliense, 1988. Destaque-se, neste sentido, as observações da autora sobre o papel cumprido pela
prostituta na manutenção da família burguesa e da sexualidade saudável da “esposa-mãe”, uma vez que
eram as meretrizes que, satisfazendo as demandas da sexualidade masculina, permitiam a preservação da
sexualidade comedida da mulher burguesa.
60
72
As preocupações com a disseminação da sífilis motivaram o engajamento de muitos médicos em
campanhas pela regulamentação sanitária da atividade das prostitutas no Rio de Janeiro no século XIX.
ENGEL, M. Meretrizes e doutores..., op. cit., p. 103-135.
73
ENGEL, M. Meretrizes e doutores..., op. cit., p. 81-104.
74
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 15, 1888.
75
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de diligência, lata C05361, documento 31, 1890.
61
esta não poderia “ter a filha consigo, por viver amaziada com um soldado”76. Ainda
mais patentes são as declarações apresentadas contra Maria, mulher que, sendo
formalmente casada, vivia em adultério com outro homem. A tutela de Izabel, descrita
como “filha adulterina” dessa união consensual e contando então oito anos de idade, era
judicialmente disputada por Salvatore Mariano e sua esposa Maria Antonia Frigoli que
recorriam ao delegado do distrito da Consolação, no intuito de impedir a retirada da
menor de sua casa. Ouvindo os reclames dos suplicantes, e convencido de que “o modo
de vida de sua mãe [da menor] não offerecia garantia alguma a educação moral da
mesma”, o dito delegado fizera uso discricionário de seus poderes para retirar Izabel da
companhia de Maria e entregá-la ao casal queixoso77.
Dois casos separados por quase duas décadas, entre as vésperas e os
desdobramentos da abolição, são particularmente esclarecedores da importância que
ganhavam, naquele contexto, as imputações feitas ao caráter decaído de mulheres sós e
sua deletéria influência na formação moralmente apropriada de seus filhos
trabalhadores. Em 1884, Jose Antonio de Carvalho informava ao Juízo que tinha em sua
casa há um ano e quatro meses a órfã Porcina, que lhe fora entregue pela mãe, Rita de
tal, e a quem havia ensinado a “lêr, escrever e contar”. Ao dirigir-se ao Juízo, no
entanto, Carvalho alegava que a dita Rita pretendia “chamar a menor de volta à sua
companhia” – intento a que o peticionário se opunha fortemente “visto não só a
residência em cortiço e vida irregular da mãe, como porque a dita impubere (...) já tem
11 annos, entrando assim para a puberdade, idade essa fatal para as desvalidas de
cuidados”. A menção à chegada da puberdade, decerto, não era em vão – aludindo ao
amadurecimento sexual de Porcina, o peticionário referia-se veladamente ao temerário
exemplo que a mesma encontraria na “vida irregular” da mãe. Sendo o juiz de órfãos o
“zelador da honra das meninas desvalidas”, Carvalho solicitava que a referida
autoridade desse destino apropriado a Porcina, engajando-a como assoldada aos
serviços de terceiros78.
Anos depois, a disputa em torno dos serviços de Georgina, de 10 anos de idade,
filha de Maria Miranda e “pai incognito”, ecoava o mesmo discurso sobre as perniciosas
influências legadas aos filhos – e notadamente às filhas – pelo comportamento desviante
das mulheres sós. Em 1901, Samuel Porto, em cuja companhia a menina vivia há cerca
76
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05456, documento 8609, 1888.
77
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de apreensão, lata C05336, documento 38, 1902.
78
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 24, 1884.
62
de um ano sem que houvesse sido formalizada tutela ou contrato de soldada, queixava-
se ao Juízo das tentativas empreendidas por Maria Miranda de retirá-la de sua casa.
Georgina, alegava Porto, era “tratada como pessoa de sua familia, gozando do mesmo
conforto que os seus e recebendo a precisa educação domestica” – justamente o tipo de
educação servil a que se referia Luiz Gama. Sua mãe, contudo, vinha criando problemas
para o “generoso” tutor informal:
Ocorre agora que a mãe da referida menor, mulher da vida facil e que
presentemente vive amasiada com um soldado da praça cívica, de
nome Estevam de tal, destacado no posto policial de Santa Ephigenia,
que tenta retiral-a do seio de sua familia, sem que para isso haja
motivo justificavel. Diz Maria Miranda que deseja a filha em sua
companhia porque agora vive muito bem com o amasio e mesmo
porque já prometteu dar a menor a um sargento seu conhecido logo
que a companheira deste der á luz79
79
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05458, documento 6112, 1901.
63
80
O impulso à formalização dos arranjos de trabalho envolvendo crianças e jovens empobrecidos é
explorado em maiores detalhes nos capítulos três e quatro desta tese.
81
Sobre a noção de mulheres públicas, ver: ENGEL, M. Meretrizes e doutores..., op. cit.; RAGO, M. Do
cabaré ao lar..., op. cit.
64
Samuel Porto. Entre os anos finais do século XIX e as décadas iniciais do XX, quando
as definições em torno da honra sexual feminina – embora sujeitas a amplo debate entre
intelectuais e autoridades públicas – eram alçadas ao posto de representações elevadas
da modernidade e civilização republicanas, as referências a mulheres que por sua
sexualidade imprópria levavam seus filhos ao caminho da dissolução moral mostram-se
cada vez mais frequentes e categóricas nos autos do Juízo de Órfãos82. Especificamente
para as meninas, as mães representavam o perigo da reprodução de comportamentos
sexuais não normativos e, no limite, da prostituição. Presença sórdida, estas mulheres
comprometiam a possibilidade venturosa de que suas filhas, ainda que de maneira
subsidiária, na condição de criadas livres e disciplinadas, se adequassem à ordem das
boas famílias burguesas e à integridade da sociedade moderna e higienizada83.
As representações da incapacidade materna de mulheres empobrecidas, desse
modo, desde o princípio do século, delineavam-se como a justificativa fundamental para
a arregimentação formal de jovens e crianças como tutelados ou assoldadados.
Importante é sublinhar, porém, que as reelaborações do modelo materno acompanharam
as transformações da ordem familiar e os desenhos das dinâmicas sociais cambiantes da
segunda metade do século XIX. Chegando-se à metade dos oitocentos, as noções de
papéis familiares burgueses já circulavam entre as boas famílias imperiais, mas não
tinham, ainda, sido sistematicamente incorporadas ao funcionamento de estruturas
públicas de controle social ou de engendramento de disciplinas do trabalho livre – esta
última, perspectiva privilegiada na pesquisa que ora se apresenta84. Numa cidade
82
Sueann Caufiel demonstra as íntimas relações entre as noções de honra sexual e os ideais da
“civilização republicana”. CAUFIELD, S. Em defesa da honra.... op. cit. Com a entrada das décadas
iniciais do século XX, embora escasseiem entre os registros do Juízo de Órfãos as tutelas e contratos de
soldada formalmente constituídos, pululam ações interpostas por parentes, especialmente maridos ou
parceiros informais abandonados, em que trabalhadoras empobrecidas são acusadas de comportamentos
sexuais indecorosos e apresentadas como perigosas agentes de contaminação moral dos próprios filhos –
e especialmente das filhas.
83
Sander Gilman discute a representação imagética de prostitutas e mulheres negras na arte, na literatura
e na medicina europeias do século XIX, demonstrando que estas mulheres eram retratadas como agentes
transmissores dos vícios morais sediados em sua sexualidade desviante. Embora não se refiram a
representações visuais, as disputas envolvendo a tutela de menores trabalhadores apoiadas em denúncias
apresentadas contra a moralidade de suas mães produzem, de forma semelhante, representações
discursivas mobilizadas no âmbito das disputas judiciais que localizam no comportamento sexual
reprovável destas mulheres o perigo da degradação social. GILMAN, Sander L. Black bodies, White
bodies: Toward an Iconography of Female Sexuality in Late Nineteenth-Century Art, Medicine and
Literature. In: GATES Jr., Henry Louis (Ed.). “Race”, Writing and Difference. Chicago: University of
Chicago Press, 1985, p. 223-261.
84
Mariana Muaze aborda a divulgação dos ideais do habitus burguês por meio de manuais de educação
que circulavam entre as famílias da elite da Corte desde a metade do século XIX: MUAZE, Mariana de
Aguiar Ferreira. Dissertação. A descoberta da infância: a construção de um habitus civilizado na boa
65
massivamente povoada por mulheres pobres, como foi a São Paulo da maior parte do
século XIX, as experiências cotidianas de mulheres sós, chefes de família, eram
constantemente colocadas em xeque por normatividades alheias às suas sociabilidades e
estratégias de sobrevivência. No ápice das tensões em torno da abolição e de seus
desdobramentos, concepções revigoradas sobre a família e o devir feminino, misturadas
ao cientificismo que vicejava amplamente entre a intelectualidade brasileira da época,
eram elevadas a um novo patamar de importância. Integrando-se às narrativas do
progresso, as representações da maternidade saneada e burguesa instrumentalizaram a
operação prática de políticas nacionais de formação de um mercado de trabalho livre e
disciplinado, intimamente associadas aos desafios impostos pela abolição.
crianças expostas ocupavam o lugar de escravos nas roças e nos trabalhos domésticos. MARCÍLIO,
Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998, p. 137. De forma
semelhante, Carlos Bacellar indica que na Sorocaba colonial, vila modesta cuja economia voltava-se à
produção agrícola de abastecimento interno, os domicílios onde residiam crianças expostas contavam com
pouca ou nenhuma mão de obra escrava. BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Família e sociedade
em uma comunidade de abastecimento interno. Sorocaba nos séculos XVIII e XIX. 1995. 176f. Tese
(Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 1995.
86
As primeiras a serem instaladas foram as de Salvador e Rio de Janeiro em 1726 e 1738,
respectivamente VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias abandonadas..., op. cit.; RUSSEL-WOOD, A.J.R.
Fidalgos e filantropos: a Santa Casa de Misericórdia na Bahia, 1550-1755. Brasília: UnB, 1981. No que
diz respeito às rodas no Brasil, da Colônia ao Império, e de suas matrizes portuguesas ver, também:
VENANCIO, R.P. Uma história social do abandono..., op. cit.
87
MESGRAVIS, Laima. A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (1599?-1884): contribuição ao
estudo da assistência social no Brasil. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1976 (Coleção Ciências
Humanas, 3). Especificamente sobre a roda de expostos de São Paulo, ver também: CARVALHO. Vera
Maria de. Girando em torno da roda: a Misericórdia de São Paulo e o atendimento às Crianças
Expostas, 1897-1951. 272f. 1996. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996; SILVA, Maria Beatriz de
Oliveira e. A irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e a assistência aos expostos:
recolher, salvar e educar (1896-1944). 2010. 119f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Pontifícia
Universidade Católica, São Paulo, 2010.
Sobre a roda dos expostos da cidade de São Paulo, especificamente, ver: Maria Beatriz, girando na roda.
88
MESGRAVIS, L. A Santa Casa de Misericórdia..., op. cit., p. 178.
89
VENANCIO, R.P. Famílias abandonadas..., op. cit. p. 85-95.
67
90
MARCÍLIO, M.L. História social da criança..., op. cit., p. 259-260. Neste sentido, a autora contrapõe-
se à interpretação de Laima Mesgravis para quem o principal motivo da exposição de menores em São
Paulo após a abertura da roda foi a proliferação da prostituição entre as mulheres da cidade empobrecida.
MESGRAVIS, L. A Santa Casa de Misericórdia..., op. cit., p. 102.
91
MARCÍLIO, M.L. História social da criança..., op. cit., p. 178-179. A autora indica, no entanto, que
de acordo com alvará régio expedido em 1755, os enjeitados depositados nas rodas seriam considerados
livres, de modo que a prática destes senhores se tornava não apenas cruel, mas também irregular.
92
É o que indica Miriam Moreira Leite, em textos preciosos, a partir das leituras de relatos de viajantes
que observaram os usos e costumes relacionados à roda dos expostos no Brasil do XIX: LEITE, Miriam
Lifchtiz Moreira. O óbvio e o contraditório da roda. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História da criança
no Brasil. São Paulo: Contexto, 1996, pp. 98-112; LEITE, Miriam Lifchtiz Moreira. Livros de viagem
(1803-1900). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997, pp. 143-159.
93
Importante exceção é feita a Renato Pinto Venâncio, que em seu artigo “Maternidade negada” explora a
exposição de crianças nas rodas dos expostos a partir das experiências e circunstâncias sociais de suas
mães: VENÂNCIO, Renato Pinto. Maternidade negada. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2001.
68
A sensível mensagem deixada por uma mãe junto ao filho deitado à roda em 1901
ilustra, de forma ainda mais eloquente, as dificuldades ocultadas pela imagem
consolidada da “mulher desalmada” que abandonava os filhos à morte provável nas
rodas de expostos:
A infelicidade de eu ser uma triste viuva sem familia e sem ninguém,
o meu marido falleceu dia 07 de Fevereiro de 1901 este menino
nasceu dia 16 de Fevereiro de 1901, não tenho nada n’este mundo, só
tenho Deus por mim meu Protetor, esse menino chama-se Frederico
de Almeida. Baptizado na Igreja da Consolação (...) seu Pai já falleceu
e eu sou uma pobre que ando neste mundo so tenho Deus por mim97.
94
A roda dos expostos da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo esteve em funcionamento até meados
do século XX. Muitas das crianças ali depositadas eram, depois de certa idade, encaminhadas aos
serviços: KUHLMANN Jr, Moysés; ROCHA, José Fernando Telles da. Educação no Asilo dos Expostos
na Santa Casa em São Paulo: 1896-1950. Cadernos de Pesquisa, v.36, n.129, 2006, p.597-617.
95
O Museu da Santa Casa de Misericórdia apenas dispõe, para consulta, dos livros de matrícula ou
assentamento de órfãos relativos aos seguintes anos: 1876-1894, 1899-1901, 1907-1916. Renato Pinto
Venâncio refere-se aos bilhetes que acompanhavam os pequenos expostos na roda de Salvador, tabulando
as alegações neles apresentadas para o abandono dos menores: VENÂNCIO, R.P. Famílias
abandonadas..., op. cit., p. 75-85.
96
Cf. SCM SP – Livro de Assentamento de Órfãos 1876-1894, 24.10.1880. Algumas crianças, expostas
acompanhadas de ricos enxovais, indicam que não apenas as mulheres empobrecidas, mas também
aquelas abastadas, porém constrangidas pela ilegitimidade dos filhos, entregavam-nos à roda. Estes
exemplos, contudo, são raros nos livros de matrícula de expostos a que a presente pesquisa teve acesso.
97
Cf. SCM SP – Livro de Matrícula de Órfãos 1899-1901, 03.06.1901.
69
98
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 57, 1896.
99
Possibilidade sinalizada, como adiantado, pelos estudos de Zorzetto e Fonseca. Observe-se, contudo,
que Fonseca destaca o fato de que crianças envolvidas em práticas circulares de agregação social eram,
com frequência, exploradas como trabalhadoras. FONSECA, C. Pais e filhos nas famílias..., op. cit;
ZORZETTO, A. Na roda da vida..., op. cit.
70
100
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05358, documento 26, 1909.
101
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05455, documento 6207, 1886.
71
de Amelie Vaudieu, residente na capital102. Ao longo das décadas finais do século XIX
e nos anos iniciais do século XX, quando a pobreza urbana paulistana passava por
verdadeira escalada com o influxo de imigrantes e libertos depauperados, as solicitações
de tutela encaminhadas por mães trabalhadoras e empobrecidas repetiram-se com
alguma regularidade103. Dirigidas ao Juízo de Órfãos, passagens de suas petições
explicitam as mazelas que lhes obrigavam a encaminhar os rebentos à tutela de
terceiros, abrindo mão dos cuidados sobre eles: “sendo pobre e querendo de algum
modo amparar seos filhos”; “[suas] posses não lhe permittem dar educação compatível
[ao filho]”; “não podendo tratar de seu filho por se achar na miseria”; “pelo seu estado
precareo de fortuna e saude não podia educar e sustentar sua filha”104.
Alternativamente, há petições de tutela encaminhadas por sujeitos que eram
também empregadores das mães dos menores pleiteados. Destes documentos,
depreende-se que mulheres empregadas como criadas domésticas arranjavam junto a
seus patrões a formalização da tutela dos filhos justamente como forma de mantê-los
próximos, evitando que fossem formal ou informalmente empregados em outras casas.
Assim, a tutela da menor Angela Thomasia, de 13 anos de idade e filha da italiana
Modesta Simoneto, era solicitada em 1892 pelo italiano Patrício Zarela, “em cuja
companhia esta a mãe da mesma orphan”105. De forma semelhante, em 1890, José
Joaquim Guedes, lavrador morador da freguesia de Nossa Senhora do Ó, peticionava
por sua nomeação como tutor de Bento, de 11 anos de idade, filho de Joanna, a quem
alegava ter criado até então, “attendendo á mãi do mesmo menor assim como todos os
irmãos deste [que] estão em companhia do supplicante”106. Passados apenas dois anos
da abolição, é de se imaginar que, ainda que não haja qualquer marcador racial atribuído
a Joanna e seus filhos na petição, os mesmos tivessem anteriormente vivido em
companhia de Guedes como seus escravos. Permanecer em sua companhia, deste modo,
seria uma estratégia para evitar o esfacelamento dos vínculos entre mãe e filhos
egressos da escravidão no pós-emancipação. Assombradas pelos estereótipos aviltantes
102
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05458, documento 6035, 1899.
103
Sobre a pobreza urbana em São Paulo e suas diversas origens, ver: SANTOS, C.J.F. Nem tudo era
italiano...op. cit.; FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São
Paulo: Edusp, 2001.
104
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria: lata C05455, documento 8916, 1885; lataC05455,
documento 8919, 1885; lata C05458, documento 6085, 1901; lata C05459, documento 6275, 1905.
Algumas solicitações encaminhadas ao Juízo de Órfãos partiam de mães de menores “incorrigíveis”, a
quem se solicitava que as autoridades públicas desse apropriado encaminhamento – nos Arsenais da
Marinha, por exemplo - para evitar “maiores males” no futuro.
105
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05457, documento 6038, 1892.
106
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05456, documento 8620, 1890.
72
107
A respeito das origens legais das tutelas e soldadas, bem como de suas implicações para a
arregimentação do trabalho de menores de idade, ver a discussão proposta no capítulo seguinte desta tese.
73
Ephigenia Maria solicitava acesso aos valores arrecadados com a prestação de serviços
de sua filha Eulalia, de 12 anos de idade e contratada à soldada pelos ex-senhores da
mãe. Os motivos que levavam Ephigenia a solicitar o levantamento da poupança, em
sua banalidade, informam o alto grau de precariedade econômica de famílias como a
sua: estando Eulalia “gravemente enferma”, sua mãe encontrava-se “sem meios para
tratal-a, achando-se a supplicante em estado de penúria, tambem sem recurso algum
para socorrer sua filha”108. Situação semelhante fora a de Gabriella Maria da
Conceição que, em 1892, recorrera ao Juízo para levantar a poupança das soldadas da
filha Benedicta, de 14 anos, e com tal quantia sanar “a necessidade urgente de prover o
pagamento das despezas que originou o fallecimento da filha”, ocorrido no dia
anterior109.
Outras solicitações encaminhadas ao Juízo pelas mães igualmente espelhavam a
importância assumida pelos filhos menores de idade na composição dos orçamentos
domésticos de famílias chefiadas por mulheres sós. Em 1905, Maria Concha requeria ao
Juízo que o filho Rodolpho, de 13 anos de idade e residindo no Rio de Janeiro com o
pai, “homem de péssimos costumes, prejudicial companhia ao filho”, fosse apreendido e
levado de volta à capital do estado, pois “por ser muito pobre necessita tel-o em sua
companhia para ajudar no custeio da casa”110. A relevância da participação econômica
dos filhos das famílias empobrecidas e chefiadas por mulheres, entretanto, torna-se
ainda mais explícita diante da enorme frequência com que arranjos informais de aluguel
de serviços de crianças e jovens saltam das páginas dos autos do Juízo de Órfãos,
sempre trazidas ao registro público por disputas e negociações cotidianas havidas entre
mães e empregadores que se enfrentavam por motivos variados: maus-tratos e
exploração infligidos às crianças na prestação de serviços, fuga de menores
trabalhadores, desejo das mães de retomar os filhos à sua companhia. De sua vasta
recorrência, percebe-se que, ainda que eventualmente não trouxessem às mães dos
pequenos trabalhadores parcos, porém vitais rendimentos, arranjos informais de
serviços ao menos poupavam-lhe despesas com as quais tais mulheres não poderiam
arcar. Essas modalidades de agenciamento de mão de obra, é necessário pontuar,
diferenciavam-se das tradicionais práticas de agregação social de filhos de criação por
108
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 42, 1891.
109
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de petição, lata C05429, documento 11108, 1892.
110
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de apreensão, lata C05336, documento 53, 1905.
74
111
Ressalte-se que, apesar de corriqueiramente empregadas como forma de obtenção de mão de obra de
menores empobrecidos, as práticas da adoção de “filhos de criação” eram revestidas da legitimidade da
caridade e da “agregação familiar”, suprimindo de suas narrativas a figura materna original.
112
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de requerimento, lata C05445, documento 24, 1854.
113
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de diligência, lata C05360, documento 2, 1877.
75
114
Cf. APESP – Tribunal de Justiça de São Paulo, Contrato a soldada, lote 201006004064, 1887.
115
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05457, documento 6198, 1891.
76
116
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de apreensão, lata C05336, documento 32, 1901.
117
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata c05358, documento 43, 1892.
77
Julio da Fonseca e esclarecia acreditar que, ainda que os vencimentos maiores não
pudessem compor seu orçamento familiar, o referido “offerecia maior soldada e mais
garanta para a mesma sua filha”. Não obstante, a reação do curador-geral de órfãos
designado para analisar a solicitação foi de suspeita – primeiro solicitou que a menor
fosse depositada em casa de terceiros, de modo a “acautelar as seduções de sua mãe”, e
só então aquiesceu ao pedido da soldada formal que, de resto, interessava imensamente
ao contratante.
Sobre mulheres como Benedicta, Maria, Escolástica ou Germana, portanto,
pesavam estereótipos que opunham dúvidas mesmo sobre aqueles que, aos olhos da
época, seriam os mais insuspeitos artifícios para gerir suas famílias – nem mesmo o
recuso a um expediente juridicamente legitimado, que beneficiava aos contratantes e
não trazia proventos que aliviassem a pobreza imediata das famílias dos menores
trabalhadores passava incólume. Certamente, como demonstrado anteriormente, pesava
sobre este conjunto de mulheres pobres e chefes de família um importante recorte racial
– grande parte de mulheres enquadradas nas formas da “mãe imprópria” eram egressas
da escravidão ou identificadas como “pretas” e “pardas”. Em circunstâncias de
incontornável pobreza, como eram as destas mulheres e seus filhos, minorar os
marcadores raciais com a ascensão social, e, deste modo, adquirir prerrogativas das
“mulheres brancas de elite” era projeto inviável118. Além das implicações raciais,
indisfarçáveis, o estatuto de feminilidade destas mulheres era amplamente afetado,
como se procurou demonstrar até aqui, pela ilegitimidade de seus filhos e a
inconformidade de suas famílias aos modelos normativos vigentes; no limite, além de
sua raça, era a licenciosidade de suas relações e de sua vida íntima que, tolhendo-lhe as
118
Este é um retrato social diverso daquele desenhado por Scheila Faria sobre as libertas “ricamente
ataviadas e cheias de joias” do Brasil escravista. Note-se, porém, que a mesma autora sublinha que, a
despeito de seus bem-sucedidos empreendimentos, estas mulheres jamais desfrutaram de prestígio e
reconhecimento social fora de seus círculos de influência racialmente delimitados (tanto à sua época,
observa Faria, quanto na produção historiográfica a seu respeito). A trajetória do “mulato” Antônio
Rebouças, retraçada por Keila Grinberg, igualmente ilustra a persistência dos estigmas raciais que
pesavam mesmo sobre uma próspera figura pública – alguém que, ademais, alinhava-se
empedernidamente à defesa da escravidão com base no princípio do direito à propriedade. Num outro
cenário, a natureza móvel e ao mesmo tempo resiliente das classificações raciais é discutida por Martha
Hodes a partir do caso de uma mulher branca norte-americana empobrecida e sua ascensão social como
“mulher de cor”, esposa de um capitão negro no Caribe no século XIX. FARIA, S.C. Mulheres forras...,
op. cit; GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: Cidadania, escravidão e direito civil no tempo de
Antonio Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; HODES, Martha. The Sea Captain’s
Wife: A True Story of Love, Race & War in the Nineteenth Century. New York: W.W. Norton and
Company, 2006.
78
a boa paternidade, afinal de contas, tinham suas normas. Entre 1888 e 1890, desenrolou-
se a disputa pela tutela de Benedicto, menino pardo que no ano da abolição contava 13
anos de idade122. Filho natural de Joana Maria da Conceição e Americo Cezar, furriel
reformado, Benedicto nascera “no tempo em que os pais viviam juntos”, e
aparentemente seguira vivendo somente em companhia da mãe. Quando José Maria de
Moraes Calabria, que alegava já conhecer o menino e ter-lhe dispensado “alguma
proteção”, solicitou ao Juízo a contratação dos seus serviços, comprometendo-se a
educá-lo e pagar-lhe soldada mensal de oito mil réis, não foi Joanna, mas sim Americo,
quem respondeu ao pleito. Afirmando ter sempre dispensado “cuidados de verdadeiro
pai” ao menino, tendo-lhe a todo o momento, considerado como “seu filho natural”,
Americo Cezar solicitava ao Juízo ser nomeado seu tutor. Dada a fragilidade do vínculo
que dizia nutrir com Benedicto, sobre o qual pesavam a ilegitimidade e a distância que
marcavam sua relação, o pai se precaveu das maneiras que pôde. Poucos dias antes de
apresentar ao Juízo a petição de tutela, fez a doação de “uma pequena casa coberta de
telhas” situada em Pindamonhangaba, no valor de 200 mil réis, em partes iguais a
Benedicto e Joanna – o pai ideal, além de bom provedor, cioso das necessidades
materiais de sua família era também, segundo as representações burguesas, um
proprietário. Empenhando ainda mais esforços, Américo Cezar anexava ao processo
uma carta em que reconhecia a paternidade de Benedicto, bem como o depoimento de
diversas testemunhas – todos homens, todos de seu convívio social e sujeitos de nada
nobre extração social – que confirmavam, uma após a outra, saberem que o menor era
mesmo seu filho.
Nada disso parecia suficiente, entretanto, ao curador-geral de órfãos, que emitindo
parecer expressava-se da seguinte maneira:
O suppe (...) não prova regularmente que é pae do orphão de que se
trata: conquanto, com a doação de (...) mostre que quis beneficial-o,
não está em condições de ser seu tutor, não se comprometendo por
qualquer soldada, sendo que o suppe (...) que pedia a nomeação de
tutor, offerecia a soldada mensal de 8$ e, por informação que tenho, o
mesmo orphão, antes das presentes diligencias, estava ganhando
salario.
122
Cf. APESP – Tribunal de Justiça de São Paulo, lote 201007000520, Contrato a soldada, 1888-1890.
80
123
Referindo-se à teoria feminista, Patricia Hill Collins sinaliza a necessidade de que as reflexões sobre a
maternidade e suas práticas sejam interseccionais, contemplando, deste modo, modos particulares de ser
mãe e cuidar dos filhos intimamente associados a recortes de raça e classe. HILL COLLINS, Patricia.
Shifting the center: race, class and feminist theorizing about motherhood. In: GLENN, Evelyn N.;
CHANG, Grace; FORCEY, Linda R. Mothering: ideology, experience and agency. New York:
Routledge, 1994, p. 371-378.
81
necessariamente sob o seu teto. Escolher onde e com quem os filhos viveriam, manter
com eles contato e ter alguma espécie de arbítrio sobre seu destino, uma vez entregues
ao serviço de terceiros, era a autonomia materna possível num cenário de ampliada
pauperização, no qual famílias inteiras, grandes ou pequenas, eram feitas de
trabalhadores124.
Esta parecia ser a expectativa de mulheres como Francisca de Assis. Mãe do
pardo José Antonio de Assis, seu filho natural de 12 anos de idade, em outubro de 1856
ela peticionou ao juiz de órfãos por providências a respeito da falta de notícias do
menino. Aprendiz de marceneiro empregado pelo valor de 200 réis por dia de trabalho,
o menor fora levado em janeiro por seu mestre de ofício para a cidade de Mogi das
Cruzes, com autorização de Francisca. Na queixa apresentada à justiça, no entanto, a
mãe reclamava não ter desde então recebido as remessas do salário do filho e tampouco
quaisquer notícias do menor125. Quase cinco décadas depois, em 1903, Maria Alves
Carencio reclamava que sua filha de nome Julieta, por ela alugada para trabalhar a
serviço de Candido da Silva Medeiros, fora por ele levada ao Estado de Santa Catarina,
tornando-se impossível para a mãe ter notícias do estado em que se encontrava a
menina126.
Ser mãe e ao mesmo tempo só, pobre e, adicionalmente, como em tantos casos,
liberta, “preta” ou “parda”, implicava estabelecer vínculos que, mesmo ameaçados pela
distância, pudessem mostrar-se resilientes. Esta parece ter sido a força motriz de
relações entre mães e filhos trabalhadores na cidade, por grande parte do século XIX e
mesmo no início do século XX127. Roza de Jesus, “parda solteira” e forra, tinha em
1856 quatro filhos vivos – e, possivelmente, um ou mais falecidos. Prestando
esclarecimentos ao Juízo por ocasião da solicitação da tutela de sua filha mais nova por
uma mulher francesa, que pretendia partir para a Europa levando a pequena em sua
companhia, Roza declarou
124
Embora não se trate de um estudo especificamente dedicado ao tema da maternidade na diáspora, ao
tratar da trajetória de deslocamentos atlânticos de Rosalie e sua família entre São Domingos, Cuba e o sul
dos Estados Unidos em busca da emancipação, o artigo de Scott e Hébrard alude às fraturas e também à
resiliência das relações entre mães e filhos no contexto da escravidão e da Abolição. SCOTT, Rebecca J;
HÉBRARD, Jean M. Rosalie Nação Poulard: liberdade, direito e dignidade na era da revolução haitiana.
Afro-Ásia, n. 46, 2012, p. 61-95.
125
Cf. Autos de notificação, lata C05419, documento 9440, 1956 – Juízo de Órfãos, APESP.
126
Cf. Autos de petição, lata C05429, documento 10788, 1903 – Juízo de Órfãos, APESP.
127
O decreto nº 181 de 24 de janeiro de 1890, o primeiro dispositivo legal a regulamentar o casamento
civil, reconhecia apenas às mulheres que houvessem sido legitimamente casadas o direito à tutela dos
filhos. Para Maria Aparecida Papali, tais disposições tornaram ainda mais dificultoso o acesso de
mulheres solteiras e empobrecidas à tutela de seus filhos – antes regulada pelas disposições originárias
das Ordenações Filipinas. PAPALI, Maria Aparecida. A legislação de 1890..., op. cit.
82
(...) que quando ainda captiva libertarão por ella na pia o seo filho de
nome Joaquim que terá quinze annos de idade, mora em companhia
della respondente (...) que depois que ella respondente libertou-se teve
diversos filhos dos quais existem tres que são Anna de cuazi nove
annos que esta na casa de um francés, tinureiro morador no Acu. Paula
de mais de tres annos, que vive na companhia de Rosie Vaudieu. João
de hum anno que está com ella respondente. (...) seu filho Joaquim
aprende o officio de sapateiro e ganha o jornal de duzentos e quarenta
reis, que serve para pagar o aluguel da casa em que morão. Nada mais
disse e nem lhe foi perguntado128.
128
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05453, documento 10255, 1856.
129
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutela, lata C05453, documento 12396, 1856.
130
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de diligência, lata C05361, documento 6049, 1887.
83
condições de vida e trabalho. Estavam em jogo, além das noções mais elementares de
liberdade, grandes questões envolvendo a consolidação dos protocolos do trabalho livre
que seguiriam se afirmando, ao longo do século XX: as lógicas do assalariamento, o
controle do trabalhador, os direitos e deveres contratualmente previstos131.
Todavia, o solo fundamental, sobre o qual as transformações do trabalho livre de
menores de idade e suas mães deitavam raízes, sedimentara-se na cidade de São Paulo
desde há muitas décadas. Era apoiado na vulnerabilidade social de famílias pobres
chefiadas por mulheres que o recrutamento de mão de obra informal de crianças e
jovens se estabelecera, ao longo do século XIX. Era também arrimada na fragilidade
dessas famílias, acrescida de novos discursos sobre a “natureza feminina”, a
normatividade burguesa, as doenças, as contaminações e os atrasos da escravidão, bem
como das agitações sociais causadas pela abolição, que a arregimentação de menores de
idade se transportava às esferas da formalidade. Nas páginas dos autos do Juízo de
Órfãos, era a palavra de autoridades públicas, tutores e contratantes que primeiro se
anunciava – domar e silenciar os modos de vida e as agências de mãe empobrecidas e
seus filhos era seu interesse, parte de um projeto nacional de amplas proporções com
vistas à modernização social e à ordenação do mundo do trabalho. Às mulheres e aos
menores de idade, sujeitos cujas palavras e visões de mundo escamoteiam-se nas fontes,
que as atenções desta tese são dedicadas.
131
Sobre a elaboração dos conceitos fundamentais à formação do mercado de trabalho livre, ver:
STEINFELD, Robert J. The invention of free labor. The employment relation in English & American
law and culture, 1350-1870. Chappel Hill: The University of North Carolina Press, 1991.
84
Capítulo 2
Disputar a maternidade
Maria era uma mulher liberta vivendo na cidade de São Paulo, em fins de 1875.
Como ocorria a tantas forras que adquiriam a liberdade com pecúlios arduamente
amealhados ou compromissos de prestação de serviços por longos períodos, não era
apenas a sua própria libertação que consumia seus planos e economias. Para completar
seu projeto de emancipação, Maria precisava ainda libertar seu filho, Paulo, de cerca de
dez anos de idade, escravizado a José Gonçalves da Cunha. Para comprar a alforria de
Paulo, sua mãe mobilizara esforços variados: poupara 200 mil réis, fruto de seu
trabalho, e emprestara quantia igual à Dona Luiza Emilia Galvão de Moura Lacerda,
que assim se tornava sua credora e fiadora. Os 400 mil réis acumulados com dívida e
poupança foram entregues ao proprietário do filho, acompanhados do compromisso
adicional de reembolsar-lhe ainda o montante de 1 conto e 100 mil réis, “entrando com
as quantias no prazo de um ano”. Não sendo capaz de quitar a dívida – soma
incomumente alta para a alforria de uma criança de 10 anos –, era Dona Luiza Emilia
Lacerda quem compareceria com os pagamentos devidos a José Gonçalves da Cunha,
sendo recompensada por Maria com a prestação de seus serviços arranjados num futuro
contrato1.
Trocando em miúdos, para comprar a alforria do filho, Maria comprometera-se
com uma dívida que, repartida em quinhões iguais ao longo do ano que teria para quitá-
la, corresponderia a parcelas mensais de 125 mil réis – valor muito superior àquele
atribuído aos salários de mulheres libertas empregadas nos serviços domésticos na
cidade, no fim do século XIX2. Imagine-se que, a tais parcelas, somavam-se ainda as
1
PCNC, Livro 85, F27, 1875. Como argumento Mara Lúcia Mott, crianças escravizadas eram
reconhecidamente bens de valor inferior aos adultos, por este motivo compondo, frequentemente, planteis
de pequenos e menos abonados proprietários. Sobre o valor de compra e venda e da alforria das crianças
escravizadas, pode-se tomar como medida de comparação o valor de indenização estabelecido pela
própria Lei 2.040, qual fosse o de 600 mil réis para ingênuos que tivessem completado oito anos de idade.
Ao tratar dos preços das alforrias na cidade de São Paulo entre 1871 e 1888 (sem discriminar o valor
atribuído a crianças), Enidelce Bertin indica que os preços mais altos eram praticados para “homens
crioulos”, cujas alforrias custavam, em média, um conto de réis. MOTT, Maria Lúcia de Barros. Ser mãe:
a escrava em face do aborto e do infanticídio. Revista História, São Paulo, n. 120, 1989, p.85-96;
BERTIN, Enidelce. Alforrias na São Paulo do século XIX: liberdade e dominação. São Paulo:
Humanitas, 2004, p. 96.
2
O Relatório da Província de 1886, citado por Lorena Feres da Silva Telles, apontava que os salários de
empregados domésticos e cozinheiros deveriam variar entre 20 e 40 mil réis e entre 25 e 60 mil réis,
respectivamente. TELLES, Lorena Feres da Silva. Libertas entre sobrados: Mulheres negras e trabalho
doméstico em São Paulo (1880-1920). São Paulo: Alameda Editorial, 2014, p. 121.
85
3
Em pesquisa anterior, acerca de contratos de locação de serviços celebrados na cidade de São Paulo
entre 1830 e 1888, compilei os salários atribuídos aos serviços de mulheres libertandas e constatei que a
maior parte deles se situava na faixa entre 10 e 19 mil réis mensais. ARIZA, Marília Bueno de Araújo. O
ofício da liberdade: libertandos locadores de serviços em São Paulo e Campinas (1830-1888). São Paulo:
Alameda Editorial, 2014, p. 179.
4
As dinâmicas relativas ao agenciamento do trabalho de libertandos, via contratos de locação de serviços,
são mais profundamente analisadas em: ARIZA, M.B.A. O ofício da liberdade..., op. cit.
5
No caso da historiografia sobre os Estados Unidos e o Caribe (sobretudo em sua porção britânica), pode-
se dizer que os estudos dedicados às intersecções entre escravidão e maternidade há algum tempo vêm
constituindo importante acúmulo. Os trabalhos de Jennifer Morgan, Kimberly Wallace-Sanders e Mary
Jenkins Schwartz, entre diversos outros, são bons exemplos da diversidade desta produção: MORGAN,
Jennifer L. Laboring Women: reproduction and Gender in New World Slavery. Philadelphia: University
of Pennsylvania Press, 2004; WALLACE-SANDERS, Kimberly. Mammy: a century of race, gender and
souther memory. Ann Arbor: Uniservity of Michigan Press, 2008; SCHWARTZ, Marie Jenkins. Birthing
a Slave: Motherhood and Medicine in the Antebellum South. Cambridge: Harvard University Press,
2009.
6
Como afirmado anteriormente, os estudos sobre “reprodução escrava” – i.e., índices de natalidade e
práticas de maternidade entre mulheres cativas – ainda são escassos no Brasil. Não obstante, é
amplamente aceita a noção de que, por conta dos baixos índices de natalidade, o crescimento vegetativo
entre os plantéis brasileiros era negativo, de modo que a população escrava dependia, para sua
reprodução, do influxo de novos cativos trazidos ao Império pelo tráfico. Robert Slenes argumenta, no
entanto, que os impedimentos à reprodução de plantéis em território brasileiro deviam-se mais aos altos
86
índices de mortalidade infantil – derivados de alimentação e cuidados de saúde deficientes – do que aos
baixos índices de fertilidade das mulheres escravizadas. De fato, segundo o autor, estes eram apenas um
pouco menores do que aqueles verificados entre a população livre. SLENES, Robert Wayne. The
demography and economics of Brazilian slavery, 1850-1888. Stanford: Stanford University, 1976.
7
BERTIN, Enidelce. Uma “preta de caráter feroz” e a resistência ao projeto de emancipação. In:
MACHADO, Maria Helena P.T.; CASTILHO, Celso Thomas (Org). Tornando-se livre: Agentes
históricos e lutas sociais no processo de abolição. São Paulo: Edusp, 2015, p. 129-142.
8
O trabalho de Camillia Cowling dimensiona a participação de mulheres escravizadas e libertas nos
processos de abolição e seus desdobramentos no Rio de Janeiro e em Havana: COWLING, Camillia.
Conceiving Freedom: Women of Color, Gender and the Abolition of Slavery in Havana and Rio de
Janeiro. Chapel Hill, NC: The University of North Carolina Press, 2013.
87
tutelas e soldadas, expedientes úteis para a continuidade de seu domínio sobre ao menos
parte da mão de obra. Apoiando-se, novamente, nas representações das mulheres
escravizadas como mães inapropriadas – estigma reservado amplamente às mulheres
empobrecidas, como visto no capítulo anterior, mas carregado de tons ainda mais fortes
no caso das mulheres egressas da escravidão – ex-senhores agora pleiteantes à tutela e
soldada reclamavam para si o direito de educar o trabalhador disciplinado do amanhã.
Sobre a plataforma da maternidade burguesa, também as mulheres escravizadas se
apoiavam ao reclamar a tutela dos filhos, engendrando uma batalha de representações
que colocava em disputa o destino de famílias egressas da escravidão no pós-abolição e
o controle da mão de obra livre.
9
Questões importantes sobre os desdobramentos da abolição foram levantadas em: MATTOS, Hebe;
RIOS, Ana Lugão. O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas. Topoi, v. 5, Rio de
Janeiro, p. 170-198, 2004. O volume organizado por Maria Helena Machado e Celso Castilho, embora
não se atenha especificamente a questões de gênero no pós-emancipação, é uma recente e importante
referência que avança consideravelmente neste sentido: MACHADO, M.H.P.T; CASTILHO, C.T.
Tornando-se livre..., op.cit. Numa perspectiva internacional e atlântica, um estudo de referência sobre o
tema do pós-emancipação é: COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca J. Beyond
slavery: explorations of race, labor and citizenship in postemancipation societies. Chapel Hill: University
of North Carolina Press, 2000.
10
APESP – Juízo de Órfãos, Autos de liberdade, lata C05355, documento 98, 1879. Embora os contratos
de locação tenham surgido na década de 1830 como expediente de controle e arregimentação do trabalho
livre, notadamente de imigrantes engajados na lavoura, na cidade de São Paulo seu uso foi disseminado
como mecanismo de obtenção de alforrias, especialmente a partir da década de 1870. Henrique Espada
Lima pioneiramente abordou o tema da utilização de contratos de locação de serviços como expedientes
de alforria e, ao mesmo tempo, de na cidade de Desterro: ARIZA, M.B.A. O ofício da liberdade..., op. cit;
LIMA, Henrique Espada. Trabalho e lei para os libertos de Santa Catarina no século XIX: arranjos e
contratos entre a autonomia e a domesticidade. Cadernos AEL, Campinas, v. 14, n. 26, 2009.
88
11
Aqui o peticionário referia-se às disposições sobre a permanência de ingênuos em poder dos
proprietários de suas mães até os 21 anos de idade. Os menores poderiam ser remidos dos serviços
devidos ao atingirem oito anos, mediante indenização oferecida pelo Estado aos senhores. Cf. Lei nº
2.040, de 28 de setembro de 1871. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM2040.htm>. Acesso em: 17 abr. 2017.
12
Entre as libertandas locadoras de serviços na cidade de São Paulo, predominavam aquelas engajadas
em serviços domésticos. Nestes e nos demais casos, os arranjos de locação, por definição, não previam a
remuneração dos serviços prestados por libertandos, uma vez que os trabalhadores deveriam indenizar os
contratantes, seus credores, as despesas realizadas com a compra de suas manumissões. ARIZA, M.B.A.
O ofício da liberdade..., op.cit.
13
Este padrão pode ser observado também nas negociações de alforria descritas por Cowling e ocorridas
no Rio de Janeiro e em Havana: COWLING, Camillia. Conceiving freedom..., op.cit.
14
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de liberdade, lata C05356, documento 04, 1886. Sobre os fundos
de emancipação, que privilegiavam a libertação de mulheres com filhos, ver o artigo de Camillia Cowling
e Celso Castilho: CASTILHO, Celso T.; COWLING, Camillia. Bancando a liberdade, popularizando a
política: abolicionismo e fundos locais de emancipação na década de 1880 no Brasil. Afro-Ásia,
Salvador, n. 47, p. 161-197, 2013.
89
15
Esta prerrogativa das libertas mães de ingênuos menores de oito anos de idade era prevista no artigo 1º,
parágrafo 4º da referida lei. Outra possibilidade para a remissão dos serviços era a indenização pecuniária
do senhor, prevista pelo parágrafo 2º do mesmo artigo. Cf. Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM2040.htm>. Acesso em: 17 abr. 2017.
16
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 21, 1886.
17
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de pecúlio, lata C05422, documento 44, 1887.
18
Sobre práticas de alforria em perspectiva atlântica e sua característica e importância no caso da
escravidão brasileira, ver: BRANA-SHUTE, Rosemary; SPARKS, Randy J. Paths to Freedom:
Manumission in the Atlantic World. Columbia: South Carolina University Press, 2009.
19
Esta classificação é proposta por Enidelce Bertin em seu supramencionado trabalho a respeito das
alforrias em São Paulo. Sem embargo, práticas equivalentes de alforria foram documentadas e estudadas
em diversas outras localidades. Os estudos sobre alforria, de fato, têm recebido especial atenção dos
historiadores nacionais nas últimas décadas. Entre as tendências interpretativas por eles delineadas, duas
opõem-se frontalmente: aquela que tende a considerar as manumissões como concessões e instrumentos
exclusivos de controle senhorial, submetidos aos ritmos estruturais do tráfico; e aquela que trata as
manumissões como conquistas e frutos da agência política de escravizados. Outros estudos têm procurado
cunhar interpretações mais equilibradas entre estes dois polos. A título de referência sobre estas diferentes
linhas interpretativas, ver: FLORENTINO, Manolo. De escravos, forros e fujões no Rio de Janeiro
imperial. Revista USP, São Paulo, n. 58, p. 104-116, 2003; SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do
90
cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos em Campos dos Goitacazes, 1750-1830. Rio de
Janeiro: Apicuri, 2009; FERRAZ, Lizandra Meyer. Entradas para a liberdade: formas e frequência da
alforria em Campinas no século XIX. 2010. 202f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2010; NASCIMENTO, Flaviane Ribeiro. Viver por si: histórias de
liberdade no agreste baiano oitocentista (Feira de Santana, 1850-1888). 2012. 199f. Dissertação
(Mestrado em História Social) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2012; BERTIN, E. Alforrias
em São Paulo..., op. cit.
20
A matriz mais notável desta interpretação é, certamente, o pensamento freyreano consagrador da
narrativa da escravidão docilizada, que tem em “Casa-grande e senzala” seu maior representante. O
conteúdo “afetivo” de relações de exploração tem sido alvo de reflexões e questionamentos interessantes
de pesquisadores da escravidão. No que tange aos estudos sobre a alforria, é ainda persistente a referência
à “agência” de mulheres escravizadas que construíam acessos à liberdade formal por meio de relações que
resultavam na produção de filhos ilegítimos de seus senhores. Críticas à reificação da mulher negra e
mestiça como símbolo de lascívia, sedução e hipersexualização escamoteada por estas interpretações
sobre a agência escrava podem ser encontradas em: HARTMAN, Saidiya. Seduction and the ruses of
power. In: Callaloo, n. 19.2, p. 537-60, 1996; MOUTINHO, Laura. Razão, “cor” e desejo: uma análise
comparativa sobre relacionamentos “inter-raciais” no Brasil e na África do Sul. São Paulo: Unesp, 2004,
pp. 51-103.
21
Este tema é abordado em: MACHADO, Maria Helena P.T.; ARIZA, Marília B.A. Histórias de
trabalho, poupança e resiliência: escravas, libertas e libertandas na cidade de São Paulo (1870-1888). In:
BARONE, Ana (org.). O negro na cidade de São Paulo. No prelo.
