Viviane Alves Chaves Dis
Viviane Alves Chaves Dis
Viviane Alves Chaves Dis
Porto Alegre
2020
VIVIANE ALVES CHAVES
Porto Alegre
2020
VIVIANE ALVES CHAVES
BANCA EXAMINADORA:
___________________________________________________
Prof. Dr. Marçal de Menezes Paredes (Orientador) – PUCRS
__________________________________________________
Prof. Dr. Mateus Silva Skolaude – UNISC
__________________________________________________
Prof. Dr. Matheus Silveira Lima – UESB
Porto Alegre
2020
AGRADECIMENTOS
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 12
2 PORTUGAL E O FUTURO: A OBRA COMO UM INSTRUMENTO, A OBRA COMO
RESPOSTA. ............................................................................................................................... 20
2.1 POR QUE ANALISAR PORTUGAL E O FUTURO. .......................................................... 21
2.1.1 Portugal e o Futuro: Análise da conjuntura nacional. ....................................................... 21
2.1.2 A obra e o debate historiográfico. ...................................................................................... 24
2.2 POR QUE SURGIU ESTE LIVRO? .................................................................................... 29
2.2.1 As inúmeras tentativas de consciencializar o Presidente do Conselho. ............................. 29
2.2.2 As justificativas para a escrita de Portugal e o Futuro. ..................................................... 46
2.3 “A CRISE QUE ENFRENTAMOS”: DOS ALICERCES HERDADOS DA HISTÓRIA A
UM PORTUGAL DO FUTURO. ............................................................................................... 50
2.3.1 A essência da nação: realidades permanentes, valores essenciais. ..................................... 51
2.3.2 Entre mitos e dogmas, “as nossas contradições”. ............................................................... 60
3 UM MANIFESTO: “PORTUGAL E O FUTURO” E A BUSCA POR UMA TERCEIRA
VIA PARA A NAÇÃO. ............................................................................................................. 68
3.1 ANÁLISE DA CONJUNTURA NACIONAL...................................................................... 68
3.1.1 Uma crise de sobrevivência social! .................................................................................... 69
3.1.2 A crise portuguesa e a “internacionalização dos problemas nacionais”............................. 74
3.1.3 Portugal e o despertar africano: “fronteiras morais e ideológicas” .................................... 88
3.2 “A GUINÉ NÃO PODE SER A NOVA GOA”. ................................................................... 96
3.2.1 Brasil e Índia, polos opostos de uma experiência. ............................................................. 97
3.2.2 A experiência na Guiné e a missão portuguesa na África. ............................................... 104
4 A COMUNIDADE LUSO-AFRO-BRASILEIRA. ............................................................ 117
4.1 “UM CONCEITO NOVO DE UNIDADE DA NAÇÃO” .................................................. 118
4.1.1 A via apresentada em Portugal e o Futuro. ..................................................................... 118
4.1.2 A consulta geral à Nação e o direito dos povos a autodeterminação. .............................. 132
4.2 PORTUGAL E O FUTURO E AS RELAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS. .......................... 141
4.2.1 Portugal e o Futuro e o Lusotropicalismo Freyreano. ..................................................... 142
4.2.2 A recepção de Portugal e o Futuro e o exílio no Brasil................................................... 158
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. ............................................................................................. 175
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................. 183
ANEXOS .................................................................................................................................. 192
12
1 INTRODUÇÃO
1
Portugal e o Futuro foi traduzido para vários idiomas, inclusive o alemão. Segundo Maria Inácia Rezola:
“Em finais de Fevereiro, Portugal e o Futuro é o livro em destaque num stand português da feira do livro
de Madrid. Em Maio, a versão espanhola está já nas montras das livrarias. Em breve será traduzido em
muitas outras línguas e correrá o Mundo. (REZOLA, 2006). Conforme veremos mais à frente, no Brasil, a
sua publicação contou com uma ampla cobertura da imprensa. Além disso, a sua edição brasileira foi um
verdadeiro sucesso e sua primeira edição esgota-se rapidamente
2
Na Guerra Civil de Espanha, Spínola atua na escolta de colunas militares responsáveis pelo abastecimento
das tropas franquistas e, em novembro de 1941, desloca-se à Alemanha em uma em missão de estudo do
exército português. O General voltaria para Portugal impressionado com o exército alemão. De acordo com
Mária Inácia Rezola, o exército alemão era “[...] Um exemplo que gostaria de ver seguido em Portugal”
(REZOLA, 2005, p.34).
13
A experiência que adquire entre dezembro de 1961 e março de 1964 teria impacto
definitivo na forma como o General avaliava o conflito colonial5. Em decorrência do
contato com a guerrilha e com as populações angolanas6, Spínola descobre um mundo
novo para além do militar, o que o faz passar a ter as primeiras dúvidas sobre uma possível
vitória militar para a guerra (REZOLA, 2005). Em resumo, o António de Spínola que
retorna de Angola em março de 1964 é um homem diferente. Como pontua Maria Inácia
Rezola:
Em termos militares, tem o primeiro contacto com a guerra em África
e, sobretudo, a estratégia de guerrilha que depois encontrará na Guiné.
3
O conflito colonial teve início em 1961 em Angola. Dois eventos importantes teriam dado início ao
conflito, a citar os acontecimentos da madrugada do dia 4 de fevereiro de 1961, em Luanda, norte de
Angola, onde um grupo de cerca de 200 pessoas empreendeu um ataque contra a casa de reclusão e a cadeia
de São Paulo com o intuito de libertar presos políticos. Embora a paternidade do evento tenha rapidamente
sido reivindicada pelo MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), este teria tido pouca ou
nenhuma influência no ocorrido que acabou por deixar um rastro de sangue. Outro importante evento foram
os ataques postos em prática pela UPA (União das Populações Angolas, posterior FNLA-Frente Nacional
de Libertação de Angola), contra as fazendas de colonos brancos no norte de Angola, em 15 de março de
1961, massacre que acaba por dar início a uma onda crescente de terror e destruição. A guerra tinha
começado em Angola.
4
A unidade com aproximadamente 600 homens partiu em direção a Luanda em 23 de novembro de 1961.
Após um primeiro momento de treino e adaptação, o grupo é enviado para Bessa Monteiro, no Norte de
Angola, onde permaneceu de janeiro a maio de 1962. Entre junho de 1962 e maio de 1963, o grupo fixa-se
na região fronteiriça de São Salvador do Congo. Os últimos meses de Spínola em Angola dão-se na região
sul em missões de patrulhamento, reconhecimento e conquista das populações. (REZOLA, 2005).
5
É importante recordar que além do conflito em Angola, houve também a perda de Goa, em 1961, o início
da Guerra na Guiné, em 1963, e em Moçambique, em 1964.
6
Conforme veremos adiante no capítulo III: 3.1.2, António de Spínola mostrava-se preocupado com o
futuro das populações ultramarinas, em especial as populações brancas que lá residiam, sobretudo os
portugueses. Preocupação que, a exemplo do ocorrido em 15 de março de 1961, mostrava-se muito bem
fundamentada.
14
Ao retornar a Lisboa a sua carreira militar sofre forte impulso. Em finais de 1966,
Spínola é promovido a brigadeiro e, em maio de 1968, é designado pessoalmente pelo
Presidente do Conselho7 a Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da
Guiné.8 Quando Spínola chega à Guiné, a situação era realmente grave. Assim como em
Angola, a estratégia posta em prática por Spínola envolvia uma intensa “ação
psicossocial” personificada no lema Por Uma Guiné Melhor. Sua primeira obra,
publicada pela Agência Geral do Ultramar e que reúne os discursos do General na Guiné,
de 1968 a 1970, começa com a seguinte definição da ação do Governador-Geral da Guiné:
De formação estruturalmente militar, liberto de servidões inerentes a
padrões e figurinos políticos ou ideológicos, pautámos a nossa linha de
acção à luz de uma única preocupação – servir o bom povo português
da Guiné.
Respeitando os valores em que se alicerça a Nação Portuguesa,
plasmada nos mais puros princípios de solidariedade, fraternidade e
igualdade humanas, procurámos acompanhar a evolução do mundo,
ajustando às exigências sociais dos nossos dias, conceitos, métodos e
processos, em ordem a assegurar a continuidade da missão que nos
compete desempenhar em África.
Dentro deste espírito de evolução na continuidade, o combate pela paz,
pela valorização do ‘chão’ da Guiné, e pela promoção e dignificação
das suas gentes, esteve sempre na primeira linha das nossas
preocupações, o que julgamos transparecer dos textos que se seguem,
que reflectem estados de alma gerados espontaneamente face a diversas
motivações.
A construção de uma Guiné Melhor para todos os seus filhos, surge-nos
assim como um imperativo da evolução da Nação Portuguesa, que vem
sendo cumprido em íntima comunhão de sentimentos e em total
convergência das vontades do Governo e do Povo. (SPÍNOLA, 1970,
p. 7-8).
Em resumo, esse foi o pensamento que orientou a ação posta em prática por
António de Spínola enquanto Governador-Geral da Guiné-Bissau. Com base nesses
pressupostos e com o aval do Governo de Marcello Caetano, dá início a conversações
com a guerrilha. Entretanto, apesar do sucesso inicial das conversações, o desfecho
acabou sendo desastroso, culminando na morte de três militares portugueses (Operação
7
Na altura da indicação ao cargo de Governador Geral, o Presidente do Conselho ainda era António de
Oliveira Salazar. Entretanto, seria substituído meses depois por Marcello Caetano devido a um acidente
doméstico.
8
Spínola toma posse em uma cerimônia no dia 20 de maio e no dia 24 de maio parte para Bissau.
15
Chão Manjaco) e em uma contra ofensiva portuguesa que seria condenada pela
comunidade internacional (Operação Mar Verde).
Os desfechos desastrosos das duas primeiras grandes operações de Spínola
trouxeram-lhe importantes lições e reforçaram a convicção do General sobre a
inviabilidade de uma vitória militar. Segundo Rezola, para Spínola “[...] tornava-se óbvia
a urgência em encontrar uma solução político-diplomática para o problema da Guiné.
(REZOLA, 2005, p. 49).
Após o fracasso da tentativa de negociar com a guerrilha, Spínola dá início a outras
estratégias. Em abril de 1972, o General dá início às primeiras conversações com um
Ministro do Governo Senegalês com vista a um encontro secreto com o Presidente
Léopold Sédar Senghor (SPÍNOLA, 1978). A ideia de Spínola era que Senghor atuasse
como um mediador a fim de estabelecer o cessar-fogo e negociar a paz. Spínola
posteriormente afirmaria ter aceito em 1972 a renovação do seu mandato na Guiné,
unicamente com o intuito de dar continuidade às conversações com Senghor. Em 18 de
maio, realizou-se em território Senegalês (Cap Skirring) o encontro com o Presidente
Senghor. Todavia, em 30 de maio veio a proibição de Caetano em dar prosseguimento
nas negociações.