91
supplicante mais 200 mil reis que lhe doou Carlos Augusto Borba, e
com a qual se pediu deposito da menor para libertar-se por
arbitramento. Feito o deposito, o senhor da filha da supplicante
libertou-a sem condição, mas pretende ficar com Ella em seu poder, o
que será um segundo e pior captiveiro do que o primeiro22.
22
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de diligência, lata C05360, documento 23, 1883.
92
e estas garantiam amplo espaço para a apropriação da mão de obra de crianças e jovens
livres e pobres, filhos de mães supostamente inadequadas23.
Manobras legais como a utilizada por João Antônio Dias para converter menores
cativos, passíveis de serem manumitidos, em menores tutelados, submetidos ao domínio
de seus “benfeitores” por longo tempo e inacessíveis à sua família pelos mecanismos da
alforria, eram recorrentemente empregadas na cidade de São Paulo – recebendo ainda
maior fôlego, após consumada a abolição, como se verá um pouco mais à frente. Antes
mesmo da terminação efetiva da escravidão, entretanto, a arregimentação de filhos de
mulheres libertas por meio de soldadas e tutelas já indicava que as contendas em torno
da emancipação implicavam a disputa do controle sobre a útil mão de obra de jovens e
crianças empregados em diversos misteres urbanos – e esta não era uma batalha que
senhores de escravos estavam dispostos a perder. Em 1873, imbuído dos mais
dignificantes espíritos da época, em nome do “desenvolvimento da liberdade que com
energia se vai manifestando neste Imperio e tornando patente o jubilo pela fundação
nesta Capital do Conselho Provincial Maçonico”, Paulo Delfino da Fonseca concedia
alforria ao menor João, filho da “escrava preta” Maria, com a ressalva de que o liberto
ficasse sob sua tutela “em quanto d’ella precisar, para que possa me dirigil-o em seo
beneficio”24. Em 1880, possuindo “uma escrava crioula” de nome Francisca, mãe da
pequena Benedicta, Francisco Antonio da Barra desistia judicialmente dos serviços da
ingênua, apenas para, em seguida, solicitar ser nomeado tutor da mesma menor,
oferecendo-se “pela amisade que tem a mesma a creal-a e educal-a”25.
Sabedoras dos riscos que corriam ao assumir grandes dívidas para alforriar os
filhos – que potencialmente implicariam o aprofundamento de sua pauperização, além
de novas separações, caso os menores fossem encaminhados aos serviços em casas de
terceiros – e, ao mesmo tempo, conhecendo as artimanhas utilizadas pela camada
senhorial para contornar seus empreendimentos em busca de autonomia, mulheres
libertas, mães de filhos ingênuos ou nascidos antes da libertação do ventre, exploravam
23
Diversos dispositivos das Ordenações Filipinas referem-se à orfandade como condição que englobava
os filhos ilegítimos ou de pais falecidos até que completassem 25 anos. Até atingirem esta idade, os
órfãos eram passíveis de serem tutelados. Cf. Ordenações Filipinas, Livro 1º, Título 138, Parágrafos 19 a
21. <Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p212.htm>. Acesso em: 17 abr. 2017. O
Código Criminal imperial, datado de 1830, estabelecia a maioridade penal aos 21 anos, e foi esta a idade-
limite adotada pelas leis orfanológicas, a despeito de serem legatárias das Ordenações Filipinas. Este
assunto é objeto de maior detalhamento no capítulo três. ALMEIDA, Angela Mendes de. Família e
modernidade: o pensamento jurídico brasileiro no século XIX. São Paulo: Porto Calendário, 1999.
24
Cf. APESP – Tribunal de Justiça de São Paulo, lote 201006004045, Contrato a soldada, 1873.
25
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de liberdade, lata C05355, documento 15, 1880.
93
26
Os reclames relacionados à “sedução dos menores” são discutidos em maior profundidade no capítulo
cinco.
94
27
É o que demonstra a pesquisa sobre os registros de criadas domésticas estabelecidos por postura
municipal na cidade de São Paulo em 1886: TELLES, L.F.S. Libertas entre sobrados...; op. cit.
28
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de diligência, lata C05360, documento 20, 1883.
95
29
As notícias e os debates públicos que circulavam nos periódicos da capital da província na segunda
metade do século XIX são tema do próximo capítulo desta tese. De forma semelhante, Patrícia Urruzola
refere-se à circulação de denúncias contra o uso de tutelas como “uma nova forma de reescravização” na
província do Rio de Janeiro durante a década de 1880. URRUZUOLA, Patrícia. Ex-proprietários nos dias
seguintes à abolição: práticas e discursos de “escravização” de ingênuos (Rio de Janeiro, 1888). História,
Histórias. Brasília, vol. 4, n. 8, p.155-172, 2016.
30
Crescentes preocupações trazidas pelas fugas em massa de escravos instalavam-se entre autoridades
públicas que procuravam, sem grande sucesso, conter notícias que pudessem disseminar o pânico entre as
populações de diversas localidades no interior na província, como demonstra Maria Helena Machado:
MACHADO, Maria Helena P. T. O Plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. Rio
de Janeiro /São Paulo: Editora UFRJ/ Edusp, 1994. Da mesma autora, ver também: “Teremos grandes
desastres, se não houver providências enérgicas e imediatas”: a rebeldia dos escravos e a abolição da
escravidão In: SALLES, Ricardo e GRIMBERG, Keila. O Brasil Imperial: 1870-1889, vol. III. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
31
Explorado em pesquisa anterior, o caso do libertando José, que em fins da década de 1870 fugia ao
compromisso da prestação de serviços declarando-se livre após o falecimento de seu credor é bom
exemplo da debandada dos libertos condicionais e de sua recusa em permanecer sob o domínio de antigos
96
senhores ou patrões. Este e outros casos de disputa dos termos de locação de serviços na prática social são
discutidos no quarto capítulo de: ARIZA, M.B.A. O ofício da liberdade..., op. cit., p. 203-254.
32
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de diligência, lata C05360, documento 32, 1884.
33
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05455, documento 9047, 1884.
34
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de diligência, lata C05360, documento 30, 1884.
35
As fugas de famílias escravizadas – diversas delas compostas por mães e filhos pequenos ou mulheres
grávidas – e a importância da preservação dos vínculos familiares para sujeitos cativos que buscavam
ativamente sua autonomia são discutidas em: REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. “Uma negra que fugio, e
consta que já tem dous filhos”: fuga e família entre escravos na Bahia. Afro-Ásia, Salvador, n. 23, p. 27-
46, 1999. Wilma King aborda as fugas de mulheres escravizadas e seus filhos em: KING, Eilma. “Suffer
with Them Till Death”: Slave Women and Their Children in the Nineteenth-Century America. In: More
than chattel p. 157. In: GASPAR, David Barry; HINE, Darlene Clarke (Ed.). More than Chattel: Black
Women and Slavery in the Americas. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1996, p.
147-168.
97
36
No que toca às soldadas e tutelas, especificamente, a interdição dos vínculos familiares é abordada,
ainda que brevemente, em: ALANIZ, Anna Gicelle García. Ingênuos e libertos: estratégias de
sobrevivência familiar em épocas de transição (1871-1895). Campinas: CMU/Unicamp, 1997
37
Referências fundamentais sobre a compreensão da Justiça como espaço de embates em torno da
emancipação são: GRINBERG, Keila. Liberata, a lei da ambiguidade: as ações de liberdade na Corte
de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994; PENNA, Eduardo
Spiller. Pajens da casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871. Campinas, SP: editora
Unicamp, 2001; LARA, Silvia Hunold e MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (org.). Direitos e justiças no
Brasil: Ensaios de história social. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2006; MENDONÇA, Joseli Nunes.
Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2008; AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo
na província de São Paulo. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2010. As especificidades da participação de
mulheres escravizadas em contendas judiciais pela emancipação, já sinalizadas no supramencionado
trabalho de Keila Grinberg, são exploradas em profundidade por Camillia Cowling: COWLING, C.
Conceiving Freedom..., op. cit.
38
Sobre a militância abolicionista de advogados paulistas, ver: AZEVEDO, Elciene. Orfeu de
carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas: Unicamp, 2005;
OTSUKA, Alexandre Ferro. Antonio Bento: discurso e prática abolicionista na São Paulo da década de
1880. 2016. 234f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade de São Paulo, são Paulo,
2016.
39
Sobre o massivo número de ingênuos não libertados por seus senhores em troca da indenização prevista
no artigo 1º, parágrafo 1º da lei 2.040, há interessantes comentários em: FONSECA, Marcus Vinícius. A
educação dos negros: uma nova face do processo de abolição da escravidão no Brasil. Bragança Paulista:
EDUSF, 2002. Patrícia Urruzola indica que, no Rio de Janeiro, clubes e lumiares do abolicionismo local,
como José do Patrocínio, igualmente denunciavam os abusos praticados por ex-senhores de ingênuos que
os tomavam à tutela. URRUZOLA, P. Ex-proprietários nos dias..., op. cit.
98
40
Martha Abreu chama a atenção para a importância de avaliar-se os debates legislativos em torno da Lei
do Ventre Livre, nos quais a maternidade escrava tornava-se plataforma para argumentos contrários e
favoráveis à proposta. ABREU, Martha. Slave Mothers and Freed Children: Emancipation and Female
Space in Debates on the “Free Womb” Law, Rio de Janeiro, 1871. Journal of Latin American Studies,
Cambridge, n.28, p. 567-580, 1996.
41
ABREU, M. Slave Mothers and Freed..., op. cit.
42
COWLING, C. Conceiving Freedom..., op. cit.
43
ARIZA, M.B.A. O ofício da liberdade..., op. cit.
99
44
Cf. APESP – Tribunal de Justiça de São Paulo, lote 201006003491, Contrato a soldada, 1880-1887.
100
mães libertas e senhores ávidos pela manutenção do controle sobre seus filhos ingênuos.
Bom exemplo é o caso em que Luiz Gama representou Vicencia e sua filha Joanna
numa renhida contenda pelos direitos sobre a menor, na década de 188045. Liberta com
pecúlio de 500 mil réis recebidos do referido abolicionista em 1879, Vicencia fora
cativa do francês Jose Cazes, em cuja companhia permanecia sua filha. Mudando-se
para a Corte no ano de 1880, Cazes levara consigo Joanna, que então contava, segundo
Gama, menos de oito anos de idade. Desejando reaver a filha e trazê-la de volta a São
Paulo, Vicencia apelava ao Juízo reclamando o direito garantido pelo mesmo
dispositivo de remissão de serviços do parágrafo 4º, artigo 1º da lei de 1871,
recorrentemente invocado por mães libertas e seus advogados. Com sua habitual
mordacidade, o abolicionista denunciava a imoralidade de Cazes que ilegitimamente
interditava a convivência entre a filha e sua mãe “quase valuetudinaria”, com mais de
50 anos de idade:
Obtida, assim, a alforria, depois de obstaculos oppostos por o Senhor
que, europeu, civilizado e cidadão francez, bem sabe colher proveitos
da escravidão no Brasil, pediu Vicencia a entrega de sua filha menor
de 8 annos; e José Cazes fez transportar a menor para a Côrte , no
intuito malvado e reprovado, de inutilizar o direito da pobre liberta
que, até nisto, encontra a malevolência de seu ex-Senhor!46
sem maiores alegações ou justificativas, que a menina fosse dada à tutela e soldada de
terceiros. Esta, certamente, era uma realidade que Vicência partilhava com outras
mulheres empobrecidas na cidade – disputar a maternidade autônoma era tarefa que não
se esgotava com o próprio ingresso formal no mundo da liberdade e tampouco com o
dos filhos.
Os resultados de longas batalhas judiciais, entretanto, poderiam dificultar ainda
mais este acidentado caminho quando juízes de órfãos não se convenciam dos
argumentos esgrimidos em defesa do direito materno de mulheres libertas, como
ocorrera à Roza Maria da Conceição em 1882. Na disputa pela tutela do filho Aragão,
ingênuo, ela também contava com o auxílio de um destacado advogado abolicionista da
cidade, José Fernandes Coelho, frequentador das rodas íntimas de Luiz Gama47. A seu
favor, Coelho apresentava petição em que informava que Roza fora escrava do capitão
Eugênio Franklin de Carvalho, residente em Casa Branca, no interior da província,
recebendo em 1879 liberdade “sob a condição de servir por certo tempo”48. Uma vez
condicionalmente alforriada, Roza fora levada por Carvalho e sua senhora a São Paulo,
cidade para a qual se mudaram, e onde a liberta estivera “talvez pelo espaço de dois
annos servindo como escrava em diversas cazas, até que conseguiu obter a certidam
junta de sua carta de liberdade, pôde por termo desta escravização, começando a
alugar-se por sua conta”. O alentado fim de sua escravização, que lhe permitia alugar a
si própria como criada, contudo, mais uma vez não correspondia ao desfecho do
empenho que precisaria empregar em seu projeto de liberdade. Conforme informava
Roza na petição assinada a seu rogo,
Acontece porem que o mesmo Capitão Eugênio Franklin de Carvalho
não podendo mais subjugal-a, arrebatou-lhe seo filho a cujos serviços
não tem direito, e nem a supplicante annue a que fique em seo poder, e
conserva-o em sua caza no Marco de Meia Légua incommunicavel
para com a supplicante.
47
QUINTÃO, Antonia Aparecida. Irmandades negras: outro espaço de luta e resistência (São Paulo,
1870-1890). São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2002, p. 92.
48
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de diligência, lata C05360, documento 15, 1882.
102
trablho educa-lo”. Uma certidão de batismo anexada aos autos informava, ainda, que
Aragão era filho legítimo de Roza e David, nascido quando seus pais eram ainda
“pretos escravos de José de Carvalho Araújo”, proprietário anterior. Antes mesmo da
separação do filho provocada por seu último proprietário, a família de Roza já sofrera
um possível primeiro fracionamento: onde estaria David, seu marido e pai legítimo do
ingênuo em disputa? Camillia Cowling sugere interessantemente que a ausência dos
nomes dos pais em autos de disputa pela emancipação de filhos de libertas não
correspondia, necessariamente, à sua omissão nestes alongados processos de
emancipação. Apresentar petições e interpor ações de liberdade somente em nome das
mães seria, segundo a autora, estratégia que se apoiava no poder de mobilização
concentrado na figura materna, valorizada em disputas semelhantes desde as discussões
em torno da elaboração da lei de 187149. De fato, diante do cenário verificado por
estudos do tema da família escrava, e dos indícios apresentados no próprio processo,
esta não é uma possibilidade a ser prontamente descartada50. Contudo, igualmente
plausível seria supor que a família de Roza e David tivesse sido dividida quando da
mudança para a capital – a proibição da venda em separado de membros das famílias
escravas prevista no decreto de 1869, afinal de contas, na prática não foi observada à
risca, e tampouco impedia a um proprietário manter esposas, maridos e filhos em
cidades separadas, como poderia ser o caso em questão51. Outrossim, ainda que ambos
os pais de Aragão tivessem vindo à capital, a realidade do trabalho de criadas alugadas
impunha-se à ideia de que vivessem em uma família, conforme os termos da
49
COWLING, Camillia. Conceiving Freedom..., op. cit., p. 54.
50
Sobre a constituição de vínculos familiares estáveis sob o cativeiro, ver: SLENES, Robert W. Na
Senzala, uma Flor: Esperanças e Recordações na Formação da Família Escrava – Brasil Sudeste, século
XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. Tratando das áreas de plantation do Oeste paulista, o autor
indica que a formação de vínculos familiares sólidos era fundamental para a formação de solidariedades e
comunidades escravas que, a despeito de sua variada origem étnica, instilavam a resistência e ameaçavam
o poder senhorial. Também se reportando à estabilidade da família escrava, mas tratando do Vale do
Paraíba fluminense, Florentino e Góes interpretam-na sob outra perspectiva, sublinhando sua importância
na diluição de conflitos étnicos no interior das escravarias e, assim, favorecendo o interesse senhorial de
manutenção da “paz nas senzalas”: FLORENTINO, Manolo; GÓES, Roberto. A Paz nas Senzalas:
Família Escrava e Tráfico Atlântico 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. A formação
da família escrava nas cidades era impactada pelo fato de os plantéis urbanos serem, em geral, menores e
mais instáveis do que aqueles das grandes áreas agroexportadoras. As escravarias de maior proporção,
como indica Slenes, eram em geral destinadas ao aluguel, algo que, como no caso em tela, dificultava a
manutenção da estabilidade familiar. SLENES, Robert. W.; FARIA, Scheila de Castro. Família escrava e
trabalho. Tempo, vol. 6, n. 3, 1998. Ver também: ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo
sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1988.
51
Cf. Decreto nº 1.695 de 15 de setembro de 1869. Disponível em: <
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1695-15-setembro-1869-552474-
publicacaooriginal-69771-pl.html>. Acesso: 17 abr. 2017.
103
normatividade burguesa: uma mãe zelosa instalada junto aos filhos no acolhimento do
lar, um pai provedor, ganhando o pão e retornando à casa ao fim do dia52.
Era como mulher liberta e só, portanto, que Roza parecia embrenhar-se na batalha
judicial pela tutela do filho. A resposta oferecida ao Juízo pelo capitão Carvalho
igualmente referia-se exclusivamente à Roza, ao mencionar a ilegitimidade de seu
reclame: tudo se resumia ao fato, simples e inegável, de que ela não era em verdade
mulher liberta, e sim escrava fugida. A carta de liberdade que recebera e apensara ao
processo, afirmava o capitão, fora-lhe concedida por sua esposa. Pretendendo divorciar-
se do marido “por desarranjo mental” e não reunindo provas para tanto, a mulher
vingara-se forrando seus escravos. Sabendo que esposas não poderiam alienar bens sem
o consentimento do marido, cabeça-de-casal, o reclamado solicitava ao juiz de órfãos
que impugnasse a petição encaminhada em nome de Roza, sublinhando, numa ameaça
velada, que a lei permitia-lhe ainda solicitar, caso desejasse, a captura da escrava
fugida53. Concluindo suas considerações, pedia respeitosamente “proteção das
authoridades (...) contra o maniqueismo de certos abolicionistas que primão nesta
Capital pelo arrogo que tem sem mais respeito algum pelas leis desse pays”. Acolhendo
seus argumentos, o juiz de órfão deliberava contrariamente aos interesses de mãe e
filho.
Bem ou malsucedidas, longas narrativas de emancipação coletiva como estas
chegavam com frequência aos autos do Juízo de Órfãos de São Paulo. Representadas
por advogados que traduziam sua busca pela libertação e a autonomia familiar em
disputas frequentemente retóricas, que esmiuçavam os sentidos possíveis da lei de 1871
– notadamente do dispositivo de remissão de serviços de ingênuos encontrado em seu
artigo primeiro, constantemente reivindicado –, mães libertas surgiam, em geral,
escamoteadas pela parafernália judicial: petições, arrogos e escrivães, despachos,
juntadas e a exegese das leis pareciam sobrepor-se às suas palavras. Eram precisamente
estas mulheres, no entanto, que capitaneavam com enorme fôlego empreendimentos
familiares que envolviam diversas etapas e grande comprometimento: conquistar a
própria liberdade; assegurar o direito sobre os filhos; arranjar sobrevivências como
52
Tratando da escravidão na Corte, Flávia Fernandes de Souza discute a realidade das escravas alugadas
por seus senhores como criadas domésticas a terceiros, em cujas casas passavam a viver: SOUZA, Flávia
Fernandes de. Escravas do lar: mulheres negras e o trabalho doméstico na corte imperial. In: XAVIER,
Giovana, FARIAS, Juliana Barreto e GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Mulheres negras no Brasil
escravista e do pós-abolição. São Paulo: Selo Negro, 2012, pp. 244-260.
53
NEDER, Gislene e CERQUEIRA FILHO, Gisálio. Os filhos da lei. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, vol. 16, no. 45, p. 113-125, 2011.
104
famílias libertas; lidar com a imposição de tutelas e soldadas que causavam novas
fissuras em seus vínculos familiares. Aliando sua pertinácia, a firme convicção de
serem, elas também, portadoras de “direitos maternos sagrados” forjados com base na
moldura da feminilidade burguesa, e ainda o apoio de ilustres figuras do abolicionismo,
diversas mães de ingênuos tinham seus pleitos acolhidos pelo Juízo de Órfãos. Outras,
de menos sorte, viam suas pretensões serem rechaçadas nas arenas da justiça formal.
Talvez, a exemplo do que faziam tantas outras libertas, apelassem depois disso a
medidas mais extremas como a fuga.
Desse modo, mesmo que a justiça lhes concedesse o direito de retirar os filhos do
poder senhorial e retomá-los a seus cuidados, a construção de vidas familiares
autônomas apresentava-lhes cotidianamente novos estorvos e obstruções. A partir de
1888, imediatamente após a abolição, o recurso de senhores expropriados à tutela e a
contratação formal de menores egressos da escravidão cresceram enormemente na
cidade. As plataformas sobre as quais estes senhores apresentavam suas demandas já
não poderiam mais ser as leis e os direitos costumeiros reguladores da escravidão que,
até então, condensava as hierarquias sociais e conferia amplos poderes à camada
proprietária. A ausência desta instituição implicava a elaboração de novos códigos de
dominação que garantissem o controle sobre a mão de obra perdida à emancipação.
Nesta empreitada, pleiteantes à tutela e à soldada dos filhos de mães libertas socorriam-
se nas representações da maternidade inadequada das mulheres empobrecidas,
adicionando-lhes traços distintivos que fariam das mulheres egressas da escravidão o
símbolo definitivo das “mães impróprias” e incapazes de bem educar os filhos, futuro
da nação.
eventualmente e necessários e uma soma anual de 100 mil réis em remuneração pelos
serviços desempenhados por ambas. Embora não fizesse menção especial ao fato, a
petição de Almeida era submetida num momento crítico e altamente simbólico que,
decerto, não escapava a nenhum dos envolvidos – menores, suas mães, contratante,
escrivão e juiz: exatamente no dia anterior, a escravidão fora formalmente abolida no
Brasil54. Deferido o pedido de Manoel Almeida, Albina e Laudelina foram-lhe
entregues à tutela do dia seguinte, registrando-se formalmente seu contrato de soldada
no dia 16. Passado pouco mais de um ano, no segundo semestre de 1889, o tutor e
contratante retornava ao Juízo para declarar que “não podendo, por motivos que lhe são
proprios” continuar a exercer os encargos assumidos, solicitava que os mesmos fossem
transferidos a seu filho, capitão Josias de Almeida Camargo. Seus pleitos foram
novamente acolhidos e assim como se faria, caso as meninas pudessem ainda ser
formalmente definidas como bens semoventes, Albina e Laudelina eram transferidas de
pai para filho.
Sobre Ignacia e Cypriana, os autos calam ruidosamente. O que teria acontecido às
libertas cujas filhas foram formalmente arregimentadas por seu ex-senhor? Teriam se
engajado em serviços em outras casas ou seguiriam em companhia de Almeida,
forçadas a estas circunstâncias para poder permanecer junto das filhas? A ressaca da
abolição trouxe uma série de novos desafios à emancipação de mães empobrecidas em
São Paulo – notadamente, no caso que aqui se desenha, daquelas egressas da escravidão.
Diversas libertas do 13 de maio na cidade, empregadas nos serviços domésticos,
procuraram deixar a companhia de seus ex-senhores, engajando-se em novos arranjos de
trabalho nos quais, talvez, pudessem desfrutar de maior autonomia e melhores
condições de vida55. O mesmo parecia ocorrer àquelas que, embora libertas antes de
54
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, lata C05456, documento 8610, 1888.
55
Sobre libertas que deixavam a casa de seus ex-senhores logo após emancipadas em São Paulo, ver:
TELLES, L.F.S. Libertas entre sobrados..., op. cit. Sobre a busca de populações egressas da escravidão,
de forma geral, por modos autônomos de viver e morar na cidade, ver: SANTOS, Ynaê Lopes dos.
Escravidão, Moradia e Resistência: A Prática de Morar Sobre Si no Rio de Janeiro (1831-1840). Nuevo
Mundo – Mundos Nuevos, n. 1, p. 1-14, 2010. O sonho da terra e da vida camponesa autônoma,
distanciada da supervisão e do ritmo de trabalho do eito − subsumido nos Estados Unidos na fórmula
“forty acres and a mule” − foi um projeto compartilhado por libertos de todas as regiões do atlântico
escravista, inspirando políticas de controle do acesso à terra que procuravam impedir a fuga de braços da
lavoura. Referências clássicas a este respeito são: FONER, Eric. Nothing but freedom: emancipation and
its legacy. Baton Rouge and London: Louisiana State University Press, 1983: ______. The meaning of
freedom in the age of emancipation. The Journal of American History, v. 81, n. 2, pp. 435-460, 1994;
CARDOSO, Ciro Flamarion. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São
Paulo: Brasiliense, 1987; MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Vivendo na Mais perfeita
106
desordem: os libertos e o modo de vida camponês na província de São Paulo do século XIX. Estudos
Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n. 25, pp. 43-72, 1993.
56
Caso das mulheres cujos filhos, embora ingênuos, contavam mais de oito anos à época da manumissão
de suas mães, e que deste modo não poderiam recorrer ao expediente acionado em diversos pleitos
judiciais analisados anteriormente.
57
É de Ione Celeste de Sousa, em estudo sobre as soldadas em Salvador nos momentos imediatamente
seguintes à abolição, a expressão “corrida aos cartórios”: SOUSA, Ione Celeste de J. “Porque um menor
não deve ficar exposto à ociosidade, origem de todos os vícios”: Tutelas e Soldadas e o trabalho de
Ingênuos na Bahia, 1870 a 1900. In: MACHADO, Maria Helena P.T.; CASTILHO, Celso Thomas
(Orgs.). Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição. São Paulo: Edusp,
2015, p. 189-211. Outros estudos sobre soldadas e tutelas referem-se igualmente ao incremento do
recurso aos expedientes judiciais de tutelas e soldadas em 1888: ALANIZ, Anna Gicelle García.
Ingênuos e libertos: estratégias de sobrevivência familiar em épocas de transição (1871-1895).
Campinas: CMU/Unicamp, 1997; ZERO, Arethuza Helena. O peço da liberdade: caminhos da infância
tutelada – Rio Claro (1871-1888). 2004. 141f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2004; URRUZOLA, Patrícia. Faces da liberdade tutelada: libertas e
ingênuos na última década da escravidão (Rio de Janeiro, 1880-1890). 2014. 163f. Dissertação (Mestrado
em História Social) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. Os
trabalhos de Maria Aparecida Papali e Elione Guimarães também apontam o uso de tutelas e soldadas
como expedientes de controle de ingênuos no pós-abolição: PAPALI, Maria Aparecida. Escravos,
libertos e órfãos: a construção da liberdade em Taubaté (1871-1895). São Paulo: Annablume/Fapesp,
200; GUIMARÃES, Elione Silva. Múltiplos viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós-
emancipação (Juiz de Fora – Minas Gerais, 1828-1928). São Paulo: Anablumme; Juiz de Fora: Funalfa
Edições, 2006.
107
58
Cf. APESP – Tribunal de Justiça de São Paulo, lote 201006004044, Contrato a soldada, 1888.
59
Cf. APESP – Tribunal de Justiça de São Paulo, lote 201006003403, Contrato a soldada, 1888.
108
60
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata c05455 documento 6136, 1888.
61
Em 1886, dois anos antes da abolição, São Paulo contava com uma população de 47.697 habitantes, dos
quais apenas 493 eram escravos. MACHADO, Maria Helena P.T. Sendo Cativo nas Ruas: a Escravidão
Urbana na Cidade de São Paulo. In: PORTA, Paula (Org.). História da Cidade de São Paulo. São Paulo:
Paz e Terra, 2004, p. 59-99.
109
62
As disputas judiciais de mulheres libertas pela tutela dos filhos ingênuos são também observadas por
Patrícia Urruzola: URRUZOLA, P. Faces da liberdade tutelada..., op. cit.; ______. Ex-proprietários nos
dias seguintes..., op. cit.
63
Camillia Cowling indica que mesmo antes da aprovação da lei de 1871, os “humanitarian winds” que
sopravam sobre a escravidão atlântica atingiam também o Brasil, constrangendo progressivamente a
prática do não reconhecimento dos vínculos maternos entre escravas e seus filhos. COWLING, C.
Conceiving Freedom..., op. cit., p. 74-77.
110
64
Cf. BN-HDB – Diário de S. Paulo, Parecer da comissão nomeada pela câmmara dos deputados para
estudar o projecto do poder executivo sobre o estado servil, XXII, 12.07.1871, p.01.
65
TELLES, L.F.S. Libertas entre sobrados..., op. cit.; SOUZA, F.F. Escravas do lar..., op. cit.; SILVA,
Maciel Henrique Carneiro da. Pretas de honra: trabalho, cotidiano e representações de venderias e
criadas no Recife (1840-1870). 2004. 299f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal
de Pernambuco, Recife, 2004.
66
A este respeito, ver: KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São
Paulo: Companhia das Letras, 2000; REIS, João José. A greve negra de 1857 na Bahia. Revista USP, São
Paulo, n.18, 1993, p 8-29 (Dossiê Brasil/África).
67
MARCÍLIO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo: povoamento e população (1750-1850). São Paulo:
Edusp, 1986. Dados algo discrepantes são encontrados em outras pesquisas: os dados produzidos por
Luna e Klein, considerando a cidade de São Paulo e seu entorno, indicam presença ainda mais
significativa de africanos entre os plantéis da região: 36% em 1804 e cerca de 50% em 1850. Já de acordo
com Regiane Augusto de Mattos, os africanos corresponderiam a 12,4% da população escrava da cidade
111
205 pessoas, representava algo como 0,42% dos 47.697 habitantes da cidade, entre
sujeitos livres e escravizados68. Embora não tenham correspondido a amplas proporções
da população citadina, os africanos faziam-se presentes nas muitas lides e dinâmicas
econômicas de São Paulo, ao longo de todo o século XIX – notadamente de sua
primeira metade – e certamente influenciaram práticas sociais cultivadas entre os
afrodescendentes e os populares de maneira mais extensiva69. Etnicamente localizadas
entre as populações da África ocidental, estas matrizes culturais garantiam lugar central
à figura materna como portadora e transmissora da memória e dos valores culturais
comunitários, conferindo status e poder político às mulheres70. Ademais, como bem
resume Camillia Cowling, tais noções de maternidade ligavam-se intimamente à tarefa
de prover a subsistência de família e filhos e incluíam a formação de redes familiares
estendidas, ao mesmo tempo afastando-se enormemente dos padrões burgueses de
origem europeia fundados na domesticidade feminina e na família nuclear, por um lado,
e do que a autora chama de “estratégia brasileira” de buscar laços de proteção
paternalista que legitimassem seu direito à maternidade, por outro71.
Certamente, a transposição pura e simples de modelos culturais africanos seria
insuficiente para explicar a reprovação social às práticas de maternidade cultivadas
entre mulheres libertas na cidade de São Paulo, ao longo do século XIX. Este grupo,
como se viu no capítulo anterior, estendia-se de modo a incorporar em condições muito
semelhantes outras mulheres empobrecidas, estrangeiras e brancas pobres. Contudo, a
em 1814 e 13,06% em 1825. De todo modo, a queda na participação dos africanos entre a população
escrava da cidade a partir da metade do século XIX explicava-se, segundo Maria Helena Machado, pelo
ampliado processo de crioulização ocorrido na província, bem como pelo encarecimento da mão de obra
escrava que inviabilizava a compra de novos cativos na cidade. LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert
S. Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: Edusp,
2006; MATTOS, Regiane Augusto de. De cassange, mina, benguela e gentio da Guiné. Grupos étnicos
e formação de identidades africanas na cidade de São Paulo. 2006. 239f. Dissertação (Mestrado em
História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2006; MACHADO, M.H.P.T. Sendo Cativo nas Ruas..., op. cit.
68
Os dados do censo de 1886 foram retirados do livro de Lorena Feres da Silva Telles e por ela extraídos
do Relatório Apresentado ao Excellentissimo Senhor Presidente da Província pela Comissão Central de
Estatistica de 1888. Telles, L.F.S. Libertas entre sobrados..., op. cit., p. 47.
69
Enidelce Bertin e Regiane Mattos constatam a predominância, entre os africanos levados a São Paulo
pelo tráfico, daqueles oriundos da costa ocidental centro-africana, e indicam sua importância em diversos
setores dos serviços públicos da cidade, bem como a serviço de particulares. MATTOS, R.A. De
cassange, mina, benguela..., op. cit; BERTIN, Enidelce. Os meias-caras: Africanos livres em São Paulo
no século XIX. Salto: Schoba, 2013.
70
Sobre o tema da maternidade na diáspora, as matrizes culturais da África ocidental e a centralidade do
papel feminino e materno, ver: BUSH, Barbara. African Caribbean Slave Mothers and Children: Traumas
of Dislocation and Enslavement across the Atlantic World. Caribbean Quarterly, v. 56, n. 1 / 2, 2010, p.
69-94; GRAHAM, Sandra Lauderdale. Ser Mina no Rio de Janeiro do Século XIX. Afro-Ásia, Salvador,
n.45, 2012, p. 25-65.
71
COWLING, C. Conceiving Freedom..., op. cit., p. 201-202; 213.
112
72
Barbara Bush chega a questionar o real significado da associação feita entre comunidades africanas
diaspóricas chefiadas por mulheres nas Américas – notadamente no Caribe inglês – e as premências da
pobreza, argumentando que a proeminência e liderança social destas mulheres deviam-se às origens
culturais diversas de suas concepções de maternidade e sexualidade. Dada a heterogeneidade da
população empobrecida da cidade de São Paulo ao longo e especialmente ao fim do século XIX – quando
libertos, negros, brancos e estrangeiros eram abarcados pela ampla categoria dos livres pobres – não
parece razoável suprimir qualquer contribuição da miséria e das imposições da sobrevivência na forja das
relações familiares e práticas de maternidade populares. Certamente, no entanto, as matrizes africanas de
que trata a autora exerceram papel determinante nas experiências de maternidade de mulheres egressas da
escravidão na cidade, como se verá mais detalhadamente no capítulo cinco desta tese. BUSH, B. African
Caribbean Slave..., op. cit., p. 87.
73
É o que indica a discussão quantitativa proposta no primeiro capítulo, detalhada nos Apêndices A e B
(p.356-358) que atestam a presença majoritária de mulheres “pretas” ou “pardas” e libertas entre as mães
de tutelados e assoldadados racialmente identificadas. Estas conclusões, conforme apontado no mesmo
capítulo, consideram ainda os marcadores raciais atribuídos a menores filhos de mães sós e aludem a
extrapolações possíveis, considerando as informações sobre marcadores raciais de menores sem filiação
identificada. Essa discussão é retomada no capítulo quatro desta tese, do ponto de vista dos menores
trabalhadores.
74
Discutindo as disputas judicias pela tutela de ingênuos no Rio de Janeiro na década de 1880, Urruzola
argumenta que a caracterização de mulheres libertas como moral e materialmente incapazes de manterem
os filhos consigo tinha como objetivo enquadrá-las nas categorias de tutores inábeis definidas pelas
Ordenações Filipinas – sobretudo na categoria “inábeis por justo receio”. Embora interessante, tal
113
constatação não parece aplicar-se exatamente aos discursos e representações negativas esgrimidas na
Justiça de São Paulo contra as mulheres libertas – contexto em que sua detração moral ligava-se a um
cenário ampliado de desagregação da escravidão e emergência de normatividades sociais burguesas.
URRUZOLA, P. Faces da liberdade tutelada..., op. cit.; ______. Ex-proprietários nos dias seguintes...
op.cit.; ______. Libertas e ingênuos, ou mães e filhos no processo de tutela? (Rio de Janeiro, 1880-1890).
Dia-Logos, Rio de Janeiro, n. 8, p. 11-122, 2014.
75
COLLINS, Jane-Marie. Intimacy, inequality and democracia racial: theorizing race, gender and sex in
the history of Brazilian race relations. Journal of Romance Studies, v.2, n.7, p.19-34, 1997; ______.
Mãe Africana, Pátria Brasileira: negotiating the racial politics of identity, freedom and motherhood in
nineteenth-century Bahia, Brazil. In: COLLINS, Jane-Marie. Intimacy and Inequality: female histories
and feminist readings of manumission and motherhood in Brazilian slave society (Bahia 1830-1888).
Liverpool: Liverpool University Press. No prelo. Note-se, contudo, que autora não se refere mais
profundamente ao problema da disputa pela mão de obra implicada na elaboração dos estigmas da mãe
inapropriada, concentrando suas atenções no “problema” da crioulização da população de origem
africana.
114
76
No contexto da primeira metade do século XIX, quando a presença de africanas era maior na cidade, a
racialização da incapacidade materna talvez tenha sido mais direta e explícita. O caso de Maria Conga,
discutido por Enidelce Bertin, ilustra esta possibilidade: BERTIN, E. Uma “preta de caráter feroz..., op.
cit.
77
Parece claro que, a esse momento, as ideações sobre africanos e suas práticas culturais embrenhavam-
se às teorias racialistas que proliferavam entre os intelectuais nacionais entre fins do século XIX e inícios
do século XX. Sobre o florescimento destas teorias, ver: SCHWARCZ, Lília Moritz. O Espetáculo das
Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil do Século XIX (1870-1930). São Paulo: Cia.
das Letras, 1993; MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Brasil a vapor: raça, ciência e viagem no
século XIX. 2005. 245f. Tese (Livre-Docência) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 2005.
78
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05456, documento 8612, 1888.
115
79
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05456, documento 6104, 1888.
80
Lorena Telles explora essa “desclassificação social” imputada às mulheres libertas nas décadas finais
do século XIX na cidade, salientando sua íntima associação com o controle da mão de obra liberta. De
forma mais ampla, no entanto, mulheres afrodescendentes engajadas nos múltiplos serviços urbanos –
notadamente nos domésticos – eram, de forma geral, vistas com desconfiança por senhores, empregadores
e autoridades públicas. Sua participação nas agitações e dinâmicas das ruas era acompanhada por agentes
do controle social, como ocorria às quitandeiras presas por embriaguez e vadiagem. O domínio feminino
nos zungus era outro índice da moralidade desviante destas mulheres. TELLES, L.F.S. Libertas entre
sobrados..., op. cit.; GOMES, Flávio dos Santos; SOARES, Carlos Eugênio Líbano. “Dizem as
Quitandeiras...” – Ocupações urbanas e identidades étnicas em uma cidade escravista: Rio de Janeiro,
século XIX. Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 3-16, 2002; DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Nas
Fímbrias da Escravidão Urbana: negras de tabuleiro e de ganho”. Estudos Econômicos, São Paulo, n. 15,
p. 89-109, 1992; FARIAS, Juliana Barreto et alli. Cidades Negras: Africanos crioulos e espaços urbanos
no Brasil escravista do século XIX. São Paulo: Alameda, 2009.
116
81
MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau
(Org.). História da Vida Privada no Brasil, vol. 3. São Paulo: Cia. das Letras, pp. 367-421, 1998.
82
O artigo de Wilma King, anteriormente citado, problematiza a noção de negligência materna das
mulheres escravizadas, contrapondo-a aos empecilhos impostos aos cuidados dos filhos. KING, W. Suffer
with Them..., op. cit.
83
Observe-se que, a despeito do retrato desabonador das mães escravizadas, as memórias de Maria Paes
de Barros constituem importante fonte para a reavaliação do papel das mulheres na gestão dos assuntos da
Casa, entendido como o mundo do governo doméstico dos assuntos e propriedades senhoriais, entre as
quais se incluíam os próprios escravos, conforme proposto por Ilmar Mattos. MATTOS, Ilmar R. O
Tempo Saquarema: a Formação do Estado Imperial. São Paulo: Hucitec, 2004.
117
84
BARROS, Maria Paes de. No tempo de dantes. São Paulo: Paz e Terra, 1998, p. 75
85
Jane-Marie Collins argumenta que, nas casas de pequenos e médios proprietários de escravos, o
controle e a exploração das vidas afetivas e reprodutivas das mulheres escravizadas seriam ainda mais
rigorosos do que no ambiente das plantations. COLLINS, J-M. Mãe Africana, Pátria Brasileira…, op. cit.,
p. 19.
86
Como argumentado no capítulo anterior, a agressiva campanha pelo aleitamento materno e contra o uso
dos serviços de amas de leite, capitaneada por médicos e higienistas e que tinha em mira a eliminação dos
legados nocivos da escravidão, não eliminou efetivamente o recurso a estas mulheres na prática social.
CARNEIRO, Elisabeth Ribeiro. Procura-se uma “preta com muito bom leite, prendada e carinhosa”:
uma cartografia das amas de leite na sociedade carioca (1850-1888). 2016. 419f. Tese (Doutorado em
História) – Universidade de Brasília, Brasília, 2006; MACHADO, Maria Helena P. T. Entre dois
Beneditos: histórias de amas de leite no ocaso da escravidão. In: XAVIER, Giovana, FARIAS, Juliana
Barreto e GOMES, Flávio dos Santos (Org.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-abolição.
São Paulo: Selo Negro, 2012, p. 199-212.
118
87
Ver nota 20, p.90.
88
ALMEIDA, Angela Mendes de. Mães, esposas, concubinas e prostitutas. Seropédica: EDUR, 1996;
MALUF, Marina; ROMERO, Mariza. A sublime virtude de ser mãe. Projeto História, n. 25, São Paulo,
p. 221-241, 2002.
119
filhos de suas ex-escravas Antonia e Juliana, a quem gostaria de haver por contrato de
soldada89. Assim justificava sua solicitação:
A supplicante não pretende auferir os serviços dos menores; mas,
tendo os criado com os carinhos de mãe, votando-lhes a maior
amizade, encaminhando-os em educação não poderá vel-os sahir de
sua cia para de suas mães, onde necessariamente soffrerão privações,
ate da propria educação, o que será inevitável pois as suas mães
estarão sempre atarefadas com seus serviços para proverem em sua
subsistência90.
89
Segundo as prescrições das Ordenações Filipinas, os encargos de tutor eram compreendidos como
competências essencialmente masculinas, somente em eventuais circunstâncias podendo recair sobre
mulheres. Era o caso, por exemplo, de mulheres viúvas, que poderiam tutelar os filhos contanto que não
se recasassem. Ver especialmente: Ordenações Filipinas, Livro 4º, Título 102. Disponível em: <
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p212.htm>. Acesso em: 17 abr. 2017.
90
Cf. APESP – Tribunal de Justiça de São Paulo, lote 201006003452, Contrato a soldada, 1888.
120
91
Entre outros estudos, as pesquisas de Hebe Mattos e Celso Castilho e Camillia Cowling documentam a
realização de cerimônias coletivas de manumissão respectivamente nas áreas de plantation do Sudeste e
no Recife urbano. MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste
Escravista – Brasil, séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. CASTILHO, C.T.; COWLING, C.
Bancando a liberdade..., op. cit.
92
Nascido em 25 de fevereiro de 1840, Antônio da Silva Prado foi filiado ao Partido Conservador. O
eminente filho da aristocracia paulista exerceu diversos cargos públicos – chefe de polícia, deputado
federal e senador – antes de sua nomeação como conselheiro do Império em 1888. Logo após a
proclamação da república, tomou posse como intendente da cidade de São Paulo. DARREL, Levi E. A
família Prado. São Paulo: Cultura 70, 1977.
121
se como escrava – deixara sua casa levando os filhos, “de cuja creação e educação não
pode ella se encarregar, pela falta de meios”, eles viviam em companhia da mãe em
quarto alugado na Travessa da Glória. Interessando-se pelo destino e bem-estar dos
menores, conforme afirmava, o peticionário solicitava ao Juízo ser formalmente
nomeado tutor dos pequenos.
Passado um mês da concessão de sua nomeação como tutor, contudo, os filhos de
Thereza continuavam ocultos em companhia da mãe. Siqueira, agora portador de
direitos formalmente constituídos sobre os menores, impacientava-se com a demora de
seu retorno à sua companhia e, deste modo, voltava ao Juízo para solicitar a expedição
de mandado de busca e apreensão das crianças. Em nova petição submetida à apreciação
do juiz de órfãos, na qual denunciava ter “a preta Thereza sob futil pretexto seduzido os
menores da casa do supplicante e não os quer entregar”, o tutor não economizava nos
vitupérios dirigidos à liberta, e tampouco poupava-se às autocongratulações:
O supplicante declara a V Excia que tem sempre desempenhado
perfeitamente o cargo de tutor, e que a preta Thereza, casada e mulher
de má vida, envide todos os esforços para retirar os menores do poder
do supplicante, pelo que vêm justificar o seguinte:
1º - Que o supplicante é homem trabalhador, de familia constituida, de
costumes morigerados, e que sempre deu bom tracto aos menores seus
pupilos, sendo certo que a sua propria mulher amamentava-os em seus
seios e os estima demasiadamente.
2º - Que a preta Thereza é uma preta viciada, dada a prostituição e
leva uma vida escandalosa, não achando-se em condições de ter em
sua companhia aquelles menores.
93
MALUF, M; MOTT, M.L. Recônditos do mundo feminino..., op. cit.
122
94
As discussões sobre a eleição do aleitamento materno como símbolo fundamental das virtudes e da
natureza feminina, bem como do melhoramento racial e da modernização nacional, encontram-se mais
bem detalhadas no capítulo anterior. Referências sobre o tema são: MARTINS, Luiz Carlos Nunes. No
seio do debate: amas de leite, civilização e saber médico no Rio de Janeiro. 163f. 2006. Dissertação
(Mestrado em História das Ciências da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz, FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2006;
CARNEIRO, E.R. Procura-se uma “preta...”, op. cit.
95
ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890).
São Paulo: Brasiliense, 1988.
123
terceira filha indica que, à época de seu nascimento, sua mãe era solteira. Quatro anos
depois, quando os filhos lhe foram judicialmente arrancados, depoimentos apontavam-
na como casada. Finalmente, em 1896, uma certidão de casamento comprovava sua
nova condição que era reforçada com a adoção de um nome santo, de modo a garantir
ainda mais credibilidade àquela renovada figura que, anos depois, emergia dos registros.
É possível que, em sentido contrário ao que ocorreria às ações de liberdade e
disputas de tutela iniciadas pelas mães dos menores ingênuos – processo em que
importava valorizar a figura materna das mães libertas e escravizadas – o primeiro
marido da liberta, talvez pai de Marcos e Ambrozio, fosse estrategicamente reduzido
pelos depoentes a uma presença desimportante de modo a não municiar Thereza com
argumentos que legitimassem a permanência dos filhos em sua companhia96.
Confirmando-se esse cenário, os motivos pelos quais não teria ela própria procurado
amparar-se na lidimidade do casamento para reclamar a tutela de suas crianças não
ficam claros. De todo modo, o contrário ocorria quando vinha à tona, anos depois, o
casamento formalmente constituído com o pai de Brazilia.
Por mais desesperadas que pudessem parecer, as acusações feitas por Tristão
Siqueira não eram de todo desprovidas de cabimento. A formalização de seu
matrimônio somente após a consolidação da perda dos filhos poderia indicar que, ainda
que se passassem anos, Thereza tinha em mente um projeto amplo de emancipação
familiar que requeria adequar-se a normas sociais e, eventualmente, estabelecer-se
financeiramente antes de pleitear a tutela da filha de volta. Ao mesmo tempo, Vicente
apresentava-se como pai de Brazília, mas não de Benedicta, a filha caçula. É difícil
imaginar com clareza as circunstâncias nas quais, sendo pai das duas meninas, Vicente
não procurasse afirmá-lo. Talvez a união entre ele e Thereza correspondesse justamente
ao espírito das denúncias de Siqueira: uma associação de ocasião, forjada a partir da
solidariedade entre pares, com o intuito exclusivo de auxiliar uma mãe a reaver sua
filha. Qualquer que fosse a natureza desse vínculo, era justamente este o efeito que
Thereza produzia ao valer-se dela para disputar a guarda da filha: o de uma
96
Os depoentes fariam, deste modo, o caminho inverso do procedimento adotado por mães libertas em
busca da emancipação judicial de seus filhos, conforme descrito por Camillia Cowling e anteriormente
discutido neste capítulo. Neste caso específico, mencionar a inadequação de Thereza aos comportamentos
apropriados a mulheres casadas, ao mesmo tempo reduzindo a existência de seu marido a breves
menções, poderia colaborar para caracterizá-la como mãe imprópria, eliminando o risco de que a tutela de
seus filhos fosse concedida ao referido marido. COWLING, C. Conceiving Freedom..., op. cit.
125
97
Alguns estudos importantes já debateram a idade em que trabalhadores escravizados eram integrados
ao mundo do trabalho adulto. Embora com pequenas divergências, estudiosos indicam que aos 14 anos
menores escravos já acompanhavam adultos em todas as lides. A este respeito ver, entre outros:
MATTOSO, Kátia. O filho da escrava: em torno da Lei do Ventre Livre. Revista Brasileira de História,
São Paulo, v.8, n.16, pp.37-55, 1988; GÓES, João Roberto; FLORENTINO, Manolo. Crianças escravas,
crianças dos escravos. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2015, pp. 177-191. Uma discussão mais aprofundada sobre as idades dos trabalhadores
arregimentados por meio de tutelas ou soldadas encontra-se no capítulo quatro desta tese.
126
da “mãe branca senhorial”, outras mulheres libertas como Thereza aderiam à estratégia
da contrarrepresentação encontrada na legitimação trazida pelo casamento, perfilhação
ou associação a figuras masculinas que pudessem trazer algum verniz de adequação às
normas sociais vigentes98. Isso não significa dizer, evidentemente, que antes de terem
seus filhos arrancados de sua companhia ou de sua autoridade, essas mulheres não
desfrutassem de relacionamentos breves ou estáveis com os pais de seus filhos ou
mesmo outros homens99. Aos olhos da Justiça e, sobretudo, dos pleiteantes à tutela ou
soldada de seus filhos, no entanto, era necessário fazerem-se parecer mulheres aptas a
atender às expectativas sociais nutridas sobre as mães adequadas – serem casadas, donas
de comportamento virtuoso e reputação honesta – para aproximarem-se, tanto quanto
possível, das prerrogativas da feminilidade doméstica e burguesa100.
Luisa, a liberta mãe de Claudina e Benedicta, irmãs ingênuas assoldadadas por seu
Francisco Alves de Oliveira, adotava explicitamente a tática de traduzir o longo
relacionamento com o pai de suas filhas à linguagem das normas sociais. Tendo as
menores sido contratadas no dia 25 de junho de 1888, apenas cinco dias depois
Fortunato dirigia-se ao Juízo com a seguinte petição:
Diz o liberto Fortunato que tendo n’esta data contrahido matrimonio
com a liberta Luisa, que foi escrava de Francisco Alves d’Oliveira,
residente na Freguesia do Ó, conforme documento que junta, com a
qual liberta houve elle suplicante duas filhas Benedicta e Claudina,
ora legitimadas pelo casamento e desejando ter estas, que são
menores, em sua companhia para tratal-as como suas filhas, vem pedir
a V Excia que se digne de mandar que ao supplicante e á sua dita
mulher sejam entregues aquellas menores (...)101.
98
Tratando de disputas judiciais semelhantes às abordadas neste capítulo, Urruzola refere-se, brevemente,
à “luta de representações” empreendida pelas mulheres libertas. Em suas reflexões, contudo, não é
mencionado o embate entre a ideação da mãe branca e senhorial versus a mãe liberta. URRUZOLA, P.
Faces da liberdade tutelada..., op. cit.; ______. Ex-proprietários nos dias seguintes..., op. cit.
99
É o que atestam estudos sobre índices de nupcialidade e ilegitimidade de filhos entre mulheres
afrodescendentes, como o de Elizabeth Kuznesof. Maria Odila Leite da Silva Dias refere-se à recorrência
de uniões afetivas breves entre mulheres empobrecidas na cidade de São Paulo, que certamente
contemplavam também às mulheres libertas e escravizadas. Como afirma Eni Samara, de fato entre as
mulheres populares era maior a possibilidade de constituição de relações afetivas mais livres e fluidas,
uma vez que estavam distanciadas das necessidades de afirmação social, alianças política e da legação de
heranças em que se fundamentavam os casamentos entre as elites. KUZNESOF, Elisabeth. Sexual
Politics, Race and Bastard-Bearing in Nineteenth-Century Brazil: A question of Culture or Power?
Journal of Family History, v. 16, n. 3, p.241-260, 1991; DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano
e poder em São Paulo do século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995; SAMARA, Eni de Mesquita. As
mulheres, o poder e a família: São Paulo, século XIX. São Paulo: Marco Zero e Secretaria de Estado da
Cultura de São Paulo, 1989.
100
Sobre os padrões da feminilidade burguesa e doméstica, ver: MALUF, M.; ROMERO, M. A sublime
virtude de ser mãe..., op. cit.; MASSAINI, Marcia Ignez. Representações do amor e da família. In:
D’Incao, Maria Angela (Org.). Amor e família no Brasil. São Paulo: Contexto, p. 72-87, 1989.
101
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05455, documento 6163, 1888.
127
104
Cf. BN-HDB – O Correio Paulistano, As senhoras, 12.04.1870, p.01. Ao momento da publicação do
editorial, conforme indica Lília Schwarcz, o Correio Paulista afirmava-se como uma folha de tendências
políticas fluídas, somente mais tarde vindo a se afirmar definitivamente como republicano. De todo modo,
é interessante a menção à tarefa republicana das mulheres – as novas Déboras − que alude à
modernização social e política da nacional. SCHWRACZ, Lília Moritz. Retrato em branco e negro:
Jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Cia. das Letras, 1987, p.
65-66.
105
Sobre a personagem bíblica Débora como símbolo de liderança feminina, ver: SCARDUELI, Maria
Cristiana Nunes; SANTOS, Daiane Cardoso dos. A construção linguística do poder feminino em textos
bíblicos: análise das ações de Débora e Jezebel. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 177-193,
2013.
106
Harriet Stowe, escritora branca de família calvinista do norte dos Estados Unidos, publicou “Uncle
Tom’s Cabin” em 1852. Denunciando as agruras da escravidão no sul do país, o livro foi largamente
influente entre o abolicionismo nos anos anteriores à Guerra de Secessão. Seu extensivo recurso a
estereótipos raciais como a “mammy”, o “pickninny” e o próprio “Uncle Tom”, imagem do escravo
diligente e fiel à família senhorial, foi largamente examinado e criticado pela historiografia norte-
americana. Ver, por exemplo: GOLDNER, Ellen J. Arguing with pictures: race, class ante the formation
of popular abolitionism through “Uncle Tom’s Cabin”. Journal of American Culture, v. 24, n. 1-2, p.
71-84, 2001.
129
107
HANER, June Edith. Emancipating the female sex: the struggle for women’s rights in Brazil.
Durham: Duke University Press, 1990; COWLING, Camillia. Debating Womanhood, Defining Freedom:
The Abolition of Slavery in 1880’s Rio de Janeiro’. Gender & History, v. 22, n. 02, p. 284-301, 2010;
KITTLESON, Roger A. Women and notions of womanhood in Brazilian abolitionism. In. SCULLY,
Pamela; PATON, Diana (Ed.). Gender and Slave Emancipation in the Atlantic World. Durham: Duke
University Press, p. 99-120, 2005.
108
É importante observar, contudo, que o debate proposto por Kittelson atém-se unicamente à
participação das mulheres de elite no abolicionismo. Camillia Cowlling é mais bem-sucedida ao
demonstrar o engajamento de mulheres libertas e escravizadas em ações de liberdade na década de 1880 e
sua fundamental contribuição para o encaminhamento da abolição. KITTLESON, R.A. Women and
notions of woomanhood..., op.cit.; COWLING, C. Debating womanhood…, op. cit.
109
HAHNER, J. Emacipating the female sex..., op.cit.; SOUTO, Bárbara Figueiredo. Senhoras do seu
destino: Francisca Senhorinha da Motta Diniz e Josephina Alvares de Azevedo – projetos de
emancipação feminista na imprensa brasileira (1873-1894). 2013. 197f. Dissertação (Mestrado em
História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2013.
130
110
Cf. BN-HDB – A Familia, Mãe, 15.12.1888, p.02.
111
Cf. BN-HDB – A Familia, O trabalho das mulheres, 23.02.1889, p.05. Maria Amália Vaz de Carvalho
destaca intelectual portuguesa, frequentadora das altas rodas literárias de seu país natal, foi também
assídua contribuinte dos jornais imperiais desde a década de 1870, quando suas crônicas e pequenas
narrativas – versando sobre temas relativos ao “mundo feminino”, bem como sobre assuntos considerados
próprios do universo masculino, como política e literatura – passaram a ser publicadas no Jornal do
Commercio da Corte. A educação feminina foi matéria de recorrente preocupação da autora, como
demonstra Bianca dos Reis: REIS, Bianca Santos Coutinho dos Reis. “Cérebros e Corações”: a ficção
de Maria Amália Vaz de Carvalho no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro. 2012. 121f. Dissertação
(Mestrado em Literatura Portuguesa). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
131
112
A alcunha “emancipação feminina” era adotada pela militância de Francisca Diniz e Josephina Álvares
de Azevedo, que não incorporara ainda o termo “feminismo”, conforme destaca Bárbara Souto. Note-se
que, conforme demonstra a autora, o movimento pela emancipação feminina é anterior ao engajamento de
mulheres de elite no abolicionismo; não obstante, como demonstra June Hahner, a adesão à militância
contra a escravidão constituiu importante acesso das mulheres aos debates políticos no mundo púbico.
SOUTO, B. Senhoras de seu destino..., op. cit.; HAHNER, J. Emancipating the female sex..., op. cit.
113
Sobre a presença de criadas domésticas no mundo das ruas, ver o modelar trabalho de Sandra
Lauderdale Graham: GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no
Rio de Janeiro, 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Sobre o trabalho doméstico em São
Paulo, largamente integrado por mulheres libertas nas últimas décadas do século XIX, ver: TELLES,
L.F.S. Libertas entre sobrados..., op. cit.
114
ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores..., op. cit., p.81-102; ALMEIDA, A.M. Mães, esposas,
concubinas e prostitutas..., op. cit.
132
115
June Hahner descreve a ascensão do movimento de “emancipação feminina” ou “feminismo”, como
viria a ser nomeado em princípios do século XX, como um processo intrinsecamente associado às
mulheres das camadas médias e, principalmente, altas da sociedade. O movimento definia-se, deste modo,
dentro de estritos limites sociais que pouco ou nada diziam sobre as vidas e demandas de mulheres das
classes populares – entre as quais se incluíam, é claro, as mulheres negras. Essa matriz de classe média,
essencialmente branca e autorreferente do feminismo que se desenvolveria ao longo do século XX não
seria exclusividade do caso brasileiro, como demonstra as críticas elaboradas pelo movimento feminista
negro dos norte-americanos desde a década de 1970. Sobre este tema, ver: HAHNER, J. Emancipating
the female sex..., op. cit, p. 77-120.; SMITH, Barbara. Toward a Black Feminist Criticism. Women’s
Studies Int. Quart., vol. 2, p. 183-194, 1979; HOOKS, Bel. Ain’t I a Woman: Black Women and
Feminism. New York: South End Press, 1999; CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos
Avançados, v. 49, n. 17, p. 117-132, 2003.
116
Este, certamente, é um cenário diverso daquele verificado para as áreas de plantation nas quais, após a
abolição, novos arranjos familiares de libertos procuravam afastar mulheres e crianças do trabalho da
lavoura. Este afastamento é notado, por exemplo, por George Reid Andrews nas lavouras paulistas. O
autor argumenta que a aquiescência de imigrantes à inclusão de mulheres e crianças no trabalho familiar
do sistema de colonato foi parte importante da preferência dada a estes trabalhadores em detrimento dos
libertos no pós-abolição. Para estes últimos, segundo Andrews, o trabalho de mulheres e crianças na
lavoura remetia a experiências de exploração e violação típicas da escravidão e, por este motivo, por eles
rechaçadas. Semelhante é o diagnóstico de Bridget Brereton sobre o Caribe britânico – para a autora, o
abandono do trabalho no eito por mulheres e crianças libertas, recolhidas ao trabalho doméstico, teria sido
uma estratégia familiar de proteção contra explorações e violência sexual. Ainda que estes argumentos
sejam bastante úteis para esclarecer as dinâmicas de trabalho e reconstituição de papéis familiares no pós-
abolição, pode-se considerar, talvez, que determinados discursos normativos de gênero tenham sido
incorporados e reinterpretados por famílias populares, a exemplo do que Margareth Rago sugere a
respeito da adoção de parâmetros da feminilidade burguesa pelo movimento operário. ANDREWS,
George Reid. Negros e Brancos em São Paulo, 1888-1988. Bauru: Edusc, 1998; BRERETON, Bridget.
Familie Strategies, Gender and the Shift to Wage Labor in the British Caribbean. In: In. SCULLY,
Pamela; PATON, Diana (Ed.). Gender and Slave Emancipation in the Atlantic World. Durham: Duke
University Press, 2005, p. 143-160; RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar.
Brasil, 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
133
117
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05458, documento 6185, 1894.
118
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de apreensão e entrega, lata C05336, documento 15, 1897.
PARTE II
Capítulo 3
Acolher desamparados, criar trabalhadores
1
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de Diligência, C05336 - documento 01, 1828.
136
semelhante agressão contra o próprio rebento, Feliciana respondeu que o fizera “para
castigo do mesmo, e por motivos de ser costumado a furtar coisas que acha com
facilidade, pois que teme que continue, e passe a fazer maiores furtos (...)”. A despeito
da denúncia sobre a gatunagem de Miguel, as justificativas dadas pela desprovida mãe
não bastaram para convencer o magistrado de que o menino devesse permanecer em sua
companhia. Já no dia seguinte, o juiz despachava nomeando o mesmo sargento Gonçalves
para cuidar do miúdo – tarefa para a qual teria mais condições do que Feliciana, “visto o
tratamento com que a mãe do pequeno (...) o tem flagelado, donde se mostra ser pouco
humana para com seu filho (...)”. Nos termos definidos pelo juiz para a concessão da
tutela de Miguel, o legatário deveria incumbir-se de tratá-lo, curá-lo, alimentá-lo “e todo
o mais necessário”, podendo “utilizar-se dos serviços” do mesmo. Recebendo o órfão por
determinação do Juízo e pelas mãos dos oficiais de justiça, Gonçalves assinou termo em
que se comprometia a educá-lo “tanto quanto deve fazer hum pai a hum filho, tanto em
Religião como em officio”.
Lavrados os autos, pode-se imaginar Miguel tomando o rumo de sua nova casa, em
direção à estrada no sopé do morro, acompanhando o sargento vendeiro que se tornara
então seu pai-patrão. Podendo usar de seus serviços, é possível que Gonçalves o ocupasse
como caixeiro da venda, bem como em um sem-fim de outras tarefas domésticas que
caracterizavam o cotidiano de pequenos trabalhadores como ele. Do mesmo modo, pode-
se vislumbrar o retorno de Feliciana ao largo de São Bento, agora desacompanhada; talvez
parasse ali mesmo no largo para retomar as vendas ao tabuleiro com que se ocupavam
tantas mulheres despossuídas na cidade2. O abreviado relato das agruras da criança de cor
e idade não identificadas, da pobreza e alegada impiedade de sua mãe, da benfazeja
acolhida de seu tutor e do arbítrio dos operadores da lei que decidiram, ao menos
momentaneamente, o destino daquela aparentemente pequena família, é o primeiro
registro localizado por esta pesquisa entre os papéis do Juízo de Órfãos a dar conta dos
arranjos de trabalho de menores de idade naquela São Paulo Imperial. Como num
rascunho do mapa de transformações e permanências a atravessar o caminho de pequenos
e jovens trabalhadores na cidade ao longo do século, anunciam-se nas linhas dos autos de
2
Sobre as mulheres pobres e suas escravas engajadas no comércio de gêneros alimentícios na cidade e nas
vendas de tabuleiro na cidade, especialmente na primeira década do século, ver: DIAS, Maria Odila Leite
da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo, Editora Brasiliense, 1984; Nas
Fímbrias da Escravidão Urbana: negras de tabuleiro e de ganho. Estudos Econômicos, São Paulo, n. 15,
p. 89-109, 1992.
137
diligência pela tutela de Miguel, aspectos que ganhariam contornos diferentes, alguns
mais rigorosos, com o correr das décadas e, especialmente, com a aproximação e os
desdobramentos da abolição. Nas entrelinhas desses autos, assim, estão registrados o
recalcitrante reconhecimento dos vínculos de trabalho e dependência de menores de
idade, bem como a vacilante mão do Estado que se insinua sobre estas práticas sociais e
que dividirá suas responsabilidades pelo acolhimento da infância pobre com agentes
particulares por todo o século XIX. Da mesma forma, os autos indicam a suposta
incapacidade das mulheres pobres, especialmente daquelas vivendo sós com seus filhos,
para o exercício das responsabilidades maternas, bem como acusam o perigo das
tendências criminosas dos pequenos despossuídos, iluminando assim temáticas que
ganhariam renovado fôlego nas décadas finais do século. Por fim, estão expressas no
documento as múltiplas vocações da tutela que se prestava aos papéis de instrumento
paternalista de acolhimento e correção moral da pobreza, e, ao mesmo tempo, mecanismo
de expropriação do trabalho dos acolhidos. A ambivalência das tutelas, atualizada e
reinventada segundo as tendências e necessidades do contexto cambiante das relações de
trabalho no século XIX, será acompanhada pela proliferação dos contratos de soldada
desaguando, nos estertores da escravidão e no nascedouro da República, em complexos
protocolos do trabalho livre exercido por crianças de variadas origens sociais na cidade.
3
MARCÍLIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998.
138
4
MARCÍLIO, M.L. História social da criança..., op. cit., p. 142. Renato Pinto Venâncio, nesta esteira de
raciocínio, atribui as altas nos ciclos de abandonos de crianças em Catas Altas do Mato Dentro, durante o
século XIX, à política de estímulo ao acolhimento de enjeitados mediante remuneração oferecida pela
Câmara de Mariana, a que a freguesia rural esteve subordinada até 1840. Neste caso, a remuneração
camarária em retribuição à criação de enjeitados teria implicado a ressignificação de práticas de agregação
familiar tradicionais no meio rural, aliando a recorrente circulação de crianças de famílias pobres em Catas
Altas à possibilidade de aumentarem seus “parcos rendimentos”. VENANCIO, Renato Pinto. Os expostos
de Catas Altas – Minas Gerais, 1775 – 1875. In: RIZZINI, Irene (Org.). Olhares sobre a criança no Brasil
– séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Petrobras – BR: Ministério da Cultura: USU Ed. Universitária: Amais,
p. 127-142, 1997. Sobre o tema dos expostos e dos sistemas de criação dos mesmos, ver ainda do mesmo
autor: VENANCIO, Renato Pinto. Famílias abandonadas: assistência à criança de camadas populares no
Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVII e XIX. Campinas, SP: Papirus, 1999.
5
MORENO, Alessandra Zorzetto. Na roda da vida: os filhos de criação em São Paulo colonial. In:
VENANCIO, Renato Pinto. Uma história social do abandono de crianças. De Portugal ao Brasil: séculos
XVIII – XX. São Paulo: Alameda, 2010, p. 99-121.
139
tratá-los “humanamente”, sob risco de multa de 30 mil réis e oito dias de prisão6. O
trabalho árduo parece, de fato, ter sido desde tempos coloniais a tônica dominante do
cotidiano de menores de idade órfãos, retirados da companhia de suas famílias ou por elas
“dados a criar”7. É isto que demonstra a diligência envolvendo a tutela de Miguel: a
caridosa disposição de Bento Gonçalves em afastá-lo dos desmazelos de sua mãe,
oferecendo-lhe a segurança doméstica provida por um verdadeiro pai de família, seria
retribuída com o usufruto de serviços e eventuais ofícios que o pequeno viesse a exercer.
Miséria, honra injuriada, fuga da escravidão, quaisquer que fossem os motivos que
assolavam as mulheres e as impeliam a entregar seus filhos a instituições de caridade
como as rodas de expostos, no caso quase certo de as crianças não serem mais tarde
reclamadas por suas famílias, seu destino certamente seria o trabalho – contanto que não
sucumbissem aos altos índices de mortalidade infantil que vicejavam então. Proliferando-
se pelo Império a partir da independência, as rodas tornaram-se repositórios de mão de
obra gratuita entregue à exploração de particulares, empregada nas casas das famílias
caridosas e nas oficinas dos artesãos8. Neste contexto, instituições asilares e
recolhimentos dedicados a educar os enjeitados foram fundados entre o final do século
XVIII e meados do XIX, com o objetivo de ensinar-lhes rudimentos das primeiras letras
e cálculos, oferecer formação religiosa e, fundamentalmente, inculcar-lhes a moral da
disciplina do trabalho, repassando, após iniciadas estas lições, a responsabilidade sobre
os menores e seu aprendizado a agentes particulares9.
6
Diz a postura: “Toda a pessoa que tiver a seu cargo a criação e educação de órfãos e expostos será obrigada
a tratá-los humanamente, e não lhes poderá fazer castigo corporal de que resultem contusões, ou nódoas,
ou ferimentos; os infratores serão multados em 30 mil réis e oito dias de cadeia, sem prejuízo das penas
mais graves a que estejam sujeitos pelas leis criminais nos casos mais agravantes”. Cf. Coleção de Leis do
Império, 1832. Decisões do Governo, p. 71, apud MARCÍLIO, M.L. História social da criança..., op. cit.,
p. 139.
7
O estudo de Cláudia Fonseca sobre as práticas de circulação de crianças em Porto Alegre nas décadas
iniciais do século XX apontam no mesmo sentido. FONSECA, Cláudia. Pais e filhos na família popular.
In: D’INCAO, Maria Ângela. Amor e família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989, p. 95-128
8
Sobre mortalidade de expostos nas Santas Casas de Misericórdia ver os estudos já citados: MARCÍLIO,
M.L. História Social da Criança..., op. cit; VENANCIO, R.P. Famílias abandonadas..., op. cit.;
MESGRAVIS, L. A Santa Casa de Misericórdia..., op. cit. Sobre os usos da mão de obra de menores
acolhidos pelas rodas, ver especialmente os estudos de Marcílio e Venâncio. Ver também: CARVALHO,
V.M. Girando em torno da roda..., op. cit.; KUHLMANN Jr, Moysés; ROCHA, José Fernando Telles da.
Educação no Asilo dos Expostos na Santa Casa em São Paulo: 1896-1950. Cadernos de Pesquisa, v. 36,
n. 129, pp.597-617, 2006.
9
Estudos sobre estas instituições em Salvador e no Recife podem ser encontrados em: MATTA, Alfredo
Eurico Rodrigues. A Casa Pia Colégio de Órfãos de São Joaquim: de recolhido a assalariado. 1996. 228f.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996; MOURA, Vera
Lúcia de Braga. Pequenos aprendizes: assistência à infância desvalida em Pernambuco no século XIX.
2003. 171f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003;
NASCIMENTO, Alcicleide Cabral do. A sorte dos enjeitados: o combate ao infanticídio e a
institucionalização da criança enjeitada no Recife (1789-1832). 2006. 305f. Tese (Doutorado em História)
140
Na cidade de São Paulo, que contava em meados do século XIX com altas taxas de
exposição de crianças, duas instituições asilares públicas geridas com parcos recursos
provinciais e com o apoio de doações particulares foram inauguradas em 1825, mesmo
ano de criação da roda dos expostos: os Seminários de Sant’Anna, dedicado ao
acolhimento de meninos, e da Glória, que recebia meninas. Instalado na chácara da
Glória, o seminário que levava este nome acolhia, além das menores expostas, órfãs de
pais militares, todas recolhidas em regime de internato e clausura e dedicadas ao
aprendizado de noções elementares de leitura, escrita e aritmética, mas, especialmente,
dos misteres domésticos e dos princípios religiosos. Dali, saíam para o casamento,
incentivado por um sistema de dotes, ou para o serviço doméstico na casa de
particulares10. Nos primeiros estatutos de fundação do Seminário da Glória ainda na
década de 1820, estão sublinhadas as suas vocações para a correção moral de meninas
desvalidas, reforçando-se o compromisso da instituição com o disciplinamento da
pobreza por meio das virtudes religiosas e do trabalho, prevenindo-se, deste modo, que
internas reproduzissem a moralidade deletéria de suas mães11.
O Seminário de Sant’Anna, fundado na fazenda de mesmo nome, em freguesia
afastada cerca de uma légua do centro da pequena capital, dedicava-se igualmente ao
acolhimento dos órfãos e expostos, sendo ainda procurado por diversas famílias pobres
que tencionavam, internando seus filhos como pensionistas, prover-lhes educação na
leitura, escrita e nas contas, bem como nos princípios da moral cristã. Mantido com
fundos escassos, além dos irregulares pagamentos dos pensionistas e eventuais
contribuições particulares, e recebendo uma quantidade de educandos superior às suas
capacidades de alojamento, o seminário mantinha os internos em condições precárias. As
instalações eram insalubres, os educandos andavam sujos e andrajosos, faltava-lhes por
– Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006. Maria Luiza Marcílio refere-se ainda à fundação dos
Seminários de Santo Antônio e São Joaquim no Rio de Janeiro entre a metade e o final do século XVIII.
MARCÍLIO, M.L. História social da criança..., op. cit., p. 180.
10
A partir da instalação da Escola Normal na Chácara da Glória em 1852 e paulatinamente ao longo da
segunda metade daquele século, as educandas passaram a ser formadas também para o magistério,
compondo grande parte do professorado na capital da província, como indicam Maria Luiza Marcílio e
Carmen Sylvia Vidigal Moraes. MARCÍLO, ML. História social da criança..., op. cit.; MORAES, Carmen
Sylvia Vidigal. A normatização da pobreza: crianças abandonadas e crianças infratoras. Revista Brasileira
de Educação, n. 15, p. 70-96, 2000.
11
Conforme destaca Carmem Sylvia Vidigal Moraes, previam estes estatutos que a beneficência do
Seminário seria destinada à “mísera orfandade do sexo feminino cuja pobreza, poderoso veículo de tantos
costumes e vícios que desgraçadamente transmitidos pelas mães às filhas tanto influem na depravação e
estraga geral dos costumes”. Estatuto de 10 de agosto de 1825, APESP, Registro de Documentos de Ouro
enviados ao Ministério Público, livro 216, lata 78, nº de ordem 436, apud MORAES, C.S.V. A
normatização da pobreza..., p. 76.
141
12
MARCÍLIO, ML. História social da criança..., op. cit., especialmente p. 288-295. Ver também: SILVA,
Robson Roberto da. O cotidiano dos meninos internados no Seminário de Santana na cidade de São Paulo
(1825-1868). Faces da História, Assis-SP, v. 2, n. 1, p. 202-222, 2005. Cristina Inoue faz uma descrição
detalhada das condições de alimentação, vestuário e alojamento dos educandos de Sant’Anna nos primeiros
anos da instituição em: INOUE, Cristina. O Seminário de Santana: o cotidiano da vida e da escola (1825-
1831). 2006. 113f. Trabalho Complementar de Curso (Instituto de Pedagogia – Departamento de Filosofia
da Educação). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. A respeito desta instituição, ver também:
HILSDORF, Maria Lúcia Spedo. Os seminários de educandos em São Paulo. In: MENEZES, Maria
Cristina (Org.). Educação, memória e história: possibilidades e leituras. Campinas (São Paulo): Mercado
de Letras, 2004, p. 213-263.
13
Cf. APESP, Juízo de Órfãos - Autos de contrato, lata C05359, documento 02, 1842.
14
Cf. APESP, Juízo de Órfãos - Autos de contrato, lata C05358, documento 16, 1855-1856.
142
e médios comerciantes da cidade àqueles das autoridades públicas em torno dos cuidados
dispensados à infância desvalida:
Diz João Pedro Schimidt com caza de molhados, e padaria na travessa
da rua do Ouvidor, que necessitando para seu negocio de um caixeiro,
e constando ao supplicante haver no Seminario d’Educandos, um
menino de nome José Corrêa e de idade 12 annos, ao qual deseja o
supplicante prodigalizar lições commerciaes, encarregando-se do resto
de sua educação, e obrigando-se a a tratal-o como a seo proprio filho;
mas não sendo possivel obtel-o sem o respeitavel despacho de Vossa
Excelencia por isso (...) pede deferimento (...)15.
15
Cf. APESP, Juízo de Órfãos - Autos de contrato, lata C05358, documento 10, 1857.
143
16
Cf. APESP, Juízo de Órfãos – Autos de contrato, lata C05338, documento 11, 1857.
17
HERNDON, Ruth Wallis and MURRAY, John E. Children Bound to Labor: The Pauper
Apprenticeship System in Early America. Ithaca and London: Cornell University Press, 2009.
144
18
HERNDON, Ruth Wallis; MURRAY, John E. A proper and instructive Education: Raisin Children in
Pauper Apprenticeship. In: Herndon, Ruth Wallis and Murray, John E (Ed). Children Bound to Labor...,
op. cit., p. 3-18.
19
HINDLE, Steve; HERNDON, Ruth Wallis. Recreating Proper Families in England and North America:
Pauper Apprenticeship in Transatlantic Context. In: Herndon, Ruth Wallis and Murray, John E (eds).
Children Bound to Labor..., op. cit., p. 19-35.
20
HERNDON, R.W; MURRAY, J.E. A proper and instructive Education…, op. cit.
21
FRAGA, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo: Hucitec, 1996, p.
125-131. Segundo Fraga, a Santa Casa de Misericórdia soteropolitana cumpria também o ritual de
encaminhar meninos à aprendizagem e meninas aos serviços domésticos desde a Colônia. Destaque-se que
o autor sublinha o significado racial da expressão moleques, comumente referida a crianças e jovens negros
e egressos da escravidão.
145
22
A crescente concentração de “crianças de rua” na cidade de São Paulo entre os anos finais do XIX e
iniciais do XX é apontada em estudos centrados no cotidiano da população empobrecida da capital e seus
embates com os agentes do Estado, como: PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e
sobrevivência: a vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo (1890-1914). São Paulo: Edusp, 1994;
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Edusp, 2001;
BIROLLI, Maria Izabel de Azevedo Marques. Os filhos da República: a criança pobre na cidade de São
Paulo, 1900-1927. 2000. 246f. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica, São
Paulo, 2000; MARIANO, Hélvio Alexandre. A infância e a lei: o cotidiano de crianças pobres e
abandonadas no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX e suas experiências com a tutela,
o trabalho e o abrigo. 2001. 178f. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica,
São Paulo, 2001.
23
Sobre a continuidade de práticas informais e tutelares de arregimentação de trabalhos de menores de
idade já entradas no século XX, ver: BIROLLI, M.I.A.M. Os filhos da República..., op. cit.
24
Um extenso apanhado da legislação produzida a respeito dos menores de idade sob o Império e no início
da República, não apenas no tocante à questão do trabalho, pode ser encontrada em: RIZZINI, Irene.
Crianças e menores: do pátrio poder ao pátrio dever. Um histórico da legislação para a infância no Brasil.
In: RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco (Org.). A arte de governar crianças. A história das políticas
sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. São Paulo: Cortez, p. 97-153, 2009.
146
trabalho dependente que os enredavam. Na capital da província de São Paulo, é nítida sua
importância nas disputas envolvendo os serviços de menores trabalhadores, informando
as decisões de curadores e juízes e sendo frequentemente mencionadas nas ações movidas
no Juízo de Órfãos. A substância legal das Ordenações, entretanto, é evasiva, inserindo
os pequenos assoldados e tutelados num amplo conjunto de sujeitos acomodados nas
lógicas da agregação social, especialmente os criados domésticos. Desse modo, não é
como trabalhadores portadores de direitos, aos moldes das modernas relações trabalhistas,
que as crianças e jovens arregimentados sob o augúrio das Ordenações foram encarados
pela justiça ou por seus empregadores25.
As Ordenações discriminavam, é verdade, entre os órfãos abonados e os
empobrecidos. Aos primeiros, “filhos de taes pessoas, que não devem ser dados em
soldada”, designava-se um tutor, procedendo-se imediatamente ao inventário dos bens
herdados. Os tutores ficariam encarregados da educação dos menores abonados,
responsabilizando-se por providenciar que aprendessem a ler e escrever até os doze anos,
a partir de qual idade seguiriam “ordenando sua vida e ensino, segundo a qualidade de
suas pessoas e fazenda”26. Os títulos relacionados às tutelas, com efeito, respeitam
essencialmente aos órfãos possuidores de bens, de cuja manutenção os tutores ficariam
também encarregados. Aos órfãos pauperizados, despossuídos de bens ou prestígio social,
eram consignadas outras recomendações pelas mesmas Ordenações. Os filhos legítimos,
tendo mães vivas, seriam criados por elas somente quando as mesmas tivessem
“qualidade e condição” de fazê-lo, e apenas “até o tempo que sejam em idade em que
possam merecer alguma cousa por seu serviço”27. No caso dos filhos ilegítimos, também
considerados órfãos, a precedência sobre a criação dos mesmos deveria recair sobre seus
pais, e apenas se estes “não tivessem por onde fazê-lo”, os pequenos retornariam aos
cuidados de suas mães, nas mesmas condições anteriormente apontadas de serem
25
Os títulos relativos a criados, soldadas, tutelas e curatelas encontram-se em: Ordenações Filipinas, Livro
4º, Títulos 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 52 e 54. Disponível em:
<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p212.htm>. Acesso: 24 set. 2016.
26
Ordenações Filipinas, Livro 1º, Título 88, §15. Disponível em:
<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p212.htm>. Acesso: 24 set. 2016.
27
O parágrafo em questão, parte do subtítulo “Criação”, e parece indicar que as condições e qualidades
mencionadas teriam caráter acentuadamente moral, como se vê no seguinte trecho: “Porem se alguma mãi,
for de tal qualidade e condição que não deva criar seus filhos ao peito, ou por algum impedimento não os
possa criar, será o Orfão dado á Ama, que o crie assi de leite, como de toda outra criação, que lhe for
necessaria a custa dos bens dos ditos Orfãos. E se não tiverem bens, per que se possa pagar a sua criação,
suas máis serão constrangidas que os criem de graça de toda criação, até serem de idade em que possam
merecer soldada”. Ordenações Filipinas, Livro 1º, Título 88, §10, op. cit.
147
encaminhados aos serviços tão logo fosse possível28. Aos sete anos, os órfãos
pertencentes a essa extensiva classe de desvalidos estariam disponíveis para serem
contratados à soldada, sendo arrematados por quem maior valor oferecesse por seus
serviços em pregões realizados pelo Juízo de Órfãos. A remuneração dos assoldadados,
segundo previa o código, deveria ser estipulada pelo Juízo no caso de meninos menores
de 14 e meninas menores de 12 anos. Menores de sete anos, definidos no texto do Título
31 do Livro 4º como “moços ou moças pequenos”, não venceriam qualquer soldada,
porque “a criação, que se nelles faz, lhes deve ficar por satisfação de qualquer serviço
que façam”29.
Considerações sobre a educação dos órfãos assoldadados, diferentemente das
referências explícitas feitas no caso dos órfãos de posses, não são senão indiretas e
intimamente atreladas à sua instrução nos serviços; assim, o parágrafo 16 do Título 88,
Livro 1º, previa que
(...) se forem filhos de oficiais mecânicos, serão postos a aprender o
ofício de seus pais, ou outros, para que mais pertencentes sejam, ou
mais proveitosos, segundo sua disposição e inclinação, fazendo
escrituras públicas com os Mestres, em que se obriguem a os dar
ensinados em aqueles ofícios em cero tempo (...)30.
28
Cf. Ordenações Filipinas, Livro 1º, Título 88, §11, op. cit. O parágrafo em questão observa, ainda, que
não podendo nem o pai e nem a mãe do órfão ilegítimo responsabilizar-se por sua criação, nem havendo
parentes que pudessem fazê-lo, os órfãos deveriam ser encaminhados a hospitais ou albergarias. Na
inexistência de tais aparelhos, seriam criados às expensas da municipalidade.
29
Cf. Ordenações Filipinas, Livro 4º, Título 31. Disponível em:
<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p212.htm>. Acesso: 24 set. 2016.
30
Cf. Ordenações Filipinas, Livro 1º, Título 88, especialmente §13 a §21, op. cit.
31
Previam-se, inclusive, sanções aos Juízes e tutores que desrespeitassem essa orientação: “E o Juiz, que o
filho do Lavrador der a quem não for Lavrador, para outro serviço, achando Lavrador, que o queira tomar,
pagará mil réis: e o Tutor, que em tal dada consentir, outros mil (...)”. Cf. Ordenações Filipinas, Livro 1º,
Título 88, §13, op. cit.
148
de tutelas e soldadas em São Paulo, e o uso dessas regulações adentrou o século XIX
estabelecendo-se, sobretudo, sobre a plataforma dos sentidos dilatados de orfandade
encontrados no Código.
No correr daquele século, outras regulações referindo-se ao trabalho de menores de
idade criadas por legisladores do Império viriam assomar-se às Ordenações Filipinas.
Nenhuma dela, contudo, estabeleceu de fato normas precisas para a arregimentação desta
mão de obra por meio das soldadas ou de qualquer outro expediente contratual32. Logo
após a independência e antes mesmo da outorga da Constituição Imperial, uma provisão
expedida em 23 de fevereiro de 1823 confirmava um alvará português de 1775 que,
basicamente, reiterava as determinações das Ordenações Filipinas quanto ao
encaminhamento dos meninos e meninas a partir dos sete anos de idade ao trabalho,
notadamente aos serviços de lavoura33. Em 19 de janeiro de 1835, uma decisão da
Secretaria do Estado dos Negócios do Império instava a Administração da Casa dos
Expostos da Corte a dirigir-se ao Juízo de Órfãos tão logo as meninas de cor expostas
pudessem ser dadas à soldada, em conformidade com o Título 88 do Livro 4º das
Ordenações Filipinas. A decisão destacava, contudo, a necessidade de cautela para que as
menores assoldadas não fossem reduzidas ao cativeiro34. A lei de locação de serviços de
11 de outubro de 1837 assinalava a possibilidade de contratação de estrangeiros menores
de 21 anos de idade, esclarecendo que aqueles desacompanhados de pais ou parentes
poderiam engajar-se em contratos, recorrendo à assistência de curadores35. Em 1859, o
Aviso 312, expedido a 20 de outubro, confirmava as definições de orfandade constantes
nas Ordenações Filipinas, referindo-se especificamente “às menores” filhas de “pais
32
Ainda sob a Colônia, um Alvará expedido em 23 de outubro de 1814 determinava que “ (...) quem criar
orphão gratuitamente, o mandar aprender a lêr e escrever nas cidades ou villas, o pode conservar sem
soldada até a idade de dezesseis anos e oferecel-o no sorteamento para soldado em lugar de filho” Cf. nota
2 feita ao parágrafo 8 do título “Como se pagarão os serviços e soldadas de criados que não entrarem a
partido certo”. Ordenações Filipinas, Livro 4º, Título 31, §8, op. cit.
33
Cf. Regimento da Casa dos Expostos da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1840, p, 23, apud VENANCIO, R.P. Famílias abandonadas..., op. cit. p. 141-42.
34
Decisão nº 23, Império, 19 de janeiro de 1835. In: Colecção das Decisões do Governo do Império do
Brasil de 1835. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1864, p. 62-63. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/publicacoes/doimperio>. Acesso: 24 set.
2016.
35
Lei nº 108 de 11 de outubro de 1837, artigos 2º, 3º e 4º. In: Colecção das Leis do Império do Brasil de
1837. Parte I. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1861, p. 76-80. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/publicacoes/doimperio>. Acesso: 24 set.
2016. Sobre esta lei e seu papel no conjunto da regulação das locações de serviços, ver: LIMA, Henrique
Espada. Trabalho e lei para os libertos de Santa Catarina no século XIX: arranjos e contratos entre a
autonomia e a domesticidade. Cadernos AEL, v. 14, n. 26, 2009.
149
incógnitos” que, embora tivessem mãe viva, seriam consideradas órfãs e estariam,
portanto, sujeitas à arregimentação por tutelas ou soldadas36.
Tangenciando o tema da contratação de serviços e afirmando os amplos usos da
arregimentação da mão de obra de menores de idade, a partir da década de 1830 foram
expedidos avisos, decretos e portarias a respeito do encaminhamento de crianças e jovens
desvalidos ao aprendizado nos Arsenais da Marinha e da Guerra. Assim, o Decreto de 21
de fevereiro de 1832, sobre as reformas a serem feitas nos Arsenais da Corte e demais
localidades do Império, determinava que somente poderiam ser aceitos como aprendizes
os expostos nas Santas Casas de Misericórdia, os órfãos indigentes e os filhos de pais
pobres37. O Decreto de 29 de dezembro de 1837, entre outras coisas, determinava que
apenas menores entre oito e 12 anos de idade poderiam ser admitidos como aprendizes e
estabelecia prêmios a serem distribuídos àqueles que maiores progressos apresentassem
no aprendizado das letras e ofícios ensinados nos Arsenais38. A multiplicação de
Companhias de Aprendizes Marinheiros e de Guerra a partir de 1840, para onde muitos
meninos desvalidos que não encontravam acolhimento em hospitais ou asilos de caridade
eram remetidos, deu margem à publicação de ainda outros dispositivos legais, regulando
os termos do recrutamento do trabalho destes menores nas lides militares39.
Nos anos iniciais da nascente República, a legislação expedida para normatizar o
trabalho desta categoria social referia-se mais detidamente ao trabalho nas fábricas que
então se expandiam nos grandes centros urbanos; os serviços de lavoura e principalmente
o trabalho doméstico, que consumiu a maior parte da mão de obra de meninos e meninas
formalmente arregimentados na cidade de São Paulo, permaneceram fora do radar da lei
36
Cf. Coleção de Decisões do Governo do Império do Brasil, 1859. Tomo XXII. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional.
37
Cf. Decreto de 21 de fevereiro de 1832, Capítulo IV, art. 48 e 49. In: Coleção de Leis do Império do
Brasil - 1832, Vol. II, p. 37. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1824-
1899/decreto-37356-21-fevereiro-1832-563924-publicacaooriginal-87986-pe.html>. Acesso: 24 set. 2016.
38
Cf. Decreto de 29 de dezembro de 1837. In: Coleção de Leis do Império do Brasil - 1837, Vol. I, p. 61.
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1824-1899/decreto-37356-21-fevereiro-
1832-563924-publicacaooriginal-87986-pe.html>. Acesso: 24 set. 2016.
39
A nota 3 do título 88, §13, livro 1º das ordenações refere-se a uma série de regulações expedidas com
relação à arregimentação de menores para os Arsenais da Guerra e da Marinha. Cf. Ordenações Filipinas,
Livro 1º, Título 88 §13, op. cit. Renato Pinto Venâncio aponta a destacada importância e compulsoriedade
da participação de menores desvalidos, muitos deles negros, nestas companhias, sublinhando o
recrudescimento desta arregimentação à época da Guerra do Paraguai. VENÂNCIO, R.P. Os aprendizes da
guerra. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, p. 192-
209, 2015. Sobre a importante participação dos meninos pobres no serviço militar, ver também de outros
autores: SOUSA, Jorge Prata de. A mão de obra dos menores: escravos, libertos e livres nas instituições
imperiais. In: SOUSA, Jorge Prata de (Org.). Escravidão: ofícios e liberdade. Rio de Janeiro: Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998, pp. 33-63; CRUDO, Mathilde Araki. Infância, trabalho e
educação: os aprendizes do Arsenal de Guerra do Mato Grosso. 2005. 382f. Tese (Doutorado em História)
– Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.
150
40
O decreto estabelecia ainda o limite de horas trabalhadas por dia para aprendizes e menores de idade a
partir dos 12 anos. Cf. Decreto 1.313 de 17 de janeiro de 1891. In: Coleção de Leis do Brasil - 1891, Vol.
4, p. 326. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1313-17-
janeiro-1891-498588-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso: 24 set. 2016.
41
Cf. Decreto 233 de 02 de março de 1891. In: Diario Official do Estado de São Paulo, anno 3, 08 de
março de 1894. Cap VII: Fabricas e Officinas, art. 180. Disponível em:
<http://dobuscadireta.imprensaoficial.com.br/default.aspx?DataPublicacao=18940308&Caderno=DO&N
umeroPagina=9605>. Acesso: 24 set. 2016. Maria Izabel Birolli refere-se ainda ao regulamento do Serviço
Sanitário que, em 1911, “proibiu o trabalho noturno de menores de 18 anos e o emprego de menores de 10
anos nas unidades produtivas”. BIROLLI, M.I.A.M. Os filhos da República..., op. cit., p. 49.
42
Proliferavam-se nesse momento as instituições correcionais que pretendiam coibir a vadiagem e a
criminalidade dos jovens e crianças por meio do trabalho, como o Instituto Disciplinar de São Paulo,
fundado em 1902, a Colônia Correcional de Dois Rios e a Escola Correcional Quinze de Novembro, do Rio
de Janeiro, fundadas em 1903. Para uma discussão sobre estes institutos, ver, entre outros: MARIANO,
H.A. A infância e a lei..., op. cit.; RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas
para a infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2008; RIZZINI, I. Crianças e menores: do pátrio poder..., op.
cit.
43
A autora faz um detalhado histórico da elaboração de leis referidas aos menores de idade ao longo do
século XIX, demonstrando o percurso histórico que levaria ao enquadramento jurídico da infância
empobrecida pelo Código de Menores de 1927. RIZZINI, I; PILOTTI, F. A arte de governar crianças...,
op. cit., p. 121-139.
151
44
Sobre este vazio legal no que diz respeito à regulamentação do trabalho livre no Brasil imperial,
perturbado somente pela expedição de leis pontuais que regulavam as relações de locação de serviços, ver,
entre outros: LIMA, H.E. Trabalho e lei para os libertos...; LIMA, Henrique Espada. Sob o domínio da
precariedade: escravidão e os significados da liberdade no século XIX. Topoi, v. 6, n. 11, p. 289-326, 2005;
DANTAS, Mônica Duarte; COSTA, Vivian Chieregati. O pomposo nome da liberdade do cidadão:
trabalhadores livres e as tentativas de arregimentação e coerção da mão de obra no Império do Brasil.
Estudos Avançados, v. 30, n. 87, p. 29-48, 2016. Sobre a fragilidade do trabalhador livre no campo durante
o século XIX, ver a obra clássica de Peter Eisenberg: EISENBERG, Peter L. Homens esquecidos: escravos
e trabalhadores livres no Brasil – séc. XVIII e XIX. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989.
45
De fato, como afirma Valmir Luiz Stropasolas, ainda hoje o trabalho de menores de idade desempenha
papel fundamental na articulação de modos de vidas rurais, nos quais a “ajuda” prestada por crianças na
produção agrária familiar ou no trabalho doméstico importa tanto para a manutenção e subsistência da
família quanto para a formação da criança para a vida adulta. Stropasolas é cuidadoso, entretanto, ao apontar
que as práticas predatórias do agronegócio, alheias aos modos de vida da economia agrária familiar,
vitimam tanto adultos quanto crianças. Segundo o autor, a persistente dicotomia no senso comum, nas
ciências humanas e na produção de políticas públicas entre a percepção do trabalho como “mal social”, por
um lado, ou como “instrumento disciplinador”, por outro, fragiliza a compreensão crítica das várias formas
da infância, bem como de seus diferentes relacionamentos com o trabalho. STROPASOLAS, Valmir Luiz.