Após se decepcionar com as determinações do presidente do conselho em relação
ao ultramar português, em 16 de agosto de 1973 Spínola retorna a Portugal, em licença,
porém decidido a não voltar à Guiné. O seu regresso torna-se definitivo. De volta a
Lisboa, finaliza as teses que vinha desenvolvendo juntamente com seu staff ao longo dos
anos em que esteve na Guiné. Em novembro desse mesmo ano, o texto é entregue à
editora. A partir disso, aguardava-se apenas o momento adequado para a publicação.
A publicação de Portugal e o Futuro ocorre em um momento gravíssimo da
história de Portugal. Além de trazer altos custos para a economia portuguesa,
internacionalmente o impasse colonial conduzia a Nação a um isolamento crescente. Esse
isolamento vinha recaindo sobre Portugal desde finais da II Guerra Mundial, quando
surgem instituições sensíveis à questão colonial. Entre tais instituições surge a própria
ONU, que inclui em sua Carta fundacional um artigo referente ao reconhecimento do
direito dos povos à autodeterminação.
Segundo a posição oficial do salazarismo, até 1950 Portugal era considerado um
império colonial. Entretanto, com a emergência das descolonizações, o regime salazarista
viu-se obrigado a uma nova definição estatutária para a caracterização das suas colônias.
O Ato Colonial foi abolido e as colônias passam a chamar-se “Províncias Ultramarinas”
16
9
Às 00h do dia 25 de Abril, tinha início o evento que mudaria os rumos da história portuguesa e faria o
mundo assistir, em menos de 24h, ao derrube da mais antiga ditadura europeia contemporânea. Para uma
análise detalhada dos acontecimentos do dia 25, ver: REZOLA, Maria Inácia. António de Spínola. Grandes
Protagonistas da História de Portugal. Editora Planeta DeAgostini, S.A., Lisboa, 2005.
10
Além disso, o livro catapulta Spínola para Presidente da República, cargo que ocuparia por apenas cinco
meses. Um dos grandes motivos da curta estadia de Spínola na Presidência da República foi exatamente a
sua fidelidade ao seu ideário nacional. Segundo Kenneth Maxwell: “[...] O general Spínola queria criar uma
federação de países lusófonos, mas o MFA prevaleceu e deu início à descolonização [...]” (MAXWELL,
2006, p.116).
17
11
Também é na Guiné que começam a surgir em seus discursos conceitos que se tornariam recorrentes ao
longo de Portugal e o Futuro, tais como “país pluricultural”, “sociedade multirracial” e “nação
pluriestatal”, que de acordo com Maria Inácia Rezola: “[...] entram no léxico político quotidiano da
província. Uma visão sobre a África, e em concreto, sobre a Guiné, bem diferente do orgulhosamente sós
que o regime propagandeava.” (REZOLA, 2005, p.51).
12
Sempre que replicarmos expressões originalmente utilizadas pelo autor em Portugal e o Futuro, estas
se encontrarão entre aspas e em itálico.
20
Muito se fala sobre o best-seller que como um terremoto fez estremecer um dos
principais pilares do Estado Novo português, o já fragilizado Império. E embora sejam
inúmeros os questionamentos sobre a influência que a obra teria tido nos acontecimentos
que culminariam no 25 de Abril de 1974, pouco se analisa a obra como um todo, como
objeto em si.
Portugal e o Futuro Análise da Conjuntura Nacional certamente causa uma
repercussão que ultrapassa o seu estrondoso êxito editorial (REZOLA, 2005, p. 7). Essa
repercussão teria sido resultado do fato de a obra ter sido escrita por Spínola? Certamente!
Como pontua Kenneth Maxwell, “[...] eram palavras espantosas, vindas de onde vinham
[...]. (MAXWELL, 2006, p. 56). Ainda que fosse vetado a um militar em exercício
publicar uma obra de cunho político, não há dúvidas de que o considerável prestigio
22
13
Carlos Alexandre de Morais foi um militar e amigo próximo de Spínola que atuou ao lado do General na
GNR e estava entre os seus homens de confiança na Guiné. Pouco antes de seu falecimento (2007), Morais
dedicou ao General a obra António de Spínola: O Homem, onde relata as suas memórias sobre ele.
23
Gomes teria tido conhecimento do livro de Spínola em junho de 1973, quando encontrou-
se com o General em visita à Guiné. Tendo isso em vista, podemos considerar a obra
escrita por António de Spínola como um resultado direto desse amplo debate de ideias
entre Spínola e os seus homens de confiança na Guiné.
O editor Paradela de Abreu teria sido a primeira pessoa fora desse círculo a
conhecer as intenções de Spínola. Abreu se deslocou à Bissau a fim de conversar sobre
uma possível publicação da obra do General, o qual, entretanto, se recusou a divulgar o
conteúdo da mesma. Ainda assim, “[...] Paradela não desiste e inicia as negociações para
a sua publicação. Em novembro de 1973 o contrato é assinado e o editor recebe finalmente
o texto.” (REZOLA, 2005, p. 78). Porém, devido ao problema da recolocação de Spínola
no poder14, a publicação da obra foi adiada para um momento mais oportuno.
Caetano afirma ter lido a obra apenas nas vésperas da sua publicação. Diferente
de Spínola, Caetano pensava que Portugal e o Futuro era muito mais do que teses sobre
o Ultramar português. Em suas palavras: “[...] não era uma tese e sim um manifesto.”
(CAETANO, 1974, p. 193), um manifesto que traduzira nitidamente a intenção de um
golpe de Estado. Além disso a sua publicação, nas condições em que se deu e “[...] vinda
de onde viera, era grave em si: mas ainda se tornava mais grave pela ocasião em que
ocorria, a dar uma doutrina e a emprestar uma bandeira ao chamado Movimento dos
Capitães15 [...]” (CAETANO, 1974, p. 194) e “[...] colocava o governo em situação
delicadíssima porque, a manter a política até aí seguida ficava aberto o divórcio entre ele
e os mais altos representantes das Forças Armadas.[...]” (CAETANO, 1974, p. 193).
Apenas 63 dias separam a publicação de Portugal e o Futuro (22 de fevereiro de
1974) e o 25 de Abril. Spínola certamente fez com um livro o que talvez nunca tivesse
conseguido fazer no campo de batalha, e embora a revolução não tenha sido de fato
14
Quando Spínola retorna para Lisboa, em 1973, Caetano tem muita dificuldade em encontrar um lugar no
poder para encaixar Spínola. Em entrevista à rádio Antena 2, no dia 3 de abril de 1998, o General Costa
Gomes afirma que embora houvesse cargos que Spínola poderia ocupar, o General não teria sido aceito no
exército devido à sua ação na Guiné. Caetano teria então oferecido a Spínola a pasta do Ultramar, mas o
General recusou o convite (BARBOSA, 2009). A solução encontrada foi a criação, exclusivamente para o
General, do cargo de vice-chefe do Estado Maior General das Forças Armadas (vice-CEMGFA). Spínola
toma posse em 17 de janeiro de 1974, sendo por inerência do cargo promovido a general de quatro estrelas.
15
O Movimento dos Capitães (MOCAP), que viria se tornar o Movimento das Forças Armadas (MFA),
constituiu-se oficialmente em Évora, Portugal, em 9 de setembro de 1973. Entretanto, suas primeiras
movimentações deram-se no Ultramar, diante da insatisfação que os militares vinham nutrindo em relação
à continuidade da Guerra. Essa insatisfação acabou sendo acentuada com o Decreto-Lei 353-73, de 13 de
julho de 1973. Tal decreto alterava o modo de ingresso de militares no quadro permanente, criando um
curso intensivo de dois semestres para capitães recrutados, ao invés do curso integral. A frequência deste
curso permitia aos oficiais milicianos integrar o Quadro Especial de Oficiais – quadro paralelo ao Quadro
Permanente. O decreto causou uma inevitável agitação entre os oficiais que, sentindo-se seriamente lesados,
dão início às mobilizações que resultaram no MOCAP/MFA.
24
orquestrada por ele, foi em grande medida acelerada por suas ideias. Afinal, mesmo que
muitos não concordassem com as teses federalistas do General, ou sequer com a ideia de
que a solução para a guerra ultramarina era política e não militar, Portugal e o Futuro,
nas palavras de Mária Inácia Rezola (2005), “transforma-se em uma verdadeira bíblia”,
acabando por ter dimensões muito além das projetadas pelo seu autor.
16
No original: “[...] had an unexpected impact on the decolonization of Africa. First of all, it gave the
Portuguese army a moral licence to refuse to fight any further colonial wars. [...] (BIRMINGHAM, 1995,
p.27).
17
Em um artigo do Centro de Documentação 25 de Abril, Spínola é referido da seguinte forma: “Nunca
um governador de província ultramarina, e muito menos um general, ousara ir tão longe.”, pois, “[...]Em
1973, quando Marcelo Caetano proíbe a continuação dos contactos com o "inimigo", Spínola compreende
que deixou de ter lugar no regime e prepara a publicação de Portugal e o Futuro, bomba-relógio que iniciará
a sua destruição.”
25
sobretudo, por ser dito por quem era: um general, uma das figuras mais carismáticas e
respeitadas do Exército e do próprio regime.” (RUIVO, 2013, p. 73-74). No prefácio18 da
edição brasileira19 de Portugal e o Futuro,20 escrito pelo jornalista Carlos Lacerda,
considerou-se que o estudo de Spínola, exposto em Portugal e o Futuro teria a,
[...] objetividade, o realismo de um trabalho de Estado Maior e a visão
inspiradora de um reformador político e social. Já o rotularam de um
novo De Gaulle21, ou seja, um conservador apaixonado pelos métodos
democráticos. Sua formação profissional, sua postura impecável, sua
vida militar e até o seu monóculo fazem crer nessa descrição [...]. Mas,
o acento iniludível de sua mensagem não deixa enganos aos que
detestam a ideia de devolver ao povo o que um dia, em nome da
salvação pública, lhe foi temporariamente arrebatado, já lá vão quase
cinquenta anos. Supor que isto continue mais tempo, nesse país que se
exaure e não tem tantos recursos para reagir, é dar prova de um
irrealismo bem pouco digno da formação militar. (LACERDA, 1974, p.
8-9, grifo nosso).
18
Ver anexo I com o prefácio escrito por Carlos Lacerda.
19
A publicação da obra assim como o 25 de Abril, contou com uma ampla cobertura jornalística no Brasil,
a exemplo da reportagem publicada em 11 de maio de 1974 pela revista Manchete. A capa da revista sobre
o 25 de Abril contava com o seguinte título “A Revolução de Spínola”.
20
O livro teve uma edição no Brasil, pela editora Nova Fronteira, com prefacio escrito por Carlos Lacerda
em 31 de março de 1974, ou seja, antes da repercussão do 25 de Abril.
21
Charles de Gaulle (1890-1970) foi um general, político e estadista francês que liderou as Forças Francesas
Livres/França Livre durante a Segunda Guerra Mundial. Gradualmente De Gaulle obteve o controle de
todas as colônias francesas e que em sua maioria haviam sido anteriormente controladas pelo regime de
Vichy. Após a libertação, tornou-se primeiro ministro do Governo Provisório Francês até 1946 quando
renunciou. Em 1958, fundou a Quinta República Francesa sendo seu primeiro Presidente de 1959 a 1969.
26
Tendo isso em vista, se essa obra, com o mesmo conteúdo, tivesse sido publicada
em outro contexto, na década de 50, 60, possivelmente não geraria tanto alvoroço. Carlos
Lacerda ressalta que “O Autor admite, insistentemente, que a sua proposta contém o risco
de estar ultrapassada. Onde o referendo tiver resultado negativo, a única alternativa será
a independência desses povos”. (LACERDA, 1974, p. 7). Essa consciência de Spínola,
de que possivelmente fosse demasiado tarde para trazer a público as suas teses, talvez
justifique de certa forma a sensação que temos ao ler Portugal e o Futuro acerca da
preocupação do autor em tornar o conteúdo da obra palpável, o que o leva a
constantemente repetir seus argumentos.
Além disso, embora acuse o regime de muitas vezes sustentar visões que não
correspondiam à realidade, o General acaba caindo inúmeras vezes na mesma armadilha.
Porque apesar de defender teses contrárias às defendidas pelo regime, Spínola não via a
possibilidade da existência de um Portugal sem o ultramar. Como resumiu Kenneth
Maxwell:
Analisando em retrospectiva, as propostas e a crítica do general Spínola
em Portugal e o Futuro parecem comedidas, mas a própria publicação
22
A publicação de Portugal e o Futuro contou com a autorização do superior direto de Spínola, Costa
Gomes (CEMGFA). Conforme mencionado anteriormente, mesmo antes dos problemas relacionados à
publicação da obra, Costa Gomes já possuía conhecimento do conteúdo da mesma. Ainda assim o General
autorizou a publicação, alegando não ter visto nela cunho político.
27
Apesar de não inovar com suas teses, a empreitada de Spínola não deixa de
consistir em um ousado desafio, que era o de trazer aos portugueses um pouco de realismo
e ao regime um pouco de flexibilidade ao sugerir uma terceira via para o problema. Além
do mais, ao analisar o conteúdo da obra compreendemos que “[...] não era tão curioso
quanto parecia a princípio o fato de um general lendário por sua bravura em combate
pedir o fim da era de heroísmo. [...]” (MAXWELL, 2006, p. 56).
Dito tudo isso, retomamos o nosso questionamento inicial. Teria sido a
repercussão da publicação de Portugal e o Futuro resultado de a obra ter sido escrita por
Spínola? Por óbvio, as implicações de Portugal e o Futuro na política portuguesa não
devem ser desconsideradas, afinal, como afirma Márcio Barbosa, “Duma penada pouco
brilhante declarava-se a queda do regime. O que, por sua vez, constituiu o prenúncio do
fim do Portugal do “Minho até Timor” e expôs um quase surreal império de derrotas.”
(BARBOSA, 2009, p. 155). Ainda assim as repercussões, os impactos e as implicações
que a obra causou não são a obra em si.
Deste modo, defendemos que a obra não pode ser analisada em função das suas
implicações, e que sequer podemos presumir que tais implicações fossem resultado das
intenções do autor. Afinal, o António de Spínola de Portugal e o Futuro é o Spínola da
Guiné, o Spínola que combateu em Angola em 1961, o Spínola que embora em muitos
momentos tenha se colocado ao lado do Salazarismo, a sua experiência no Ultramar o fez
mais fiel ao Império do que ao próprio regime. Ou seja, o António de Spínola de Portugal
e o Futuro, não é o Spínola do MDLP23 ou do contra golpe de 1975.
É desse ponto que partem a nossa hipótese e a nossa análise, dado acreditarmos
que a repercussão de Portugal e o Futuro foi resultado de uma série de fatores: 1) A
publicação ter acontecido no momento em que aconteceu, 2) ter sido de autoria de um
General de alto escalão e, principalmente, 3) devido ao fato de o seu conteúdo abordar
um assunto grave, a política oficial ultramarina, algo que até então consistia em um
23
O MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal) foi um movimento político criado após a
intentona de 11 de março de 1975, liderado por António de Spínola diretamente do seu exílio no Brasil,
embora suas estruturas se encontrassem sediadas em Madrid. O movimento tinha como objetivo combater
o avanço político do Partido Comunista em Portugal, algo considerado pelo seu líder como extremamente
gravoso para o País. Foi a partir do MDLP que Spínola manteve-se politicamente ativo mesmo estando
exilado. O movimento foi oficialmente dissolvido em 31 de maio de 1976.
28
grande tabu em Portugal, embora fosse assunto corrente no exterior. Análises que não
levem estes três principais fatores em consideração podem acabar por conduzir para um
caminho que desvirtuem o autor e a obra do seu próprio contexto de escrita, inclusive
atribuindo a ambos, intenções que não lhes pertencem.
Conforme pudemos ver anteriormente, em seu processo de escrita António de
Spínola debateu largamente o conteúdo de sua obra com os seus homens na Guiné. Ou
seja, ainda que Spínola tenha sido quem de fato publicou a obra, a ideia não era nova,
muito menos exclusivamente sua. O General foi quem a compilou e, devido à sua
colocação dentro do governo, conseguiu autorização e a publicou, acabando por arcar
com todas as responsabilidades da mesma, embora aquelas fossem ideias correntes dentro
das forças armadas portuguesas.
Ao propormos uma análise das teses expostas em Portugal e o Futuro,
consideramos primordial buscar compreender o contexto do autor quanto à escrita da sua
obra, tendo em vista que compreender o contexto de escrita contribui para que possamos
elucidar a escolha e utilização por parte do autor de conceitos e expressões, bem como a
forma como o mesmo emprega determinados mecanismos linguísticos. No caso de
Portugal e o Futuro, entender o contexto da escrita nos ajuda a compreender a utilização
e o peso de algumas expressões. Por exemplo, quando o General se refere a uma consulta
final à Nação e questiona: “por que não?”, questionamento complexo tendo em vista a
estrutura do próprio Estado Novo. Além do mais veremos que se as teses publicadas por
Spínola em 1974 pareciam absurdas, em 1961, quando começaram a ser delineadas pelo
seu autor, não o seriam.
Ou seja, quando buscamos compreender a utilização de determinadas expressões
linguísticas e o seu suposto significado intencional, precisamos ter em mente o
significado que tais expressões tinham no contexto do autor e para o próprio autor, a fim
de atingirmos algum entendimento sobre o significado que a obra teve em um
determinado contexto histórico. Caso contrário, cairemos na armadilha em que Spínola
foi acusado de cair, a de cometer inaceitáveis anacronismos, o que no nosso caso perpassa
pela compreensão de que embora Portugal e o Futuro consista em uma análise, denúncia,
proposta, ainda assim não se pretendia com a obra pôr em curso uma revolução que
derrubaria o regime e em consequência o império, elemento inconscientemente (?) tão
defendido pelo seu autor.
Compreenderemos também que, apesar de em alguns momentos as palavras de
Spínola atingirem realmente um tom quase “esotérico”, filosófico e nitidamente utópico,
29
Antes de expor as suas teses, António de Spínola busca esclarecer os motivos que
o levaram a publicar Portugal e o Futuro, e considerar tal obra como um dever que não
deveria se omitir de cumprir. Mas afinal de contas o que teria levado o General a publicar
um manifesto, mesmo quando a publicação de obras políticas era uma ação vetada a um
militar em exercício? Segundo Spínola, a obra era uma resposta à irredutibilidade dos que
deveriam juntos salvaguardar a Nação.
Conforme relato do autor em sua obra de 1978, País sem Rumo: Contributo para
a História de uma Revolução, a publicação de Portugal e o Futuro não foi a primeira ou
sequer a única tentativa de “consciencializar” o Presidente do Conselho de Ministros
24
António de Oliveira Salazar (1889-1970), foi um advogado, professor universitário e estadista português,
responsável pela implantação e consolidação do Estado Novo em Portugal. Salazar manteve-se no cargo de
Presidente do Conselho de Ministro de 1933 até 1968, quando um acidente doméstico o afastaria das suas
funções permanentemente.
30
sobre a situação Ultramarina. O General do monóculo defende ter por inúmeras vezes
trazido ao conhecimento de Caetano e do próprio Salazar a sua opinião sobre a crise
colonial, sendo totalmente ignorado em todas essas tentativas. Spínola teria
compartilhado a sua opinião sobre o Ultramar português pela primeira vez em abril de
1961, em uma carta enviada a Salazar25 na qual o General diz criticar frontalmente
aspectos da política ultramarina adotada pelo governo.
Nesta carta, Spínola teria afirmado que estava junto com o exército, na opinião de
que era necessário renovar os slogans do governo com o intuito de melhorar a situação
internacional. Isso se devia ao fato de tais slogans já não corresponderem à realidade já
que, nas palavras de Spínola, a “Revolução Nacional não continuava”, o que tornava falso
o slogan “A Revolução Nacional Continua”. Na carta Spínola diz ser
[...] indispensável, é vital, remodelar, renovar, sair dos quadros
artificiosos e desacreditados que, não a ideia de V. Exª, mas a ineptidão
dos homens que a servem foi criando e mantendo. [...]
Torna-se indispensável renovar o processo de mobilização de valores,
chamando gente fora do círculo viciado da actual “União Nacional”
[...]. (SPÍNOLA, 1978, p. 18).
25
Ver anexo II com excerto da carta enviada por Spínola ao Presidente do Conselho António de Oliveira
Salazar, em 1961.
26
Convite que diz ter recebido com surpresa, tendo em vista a carta enviada a Salazar em 1961.