152
48
RIZZINI, I. O século perdido..., op. cit.
49
Marina Muaze indica que “a descoberta da infância” entre as elites nacionais iniciou-se na década de
1840, com a consolidação do Estado Imperial no segundo reinado após a maioridade do imperador menino.
Segundo a autora, a emergência destes novos conceitos sobre família e infância, dando-se entre os membros
constituintes da chamada “boa sociedade”, expressava o desejo de formar-se cidadãos adequados à ordem
civilizacional do Império. MUAZE, Mariana de Aguiar Ferreira. Dissertação. A descoberta da infância:
a construção de um habitus civilizado na boa sociedade imperial. 1999. 144f. Dissertação (Mestrado em
História) – Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 1999. A respeito da generalização das noções
da primazia social da infância e da operação do Estado sobre esta agenda com o auxílio das plataformas da
judicialização e criminalização da infância pobre e da medicina social, encontram-se importantes
considerações em: RIZZINI, I. O século perdido..., op. cit.; ASSIS, Márcio Branco de. A criança e a
ordem: teoria e prática jurídica no tratamento da criança desviante na Belle Époque carioca. 1997. 241f.
Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 1997.
50
Sobre o código de menores e a consagração da abordagem judicial da infância, ver: ASSIS, M.B. A
criança e a ordem..., op. cit.; ALVAREZ, Marcos César. Emergência do Código de Menores de 1927:
uma análise do discurso jurídico e institucional da assistência e proteção aos menores. 1989. 235f.
Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 1989.
154
51
Sobre crianças no trabalho fabril em São Paulo entre o final do século XIX e início do XX, ver: MOURA,
Esmeralda Blanco B. de. Mulheres e menores no trabalho industrial: os fatores sexo e idade na dinâmica
do capital. Petrópolis: Vozes. 1982.
52
Fátima Neves faz um detalhado estudo da população escrava infantil na cidade de São Paulo ao longo do
século XIX. As crianças representavam parcela significativa da escravaria de uma cidade caracterizada
pelos escravos refugos, e engajavam-se em grande sorte de atividades urbanas, sendo inclusive empregados
como aprendizes: NEVES, Maria de Fátima Rodrigues das. Infância de faces negras: a criança escrava
brasileira no século XIX. 1993. 306f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993.
53
Sobre a emergência das noções da medicina social e do higienismo no cuidado das crianças, ver, entre
outros: GONDRA, José G. A sementeira do porvir: higiene e infância no século XIX. São Paulo. Educação
155
e Pesquisa, v. 26, n. 1, p.99-117, 2000; ASSIS, Márcio Branco. A criança e a ordem..., op. cit.; RIZZINI,
I. O século perdido..., op. cit.
54
Maria Luíza Marcílio intitula-a de “fase filantrópica” da assistência social, substituta da “fase caritativa”.
A culminação da “utopia filantrópico-burguesa”, como a chamou Marcílio, atingida somente nas décadas
finais do XIX, seria a construção de uma “sociedade harmônica e estável”, alcançada por meio da educação
que incutisse na infância assistida os “sentimentos de ordem, de respeito às normas, de estímulo à família
e de amor ao trabalho (...) tudo fundado da melhor ciência e no culto ao progresso ininterrupto”.
MARCÍLIO, M.L. História social da criança..., op. cit., p.206
55
Marcílio cita uma série de instituições asilares de acolhimento aos menores desvalidos que surgiram por
volta da metade do século em municípios nos diversos cantos do Império: MARCÍLIO, M.L. História
social da criança..., op. cit., p. 203-206.
56
Para uma visão ampla sobre as transformações nos mecanismos de institucionalização da infância, ver:
RIZZINI, Irene; RIZZINI, Irma. A institucionalização de crianças no Brasil: percursos históricos e
desafios do presente. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004. A tese de Maria das Graças
Leal detalha o funcionamento do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, criado em 1872 e que permaneceu
ativo por um século: LEAL, Maria das Graças de Andrade. A arte de ter um ofício: Liceu de Artes e
Ofícios da Bahia (1872-1972). 1995. 321f. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1995.
57
Cf. BN-HDB – Correio Paulistano – Rgulamento para o collegio de alunos artífices..., p. 01, 02.07.1864.
156
58
O envio dos menores considerados mais indisciplinados aos arsenais era comum, como notado
frequentemente na documentação de época. Venâncio indica que as crianças acusadas de delinquência e
vadiagem foram alvo preferencial destas instituições: VENÂNCIO, R.P. Os aprendizes da guerra..., p. 198.
157
59
Cf. BN-HDB – Correio Paulistano – Parte Official – Expediente da Presidencia – p. 02, 13.02.1855.
60
Cf. BN-HDB – Correio Paulistano – Parte Official – Expediente da Presidencia – p. 02, 08.07.1856.
158
61
Joan Meznar, estudando as soldadas e tutelas em Campina Grande, refere-se especificamente à atuação
dos inspetores de quarteirão junto aos juízes de órfãos no aliciamento do trabalho de menores de idade. De
forma semelhante, Gislaine Azevedo, estudando as tutelas e soldadas na cidade de São Paulo, também
abordadas na tese ora apresentada, já indicava, ainda que brevemente, a conformação de uma rede de
aliciamento de menores que atuaria com o auxílio de autoridades públicas e em favor de interesses privados.
Esta temática será mais profundamente explorada no capítulo seguinte desta tese. Sobre este tema, ver
também as considerações de Maria Aparecida Papali: MEZNAR, Joan. Orphans and the transition from
slave to free labor in the Northeast Brazil: the case of Campinas Grande, 1850-1888. Journal of Social
History, n. 3, v. 27, p. 499-515, 1994; AZEVEDO, Gislane Campos. De Sebastianas e Geovannis: o
universo do menor nos processos dos juízes de órfãos da cidade de São Paulo (1871-1917). 1995. 181f.
Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1995; PAPALI, Maria
Aparecida C.R. Escravos, órfãos e libertos: a construção da liberdade em Taubaté (1871-1895). São Paulo:
Annablume: Fapesp, 2003.
62
Gislane Azevedo aponta a centralidade do Juízo de Órfãos no que qualifica de “distribuição e legitimação
da mão de obra infantil” em São Paulo. Conquanto esta interpretação pareça sujeita a questionamentos, que
serão explorando adiante neste capítulo, indica-se aqui a perspectiva da autora: AZEVEDO, G.C. De
Sebastianas e Geovannis..., op. cit.
159
Paulo. O Correio Paulistano, por exemplo, publicou em outubro de 1856 um edital para
o pregão dos serviços de um órfão da Capital, conclamando os interessados a
apresentarem por escrito suas propostas63. Em 1862, no expediente da Presidência da
Província publicado no mesmo jornal, as autoridades provinciais recomendavam aos
termos de São Sebastião e Villa Bella que os “órfãos desvalidos sejam dados a soldada
e que esta presidencia recommende a assembleia provincial e promova pelos meios a seo
alcance a creação de um azylo onde sejam recolhidos e convenientemente educados”64.
Em 1868, um novo expediente da mesma presidência registrava, entre suas várias
deliberações, os trâmites entre os Juízos de Órfãos da Capital e de Campinas, tendo o
primeiro cedido dois órfãos para serem contratados à soldada na fábrica de chapéus de
João Bierrembach65.
Certamente, nem todas as menções encontradas nos jornais à prática aparentemente
extensiva de soldadas pela província eram elogiosas. O Diário de S. Paulo, por exemplo,
publicava em 1867 na seção “Publicações Pedidas” uma nota de autoria anônima
criticando a conduta do Juízo de Órfãos de Araraquara, acusado de dificultar as soldadas
a alguns e favorecê-las a seus apaniguados66. A partir da década de 1870, contudo, as
divergências a respeito da utilidade e moralidade do uso das soldadas como forma de
acolhimento e disciplinamento da pobreza avolumam-se, estendendo-se paulatinamente
a comparações com a escravidão, aos debates sobre o encaminhamento do “elemento
servil” e, assim, incorporando explicitamente os ingênuos e libertos como sujeitos de
interesse à discussão sobre a mão de obra de menores de idade. Naquela década e nas
seguintes, as soldadas continuaram frequentando as páginas dos jornais, ora em editoriais
que laureavam juízes de órfãos que tomavam atitudes assertivas contra a disseminação
do ócio dos menores desvalidos, ora em notas sarcásticas ou claramente delatórias dos
desmandos dos mesmos magistrados e dos abusos de contratantes67.
A transcrição dos debates sobre a instrução pública e a obrigatoriedade da educação
havidos na sessão de 28 de março de 1871 da Assembleia Provincial, encontrada nas
63
Cf. BN-HDB – Correio Paulistano – Edital, p. 04, 28.10.1856.
64
Cf. BN-HDB – Correio Paulistano – Expediente da Presidencia, p. 02, 02.06.1862.
65
Cf. BN-HDB – Correio Paulistano – Expediente da Presidencia, p. 01, 01.01.1867.
66
Cf. BN-HDB – Diário de S. Paulo – Publicações Pedidas – Araraquara, p. 03, 08.06.1867.
67
Irma Rizzini nota que no contexto da Amazônia imperial da década de 1880, largamente diverso da
província paulista, a exploração do trabalho de crianças indígenas e tapuias, feita inclusive com recurso a
tutelas, era largamente denunciada pelos “formadores de opinião” das capitais amazônicas. O sistema de
exploração desta mão de obra redundava, como aponta a autora, no esvaziamento de instituições asilares
destinadas a educar e “civilizar” estas crianças. RIZZINI, Irma. O cidadão polido e o selvagem bruto: a
educação dos meninos desvalidos na Amazônia imperial. 2004. 456f. Tese (Doutorado em História Social)
– Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
160
M. de Almeida era eloquente nas críticas às prevaricações cometidas por juízes que
cediam a seus chegados a soldada de órfãos sem qualquer consideração pelos reais
interesses dos menores de idade, sublinhando serem estes por vezes remetidos à força aos
serviços mal remunerados de particulares. Comparando abertamente os assoldadados aos
homens e mulheres sob cativeiro, e sinalizando a urgência crescente dos debates sobre a
abolição, Almeida enfatizava a contradição fundamental entre a tarefa da emancipação e
a manutenção do expediente das soldadas. Numa outra passagem de tom igualmente
dramático, o deputado esclarecia ainda suas preocupações especiais com a submissão de
meninas ao regime das soldadas, deixando subentendida a referências aos perigos
adicionais da violação sexual que envolvia estas pequenas trabalhadoras:
68
Embora a reportagem não reproduza o nome completo do deputado, parece tratar-se de João Mendes de
Almeida, advogado e jurista que atuou como deputado pela província de São Paulo em sucessivas
legislaturas entre 1868 e 1878. Um dos líderes do Partido Conservador entre fins das décadas de 1850 e
1870, quando manifestou sua oposição à escravidão, Mendes teve importante papel na redação e aprovação
da Lei do Ventre Livre. AMBROSINI, Diego Rafael; FERNANDES, Maria Fernanda Lombardi. Elite
política, abolicionismo e republicanismo: 1850-1889. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). In: Os juristas
na formação do Estado-Nação brasileiro (de 1850 a 1930). São Paulo: Saraiva, 2010, p. 199-217.
69
Cf. Diário de S. Paulo – Assembléa Provincial, continuação da sessão de 28 de março – pp. 1-2,
27.04.1871.
161
O que dói mais, senhores, não é que o orphão do sexo masculino seja
dado á soldada, porque, emfim, soffrerá até certo tempo, porém depois
poderá rehabilitar-se para vida livre; mas, muitaz vezes, é dada uma
menor orphã a um homem que não offerece a menor garantia para
apoiar e manter a sua moralidade!
Almeida poderia estar certo sobre a exploração digna de cativeiro imposta aos
meninos e meninas assoldadados; entretanto, sua afirmação sobre o desuso desta prática
“na maior parte do Brasil” não parece muito acertada. Reproduzindo nota publicada no
Limeirense, o Correio Paulistano ecoava em 1875 elogios feitos ao juiz de órfãos da
comarca de Casa Branca “relativamente ao interesse que lhe tem merecido a orfandade
desvalida, dando-se a á soldada, preparando dest’arte o porvir destes, a quem a
fatalidade privou de seu natural apoio”. A nota seguia registrando a justeza com que a
imprensa registrava “actos tão meritorios e humanitarios”, elencando ainda louvores ao
juiz de órfãos de Cunha, município que compartilhava a sorte de Casa Branca tendo um
magistrado “(...) infatigavel em promover o futuro dos orphãos miseraveis, dando-se á
soldada e nomeando-se tutores”. Por fim, ainda saudando este juiz, a nota lembrava ter
sua brilhante carreira sido iniciada em Uruguyana, província de São Pedro do Rio Grande
do Sul, onde, assim como na província paulista, fora o primeiro a pôr em prática “tão
assignalado favor sempre recommendado aos juizes pelas leis orphanologicas” 70.
De fato, estudos variados têm registrado a ampla utilização dos expedientes de
soldadas e tutelas em diversas partes do território imperial. Notadamente dedicadas ao
período posterior à aprovação da Lei do Ventre Livre, as pesquisas, embora ainda longe
de esgotar o tema, têm indicado que tutelas e soldadas eram empregadas em contextos
urbanos e rurais tão diversos como o Campina Grande, Salvador e adjacências, Desterro,
Mariana e Juiz de Fora, Rio de Janeiro, municípios do interior da província paulista como
Franca, Taubaté, Itu, Socorro e Campinas, além da própria Capital71. Se a vulgarização
70
Cf. BN-HDB – Correio Paulistano – Noticiário Geral – Limeira, página 2, 06.05.1875.
71
Esta literatura será mais profundamente discutida no próximo capítulo. AZEVEDO, G.C. De Sebastianas
e Geovannis..., op. cit.; ALANIZ, Anna Gicelle García. Ingênuos e libertos: estratégias de sobrevivência
familiar em épocas de transição (1871-1895). Campinas: CMU/Unicamp, 1997; DAVID, Alessandra.
Tutores e tutelados: a infância desvalida em Franca (1850-1888). 1997. 147f. Dissertação (Mestrado em
História) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista, Franca, 1997;
PAPALI, Maria Aparecida. Escravos, libertos e órfãos..., op. cit.; PINHEIRO, Luciana de Araújo. A
civilização do Brasil através da infância: propostas e ações voltadas às crianças pobres no final do
Império (1879-1889). 2003. 144f. Dissertação (Mestrado em História Moderna e Contemporânea) –
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2003; GEREMIAS, Patrícia Ramos. Ser “ingênuo” em
Desterro/SC: a lei de 1871, o vínculo tutelar e a luta pela manutenção dos laços familiares das populações
de origem africana (1871-1889). 2005. 117f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal
Fluminense, Niterói; ZERO, Arethuza Helena. O preço da liberdade: caminhos da infância tutelada – Rio
Claro (1871-1888) – Dissertação (Mestrado em História). 2004. 141f. Universidade Estadual de Campinas,
162
“arrancado a seus braços”. Era justamente a partir dessa década que o tema da
maternidade ganhava espaço nos debates públicos sobre a emancipação – o regime de
trabalho assoldadado, pouco se diferenciando do trabalho escravo, como apontavam seus
críticos, era também alvo das denúncias que encontravam nas representações da violação
dos laços entre mães e filhos uma plataforma de disputa73.
As críticas veiculadas nos jornais da província ultrapassavam mesmo os limites de
seu território. Em 1878, o Correio Paulistano, novamente, reproduziu artigo
originalmente publicado na Gazeta de Notícias recriminando o que se chamado de
“caçada dos menores vagabundos” na Corte. A folha carioca começava suas críticas
indicando que os responsáveis pela apreensão dos menores nas ruas da cidade não usavam
do necessário escrúpulo na realização de sua tarefa, e seguia afirmando que a “demasiada
presteza” com que os apreendidos eram despachados a destinos “que os repugnavam”
impedia-os de oferecer provas “que os isentassem da pecha de vagabundos”. Deste modo,
asseverava o artigo: “(...) se tem abusado disso, que se pretendeu apresentar como uma
medida humanitaria e civilizadora”74.
Para ilustrar seus argumentos, o artigo da Gazeta mencionava a história de um
“menor”, apreendido à noite na praça da Constituição e, então, imediatamente remetido
ao trabalho numa fazenda do interior da província fluminense. Ao ser capturado, o menino
teria, em sua defesa, informado ter pai e mãe vivos, além de estar empregado numa fábrica
de cigarros ganhando 20 mil réis mensais. A despeito destas afirmações, confirmadas pelo
pai do menor, o juiz decidira por manter o encaminhamento do menino à fazenda. Neste
momento, antes de informar que o menor somente fora reencontrado pela família seis
meses depois, num leito do hospital de Misericórdia da capital do Império, a Gazeta
levanta suas acusações sobre os mecanismos suspeitos e viciosos de encaminhamento ao
trabalho dos meninos e meninas tidos como vagabundos:
Seja-nos permittido fazer um ligeiro reparo. Um menor e remettido para
a fazenda; admittamos que o dono da fazenda o trate muito bem; mas
um companheiro do menor ou um escravo mata-o; o dono da fazenda,
para evitar massadas, manda dizer ao juiz de orphãos que o menor
fugio, da-se-lhe baixa e esta tudo prompto.
73
Sobre este assunto, ver os recentes estudos produzidos por Camillia Cowling: COWLING, Camillia.
Debating Womanhood, Defining Freedom: The Abolition of Slavery in 1880s Rio de Janeiro. Gender &
History, v. 22, n.2, p. 284, 301, 2010; ______. “As a slave woman and as a mother”: woman and the
abolition of slavery in Havana and Rio de Janeiro. Social History, v. 36, n.3, p. 294-311, 2011; ______.
Conceiving Freedom: Women of Color, Gender and the Abolition of Slavery in Havana and Rio de
Janeiro. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2013.
74
Cf. BN-HDB – Correio Paulistano – Noticiário Geral - Menores Vagabundos – p. 02, 03.09.1878.
164
75
Sobre as preocupações da lavoura com o “encaminhamento do elemento servil”, são referências
fundamentais: EISENBERG, Peter. “A mentalidade dos fazendeiros no Congresso Agrícola de 1878”. In:
Homens esquecidos..., op. cit.; LAMOUNIER, Maria Lucia. Da escravidão ao trabalho livre: a lei de
locação de serviços de 1879. Campinas, SP: Papirus, 1988.
76
A este respeito ver as considerações do livro já citado de Marcílio: MARCÍLIO, M.L. História social da
criança..., op. cit., p. 211-214. Ver também, sobre as colônias destinadas a receber ingênuos: FONSECA,
Marcus Vinícius. E educação dos negros: uma nova face do processo de abolição da escravidão no Brasil.
Bragança Paulista: EDUSF, 2002, especialmente o capítulo 2.
165
Buscando, talvez, a paternidade de uma ideia que já não era novidade para
autoridades públicas e lavradores – a Colônia Agrícola Izabel, afinal, fora fundada em
1873 no Recife – o orgulhoso desembargador acrescentava78:
Foi, atendendo á este inconveniente, que tive a idéa de crear o instituto
agricola orphanologico, idea que ainda não abandonei e cujo exito
depende da aceitação merecedora dos homens bons e importantes da
terra. Se fôr possivel leval-a á effeito há ali um abrigo seguro para 50
oprhãos e o instituto será um grande auxiliar da idea de dar serviço á
estes futuros trabalhadores. E esse o meio mais seguro de resolver a
grave questão do trabalho no paiz. Educando os jovens no trabalho com
certeza [teremos] bons trabalhadores para o futuro. O que cumpre é
derrotar a ociosidade e é isso que pretendo.
Em 1882, num longo artigo cujos autores eram identificados como “Os Orphãos”,
representantes da classe dos juízes de órfãos mostravam-se sinceramente ofendidos por
um artigo publicado na Gazeta do Povo em que se criticava um projeto apresentado à
assembleia provincial para a distribuição de um conto de réis em auxílio a dez colônias
orfanológicas. Ainda que assentindo na conveniência de tais instituições, o autor do artigo
veiculado na Gazeta duvidava da capacidade de que a assembleia legislasse com justiça
a respeito de instituições sobre as quais não havia ainda regulamentação geral, e concluía
com uma acusação direta aos juízes:
77
Cf. BN-HDB – Correio Paulistano – Guaratinguetá, Orphãos da Comarca – p. 02, 08.09.1880.
78
Sobre a Colônia Isabel, ver: ARANTES, Adlene Silva. O papel da Colônia Orfanológica Isabel na
educação e na definição dos destinos dos meninos, negros, brancos e índios na província de
Pernambuco (1874-1889). 2005. 233f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2005.
166
79
Cf. BN-HDB – Correio Paulistano – As colonias orphanologicas – p. 03, 24.02.1882.
167
mulheres transviadas80. O fazendeiro proprietário da colônia, por sua vez, era retratado
com tintas diversas: ele seria a inspiração e orientação paterna que faltava aos órfãos para
que se transformassem, no futuro, em trabalhadores morigerados que pudessem,
inclusive, acudir suas mães desvirtuadas.
Recorrendo ao mesmo argumento de que seria mais seguro e proveitoso submeter
diversos jovens ao trabalho supervisionado por um único fazendeiro – um verdadeiro pae
– em lugar de diversos tutores mais ou menos idôneos, “Os Orphãos” argumentavam:
Se, pois, é licito dar orphãos a soldada, porque motivo hão de ser
preferidos os simples particulares, quando estes, espalhados em
distancias mais ou menos longas pela superficie de um ou mais termos,
apenas se limitam a fazer dos orphãos seus camaradas, criados,
tropeiros e tudo mais quanto serve a rebaixal-os a condição igual senão
inferior a dos escravos; sem beneficio, instrucção alguma physica,
intellectual e moral; porque a acção protectora do juiz nem sempre
chega para fiscalizar a todos, assim disseminados? Que inconveniente
e illegalidade existe em reunil-os n’uma colonia onde, ao contrario,
dispondo o fundador quase sempre de recursos e a acção do juiz sendo
prompta, mais facilmente se preenchera o fim das ordenações, dando-
se aos orphãos uma educação coneviente e garantindo-se-lhe um futuro
auspicioso e seguro, sob uma direcção intelligente, methodica e
racional?
Por fim, os articulistas concluíam sua defesa indicando a tarefa fundamental a ser
cumprida pelas colônias orfanológicas e seus proprietários na eliminação das ameaças à
pátria, representadas pela desocupação e mandriice dos pequenos desvalidos – a melhor
defesa, diz a sabedoria popular, é o ataque:
melhor é ver-se os orphãos assim encaminhados e protegidos á deixa-
los em completa ignorancia e ociosidade, mimoseando mais tarde a
patria com um enxame de mendigos e vadios, com uma enxente de
criminosos e facinoras, para vergonha nossa e belleza da estatistica
criminal deste pobre e infeliz paiz, não obstante ser elle essencialmente
agricola!... como bem termina o generoso articulista.
80
Esta oposição entre representações positivas e negativas da maternidade em torno do trabalho de menores
de idade movimentará debates públicos e disputas judiciais especialmente entre as décadas de 1870 e 1890
em São Paulo, da mesma forma como constatado por Cowling sobre o Rio de Janeiro e Havana. Este é o
tema de investigação do capítulo 4 da tese ora apresentada. COWLING, C. Conceiving freedom..., op. cit.
168
81
Cf. BN-HDB – A constituinte – Collaboração – Representação Provincial – pp. 01-02, 27.04.1880.
82
Os motivos da não adoção do trabalho contratado de asiáticos no Brasil não parecem ainda de todo
esclarecidos. Peter Eisenberg aborda os debates em torno da vinda de trabalhadores asiáticos no Congresso
Agrícola de 1878, ressaltando que as oposições ao projeto se davam geralmente em termos civilizacionais,
apontando a contribuição deletéria destes trabalhadores para a formação do caráter racial nacional. Maria
Lúcia Lamounier e Luiz Felipe de Alencastro abordam de forma ligeira a vinda de chineses no âmbito dos
projetos de imigração negociados pelo governo imperial. EISENBERG, Peter. “A mentalidade dos
fazendeiros no Congresso Agrícola de 1878”. In: Homens esquecidos..., op. cit.; ALENCASTRO, Luis
Felipe de. Proletários e escravos: imigrantes portugueses e cativos africanos no Rio de Janeiro, 1850-1872.
169
Novos Estudos CEBRAP, n.21, p. 30-56, 1998; LAMOUNIER, Maria Lucia. Agricultura e mercado de
trabalho: trabalhadores brasileiros livres nas fazendas de café na construção de ferrovias em São Paulo,
1850-1890. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 37, n. 2, p. 353-372, 2007.
83
De acordo com o art. 1º § 1º da lei 2040, a indenização corresponderia a 600 mil réis. Alguns autores já
destacaram o fato de que, para as províncias dos atuais norte e nordeste, os ingênuos consistiam num
problema menos pronunciado, haja vista o fato de o tráfico interprovincial ter já encaminhado grande parte
dos plantéis ao Sudeste. Neste sentido, a preocupação nestas áreas concentrava-se em elaborar medidas que
obrigassem a população não escravizada ao trabalho. Leituras clássicas a este respeito são: CONRAD,
Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978,
especialmente pp. 149-165; EISENBERG, P. A mentalidade dos fazendeiros..., op. cit. Ver também:
DANTAS, M.D.; COSTA, V.C. O pomposo nome da liberdade do cidadão.... O texto clássico de Ademir
Gebara sobre “a transição do escravismo ao trabalho livre” aborda a centralidade da preocupação com os
ingênuos nas áreas cafeeiras: GEBARA, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
170
multiplicavam ao longo das décadas finais do século XIX incorporavam também os “rio
branco” aos quadros dos educandos trabalhadores. Algumas delas, como a pioneira
Colônia Izabel instalada no Recife pouco após a promulgação da lei 2040, destinavam-se
abertamente a este fim. Outras, como informa Marcos Fonseca, foram criadas durante a
década de 1880 se não com o propósito exclusivo de receber ingênuos, com protocolos
amplamente inclusivos a esta categoria de pequenos trabalhadores84.
Fossem as colônias criadas e mantidas com fundos públicos, fossem elas
empreendimentos de fazendeiros que convertiam suas propriedades em instituições
asilares, usufruindo assim do lucro fácil do trabalho tutelado, explorado, mal remunerado
dos menores institucionalizados, certamente não se furtariam a receber o influxo dos
ingênuos no rol de seus internos. De fato, não apenas os ingênuos, mas também os
pequenos libertos poderiam ser admitidos nesses empreendimentos, como foi o caso de
José, Theotonio e Maximiano, filhos da finada Emilia e ex-escravos de Belchior da Rocha
Penteado, proprietário de São Paulo, que entre os finais de janeiro e inícios de fevereiro
de 1878 foram contratados à soldada para trabalhar na “Colônia Orphanologica São Paulo
das Cachoeiras”. Instalada numa fazenda a cerca de três léguas da cidade de Amparo, de
propriedade dos Srs. Gomes e Mouth, a colônia era apresentada nas páginas do Correio
Paulistano como um ensaio de “systema de trabalho não só util aos seos estabelecimentos
como á sociedade”85. Os meninos contavam a idade de 14, 11 e nove anos,
respectivamente, de modo que nenhum teria nascido de ventre livre. Depois de orfanados
e libertos, permaneceram sob a tutela de seu antigo senhor, até que este veio a falecer e a
sorte dos pequenos foi lançada às mãos do Juízo de Órfãos da Capital.
Gomes e Mouth, os proprietários da colônia, procuraram o Juízo por saber da
existência dos três meninos desvalidos no termo da Capital, propondo contratá-los nas
condições do convênio inscrito na Província no ano anterior86. Deste modo, José, o mais
velho dos irmãos, poderia imediatamente passar a vencer soldadas a serem depositadas
em uma caderneta em seu nome na Caixa Econômica provincial. Theotonio e Maximiano,
mais novos, no entanto, somente poderiam receber pagamentos quando atingissem 13
anos de idade; até lá, receberiam educação moral e religiosa, tratamento e vestuário.
84
Eram os casos da Colônia Oprhanolgica Cristina, fundada no Ceará justamente em 1880; da Colônia
Blasiana, criada em 1881 em Goiás; da Colônia Ophanologica de Nossa Senhora de Itabira, de Minas
Gerais, em 1884; e da Colônia Orfanológica Isabel, de Salvador, em 1886. FONSECA, M. A educação dos
negros..., op. cit., p. 99-103.
85
Cf. BN-HDB – Correio Paulistano – Colonia orphanologica – pp. 01-02, 08.02.1881.
86
O convênio infelizmente não foi localizado entre a documentação disponível no APESP, de modo que as
minúcias das condições de contratação dos libertos não podem ser esclarecidas.
171
Consultado acerca das vantagens oferecidas aos menores, o curador dos “escravos”, como
os irmãos foram referidos nos autos de contrato, assentiu concordando que, sob a direção
de Gomes e Mouth na colônia, adquiririam “hábitos de trabalho e educação” 87.
Quando o relatório do comissário provincial para inspeção da colônia foi publicado
no Correio em 1881, nenhuma menção específica foi feita ao fato de o empreendimento
aceitar, entre seus trabalhadores, meninos libertos. O relatório mencionava ser a cultura
do café a principal da colônia, contando àquele momento com 56 mil pés, entre maduros
e recentemente plantados, que produziriam cerca de 400 ou 500 arrobas por ano. O
cafezal, conforme esclarecia o relato, fora plantado à empreitada por paulistas e cearenses
remunerados em 400 réis por pé, além do “direito de plantarem no intervalo dos pés todos
os cereais necessarios a seo sustento”.
Os primeiros dois órfãos contratados pela colônia, fundada em novembro de 1877,
haviam lá chegado em janeiro de 1878, de modo que José, Theotonio e Maximiano
estavam certamente entre os menores pioneiramente arregimentados pelo
empreendimento. Nenhuma observação específica, entretanto, é feita a respeito da origem
social destes jovens e pequenos trabalhadores; se eram libertos, como os três irmãos
orfanados de que se trata o contrato localizado, ingênuos, nacionais livres ou imigrantes
não se sabe ao certo. Possivelmente todas essas categorias de subalternidade viam-se
representadas e reunidas, se não numa única colônia como a “São Paulo das Cachoeiras”,
nas diversas espalhadas pelo território imperial. Naquele ano de 1881 em que escrevia, o
relator informava dispor a colônia de 36 órfãos de idades entre nove e 19 anos; fazia parte
dos planos do diretor, esclarecia o observador, que os maiores e mais robustos fossem
treinados no serviço por empreitada por três anos, entregando-lhes um certo número de
pés de café para serem cuidados a ver se poderiam, no futuro, substituir aquelas entre as
12 famílias de empreiteiros ainda residentes na colônia que viessem a se retirar. O
relatório era concluído, enfim, numa nota positiva observando que
a colonia agricola orphaonologica dos srs. Gomes & Mouth não passa
por enquanto de um ensaio, mas (...) já mostra o quanto se deve esperar
deste systema de trabalho agricola, que póde tornar-se um importante
auxiliar para a grande lavoura (...) a iniciativa dos proprietarios da
colonia de S Paulo das Cachoeiras é digna dos maiores elogios, pois
mostra que, nesta provincia, com as terras de cultura que possuimos,
com o nosso clima excellente e com o tirocinio que já temos embora
pequeno, do trabalho livre, não devemos descrer no futuro, quaisquer
que sejam os abalos sociaes porque tenhamos de passar. O que cumpre
aos nossos fazendeiros é deixarem a rotina, despirem-se dos
87
Cf. APESP – Juízo de Órfãos – Autos de contrato – Lata C05358, documento 6, 1878.
172
88
A “Grande Seca” seca que atingiu o Ceará entre 1877 e 1879 trouxe uma série de consequências para a
província, desde a morte de grande parte da população até sua massiva migração para o Amazonas. José
Weyne Sousa avalia os impactos trazidos por este fenômeno ao crescimento da população de crianças
pobres nas ruas de Fortaleza, e as consequentes medidas tomadas pelo Estado para conter os delitos da
chamada “Companhia da Russega”. Sobre a grande seca e seus muitos impactos sociais, ver: NEVES,
Frederico de Castro. “A capital de um pavoroso reino”: Fortaleza e a seca de 1877. Tempo, Niterói, n. 9,
p. 93-111, 2000; SOUSA, José Weyne de. Artífices, criadas e chicos: as experiências urbanas das crianças
órfãs e pobres em Fortaleza (1877-1915). 2004. 219f. Dissertação (Mestrado em História Social) –
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2004.
173
89
Mesmo não recebendo atenção específica dos viajantes em passagem pelo Brasil, a participação de
crianças livres empobrecidas e escravizadas no mundo do trabalho é recorrentemente aludida nos seus
relatos, como indica o artigo de Miriam Moreira Leite. LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. A infância no
século XIX segundo memórias e livros de viagem. In: FREITAS, M.C. (Org.). História social da infância
no Brasil. Cortez. São Paulo. USF. 1997, p. 17-50.
90
Algumas importantes referências a este respeito, que espelharam interpretações de inspiração
foucaultiana sobre o controle social, dando menor ênfase à questão da emancipação, são: COSTA, Jurandir
Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1989; RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré
ao lar: a utopia da cidade disciplina – Brasil (1890-1930). Rio de Janiro: Paz e Terra, 1997. Estudos
174
clássicos como os de Ademir Gebara e Lúcio Kowarick, por sua vez, embora atados a paradigmas de
“transição de formas de trabalho” já criticados, deram maior ênfase aos significados da abolição para a
emergência de ideias nacionais modernizantes: GEBARA, A. O mercado de trabalho..., op. cit.;
KOWARICK, Lucio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo, Paz e Terra,
1994.
91
Da Corte chegava o relato de que o Ministério da Justiça expedira Aviso informando que, sendo
apreendidos pelo chefe de polícia “menores nacionaes ou estrangeiros que vagam pelas ruas da cidade
sem amparo ou protecção”, o juiz de órfãos responsável deveria procurar sua admissão nas Companhias de
Aprendizes de Guerra ou da Marinha, no Asilo de Meninos Desvalidos do município neutro ou, por fim,
dá-los à soldada, “não só os mesmo orphãos como os filhos de paes incognitos”. Da Bahia, repercutia a
notícia de que a presidência da província recebia em 1887 circular do Ministério da Agricultura a respeito
da “sorte dos menores desvalidos que em lastimosa condição de ignorancia e ociosidade, abundam nas
cidades, villas e povoados dessa província”. O “modo pratico de melhorar aquella condição”, segundo a
circular, seria que os juízes de órfãos dessem os menores à soldada, na expectativa de que “a predicta
providencia produza na pratica os melhores resultados, concorrendo para formar cidadão úteis a si e á
pátria”. Cf. Bn-HDB – Correio Paulistano – Infancia desvalida – p. 01, 01.12.1885; Correio Paulistano –
Menores desvalidos – p. 01, 19.10.1887.
92
Cf. BN-HDB – Correio Paulistano – Oprhãos e menores – p. 01, 21.10.1886.
93
MARCÍLIO, M.L. História social da criança..., op. cit., p. 222. Além de Marcílio, os autores dedicados
ao tema da assistência social tendem a reiterar a ideia de que as instituições filantrópicas foram o principal
175
modelo de encaminhamento dos menores desvalidos no final do XIX, dedicando pouca atenção a
mecanismos de poder pessoal e individualizado como as tutelas e soldadas: RIZZINI, I. O século
perdido..., op. cit.; FONSECA, Sérgio. Infância e disciplina: O Instituto Disciplinar do Tatuapé em São
Paulo (1890-1927). Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2007; ______. A interiorização da assistência à infância
durante a Primeira República. Educação em Revista, Belo Horizonte, v.28, n.01, p. 79-108, 2012.
94
FONSECA, M. A educação dos negros..., op. cit., p. 96-97. Ione Celeste de Souza cita os mesmos dados,
acrescentando que a estimativa inicial do governo era que 240 mil ingênuos fossem entregues ao Estado.
SOUSA, Ione Celeste de Jesus. Escolas ao povo: experiências de escolarização de pobres na Bahia (1870-
1890). 2006. 403f. Tese (Doutorado em História Social) – Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo,
2006, p. 133.
176
95
Cf. Relatorio apresentado á Assembleia Geral Legislativa na Primeira Sessão da Décima Sétima
Legislatura pelo Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Agricultura, Commercio e Obras
Publicas, João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu. Rio de Janeiro: Imprensa Industrial de João Ferreira
Dias, 1878, apud FONSECA, E. A educação dos negros..., op. cit., p. 80.
96
Cf. Lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871, art. 1º §1º. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm>. Acesso: 24 set. 2016.
97
Arquivo Público da Bahia, livro 773. Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Agricultura,
Commercio e Obras Publicas. Directoria da Agricultura. 2ª Secção. Circular Reservada. Rio de Janeiro, 22
de Novembro de 1878. Ministro João Luis Vieira Cansanção de Sinimbu, apud SOUSA, I.C.J Escolas ao
povo…, op. cit., p. 133.
98
O recrutamento compulsório era motivo de generalizado pavor entre os homens empobrecidos e suas
famílias no Império, especialmente no caso dos sujeitos sem ofício certo e vivendo no limite do improviso
177
mais à frente nesta tese, que parte significativa dos menores que se encontravam em
situação de grande vulnerabilidade social, e assim, viviam mais intensamente expostos ao
aliciamento compulsório de seu trabalho, era justamente a população dos menores
egressos ou descendentes da escravidão99. Esta ameaça, porém, estendia-se às diversas
gradações da pobreza enredadas nas malhas de acolhimento e proletarização que
entrelaçavam interesses públicos e privados e intensificava-se na mesma proporção em
que cresciam a pobreza urbana e a população de crianças desvalidas nas ruas das cidades.
A presença de crianças empobrecidas nas ruas, engajadas nos pequenos serviços e
também nas diabruras, gatunagens e até violências que tanto importunavam à boa
sociedade, foi uma constante nas cidades imperiais desde a primeira metade do século
XIX. Miriam Moreira Leite destaca os comentários de viajante Robert Walsh sobre os
ataques violentos promovidos por bandos de moleques no Rio de Janeiro, durante a
Revolta de São Cristóvão em 1828100. Walter Fraga, em estudo anteriormente referido,
indica que desde o início do século “maltas de peraltas” formadas por meninos livres,
libertos e escravos reuniam-se nas ruas e engajavam-se em todo o tipo de desafio à ordem
pública e privada, representante do mundo dos adultos integrado por policiais, senhores
e mestres de ofício101. Tratando da cidade de São Paulo, Boris Fausto indica que desde a
começo do oitocentos a “quebra dos bons costumes” era associada a “menores vadios,
mendigos e meninas prostitutas”102. Ao longo do século, e notadamente a partir da década
de 1870, no entanto, com o crescimento acelerado das cidades e, consequentemente, da
população e da pobreza urbanas, a preocupação com os “meninos e meninas vadios”
ganhou maior espaço entre autoridades públicas e elites e passou a movimentar mais
103
Estudos como os de Walter Fraga, Vera Lúcia Braga de Moura e Irene Rizzini, por exemplo, indicam
que o combate à proliferação dos menores vadios nas cidades, bem como nas áreas rurais, teria ocupado
grande parte dos esforços de autoridades públicas com a criação de instituições asilares nas décadas finais
do XIX. Silvania Damacena Martins, por sua vez, promovendo uma dissenção algo artificial entre projetos
políticos e práticas sociais, reputa esta interpretação como ingênua, mencionando que a presença de crianças
empobrecidas e potencialmente consideradas vadias nas ruas das cidades fora uma constante durante o
século XIX. Deste modo, para a autora, não seria o combate à vadiagem, mas a existência de um projeto
político modernizante e civilizatório nas últimas décadas do Império. MARTINS, Silvania Damasceno.
Reformando a casa imperial: assistência pública e a experiência do Asylo de Meninos Desvalidos da
Corte (1870-1888). 2004. 100f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
104
O Aviso foi reiterado em 1892 por nova consulta feita ao mesmo ministério, conforme indica Hélvio
Mariano. BRASIL. N.º6 – aviso de 22 de março de 1892, apud MARIANO, H.A. A infância e a lei..., op.
cit., p. 53-54.
179
105
FAUSTO, B. Crime e cotidiano..., op. cit., p. 95.
106
FAUSTO, B. Crime e cotidiano..., op. cit., p. 95-96. A este respeito, conferir também as observações
de Cândido Nogueira da Motta, que registrou o crescimento da criminalidade de menores de idade na
década de 1890 na cidade: MOTTA, Cândido Nogueira da. Os menores delinquentes e seu tratamento
no estado de São Paulo. São Paulo: Typographia Diario Oficial, 1909.
107
Sobre a fundação do Instituto Disciplinar e sua relação com a emergência do controle jurídico da
infância, ver: MARIANO, H.A. A infância e a lei..., op. cit.; ALVAREZ, M.C. Emergência do Código
de Menores..., op. cit.; FONSECA, Sérgio C. Infância e disciplina..., op. cit.
108
Cf. BN-HDB – O Commercio de S. Paulo – Pequenas Notas, p. 01, 17.09.1893.
181
109
Segundo indica Affonso de Freitas, O Commercio de S. Paulo, fundado no mesmo ano de 1893 quando
foi publicado o editorial em questão, constituiu-se “num dos principais órgãos da imprensa paulistana”,
tendo pertencido inicialmente à firma comercial Cezar Ribeiro & Comp. Inicialmente folha monarquista,
sob direção de intelectuais ilustres como Eduardo Prado e Couto de Magalhães Sobrinho, O Commercio de
S. Paulo dedicou-se, em seus primeiros anos, a criticar ferrenhamente o governo republicano. Em 1915,
quando Freitas publicou seu inventário da imprensa paulistana, o jornal alinhava-se ao governo, tendo
aderido abertamente ao republicanismo. FREITAS, Affonso. A imprensa periódica de São Paulo desde
seus primordios em 1832 até 1914. São Paulo: Typographia do Diario Official, 1915, p. 396-397.
110
Uma significativa literatura jurídica sobre infância e criminalidade foi produzida entre as duas décadas
finais do século XIX e o início do XX no Brasil, inspirada pela vulgarização das teorias criminológicas
lombrosianas, das ideias higienistas e racialistas e das ascendentes preocupações com o destino da infância
no projeto de modernização nacional. A este respeito, ver: BRANCO, M.A. A criança e a ordem..., op.
cit.
183
menores, foi repisada em muitas solicitações encaminhadas aos Juízos de Órfãos nos
diversos cantos do Império111.
A retórica da moralização dos pequenos desvalidos por meio da disciplina do
trabalho não era propriamente inédita, porém, quando, a partir da década de 1880, as
solicitações de tutela e soldada se acumularam na cidade de São Paulo (Tabela 1, p.183).
A criação das primeiras instituições asilares, como os educandários de Sant’Anna e da
Glória na capital da província, fundava-se também na noção de que a educação pelo
trabalho seria instrumento de morigeração de sujeitos que, de outro modo, ficariam
entregues aos perigos do ócio e seus vícios morais112. As tutelas e soldadas determinadas
pelo Juízo da cidade que se avolumavam por volta da década de 1850, no entanto, não
sublinhavam de forma tão enfática o papel de tutores e contratantes como agentes
educadores dos menores desvalidos por eles empregados. Encontram-se nestes autos
registros de compromissos vagos como o de “completar a educação” do menor
contratado, fornecer “educação em escrita e contas”, prover a instrução nos serviços ou
ofícios contratados ou, ainda, garantir a “educação religiosa dos menores”. As menções
à educação dos pequenos que se acumulam nos autos registrados ao longo daquela década
são menos carregadas do tom apostolar que viriam a assumir anos mais tarde no arco das
emancipações e do pós-abolição.
Décadas 1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890 1900 1900
Registros 1 - 5 26 5 8 62 50 24 6
%* 0,53 - 2,67 13,9 2,67 4,27 33,15 26,73 12,83 3,20
Total 187
111
Referimo-nos aqui aos trabalhos citados à nota 79 deste capítulo, que serão mais densamente comentados
no próximo capítulo da tese ora apresentada.
112
Ver, por exemplo: MORAES, C.S.V. A normatização da pobreza..., op. cit.
184
113
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de Contrato, lata C05358, documento 20, 1887.
114
Cf. APESP - Tribunal de Justiça de São Paulo, lote 201006003403 - Contracto a soldada, 1888.
115
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de Tutoria, lata C05457, documento 6335, 1891.
185
116
De forma semelhante, Irma Rizzini indica que iniciativas de educação de adultos como praças da polícia,
empregados nos arsenais da marinha, trabalhadores em geral e mesmo escravos proliferaram no Amazonas
e no Pará, a partir da década de 1870. RIZZINI, I. O cidadão polido e o selvagem..., op. cit.
117
Diversos autores têm ressaltado o importante papel desempenhado pela instrução pública nos projetos
de modernização e integração nacional, bem como na formação de mão de obra livre. Destacam-se, entre
eles, os trabalhos de Alessandra Schueler: SCHUELER, Alessandra F Martinez de. Crianças e escolas na
passagem do Império para a República. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19, n.37, 1999;
MARTINEZ, Alessandra Frota. Educar e instruir: a instrução popular na Corte imperial. 1870 -
1889. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1997. A este
respeito, ver também: SOUSA, I.C.J. Escolas ao povo…, op. cit. As referências clássicas a respeito da
história da instrução pública na província paulista, bem como no nascente estado republicano, são ainda s
estudos de Moacyr Primitivo: PRIMITIVO, Moacyr. A instrução e as províncias: subsídios para a história
da educação no Brasil (1834-1889). São Paulo: Companhia Editora Nacional,1940; ______. A instrução
pública no estado de São Paulo: primeira década republicana (1890-1900). São Paulo: Editora Nacional,
1942.
186
118
Sobre o desenvolvimento da ideologia da aprendizagem em diferentes contextos da escravidão atlântica,
ver as discussões de Rebecca Scott e Thomas Holt, respectivamente sobre o Caribe espanhol e o Caribe
inglês, bem como o trabalho de Joanne Melish para a Nova Inglaterra: HOLT, Thomas C. The problem
of freedom: race, labor and politics in Jamaica and Britain, 1832-1938. Baltimore: Johns Hopkins
University Press, 1992; MELISH, Joanne Pope. Disowning slavery: gradual emancipation and “race” in
New England, 1780-1860. Ithaca, New York: Cornell University Press, 2000; SCOTT, Rebecca J.
Emancipação Escrava em Cuba: A transição para o trabalho livre, 1860-1899. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987.
119
AZEVEDO, Célia Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século
XIX. São Paulo: Annablume, 2008, p. 45. A respeito do contexto cubano e da Nova Inglaterra, ver:
MELISH, J.P. Disowning slavery..., op. cit.; SCOTT, R.J. Emancipação escrava em Cuba..., op. cit.
187
120
Note-se, a este respeito, que as preocupações com a formação da população pobre para a ética do trabalho
livre na sociedade de mercado britânica redundaram, a partir da década de 1840, na elaboração de uma série
de projetos de educação dos trabalhadores fabris. Comentando a justaposição do ideário liberal que
orientava as reformas do trabalho livre e fabril na metropole britânica e a agenda da emancipação gradual
na colônia caribenha, diz Holt: “Those who attended the parliamentary hearing on slavery abolition heard
much the same message about blacks, in much the same words, that they might have heard elsewhere in its
halls about white labor. In a sense, the British experience with its own working class was a rehearsal for
the formulation of policy for West Indian freed people”. HOLT, T. The problem of freedom…, op. cit., p.
39.
188
121
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de Tutela, lote C05456, documento 6024, 1890-1900.