31
Se o relato de Spínola for fiel ao dialogo ocorrido entre ele e Salazar nesta
audiência, percebemos já estarem presentes conceitos que Spínola utilizaria em Portugal
e o Futuro, tais como Nação Pluriestatal, Estados Membros e uma Comunidade onde seus
membros seriam voluntariamente integrados em função dos laços de solidariedade
estabelecidos entre eles. Podemos também começar a questionar que conceito de Nação
Spínola tinha em mente ao começar a estruturar a sua tese para o Ultramar, ou então quais
são as bases pra a comunidade que o autor projetava como solução viável para o problema
ultramarino. Em resumo, nas palavras do General:
Com plena consciência do trágico desfecho para que o País caminhava,
nunca encobri o meu pensamento sobre o magno problema do Ultramar
Português. Assim, em Maio de 1968, abordei perante o Prof. Salazar a
questão da incompatibilidade entre o estatuto português vigente e as
tendências do mundo moderno, e advoguei a evolução para uma
solução de raiz federativa, que se traduziria na construção de uma
Nação formada por estados solidários através dos benefícios que lhes
adviriam da Comunidade em que voluntariamente se mantivessem.
(SPÍNOLA, 1978, p. 248, grifo nosso).
Como pudemos observar, a base da política que seria posta em prática na Guiné e
posteriormente trazida a público em Portugal e o Futuro já se fazia presente em Spínola
e, como defendido por ele em 1968, já teria sido devidamente exposta ao Presidente do
Conselho antes mesmo de o General assumir o cargo de Governador da Guiné. Entretanto,
ao final da exposição a qual Salazar teria prestado uma silenciosa e penetrante atenção,
Salazar teria apenas alterado um pouco o seu semblante, dado um discreto acenar de
cabeça, agradecendo pela sinceridade e sem comentar as ideias expostas, limitando-se a
dizer: “É urgente que embarque para a Guiné.” (SPÍNOLA, 1978, p. 22).
Apesar de aparentemente António de Spínola ter novamente sido ignorado pelo
Presidente do Conselho, este interpretou o silêncio de Salazar como uma abertura à
evolução. O fato o levou a afirmar posteriormente que Salazar estaria com ele na sua
posição sobre a questão ultramarina.
Em sua obra de 1978, o General reitera a importância de se dar ênfase a essa
entrevista, a fim de esclarecer que a política que seria chamada de entreguista pelos
setores metropolitanos mais conservadores, teria encontrado receptividade em Salazar.
De qualquer forma a vontade de Salazar foi feita e poucos dias após a audiência, Spínola
embarca para Bissau, “[...] dando início – em conformidade com os princípios enunciados
– a uma política de promoção que viria a inverter os termos da Guerra na Guiné”
(SPÍNOLA, 1978, p. 23).
Tendo como base o relato de Spínola, podemos considerar que o General era um
homem diferente em diferentes contextos. O António de Spínola de 1968, já nutria a
convicção de que a promoção social era algo fundamental para contrabalancear a força
da Guerrilha, o que acabará por conduzir toda a sua ação como Governador-Geral.
Spínola já não partilhava das ideias defendidas por Salazar ou sequer concordava com o
modelo de unidade da Nação defendida pelo governo. Ou seja, parte da “opinião” que
Spínola tornaria pública em Portugal e o Futuro já estaria no General no contexto daquela
entrevista, como salientou Maria Inácia Rezola:
Salazar, que anos antes o enviara para Bissau, falhara completamente
as suas previsões. Vira em Spínola o “cabo de guerra”, o oficial
destemido que enfrentava o inimigo em tronco nu. Enganou-se. Quando
o chamou para dirigir os destinos da Guiné, Spínola era já um homem
diferente. A experiência da guerra trouxera-lhe uma nova visão sobre a
mesma e sobre o próprio futuro das então províncias ultramarinas. A
guerra só se resolvia quando se encontrasse uma solução política para a
mesma. (REZOLA, 2005, p. 63).
34
Desde o início, como podemos ver pelo improviso27 proferido por Spínola em sua
chegada na Guiné, o General tinha em mente desenvolver uma estratégia que fosse além
do campo militar e envolvesse também questões econômicas, sociais e políticas. A
estratégia do novo Governador-Geral teria sido em grande medida “[...] fruto da sua
experiência de guerra em Angola, esta estratégia rapidamente dá os seus frutos: em 6
meses deixam de se ouvir explosões em Bissau e, pouco depois, pode falar-se em
pacificação em quase todo o território.”(REZOLA, 2005, p. 45). Ter aceitado o convite
para Governador-Geral da Guiné certamente mudou para sempre a história do militar
27
Os discursos de Spínola são de fato um elemento importante para a estratégia propagandística que ele
colocará em prática na Guiné, além de nos auxiliarem a compreender a evolução, maturação e consolidação
do pensamento do General, conceitos que estarão na base de Portugal e o Futuro e são presença constante
nos discursos proferidos por Spínola na Guiné. Os discursos, falas e improvisos de Spínola durante o
período que esteve na Guiné, encontram-se compilados na obra Por Uma Guiné Melhor.
35
pois, “[...] se em Angola ganhara o estatuto de herói, agora, na Guiné ascende a mito.
[...].” (REZOLA, 2005, p. 46)28.
Se, com a entrevista mencionada, Spínola acreditou terem as suas ideias
encontrado alguma receptividade em Salazar, meses depois, com a sua substituição por
Marcello Caetano29 no cargo de Presidente do Conselho, as perspectivas do General em
relação às suas teses mantiveram-se positivas. Em 29 de Novembro, após entrevista com
Caetano, Spínola afirmaria em discurso que:
Regresso a Bissau completamente integrado no pensamento do
Governo Central e com o apoio correspondente à autorizada “palavra
de ordem”, ontem claramente expressa pelo Senhor Presidente do
Conselho, quanto ao problema da Guiné. Palavra de ordem já
concretizada, através dos respectivos Ministérios, em oportunas e
adequadas decisões que nos permitem reforçar o dispositivo de defesa
da Província e acelerar o ritmo da sua promoção económico-social.
(SPÍNOLA, 1970, p. 38).
28
O seu desempenho leva o então Brigadeiro Spínola a ser promovido ao posto de General por escolha, em
4 de julho de 1969, em pleno desenvolvimento das suas atividades na Guiné.
29
Marcello José das Neves Alves Caetano (1906-1980) foi um jurista, professor de direito e político
português. Em 1968, substituiu António de Oliveira Salazar no cargo de Presidente do Conselho de
Ministros, onde se manteve até o 25 de Abril de 1974.
36
Apesar dos bons auspícios, e embora o General defenda ter inúmeras vezes
esclarecido ao Presidente do Conselho o seu pensamento sobre a solução do problema
ultramarino, chegando a afirmar em uma das entrevistas com Caetano que o “[...]
presidente do Conselho, era o Português que melhor conhecia o meu pensamento sobre o
Ultramar [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 1978), à medida que Spínola coloca em prática as
suas políticas na Guiné, as diferenças entre este e Caetano tornam-se cada vez mais
evidentes.
Essas diferenças deviam-se ao fato de Spínola ter afirmado que na Guiné se viu
totalmente convencido de que, militarmente, o caminho para um futuro próspero de
sobrevivência da Nação passaria obrigatoriamente pelo imediato restabelecimento da paz,
afinal, Portugal lidava com uma “guerra subversiva”, que o próprio Spínola resume como
uma “guerra total”. Conforme Spínola esclarece, por mais que a população quisesse ser
indiferente, não poderia ser e não poderia ser tratada como tal, pois diferente dos conflitos
clássicos, nesse tipo de guerra as populações seriam fator poderoso. Ainda que não fosse
um fator decisivo, só triunfaria o lado que tivesse a população ao seu favor, dado que o
povo se reuniria com o lado que lhe oferecesse maiores benefícios.
Com isso em mente, António de Spínola deu início na Guiné a um intenso
programa de promoção social e melhoramento de estruturas a fim de conquistar as
populações locais, que acaba por ficar conhecido pelo lema “Por uma Guiné Melhor”, e
se tornaria o ponto essencial da sua atuação na Guiné. À luz desse lema, Spínola investe
em educação, saúde, ampliação de redes sanitárias, melhorias das condições de trabalho
e de salários. Além disso, o General fazia questão de se fazer presente nas cerimonias e
inaugurações desses projetos e obras públicas por toda a província.
Neste contexto de ação na Guiné, em um trabalho solicitado por Caetano sobre a
estruturação política do país com vistas a revisão da Lei Constitucional, Spínola teria
novamente trazido ao conhecimento do Presidente do Conselho a sua opinião sobre a
questão ultramarina. Segundo relato do General, o documento intitulava-se “[...]
‘Algumas ideias sobre a estruturação política da Nação’, que aliás viria a constituir a base
do livro Portugal e o Futuro. [...]” (SPÍNOLA, 1978, p. 65), onde Spínola defendia como
solução uma transição para um sistema federativo que denominava de Comunidade Luso-
Afro-Brasileira.
O Governador-Geral da Guiné tinha a convicção de que “[...] realizar a unidade
no esquema então vigente era um mito e que, portanto, o problema do Ultramar teria de
37
30
O primeiro desses congressos ocorreu no verão de 1970, onde são definidos os princípios básicos da
promoção social. Posteriormente, em maio de 1971 tratou-se do desenvolvimento econômico, em julho de
1972 se debateu uma possível regionalização das estruturas e, no último congresso, em maio de 1973, diante
do agravamento da situação política e militar, Spínola acaba focando na reconversão e unificação das forças
disponíveis.
38
31
CAOP – Comando de Agrupamento Operacional, responsável pela organização das ações militares.
32
O PAIGC (Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo Verde) foi o principal partido
envolvido na organização da luta pela independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Foi fundado em
Bissau, em 1956, por Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral, Júlio de Almeida, Fernando Fortes,
Elisée Turpin (inicialmente como PAI, Partido Africano da Independência). Em 3 de agosto de 1959, ocorre
o Massacre de Pidjiguiti, que acaba por dar forte impulso ao PAIGC e à causa independentista. A partir
disso, passa a incluir Cabo Verde em sua luta, assumindo a forma como é usualmente conhecido (PAIGC).
Em setembro deste mesmo ano, o partido monta uma base militar em Conacry, território vizinho
comandado pelo Presidente Sekou Touré. O conflito armado na Guiné tem início em janeiro 1963 com o
ataque ao aquartelamento de Tite. (REZOLA, 2005).
33
A má organização das tropas portuguesas diante de um PAIGC que revelava uma crescente superioridade
militar, inclusive possuindo armamentos superiores aos portugueses, leva a que as forças portuguesas
progressivamente perdessem o controle de várias partes da Guiné, entre elas a região conhecida como Chão
Manjaco. (REZOLA, 2005).
39
do PAIGC ocorrem em pleno mato, em sigilo. Segundo Rezola, “[...] refira-se que um
dos objetivos da missão chão manjaco era a integração da guerrilha nas Forças Armadas
portuguesas.” (REZOLA, 2005, p. 48). Conforme o General Spínola:
[...] desde o princípio de 1970 e com conhecimento do Governo de
Lisboa, estabelecera os primeiros contactos com os chefes da guerrilha
do PAIGC. Nesses contactos gizara-se, desde logo, um plano que previa
a transformação das forças de guerrilha do PAIGC em Unidades
Africanas das Forças Armadas Portuguesas e a nomeação de Amílcar
Cabral para o cargo de Secretário-Geral da Província, que exerceria
paralelamente com o Secretário-Geral em exercício, conforme orgânica
sugerida e a promulgar para o efeito. (SPÍNOLA, 1978, p. 26).
34
Os três majores assassinados foram: Passos Ramos, Magalhaes Osório e Pereira da Silva, não
encontramos informações quanto aos guias africanos que os acompanhavam.
35
Ahmed Sékou Touré (1922-1984) foi um político africano, presidente da República da Guiné de 1958 até
a sua morte em 1984.
40
36
Leopold Sedar Senghor nasceu em 9 de outubro de 1906, na cidade costeira de Joal, no Senegal. Filho
de comerciantes, foi em 1928 estudar em Paris, ingressando na Sorbonne, onde permaneceu de 1935 a 1939.
Senghor foi o primeiro africano a concluir uma licenciatura nessa universidade, escritor e pai da Negritude,
um movimento literário que exaltava a identidade Negra, valorizando a cultura africana em detrimento da
europeia. Tendo isso em vista, consideramos ser a vida política de Senghor, sem dúvidas, inseparável da
sua vida literária. Foi presidente do Senegal de 1960 a 1980. Segundo Camille Scholl, Léopold Sédar
Senghor era “[...] um conciliador entre os interesses de uma África Ocidental francófona e de França, pensa
a nação e o nacionalismo como uma conciliação – simbiose – e defende uma independência política sem
descolonização no âmbito cultural. Ele pensa o colonialismo como uma etapa necessária para o
desenvolvimento da África Ocidental – sobretudo a partir da ótica da colonização francesa – e protege em
seu discurso a “sociedade colonial” e seus valores, ou seja, pretende conservar a maneira com que os
colonizadores deram forma ao território (a AOF) e à sociedade. (SCHOLL, 2018, p.138)
41
37
Spínola reconhece que a ação de Senghor seria movida pelos interesses que este teria em estabilizar a
situação na Guiné, tendo em vista os benefícios para o seu próprio país.
38
Para um melhor entendimento desse diálogo entre Spínola e Caetano, ver a página 191 da obra publicada
por Caetano em 1974, Depoimento.
39
Ao questionar se Caetano preferia uma derrota militar na Guiné ao invés de uma saída negociada, António
de Spínola tem em mente os acontecimentos na Índia portuguesa em 1961 (em 18 de dezembro de 1961, as
forças armadas indianas invadem os territórios portugueses na Índia), sobretudo a forma como a perda de
Goa repercutiu sobre os militares portugueses. Ver Capítulo II: 2.2.1.
42
Spínola acreditava que a proposta era clara o suficiente para não suscitar
diversidade de interpretações ou especulações e considerava o prazo de 10 anos, em
princípio, como razoável, tendo em vista que o cessar-fogo diminuiria as despesas com a
defesa militar e a pressão internacional, dando tempo suficiente para que Portugal pudesse
alterar o curso dos fatos e conduzi-los a uma evolução mais favorável, preparando as
opiniões e salvaguardando o prestígio nacional. Ainda assim, naquele momento o mais
importante na visão do General não seria a forma como isso se daria, mas se a proposta
de Senghor seria ou não aceita nos seus aspectos essenciais, a fim de optar ou não por
43
novos encontros, tanto quanto a que nível se dariam esses contatos, com intuito de se
encontrar uma solução que ambos os lados aceitassem.
E mesmo que muitos pudessem vir a considerar determinativos certos argumentos
contra a proposta do Presidente Senghor, e embora fosse complexo, dificilmente Portugal
teria outra oportunidade de poder aceitar conversações “[...] ainda em posição de
superioridade. E, assim, não poderemos deixar de ser conduzidos a optar pela aceitação
da proposta do Presidente Senghor, que, todavia, oferece ainda outros ângulos de análise
sobre os quais nos deteremos.” (SPÍNOLA, 1978, p. 34). Caso Portugal optasse por
prosseguir com as negociações, tornava-se absolutamente necessário, segundo o General,
“[...] definir claramente as bases gerais desse eventual entendimento, que julgo possível
nas seguintes condições de certo modo sugeridas pelo Presidente Senghor.” (SPÍNOLA,
1978, p. 38).
A proposta de Senghor se assentava em três princípios básicos: (1) a garantia de
uma progressiva autonomia administrativa e da preparação de quadros africanos a todos
os níveis, (2) progressiva participação dos guinéus na administração dos seus interesses
e, finalmente, (3) a aceitação do princípio da livre opção do povo da Guiné quanto ao seu
estatuto político, através da forma usual de consulta pública a realizar em um prazo
mínimo de 10 anos (SPÍNOLA, 1978, p. 38) 40. Na visão do Governador-Geral da Guiné,
tal proposta consistiria em um programa coerente com base no princípio universalmente
aceito da autodeterminação dos povos, o que divergia frontalmente da postura defendida
pelo Governo Português. Entretanto, como pudemos observar ao longo desse trabalho, a
postura de Spínola em relação ao Ultramar divergia frontalmente do discurso oficial do
Governo, ao menos desde 1961.
A resposta ao parecer veio em 30 de maio, em um documento intitulado
Observações ao Parecer. O documento dividia-se em cinco partes: A primeira era relativa
40
A proposta apresentada por Senghor, e que Spínola passará a defender abertamente, pautava-se na
experiência e no papel que Senghor teve na independência do Senegal, ao mesclar o proposto por De Gaulle
para as colônias francesas com a perspectiva de Senghor. No caso Francês, o General Charles de Gaulle,
na Conferência de Brazzaville em 1944, admite a possibilidade de evolução das colônias francesas no
continente africano, desde que dentro da esfera de influência da comunidade francesa. Esse status se
alteraria apenas no final da década de 50. Quando, em 1958, autonomias foram concedidas, o governo de
De Gaulle dá a liberdade às colônias francesas, deixando em aberto para as lideranças coloniais optarem
por uma autonomia dentro da comunidade francesa ou uma independência total. A constituição “[...] previa
que, as antigas colônias podiam guardar o seu estatuto dentro da República francesa ou então em um prazo
de quatro meses, se tornarem departamentos da França, seja em grupos ou individualmente [...]”(DIALLO,
2011, p.43), o que acaba por dar origem à Federação do Mali. Em três meses a federação tem oficialmente
um fim. Indo contra aos planos de De Gaulle, em 20 de junho de 1960 os líderes Léopold Senghor e Modibo
Keita proclamam a independência da “Federação do Mali”, dando origem a dois estados independentes o
Mali e o Senegal. (SCHOLL, 2020).
44
de Caetano, Spínola já havia visto seus anseios para a “África portuguesa” frustrados,
inúmeras vezes, o que de certa forma justifica as inúmeras críticas que o mesmo teceria à
postura adotada por Caetano e pelo regime português ao longo de todo Portugal e o
Futuro. Diante desse quadro, António de Spínola sentia-se na obrigação de trazer a
público as suas teses sobre o Ultramar português, ainda que para isso tivesse que escrever
um livro. Portanto, o General responde com um livro porque, segundo ele, os seus apelos
anteriores foram totalmente ignorados.
São com essas palavras que António de Spínola inicia Portugal e o Futuro, com
a finalidade de deixar claro que a sua escrita partiu de uma “razão”, uma “resposta” a
imperativos extremos: “Com efeito, responde-se com um livro a uma solicitação estética
que o seu autor deseja ver corporizada [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 13). Deste modo, como
podemos observar, o próprio autor reivindica que a sua obra seja interpretada a partir das
razões que a determinaram: a resposta que o General tencionava dar ao que considerava
como obsessões políticas, inadmissíveis sobretudo na situação crítica que Portugal
enfrentava. Nas palavras do autor, “[...] ponderámos maduramente as questões suscitadas
pelos problemas que tivemos de enfrentar ao longo de um mandato de governação de uma
província ultramarina. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 20).
Para Spínola, Portugal e o Futuro era uma resposta que vinha sendo construída
desde 1961, quando o contato com a guerrilha o fez começar a duvidar que a guerra
pudesse ser ganha militarmente, dúvida que a sua experiência como Governador-Geral
da Guiné transformou em certeza. Ou seja, a obra de Spínola deve ser lida tendo em vista
o contexto em que foi escrita, o qual se inicia em 1961 e se estende até 1973, quando o
livro em sua versão final foi entregue a editora. O período antecede a publicação, em 22
de fevereiro de 1974, e por consequência é anterior ao 25 de Abril.
Para Quentin Skinner, quanto interpretamos textos “[a] fim de percebê-los como
respostas a questões específicas, precisamos saber algo da sociedade na qual foram
47
escritos.” (SKINNER, 1996, p. 13). Diante disso, a fim de alcançar uma maior
compreensão sobre os significados da obra, torna-se primordial ter em vista em que
contexto o autor estava inserido, assim como quais atividades o mesmo desenvolvia
enquanto a obra era escrita. No caso de Spínola, importa-nos a forma como ele se
relacionava com a retórica colonial defendida pelo Estado Novo, a qual o autor contesta
ao longo de sua obra. Além disso, ao analisar a obra tendo em vista o pós-Revolução do
Cravos, precisamos considerar que o contexto já era outro, portanto seria outra a forma
como os indivíduos e o próprio autor (que de imediato torna-se Presidente mas depois
vira exilado político) se relacionava com estes conceitos.41
Além disso, se o livro se constitui em uma resposta, podemos considerá-lo em
oposição ao que o próprio Spínola afirmaria posteriormente, que Portugal e o Futuro não
foi fruto de uma escrita despretensiosa e seu conteúdo vai além da mera opinião de um
General condecorado. Qualquer que fosse a intenção de Spínola ao publicar a obra, o
autor de fato possuía uma intenção ao fazê-lo. Diferentemente da forma como ela é
comumente aceita, não foi resultado único e exclusivo do fato de Spínola ter percebido
não haver lugar para ele no Governo de Caetano. Embora essas circunstancias
influenciassem o tom da escrita do General, a obra em si resulta da certeza que ele tinha
de que suas teses representariam uma terceira via que poderia salvaguardar a unidade
portuguesa como ele a entendia e defendia42.