189
122
MONTEIRO, John Manuel. Labor Systems, 1492-1850. In: COATSWORTH, John H; CORTÉS-
CONDE, Roberto and BULMER-THOMAS, Victor (Ed.). Cambridge Economic History of Latin
America. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. Disponível em:
http://www.ifch.unicamp.br/ihb/estudos/Labor1492-1850.pdf). Acesso: 24 set. 2016; STANLEY, Amy
Dru. From bondage to contract: wage labor, marriage and the Market in the age of slave emancipation.
Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
190
123
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05455, documento 9206, 1881.
124
Cf. BN-HDB – Correio Paulistano – Sessão “Daqui e d’ali”, sem título, p. 02, 04.12.1883.
191
Capítulo 4
Tramas do contrato
Fazia cerca de três meses que o Dr. Eugenio da Silva procurara a Santa Casa de
Misericórdia de São Paulo “pedindo uma exposta para morar em sua companhia e
educal-a” quando, no fim de janeiro de 1888, acorreu ao Juízo de Órfãos renunciando
aos direitos e responsabilidades adquiridos sobre a menor Olympia que se encontrava
fugida de sua casa. Antes da debandada, a pequena, identificada como parda e filha da
também parda Emília de tal, fora-lhe cedida pelo distinto provedor da Misericórdia,
Rafael Tobias de Aguiar Paes de Barros, por estar “em idade de ser tutellada, a fim de
se achar conveniente dal-a tutella daquelle Senhor (..)”1. Sobre o destino de Olympia,
após sua escapulida, nada se sabe, assim como nada informam os autos sobre o
momento em que os vínculos com sua mãe, apenas corriqueiramente mencionada,
foram rompidos. É possível que Emília tivesse falecido após o parto de sua filha no
Hospital de Misericórdia, que àquela época atendia a grande quantidade de parturientes
pobres e negras, e, não tendo quem mais por ela se responsabilizasse, Olympia ali
tivesse permanecido, sem pais ou família, aos cuidados do asilo de expostos2. É
possível, da mesma forma, que fustigada pela profunda pobreza que atingia boa parte da
população na cidade, Emília tivesse entregado anonimamente sua filha aos cuidados da
mesma instituição, esperando que assim tivesse melhor sorte do que vivendo em sua
companhia3. É plausível, afinal, que depois dessa forçada separação, Olympia tivesse
1
Cf. APESP – Tribunal de Justiça de São Paulo, lote 201006003491, Contrato a soldada, 1887. Até
1896 a Santa Casa de Misericórdia mantinha um asilo de expostos em suas dependências, onde eram
mantidos os órfãos de mulheres falecidas no hospital de caridade ou abandonadas após o nascimento na
mesma instituição. A partir desta data, diante da emergência do sanitarismo e higienismo que
condenavam a permanência de crianças nos ambientes contaminados pela doença da Misericórdia, o asilo
foi transferido para a Chácara Wanderley, situada na região do Pacaembu, vindo depois a chamar-se Asilo
de Expostos Sampaio Vianna em homenagem a mais entusiasmado proponente e primeiro diretor.
KUHLMANN Jr, Moysés; ROCHA, José Fernando Telles da. Educação no Asilo dos Expostos na Santa
Casa em São Paulo: 1896-1950. Cadernos de Pesquisa, v.36, n.129, p.597-617, 2006.
2
MESGRAVIS, Laima. A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (1599?-1884): contribuição ao
estudo da assistência social no Brasil. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1976 (Coleção Ciências
Humanas, 3). Durante toda a década de 1880 e 1890, são frequentes nos jornais os anúncios de eventos
beneficentes feitos em prol da construção e dos melhoramentos da maternidade da Santa Casa, bem como
as campanhas tocadas por ligas de senhoras da boa sociedade paulistana que objetivavam levantar fundos
para o mesmo fim.
3
Sobre a pobreza urbana em São Paulo entre o final do século XIX e o início do XX, ver: PINTO, Maria
Inez Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência: a vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo,
1890-1914. São Paulo: Edusp: Fapesp, 1994; SANTOS, Carlos José Ferreira. Nem tudo era italiano: São
Paulo e pobreza (1890-1915). São Paulo: Annablume /Fapesp, 2008.
192
fugido justamente para reunir-se à sua mãe, como acontecia a outros tantos menores
trabalhadores da cidade.
Se os descaminhos que separaram mãe e filha encontram-se obscurecidos na
documentação judicial que alcança nossos dias, os vínculos que ataram, ainda que por
curto tempo, as vidas de Olympia e do Dr. Eugenio Silva, são elucidados pela justiça. À
solicitação da tutela de “uma exposta” pelo mesmo Silva e à ulterior concessão da
guarda de Olympia a ele feita pelo provedor da Santa Casa de Misericórdia, sucedeu-se
a formalização do arranjo estabelecido por meio de um contrato de soldada, cujos
termos foram determinados pelo juiz depois de emitido parecer do curador-geral de
órfãos. Destarte, ficou acertado entre curador e contratante que
(...) Dr Eugenio Silva recebe em sua casa a orphan Olympia, parda,
filha de Emilia de tal, para prestar-lhe os serviços domesticos
compativeis em suas habilitações, pelo tempo de 3 annos, obrigando-
se a, alem de sustental-a, vestil-a cural-a, quando doente, pagar por
aquelles serviços, no 1º anno a rasão de 5$ por mês, no 2º anno a rasão
de 6$, e no 3º anno a rasão de 8$ por mês, pagando adiantamente a
importancia de cada trimestre, que exhibirá neste cartorio para ter o
destino legal; e se dentro de oito dias depois do começo de qualquer
trimestre não effectuar o pagamento adiantado (...) será mais obrigado
a pagar a multa de 20$. E de como assim ajustaram e declararam,
lavrei este termo (...).
4
A respeito do agenciamento da mão de obra de crianças institucionalizadas, ver, entre outros:
MARCÍLIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998.
193
5
Ordenações Filipinas, Livro 4º, Título 31. <Disponível em:
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p212.htm>. Acesso: 24 set. 2016. O restante das disposições das
Ordenações Filipinas aplicáveis aos menores assoldadados, além de genéricas, referiam-se amplamente a
todo o conjunto de criados e trabalhadores empobrecidos sujeitos à legislação, inclusive os adultos.
194
serviços dos menores foram pareados pela delimitação mais significativa de critérios
raciais e o apelo a justificações morais que deram o tom e a cara definitiva às soldadas
em sua “era dourada”6. Uma relação detalhada dos arranjos de trabalho envolvendo
crianças e jovens formalizados pelo Juízo de Órfãos municipal, ao longo do século XIX,
pode mostrar-se útil para aclarar a compreensão sobre as políticas de formalização de
vínculos de trabalho estabelecidos, desde há muito, no campo da informalidade.
6
O decreto nº 1.237, expedido em setembro de 1864, dispunha sobre as “hypothecas legaes
especialisadas”, entre quais se incluía a das tutelas, que deveria lastrear, por meio de um fiador, a
idoneidade do tutor e assegurar o adequado encaminhamento dos bens do tutelado. A partir da década de
1870, as menções a hipotecas e fiadores são abolidas das soldadas, muito provavelmente porque, em se
tratando de menores empobrecidos, não possuíam bens a serem assegurados. A última referência a
fiadores encontradas nos contratos de soldada data de 1874. Cf. Decreto nº 1.237 de 24 de setembro de
1864. <Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1237-24-
setembro-1864-554789-publicacaooriginal-73725-pl.html>. Acesso: 30 out. 2016.
7
Consultar nota 80 do capítulo 1.
8
AZEVEDO, Gislane Campos. De Sebastianas e Geovannis: o universo do menor nos processos dos
juízes de órfãos da cidade de São Paulo (1871-1917). 1995. 181f. Dissertação (Mestrado em História) –
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1995.
195
9
Cf. APESP – Juízo de órfãos, Autos de tutoria, lata C05457, documento 6010, 1893-1894.
196
excluindo-se deste grupo: a) os menores de idade aos quais se atribuíam tutores para
gerir seus bens, e b) os menores cuja curatela era disputada entre parentes, como pais,
mães, avós e tios10.
10
A metodologia de pesquisa, neste caso, adotou parâmetros distintos daqueles aplicados à busca por
registros abertamente relacionados à arregimentação de serviços. Se neste caso diversas séries
documentais foram vasculhadas em busca de indícios de formalização de arranjos de trabalho, no caso
das tutelas apenas o conjunto intitulado “Autos de Tutoria”, pertencente ao fundo Juízo de Órfão de São
Paulo, foi inventariado de modo a compor-se uma amostra documental seriada. Essa opção metodológica
explica-se pela dificuldade de definir-se, entre os diversos registros disponíveis, um tipo documental
específico que caracterizasse as relações tutelares. Muitos são os documentos indiretamente referidos à
guarda de menores de idade na cidade de São Paulo, ao longo do século XIX, e as referências a essas
relações surgem em circunstâncias bastante diversas, como em solicitações de apreensão de menores,
pedidos de emancipação para casamento ou disputas entre familiares. Dado o caráter fragmentário desses
vestígios de relações tutelares, que não poderiam ser recompostas em sua integridade, optou-se por
utilizá-los somente de forma qualitativa nos capítulos da tese.
11
O recorte temporal apontado no título desta e das demais tabelas relativas a tutelas refere-se ao período
delimitado pela localização de contratos de trabalho junto aos autos do fundo Juízo de Órfãos do APESP.
A despeito desse recorte ampliado, não foram localizados registros formais de tutela de menores
despossuídos antes da década de 1840 e após a década de 1900.
197
T3. Registros de tutelas de menores de idade despossuídos por década sem soldadas
(São Paulo, 1840-1900)
12
As 129 tutelas distribuem-se da seguinte maneira no que tange às relações pregressas entre candidatos a
tutores e tutelados: 56 pleiteantes tinham relações de tutela informal com os menores, frequentemente
sendo senhores ou ex-senhores de suas mães; 28 tutelas são solicitadas por parentes, que desejam retirar
os menores do domínio informal de terceiros; 5 tutelas são solicitadas pelos próprios menores; 5 são
solicitadas por parentes ou conhecidos de tutores anteriores; 4 tutores são indicados pelas mães dos
menores; finalmente, há 31 casos para os quais não existe menção a qualquer relação pregressa entre
tutores e tutelados.
13
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05458, documento 6033, 1895.
198
A despeito dos usos muito semelhantes dados a tutelas e soldadas, porém, cumpre
observar as particularidades de cada uma dessas fontes que iluminam perspectivas
diferentes dos descaminhos da formalização de protocolos do trabalho livre de menores
de idade no Brasil do século XIX14. Integrando-se a um cenário cambiante de relações
de trabalho, proporcionado pelas pressões da emancipação, as tutelas mantiveram-se, do
ponto de vista formal, relativamente inalteradas em sua diversidade. Concedidas a partir
de solicitações encaminhadas ao Juízo de Órfãos ou por recomendação de autoridades
públicas, eram sempre justificadas pelo interesse de acolher menores desvalidos e
orfanados, formalizando relações de agregação social estabelecidas desde a Colônia
sem, contudo, estabelecerem um padrão formal sólido ou marcadamente particular ao
longo das décadas15. Os arranjos explícitos de arregimentação da mão de obra dos
menores de idade, por seu turno, embora se concentrando nos mesmos períodos em que
se verifica o acúmulo de tutelas, expressam a aproximação dos protocolos do trabalho
livre a formas contratuais de arregimentação de serviços – processo inaugurado na
primeira metade do século XIX, mas agudizado em suas décadas finais16. No limite, o
abandono dos contratos de soldada, nas décadas iniciais do século XX, em
contraposição à longevidade das tutelas denota, como se verá ao fim deste capítulo, a
vitória do imperativo da dependência sobre o trabalho de menores de idade no pós-
abolição – ao menos na cidade de São Paulo, até a aprovação do Código de Menores, e
notadamente no que diz respeito ao trabalho doméstico.
Assim como ocorreu às tutelas, a diversidade também marcou por algum tempo os
arranjos formais de trabalho que recrutavam explicitamente os serviços de crianças e
jovens na cidade de São Paulo. Ao longo do século XIX, esses arranjos assumiram
formas e condições variadas, frequentemente identificando-se pelo nome genérico de
14
De fato, as tutelas e soldadas têm sido abordadas pela literatura de forma relativamente indistinta, de
modo que as particularidades de cada uma das fontes se perdem com frequência nas análises. Patrícia
Geremias, que pesquisa os contratos de soldada celebrados no Rio de Janeiro no final do século XIX, tem
chamado a atenção para a utilidade de analisar os contratos a fundo como parte da história social do
trabalho livre. GEREMIAS, Patrícia Ramos. “Dê- se à soldada ao suplicante”: a contratação de menores
trabalhadores através do Juizado de Órfãos da cidade do Rio de Janeiro, 1877 – 1887”. IV Seminário
Internacional Mundos do Trabalho, Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2016. (Comunicação
Oral).
15
A este respeito, ver: MARCÍLIO, Maria Luiza. História social da criança..., op. cit.; VENANCIO,
Renato Pinto. Famílias abandonadas: assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em
Salvador – séculos XVII e XIX. Campinas, SP: Papirus, 1999.
16
Sobre a emergência da legislação de contratos individuais de trabalho, iniciada com as leis de locação
de serviços de 1830 e 1837, ver: LAMOUNIER, Maria Lucia. Da escravidão ao trabalho livre: a lei de
locação de serviços de 1879. Campinas, SP: Papirus, 1988; LIMA, Henrique Espada. Trabalho e lei para
os libertos de Santa Catarina no século XIX: arranjos e contratos entre a autonomia e a domesticidade.
Cadernos AEL, v. 14, n. 26, 2009.
199
17
Conforme indicado anteriormente na Tabela 3, o exame extensivo de diversas séries documentais do
Juízo de Órfãos da cidade, permitiu a localização de 187 registros de arregimentação explícita e formal de
trabalho de menores de idade distribuídos de maneira bastante desigual ao longo do século XIX. As séries
examinadas, parte do fundo “Juízo de Órfãos de São Paulo” do APESP, são as seguintes: Autos
administrativos; Autos de apreensão e depósito; Autos de contrato; Autos de diligência; Autos de petição;
Autos de requerimento; Autos de tutoria. Para além desses acordos expressamente documentados,
contudo, os autos indicam a existência de outros arranjos formais que, tendo sido também celebrados
judicialmente ao longo do século XIX, surgem indiretamente mencionados em processos envolvendo
disputas de guarda ou novas contratações dos menores. Esses casos, embora consistam num reduzido e
lacunar apanhado de referências, indicam, interessantemente, que o universo da formalização do trabalho
de menores de idade parece ser ainda mais amplo do que permitem supor os contratos integralmente
recuperados pela pesquisa.
18
Cf. APESP - Juízo de Órfãos, Autos de Tutoria, lata C05456, documento 8637, 1888.
200
19
Cf. APESP - Tribunal de Justiça de São Paulo, Contrato a soldada, lata 201007000209, 1874.
20
Há, na documentação coligida, um total de 24 menores cujos serviços são arregimentados por mais de
um contratante. Desse total, 21 menores têm seus nomes associados a dois contratos; 2 menores têm seus
nomes envolvidos em 3 contratos e, finalmente, um menor é contratado em 4 oportunidades diferentes.
No tocante aos “contratos múltiplos”, ou seja, aqueles que arregimentam a mão de obra de mais de uma
criança ou jovem, tem-se a seguinte situação: 5 contratos engajam 2 menores; 1 contrato arregimenta 3 e
outro arregimenta, ao mesmo tempo, 4 pequenos trabalhadores.
201
Décadas 1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890 1900 1910
Registros 1 - 3 20 4 7 54 43 20 4
%** 0,63 - 1,92 12,82 2,56 4,48 34,61 27,56 12,82 2,56
Total 156
Mesmo admitindo que os registros judiciais não possam dar conta da totalidade
dos menores empobrecidos trabalhadores da cidade no decurso do século XIX, sabendo-
se que grande parte deles permaneceu relegada aos domínios da imperiosa
informalidade do trabalho livre, e considerando-se ainda as perdas e extravios que
costumam acometer a todo tipo de arquivo histórico, parece relevante acompanhar as
tendências delineadas pela distribuição dos registros localizados como indícios
significativos da crescente opção pela formalização das relações de trabalho,
envolvendo menores de idade ao longo do século XIX. O acúmulo de notas de arranjos
formais acompanha, de modo geral, o avançar das décadas. Entre o início dos oitocentos
21
O Apêndice B (p.358) aponta a quantidade de menores arregimentados em cada década, incorporando
as citadas repetições. Este é o caso de dois menores de idade contratados na década de 1890 que já
haviam sido engajados em outros contratos na década de 1880, além de um menor na década de 1910 que
já havia sido arregimentado em outro contrato na década de 1890. A ínfima discrepância nos números
totais informados por cada uma das tabelas não altera de forma significativa seus resultados, indicando,
apenas, a existência de duas repetições de um mesmo menor contratado na mesma década em 1890 e uma
em 1910.
202
22
Cf. APESP - Juízo de Órfãos, Autos de diligência, lata C05336, documento 01, 1828.
203
Passados os dois anos iniciais, quando então tivesse atingido a idade de 15 anos,
Theodoro venceria a soldada anual de 100 mil réis, contando ainda com alimentação,
roupas e tratamento “nas moléstias leves” garantidos por seu contratante Magalhães. Na
eventualidade de o menor caixeiro contrair enfermidades mais severas, porém, o
contrato protegia seu empregador de maiores prejuízos, assegurando que “o Juiso
providenciará durante esse tempo sobre meio de suprir as dispesas causadas pela
occurrencia de molestia grave”.
A declaração mais inequívoca sobre a presunção generalizada do valor pífio dos
serviços prestados por aprendizes nos primeiros anos de trabalho, entretanto, vem da
pena não de um peticionário, mas do juiz de órfãos que deliberou acerca da contratação
dos menores Felizardo Antonio, Joaquim Bueno do Amaral e Innocencio Antonio
Figueiró, educandos do Seminário de Sant’Anna a quem Antonio Ribeiro de Miranda
pretendia empregar em sua “Yndustria de Serigaria”, também em 1856. A proposta
feita por Miranda ao Juízo e ao diretor do Seminário contemplava a prestação de
serviços pelos menores pelo prazo de quatro anos, “durante os quaes se encarregaria
[Miranda] de sustental-os, vestil-os, e cural-os por occasião de moléstia sem pagamento
de salário por ser durante esse tempo aquelles encargos sufficientes para compensar o
trabalho que puderem fazer os mesmos menores”25. Consultado para avaliar se eram
com justiça apresentadas essas condições para a arregimentação da mão de obra dos três
educandos, seu tutor acedeu à oferta de Magalhães. O juiz de órfãos, de sua parte,
23
Cf. APESP, Juízo de Órfãos - Autos de requerimento, lata C05446, documento 13193, 1856.
24
Cf. APESP, Juízo de Órfãos - Autos de contrato, lata C05358, documento 16, 1855-1856.
25
Cf. APESP, Juízo de Órfãos - Autos de petição, lata C05426, documento 8897, 1856.
205
26
Cf. APESP, Juízo de Órfãos - Autos de tutoria, lata C05453, documento 12055, 1856.
206
27
Cf. APESP, Juízo de Órfãos - Autos de requerimento, lata C05446, documento 8896, 1859.
28
Em 1864, o Seminário de Sant’Anna foi transformado em Liceu de Artes e Ofícios. Dedicado, como
indica seu nome, à formação de jovens artífices, o Liceu contava com programa de aulas e rotina de
exercícios em oficinas, oferecendo, em tese, uma formação profissional mais extensa, expandido as
vocações do Seminário que atuava, basicamente, como depósito de reserva de mão de obra não
qualificada. O Correio Paulistano publicou, à época, o regulamento para o novo instituto: Cf. BN-HBN –
Correio Paulistano, Rgulamento para o collegio de alunos artífices da cidade de S. Paulo, p. 01,
02.07.1864. Sobre o ensino de ofícios artesanais, ver: CUNHA, Luiz Antônio. O ensino de ofícios
artesanais e manufatureiros no Brasil escravocrata. São Paulo: Editora UNESP, Brasília, DF:
FLACSO, 2000.
29
Ressalve-se, porém, que três dos oito contratos celebrados na década de 1870 respondem pela
internação dos irmãos libertos José, Maximiano e Theotonio na “Colônia Orphanologica São Paulo das
Cachoeiras”, anteriormente referida no capítulo três. Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de contrato,
lata C05358, documento 6, 1878.
207
idade, em 1857, arregimentava seus serviços de criado por um ano e pela soldada anual
de 24 mil réis, paga diretamente a seu pai, naquele momento ainda vivo. O segundo
contrato envolvendo o menor foi celebrado apenas sete meses depois do primeiro;
diante do falecimento do pai de João, o contratante dos serviços do menor solicitava que
fosse refeito o contrato, desta vez estabelecendo-se o prazo de quatro anos, a
remuneração anual de 30 mil réis, correspondentes a dois mil e 500 réis mensais, e a
finalidade de ensinar-lhe o ofício de marceneiro. Quando, enfim, João foi contratado
derradeiramente em 1862, desta vez para tornar-se aprendiz de chapeleiro, a
remuneração que seu contratante lhe oferecia pelos dois primeiros anos de trabalho
correspondia a três mil réis mensais − apenas 500 réis a mais do que recebera como
aprendiz aos 12 anos de idade. Até os 19 anos, portanto, já então muito distante da
condição de “criança trabalhadora” e tendo-se tornado um jovem adulto para os padrões
da época, João seguiria vencendo salários irrisórios como os que lhe eram pagos,
quando era ainda “apenas um menino”30.
A comparação com o outro caso de aprendizagem localizado na década seguinte é
ilustrativa da persistência da precária remuneração oferecida aos aprendizes, que
poderiam permanecer inalteradas ao longo dos anos, mesmo quando os jovens
trabalhadores atingiam idades avançadas e limítrofes com a maioridade legal, como foi
o caso de João Pedroso. Em 1875, o menor João do Espírito Santo, fulo, de sete anos de
idade e natural de Minas Gerais, filho de Rita de tal, foi igualmente contratado para
aprender o ofício de chapeleiro, o mesmo que fora ensinado a seu homônimo da década
anterior. Também as condições de sua remuneração eram semelhantes, muito embora
suas idades fossem bastante diferentes. Contratando o pequeno João pelo prazo de cinco
anos, Antonio Gabriel Vizeu comprometia-se a oferecer-lhe “alimentação, vestuário
decente, curativo em cazo de molestia; a mandar-lhe ensinar a ler e escrever, e a
pagar-lhe a soldada mensal de 1$000 no 3º anno, de 2$000 no 4º anno, e de 3$000 no
5º anno, ficando os dois primeiros annos sem pagamento de soldada”31. Nessas
condições, embora privado de remunerações nos dois anos iniciais de serviços, ao
atingir os 12 anos de idade, João do Espírito Santo receberia o mesmo pagamento que
João Pedroso recebera dos 12 aos 19 anos, entre 1857 e 1862.
30
APESP – Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 12, 1857-1862.
31
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de petição, lata C05429, documento 11105, 1875-1895.
208
32
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de petição, lata C05446, documento 9586, 1862.
33
Aqui tomamos de empréstimo a formulação de Sanda Lauderdale Graham sobre a tônica essencial das
relações paternalistas, que dá nome a seu livro a respeito das criadas domésticas no Rio de Janeiro.
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-
1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
209
A amiudada apresentação, por parte dos pleiteantes aos serviços dos menores, de
fiadores para os contratos, comum naquela década e nas anteriores, cairia em franco
desuso nos anos subsequentes36. De todo modo, à parte a supressão da exigência de
fiadores, ao chegar-se à década de 1880 as formas contratuais da soldada encontravam-
34
Note-se, porém, que este tipo de assalariamento se encontrava ainda muito distante das modernas
relações econômicas futuramente adotadas com a consolidação das leis trabalhistas na década de 1940.
Sobre este tema, ver: FRENCH, John D. Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores
brasileiros. São Paulo: Perseu Abramo, 2001.
35
Cf. APESP – Tribunal de Justiça de São Paulo, lote 201006004064, Contrato a soldada, 1870.
36
A inclusão de fiadores nos contratos, aparentemente, reporta-se às determinações encontradas nos
títulos das Ordenações Filipinas a respeito dos tutores e curadores dados aos órfãos. O título 102 do Liv.
4º, em seu parágrafo 5º, por exemplo, estabelecia que se deveria dar fiador aos bens dos menores, a não
ser no caso de os próprios tutores serem proprietários de bens. Cf. Ordenações Filipinas, Liv. 4º, Tit. 102,
§5º. <Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm>. Acesso:15 out. 2016..
Gislane Azevedo indica que a lei nº 1.237, de 24 de setembro de 1864, determinava que tutores de
menores ricos ou pobres apresentassem hipotecas que cumprissem o papel de fiadoras dos bens dos
tutelados. Na prática, como argumenta a autora, a dita lei tornou-se um dispositivo válido somente dos
tutelados ricos, uma vez que não havia bens a serem assegurados entre os menores empobrecidos.
AZEVEDO, G.C. De Sebastianas e Geovannis..., op. cit.
210
37
É o contrário do que aponta Gislane Campos de Azevedo em pesquisa realizada em fins da década de
1990. Azevedo argumenta que os processos de tutela e soldada na capital avolumam-se especialmente a
partir da década de 1890, afirmação algo discrepante dos dados levantados pela pesquisa em tela. É,
todavia, impossível cotejar os dados aqui apresentados àqueles produzidos por Azevedo, uma vez que a
autora não apresenta quantificações dos contratos localizados em sua pesquisa, referindo-se a eles apenas
genericamente. AZEVEDO, G.C. De Sebastianas e Geovannis..., op. cit., p. 59.
211
das tutelas formalizadas no mesmo foro, é a tarefa a que se propõe a próxima seção
deste capítulo.
38
Integram essa classificação os arranjos formais de serviços e as tutelas não convertidas em contratos
nos autos, conforme indicado anteriormente.
39
A esse respeito, ver os dados constantes do Apêndice A (p.356-357).
213
40
As considerações sobre a racialização de estrangeiros nem sempre redundaram em classificações
positivas e aproximadas do status do “branco”. O caso dos chineses, sobre cuja mão de obra se especulou
como alternativa à escravidão no Brasil, é um bom exemplo da racialização negativa aplicada a
imigrantes, conforme visto no capítulo anterior. Os pobres europeus que chegavam às plagas paulistanas
– massivamente italianos, no caso das décadas finais do XIX na cidade de São Paulo – certamente não
escapavam a uma série de reprovações morais relacionadas à moralidade viciosa instilada pela pobreza.
Ainda assim, não parece que tenham sido, nos autos judiciais, negativamente racializados como os chins
ou os africanos, e nem a literatura indica terem sido considerados “não brancos” na cidade. HALL,
Michael M. Imigrantes na cidade de São Paulo. In: PORTA, Porta. (Org.). História da cidade de São
Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004, v. 3, p. 121-151.
41
O paradigma da inaptidão do trabalhador nacional à disciplina do trabalho nas unidades
agroexportadoras é discutido por Cláudia Alessandra Tessari, que argumenta que a natureza sazonal da
economia de lavoura contribuía para moldar um mercado de trabalho com demandas intermitentes de mão
de obra. Desobrigados da manutenção permanente de escravos, fazendeiros contratavam temporária e
eventualmente o trabalho de nacionais livres, entre os quais figuravam principalmente os libertos e seus
descendentes, que se engajavam nas fazendas como jornaleiros ou camaradas. O caráter descontínuo desta
oferta de trabalho obrigava homens e mulheres à itinerância e permanente procura por emprego e
sobrevivência. Essas condições particulares do trabalho no campo converteram-se em discursos
preconceituosos sobre os trabalhadores nacionais, tachados de indolentes, acusados de não serem
confiáveis ou afeitos ao trabalho. TESSARI, Cláudia Alessandra. Braços para a colheita: sazonalidade e
permanência do trabalho temporário na agricultura paulista (1890-1915). São Paulo: Alameda, 2012
Sobre a ampla participação do trabalhador nacional livre nas atividades da economia agroexportadora,
notadamente na lavoura cafeeira, ver o trabalho clássico de Peter Eisenberg: EISENBERG, Peter L. O
homem esquecido: o trabalhador livre nacional no século XIX – sugestões para uma pesquisa. In: ______.
Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil – séc. XVIII e XIX. Campinas: Editora da
UNICAMP, 1989.
215
pardos, mulatos, cabras, mamelucos, que abundam no país com sua enorme variedade
de cores”42.
A amostra de contratos que arregimentam menores identificados como
“brasileiros”, embora composta por apenas seis registros, concentra-se justamente nas
décadas iniciais do século XX, à exceção de um único contrato celebrado em 1842. A
ambiguidade racial dessa categoria nacional, tendente à mistura racial, mas, em termos
discursivos, aproximada dos ideais de branqueamento, faz com que sua inserção nas
categoriais raciais amplas de “brancos” ou “não brancos” seja problemática. Nesse
sentido, optou-se por incorporar os identificados como “brasileiros” ao grupo de
menores racialmente “Indeterminados” no quadro geral das designações raciais.
A distribuição dos menores formalmente arregimentados na cidade de São Paulo
em amplas categorias raciais tem, certamente, suas limitações. A mais importante delas
diz respeito ao fato de que os critérios raciais baseados na aproximação ou
distanciamento da “branquitude” emergiram como potentes denominadores de
classificação social após a abolição, paulatinamente substituindo a condição de
escravizados ou egressos da escravização por marcadores de diferenciação social
baseados na cor e fundamentados pelo pensamento racialista emergente à época no
Brasil43. Assim, há de se considerar que a validade dessa designação talvez seja menos
efetiva no que diz respeito aos contratos de trabalho formalizados nas primeiras décadas
estudadas do que a categoria de “egressos ou descendentes da escravidão”. A agregação
dos menores formalmente arregimentados na cidade em grandes categorias sociais,
ademais, incorre no risco da diluição das clivagens existentes dentro de cada um desses
grupos, podendo, eventualmente, mascarar a própria complexidade das classificações
raciais positivas e negativas socialmente adotadas – motivo pelo qual as subcategorias
de classificação são mantidas nas tabelas (conferir Apêndice E, p.363-364).
Existem, porém, alguns benefícios numa mirada panorâmica do grupo de jovens e
pequenos trabalhadores formalmente arregimentados e tutelados na cidade, do ponto de
42
ROMERO, Sylvio. A litteratura brazileira e a critica moderna: ensaio de generalização. Rio de
Janeiro: Imprensa Industrial de João Paulo Ferreira Dias, 1880, pp. 51-2, apud AZEVEDO, Célia Maria
Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987, p. 71. A respeito das representações negativas do “tipo nacional” no século XIX, suas
imbricações com a mestiçagem e a ideologia do branqueamento na virada para o século XX, ver também:
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Estrangeiro em sua própria terra: representações do trabalhador
nacional, 1870/1920. Dissertação (Mestrado em História). 1991. 238f. Universidade Estadual de
Campinas, Campinas.
43
SCHWARCZ, Lília Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
(1870 - 1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
216
44
Sobre a emergência dessas categorias raciais no pós-abolição ver: MACHADO, Maria Helena P.T.
(Org.). (T)Races of Louis Agassiz: photography, body ans Science, yesterday and today/ Ratros e raças
de Louis Agassiz: fotografia, corpo e ciência, ontem e hoje. Rio de Janeiro: Capacete, 2010.
45
O trabalho de Maria Inez Machado Borges Pinto, por exemplo, baseado na leitura de memorialistas da
cidade, menciona o recorrente emprego de menores de idade pobres brasileiros e imigrantes no trabalho
urbano eventual e improvisado, como a venda ambulante de comida ambulante de comida e a limpeza de
caixas de gordura e dos jardins nas casas das famílias abastadas. PINTO, M.I.M.B. Cotidiano e
sobrevivência..., op. cit.; Isabela do Carmo Camargo aborda o comércio e os serviços ambulantes de
crianças ocupadas como vendedores de bilhetes de loterias, engraxates e jornaleiros entre 1890 e 1910 na
cidade. CAMARGO, Isabela do Carmo. Entre cestos e pregões: os trabalhadores ambulantes na cidade
de São Paulo, 1890-1910. 2013. 137f. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.
217
razoável supor que todo o contingente de menores a quem não se atribui classificação
racial explícita esteja, automaticamente, inserido no grupo ampliado dos “brancos”46.
A designação de adjetivos de “racialização positiva”, que reconhece
expressamente a seis menores como “brancos”, parece ser o primeiro impedimento para
generalizar-se esta condição a todo menor que não esteja explicitamente identificado
nos autos como negro ou egresso da escravidão. Ainda que raras, as menções aos
menores brancos sugerem que a supressão de registros sobre a identidade racial dos
trabalhadores ou sobre sua eventual ligação com experiências de escravização não eram
entendidas pelos escrivães, juízes e curadores de órfãos como um código automático
para a identificação de sua condição racial47. Outras informações, por seu turno, são
sugestivas de que parte dos menores sem identificação racial explícita pudesse integrar
o conjunto predominante dos menores egressos ou descendentes da escravidão. Apenas
no ano de 1888, por exemplo, 36 contratos à soldada foram sancionados e registrados
no Juízo de Órfãos da cidade. Destes, 26 referem-se a menores explicitamente
identificados como ingênuos, pretos, pardos ou filhos de mãe liberta – e foram
analisados no capítulo dois desta tese. Apenas dez, portanto, eximem-se de mencionar
quaisquer informações que permitam identificar os trabalhadores contratados a um dos
grupos de origem social específicos. Sobre eles, nada de especialmente sugestivo é
relatado − nada que sugira sua ligação com experiências pessoais ou familiares de
escravização ou que indique o contrário.
A considerar-se, como sugeriu Ione Celeste de Sousa, a respeito da Bahia e como
insinuam também as fontes da pesquisa ora apresentada, que na ressaca do 13 de maio
diversos senhores de escravos expropriados empreenderam verdadeira “corrida aos
Juízos de Órfãos” na expectativa de assegurar, por meio de soldadas e tutelas, o controle
46
Esta interpretação é dada à ausência de dados sobre identificação racial de menores tutelados por
Alessandra David em sua pesquisa sobre o município de Franca. A autora constata que, de um universo
de 173 tutelados, 69,3% sobre os quais não há informações relacionando-os a categorias raciais ou a
experiências de escravização seriam brancos. DAVID, Alessandra. Tutores e tutelados: a infância
desvalida em Franca (1850-1888). 1997. 146f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Estadual Paulista, Franca, 1997, p.111-12.
47
Segundo Gislane Azevedo, as crianças envolvidas nos processos de tutela e soldada na cidade de São
Paulo eram majoritariamente e na seguinte ordem: “negras” filhas de libertos; filhas de “retirantes”
nordestinos (termo da autora) e filhos de imigrantes, alguns nascidos no Brasil. Embora as afirmações da
autora guardem alguma proximidade com os achados desta pesquisa, não há em sua dissertação
demonstração empírica da interpretação proposta. Como se verá à frente, de fato há grande parcela de
menores não brancos e egressos da escravidão na amostra de tutelas e soldadas levantadas; entretanto, não
localizamos referência profusa a migrantes do Nordeste do Império. AZEVEDO, G.C., De Sebastianas e
Geovannis..., op. cit., p. 70-80.
218
sobre seus ingênuos, pode-se supor que ao menos parte dos menores precariamente
identificados nos autos de 1888 fosse, formada por pequenos rio-brancos. O caso da
contratação do menor José, ocorrida a 24 de novembro daquele ano, é ilustrativo das
lacunas abertas pela linguagem frequentemente evasiva dos autos a questões
irrespondíveis ao leitor contemporâneo. Ao peticionar pelos serviços do menino de 15
anos, Fernando de Moura, advogado e proprietário residente na capital, argumentava ao
Juízo que
(...) desejando ter ao seo serviço o menor José, filho de Theodora, que
se lhe apresentára (...) vem o supplicante em obediencia ás leis,
requerer a Vossa Excellencia a respectiva permissão para ter em sua
companhia o referido menor, para com o qual contrahe a obrigação de
prestar lhe vestuario, alimentação, tratamento e facilitar-lhe os meios
de aprender á ler e escrever, e igualmente pagar-lhe a mensalidade de
5:000$48.
48
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05456, documento 8652, 1888.
219
49
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo,
Editora Brasiliense, 1984; PINTO, M.I.B.M. Cotidiano e sobrevivência..., op. cit.
50
Sobre o precoce final da escravidão em São Paulo: MACHADO, Maria Helena P.T. Sendo Cativo nas
Ruas: a Escravidão Urbana na Cidade de São Paulo. In: PORTA, Paula (Org.). História da Cidade de
São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 59-99.
51
O estudo de Carlos José Ferreira dos Santos aborda os trabalhadores pobres da cidade e dialogam com
a construção da memória imigrantista da cidade de São Paulo: SANTOS, C.J.F. Nem tudo era italiano...;
a respeito da participação dos negros no mercado de trabalho que recebia crescentes levas de imigrantes,
ver também: ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru – SP:
EDUSC, 1998.
220
52
MACHADO, M.H.P.T. Sendo cativo nas ruas..., op. cit., p. 4.
221
escravos e 27.557 livres. Dentre os livres, 18.834 eram identificados brancos e 11.679
classificados como pretos ou mulatos53. Passada a primeira metade da década de 1880, a
população da cidade havia saltado ao número de 47.697 habitantes, entre os quais
figuravam 493 escravos. Os dados do censo de 1886 não identificam especificamente os
números dos livres de cor, mas indicam que o conjunto da população se dividia entre
36.334 brancos, 1.088 caboclos, 6.540 pardos e 3.825 pretos54. Excluindo-se os 493
escravos do total de pretos e pardos, tem-se uma população livre de cor de 9.782
pessoas – ou 10.870, somando-se os caboclos. Isso significa dizer que entre 1872 e
1886, a população de pretos e pardos/mulatos passou de cerca de 42,4% a
aproximadamente 20,7% do total de habitantes livres da cidade.
Esses dados e o contexto das transformações por que passava São Paulo indicam
que, ainda que crescesse em números absolutos, o contingente de pretos e pardos livres
na cidade reduzia-se em termos relativos entre a população. Entretanto, apesar desse
proporcional encolhimento da população de egressos da escravidão e seus descendentes
livres na cidade nos anos 1880, a maior parte dos menores de idade formalmente
assoldadados e tutelados em São Paulo nesta década originava-se justamente deste
grupo social. Entre as soldadas, a superioridade de menores não brancos é notadamente
maior também na década de 1890 – o que não se confirma para as tutelas que nessa
década apontam grande ampliação de indeterminação racial. Trocando em miúdos, do
ponto de vista demográfico, crianças e jovens libertos, ingênuos ou racialmente
classificados como pardos e pretos e, assim, portadores de vínculos estreitos com
experiências de escravização, formavam um grupo particularmente vulnerável ao
recrutamento judicial de mão de obra, especialmente por meio das soldadas, em fins do
século XIX e em meios às turbulências da abolição e do pós-abolição na cidade (ver
Apêndice F, p.365).
Esse quadro social pode ser ainda refinado acrescentando-se dados sobre sexo e
idade dos menores contratados e tutelados, bem como informações sobre a duração dos
53
Cf. Censo 1872 – Quadro geral da população livre considerada em relação aos sexos, estados civis,
raças, religião, nacionalidade e gráo de instrucção, apud BASSANEZI, Maria Silvia Beozzo. (Org.). São
Paulo do passado: dados demográficos, 1886, IV. Campinas: Núcleo de Estudos da População –
Universidade Estadual de Campinas, 1999. <Disponível em:
http://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/censos/1886.pdf>. Acesso: 27 out. 016.
54
Cf. Relatório Apresentado ao Exm. Sr. Presidente da Provincia de São Paulo pela Comissão Central
de Estatística (1888), apud BASSANEZI, Maria Silvia Beozzo. (Org.). São Paulo do passado: dados
demográficos, 1886, IV. Campinas: Núcleo de Estudos da População – Universidade Estadual de
Campinas, 1999. <Disponível em: http://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/censos/1886.pdf>. Acesso:
27 out. 016.
222
T5. Divisão por sexo e década, por menores e registros (São Paulo, 1820-1910) *
55
A predominância de meninos entre os tutelados nas cidades de Franca, Rio Claro e Campina Grande é
verificada por Alessandra David, Arethuza Zero e Joan Mezner. Ana Gicele Alaniz, diferentemente,
constata a predominância de meninas entre os menores nos processos de tutela de Campinas e Itu.
DAVID, A. Tutores e tutelados..., op. cit.; ZERO, Arethuza Helena. O peço da liberdade: caminhos da
infância tutelada – Rio Claro (1871-1888). 2004. 141f. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004; MEZNAR, Joan. Orphans and the transition from
slave to free labor in the Northeast Brazil: the case of Campinas Grande, 1850-1888. Journal of Social
History, v. 27, n. 3, p. 499-515, 1994; ALANIZ, Anna Gicelle García. Ingênuos e libertos: estratégias de
sobrevivência familiar em épocas de transição (1871-1895). Campinas: CMU/Unicamp, 1997.
223
período estudado, ou 77% dos menores arregimentados nesse mesmo período, a maior
parte da mão de obra judicialmente engajada em prestação de serviços pertence ao sexo
feminino56. A se considerar isoladamente os registros de contrato e tutela de cada uma
das décadas, observa-se que, nos anos 1880, as pequenas trabalhadoras correspondem a
aproximadamente 60% do total de menores arregimentados; na década seguinte, o
índice é o mesmo. Nos anos 1900, quando a amostra se reduz a menos da metade da
década anterior, a diferença é mais gritante: menores do sexo feminino correspondem a
82% dos formalmente engajados em serviços ou tutelas. Na década de 1910, que conta
com apenas seis contratos localizados pela pesquisa, não existem registros envolvendo
menores do sexo masculino. Já no intervalo entre 1860 e 1870, igualmente pobres em
registros, alterna-se entre os arranjos formais a predominância de meninas na primeira
década, e de meninos, na segunda. A se levar em consideração a diferença constatada
entre o número total de contratações e tutelas localizadas e o número de menores nelas
engajadas, excluindo-se repetições de menores arregimentados mais de uma vez, nota-se
também uma ligeira predominância na recontratação de menores do sexo feminino.
Às informações sobre o sexo dos menores formalmente contratados, podem ser
assomados os dados coletados nos contratos sobre o tipo de serviços prestados por esses
trabalhadores, observando-se, no entanto, que a descrição precisa dos mesmos é
relativamente escassa e frequentemente omitida na documentação, como apontado na
Tabela 6, abaixo:
T6. Tipos de serviços contratados (São Paulo, 1820-1910)
*Números aproximados
Fonte: APESP, 2014-5.
56
Nesse período, as menores do sexo feminino correspondem a cerca de 63% dos menores contratados ou
tutelados, bem como respondem por igual proporção dos registros formalizados pelo Juízo.
224
57
MARCÍLIO, M.L. História social da criança abandonada...op. cit.; VENANCIO, Renato Pinto.
Famílias abandonadas..., op. cit.
58
SOUZA, Flávia Fernandes de. Para casa de família e mais serviços: o trabalho doméstico no Rio de
Janeiro no final do século XIX. 2009. 255f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2009; ______. Escravas do lar: mulheres negras e o trabalho
doméstico na corte imperial. In: XAVIER, Giovana, FARIAS, Juliana Barreto e GOMES, Flávio dos
Santos (Org.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-abolição. São Paulo: Selo Negro, 2012,
pp. 244-260.
225
59
Sobre mulheres escravas e livres, entre as quais se encontravam brancas e estrangeiras, ocupadas como
criadas na cidade do Rio de Janeiro, ver também o trabalho fundamental de GRAHAM, S.L. Proteção e
obediência..., op. cit. Lorena Telles investiga o trabalho doméstico na cidade de São Paulo a partir do
estudo dos registros de criadas estabelecido por uma postura municipal de 1886. TELLES, Lorena Feres
da Silva. Libertas entre sobrados: Mulheres negras e trabalho doméstico em São Paulo (1880-1920).
São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2014.
60
WALLACE-SANDERS, Kimberly. Slavery and Other Mothers: Black Nannies/ Mammies and White
Children Portraiture. MACHADO, Maria Helena et alli (Ed.). Mothering in Slavery, Slavery &
Abolition, Número Especial, no prelo
61
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de diligência, lata C05361, documento 44 1892.
226
62
Sobre a família Werneck e sua preeminência no Vale do Paraíba fluminense, ver:
MUAZE, Marian Aguiar Ferreira. Novas considerações sobre o Vale do Paraíba e a dinâmica Imperial.
In: MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo. (Org.). O Vale do Paraíba e o Império do Brasil nos
quadros da Segunda Escravidão. Rio de Janeiro: 7 Letras/ Faperj, 2015, v. 1, p. 55-97.
63
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05458, documento 6174, 1901.
64
Kimberly Wallace-Sanders chama a atenção para o fato de que as companion nannies poderiam
permanecer por longo tempo, da infância à vida adulta, servindo às mesmas famílias. WALLACE-
SANDERS, K. Slavery and Other Mothers..., op. cit.
227
Adelina, e “tendo o supplicante suas filhas, não pode por isso continuar a tel-a em seu
poder”. Assim, o contrato era rescindido, e Adelina encaminhada à Santa Casa de
Misericórdia da capital.
Aparte menções específicas como as feitas às amas crianças, diversas referências
genéricas ao trabalho doméstico surgem entre registros que, por exemplo, ao aluguel
dos pequenos contratados. Em 1892, procurando colocar sua filha Izabel, de quinze
anos de idade, em uma verdadeira “casa de família”, retirando-a da companhia de Dona
Maria Candida, com quem vivia a menor, Benedita Maria de Moraes compareceu ao
Juízo de Órfãos prestando a seguinte declaração, assinada a seu rogo:
que a cerca de tres mezes alugou a sua filha Isabel de quinse annos de
idade em casa de Dona Maria Candida, solteira, moradora a Rua
Liberó Badaró, mediante o aluguel mensal de 15$ que ella informante
recebeu durante os dois meses; que é sua vontade que a menor sua
filha seja collocada em casa de Alberto Julio da Fonseca, casado,
morador a rua Marechal Deodoro, que offerece maior soldada e mais
garantia para mesma sua filha65.
65
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 43, 1892.
66
Sandra Graham esclarece que esta era uma distinção fundamental no universo do trabalho doméstico,
tanto porque estabelecia, do ponto de vista patronal, uma divisória simbólica entre as criadas que
frequentavam o mundo da rua, espúrio e fora do controle, daquelas mantidas dentro dos rigores e proteção
do lar, como porque no primeiro caso, propiciavam alívios ao cotidiano de vigilância em que viviam as
criadas e momentos de maior autonomia. GRAHAM, S.L. Proteção e obediência..., op. cit.; sobre as
distinções entre serviços de porta afora e porta dentro e os códigos morais que tal diferenciação encerrava,
ver também o artigo de Marcus Carvalho sobre o Recife da primeira metade do XIX: CARVALHO,
Marcus J.M. de. De portas adentro e de portas afora: trabalho doméstico e escravidão no Recife, 1822-
1850. Afro-Ásia, n. 29/30, p. 41-78, 2003. Sobre escravas de proprietárias pobres, engajadas tanto nos
serviços da casa quanto nas vendas na rua que garantiam a sobrevivência de suas senhoras e a sua própria,
ver o estudo fundamental de Maria Odila Leite da Silva Dias: DIAS, M.O.L.S. Quotidiano e poder... op.
cit.
228
67
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 10, 1857.
68
CARVALHO, M.J.M. De portas adentro e portas afora..., op. cit.
69
Gislane Azevedo, no estudo que produziu sobre esta documentação, afirma que esta seria mesmo a
vocação fundamental dos contratos de soldada e tutelas produzidos na segunda metade do século XIX.
Como comentado anteriormente, porém, seus argumentos carecem de demonstração documental, que se
procura oferecer aqui. AZEVEDO, G.C. De Sebastianas e Geovannis..., op. cit.
229
70
Note-se, a esse respeito, que autores como Fabiane Popinigis e Luis Felipe Alencastro, em estudos
dedicados à cidade do Rio de Janeiro, destacaram a grande presença de indivíduos brancos e estrangeiros
empregados no comércio. ALENCASTRO, Luis Felipe de. Proletários e escravos: imigrantes portugueses
e cativos africanos no Rio de Janeiro, 1850-1872. Novos Estudos CEBRAP, n.21, p. 30-56, 1988;
POPINIGIS, Fabiane. Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca (1850-1911). Campinas,
SP: Editora Unicamp, 2007.
230
com uma pequena divergência entre menores do sexo feminino e do sexo masculino
(Apêndice H, p.368). No caso das meninas trabalhadoras, predominam os contratos com
menores entre 12 e 14 anos de idade, ao passo que no caso dos meninos trabalhadores,
predominam os menores com idades entre dez e 12 anos. Outras duas faixas etárias,
abrangendo os três anos anteriores e posteriores ao lapso principal dos dez aos 14 anos
de idade, concentram uma quantidade expressiva de contratos para o tamanho da
amostra – há 22 arranjos registrados com menores entre sete e nove anos de idade e 28
arranjos registrados com menores entre 15 e 17 anos de idade. A despeito dessas
concentrações, os arranjos judicialmente formalizados na cidade compreendem uma
ampla escala etária que varia dos seis aos 19 anos, iniciando-se, portanto, antes mesmo
da idade mínima para assoldamento prevista nas Ordenações Filipinas, e encerrando-se
no limite da menoridade legal, delimitada em 21 anos.
Já no que tange às tutelas, os registros encontram-se mais dispersos na escala
etária, meninos e meninas dividindo-se de forma equilibrada principalmente entre os
sete e os dez anos. No caso dos menores do sexo masculino, nota-se ainda uma pequena
recorrência de tutelas com menores entre dez e 12 anos, ao passo que, no caso das
meninas, há igualmente uma pequena concentração entre 13 e 15 anos. O mais relevante
a respeito das tutelas, entretanto, é a existência algo frequente, considerado o tamanho
da amostra, de menores com idades inferiores às dos contratados. Doze crianças com
menos de seis anos, idade mínima dos assoldadados localizados nos autos, foram
formalmente tuteladas na cidade – algumas delas realmente pequenas para o exercício
produtivo de quaisquer tarefas domésticas, como um bebê de oito meses e crianças entre
2 e 4 anos.
As solicitações de tutelas de menores de pouca idade apresentadas ao Juízo de
Órfãos da cidade de São Paulo foram interpretadas por Gislane de Azevedo como
testemunhos de adoções despojadas dos escusos interesses na apropriação dos serviços
dos tutelados. Assim, segundo a autora, ainda que tenham sido amplamente utilizadas
como expediente de arregimentação de mão de obra, tutelas aplicadas a menores de
pouca idade seriam manifestações do genuíno e afetivo interesse de tutores pelo bem-
estar dos menores desvalidos – e nesses casos, fariam contraponto aos contratos de
soldada, sempre empregados para o engajamento de menores ao serviço71.
71
A autora refere-se ainda ao fato de que, na ausência de legislação sobre o tema, que recebeu primeiro
tratamento específico no Código Civil de 1916, as prescrições tutelares das Ordenações Filipinas regiam
as adoções: AZEVEDO, G.C. De Sebastianas e Grovannis..., op. cit., p.80.
231
75
Arethuza Zero indica a predominância de menores entre os nove e 12 anos nas 140 tutelas produzidas
em Rio Claro e por ela estudadas; Alessandra David, por sua vez, indica a predominância de menores
tutelados entre oito e 16 anos em Franca; considerando tutelas produzidas em Itu e Campinas
conjuntamente, Ana Gicelle Alaniz indica o predomínio da faixa dos nove aos 12 anos entre os tutelados.
ZERO, A. O peço da liberdade..., op. cit.; ALANIZ, A.G.G. Ingênuos e libertos..., op. cit.; DAVID, A.
Tutores e tutelados..., op. cit.
76
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05456, documento 8637, 1888.
77
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de diligência, lata C05361, documento 10, 1886.
233
regalia de apenas pagar seus ordenados mensais de cinco mil réis quando o pequeno
chegasse, assim como Izabel, aos dez anos de idade78. O mesmo ocorria em 1891 a
João, pardo de oito anos de idade, filho de Francisca Maria Clara, a quem Joaquim
Gomes da Luz, também nomeado seu tutor, comprometia-se a assoldadar nos seguintes
termos:
(...) se obrigava a ter em sua companhia o menor seu tutelado,
auferindo os serviços do mesmo, sob as seguintes condições: educal-o
convenientemente, vestil-o e tratal-o em caso de molestias e pagar-lhe
anualmente, depois que o menor completar des annos, a soldada anual
de 48$ no 1º anno, 50$ no 2º e 60$ no 3º (...)79.
78
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de diligência, lata C05361, documento 31, 1890.
79
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de Tutoria, lata C05457, documento 6197, 1891.
80
MATTOSO, Kátia. O filho da escrava: em torno da Lei do Ventre Livre. Revista Brasileira de
História, São Paulo, v. 8, n. 16, p.37-55, 1988.
81
MOTT, Maria Lúcia de Barros. Ser mãe: a escrava em face do aborto e do infanticídio. Revista
História, São Paulo, n. 120, p.85-96, 1989.
234
cativas nas atividades produtivas poderia começar muito mais cedo82. Finalmente, Maria
de Fátima Neves, dedicando-se ao estudo da população de crianças escravizadas na
cidade de São Paulo no século XIX, indica que desde tenra idade, por volta dos cinco
anos, nas fazendas ou cidades, os pequenos eram ocupados em um sem fim de
atividades e notadamente nos serviços domésticos, que compreendiam trabalhar
(...) como pajem, moleque de recados ou criados: iam buscar o jornal e
o correio, encilhavam cavalos, lavavam os pés das pessoas da casa ou
mesmo de visitantes, escovavam as roupas, engraxavam os sapatos,
serviam à mesa, espantavam mosquitos, balançavam a rede, buscavam
água, despejavam o lixo, carregavam pacotes e outros objetos83.
As balizas das fases e idades da infância escrava são um parâmetro útil para a
reflexão sobre as práticas de recrutamento de mão de obra envolvendo menores de idade
livres pobres. Certamente, a definição legal da idade mínima para o assoldamento
carregava, em si, um tanto de arbitrariedade e descompasso com as práticas sociais
informais, não sendo possível supor que, numa sociedade tão acostumada ao emprego
precoce do braço escravo e à alentada tradição dos “filhos de criação”, as crianças
empobrecidas e livres mais novas fossem poupadas do trabalho em prol de uma infância
imaginada nos termos sociais contemporâneos. Com isso, se pretende afirmar que o fato
de a formalização judicial dos contratos e tutelas envolvendo as ditas crianças ter se
concentrado nos menores entre dez e 14 anos não exclui a possibilidade de que os
mesmos menores estivessem já ativamente inseridos no universo de trabalho antes disso
e fossem socialmente reconhecidos como “força produtiva” desde tenra idade. Os
diversos casos de empregadores instados pelos juízes ou curadores-gerais de órfãos a
oficializarem contratos de soldada e tutelas de que já desfrutavam é um argumento que
ampara essa interpretação.
Ao mesmo tempo, é interessante ponderar a ampla utilidade emprestada pelo
conceito de menoridade civil à manutenção de trabalhadores pauperizados em arranjos
de trabalho tutelado por um prolongado período de suas vidas. Certamente a condição
de assoldadados, que lhes tolhia a possibilidade de recolher os vencimentos dos serviços
82
GÓES, João Roberto; FLORENTINO, Manolo. Crianças escravas, crianças dos escravos. In: PRIORE,
Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015, p. 177-191.
83
NEVES, Maria de Fátima Rodrigues das. Infância de faces negras: a criança escrava brasileira no
século XIX. 1993; 306 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade de São Paulo. São
Paulo, 1993. Para fins metodológicos, a autora delimita a infância escrava como o período compreendido
até nove anos de idade. Ressalte-se que, na tese ora apresentada, o conceito fundamental não é o da
infância, mas o da menoridade civil que justificava a manutenção de crianças e jovens livres pobres sob o
regime dos contratos de soldada.
235
prestados, não impedia que menores de idade avançados no que hoje se denominaria
“adolescência” fossem poupados de esforços em nome de sua juventude. Se, como
afirmam Góes e Florentino, aos 14 anos de idade os meninos e meninas escravizados já
estavam plenamente incorporados ao mundo do trabalho adulto, não há por que supor
que o mesmo não ocorresse aos menores livres despossuídos e assoldadados na cidade
de São Paulo. A arregimentação de jovens que somavam já 17, 18 ou 19 anos por meio
de contratos de soldada, como visto nos autos do Juízo de Órfãos, revela o caráter
artificioso do condicionamento do trabalho tutelado ao estatuto da menoridade civil.
Apesar de trabalharem como adultos, esses menores eram descritos jurídica e
socialmente como trabalhadores faltos de autonomia e, assim, carentes de tutela.
Avançando-se à reflexão sobre as relações entre idade, sexo e inserção nos grupos
raciais ampliados, menores assoldadados e tutelados, nota-se que especialmente os
meninos não brancos eram formalmente arregimentados para o trabalho urbano desde
tenra idade (ver Apêndice I, p.369). Nenhum deles, como já comentado, foi recrutado
para os serviços de caixeiro no comércio, e apenas quatro foram contratados como
aprendizes de ofícios especializados – de modo que grande parte deles parece ter sido
engajada nos serviços domésticos. As meninas pertencentes às categorias raciais
ampliadas de “brancos” e “não brancos” distribuem-se de forma proporcional entre a
faixa de idade prioritária de seu sexo, qual seja a dos12 aos 14 anos. Já as meninas sobre
as quais não se encontram marcadores raciais ou sociais mais específicos, inseridas no
grupo “Indeterminado”, distribuem-se de forma menos concentrada entre diversas faixas
etárias, especialmente dos 11 aos 15 anos.
Os dados sobre a idade dos contratados beneficiam-se do acréscimo da
informação sobre as durações dos arranjos de trabalho formalmente estabelecidos, de
forma a projetar-se o tempo de permanência de um menor trabalhador sob o poder de
um ou mais contratantes. Tal variável não se aplica às tutelas, evidentemente; não se
apresentando como contratos de trabalho, as tutelas deixavam subentendido que o
domínio dos tutores sobre os tutelados estender-se-ia até a maioridade dos últimos –
prazo variável e inversamente proporcional à idade dos tutelados. Considerando-se a
predominância de tutelas de menores entre sete e dez anos, depreende-se que parte
significativa dos menores permaneceria sob o domínio dos tutores por até 14 anos –
dado que as tutelas não fossem interrompidas por fuga dos menores, desistência ou
transferência de tutores. Estimado e hipotético, esse alongado período de sujeição de
236
tutelados a tutores seria bastante superior à média de duração dos contratos de soldada,
como demonstrado na Tabela 8, abaixo.
Duração 1820 1840 1850 1860 1870 1880 1890 1900 1910 Total %
1 ano - 1 2 - - 1 - - 1 5 2,67
2 anos - - - 1 - 7 - 1 - 9 4,81
3 anos - 2 10 4 2 23 5 - - 46 24,59
4 anos - - 5 - - 1 1 1 - 8 4,27
5 anos - - 1 - 1 1 2 2 - 7 3,74
6 anos - - - - - - 1 2 - 3 1,60
7 anos - - - - - 2 2 - - 4 2,13
8 anos - - - - - 1 1 1 - 3 1,60
9 anos - - - - - 2 1 2 - 5 2,67
10 anos - - - - - - - - - 0 0
11 anos - - - - - - 1 1 - 2 1,06
12 anos - - - - - - 2 - 2 1,06
13 anos - - - - - 1 - - - 1 0,53
14 anos - - - - - - - - 0 0
15 anos - - - - - 1 - - - 1 0,53
Até maioridade - - - - 1 - - - - 1 0,53
Até emancipação - - - - - - 1 - - 1 0,53
Sem informação 1 2 8 - 4 22 35 12 5 89 47,59
Total 1 5 26 5 8 62 50 24 6 187
84
Sempre que os autos informaram a idade do menor arregimentado cujo prazo de prestação de serviços
era designado por estes códigos, a duração do contrato foi convertida em anos para fins de tabulação.
Desse modo, apenas duas menções à duração dos arranjos de trabalho feitas nestes moldes encontram-se
assinaladas na tabela, não tendo sido possível, pela omissão da idade do contratado, calcular o tempo que
este permaneceria sob contrato.
237
85
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 50, 1896.
86
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05453, documento 12396, 1856. O caso,
envolvendo cruéis maus-tratos dispensados pelo brigadeiro e sua família a Benedicto, é abordado por
Enidelce Bertin em: BERTIN, Enidelce. Uma “preta de caráter feroz” e a resistência ao projeto de
emancipação. In: MACHADO, Maria Helena P.T.; CASTILHO, Celso Thomas (Org). Tornando-se
livre: Agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição. São Paulo: Edusp, 2015, p. 129-142.
Sobre a biografia do Brigadeiro Gavião Peixoto: SACRAMENTO BLAKE, Augusto Victorino Alves.
Diccionario Bibliographico Brazileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1898, v. 2.
238
limite, que estas lacunas poderiam ser preenchidas pelo arbítrio do contratante ou
negociadas na prática social pelo menor e sua família. Nesta disputa de poderes, a
fragilidade social de famílias empobrecidas ou mesmo de menores orfanados poderia
consigná-los a prolongados períodos sob o domínio de um mesmo empregador.
A distribuição dos contratos formalizados ao longo de período pesquisado,
levando em consideração o sexo dos menores trabalhadores e seu pertencimento aos
grupos raciais amplos anteriormente definidos, revela que a indeterminação a respeito
da duração dos contratos é mais frequente entre menores do sexo masculino, em todas
as categorias raciais. O subgrupo das meninas “não brancas” é, ao contrário, aquele que
conta com o maior índice de informações sobre a duração dos contratos celebrados,
predominando, mais uma vez, o marco dos três anos de duração (ver Apêndice J,
p.370).
Indeterminações a respeito dos termos específicos em que se celebravam os
contratos abrangem também as remunerações devidas pelo trabalho executado pelos
menores de idade – varável que exclui, novamente, as tutelas. Os regimes diversos de
pagamento aos menores cujo trabalho era arregimentado fazem deste o tópico que
apresenta maiores dificuldades às tentativas de racionalização numérica ou
quantificação. A contratação de menores de idade à soldada significava que a paga
atribuída aos serviços prestados seria recolhida e tornar-se-ia acessível ao trabalhador
quando este atingisse a maioridade ou a emancipação legal. Essas condições específicas
da remuneração dos serviços dos menores, porém, não se encontram claramente
definidas nas Ordenações Filipinas e tampouco em qualquer um dos escassos
dispositivos legais que foram criados para regular as relações de trabalho com esses
sujeitos durante o século XIX87. A esta norma frágil, portanto, interpuseram-se desvios
variados que resultaram em uma política inconsistente e fragmentada de assalariamento,
aplicada aos menores de idade na cidade de São Paulo.
As reflexões que seguem representam um esforço de sintetização das diferentes
modalidades de remuneração de menores judicialmente arregimentados praticadas na
cidade de São Paulo, no período estudado. Nota-se, de início, que a parte deles sequer
87
Os títulos 31 a 34 do livro 4º das Ordenações Filipinas versam sobre regras para o pagamento de
criados cujo trabalho era arregimentado à soldada, mas dedicam-se mais a delimitar o valor devido a cada
tipo de serviço e as precauções a serem adotadas por amos contra a má-fé de seus criados do que a
estabelecer direitos destes últimos. O título 31, especificamente, é o que define a idade mínima de
assoldamento como 7 anos, conforme esclarecido no capítulo anterior. Cf. Ordenações Filipinas, Liv. 4º,
Tit. 31 a 34. <Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p212.htm>. Acesso: 24 set. 2016.
240
foi atribuído judicialmente algum valor de vencimento, como no caso dos aprendizes
em seus primeiros anos de serviços, e de outros tantos menores cujos contratos
simplesmente silenciam sobre a remuneração. Esses lapsos não significam,
necessariamente, que o pagamento aos serviços prestados estivesse completamente
ausente destas relações de trabalho. Indicam, entretanto, que espécies variadas de
retribuição poderiam ser entendidas como paga adequada aos serviços prestados pelos
menores trabalhadores. A combinação de vencimentos em espécie, na forma de
estipêndios mais ou menos assemelhados aos modernos modelos salariais, ao
pagamento em gêneros, como alimentação, vestuário e tratamento médico, constituiu,
de fato, a base fundamental das políticas de remuneração do trabalho dependente e,
notadamente, do trabalho doméstico. Referindo-se especificamente a esse tipo de
serviços, Sandra Graham argumenta que a conjunção de “proteções tradicionais”,
características das relações paternalistas, a salários e pagamento em gêneros,
“proporcionavam uma continuidade que suavizava a transição formal do trabalho
escravo para o livre”88. Sobre essas relações, pesava a forte carga simbólica da troca de
proteção e generosidade, oferecidas pelo empregador, e a gratidão e obediência devidas
por seus subalternos, retirando tais relações do campo da compra e venda da força de
trabalho e lançando-as aos domínios da afetividade89.
A fórmula básica de remuneração do trabalho dependente, qual seja, a provisão
aos trabalhadores de subsistência mínima e elementar como paga aos serviços prestados,
travestida de generosidade e proteção, foi amplamente praticada nas relações de
trabalho fragilmente estabelecidas nos domínios formais da liberdade em sociedades
escravistas.
Os contratos de locação de serviços de libertandos são uma demonstração clara de como
as lógicas da dependência intervinham, na prática social, sobre as definições de trabalho
livre, matizando-as com a força da tutela e estendendo aos domínios da liberdade formal
os protocolos de relações sociais forjadas no interior da escravidão90. Também no caso
dos menores judicialmente assoldadados, a fórmula paternalista de trabalho dependente
88
GRAHAM, S. L. Proteção e obediência..., op. cit., p. 120.
89
GRAHAM, S. L. Proteção e obediência..., op. cit.
90
Sobre as locações de serviços de libertandos em São Paulo, ver meu próprio trabalho. ARIZA, Marília
Bueno de Araújo. O ofício da liberdade: trabalhadores libertandos em São Paulo e Campinas (1830-
1888). São Paulo: Alameda Editorial, 2014. Sobre o uso destes expedientes em Desterro, ver os trabalhos
de Henrique Espada Lima: LIMA, Henrique Espada. Sob o domínio da precariedade: escravidão e os
significados da liberdade no século XIX. Topoi, v. 6, n. 11, 2005, p. 289-326; ______. Trabalho e lei para
os libertos de Santa Catarina no século XIX: arranjos e contratos entre a autonomia e a domesticidade.
Cadernos AEL, v. 14, n. 26, 2009.
241
foi fundamental, sendo praticamente onipresente nos 187 contratos levantados pela
pesquisa. Desse conjunto, apenas 20 arranjos formalizados pela justiça esquivam-se de
mencionar o compromisso da oferta de vestuário, alimentação e “curativo em caso de
moléstia” aos menores cuja mão de obra é arregimentada.
Reforçando os contornos tutelares em que se definiam as relações de
assoldamento de menores de idade, 110 contratos referem-se ao compromisso de educar
os menores cujos serviços eram arregimentados. Educá-los e instruí-los na disciplina do
trabalho livre e morigerado era, de fato, como já se argumentou no capítulo anterior,
uma das plataformas ideológicas fundamentais sobre as quais se erigia o sistema de
contratos de soldada e de tutelas em geral. Ainda assim, os termos em que se definiam
esses compromissos pedagógicos eram tão elusivos quanto parecem ter sido seus
efeitos. Variavam de menções quase involuntárias ao caráter especificamente utilitário
da instrução provida aos menores, como no caso das referências feitas ao compromisso
de oferecer “educação exclusivamente doméstica”, “ensino em prendas ou misteres
domésticos”, “ensinar profissão”, “mandar ensinar algum ofício para o que tenha
vocação”, a alusões absolutamente vagas como “oferecer alguma educação”, “dar ou
completar educação”, “dar a necessária, precisa ou conveniente educação”, “dar
educação comum”.
Por vezes, as menções feitas a essas obrigações sublinhavam que a qualidade da
educação oferecida deveria equiparar-se à qualidade social do sujeito a ser educado, e
assim encontram-se passagens que aludem à “educação compatível com a classe do
menor”, “educação compatível com seu estado e posição social”, ou “instrução
compatível com o estado e inteligência do menor”. Nos casos em que a especificidade
do tipo de instrução oferecida era mais acurada, há referências ao compromisso de
ensinar aos menores as habilidades básicas da leitura, escrita e da matemática, e muito
raramente – precisamente em apenas três circunstâncias – encontram-se expressamente
definidas as obrigações de “manter o menor na escola”. Finalmente, ilustrando
cabalmente o forte conteúdo moralizante subsumido na ideia da educação a ser
oferecida aos menores assoldadados, alguns contratos trazem menções ao compromisso
de “oferecer educação moral e religiosa”91.
91
Alessandra Frota Martinez, ao investigar as políticas de fomento e implementação da instrução pública
na Corte identifica, no discurso de reformadores e educadores, duas acepções relacionadas ao tema:
instruir, que compreendia prover aos educandos as habilidades e conteúdos da educação escolar formal,
como o ensino das letras e contas; e educar, expressão que indicava a educação moral e religiosa dos
242
No que diz respeito aos arranjos que de fato previam o pagamento em espécie
pelos serviços prestados pelos menores de idade, nota-se a existência de duas
modalidades de remuneração: a dos pagamentos em valores fixos e invariáveis ao longo
dos anos de duração do arranjo de trabalho; e a dos pagamentos progressivos que
aumentavam à medida que os anos de prestação de serviços avançavam (Apêndice L,
p.371-372). Em ambos os grupos, encontram-se registros de alguns poucos contratos
que previam a não remuneração dos menores no primeiro ou nos primeiros anos de
serviços prestados, justificados indiretamente por lógica semelhante à adotada nos
arranjos de aprendizagem de ofícios especializados que arrazoava ser necessário
preparar o menor trabalhador para a prestação de serviços adequados antes de
efetivamente remunerá-lo. Bons exemplos são aqueles oferecidos pelos arranjos de
trabalho imputados a Izabel, José e João, acima mencionados, havidos entre 1886 e
1891, que estabeleciam que os menores, todos com oito anos, somente passariam a
vencer soldadas quando completassem dez anos de idade.
Contrariando o pressuposto de que os pequenos e jovens trabalhadores seriam
talhados pela instrução que receberiam de seus empregadores, e, assim, de que a aptidão
para os bons serviços seria resultante da aprendizagem e da disciplina adquiridas ao
longo do tempo, a maior parte das contratações havidas na cidade e intermediadas pelo
Juízo de Órfãos estabelecia um valor fixo para os serviços desempenhados pelos
contratados, não reajustado por todo o tempo que durasse seu vínculo de trabalho.
Segundo esse raciocínio, portanto, ainda que a formação e adequação dos pequenos e
jovens à morigeração e à capacidade de trabalhado fossem pressupostos básicos da
própria instituição da soldada, como se discutiu no capítulo anterior, o aperfeiçoamento
das capacidades de trabalho dos menores de idade não redundaria na proporcional
ampliação de seus vencimentos.
As remunerações progressivas, por sua vez, a princípio alinham-se mais
adequadamente aos fundamentos gerais da educação e formação de trabalhadores,
subsumidos na modalidade de trabalho assoldadado. Pressupõem que, conforme
avançava a idade do menor trabalhador e, com ela, ampliavam-se suas habilidades nos
serviços que lhes eram ensinados, aumentava também o valor atribuído a seu trabalho.
A despeito dessas divergências de fundo, que expressam a variedade e, no limite, a
mesmos educandos. MARTINEZ, Alessandra Frota. Educar e instruir: a instrução popular na Corte
imperial. 1870 - 1889. Dissertação (Mestrado em História). 1997. 240f. Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 1997.
243
grupo dos menores do sexo masculino, identificados como “brancos”, cujos poucos
contratos inserem-se em faixas salariais bastante distintas. Já os menores identificados
como “não brancos” ou não identificados a nenhum grupo racial conservam-se de forma
menos concentrada principalmente nas faixas salariais que variam entre mil e dez mil e
900 réis mensais92.
A atribuição dos valores das soldadas era tarefa de muitas mãos e interesses. De
modo geral, o valor da remuneração era inicialmente proposto pelo pleiteante dos
serviços, sendo em seguida avaliado pelo curador-geral de órfãos, que poderia discordar
da proposta e reformá-la segundo seus critérios de justiça. À sugestão do curador
seguia-se, enfim, o despacho do juiz de órfão, e então os autos de contrato eram
lavrados. A participação do menor trabalhador ou de sua família no processo de
arregimentação judicial de sua mão de obra e na negociação dos valores que lhe seriam
remunerados era, assim, mínima, atravessada por uma “racionalidade pública” que
deveria representar os interesses e benefícios dos menores. A partir do fim da década de
1890, esta intervenção pública ganha indícios de maior protocolização com as
referências feitas nos autos do primeiro e do segundo ofícios do Juízo de Órfãos da
cidade de São Paulo à existência de tabelas a serem seguidas para determinação dos
valores das soldadas. Em 1896, Francisco de Paula Rodrigues recorria ao Juízo da então
capital do Estado para contratar os serviços de José, menor de cor preta e cerca de 12
anos de idade, identificado como filho de Joaquina de tal. Apreendido em casa de Maria
Benedicta, “mulher de maos costumes” com quem residia, José foi levado pelos oficiais
de justiça à casa de Rodrigues, onde ficou contratado pela soldada mensal de cinco mil
réis. Passados 12 dias do ocorrido, o juiz de órfãos voltava à carga nos autos
demandando que o contrato celebrado fosse invalidado: não tendo sido feito em acordo
com a “tabella do juizo”, era lesivo aos interesses do menor. O novo contrato, celebrado
pelo mesmo juiz, foi realizado nos seguintes termos:
(...) compareceu Francisco de Paula Rodrigues, proprietario, residente
nesta cidade, e por elle (...) foi dito que por este termo acceita a
soldada do menor José de 12 annos mais ou menos de idade, filho de
Joaquina de tal e que se acha em sua cia, comprometendo-se a (...)
92
Em todos os cenários – quaisquer que sejam as combinações de sexo e categoria racial – a remuneração
média atribuída aos menores assoldadados na capital da província era superior àquela constatada por
Alessandra David para o município de Franca. Único dos estudos dedicados ao tema do uso sistemático
da mão de obra de menores de idade propor um arrazoado dos valores remunerados, a pesquisa de David
aponta que, afora os contratos predominantes com soldadas não especificadas, a remuneração média entre
1850 e 1888 manteve-se entre 20 e 40 mil réis anuais, correspondentes a valores mensais entre mil e 600
e três mil e 300 réis. DAVID, A. Tutores e tutelados..., op. cit., p. 116.
245
93
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05354, documento 57, 1896.
94
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05354, documento 58, 1901. Em 1905 e 1908,
novas menções são feitas nos autos a um índice de soldadas estabelecido pela justiça. Os serviços do
menor português Manoel Batalha deveriam ser remunerados “tomando por base a tabella existente em
juízo”94. A pleiteante aos serviços de Maria oferecia pagar-lhe “a soldada pela tabella do juizo quando a
referida menor atingir a edade de doze annos”94. Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata
C05354, documento 62, 1905; Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 28, 1908.
246
entre 12 e 15 anos e 18 mil réis mensais para menores entre os 15 anos e a maioridade.
A despeito das inconsistências nos padrões salariais verificados nos anos iniciais de
prestação de serviços, a existência das “tabelas do juízo” e a indicação de que, de fato, a
remuneração dos assoldadados era praticada com alguma regularidade, apontam para
um entendimento segundo o qual a atribuição de valor à mão de obra dos menores de
idade era, naquele momento, operada por uma racionalidade ampla e não discricionária,
fundada em princípios públicos e não na desigual e privada negociação entre
trabalhadores e empregadores.
Se é verdade que a regulação dos patamares de remuneração dos menores
assoldadados parece ter sido implementada pelo Juízo de Órfãos na virada do século,
não se pode dizer que o Estado, apesar das generalizadas imprecisões que definiram os
limites jurídicos e públicos da prática de soldadas ao longo dois oitocentos, tenha de
todo se desinteressado do adequado cumprimento dos deveres dos contratantes. O
pagamento das soldadas devidas, feito por meio de depósitos regulares em cadernetas na
Caixa Econômica provincial, era corriqueiramente burlado pelos contratantes. Diversas
vezes, tal burla foi identificada no ato do encerramento ou cancelamento do contrato,
quando se procedia obrigatoriamente a um auto de contas que apontava o montante total
devido ao assoldadado, e o escrivão de órfãos consultava a caderneta para checar se os
valores haviam, de fato, sido depositados. Outras vezes, a fraude dos contratantes não
chegava tão longe, sendo antes do encerramento do contrato identificada pelo escrivão e
comunicada ao juiz de órfãos, que então intimava o mau pagador a comparecer em
Juízo e apresentar os valores devidos.
Joaquim Fernandes Coutinho Sobrinho foi um caloteiro exemplar. Tendo
contratado em 1870, pelo prazo de três anos, os serviços domésticos do menor Evaristo,
preto de 11 anos de idade, comprometeu-se a pagar-lhe “(...) a titulo de soldada a
quantia de 6$ por mês no primeiro anno, de 10$ mensaes no segundo, e de 15$ mensaes
no terceiro anno; cujas exhibições se obriga a fazer de seis em seis mezes neste juizo
(...)”95. Cinco anos depois, nos mesmos autos, o escrivão do Ofício de Órfãos
comunicava ao juiz encarregado que Sobrinho somente fizera, até então, um único
depósito no valor de 60 mil réis na caderneta aberta em nome de Evaristo. Assim, o
contratante não apenas deixara de recolher as soldadas designadas, constituindo-se
devedor da quantia de 312 mil réis pelo tempo regular do contrato, como ainda
95
Cf. APESP – Tribunal de Justiça de São Paulo, lote 201006004046, Contrato a soldada, 1870.
247
96
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C5457, documento 6140, 1892-4.
248
concordava em “pagar novamente o que já havia pago uma vez”, pedindo apenas que se
lhe livrassem da multa pelos atrasos – ela, afinal, não iria para os bolsos de João.
Com esse último e desavergonhado pedido, o lavrador ilumina um aspecto
bastante relevante do pagamento das soldadas, que contribui para entender as razões
públicas para a cobrança dos devedores como algo mais do que, unicamente, a
consternação pelo futuro dos jovens e pequenos trabalhadores. O dinheiro recolhido
com as multas por falta ou atraso de pagamentos dirigia-se diretamente aos cofres
públicos, e não era integrado ao pecúlio acumulado pelos menores. Ademais, enquanto
amontavam-se em cadernetas de poupança, as soldadas eram tomadas por empréstimo
ao Thesouro Provincial que utilizava as somas no orçamento público e as devolvia aos
trabalhadores quando, tendo atingido a maioridade, pudessem solicitar o levantamento
dos pecúlios acumulados. Um ofício de 1846, encaminhado pelo Thesouro ao Juízo de
Órfãos da cidade, atesta a longevidade dessa prática, formalmente estabelecida mesmo
antes da explosão de soldadas, na década de 1880:
Para podêr cumprir com o determinado na ordem do Thesouro de
23.08 do anno findo sob nº 92.9 que exige que no penultimo mes de
cada anno financeiro se declare o total da quantia devida a orphãos, de
que se tem de pagar juros, e bem assim quais os orphãos, que tem de
entrar em sua maioridade no anno seguinte, para que o mesmo
Thesouro possa, com conhecimento de causa, abrir crédito para
pagamento do capital, e juros desses dinheiros, rogo á V.Pª. que se
digne fornecer a esta Thesouraria arelação daqueles orphãos que tem
de entrar em sua maioridade no anno [com e ?] seguintes; com
declaração de quanto [todos ?] orphãos tem de haver da Fazenda
Pública, e dos dinheiros recolhidos até o fim de Março finado; a fim
de que esta Thesouraria esteja habilitada para remetter ao Thesouro no
mês de Maio os esclarecimentos por elle exigidos na citada ordem97.
97
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos administrativos, lata C05351, ofícios soltos, 1846.
98
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos administrativos, lata C05351, ofícios soltos, 1876.
249
99
O decreto 5.143, de 27 de fevereiro de 1904, regula os empréstimos feitos ao cofre dos órfãos, em que
se depositavam as soldadas dos menores trabalhadores e as heranças dos menores de posses. Cf. Decreto
nº 5.143 de 27 de fevereiro de 1904. <Disponível em:
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=47364&norma=63135>. Acesso: 30
out. 2016.
100
AZEVEDO, G.C. De Sebastianas e Geovannis..., op. cit.
250
101
Sobre este processo, ver: CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
251
102
MACHADO, MHPT. Sendo escravo nas ruas..., op. cit., p. 4
103
TOPLIN, Robert Brent. The abolition of slavery in Brazil. New York: Antheneum, 1975.
252
104
AZEVEDO, G.C. De Sebastianas e Geovannis..., op. cit.
105
ULYSSEA, Gabriel. Informalidade no mercado de trabalho brasileiro: uma resenha da literatura.
Textos para discussão – Ipea, n. 1070, fev. 2005. <Disponível em:
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/1926/1/TD_1070.pdf>. Acesso: 30 out. 2016.
253
arregimentação de mão de obra. Nota-se, por exemplo, que dos 187 contratos de soldada
localizados, 31 referem-se explicitamente à existência de acordos informais previamente
estabelecidos com o menor que passava, então, a ser própria e judicialmente contratado.
Além deles, oito arranjos informais são denunciados em autos de solicitação de tutela, e
outros 31 encontram-se indiretamente revelados em autos de disputa de guarda de
menores de idade, frequentemente reclamados por seus familiares, ou por denúncias
apresentadas pelas autoridades públicas contra os “exploradores de menores”.
Certamente, o caráter não oficial e indiciário dessas referências ao trabalho
informal, recolhidas nas entrelinhas dos discursos de autoridades públicas, reclamações
de contratantes e depoimentos de menores trabalhadores e suas famílias, impede que as
mesmas sejam tomadas como números absolutos das dinâmicas da informalidade do
trabalho de menores de idade, na cidade na virada do século. É interessante constatar,
contudo que, mesmo nas décadas de 1880 e 1890, período de ampliação do recurso à
formalização do agenciamento dos serviços desses sujeitos, a informalidade seguia
acolhendo parcela dos pequenos trabalhadores na cidade. Se a informalidade não havia
sido eliminada pela regulação dos expedientes de arregimentação do trabalho de
menores ou pela fiscalização das autoridades públicas, por que, então, o interesse pela
formalização dos vínculos entre empregadores e jovens trabalhadores ocupados nas
diversas lides urbanas teria aumentado no momento culminante das pressões em torno
da abolição? Por que os registros formais de contratação de menores de idade
multiplicaram-se justamente nessa ocasião, se a profusa informalidade poderia continuar
servindo como escudo a proteger práticas de dominação pessoal não mediadas ou
constrangidas pela lei, por mais débil que esta fosse?
Talvez alguma resposta para essas questões resida num leve desvio interpretativo
a respeito do papel assumido por tutelas e soldadas no contexto do desmonte gradual da
escravidão na cidade de São Paulo. Em lugar de compreender tutelas e soldadas como
instrumentos de arregimentação de novos trabalhadores, que viriam a substituir os
braços perdidos à emancipação, pode-se imaginar que esses recursos jurídicos,
multiplicando-se nas décadas finais do século XIX, tenham desempenhado uma função
mais conservadora. Engajando crianças e jovens livres pobres e egressos da escravidão
em arranjos de trabalho francamente inspirados em códigos paternalistas de proteção e
obediência, as tutelas e soldadas parecem ter cumprido a tarefa de preservar vínculos de
dependência e exploração largamente consolidados na prática social e ameaçados pela
254
106
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de apreensão, lata C05361, documento 04, 1885.
107
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de depósito, lata C05453, documento 02, 1888.
108
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05456, documento 8656, 1890.
255
109
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05457, documento 6126, 1892.
110
O conceito da “dupla liberdade do trabalhador” na sociedade de mercado, segundo a proposição de
Marx, define-se a partir da contradição inerente ao trabalhador que não é propriedade de outrem, mas, ao
mesmo tempo, não é proprietário dos meios de produção. Assim, apesar de livre para vender a própria
força de trabalho, o trabalhador é também impelido a fazê-lo ao capitalista de modo a garantir a própria
sobrevivência. MARX, Karl. A produção da mais-valia absoluta. _________. In: O capital: o processo de
produção do capital. São Paulo: Difel, 1982.
111
Sobre as origens do conceito do contrato e sua oposição ideal à escravidão, ver: STANLEY, Amy Dru.
From bondage to contract: wage labor, marriage and the market in the age of slave emancipation. New
York: Cambridge University Press, 1998.
256
112
Sobre a escravidão ao ganho: KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-
1850). São Paulo: Cia. das Letras, 2000; SOARES, Luis Carlos. O “povo de cam” na capital do Brasil:
a escravidão urbana no Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005; DIAS, Maria Odila
Leite da Silva. Nas Fímbrias da Escravidão Urbana: negras de tabuleiro e de ganho. Estudos
Econômicos, São Paulo, n. 15, 1992, p. 89-109; MACHADO, M.H.P.T. Sendo cativo nas ruas.... Sobre
os contratos de locação de serviços de libertandos, ver os já citados: ARIZA, M.B.A. O ofício da
liberdade...op. cit.; LIMA, H.E. Sob o domínio da precariedade...; Trabalho e lei para os libertos...
113
O texto de John M. Monteiro traz uma leitura bastante abrangente sobre as concepções de trabalho
livre, limítrofes ou sobrepostas à compulsoriedade, criticando visões “evolutivas” sobre a formação do
mercado de trabalho livre: MONTEIRO, John Manuel. Labor Systems, 1492-1850. In: COATSWORTH,
John H; CORTÉS-CONDE, Roberto and BULMER-THOMAS, Victor (Eds.). Cambridge Economic
History of Latin America. Cambridge: Cambridge University Press, 205 (disponível em:
http://www.ifch.unicamp.br/ihb/estudos/Labor1492-1850.pdf); STANLEY, Amy Dru. From bondage to
contract…, op. cit.
114
Referências interessantes a esse respeito na literatura norte-americana são: FIELDS, Barbara J.
Slavery and freedom on the middle ground: Maryland during the 19th century. New Haven,
Connecticut: Yale University Press, 1984; GRIVINO, Max. Gleanings of Freedom. Free and Slave
Labor among the Mason-Dixon Line, 1790-1860. Urbana, Chicago and Spingfield: University of Illinois
Press, 2011; ROCKMAN, Seth. Scraping by: Wage labor, slavery and survival in early Baltimore.
Baltimore, Marylannd: The Johns Hopkins Univeristy Press. 2009;
257
115
ROCKMAN, S. Scraping by...op. cit.; MELISH, Joanne Pope. Disowning slavery: gradual
emancipation and “race” in New England, 1780-1860. Ithaca, New York: Cornell University Press, 2000.
116
FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social: 1890-1920. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2000.
117
Outras críticas a concepções “evolutivas” da formação do mercado de trabalho livre encontram-se em:
STEINFELD, Robert J. The invention of free labor: the employment relation in English & American
law and culture, 1350-1870. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1991.
258
Atacadas pelo espírito crítico que as condenava como saída imprópria para o
disciplinamento da infância empobrecida, diminuídas em sua importância pela já
comentada proliferação entre o fim do século XIX e o início do XX de institutos asilares
financiados pela filantropia privada, bem como de institutos disciplinares que
espelhavam a emergência do enquadramento jurídico destes menores de idade, as
soldadas aparentemente perdiam sua legitimidade120. A queda no registro desses
contratos nas décadas iniciais da República aqui constatada, porém, parece ter
redundado no incremento do uso de tutelas como mecanismo indireto de obtenção de
118
BIROLLI, Maria Izabel de Azevedo Marques. Os filhos da República: a criança pobre na cidade de
São Paulo, 1900-1927. 2000. 246f. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade
Católica, São Paulo, 2000, p. 213.
119
MOTTA, Candido N. Os menores delinquentes e seu tratamento no estado de São Paulo. São
Paulo: Typ. Do Diario Official, 1909, p. 37-8, apud BIROLLI, M.I.A.M. Os filhos da República..., op.
cit., p.211.
120
Especificamente no caso de São Paulo, destaca-se a inauguração do instituto disciplinar: MARIANO,
Hélvio Alexandre. A infância e a lei: o cotidiano de crianças pobres e abandonadas no final do século
XIX e nas primeiras décadas do século XX e suas experiências com a tutela, o trabalho e o abrigo. 2001.
178f. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2001.
259
121
Apoiando-se nas considerações de Candido Motta, Birolli argumenta que as soldadas haviam caído em
desuso na cidade de São Paulo desde a década de 1830, ao contrário do constatado por esta pesquisa.
BIROLLI, M.I.A.M. Os filhos da república..., op. cit., p. 211
122
Gislane Azevedo já argumentava que o discurso caritativo das tutelas escondia relações de exploração
da mão de obra escrava em São Paulo. AZEVEDO, G.C. De Sebastianas e Geovannis..., op. cit., p. 78-
79.
260
123
Cf. APESP - Juízo de Órfãos, Autos de entrega/apreensão, lata C05338, documento 13889, 1910.
261
Talvez as palavras registradas em nome de Ulysses, que “por não saber escrever”
não assinava o próprio nome, tenham saído da pena de algum entusiasta defensor dos
desvalidos, e talvez tal defensor recorresse à comparação da situação de Maria ao
cativeiro como um malabarismo retórico para tornar mais dramáticas as denúncias124. O
documento cala sobre a origem social da menina, e não se pode saber se ela e seus pais
eram, de fato, egressos da escravidão. De todo modo, é certo que representante e
representado reconheciam na situação em que se encontrava a menor uma flagrante
ofensa à sua condição de menina livre, indicando que, se a escravidão não fora ainda
obliterada das práticas e memórias sociais, os trabalhadores expressavam um
entendimento próprio sobre os limites aceitáveis da exploração dos sujeitos livres. Mais
124
As comparações com a escravização foram, por exemplo, um recurso frequente no discurso de líderes
trabalhistas americanos e ingleses: STANLEY, A.D. From bondage to contract..., op. cit.;
STEINFELD, R.J. The invention of free labor..., op. cit.; FRENCH, John. As falsas dicotomias entre
escravidão e liberdade: continuidades e rupturas na formação política e social do Brasil moderno. In:
LIBBY, Douglas C.; FURTADO, Júnia Ferreira. Trabalho Livre, Trabalho Escravo: Brasil e Europa,
Séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006.
262
Capítulo 5
“Em terra de tantos abusos”: emancipação, violências e agências
1
Cf. BH-HDB – Correio Paulistano, Vingança, 10.10.1876, p. 2
264
2
A respeito do encaminhamento de menores indisciplinados aos Arsenais da Marinha, ver: SOUSA,
Jorge Prata de. A mão de obra dos menores: escravos, libertos e livres nas instituições do império. In:
SOUSA, Jorge Prata de (Org.). Escravidão: ofícios e liberdade. Rio de Janeiro: Arquivo Público do
Estado do Rio de Janeiro, 1998, pp. 33-63; CRUDO, Mathilde Araki. Infância, trabalho e educação: os
aprendizes do Arsenal de Guerra do Mato Grosso. Tese (Doutorado em História). 2005. 382f.
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.
265
Emancipação ameaçada
3
MONTEIRO, John Manuel. Labor Systems, 1492-1850. In: COATSWORTH, John H.; CORTÉS-
CONDE, Roberto and BULMER-THOMAS, Victor (Ed.). Cambridge Economic History of Latin
America. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. Disponível em:
<http://www.ifch.unicamp.br/ihb/estudos/Labor1492-1850.pdf>
266
4
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de requerimento, lata C05444, documento 06, 1830.
5
Keila Grinberg informa que a reescravização de libertos foi prática recorrente durante todo o século
XIX, enfrentando desde a década de 1850 crescente número de ações de manutenção de liberdade (ou
seja, processos movidos em nome de homens e mulheres forros contestando sua redução ilegal ao
cativeiro) interpostas na justiça. Segundo a autora, o aumento de ações desta natureza denunciava, ao
mesmo tempo, a vitalidade das práticas de reescravização e a resistências dos libertos a elas. Ainda
segundo Grinberg, a década de 1860 assistiu ao progressivo abandono de interpretações judiciais
favoráveis à possibilidade de reescravização. GRINBERG, Keila. Reescravização, direitos e justiças no
268
Brasil do século XIX. In: LARA, Silvia Hunold; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (Org.). Direitos e
justiças no Brasil: Ensaios de história social. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2006, p. 101-28. Ver
também: GRINBERG, Keila. Senhores sem escravos: a propósito das ações de escravidão no Brasil
Imperial. Almanack Brasiliense, São Paulo, n. 6, p. 4-13, 2007. CHALHOUB, Sidney. Costumes
senhoriais: escravização ilegal e precarização da liberdade no Brasil Império. In: AZEVEDO, Elciene;
CANO, Jefferson; CHALHOUB, Sidney; CUNHA, Maria Clementina Pereira (Org.). Trabalhadores na
cidade: cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX. Campinas: Editora da
Unicamp, 2009, pp. 23-62.
6
Nesse cenário, retratado no estudo modelar de M Odila Leite da Silva Dias, não é implausível que
Francisca Luzia, a quem foram confiados os serviços da menor, fosse também uma mulher pobre, que
dependesse em grande medida dos préstimos e serviços de Justina para garantir a própria sobrevivência.
Referindo-se ao contexto de generalizado empobrecimento na cidade de São Paulo durante a primeira
metade do século XIX, Dias explora o cotidiano de mulheres pobres vivendo precariamente em
companhia de poucas escravas ou agregadas, de cujo trabalho (desdobramento de atividades domésticas,
como a venda de quitandas nas ruas) sua sobrevivência dependia amplamente. DIAS, Maria Odila Leite
da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984.
7
Sobre as mulheres ocupadas nas atividades ligadas ao comércio de gêneros e aos serviços domésticos de
portas adentro e afora na cidade, ver: DIAS, M.O.L.S. Quotidiano e poder..., op. cit.; DIAS, Maria Odila
Leite da Silva. Nas Fímbrias da Escravidão Urbana: negras de tabuleiro e de ganho”. Estudos
Econômicos, São Paulo, n. 15 (nº Especial), p. 89-109, 1992.
269
9
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de petição, lata C05426, documento 10524, 1845.
271
concretizava os temores expressos anos antes por Joaquina a respeito de sua sobrinha.
Acorrendo ao auxílio das autoridades públicas, Roberto a “anulação da venda e a
readiquirição de sua liberdade”, alegando encontrar-se “em estado de escravidão
injusta” desde o dia cinco daquele mês, quando teria sido vendido a Innocencio de
Brito. A solicitação apelava, inclusive, a dispositivos da legislação vigente, invocando o
artigo 179 do Código Criminal de 1830 que, em sua parte terceira, ao abordar os crimes
contra a liberdade individual, penalizava a redução de pessoa livre à escravidão com
prisão pelo período de três a nove anos, além de multa10.