Embora a obra possua um nítido sentido, interesse e objetivo político, ao buscar
trazer a público as suas teses, conforme verificamos no segundo parágrafo da obra, “[...]
responde-se também com um livro aos imperativos do direito à informação, que a
crescente complexidade do mundo contemporâneo situou na primeira linha dos direitos
humanos.” (SPÍNOLA, 1974, p. 14). Portanto, não cremos que Spínola desejasse derrubar
por completo as estruturas do regime, a ver-se que, segundo Barbosa, Spínola se opunha
ao ideário e aos métodos do regime e não ao regime (BARBOSA, 2008). Todavia,
41
Para Quentin Skinner esse era um exercício importante a fim de compreender e interpretar os textos. A
partir desse exercício “[...] Podemos começar assim a ver não apenas que argumentos eles apresentavam,
mas também as questões que formulavam e tentavam responder, e em que medida aceitavam e endossavam,
ou contestavam e repeliam, ou às vezes até ignoravam (de forma polêmica), as ideias e convenções então
predominantes no debate político. [...]” (SKINNER, 1996, p.13). Para Skinner, os textos por si só não são
capazes de nos dar esse nível de compreensão, sendo necessário ter conhecimento dos conceitos e do
vocabulário político que está para além do texto. No caso de Portugal e o Futuro, isso significa
compreender a forma como o autor se insere no contexto e se utilizada dele, seja Português ou Africano,
Político, Militar e, por que não?, intelectual.
42
Desde já deixaremos claro que sempre que for feita referência ao “todo português” ou à “unidade
portuguesa”, refere-se ao Portugal pluricontinental, ou seja, estarão inclusos os territórios ultramarinos.
Essa é a unidade portuguesa entendida por António de Spínola.
48
Como podemos perceber, Spínola reconhecia os efeitos que sua obra poderia ter
na opinião pública, assumindo desta forma o risco de perturbar o equilíbrio que diz reinar
em torno da mesma e inclusive contando com isso como forma de alterar o status quo
vigente. O autor assume que sua resposta era grave porque a situação era grave. Assim,
inúmeras vezes ao longo de Portugal e o Futuro, Spínola visa deixar clara a incapacidade
que o regime vinha demonstrando em encarar com realismo e audácia a crise com a qual
Portugal se debatia. Há décadas já não existia uma visão equilibrada sobre os fins que
vinham tomando o Ultramar Português, sendo exatamente essa a questão que o autor
buscava resolver.
Na verdade, essa é a grande polêmica de Portugal e o Futuro. Spínola via em suas
teses a opinião equilibrada que faltava ao regime e, ainda assim, a posteriori afirmaria
que embora defendesse uma necessária reestruturação política de Portugal, ele nunca teria
pretendido derrubar o regime ou sequer desencadear uma revolução armada. E, suas
palavras, seus objetivos se resumiriam a:
[...] apenas consciencializar o Povo Português e os seus governantes
para a necessidade de se reformular a política nacional à luz de um
conceito evoluído de Estado democrático de Direito que se
harmonizasse com as exigências sociais do mundo moderno e, em
especial, de se adoptarem novas soluções para o problema ultramarino
a tempo de se evitar o desfecho trágico que cada vez mais se
aproximava. [...] (SPÍNOLA, 1976, p. 10).
Ou seja, embora a obra não trouxesse nada de novo, o General “[...] considerava
sua ação um ato patriótico[...]” (MAXWELL, 2006, p. 56), ao visar “consciencializar” o
49
Povo Português de que, diferente do que se imaginava, talvez o governo já não fosse
capaz de resolver tudo por eles, conclusão a que Spínola chegara ao longo de sua
experiência política e militar no Ultramar. Essa experiencia e a insistência do Estado
Novo Português em recalcar os próprios dramas teriam impulsionado o General a dar
início à escrita de um livro, por crer ser necessário dar um passo à frente, um passo
progressivo que gerasse possíveis novas iniciativas. Posteriormente, embora soubesse ser
tarde para a estruturação da sua proposta, Spínola reconhece que "[...] o grito de alerta era
exigido pela minha consciência, pois, apesar de tudo, sonhava ainda na edificação de um
Mundo de raízes portuguesas [...]” (SPÍNOLA, 1978, p. 250). Ou seja, conforme suas
próprias palavras, foi com um livro que Spínola pretendeu dar “[...] um início de resposta
a um desafio que se mantinha desde 1961.” (SPÍNOLA, 1978, p. 250).
António de Spínola defendia ser a sua obra uma ferramenta esclarecedora por visar
esclarecer o “todo português” sobre a real situação portuguesa, a fim de findar a crise que
se enfrentava. Afinal, mesmo que internamente reinasse em Portugal o imobilismo social,
externamente o mundo evoluía. Portugal não acompanhava essa evolução ao adotar
medidas que esse “mundo” já não era capaz de aceitar, o que acabava não apenas
conduzindo a um isolamento e a um descredito crescente entre os vizinhos europeus,
como também conduzia a Nação ao distanciamento da unidade que tanto se dizia
defender.
Apesar disso, Spínola pouco ou nada esclarece sobre quais seriam essas medidas
ou de onde retira os poucos dados que apresenta, não deixando claro o que fundamenta a
sua opinião, para além de sua experiência pessoal política e militar. Neste sentido, o
General apresenta as suas teses de maneira vaga, apesar do tom grave que aparenta
pretender imprimir nas mesmas por considerar primordial a sua publicidade. Segundo
Spínola, a publicação de sua obra resultava também de uma exigência social, referindo-
se “[...] à exigência social de difundir ideias, obedecendo então ao impulso generoso de
não deixar morrer com o autor o que pode aproveitar à Humanidade.” (SPÍNOLA, 1974,
p.13).
Com o livro, Spínola afirmou buscar repensar e reformular estratégias, trazendo o
tema para um debate construtivo. Em suas palavras, “[...] afigura-se-nos de elementar
lógica o recurso ao debate construtivo, ao diálogo aberto à participação nacional e até –
por que não? – à consulta final à Nação. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 16). Mas para isso
impunha-se que os portugueses tomassem consciência da situação portuguesa no mundo
50
e de que lugar Portugal ocupava neste mundo. Apenas assim se poderia avaliar os
caminhos possíveis sem se deixar intimidar por posições de irredutibilidade.
Este é o primeiro momento em que Spínola fala em consulta final à Nação, algo
que não poderia ocorrer sem um amplo esclarecimento de ideias para que os portugueses
pudessem escolher livremente e de forma adequada (conforme veremos à frente, isso era
primordial para a proposta de Spínola). Assim, esse teria sido o motivo para o nascimento
de Portugal e o Futuro e seu autor encontrava-se convencido de que as teses expostas em
sua obra seriam a única solução viável naquele contexto para se salvaguardar a unidade
portuguesa.
A escrita e publicação de sua obra representava para Spínola uma ação vital, um
dever cívico, um dever moral: o de trazer esse debate à vida de todos os portugueses. Em
suas palavras: “Neste último caso o livro surge como instrumento de um debate que não
deve ser evitado [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 14). O General afirma buscar dar uma resposta
aos que, “[...] agitando a bandeira de princípios que fizeram história, mas que o tempo
arquivou e o mundo de hoje não aceita [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 19), acabariam por
conduzir o ”País à desintegração pela via revolucionária” Deste modo, com a obra
Portugal e o Futuro pretendia-se dar uma resposta aos intolerantes que, segundo Spínola,
destruíam a unidade nacional que pretendiam defender: “[...] resposta enfim aos que cegos
à potencialidade do espírito lusíada, desprezam quanto podem construir-se sobre as bases
do nosso secular esforço, e que, em nome de utopias, pretendem reduzir o País a um conto
sem expressão no contexto das nações.” (SPÍNOLA, 1974, p. 19).
futuro próspero que Portugal ansiava por construir, sem que com isso se tornassem menos
portugueses. Pelo contrário, se deveria atingir a verdadeira síntese nacional.
Em Portugal e o Futuro, António de Spínola alega crer não ser necessário uma
análise histórica detalhada para sustentar a afirmação de que Portugal vivia, sem dúvidas,
“[...] uma das horas mais graves, senão a mais grave, da sua História, pois, nunca as
perspectivas se apresentaram tão nebulosas como as que se deparam à geração actual.
[...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 21). O General tencionava esclarecer que a crise que Portugal
enfrentava era totalmente diferente das crises enfrentadas anteriormente, pois as crises
anteriores teriam sido essencialmente crises de independência política, enquanto aquela
seria muito mais profunda, já que a arquitetura portuguesa estava em causa.
Ao assegurar que as crises anteriores eram eminentemente crises de
independência, o General afirma não estar retirando-lhes a devida importância, mas sim
buscando evidenciar que aquela crise ameaçava o que ele chama de “essência da Nação”.
Tal essência, assim como a segurança física e o bem-estar social e material, nunca antes
estiveram em tão grande risco. Nas palavras do General, a “essência da Nação” era:
[...] o conjunto de vivencias e tradições culturais correspondentes a uma
forma de agir e de reagir num quadro ético-social tacitamente
conformado, a segurança colectiva proporcionada pela solidariedade
nacional e os traços subconscientes de ligação humana entre nacionais
– esta jamais esteve em causa [...] (SPÍNOLA, 1974, p. 22).
adotado pelo regime talvez nos ajude a compreender melhor a forma como Spínola
conduz as suas críticas ao regime por este se afastar da suposta “essência da Nação”. De
modo geral, segundo Torgal, a Nação dentro do Estado Novo era entendida como um
conceito resultante da junção de corpos, um coletivo que formava um todo unitário.
Portugal se tratava de uma Nação “[...] com um carácter histórico e tradicional que se
afirmava num território inalienável. [...]” (TORGAL, 2009, p. 469).
Segundo Spínola, em todas as épocas o Povo Português lutou por independência
política para que a Nação fosse um Estado e para que as suas leis fossem nacionais.
Porém, a luta naquele momento era outra, além de ser muito mais grave. Afinal, segundo
Spínola, “[...] o fenómeno migratório é bem o reflexo da crise actual, pois prova à
evidência que a independência política deixou de ser a meta do cidadão comum. [...]”