O correr dos autos acrescentava ainda outras camadas de complexidade à situação
de Roberto. Em defesa de seu direito de propriedade sobre o menor, José Antonio
Siqueira alegava ter cometido um inocente erro ao realizar a venda, e argumentava que,
tendo cancelado a transação, havendo inclusive devolvido o valor recebido por ela, teria
novamente direito à posse do menor. Tudo se justificava, segundo ele, pelas
circunstâncias em que o mesmo fora alforriado. Em 1841, Siqueira havia perfilhado a
José Ignacio Silva e, com o objetivo de evitar disputas entre seu recém-legitimado filho
e sua esposa Anna Jacintha de Jesus na eventualidade de seu falecimento, promovera no
mesmo ato a partilha de seus bens. Ao filho, couberam pequenas propriedades
imobiliárias – um sítio na longínqua freguesia do Jaraguá, uma parcela dos campos que
possuía, uma parte de uma pequena casa. A ele e à esposa, por sua vez, caberiam a
propriedade sobre a “mulata Verônica”, a quem deixavam livre, com a condição de
servir-lhes até que viessem a falecer, bem como aquela sobre a “preta Catharina” e seus
dois filhos, Antonio e Roberto. Àquele tempo, os meninos encontravam-se sob o poder
de Antonio Manoel Borba, a quem Siqueira transferira a “criação” dos crioulos
aparentemente em um arranjo informal de aluguel, sem data especificada. Retornando
ao poder de Siqueira, os filhos de Catharina seriam libertos com a mesma condição
imposta à Verônica, qual fosse a de prestar serviços a seus senhores até a morte dos
ditos proprietários11.
Nos anos passados entre a partilha de bens e sua venda irregular, Roberto talvez
tenha vivido em poder de Siqueira e Anna Jacintha. Nada inviabiliza a hipótese, porém,
10
Cf. Lei de 16 de dezembro de 1830, art. 179. Codigo Criminal do Imperio do Brazil, Parte Terceira,
Título I. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM-16-12-1830.htm#art179>.
Acesso: 30 jan. 2017.
11
Enidelce Bertin indica que as alforrias de tipo “condicional e não paga”, que frequentemente previam a
necessidade de continuada prestação de serviços pelos libertos a seus senhores, constituíram a maior parte
das manumissões registradas em cartório na cidade de São Paulo, entre 1800 e 1888. BERTIN, Enidelce.
Alforrias na São Paulo do século XIX: liberdade e dominação. São Paulo: Humanitas, 2004.
272
de que no transcurso deste tempo o menor tenha sido alugado a terceiros em arranjos
informais de aprendizagem e serviços semelhantes àquele que teria mascarado sua
arrematação ilícita como cativo por Innocencio Brito, em 1845. Chegando-se a esta
data, a operação ilegal fora denunciada, e diante da petição apresentada em nome de
Roberto, o juiz de órfãos determinou que ele fosse depositado em poder de seu curador.
Diversos esforços foram empenhados por Siqueira, e depois de sua morte por sua
esposa Anna Jacintha, para reaver a propriedade sobre o menor, fiando-se na
justificativa de que eles ingenuamente desconheciam a impossibilidade de vender
Roberto – como se pudessem efetivamente ignorar o fato de que a venda de um liberto
condicional contrariava diretamente a promessa de liberdade embutida em sua
condição12. Até 1849, entretanto, os apelos encaminhados pelos ex-proprietários
permaneceram sem resposta do curador do menor e paralisados na burocracia do Juízo
de Órfãos. Nesse ano, contudo, Siqueira e Anna Jacintha denunciaram a morosa atuação
de Joaquim Antonio Pinto Junior, que em quatro anos não havia dispendido qualquer
energia no encaminhamento de Roberto a um fim legalmente apropriado, permanecendo
em poder do menino que então já contava cerca de 14 anos de idade. Que faria ele,
vivendo em companhia do curador, numa idade em que, como demonstraram outros
autores, meninos e meninas escravizados já haviam ingressado no mundo adulto do
trabalho13?
Não seria implausível deduzir que, por todo esse tempo, em lugar de ser reduzido
ilegalmente à escravidão ou de viver como liberto condicional em poder dos seus
antigos senhores, Roberto tivesse prestado serviços a seu curador, habitando uma
espécie de limbo à espera da definição de seu estatuto jurídico, vivendo como um jovem
trabalhador precariamente livre, impedido de autonomamente decidir para quem e onde
trabalhar, sem receber qualquer remuneração. Essa não seria uma situação realmente
extravagante diante dos muitos arranjos de trabalho dependente que se desenhavam nos
cenários escravistas do Império e de outras áreas atlânticas. Ademais, a atuação de
curadores e depositários no âmbito das disputas jurídicas pela emancipação era alvo de
constantes críticas de senhores que questionavam o papel e os interesses daqueles a
quem ficavam confiados homens e mulheres escravizados no curso, por vezes alentado,
12
Sobre os statu-liber, ver nota 8 do capítulo 1, p.35.
13
Sobre o ingresso de escravos menores de idade no mundo adulto do trabalho, ver: MATTOSO, Kátia.
O filho da escrava: em torno da Lei do Ventre Livre. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.8,
n.16, p.37-55, 1988; GÓES, João Roberto; FLORENTINO, Manolo. Crianças escravas, crianças dos
escravos. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015, p.
177-191.
273
14
Suspeitas desta ordem, constantemente aventadas pela classe senhorial, procuravam, é claro,
desmoralizar os depositários para impedir que senhores fossem privados da mão de obra dos libertandos
no curso dos processos. Joseli Mendonça comenta as suspeições levantadas contra curadores e
depositários e Alexandre Otsuka aponta que até mesmo Antonio Bento, notório abolicionista e caifaz, foi
alvo de tais maledicências. Não parece de todo estranho, entretanto, que os advogados e depositários
designados para a curatela dos escravos, nem sempre tendo compromissos específicos com a causa da
abolição, como aponta Keila Grinberg, pudessem eventual e casualmente se aproveitar dos serviços de
libertandos a seu cargo. MENDONÇA, Joseli. Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os
caminhos da abolição no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008; OTSUKA, Alexandre Ferro.
Antonio Bento: discurso e prática abolicionista na São Paulo da década de 1880. 2016. 234f. Dissertação
(Mestrado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016, pp. 108-38; GRINBERG,
Keila. Liberata, a lei da ambiguidade: as ações de liberdade na Corte de Apelação do Rio de Janeiro no
século XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
15
Sobre a ativa participação de escravos na demanda judicial por sua emancipação, notadamente na
segunda metade do século, quando se amplia a interposição de ações de liberdade, ver: AZEVEDO, E. O
direito dos escravos..., op. cit. Keila Grinberg discute a importância de redes de solidariedade e
reconhecimento social para que escravos pudessem angariar o apoio de advogados curadores que
intercedessem judicialmente por eles: GRINBERG, K. Liberata, a lei da ambiguidade..., op. cit.
274
pequenos e jovens trabalhadores, mas para a ampla maioria dos menores formalmente
arregimentados na cidade, o trabalho tutelado redundou frequentemente em experiências
permeadas por violência e compulsoriedade. É inegável, porém, que no caso dos
meninos, meninas e jovens oriundos da escravidão, os arranjos formais de trabalho
poderiam tornar-se mecanismos de prolongamento das hierarquias e, mais
profundamente, das noções de propriedade implicadas nas experiências do cativeiro – e,
no limite, redundar na redução das pessoas libertas a “coisas que se poderia vender”.
O contrato de trabalho da “mulatinha Rachel”, de cerca de 17 anos, celebrado em
1856, oferece um exemplo ligeiro, porém claro, de como a restrição das emancipações
desfrutadas por menores egressos da escravidão poderia se apresentar mesmo quando
evitada a sua ilegal reescravização. Liberta condicionalmente em testamento por sua
senhora Francisca Roza de Jesus Peixoto, com a ressalva de que permanecesse
“encostada à sua Mestra Dona Joaquina Maria da Conceição” até completar 21 anos
de idade, a jovem fora apresentada pelo testamenteiro Simão Luiz de Almeida ao Juízo
na ocasião do falecimento da dita Francisca16. Até aquele momento, embora a esta
pertencendo, Rachel vivera em casa do referido Almeida. Talvez a falecida senhora
tivesse resolvido manter a menor como sua propriedade e bem semovente, alienando,
porém, o uso dos serviços por ela prestados como forma de poupar-se das despesas que
teria com a manutenção da menina. A penúria foi também a razão alegada pela mestra
Dona Joaquina para recusar a companhia de Rachel, “por falta de comodo, e estado de
enfermidade, viuves e pobreza”. Desse modo, o testamenteiro, em companhia de quem a
jovem vivia, apresentou-a ao Juízo para que este deliberasse sobre seu devido
encaminhamento legal. Perguntada pelo juiz sobre as condições em que vivia em
companhia de Simão Luis de Almeida, Rachel respondeu que em sua casa “cozia e
engomava”, “ganhando alguma coisa por seu trabalho de costura”. Ali tinha uma
cama, um catre, duas caixas e sua roupa, e vivia em companhia de “uma mulher que a
tinha criado”. Indagada se lhe apetecia a ideia de seguir a viver em companhia da dita
mestra, afiançou que desejava permanecer em casa de Simão Almeida e em companhia
de sua mencionada criadeira.
Uma semana depois, no entanto, naquele mesmo mês de novembro, o dono de
fábrica de tecidos e loja de serigaria Antonio Ribeiro de Miranda, useiro e vezeiro
cliente do Juízo de Órfãos na década de 1850, quando arregimentou diversos menores
16
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05453, documento 12410, 1856.
275
17
Ver, entre outros: Maria Helena Machado e Celso Castilho: MACHADO, Maria Helena P.T. e
CASTILHO, Celso Thomas (Org.). Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de
abolição. São Paulo: Edusp, 2015.
18
AZEVEDO, E. O direito dos escravos..., op. cit.; GRINBERG, K. Liberata, a lei da ambiguidade...,
op. cit.; MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. O direito de ser africano-livre: os escravos e as interpretações
da lei de 1831. In: LARA, Silvia Hunold; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (Org.). Direitos e justiças
no Brasil: Ensaios de história social. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2006, pp.129-60. Recompondo os
percursos da emancipação de uma africana escravizada em São Domingos e sua família, Rebecca Scott e
Jean Hébrard sublinham a importância da documentação e das provas materiais na legitimação da
liberdade conquistada: SCOTT, Rebecca J; HÉBRARD, Jean M. Freedom papers: an atlantic odyssey
in the age of emancipation. Cambridge: Harvard University Press, 2014.
19
Sobre os contratos de locação de serviços anteriormente citados, bem como sobre a disputa cotidiana de
seus significados pelos libertandos prestadores de serviços, consultar a nota 90 do capítulo 4, p.240.
277
legitimidade como contratante: era homem de meios, ainda que modestos, e estava
disposto a educar convenientemente sua filha. Conforme estabelecia o título 102 do
Livro 4º das Ordenações Filipinas, os vínculos familiares teriam precedência sobre a
distribuição de tutelas dativas a terceiros, sendo unicamente precedidos pela legação
explícita de tutelas testamentárias21. Largamente emanante do código Filipino, o direito
civil imperial reiterava tais disposições e consagrava o pater familias como cerne do
edifício social e célula fundamental da ordem jurídica, competindo à figura do patriarca
a plenipotência sobre a família, os agregados e todos os habitantes do mundo da casa
por ele governado22. Do ponto de vista legal, portanto, não haveria motivos razoáveis
para que a contratante continuasse em poder de Maria Clara, estando seu pai vivo e
disposto a recebê-la sob sua responsabilidade. Escapava à menor e faltava à contratante,
precisamente, a condição de órfã sobre a qual se amparava a licitude da contratação
proposta e lograda por Roza do Valle – uma vez que não seria possível justificá-la por
sua escusa vocação para a extensão de vínculos de dominação herdados da escravidão23.
Consultado, o testamenteiro da finada Bárbara Maria da Conceição, padre José
Joaquim Cardoso, manifestou sua conformidade com a solicitação de Malaquias. A
resposta indignada da contratante desapossada de sua assoldadada, porém, não tardou, e
veio municiada de argumentos de inspiração variada:
(...) tendo obtido neste juízo por contrato de educação e soldada a
menor de nome Clara, liberta por Dona Barbara Maria da Conceição,
mandou buscar a ditar menor em casa do testamenteiro da finada
senhora, qual recuzou-se a entregar, porque diz que a dita menor Clara
tem pai liberto que pode tratar-la e ter la consigo. Mas, como Vossa
Senhoria sabe, essa simples alegação do testamenteiro não pode obstar
a execução do contrato que em ultimo caso e um meio de assegurar se
o futuro da dita menor e a sua moralidade.
21
Ordenações Filipinas, Livro 4º, Título 102. Disponível em:
<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm> Acesso: 30 de janeiro de 2017.
22
A centralidade do pater familias no direito civil brasileiro herdeiro das Ordenações é discutida em:
NEDER, Gislene e CERQUEIRA FILHO, Gisálio. Os filhos da lei. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, v. 16, n. 45, p. 113-125, 2011. Observe-se, porém, que o artigo não se refere à figura do pater
familias como representação normativa distante da realidade social da maior parte da população.
23
Ordenações Filipinas, Livro 4º, Título 31, §8. Disponível em:
<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p212.htm>. Acesso: 24 de setembro de 2016.
279
24
A este respeito, ver: STANLEY, Amy Dru. From bondage to contract: wage labor, marriage and the
market in the age of slave emancipation. New York: Cambridge University Press, 1998.
280
25
Ordenações Filipinas, Livro 1º, Título 83, § 11. Disponível em:
<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p212.htm>. Acesso: 24 de setembro de 2016.
26
Sobre a centralidade do paternalismo na organização social imperial, ver: GRAHAM, Sandra
Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992. Os argumentos de Graham articulam-se de forma interessante às
considerações de Ilmar Mattos sobre os mundos da ordem e da desordem, o governo da casa e da rua:
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do estado imperial. São Paulo: Hucitec,
2004.
27
Sobre esse tema, debatido no primeiro capítulo, consultar a nota 15 da referida seção (p.38).
28
Sobre o empenho de homens e mulheres libertos em forjar modos de vida autônomos na cidade de São
Paulo após a emancipação e os estigmas que sobre eles recaíam, ver: WISSENBACH, Maria Cristina
Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1888). São Paulo:
Hucitec, 1998.
281
29
Sobre o acirramento de tensões sociais na década da abolição, ver: MACHADO, Maria Helena Pereira
Toledo. O Plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro /São Paulo:
Editora UFRJ/ Edusp, 1994. O estudo de Ana Giceli Alaniz, sobre as cidades de Itu e Campinas,
igualmente constata o aumento do registro de tutelas em 1888: ALANIZ, Anna Gicelle García. Ingênuos
e libertos: estratégias de sobrevivência familiar em épocas de transição (1871-1895). Campinas:
CMU/Unicamp, 1997, pp. 58-9.
30
Outras referências a esse respeito são: SOUSA, Ione Celeste de J. “Porque um menor não deve ficar
exposto à ociosidade, origem de todos os vícios”: Tutelas e Soldadas e o trabalho de Ingênuos na Bahia,
1870 a 1900. In: MACHADO, Maria Helena P.T.; CASTILHO, Celso Thomas (Org.). Tornando-se
livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição. São Paulo: Edusp, 2015, pp. 189-211;
URRUZOLA, Patrícia. Faces da liberdade tutelada: libertas e ingênuos na última década da escravidão
(Rio de Janeiro, 1880-1890). 2014. 163f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
282
31
Sobre a criação e significados das leis de locação de serviços de 1830, 1837, 1859 e 1879, ver: LIMA,
Henrique Espada. Trabalho e lei para os libertos de Santa Catarina no século XIX: arranjos e contratos
entre a autonomia e a domesticidade. Cadernos AEL, v. 14, n. 26, 2009; LAMOUNIER, Maria Lucia.
Da escravidão ao trabalho livre: a lei de locação de serviços de 1879. Campinas, SP: Papirus, 1988.
32
Novamente, é o que aponta Ana Gicelle Alaniz para Campinas e Itu. Arethuza Zero, de forma
semelhante, sugere que também na década de 1880 concentraram-se os registros de tutela realizados na
cidade de Rio Claro: ALANIZ, A.G.G. Ingênuos e libertos..., op. cit.; ZERO, Arethuza Helena. O peço
da liberdade: caminhos da infância tutelada – Rio Claro (1871-1888). Dissertação (Mestrado em
História). 2004. 141f. Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
283
33
Sobre a vida das crianças da elite: MAUAD, Ana Maria. A vida das crianças de elite durante o império.
In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015, pp. 137-
156.
34
Cf. APESP - Juízo de Órfãos, Autos de declarações, lata C05357, documento 24, 1912.
284
residente naquela capital e seu empregador então. A mesma miserável sorte, afirmava
Fortunata, já afligira a ela e sua companheira anteriormente, quando haviam vivido em
Itatiba em casa de outra família. Resoluta, a menina asseverava ao fim de suas
declarações que ambas “absolutamente não desejavam voltar para tais casas”.
Não poupando menores empobrecidos de qualquer matiz de cor ou origem social
e espraiando-se por todo o século XIX e inícios do XX, os relatos da violência infligida
a esses trabalhadores são expressão bastante nítida de práticas coercivas que invadiam a
seara das liberdades precárias de meninos e meninas pobres na cidade, sem jamais
tornarem-se anacrônicas – algo a que John French denominou “complexo de atitudes e
comportamentos” herdados da escravidão que se manifestavam no mundo do trabalho
livre35. Nas diversas ações envolvendo os serviços de menores informalmente
arregimentados movidas junto ao Juízo de Órfãos desde as primeiras décadas do século
XIX, os relatos de brutalidade são mais do que costumeiros36.
As menções às investidas contra menores trabalhadores da cidade de São Paulo
por seus empregadores informalmente constituídos cobrem um amplo espectro de
violências possíveis, variando de referências evasivas a castigos, falta de cuidados
apropriados com educação, alimentação e tratamento médico a descrições mais. Nestes
casos, os autos de disputas em que menores, parentes, empregadores e autoridades
públicas trocavam acusações acerca do tratamento feroz dirigido a pequenos e jovens
trabalhadores assumem teor altamente evocativo. Em 1844, por exemplo, o tenente
Joaquim José Theodoro, apresentando-se como suplicante numa petição encaminhada
ao Juízo, denunciava a crueldade das circunstâncias em que se encontrava o pequeno
Marcelino, de cerca de oito anos de idade, cuja mãe falecera na Casa de Caridade.
Desamparado, “e sem que pessoa algúa se interesasse pela sorte do miseravel orphão”,
Marcelino fora tomado à companhia de Francisco Antonio Capanão e sua mulher, Maria
do Rozario. Sua sina, segundo o tenente Theodoro, não poderia ser mais infeliz, uma
vez que o casal “em ves de lhe dar a necessaria educação mandando-o ensinar algum
officio honesto maltrata-o com pancadas e o occupa nos officios mais abjetos e
35
FRENCH, John. As falsas dicotomias entre escravidão e liberdade: continuidades e rupturas na
formação política e social do Brasil moderno. In: LIBBY, Douglas C.; FURTADO, Júnia Ferreira (Org.).
Trabalho Livre, Trabalho Escravo: Brasil e Europa, Séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume,
2006.
36
Gislane Azevedo discute brevemente episódios de violência praticada contra menores tutelados e
assoldadados: AZEVEDO, G.C. De Sebastianas e Geovannis..., op. cit, p. 88-91. Ver também, da
mesma autora: AZEVEDO, Gislane Campos. A tutela e o contrato de soldada: a reinvenção do trabalho
compulsório infantil. História Social, n. 3, p. 11-36, 1996
285
37
Cf. APESP - Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05354, documento 6340, 1844.
286
38
Cf. APESP - Juízo de Órfãos, Autos de diligência, lata C05359, documento 11, 1850.
39
Cf. APESP - Juízo de Órfãos, Autos de petição, lata C05427, documento 6008, 1883.
287
Já entrados nas primeiras décadas do século XX, os casos de Maria Pitta e Rafaela
Pinto Paixão sublinham o continuado recurso a expedientes informais de
arregimentação de mão de obra de meninos, e principalmente meninas, para o serviço
doméstico, e a vileza com que muitas eram tratadas. Em 1911, o primeiro delegado
auxiliar do município comunicava ao Juízo estar de posse de Maria Pitta, órfã de 15
anos de idade que vivia “em completo abandono e maltratada pelas familias que a tem
tido como criada”. Em casa de Saul Rangel Campos, onde se achava ultimamente, vivia
em circunstâncias deploráveis, “soffrendo fome, dormindo no cimento e sem cobertas
contra o frio”40. No ano seguinte, em 1912, a jovem Rafaela Pinto Paixão, filha de pais
falecidos, contando 16 anos de idade, apresentada pelo 5º delegado do município ao
Juízo, lamentava-se às autoridades públicas pela vida que levava em casa de Manoel
Fonseca, onde, havia mais de um ano, cozinhava, lavava a roupa das crianças, limpava a
casa e realizava ainda outros serviços domésticos. Em razão das violências e abusos
sofridos, Rafaela furtivamente saíra da casa de Fonseca, onde “todos inclusive as
crianças lhe batiam”, e buscava outra família junto a quem se engajar como criada41.
Na miríade de arranjos informais que arregimentavam a largo os serviços de
meninos, meninas, moças e rapazes menores de idade na cidade, estendendo-se por todo
o século XIX e alcançando as primeiras décadas da República, esses trabalhadores,
relegados a mais absoluta desproteção das autoridades públicas, via de regra acionadas
pela interferência de parentes ou dos próprios menores, encontravam-se amplamente
expostos à brutalidade de seus empregadores42. Não apenas nos registros informais de
arregimentação de trabalho, porém, surgem referências ao comportamento truculento de
empregadores. Embora a informalidade relegasse menores de idade ao ocaso da lei,
também entre as tutelas e contratos de soldada formalizados, que ganharam alguma
expressividade na década de 1850 e abundaram nas décadas finais do século XX,
soçobram menções às mais variadas sevícias. Os pequenos educandos do Seminário de
Sant’Anna, como já se pôde perceber nos capítulos anteriores, eram tidos e havidos
pelos negociantes da capital como mão de obra amplamente disponível a suas
necessidades e humores. O caso do educando Benedicto Innocencio, filho de pais
40
Cf. APESP - Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 30, 1911.
41
Cf. APESP - Juízo de Órfãos, Termo de declarações, lata C05357, documento 31, 1912.
42
A violência a que estavam expostos os menores trabalhadores os igualavam, em muitas medidas, aos
menores cativos da cidade. Maria de Fátima Neves discute o tema em: NEVES, Maria de Fátima
Rodrigues das. Infância de faces negras: a criança escrava brasileira no século XIX. 1993. 306 f.
Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993.
288
incógnitos exposto na roda da Santa Casa, é exemplar de como esses trabalhadores eram
frequente e indecorosamente explorados e feitos de saco de pancadas.
Em 1857, o francês Pedro Imbert, proprietário de casa de negócios e hospedaria,
contratava o menor Benedicto, que contava entre 13 e 14 anos, sob o compromisso de
“dar-lhe gratuitamente alimentação, vistuario, e tratamento para molestias durante o
prazo de tres annos (...) obrigando-se mais a educal-o em letras e escripta e contas”. O
contrato, anuído pelo curador-geral e juiz de órfãos, não fazia qualquer menção à
remuneração dos serviços de Benedicto, observando apenas que, caso fosse do interesse
do francês, este poderia requerer a renovação do arranjo, ao fim do prazo estipulado. A
não remuneração dos caixeiros, como observa Fabiane Popinigis, era prática comum,
especialmente entre os empregados no baixo comércio – aqueles engajados nos
armazéns de secos e molhados, botequins, hospedarias e casas de pasto43. Decerto, o
fato de não haver qualquer remuneração indicada no arranjo de serviços em questão não
causava estranhamento a autoridades públicas, e talvez nem mesmo admirasse ao
próprio Benedicto, conhecedor de sua sorte de menino pobre e asilado. Entretanto, se a
exploração gratuita do caixeiro que “lavava pratos, aviava talheres e varria a casa” não
espantava a ninguém, o injurioso tratamento recebido de seu empregador foi motivo
suficiente para que, meses depois, o menino retornasse fugido ao Seminário de
Sant’Anna44.
Em oficio endereçado ao juiz de órfãos, o diretor do Seminário indicava que o
menino alegava ser maltratado com pancadas em casa de negócios de Pedro Imbert,
recusando-se a retornar ao dito estabelecimento. Observando sutilmente o “perigo”
representado por meninos e meninas empobrecidos não encaminhados na disciplina do
trabalho, fosse pelo Estado ou por particulares, o diretor informava conservar Benedicto
no Seminário “afim de não tomar peor destino” – eufemismo por meio do qual se
referia, certamente, à “vadiação” e à “perturbação da ordem pública”. Chamado a
prestar depoimento em juízo, o jovem caixeiro contou sua versão dos fatos de que
decorria a fuga:
(...) presente o orphão Benedicto Innocencio (...) pelo Juis lhe forão
feitas as perguntas seguintes: Porque razão sahio da casa e
estabelecimento de Pedro Imbert? Respondeu que pela razão de haver
43
Note-se que, por volta da metade do século, São Paulo não parecia ainda uma praça tão atrativa para os
empreendimentos do alto comércio como o Rio de Janeiro, de modo que era nos setores mais
empobrecidos do comércio que provavelmente se concentravam os jovens caixeiros: POPINIGIS,
Fabiane. Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca (1850-1911). Campinas, SP: Editora
Unicamp, 2007, p. 43-45.
44
Cf. APESP - Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 09, 1857.
289
45
Sobre o tema da convivência de escravos, libertos e livres pobres na cidade, ver: WISSENBACH,
M.C.C. Sonhos africanos..., op. cit.
290
(...) estando huma vez o menor almosando a mesa de Pedo Imbert não
querendo elle comer miolo de pão, achou o refferido Pedro Imbert que
era isso [ilegível] e levando para hum quarto o castigou fortemente
com vara de marmello, e o mesmo fez nessa occasião a mulher de
Pedro Imbert depois do que derão lhe hum purgante de sal amargo.
A alugada Carolina Maria do Rosario, descrita nos autos como “parda livre” de
23 anos, informou ao juiz ter vivido em casa do acusado por duas vezes, a primeira por
três anos e a segunda por menos de um, tendo de lá saído há cerca de onze meses.
Deixara, porém, um filho morando em casa de seu antigo empregador – razão pela qual,
em suas próprias palavras, “dele dependia”. Perguntada sobre os serviços
desempenhados por Benedicto, acrescentou à lista oferecida pelo próprio menor e por
Zacarias o fato de que “sahia a rua algumas veses por ordem de seu amo”.
Questionada, então, sobre os castigos infligidos a Benedicto que houvera presenciado,
Carolina divergiu das alegações de ambos os caixeiros. Afirmou ter o patrão somente
uma vez dado bofetões no menor, “mas nunca de chicote”, e isso por ter visto o mesmo
“entrando (...) a bater a cabesera pelas paredes, nisso a mulher do refferido Pedro
Imbert deu lho mais de meia dusia de varadas”. Ao fim de seu testemunho, Carolina
ressaltava que, no tempo em que estivera na casa de Imbert, apenas assistira a este
castigo, “e que depois disso não sabe o mais que mais aconteceu”. Tal ressalva final dá
pistas de que seu depoimento, lastreado pelo juramento feito com a mão sobre o
Evangelho, mostrava apenas o essencial do histórico de agressões vividas por
Benedicto. Sendo ainda “dependente” de Pedro Imbert, tendo um filho que vivia em
companhia do ex-patrão – talvez um menino da mesma idade e ocupado nos mesmos
serviços que Benedicto, vulnerável a semelhantes violências – a antiga criada ficava
entre a cruz e a caldeirinha ao ser intimada como depoente. Revelando a verdade em
doses homeopáticas poderia, talvez, poupar ao filho sorte semelhante à de seu
companheiro de trabalho.
Os autos contam ainda com os depoimentos de “Ignez e Maria crioulas”, as
escravas alugadas ao barão de Iguape. Em seu testemunho, a primeira confirmou que
Benedicto era fustigado pelo patrão, recebendo “puxoens de orelha, bofetões (...) e
huma vez uma surra com vara de marmello”. Nessa ocasião, vindo da rua, Ignez “achou
Pedro Imbert em hum quarto castigando o menor com varadas, do que resultou ficar
elle em alguns lugares roxo pelo corpo”. A criada contemporizava, entretanto, que o
francês trazia o menor bem vestido, e que os castigos eram dados “quando o caixeiro
merecia”. Maria, finalmente, igualmente perguntada pelas punições aplicadas por Pedro
291
Imbert a Benedicto, respondeu que “por veses lhe dava bofetoens”, negando, contudo,
ter testemunhado pancadas ou varadas.
Qual seria o motivo de tantas versões para os mesmos fatos? O testemunho de
Zacarias, o caixeiro já sem vínculos com Pedro Imbert é, seguramente, aquele que
oferece maior riqueza de detalhes sobre a agre sina de Benedicto em mãos de seu
patrão. A Carolina, muito possivelmente, lhe afligia a possibilidade de que também seu
filho fosse vítima de violências congêneres, o que a faria amenizar em seu testemunho a
realidade assistida. Ignez e Maria, escravas alugadas, decerto viviam sob o jugo de
Imbert como se ele fosse seu proprietário, assim sujeitas a castigos e punições
aplicáveis aos cativos, tão semelhantes àquelas sofridas por Benedicto46. Mesmo com
todas essas modulações originadas das diferentes circunstâncias de cada um dos
trabalhadores que dividiam ou haviam dividido a casa de Imbert com o jovem caixeiro,
havia o consenso de que o menor era seviciado pelo patrão. Este, chamado a se
defender, ofereceu depoimento altamente ilustrativo dos significados diversos
assumidos pelo trabalho contratado de menores de idade:
O justificado dis que alem dos serviços do menor que contractou,
estava para com elle na posição de mestre, como se vê do contracto
(...), e que não tendo provado que o castigou immoderadamente, nada
averia dos castigos infligidos. Consta do depoimento de todas as
testemunhas que o dicto menor andava vestido, limpo e bem tractado
durante o tempo que esteve em sua companhia, assim como ter elle
nas horas vagas se empregado em ler e escrever. Portanto, nem houve
sevicias da sua parte, e nem falha do cumprimento do contracto; e
entretanto, tendo-o recebido por ú contrato julgado por sentença ficou
privado do mesmo; por que julgou mais vantajoso cassar passarinhos
nas capoeiras de Sta Anna do que adquirir habitos de trabalhar ú meio
de vida para o futuro! Portanto o justificado espera que o M Juis
pesando bem a arguição que se lhe faz, e a prova dos autos lhe fará
completa justiça.
46
Sobre o trabalho doméstico e as escravas alugadas, ver: SOUZA, Flávia Fernandes de. Escravas do lar:
mulheres negras e o trabalho doméstico na corte imperial. In: XAVIER, Giovana, FARIAS, Juliana
Barreto e GOMES, Flávio dos Santos (Org.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-abolição.
São Paulo: Selo Negro, 2012, pp. 244-260; GRAHAM, S.L. Proteção e obediência..., op. cit.
292
ele, havia sido praticada dentro da normalidade – não havia, argumentava em sua
petição, provas de imoderação de sua parte. Pelo contrário, para o acusado os
depoimentos teriam provado que o menor se encontrava bem tratado e encaminhado no
estudo da leitura e escrita, muito embora todos os depoentes tenham concordado que o
menino somente se dedicava a esta tarefa nas circunstâncias praticamente inexistentes
de folga em seu serviço. A culpa por todo o imbróglio, afinal, caberia ao próprio
Benedicto Innocencio, que roubava a Pedro Imbert seus direitos formalmente
constituídos de contratante por preferir a vadiação de caçar passarinhos à morigeração
do trabalho árduo. Interessante é observar como para este virtual proprietário de
escravos, com seus caixeiros, suas alugadas e dependentes, a legitimação judicial do
contrato lhe dava poderes praticamente ilimitados sobre seu contratado, fazendo de
Benedicto uma figura muito mais próxima de um cativo do que de um pequeno menino
livre remediado ou de elite, a quem eram concedidos os privilégios da brincadeira e do
estudo47.
Embora os contratos de soldada tenham crescentemente sido utilizados ao longo
do século para a arregimentação de mão de obra doméstica, e conquanto o mundo do
trabalho doméstico fosse, como indicam diversos estudos, um território onde os poderes
paternalistas e pessoalizados de patrões se afirmavam com vigor e violência, o destino
dos meninos caixeiros da década de 1850 não era muito diferente daquele dos criados48.
De fato, como argumenta Luiz Felipe de Alencastro a respeito dos jovens caixeiros
portugueses emigrados para o Rio de Janeiro ao longo do século XIX, a condição dos
engajados, que vivam precariamente, trabalhando sem salários para quitar as dívidas
adquiridas com a vinda ao Brasil, em muito se assemelhava à dos indentured servants
desembarcados na América no século anterior49.
Os argumentos empregados por Luiz Delfino de Araújo Cuyabano para defender-
se, em 1854, das acusações que lhe imputava o tutor de seu caixeiro Joaquim são bem-
47
Sobre a vida das crianças de elite, ver: MUAZE, Mariana de Aguiar Ferreira. Dissertação. A
descoberta da infância: a construção de um habitus civilizado na boa sociedade imperial. 1999. 144f.
Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica, Rio de
Janeiro, 1999; MAUAD, A. M. A vida das crianças..., op. cit.
48
Sobre a violência no âmbito do trabalho doméstico, ver: GRAHAM, S.L. Proteção e obediência..., op.
cit.; SOUZA, F.F. Escravas do lar...; CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Criadas para servir:
domesticidade, intimidade e retribuição. In: XAVIER, Giovana, FARIAS, Juliana Barreto e GOMES,
Flávio dos Santos (Org.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-abolição. São Paulo: Selo
Negro, 2012, pp. 377-418.
49
Alencastro chega a referir-se aos jovens caixeiros portugueses do Rio de Janeiro como “escravos
brancos”: ALENCASTRO, Luis Felipe de. Proletários e escravos: imigrantes portugueses e cativos
africanos no Rio de Janeiro, 1850-1872. Novos Estudos, CEBRAP, n. 21, p. 36, 1988.
293
As alegações do curador de Joaquim eram por certo graves, relatando que o menor
vivia sujeito a frequentes e humilhantes castigos físicos, devendo suportar uma
demanda de trabalho que extrapolava suas capacidades. Suas circunstâncias, afinal, não
eram diferentes daquelas de um escravo – comparação comum nos jornais e nos autos
envolvendo a disputa dos serviços ou da guarda de trabalhadores menores de idade
50
Cf. APESP - Juízo de Órfãos, Autos de requerimento, lata C05445, documento 13628, 1854.
294
levada ao Juízo, ao longo do século XIX. As eventuais falhas do menor na prestação dos
excessivos serviços que lhe eram exigidos eram qualificadas por seu curador como
expressões de “descuidos inerente à adolescência”, sendo esse o único documento,
entre todos aqueles localizados, que faz uso deste termo para designar os assoldadados
ou informalmente empregados, sublinhando com benevolência as particularidades da
juventude de trabalhadores como Joaquim51. Em sua defesa, Cuyabano arguia em
sentido contrário; em lugar de reconhecer nas peculiaridades da idade do contratado as
justificativas para ocasionais lapsos, o contratante apontava-as como perigos a serem
obstados pela rígida disciplina do trabalho:
O órfão Joaquim está na idade perigosa das paixões e quando por
benefício da mocidade cumpre haver toda a cautela e prevenção; é
natural (...) desejar achar-se em alguma casa onde senão cohiba o
desenfreiamento de suas paixões (...) E talvez seja essa a causa de
alguma queixa infantil.
Seguindo com sua defesa, Cuyabano afirmava ter nutrido especial interesse por
Joaquim, a ele sempre votando amizade, uma vez que o menor demonstrara maior
aptidão para o trabalho do que o outro órfão, seu companheiro. Assim, segundo o
acusado, Joaquim teria se tornado, em pouco tempo e pelos esforços de seu mestre, “um
sofrível oficial de alfaiate”. A sorte de receber a preferência de seu contratante
assomava-se ao tratamento exemplar que Cuyabano afirmava dedicar a seus
contratados, numa passagem que indica, de forma particularmente eloquente, as duras
condições de trabalho e vida experimentadas por outros meninos asilados no Seminário
de Sant’Anna:
Quanto ao tratamento e dado aos orphaos o suplicante apresenta em
seu abono em primeiro lugar o proprio curador, que quotidiana mente
vai a loja do suplicante e tem observado que os meninos andam bem
trajados e bem nutridos e que o trabalho e regular e muito menor do
que aquele a que estão sujeitos os caixeiros de muitas casas de
comércio. (...). Toda a vizinhança e mesmo vossa senhoria sabem que
outro destino melhor não podiam ter esses dois educandos do
seminario de Sant’Anna, que sua vida e mil vezes preferivel a desses
infelizes que foram remetidos para o Arsenal da Marinha da Corte e
porque entretanto ninguem se interessa e nem lastima.
51
Conforme indica Ana Mauad, “(...) o termo adolescência já existia, no entanto, seu uso não era comum
no século XIX. A adolescência demarcava-se pelo período entre 14 e 25 anos, tendo como sinônimos
mais utilizados mocidade ou juventude”. MAUAD, A.M. A vida das crianças de elite..., op. cit., p.140.
295
Talvez os serviços militares fossem realmente o pior dos destinos a que meninos
como os educandos de Sant’Anna pudessem ser encaminhados52. Entretanto, a
manifestação do contratante de Joaquim sublinha as péssimas condições de vida
geralmente enfrentadas pelos meninos caixeiros na cidade de São Paulo àquela época.
Se Joaquim, apesar das bofetadas que recebia, era um aprendiz de sorte, gozando de
tratamento especialmente generoso conforme alegações de seu contratante, que destino
se poderia imaginar para os demais? Vivendo em casa de seus patrões, sob sua direta
vigilância e controle, e realizando ampla diversidade de tarefas que poderiam facilmente
confundir-se ao serviço doméstico, a vida dos caixeiros do baixo comércio daquela
ainda pobre cidade assemelhava-se, em grande medida, à dos pequenos e jovens criados
de servir costumeiramente arregimentados na informalidade, bem como daqueles
formalmente contratados nas décadas seguintes53.
O lastro contratual formal, como indicava Cuyabano em suas considerações finais,
prestava-se à garantia dos direitos dos contratantes mais do que à dos contratados – e
tanto no caso de uns como de outros, as definições legais dessas prerrogativas eram
sobremaneira difusas. Repetindo, em sua representação ao Juízo, o argumento comum
de que os menores eram retirados do poder de seus mestres assim que tivessem
aprendido o suficiente para recompensá-los pelos esforços aplicados à sua formação,
Cuyabano colocava-se na posição de verdadeira vítima do curador e do aprendiz,
inserindo-se num grupo ampliado de empregadores lesados pelo descumprimento dos
protocolos do contrato:
Se a vossa senhoria mandar que o menino volte para o poder do
supplicante vai estabelecer um terrivel precedente que fara com que
ninguem queira d’ora em diante aceitar os meninos que ainda estão no
seminario para criados, ensinar-lhes um meio de vida descente, porque
todos receiarao que quando estiverem em estado de indenizar de
alguma sorte os seus trabalhos e despesas, lhes serão tirados para
servirem a outros que nada tinham feito em prol dos órfãos.
52
A este respeito, ver: SOUSA, J.P. A mão de obra dos menores..., op. cit.; ARAKI, M.C. Infância,
trabalho e educação..., op. cit.
53
Fabiane Popinigis aponta que, entre a diversa classe caixeiral do Rio de Janeiro, os empregados nos
armazéns de secos e molhados, conquanto desempenhassem fundamental papel nas dinâmicas
econômicas da cidade, “(...) eram provavelmente os mais desprovidos de meios materiais”. POPINIGIS,
F. Proletários de casaca..., op. cit., p. 41-42. A importância dos negócios de secos e molhados em São
Paulo − e a relevância dos pequenos caixeiros nas dinâmicas econômicas da cidade, por conseguinte – é
destacada por Maria Luiza Oliveira no capítulo “Com loja para a rua”: OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira
de. Entre a casa e o armazém: relações sociais e experiência da urbanização. São Paulo, 1850-1900, pp.
209-298.
296
54
Cf. APESP - Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 39, 1890.
297
55
Cf. APESP - Tribunal de Justiça de São Paulo, lote 201007000520, Contrato a soldada, 1890.
56
Cf. APESP - Juízo de Órfãos, Autos de declaração, lata C05357, documento 38, 1904.
57
Este caso é também mencionado no artigo: AZEVEDO, G.C. A tutela e o contrato de soldada..., op.
cit., p. 28.
298
58
Exemplos dessa vulnerabilidade encontram-se em: SOHIET, Rachel. Condição feminina e formas de
violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p.
303-15. Não apenas as criadas encerradas no espaço doméstico, porém, estavam sujeitas a violações
sexuais. Tratando do trabalho fabril na Primeira República, Cláudio Batalha refere-se aos abusos sexuais
cometidos no ambiente das fábricas como um dos motivos para a greve geral de 1917. BATALHA,
Claudio. Limites da liberdade: trabalhadores, relações de trabalho e cidadania durante a Primeira
República. In: LIBBY, D.C.; FURTADO, J.F. (Org.). Trabalho Livre, Trabalho Escravo..., op. cit., p.
100-111.
59
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05453, documento 13199.
299
60
Sobre este assunto, ver: RONCADOR, Sônia. O demônio familiar: lavadeiras, amas-de-leite e criadas
no discurso de Júlia Lopes de Almeida. Luso-Brazilian Review, v. 44, n. 1, p. 94-119, 2007; SANTOS,
Simone Andriani dos. Senhoras e criadas no espaço doméstico em São Paulo (1875-1928). 2015. 324f.
Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
61
RONCADOR, S. O demônio familiar..., op. cit.; CARNEIRO, Maria Elizabeth Ribeiro. Procura-se
uma “Preta com muito bom leite, prendada e carinhosa”: uma cartografia das amas de leite na
sociedade carioca, 1850-1888. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas, Programa
de Pós-Graduação em História, Universidade de Brasília, Brasília, 2006.
62
Conforme argumenta Graham, a casa, como representação do espaço e dos poderes privados, era local
onde predominavam os códigos morais tipicamente paternalistas − o dever, o afeto, a honra − encerrados
na relação de proteção e obediência típica do mundo do trabalho doméstico. Olívia Gomes da Cunha
discute o paradigma da oposição entre a rua e a casa proposto por Sandra Graham, ao indicar que a
divisão rígida entre estes dois espaços não comportava a realidade do trabalho doméstico, que se
projetava para além dos limites estritos da casa e relacionava-se intimamente com o espaço público. De
todo modo, parece claro que nos autos judiciais o espaço da domesticidade paternalista é retratado como
reserva de segurança física e moral para as pequenas e jovens criadas. GRAHAM, S.L. Proteção e
obediência..., op. cit.; CUNHA, O.M.G. Criadas para servir...
300
Rozalinda, menina que contava dez anos de idade em 1883, era uma destas
pequenas trabalhadoras domésticas altamente vulneráveis aos perigos da violação
sexual63. Os pais, o pedreiro Luiz Zanoni, que em razão de sua profissão “via-se
constantemente obrigado a deixar a cidade” e assumidamente “em nada concorria para
seu sustento”, e Domingas Zanoni, engomadeira adoentada, vivendo às próprias custas à
rua São José, além da irmã Maria Thereza, que vivia em companhia de uma modista à
rua São Bento, formavam o perfeito retrato de uma família desajustada a normas
burguesas que se erigiam à época64. Ao solicitar a entrega de Rozalinda a alguma
família a quem a menor pudesse servir e, assim, sobreviver, os pais advertiam ao Juízo
saberem que a menina, ainda pequena e descrita nos autos por uma empregadora
anterior como portadora de “bons instinctos, gostando sempre de brincar como criança
que e”, não era mais “mulher virgem”. Chamada a prestar depoimento, Rozalinda
esclarecia as vis e corriqueiras circunstâncias em que fora estuprada por um cliente de
sua mãe, enquanto a ajudava na entrega das roupas engomadas:
Perguntada se dita sua may mandava ella respondente sozinha á Rua?
Repondeo que sim. Perguntada como se dera o facto de haver sido
estuprada? Respondeo que sua may mandara entregar roupa engomada
na casa de um chamado Costeletta, casa á rua de São Bento (...) e com
effeito entregando dita roupa, Costeletta a condusira para seu quarto e
uma cama, e a violentara, sendo porem que ella respondente, ja pela
sua idade, ja pelo tempo em que se dera o facto, o qual, não póde
precisar, deixa de dar mais explicações declarando finalmente que,
antes desse facto nenhum outro homem a tinha procurado; e que
vendo qual ou quem foi o seu aggressor, o conheceria.
63
Cf. APESP – Tribunal de Justiça de São Paulo, lata 201006004045, Contrato à soldada, 1883.
64
Sobre a emergência desses padrões e sua relação com a condenação da sexualidade feminina, ver:
ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores: saber médico no Rio de Janeiro e prostituição, Rio de Janeiro
(1840-1890). São Paulo: Brasiliense, 2004.
301
65
É o que demonstra Boris Fausto em seu estudo sobre a criminalidade na cidade no intervalo entre as
décadas finais do século XIX e iniciais do XX. FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em
São Paulo (1880-1924). São Paulo: Edusp, 2001, p. 211-13.
66
ENGEL, M. Meretrizes e doutores...; ESTEVES, Martha Abreu. Meninas perdidas: os populares e o
cotidiano de amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; CAUFIELD,
Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940).
Campinas, SP: Editora Unicamp, 2000.
67
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de apreensão, lata C05336, documento 08, 1894.
68
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos administrativos, lata C05452, documento 113000, 1895. Sueann
Caufield indica que, antes de 1920, quando o ensino de medicina era ainda rudimentar, os exames
médicos para constatação do defloramento de menores eram feitos a partir da avaliação do hímen e de
outros critérios como “(...) a flacidez dos seios e dos grandes e pequenos lábios”. CAUFIELD, S. Em
defesa da honra..., op. cit., p.76.
69
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05458, documento 6315, 1901.
302
Andrade por ser ali maltratada e querer este faltar-lhe ao respeito”. Chamado a prestar
esclarecimentos, o referido Andrade afirmava que a menor saíra de sua casa “indusida
por uma preta”, e negava peremptoriamente as acusações que a mesma lhe fazia,
valendo-se de sua reputação de pai de família para refutar ilações de assédio sexual:
(...) que quanto a ser maltratada em sua casa e uma calumnia bem a
mais que a mesma menor declarou; o que esta fes por industriada pela
dita preta. O declarante era incapas de faltar o respeito a menor, pois
que e um chefe de familia e tem suas filhas mocinhas.
70
Sobre a sexualidade da mulher burguesa, considerada saudável e compatível com a tarefa social da
maternidade pelo discurso médico emergente em fins do século XIX, ver: ENGEL, M. Meretrizes e
doutores..., op. cit.; sobre a sexualidade não normativa, contrária a estas prescrições de caráter burguês,
de mulheres e jovens das classes populares, ver: ESTEVES, M. A. Meninas perdidas..., op. cit.
71
ENGEL, M. Meretrizes e doutores..., op. cit.; SOHIET, R. Condição feminina e formas..., op. cit., p.
303-315.
72
Cf. APESP, Autos de tutoria, lata C05455, documento 13688.