(SPÍNOLA, 1974, p. 23). Isso tornava o quadro muito elucidativo, pois diante da crise
os portugueses preferiam deixar a Nação do que lutar pela independência da mesma. Nas
palavras do General “[...]este quadro revela bem a crise de sobrevivência social que
atravessamos, crise que se projecta nos traços da essencialidade da Nação.” (SPÍNOLA,
1974, p. 24).
A solução para a crise que afligia a Nação apenas surgiria após os portugueses
conseguirem se desvencilhar das dúvidas “entre o que seremos e o que deveríamos ser”
(SPÍNOLA, 1974), algo que, segundo o General, só seria possível se os indivíduos
participassem com pleno direito das decisões da nação. Afinal, apenas assim
estabeleceriam laços e reforçariam outros e, caso contrário, acabariam por procurar no
exterior o que não encontravam em Portugal, resultando em uma alarmante “deserção
psicológica”. Entre as conclusões que deveriam surgir desta plena participação dos
indivíduos nas decisões da nação, a questão primária consistia em “[...] saber quais devem
ser os objetivos do Estado – por tal se entendendo a Nação politicamente organizada –
não tanto em termos éticos como em termos pragmáticos.” (SPÍNOLA. 1974, p. 29).
Spínola dedica uma parte da escrita de sua obra a uma tentativa de esclarecer quais
seriam os objetivos do Estado como sociedade política, partindo da noção de que seria
obrigação inalienável do Estado conduzir em coletivo os fins dos seus membros, sem que
estes precisassem buscar estas realizações em outras sociedades. Nas palavras do General:
[...] nesta conformidade, os objetivos do Estado só podem ser o de
subsistir e o de prosperar, sendo ao mesmo tempo a sua prosperidade –
consubstanciada na prosperidade dos seus membros – uma das
condições básicas da própria subsistência; [...] (SPÍNOLA, 1974, p.
29).
53
43
As aspas em realidades permanentes são adotadas pelo autor, que não as adota ao se referir a valores
essenciais.
56
uma confusão entre o que se foi e o que se desejava ser, confusão que afastava a Nação
dos objetivos de coexistência e sobrevivência. Em suas palavras:
Entendemos, com efeito, que há valores essenciais a preservar como
suporte das modernas sociedades individualizadas; valores que
decorrem do desejo de os povos transformarem em realidade
comunitária permanente os seus padrões culturais, necessidades e
aspirações. Deste modo, a “realidade permanente” será a própria
existência dos povos, deixando de ser um dogma casuístico do presente
e do passado para se transformar em realidade a preservar à custa da
vivência de valores essenciais – esses sim, permanentes, embora não
imutáveis, pois o seu conteúdo encontra-se em constante evolução. [...]
(SPÍNOLA, 1974, p. 112-113).
realidade permanente. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 114). Como exemplos disso, Spínola
enumera o feudalismo, as monarquias absolutas, a Inquisição e inclusive os impérios, os
quais teriam feito o seu tempo. Porém, se tivessem sido tomados como realidades
permanentes, as sociedades não teriam chegado à era da dignidade humana por estarem
presas em um imobilismo estrutural44. Segundo Spínola:
E, sendo assim, os perigosos campos a que a sua aceitação nos pode
conduzir, e o imobilismo estrutural que a definição sugere, parecem
aconselhar, de facto, a que não se baseie um sistema de vida na
preocupação de coerência com pretensas “realidades permanentes”,
mas antes com valores actuais e de aceitação geral. (SPÍNOLA, 1974,
p. 115).
44
Como vimos António de Spínola tinha a consciência da censura que poderia recair sobre a sua obra, como
de fato ocorreu pouco tempo após a publicação. Diante disso, ao afirmar que nenhum sistema político
poderia ser considerado como uma realidade permanente, Spínola estaria afirmando que, a exemplo do
feudalismo, o salazarismo já havia “feito o seu tempo”. Fato é que o autor faz uso de vários artifícios
retóricos ao referir-se aos setores existentes em Portugal, possivelmente fosse esse mais um deles. Além
disso, crendo ou não que o Salazarismo já tivesse “feito o seu tempo”, Spínola criticava veementemente o
que denominava de “imobilismo estrutural”.
58
glória dos feitos de armas e da epopeia pela epopeia, tendo sido sem dúvida, nas palavras
do General:
[...] uma gesta gloriosa que Camões imortalizou e que transformou o
índico e o Atlântico num vasto mar português. Orgulhamo-nos, muito
legitimamente, desses feitos épicos. Dilatámos a Fé e o Império; e
século e meio depois sacudimos o jugo de Castela que, com a derrota
do Prior de Crato em Alcântara, dilatara até Lisboa as fronteiras do
velho império de Carlos V. Outros dois séculos volvidos, voltámos a
cobrir-nos de glória impedindo que Napoleão Bonaparte estendesse até
nós o seu império. Celebrámos, recentemente, a libertação da Europa
da dilatação de outra fé e de outro império; e empenhamo-nos hoje na
defesa da nossa forma de viver contra a expansão da fé e do
imperialismo que sopram do Oriente45. Proclamamo-nos actualmente
um povo pacífico, nada mais desejando do que viver em boa harmonia
e em paz com os vizinhos; mas se o tivéssemos sido há cinco séculos
não estaríamos no mundo como estamos. Quais são, pois, as nossas
“realidades permanentes?” (SPÍNOLA, 1974, p. 115-116).
Esse apanhado histórico que Spínola faz46 tinha como intuito demonstrar o quão
glorioso foram os feitos portugueses no Ultramar, contrapondo com a visão de Portugal
como uma Nação constituída por um Povo pacifico, visão muito comum naquele
contexto. O General ainda faz uma crítica a essa suposta postura pacifica portuguesa, ao
afirmar que “[...] se o tivéssemos sido há cinco séculos não estaríamos no mundo como
estamos [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 116) e prossegue:
Dirigiu-se para o Oriente o nosso esforço de conquista e dali vieram as
riquezas e os feitos que nos tornaram grandes entre os grandes. A África
foi para nós um mercado e um apoio para as esquadras que sulcavam os
mares; ali deixávamos os nossos missionários e implantávamos
feitorias, respeitando os naturais com os quais celebrávamos acordos e
mantínhamos relações de que é expressivo exemplo o reino do Congo.
Dois tipos de penetração caracterizaram, pois, essa época de expansão:
no Oriente e no Norte de África, a conquista; e hoje já não estamos no
Norte de África e quase não estamos no Oriente, que conquistámos
pelas armas; mas estamos na África Central e Meridional, que
conquistámos pelo coração. Qual destas são as nossas “realidades
permanentes?” (SPÍNOLA, 1974, p. 116).
45
António de Spínola era profundamente anticomunista. Para ele, o comunismo era mais um totalitarismo
que deveria ser rejeitado. O General via a necessidade de barrar o avanço comunista que ameaçava a cultura
e a fé ocidental e que acabaria por conduzir o mundo ao colapso. Em 27 de agosto de 1975, em entrevista
concedida a Stan Lehman, da United Press Internacional, no Rio de Janeiro, o General afirma que “[...] se
Portugal se transformar num país comunista, estará dado o primeiro passo não só para a comunização da
Europa, como para a do Mundo Ocidental. [...]” (SPÍNOLA, 1976, p.283).
46
Esse recuo no passado, segundo Fernando Catroga, foi estratégia amplamente explorada pelo Estado
Novo, tanto nos discursos, como na mídia em geral. Tudo confluía “[...] para se exaltar, de uma maneira
mais subliminar ou mais explícita, a gesta dos Descobrimentos, exploração historicista que visava
desencadear efeitos de autoestima e de revivescência nacional, de modo a caldear-se, como nas
comemorações anteriores, o fomento do patriotismo com o sonho imperial [...].”(CATROGA, 2005, p.136).
59
Ao longo da obra, Spínola demonstra mais de uma vez sua contrariedade não
apenas ao conteúdo do Estatuto do Indigenato, mas sobretudo em relação ao Acto
Colonial, ficando clara a sua identificação com o espírito dos reformadores de 1822. Um
dos artigos mais importantes do Acto Colonial era o artigo 2° do Título I, que defendia
ser da “essência orgânica da Nação Portuguesa” desempenhar a função histórica de
possuir e colonizar domínios ultramarinos48. Já a “reforma” ocorrida em 1822 tinha como
uma das principais características a suposta defesa dos direitos e deveres individuais de
todos os cidadãos portugueses. De modo que o General deixa a entender ter sido o Acto
Colonial resultado da pressão externa exercida sobre Portugal. Diante desta pressão a
47
Todos esses questionamentos em relação a quais seriam as “realidades permanentes”, os “valores
essenciais” ou a “verdadeira essência da Nação” consistiam na verdade em questionamentos que Spínola
fazia ao conceito de Nação imposto pelo Salazarismo, inclusive mostrando-se fortemente contrário ao Acto
colonial e ao Estatuto do Indigenato. Apesar disso, Spínola não rompe com o regime. Conforme veremos
no capítulo III, ao propor uma federação de Estados, uma Comunidade dos países de fala portuguesa, a
exemplo da Commonwealth Britânica ou da Comunidade Francesa proposta por Charles de Gaulle, e
principalmente que essa fosse uma questão amplamente debatida e votada, Spínola se afasta da própria
constituição corporativa do Estado Novo Português, bem como da constituição ultramarina e da
interpretação feita pelo regime das teorias que circulavam naquele contexto.
48
Decreto Lei n° 22:465, de 11 de abril de 1933.
60
Nação teria se distanciado dos “valores essenciais” que deveriam ser defendidos e que
constituiriam a sua base. Segundo Spínola:
Pois é este tão controverso conceito de fidelidade a “realidades
permanentes” que vem perturbando a vida nacional; e se a sua análise
tivesse sido oportunamente feita, mais amplamente rasgados se
encontrariam agora os nossos horizontes. São os próprios factos a
demonstrar-nos essa viciosa confusão estabelecida em torno de
quimeras do passado. (SPÍNOLA, 1974, p. 118).
Deste modo, uma das explicações para esta suposta fidelidade tocava no cerne da
própria consciência portuguesa, a qual, na visão do General, seria “[...] sem dúvida
alguma conservadora e, portanto, fortemente fechada a uma tal ordem de soluções.”
(SPÍNOLA, 1974, p. 118). Isso acabava por se debater também com posições irredutíveis
do lado oposto do conflito, movido pelo que o General denominou de “nacionalismo
desfocado”, defendendo um monolitismo político que era perigosamente utópico.