303
“conventilho” sediado no mesmo endereço indicado por Maria como sendo o do café de
Anna Itory. No lupanar, Crimbech conservava Eliza e outras mulheres
(...) para o fim de obrigal-as o mesmo Lazaro se prestarem a actos
libidinozos com quem as procurassem; estejam elas ou não doentes;
pois que das esportulas, que as recebe o mesmo Lazaro, e que elle
vive. Que por isso, quando por doentes, essas mulheres se recusão á
esses actos, são castigas pelo mesmo Lazaro, que as esbofeteia, como
constantemente acontecia com ella respondente. Que não podendo
mais supportar semelhante vida, e tendo achado occasião de se evadir,
fugio para a casa de uma sua conhecida na Freguesia de Santa
Ephigenia, onde foi apreendida.
Segundo Eliza, sua alegada irmã era em realidade uma das outras mulheres
conservadas por Crimbech em seu estabelecimento, não tendo com ela qualquer
parentesco. Não seria improvável admitir que, entre as meretrizes do bordel, houvesse
outras menores aliciadas à prostituição – coagidas pela força de terceiros ou da pobreza.
Tantos relatos de maus-tratos, abusos e explorações vastamente distribuídos ao
longo do século XIX e nos inícios do século XX nos autos referidos a relações formais e
informais de trabalho espelham certo “espírito proprietário” de que eram imbuídos os
contratantes e empregadores informais desses trabalhadores – manifestação clara da
operação das linguagens da escravidão, no âmbito das relações de trabalho livre. As
relações paternalistas de dependência, proporcionadas por vínculos informais
alicerçados em tradicionais relações de agregação social ou por formas cambiantes de
arregimentação contratual de mão de obra, pareciam conferir aos empregadores a
assunção de direitos irrestritos sobre os menores trabalhadores. As práticas formais e
informais de recrutamento da mão de obra de menores, dessa maneira, desenhavam um
campo de experiências e percepções sociais limítrofes e frequentemente sobrepostas à
escravidão. Além dos relatos de castigos e violências variadas, de faltas nos
compromissos assumidos formal ou informalmente para com os menores e suas
famílias, e da burla ao pagamento de serviços, são comuns nos autos menções a
empregadores que se recusavam a entregar menores judicialmente reclamados por seus
parentes ou que deixavam a cidade levando-os consigo à revelia de sua família.
Expressões do “espírito proprietário”, desse modo, atravessam todo o período
pesquisado entre mostras extremas de violência e demonstrações mais corriqueiras de
dominação que desafiavam a ideia fundamental da propriedade sobre si como medida de
afirmação da liberdade. Pequenas frestas para episódios separados por mais de 50 anos
de história oferecem uma boa medida da longeva permanência de tal mentalidade
304
74
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de diligência, lata C05359, documento 17, 1854.
75
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05459, documento 6243, 1905.
306
76
BIROLLI, Maria Izabel de Azevedo Marques. Os filhos da República: a criança pobre na cidade de
São Paulo, 1900-1927. 2000. 246f. (Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade
Católica, São Paulo, 2000.
307
justiça, vicejavam as práticas violentas e coercivas que restringiam a autonomia real dos
jovens e crianças, e, extensivamente, de suas famílias. Os limites da liberdade usufruída
por esses trabalhadores, no entanto, não puderam ser definidos exclusivamente pelas
exigências de empregadores formais ou informais ou de autoridades públicas, sendo
cotidianamente disputados pelos próprios menores. Indisciplinados, atentos às
possibilidades de se agenciarem novas e melhores condições de trabalho e de vida,
meninos e meninas esgarçaram, à sua própria maneira, os limites estreitos que definiam
a condição compartilhada de trabalhadores livres.
77
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de requerimento, lata C05444, documento 16, 1830.
308
momento: embora seu vínculo com a dita senhora Gertrudes fosse aparentemente
informal, como era comum aos casos de adoção de pequenos expostos como filhos de
criação, Carolina precisava recorrer à justiça e à mediação das autoridades públicas para
seguir o rumo desejado sem maiores admoestações. Ademais, observe-se, também, a
paradoxal circunstância imposta à Carolina pelo dilatado conceito de menoridade
emanante das ordenações do reino e adotado pela justiça imperial, que relegava uma
jovem mulher, às portas dos 21 anos de idade e certamente desempenhando papel adulto
no mundo do trabalho, ao estado de menor incapaz, submetida à tutela de outrem, este
sim pessoa habilitada a tomar por ela as decisões sobre onde e como viver e trabalhar78.
Em 1856, o menor Theodoro Martins, de cerca de 16 anos, ex-educando do
Seminário de Sant’Anna e contratado desde 1854 como caixeiro do negociante Miguel
Joaquim de Sousa Magalhães, adotou estratégia diversa para arranjar-se,
autonomamente, melhores condições de trabalho. Segundo relatava seu contratante,
aproveitando-se de uma oportunidade em que Magalhães mandara-o à rua para entregar
uma carta, Theodoro evadiu-se da cidade, seguindo até Mogi das Cruzes, onde se
empregou na venda pertencente a Pedro de Mello79. No mesmo ano, o menor indígena
Adam, de cerca de 13 anos, era acusado por seu contratante Manoel Benedicto Toledo
de ter desaparecido, após ser pelo mesmo Toledo mandado à rua com algum dinheiro,
“talvez insuflado por sua avó ou por qualquer outra pessoa”80. Supunha o contratante
que o menor se encontrasse na “extinta aldêa MBoy”, possivelmente em companhia da
dita avó, e exigia que Adam fosse “preso ou conduzido a respeitável presença do juiz
de órfãos”, sob pena de ser processado criminalmente.
As fugas, de fato, eram um dos recursos mais comumente empregados por
menores interessados em escapar ao controle de seus empregadores informais,
contratantes e tutores formalmente constituídos. Os registros dessas deserções,
sobretudo daquelas havidas no âmbito de relações formais de trabalho, espraiam-se pelo
século XIX e atingem o século XX sob a forma de constantes reclamações apresentadas
ao Juízo de Órfãos. Surgindo em profusão nos autos judiciais produzidos nas décadas de
1880 e 1890, mas também, com menor constância, antes e depois desse período, as
denúncias apresentadas pelos empregadores de menores de idade reportam-se à partida
para lugares conhecidos, seguidas de recusas dos “fujões” a retornar ao poder de seus
78
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de requerimento, lata C05444, documento 16, 1830.
79
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de diligência, lata C05359, documento 16, 1854-56.
80
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de petição, lata C05426, documento 13194, 1852-56.
309
antigos patrões, bem como a completos sumiços de menores que não eram encontrados
mesmo com o empreendimento de muitos esforços.
Em 1870, Joaquim Fernandes Sobrinho reclamava à justiça a apreensão do
“menor preto” Evaristo, de 11 anos de idade, contratado à soldada havia não mais do
que cinco meses e que “sob falsos pretextos, auzentou-se da casa do supplicante e
consta-lhe vagar ociosamente pelas ruas da cidade (...)”81. Na década seguinte, em
1887, José Joaquim Ferreira queixava-se ao Juízo da fuga do órfão Francisco, por ele
assoldadado há quatro anos na cidade de Batatais e trazido à capital. Em suas palavras:
“(...) ante-hontem o dito orphão desappareceu de sua casa, e tendo elle supplicante
feito as diligências para ver se descobria, ate hoje nada tem conseguido”. Incapaz de
localizar o desaparecido menor, Ferreira solicitava ao Juízo a remissão do contrato e de
suas obrigações como contratante82.
No mesmo ano, a menor Anna Maria Joaquina, filha de Paschoal da Silva
Parreira, homem doentio, abandonava a casa de seu contratante Francisco José Cascão,
mandando-lhe um desaforado recado assim relatado ao Juízo: “Cumpre-me informar
(...) que a menor Anna que se achava em minha casa fugio, mandando me dizer que não
desejava continuar a servir-me”83. Com semelhante ousadia, Felisbina, menor parda de
16 anos, fugia em 1895 da casa de seu contratante Antonio Jose da Cunha, “tendo dito
que ia morar com sua mãe”84. Entrando-se nos primeiros anos do século XX, a menor
Anna da Conceição, assoldadada por Francisco Coutinho Soares em 1904, fugia de sua
casa menos de um mês após ser contratada, “desaparecendo para lugar incerto e não
sabido”85.
Alguns menores como Anna, de idade não especificada, eram apresentados nos
autos como desertores contumazes. Em 1888, a menina batera à porta de Nazário
Rodrigues Borba, solicitando-lhe acolhimento e socorro contra o vil tratamento que
recebia em casa da família Vaz, residente na capital, onde vivia em aparente arranjo
informal de serviços. Borba, em petição apresentada ao Juízo de Órfãos, relatava que a
menor “amargamente se queixava de máos tratos”, de modo que, compadecido, ele
solicitava a soldada da mesma. Para surpresa do peticionário, entretanto, as autoridades
públicas nomearam a outro indivíduo para tutor de Anna; recusando-se a acompanhá-lo,
81
Cf. APESP – Tribunal de Justiça de São Paulo, lote 201006004064, Contrato a soldada, 1870.
82
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de diligência, lata C05361, documento 18, 1887.
83
Cf. APESP – Tribunal de Justiça de São Paulo, lote 201006003491, Contrato a soldada, 1887
84
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 50, 1895.
85
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 61, 1904.
310
86
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05456, documento 6019, 1888.
87
A este respeito, ver: FREHSE, Fraya. O tempo das ruas na São Paulo de fins do Império. São Paulo:
Edusp, 2005; ______. Ô da rua: o transeunte e o advento da modernidade em São Paulo. São Paulo:
Edusp, 2011.
88
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05457, documento 6240, 1892-94.
311
sugerindo que não apenas de violência se fazia uma debandada, mas também do simples
e humano desejo, mesmo em tenra idade, de escolher por si outro rumo a seguir.
De forma semelhante, os motivos que teriam levado João a fugir da companhia de
seus pais, cujos nomes ele estranhamente afirmava desconhecer, não são esclarecidos
nos autos. Seriam eles, assim como revelara José Salomão, também violentos? Teria a
separação entre pais e filho sido forçada, e esta informação perdida na memória de
criança? Apresentado nos autos como um pequeno desgarrado, João bem poderia ser o
produto dos muitos obstáculos que se interpunham em seu caminho. Após a avaliação
do juiz de órfãos e a manifestação do desejo de Ortiz de assoldadar o menino
formalmente, “não por interesse, por caridade e mesmo amisade para com o menor (...)
que não tem bom juiso”, João retornou à companhia de seu primeiro empregador e
agora tutor judicialmente constituído, recebendo pequenos estipêndios por tempo
indeterminado89. Esse prazo evasivo, entretanto, que sugeria perdurar até a maioridade
de João, foi abreviado pelo próprio menor. Em 1894, Amaro Ortiz retornava ao Juízo
para solicitar a remissão do contrato:
Diz Aamaro Barbosa Ortiz que tendo requerido a tutella do menor
João, orphan, filho de paes ignorados (...) esforçando-se por todos os
meios e modos para tractar da pessoa d’elle e dar-lhe a educação de
trabalho e a da eschola primaria. Toda esta boa vontade tem sido
perdida, pois o menor foge constantemente de casa, dando ao
requerente grandes trabalhos em o procurar. Alem do mais, vive a
propalar que é maltratado, quando isso é requintada falsidade. (...)
Assim, vem o supplicante pedir a Vossa Excellencia que o exonere da
tutella e que dê melhor destino ao incorrigivel menor.
89
Note-se aqui novamente que a confusão entre os gêneros documentais, replicada pela historiografia do
tema, ocorria mesmo à época da produção destes registros – o próprio contratante, proponente da soldada,
intitula-se “tutor”; sinal da intrínseca ligação entre estes dois expedientes de arregimentação de menores.
90
Ironicamente, conforme já demonstrado no quarto capítulo desta tese (p.247-248), que explorou este
mesmo documento, em 1894, por ocasião de encerramento do contrato, descobriu-se que Ortiz, o bom
tutor, não havia pagado as soldadas de João e acusava um “escrivão moreno” de ter delas se apropriado.
312
uma nova relação de prestação de serviços por meio da qual pudesse prover a própria
subsistência91.
Mais explícita é a trajetória de Victoria, de 12 anos, filha da “preta solteira”
falecida Constancia Maria das Dores. Em agosto de 1891, dois meses após a morte de
Constancia, o negociante Alexandre José de Mello solicitava a tutela da menor,
obrigando-se, ademais, a pagar-lhe salário mensal de cinco mil reis, oferecer-lhe
vestuário, “educação comum” e o que mais viesse a precisar. Passados menos de dois
anos, em junho 1893, os autos apresentavam nova petição de Mello, em que o
contratante denunciava a prolongada ausência de Victoria, que já durava 16 meses, e a
descoberta de que a jovem criada encontrava-se servindo em outra casa na capital:
Accontece, porem, que a dita menor, talvez por seducções (o que se dá
muito nesta capital) fugio de sua casa em Fevereiro de 1892, e esteve
occulta por muito tempo, até que agora foi descoberta acompanhando
a familia de Joaquim Rodrigues dos Santos residente á rua da Gloria.
Tendo o supplicante assumido a responsabilidade de tutor pelo termo
que assignou neste juizo, e, no cumprimento de seus deveres como tal,
vem requerer a V Excia a expedição de mandado para apprehensão da
dita menor na casa do mesmo Santos ou no lugar onde fôr encontrada
e subsequente entrega ao supplicante92.
91
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05456, documento 8652, 1888-89.
92
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05457, documento 6324, 1891-93.
93
PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência: a vida do trabalhador pobre na
cidade de São Paulo, 1890-1914. São Paulo: Edusp: Fapesp, 1994; SANTOS, Carlos José Ferreira. Nem
tudo era italiano: São Paulo e pobreza (1890-1915). São Paulo: Annablume /Fapesp, 2008
314
94
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 63, 1906.
315
95
OTSUKA, A.F. Antonio Bento: discurso e prática ..., op. cit., p. 108-38.
96
O tema das “redes de solidariedade” tem frequentado há algum tempo a historiografia social do
Império, frequentemente endereçando a convivência de livres, forros e escravos nos espaços de trabalho
nas cidades. A este respeito, e sobre a cidade de São Paulo, ver: WISSENBACH, M.C.C. Sonhos
africanos..., op. cit.; SANTOS, C.F.S. Nem tudo era italiano..., op. cit.
97
Cf. APESP – Juízo de órfãos, Autos de contrato, lata C05358, documento 31, 1915.
317
residente à rua General Ozório, onde era constantemente seviciada pelo empregador e
sua esposa:
(...) recebendo pancadas com cabo de vassoura, chicote e ponta pés,
tendo até uma occasião o senhor Taveira lhe batido com um pau que
lhe produzio na perna um ferimento cuja cicatriz ate agora existe; que
por diversas vezes a espoza do senhor Taveira perversamente escondia
objectos e mandava a declarante procurar e como não os achasse era
pela dita senhora ferida com garfo; que a declarante, por qualquer
cousa por mais insignificante que fosse, era privada ate de
alimentação (...).
eventual, tornava-se também, nas décadas finais do século XIX e iniciais do XX,
empreitada de grande risco para meninos, meninas e jovens empobrecidos, uma vez que
a vigilância sobre os “menores vadios e ociosos” avançava a largos passos naquele
momento99. Nessas condições, portanto, buscar acolhimento em companhia de outrem e
denunciar maus-tratos sofridos nas casas de que se evadiam, eventualmente sendo
formalmente engajados por novos patrões, apresentava-se como alternativa a
empregadores violentos, jornadas de trabalho abusivas, falta de condições adequadas de
subsistência e outras tantas insatisfações. Os menores de idade agarravam-se a estas
possibilidades com determinação, buscando o apoio de conhecidos, parentes,
autoridades e figuras públicas.
Interessante, desse modo, é notar como meninos, meninas e jovens trabalhadores
movimentavam-se em busca de melhores condições de vida ainda que dentro de
circunstâncias bastante limitantes. Arranjar-se em circunstâncias menos prejudiciais e,
eventualmente, construir dentro delas brechas para exercícios limitados de autonomia
era, nesse contexto, grande exercício de agência – entendendo-se agência não como a
oposição sistemática aos poderes dominantes, mas com a forja de maneiras de resistir e
sobreviver em condições de adversidade100.
Embora muito menos frequente, outras e mais explícitas apropriações dos
mecanismos legais de representação foram empreendidas por menores trabalhadores.
Dois processos produzidos na metade final da década de 1870 revelam caixeiros que,
contrariados com as circunstâncias em que haviam sido demitidos, apelaram às vias da
justiça formal, solicitando a nomeação de um curador para defender seus interesses. Em
1876, João Manoel queixava-se ao juiz de órfãos de ter sido injustamente demitido e
acusado de ladrão por Paulino Augusto de Madeira, proprietário do armazém de secos e
molhados em que trabalhava num aparente arranjo informal de serviços, acrescentando
que este retivera seus poucos bens – um baú e algumas roupas. O pior para João
Manoel, todavia, era o prejuízo moral que a demissão lhe acarretava:
99
A esse respeito, ver: MARIANO, Hélvio Alexandre. A infância e a lei: o cotidiano de crianças pobres
e abandonadas no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX e suas experiências com a
tutela, o trabalho e o abrigo. 2001. 178f. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade
Católica, São Paulo, 2001.
100
Walter Johnson critica os usos disseminados do conceito de agência como “oposição e resistência aos
poderes constituídos”, indicando que o conceito deve designar a capacidade de sujeitos históricos agirem
dentro de sua própria realidade e circunstâncias, mesmo que sem oposição aos interesses dominantes.
JOHNSON, Walter. On agency. Journal of Social History, v. 1, n. 37, p. 113-124, 2003.
320
Alguns anos depois, em 1879, Elias Galvão vinha ao mesmo Juízo apresentar a
sua solicitação de nomeação de curador. Alegava ter trabalhado sem receber
remunerações sendo, ao final de contas, demitido:
Elias Galvão, orphão, de dezesseia annos de idade, foi caxeiro de
Manfredo Meyer, francez, estabelecido, com loja de armarinho, á rua
de S. Bento, e ahi estivera empregado pelo espaço de dois meses e
quatro dias, sem salario fixo, alimentando-se o peticionario a expensas
proprias, sendo de notar-se que outro caxeiro em condições identicas a
do supplicante ganhava 60$000 por mez. No fim do prazo
mencionado foi o supplicante despedido, sem que o supplicado lhe
pagasse cousa alguma. O supplicante, com todo respeito, ve, requere a
V Excia a nomeação do curador idoneo que, em juizo competente,
obrigue o supplicado pela devida indenização102.
As histórias dos dois jovens partilham outros pontos de convergência além dos
maus patrões. Ambos trabalhavam no comércio e encontravam-se sozinhos na capital −
Elias porque era órfão e João Manoel por estar distante de sua família que residia no
interior da província. Menores de idade, talvez sem o respaldo de redes familiares ou de
apoio, tornavam-se vulneráveis aos desmandos e à arbitrariedade de quem lhes
empregava e contra eles praticavam espoliações e injustiças. Enquanto João Manoel era
escorraçado do trabalho, Elias tivera de sustentar-se às próprias custas, sem receber
salários durante o período que servira como caixeiro. Alguns aspectos, no entanto,
chamam a atenção em suas petições por divergirem amplamente não apenas do conjunto
geral dos arranjos de trabalho negociados ou contestados no Juízo de Órfãos, mas
também dos precários arranjos formais de serviços de caixeiros comuns, na década de
1850.
Além do fato raro de serem os próprios menores os propositores das petições, a
reclamação explícita e formal de direitos denuncia expectativas sobre as relações de
trabalho pouco acessíveis à maior parte dos jovens trabalhadores da cidade, ocupados
nos serviços domésticos. Se, por um lado, Elias experimentava na falta de remunerações
uma realidade corriqueira, por outro, o salário que reclamava não tinha nada em comum
101
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05454, documento 8785, 1876.
102
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05455, documento 11009, 1879.
321
com a média das remunerações arranjadas por soldada na cidade (ver Apêndice L,
p.371-372). O desenvolvimento da cidade, que ao fim da década de 1870 já iniciara seu
veloz processo de aburguesamento e modernização, ampliando e diversificando sua
economia, não havia ainda eliminado, segundo indica Maria Luiza Ferreira de Oliveira,
a predominância de pequenos armazéns de secos e molhados, de propriedade de
famílias pobres ou apenas remediadas103. Ainda assim, conforme aponta a autora, um
caixeiro de uma pequena casa de molhados da rua da Cadeia, região marginal da cidade,
listada em inventário do início da década de 1880, tinha vencimentos de 45 mil réis
mensais – muitos deles ainda por receber104.
Não há, certamente, quaisquer garantias de que Elias pudesse vir a receber o
mesmo que o outro caixeiro que trabalhava, segundo ele, em condições idênticas às suas
– tudo o que se encontra nos autos é sua petição encaminhada ao Juízo. O próprio fato
de não ter recebido sua justa remuneração por mais de dois meses indica que também no
seu caso, as relações de trabalho eram ameaçadas pela precariedade. Contudo, a ideia de
pleitear um salário de 60 mil reis e disputá-lo na justiça parecia uma possibilidade muito
remota para a maioria dos menores trabalhadores na cidade de São Paulo, na segunda
metade do XIX, cujos vencimentos, depositados em cadernetas de poupança e somente
acessíveis após a maioridade, àquela época giravam entre três e sete mil réis.
Na petição encaminhada a favor de João Manoel, chama atenção a menção à
“carreira a que o menor se dedicava”, prejudicada pelas falsas e públicas acusações
feitas por seu antigo empregador. De fato, como aponta Fabiane Popinigis, gozar de
reputação respeitável, que assegurasse o caráter fiel e honesto do trabalhador, era vital
para quem tivesse pretensões de galgar degraus numa carreira no comércio105.
Entretanto, é incomum nos autos do Juízo de Órfãos a manifestação de expectativas
desta natureza entre os menores trabalhadores da cidade – mesmo entre os caixeiros, de
modo geral compulsoriamente arregimentados ao trabalho, atados a acordos de trabalho
mal ou não remunerado e a patrões recorrentemente tirânicos. A diversificação dos
negócios da cidade àquele momento e a concentração de grupos de riqueza menos
precarizados nos outros setores do comércio que não o de secos e molhados, como a
103
OLIVEIRA, M.L.F. Entre a casa e o armazém..., op. cit., p. 271-73.
104
OLIVEIRA, M.L.F. Entre a casa e o armazém..., op. cit., p. 273-74.
105
POPINIGIS, F. Proletários de casaca..., op. cit., p. 72-93.
322
loja de armarinhos que empregava João Manuel, certamente era fundamental para que
as ambições do jovem caixeiro pudessem florescer106.
A existência solitária das petições de Elias e João Manoel, sem correlatos entre os
tantos outros autos relativos à disputa em torno dos serviços dos menores de idade,
sugere que, ao menos entre os trabalhadores menores de idade, os anseios por um futuro
profissional de sucesso eram raros. Seria possível argumentar, numa outra perspectiva,
que a Justiça crescentemente instrumentalizada para a arregimentação da mão de obra
de menores desvalidos não seria percebida por estes sujeitos como a instância ideal para
defesa de seus interesses. De todo modo, os relatos de informalidade, maus-tratos e
fugas que chegam à segunda década do século XX e aos primeiros anos do século XX,
em São Paulo, insinuam que o trabalho para jovens e crianças pobres, sobretudo os
engajados em serviços domésticos, se apresentava como uma mistura quase inescapável
de coerção e necessidade de sobrevivência, deixando pouco espaço para o empenho em
projetos profissionais mais ambiciosos.
Àqueles a quem escapavam as possibilidades de acessar a justiça diretamente em
defesa de seus direitos ou fugir para a companhia de parentes, amigos, ou mesmo novos
e quiçá melhores empregadores, restava ainda uma recorrente, ainda que arriscada,
alternativa: manifestar ostensivamente sua insatisfação e rebelar-se cotidianamente,
fazendo da vida dos empregadores verdadeiro inferno. A recriminação dos menores
insubordinados, “dados à vagabundagem”, acompanhou crianças e jovens empobrecidos
e trabalhadores desde sempre, assim como sempre lhes perseguiu a disciplina moral do
trabalho107. Em 1855, Joaquim Sertório, que recolhera à sua casa de negócios o caixeiro
Arthur Adolfo Guerra Leão, de 12 anos, reclamava ao Juízo que o menor “se evadiu de
sua casa e anda denovamente vagando pelas ruas dessa cidade”. Não seria a primeira
vez, portanto, que o pequeno perturbava a rotina da casa e dos negócios de seu
empregador, que insistia na apreensão do menor e dispunha-se, enfim, a fazer com ele
um contrato formal de soldada, certamente na tentativa de ampliar seu controle sobre o
106
Comparando edições do Almanaque da Província de São Paulo de 1857 e 1873, Maria Luiza Ferreira
de Oliveira constata o aumento do número de armazéns na cidade, a ampliação da diversidade das
qualidades de casas ligadas ao comércio de secos e molhados e a redução, entre tais estabelecimentos,
daqueles de pior reputação, como as casas de pasto e tabernas. OLIVEIRA, M.L.F. Entre a casa e o
armazém..., op. cit., p. 277-279.
107
RIZZINI, Irene. Crianças e menores: do pátrio poder ao pátrio dever. Um histórico da legislação para a
infância no Brasil. In: RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco (Org.). A arte de governar crianças: A
história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2009,
p. 97-153
323
108
Cf. APESP – Juízo de órfãos, Autos de requerimento, lata C05446, documento 7994, 1855.
109
Cf. APESP – Juízo de órfãos, Autos de requerimento, lata C05446, documento 8535, 1864.
110
RIZZINI, I. Crianças e menores..., op. cit.
111
Cf. APESP – Juízo de órfãos, Autos de requerimento, lata C05446, documento 8535, 1864.
112
Cf. APESP – Juízo de órfãos, Autos de petição, lata C05427, documento 10260, 1878.
324
113
RIZZINI, I. Crianças e menores..., op. cit.
114
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05457, documento 8625, 1892-96.
325
de Silva para que este desistisse de seus serviços. Essa tese, que se coaduna com a
interpretação das fugas seguidas de novos arranjos de trabalho como manifestação da
agência de menores trabalhadores, sublinha o paradoxo estabelecido no seio do
convênio público-privado unindo Estado e contratantes particulares para o acolhimento
da infância e juventude desvalidas.
A participação de tutores e contratantes nesse concerto, fortemente mediada nas
décadas finais do XIX pela emergência de noções de regulação pública do trabalho
livre, era atravessada pelos discursos, cada vez mais em voga, sobre a natureza ambígua
da infância116. Se por um lado, diferentemente do que ocorria até a década de 1870, essa
orquestração de interesses e discursos intervinha sobre o direito costumeiro e
geralmente imperturbável de contratantes e tutores administrarem exclusivamente a
disciplina do trabalho sobre os menores, por outro, o afloramento de práticas e de
discursos públicos sobre o trabalho e a infância livrava contratantes e tutores do peso de
aturar a rebeldia de crianças e jovens. O figurino de educadores e moralizadores,
fantasia sob a qual se escamoteava o sistema predatório de arregimentação de mão de
obra de menores de idade, era agora desvestido pelos empregadores. No momento de
maior concentração dos contratos e tutelas formais na cidade, a moralização pelo
trabalho era um artifício que poderia ser desposado e dispensado com grande facilidade,
e os menores trabalhadores eram, mais do que nunca, apenas trabalhadores.
A empreitada moral pela civilização e disciplinamento dos menores trabalhadores
não era desacreditada somente por contratantes e tutores, entretanto. Os próprios
menores manifestavam abertamente seu caráter falaz. Experientes nas lides do trabalho
e da vida ainda com pouca idade, crianças e jovens arregimentados ao trabalho sabiam
perfeitamente qual era o verdadeiro conteúdo de suas circunstâncias. No pós-abolição,
quando as hierarquias sociais legadas pela escravidão precisavam ser reordenadas, a
agência de meninos, meninas e jovens engajados nos serviços na cidade expressava-se
como verdadeira ameaça, como aponta a queixa do capitão Arthur Rodrigues da Motta
contra sua tutelada Benedicta117. Em 1904, justificando ao Juízo seu pedido de remissão
da tutela da menor de 16 anos, assumida apenas um mês antes, o capitão encaminhava
uma petição que descrevia cabalmente a pertinácia de menores trabalhadores que
insistiam em afrontar os poderes de seus empregadores, constituídos ao longo do século
116
RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil.
São Paulo: Cortez, 2008
117
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de tutoria, lata C05459, documento 6235, 1904.
327
Considerações finais
pobres não tivessem sido utilizados na cidade antes. De fato, embora largamente
superado pelas práticas informais, um sólido convênio entre Estado e particulares há
muito se afirmara no tocante aos cuidados e encaminhamento da infância desvalida na
cidade e alhures. Nos estertores da escravidão e no alvorecer da abolição, contudo, a
informalidade passou a conviver com impulsos à formalização dos vínculos de trabalho
unindo crianças pobres e empregadores em São Paulo – rompantes que atingiram seus
píncaros nas décadas de 1880 e 1890 e depois rapidamente arrefeceram. Contratos de
soldada, intensamente disputados por empregadores e ex-senhores destituídos de seus
ingênuos pelos desdobramentos das Leis de 1871 e 1888, deram lugar, no início do
século XX, ao imperativo das tutelas que, com sua lógica caritativa, dissipavam os
protocolos contratuais de trabalho livre que, embora precários, haviam ganhado algum
espaço, nas décadas anteriores.
Evidentemente, tais mudanças no mundo do trabalho de menores de idade
atrelavam-se a um espectro ampliado de esforços empenhados na conformação de
éticas, disciplinas e formas de controle do trabalho livre a que uma sociedade
modernizada, livre dos atrasos e ranços da escravidão deveria corresponder. As políticas
forjadas para a implantação desses novos estatutos – aplicados, em âmbito local e
prático por meio de contratos de locação de serviços, soldadas e tutelas, por exemplo –
muito se distanciavam de modernos protocolos do trabalho livre que seguiam à risca o
corolário capitalista da sociedade de mercado. Pelo contrário, era na consolidação de
formas tutelares e dependentes de trabalho que a sociedade pós-emancipação fincava
seus pés. Para tanto, amparava-se num emergente repertório ideológico sobre família,
infância, higiene e raça que circulava entre a intelligentsia imperial e entranhava-se nas
políticas e nos projetos desenhados para o futuro nacional. Assim, ganhavam força os
discursos médico-higiênicos e jurídicos que delineavam novas normatividades sociais,
consagradoras do modelo familiar burguês, sacralizando a mãe branca recolhida na
domesticidade do lar e alçando a infância e as crianças ao posto de célula do futuro
nacional.
Esse caldo ideológico fez das mães empobrecidas, notadamente daquelas egressas
da escravidão, as principais inimigas da formação dos trabalhadores disciplinados do
futuro. Descritas como dadas aos vícios, à vadiagem, aos comportamentos sexuais
desregrados e à insubordinação, essas não eram mulheres adequadas para instruir os
próprios filhos nos preceitos da morigeração e comedimento adequados aos
trabalhadores livres. Sua busca por autonomia, suas sociabilidades e arranjos familiares
330
esteve nos planos das autoridades públicas até a emergência das chamadas instituições
totais, como os Institutos Disciplinares, na virada do século XIX ao XX. Até lá, eram os
filantropos, donos do capital privado, e os empregadores particulares os principais
agentes acionados pelo Estado na missão de educar os menores de idade nos rigores e
dignidades do trabalho regrado e obediente.
Para as mães dos menores trabalhadores, a formalização dos arranjos de trabalho
dos filhos, no mais das vezes, representou cortes impiedosos no orçamento familiar, a
interrupção de vínculos afetivos, a intervenção sobre a autonomia de criar os filhos e
organizar suas famílias da maneira que lhes parecesse possível ou adequada. Conquanto
brutalmente atingidas por tais limitações, essas mulheres souberam delas se apropriar
quando, eventualmente, lhes parecia mais convenientes. Para os próprios trabalhadores
empobrecidos, o mundo do trabalho formal era uma seara a ser desbravada com
resiliência e estratégia. É certo que, entre a informalidade e a formalização, poucas
diferenças foram por eles sentidas no que dizia respeito às condições objetivas de
trabalho: o cotidiano extenuante e violento que espelhava as experiências vividas sob a
escravidão não se alterava, como num passe de mágica, pela simples burocratização dos
vínculos que os uniam a seus empregadores. Longe disso, a formalização de tutelas e
soldadas amarrava-os a arranjos de trabalho com minguados vencimentos, muitas vezes
por prolongados períodos, impedindo-os de buscar, livremente, outras posições em que
se achassem mais bem acomodados. No caso dos menores formalmente tutelados,
ademais, nem mesmo os parcos rendimentos de seus serviços poderiam ser coletados
por meninas e meninos, uma vez que atingissem a maioridade.
Fugindo, rebelando-se, apelando a novos empregadores ou a autoridades públicas,
menores de idade trabalhadores jogavam com as contradições e coincidências dos
arranjos formais e informais de trabalho, em busca de melhores condições de vida.
Assim como para suas mães, nem sempre a informalidade mostrou-se mais hostil do
que a formalização. É verdade que, ainda que frágeis, algumas garantias poderiam ser
obtidas com a observância dos preceitos judiciais para o assoldamento ou tutela de
pequenos empobrecidos. Embora os poderes públicos tenham sido exercidos de maneira
frequentemente discricionária e pouco cautelosa, notícias de maus-tratos que chegavam
aos ouvidos do Juízo eram, muitas vezes, sucedidas da destituição de empregadores ou
tutores formais, e curadores-gerais de órfãos poderiam pleitear melhores soldadas e
condições de agenciamento para seus curatelados. No limite, pode-se supor que a
constituição de pecúlios arduamente amealhados poderia representar algum tipo de
332
1
Cf. APESP – Juízo de Órfãos, Autos de petição, lata C05428, documento 8967, 1891.
333
determinação do Juízo de Órfãos? Os motivos por que teria ela, com pai e mãe
identificados na certidão de batismo, sido legalmente enquadrada na categoria de órfã e
encaminhada ao trabalho como assoldada na casa de terceiros são uma incógnita, apenas
parcialmente respondida pela certeza de sua infância depauperada. Sobre o momento em
que encaminhava a petição ao Juízo tampouco há grandes convicções, a não ser a
certeza da imperativa pobreza que lhe acompanhara ao longo dos anos, sendo então
agravada pela existência de uma filha ainda pequena a quem Ursulina encontrava
dificuldades de sustentar. Seria ela também uma mulher sozinha, sem família, sem
marido ou amásio que lhe ajudassem no desafio cotidiano da sobrevivência? Teria sido
ela capaz, de posse dos 203 mil réis coletados após ser considerada apta pelo Juízo a
reger seus próprios bens, de evitar que a filha se tornasse, no futuro, também uma
criança assoldada e, assim, revivesse a história da mãe? São perguntas que permanecem
sem resposta, mas que precisam ser continuamente refeitas para que se faça algum tipo
de justiça a mulheres pobres e seus filhos, sujeitos que construíram a vida de uma
cidade que hoje, folgando-se nas memórias da imigração europeia, os relega ao ocaso de
sua história.
334
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T9. Identificação racial de pais de menores tutelados e contratados – categorias raciais amplas (São Paulo, 1820-1840)
1820 1 0,60
1830 - -
1840 3 1,80
1850 21 13,04
1860 5 3,10
1870 7 4,34
1880 54 33,54
1890 45 27,95
1900 20 12,42
1910 5 3,10
Total 161 100,0
* Incluídos todos os menores contratados em cada década, excluídas as repetições no mesmo período.
** Números aproximados.
Fonte: APESP, Juízo de Órfãos, 2015.
359
T11. Menores contratados e tutelados por grupos de origem social por década (São Paulo, 1820-1910)
1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890 1900 1910 %*
Origem social/década Total
C T C T C T C T C T C T C T C T C T C T
Liberto/ingênuo - - - - - - 1 - 2 1 3 3 18 9 - - 1 - - - 38 16,17
Preto e pardo** - - - - - - 5 - - - 2 - 13 5 20 4 2 - 2 - 53 22,53
Mãe liberta/ escrava/ afr.
- - - - - - - 1 - - 1 1 5 1 1 - - - - - 10 4,25
livre
Índio - - - - - - 1 - - - - - - - - - - - - - 1 0,42
Branco - - - - - - - - - - - - 1 1 2 2 - - - - 6 2,55
Brasileiro - - - - 1 - 1 - - - - - - - - - 2 1 1 - 6 2,55
Estrangeiro - - - - - - 2 - - - - 1 - 1 5 1 3 - - - 13 5,53
Indeterminado 1 - - - 2 6 10 - 2 - 1 2 17 13 15 19 12 7 1 - 108 45,95
Totais 1 - - 3 6 20 1 4 1 7 7 54 30 43 26 20 8 4 - 235 100,0
* Números aproximados.
** O título “Pretos e pardos” reporta-se também a outras classificações raciais que aparecem com menor frequência nos autos, como “cor fula” ou “cor escura”.
T12. Contratos e tutelas de menores trabalhadores por grupos de origem social por década (São Paulo, 1820-1910)
1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890 1900 1910 %*
Origem social/década Total
C T C T C T C T C T C T C T C T C T C T
Liberto/ingênuo - - - - - - 1 - 2 1 3 3 20 9 1 - 1 - - - 41 15,29
Preto e pardo** - - - - - - 7 - - - 2 - 13 5 24 4 2 - 2 - 59 22,01
Mãe liberta/ escrava/ afr.
- - - - - - - 1 - - 1 1 7 2 1 - - - - - 13 4,85
livre
Índio - - - - - - 2 - - - - - - - - - - - - - 2 0,74
Branco - - - - - - - - - - - - 1 1 2 2 - - - - 6 2,23
Brasileiro - - - - 1 - 1 - - - - - - - - - 3 1 1 - 7 2,61
Estrangeiro - - - - - - 2 - - - - 1 - 1 5 1 3 - - - 13 4,85
Indeterminado 1 - - - 4 6 13 - 3 - 2 2 21 13 17 20 15 7 3 - 127 47,38
Totais 1 - - - 5 6 26 1 5 1 8 7 62 31 50 27 24 8 6 - 268
* Números aproximados.
** O título “Pretos e pardos” reporta-se também a outras classificações raciais que aparecem com menor frequência nos autos, como “cor fula” ou “cor escura”.
T13. Menores tutelados e contratados com e sem relação com experiências de escravização por década (São Paulo, 1820-1910)
Origem social/década 1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890 1900 1910 Total %*
Liberto/ingênuo - - - 1 3 6 27 - 1 -
Egressos/ descendentes
Preto e pardo** - - - 5 - 2 18 24 2 2 101 42,97
da escravidão
Mãe liberta/ escrava/ afr. livre - - - 1 - 2 6 1 - -
Sem relação com Branco - - - - - - 2 4 - -
19 8,08
escravidão Estrangeiro - - - 2 - 1 1 6 3 -
Brasileiro - - 1 1 - - - - 3 1
Outros 7 2,97
Índio - - - 1 - - - - - -
Indeterminado 1 - 8 10 2 3 30 34 19 1 108 45,96
Totais 1 - 9 21 5 14 84 69 28 4 235 100,0
T14. Menores contratados com e sem relação com experiências de escravização por década (São Paulo, 1820-1910)
Origem social/década 1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890 1900 1910 Total %*
Liberto/ingênuo - - - 1 2 3 18 - 1 -
Egressos/ descendentes
Preto e pardo** - - - 5 - 2 13 20 2 2 76 48,40
da escravidão
Mãe liberta/ escrava/ afr. livre - - - - - 1 5 1 - -
Sem relação com Branco - - - - - - 1 2 - -
13 8,28
escravidão Estrangeiro - - - 2 - - - 5 3 -
Brasileiro - - 1 1 - - - - 2 1
Outros 6 3,82
Índio - - - 1 - - - - - -
Indeterminados 1 - 2 10 2 1 17 16 12 1 62 39,49
Totais 1 - 3 20 4 7 54 43 20 4 156 100,0
362
T15. Contratos e tutelas com menores com e sem relação com experiências de escravização por década (São Paulo, 1820-1910)
Origem social/década 1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890 1900 1910 Total %*
Liberto/ingênuo - - - 1 3 6 29 1 1 -
Egressos/descendestes
Preto e pardo** - - - 7 - 2 18 28 2 2 113 42,16
da escravidão
Mãe liberta/ escrava/ afr. livre - - - 1 - 2 9 1 - -
Sem relação com Branco - - - - - - 2 4 - -
19 7,08
escravidão Estrangeiro - - - 2 - 1 1 6 3 -
Brasileiro - - 1 1 - - - - 4 1
Outros 9 3,35
Índio - - - 2 - - - - - -
Indeterminados 1 - 10 13 3 4 34 37 22 3 127 47,38
Totais 1 - 11 27 6 15 93 77 32 6 268
T16. Contratos com menores com e sem relação com experiências de escravização por década (São Paulo, 1820-1910)
Origem social/década 1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890 1900 1910 Total %*
Liberto/ingênuo - - - 1 2 3 20 1 1 -
Egressos/descendestes
Preto e pardo** - - - 7 - 2 13 24 2 2 87 46,52
da escravidão
Mãe liberta/ escrava/ afr. livre - - - - - 1 7 1 - -
Sem relação com Branco - - - - - - 1 2 - -
13 6,95
escravidão Estrangeiro - - - 2 - - - 5 3 -
Brasileiro - - 1 1 - - - - 3 1
Outros 8 4,27
Índio - - - 2 - - - - - -
Indeterminados 1 - 4 13 3 2 21 17 15 3 79 42,24
Totais 1 - 5 26 5 8 62 50 24 6 187
* Números aproximados.
** O título “Pretos e pardos” reporta-se também a outras classificações raciais que aparecem com menor frequência nos autos, como “cor fula” ou “cor escura”.
T17. Menores tutelados e contratados por categorias raciais por década (São Paulo, 1820-1910)
Origem social/década 1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890 1900 1910 Total %*
Liberto/ingênuo - - - 1 3 6 27 - 1 -
Preto e pardo** - - - 5 - 2 18 24 2 2 102 43,40
Não brancos
Mãe liberta/ escrava/ afr. livre - - - 1 - 2 6 1 - -
Índio - - - 1 - - - - - -
Branco - - - - - - 2 4 - -
Brancos 19 8,08
Estrangeiro - - - 2 - 1 1 6 3 -
Brasileiro - - 1 1 - - - - 3 1
Indeterminados 114 48,51
Indeterminado 1 - 8 10 2 3 30 34 19 1
Totais 1 - 9 21 5 14 84 69 28 4 235
T18. Contratos e tutelas por categorias raciais por década (São Paulo, 1820-1910)
Origem social/década 1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890 1900 1910 Total %*
Liberto/ingênuo - - - 1 3 6 29 1 1 -
Preto e pardo** - - - 7 - 2 18 28 2 2 115 42,91
Não brancos
Mãe liberta/ escrava/ afr. livre - - - 1 - 2 9 1 - -
Índio - - - 2 - - - - - -
Branco - - - - - - 2 4 - -
Brancos 19 7,08
Estrangeiro - - - 2 - 1 1 6 3 -
Brasileiro - - 1 1 - - - - 4 1
Indeterminados 134 50,00
Indeterminados 1 - 10 13 3 4 34 37 22 3
Totais 1 - 11 27 6 15 93 77 32 6 268
364
T19. Menores contratados por categorias raciais por década (São Paulo, 1820-1910)
Origem social/década 1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890 1900 1910 Total %*
Liberto/ingênuo - - - 1 2 3 18 - 1 -
Preto e pardo** - - - 5 - 2 13 20 2 2
Não brancos Mãe liberta/ escrava/ afr. 77 49,04
- - - - - 1 5 1 - -
livre
Índio - - - 1 - - - - - -
Branco - - - - - - 1 2 - -
Brancos 13 8,28
Estrangeiro - - - 2 - - - 5 3 -
Brasileiro - - 1 1 - - - - 2 1
Indeterminados 67 42,62
Sem informação 1 - 2 10 2 1 17 16 12 1
Totais 1 - 3 20 4 7 54 43 20 4 156
T20. Contratos de menores por categorias raciais por década (São Paulo, 1820-1910)
T21. Contratos por categoria racial por década (São Paulo, 1820-1910) **
T22. Tutelas por categoria racial por década (São Paulo, 1820-1910) **
*Números aproximados.
**Período geral de referência da pesquisa.
Fonte: APESP, 2014-2015.
366
* Números aproximados.
Fonte: APESP, 2014-2015.
367
* Números aproximados
Fonte: APESP, 2014-2015.
368
*Números aproximados.
** Refere-se a contratos que apresentam mais de uma idade para o mesmo menor.
T26. Contratos por sexo, idade e categoria racial (São Paulo, 1820-1910) *
*Números aproximados.
Fonte: APESP, 2014-2015.
370
T27. Duração de contratos por sexo e origem social (São Paulo, 1820-1910) *
T28. Contratos com remuneração fixa por década (São Paulo, 1820-1910)
Faixas de remuneração %*
1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890 1900 1910 Total
(mil réis/mês)
1 a 1$9 - - - - - - - - - 4 3,84
2$ a 2$9 - - 1 4 - - - 2 - - 7 6,73
3$ a 3$9 - - - 2 1 1 1 1 - - 6 5,76
4$ a 4$9 - - - 3 - - 7 - - - 10 9,61
5$ a 5$9 - - - 3 - - 10 11 2 2 28 26,92
6$ a 6$9 - - - - - - 5 3 1 9 8,65
7$ a 7$9 - - - - - - - - - - 0 0
8$ a 8$9 - - - 2 1 - 3 - - - 6 5,76
9$ a 9$9 - - - - - - - - - - 0 0
10$ a 10$9 - - - 1 1 - 2 11 2 1 18 17,30
11$ a 11$9 - - - 1 - - - - - 1 0,96
12$ a 12$9 - - - - - - - - 1 - 1 0,96
13$ a 13$9 - - - - - - - - - - 0 0
14$ a 14$9 - - - - - - - - - - 0 0
15$ a 15$9 - - - - - - 2 3 4 - 9 8,65
16$ a 16$9 - - - - - - - 1 1 - 2 1,92
17$ a 17$9 - - - - - - - - - - 0 0
18$ a 18$9 - - - - - - - - - - 0 0
19$ a 19$9 - - - - - - - - - - 0 0
20$ a 20$9 - - - - - - - - 1 - 1 0,96
Acima de 20$ - - - - - - - 2 - - 2 1,92
Total - - 1 20 3 1 30 34 11 4 104
*Números aproximados
Fonte: APESP, 2014-2015.
372
Faixas de remuneração %*
1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890 1900 1910 Total
(mil réis/mês)
1 a 1$9 - - - - - - 1 - - - 1 1,75
2$ a 2$9 - - - - - 1 1 - - - 2 3,50
3$ a 3$9 - - - - - - 9 1 - - 10 17,54
4$ a 4$9 - - - - 1 - 3 - - - 4 7,01
5$ a 5$9 - - - - - - 4 - - - 4 7,01
6$ a 6$9 - - 1 - - - 4 4 - - 9 15,78
7$ a 7$9 - - - - - 1 - 4 - - 5 8,77
8$ a 8$9 - - - - - - - 1 - - 1 1,75
9$ a 9$9 - - - - - - 1 - - - 1 1,75
10$ a 10$9 - - - - - 1 1 4 - - 6 10,52
11$ a 11$9 - - - - - - - - 1 - 1 1,75
12$ a 12$9 - - - - - - 2 1 1 - 4 7,01
13$ a 13$9 - - - - - - - - 3 - 3 5,26
14$ a 14$9 - - - - - - - - - - 0 0
15$ a 15$9 - - - - - - - - 2 - 2 3,50
16$ a 16$9 - - - - - - - - 4 - 4 7,01
Total - - 1 - 1 3 26 15 11 - 57
*Números aproximados.
Fonte: APESP, 2014-2015.
373