Na visão do nosso autor, esse seria o quadro com que a Nação se deparava. Diante
desse quadro o regime pretendia agir com base em um ideário que estaria gravemente
sobrepujado por um conceito de “[...] uma vocação ultramarina geradora de um todo
monolítico como ‘realidade permanente’ a defender a todo transe [...]” (SPÍNOLA, 1974,
p. 119), sem atentar-se que nesta defesa acabava-se por comprometer a própria
sobrevivência da Nação. Ou seja, Spínola está questionando nada mais nada menos do
que um dos principais pilares do nacionalismo português de até então: a vocação
portuguesa para estar no ultramar. Conforme veremos, em muitos momentos o General
acaba por cair nas armadilhas que ele próprio acusa a Nação de ser vítima.
49
A maneira como António de Spínola correlaciona a crise ultramarina portuguesa no século XX com a
independência do Brasil será devidamente abordada no capítulo II.
64
50
Apesar de António de Spínola reconhecer encontrar-se Portugal em um isolamento crescente em função
da “filosofia” que guiava a permanência portuguesa no continente africano, como veremos no capítulo II:
2.1.2, o crescente reconhecimento por parte da Organização das Nações Unidas (ONU) da legitimidade dos
movimentos anticoloniais e a pressão crescente que esta instituição exercia sobre Portugal geravam um
nítido ressentimento no General, por este entender as ações da ONU como uma perseguição a um Portugal
enfraquecido, fazendo-o a afirmar terem os ideais dessa instituição se transformado num amontoado de
mitos. (SPÍNOLA, 1974, p.74).
65
Spínola concluí não ser o “facto nacional” que estava em discussão, mas sim o
que uma determinada corrente de um pensamento historicamente recente pretendia que o
“facto nacional” fosse. Mas o que seria esse “fato nacional” ao qual o General tanto se
referia e ao qual atribuía tanta importância? “Fato nacional” para o General seria “[...] a
inequívoca resultante de uma vontade colectiva que se afirmasse superior à de quantos se
nos opõem; [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 105).
Ao longo da leitura de Portugal e o Futuro, como podemos perceber, no que tange
à participação portuguesa nos rumos da Nação, Spínola vai sendo cada vez mais explícito
em suas críticas e seus posicionamentos, chegando a afirmar que devia “[...] tomar-se
66
como a nossa vontade colectiva, só como tal reconhecida quando o povo a exprimir
civicamente pela via legal [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 105). Apenas a via legal seria segura,
de modo que o General afirma reconhecer haver uma grande diferença entre o que as
massas aplaudem e o que cada cidadão sente na sua secreta intimidade. Spínola avança e
defende que “[...] quando, na era actual os governos quiseram auscultar sinceramente a
opinião dos seus povos, recorreram ao referendo de voto secreto e individual.”
(SPÍNOLA, 1974, p. 106).
Sendo assim, após Spínola avançar em relação ao que seria esse fato coletivo e
sobre qual a melhor forma de defini-lo, o mesmo avança ao questionar quem deve defini-
lo, de modo que, para falar em vontade coletiva seria necessário definir primeiramente se
essa coletividade é a coletividade de nove milhões de portugueses ou a de vinte e cinco
milhões de portugueses51. Considerar os nove milhões consistiria em uma grande
contradição, culminando na negação da verdadeira fisionomia do País que se pretendia
impor à opinião mundial, resultando em “[...] revelar-se uma face imperialista que não
desejamos seja a nossa [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 106).
A grande contradição para o General consistiria na impossibilidade de exigir que
o mundo aceitasse e respeitasse o “todo” nacional, quando nem mesmo os próprios
portugueses efetivamente tinham a oportunidade de fazê-lo. Além de contraditório este
fato iria contra a própria constituição. Spínola nos recorda que se a constituição fosse
levada em consideração, a grande maioria dos cidadãos portugueses residiriam em África,
de modo que não levar isso consideração ao buscar definir um fato nacional acabaria por
fundar, como vinha se pretendendo, um artificioso conceito de “fato nacional”,
prejudicando a análise do problema, sendo impossível esperar que externamente essa
atitude fosse pacificamente aceite. Segundo o General, deveria pois “[...] que unir em
torno do que é efetivamente colectivo, com exclusão de apelos à unidade em torno do
que, afinal, é meramente dogmático. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 107).
Posta a questão nestes termos, se chegaria a uma concepção renovada de
patriotismo, um patriotismo baseado na determinação dos membros de uma sociedade
51
Quando Spínola fala em vontade coletiva, inclui as populações que viviam no continente africano. Além
disso, assim como veremos no capítulo III: 3.1.2, essa vontade coletiva seria definida a partir do sufrágio
direto e universal. Ou seja, para António de Spínola a única forma de construir uma Nação politicamente
sólida e que fosse internacionalmente aceite era a partir da ampla adesão de “todos os portugueses”. É nesse
sentido que o General afirma ser necessário desmontar o mito de haver razões históricas que mantinham o
“todo nacional” unido, visão até então defendida pelo Estado Novo Português. Novamente, assim como
salientado anteriormente, Spínola se afastava da via defendida em Portugal e se aproximava da via
francófona, sobretudo aquela defendida por De Gaulle na conferência de Brazzaville, onde o General
tencionava acima de tudo estabilizar o sistema e preservá-lo das influências externas.
67
política em preservar a sua existência, voltando-se para o futuro. Sendo deste modo
necessário compreender a ligação “[...] ‘indivíduo-sociedade-política’ já não em termos
de um patriotismo chauvinista, mas antes de uma crescente participação efectiva na vida
social, participação dirigida à solidariedade dos cidadãos [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 109).
Para Spínola, essa participação seria a base do patriotismo e suporte da sua existência no
mundo, a única forma de acabar com as contradições que condenavam a Nação.
Além disso ao analisar a posição portuguesa no mundo, o General concluí que os
portugueses atravessavam “[...] um período de tremenda confusão entre ‘ser’ e ‘dever’,
fruto de uma utopia cultivada por uma minoria a quem tanto aproveitou, e servida por
idealistas honestos mas cegos, porque os há sempre ao serviço de uma causa, qualquer
que ela seja. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 133). Essas “minorias”, ao ignorar que os tempos
já eram outros e guiar a Nação com base em quimeras e sonhos de grandeza, além de
mascararem os verdadeiros interesses, acabavam comprometendo gravemente o futuro
nacional.
Para o General, era o urgente a necessidade de se reformular o ideário nacional,
convertendo-o em fórmulas suscetíveis de transformarem-se em uma ideologia forte,
transparente e unificadora, definindo uma estrutura nacional que atendesse às
necessidades da Nação e permitindo assim a sua inequívoca aplicação. Caso contrário, se
não se eliminasse as incertezas e as dúvidas, não se rompesse com os mitos e não se
enfrentasse as realidades, não se alcançaria os princípios que verdadeiramente uniriam os
portugueses. Nas palavras do General, “[...] não se unirão os portugueses em torno de
princípios cuja contradição é evidente, nem tão-pouco em torno de relíquias do passado
[...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 133). Aquele era um momento de abdicação, uma abdicação
necessária em favor da autêntica unidade da Nação:
[...] jamais pode consentir-se que seja momento de consagração de
mitos, pois só sobre a realidade viva do que efetivamente somos
poderemos encontrar os fundamentos de uma política nacional que
conduza a soluções iniludivelmente portuguesas para a situação crítica
que vivemos. [...] (SPÍNOLA, 1974, p. 133).
Diante da exposição das suas ideias, António de Spínola afirmou não estar entre
os que pensavam que o conflito que afligia Portugal fosse apenas resultado da intervenção
de interesses ocultos. Pelo contrário, visava esclarecer que a posição portuguesa no
mundo e as pressões exercidas sobre a Nação eram resultado direto das inúmeras
contradições que a cercavam. No entanto, essas contradições eram habilmente exploradas
por estes “interesses ocultos”, tornando essencial não apenas a eliminação das mesmas,
68
mas sobretudo a compreensão de que o problema que afligia a Nação era um fenômeno
novo que nunca seria superado se a Nação permanecesse ligada aos mitos e dogmas do
passado. Segundo o General, Portugal seria totalmente capaz de adotar fórmulas
evoluídas, sendo universalista sem preterir necessidades vitais do povo português,
permanecendo no mundo sem trair responsabilidades históricas,
Haveremos de continuar em África. Sim! Mas não pela força das armas,
nem pela sujeição dos africanos, nem pela sustentação de mitos contra
os quais o mundo se encarniça. Haveremos de continuar em África.
Sim! Mas pela clara visão dos problemas no quadro de uma solução
portuguesa. (SPÍNOLA, 1974, p. 228).
publicação, o General tencionava trazer a público uma terceira via capaz de conduzir a
Nação a um futuro próspero. Entretanto, antes de abordar a fundo a proposta, era
primordial para Spínola que os portugueses tomassem consciência da situação portuguesa
no mundo. Afinal, apenas assim as suas teses fariam algum sentido e os portugueses
seriam capazes de avaliar os caminhos possíveis sem se deixarem intimidar pelas
“posições de irredutibilidade” que teriam relegado a Nação à posição desprivilegiada em
que se encontrava.
52
O conceito de Consciencialização amplamente utilizado por António de Spínola era corrente entre os
intelectuais africanos no contexto da escrita de Portugal e o Futuro. A exemplo da obra Consciencialização
na Literatura Caboverdiana, publicada em 1963 pelo político caboverdiano Onésimo Silveira, e da obra
Consciencism, publicada por Kwame Nkrumah em 1964. Esse conceito é relevante e complexo e a ele
caberiam novas pesquisas.
53
Quando Spínola escreve e publica Portugal e o Futuro, as obras ainda passavam pela censura, o chamado
“exame prévio”.
54
Na obra de 1976, Ao Serviço de Portugal, António de Spínola discorre sobre as questões que teriam
influenciado no estilo de escrita adotado em Portugal e o Futuro e alega ter sido a sua escrita condicionada
pela posição política que ocupava no governo e pela natureza da própria ditadura. Isso evidencia-se na
seguinte fala: “Quem leu com atenção os quatro volumes que publiquei sobre o meu governo na Guiné e o
meu último livro, Portugal e o Futuro, tendo em mente as limitações a que tive de submeter-me para
escrever algo com um mínimo de probabilidade de ser publicado, certamente terá deduzido, em toda a sua
extensão, até onde teria chegado se outros fossem os condicionalismos.” (SPÍNOLA, 1976, p.221).
71
55
O período pós-Segunda Guerra Mundial foi marcado por um forte impulso à integração econômica devido
aos danos deixados pelo conflito. Em 1950, por meio do documento que ficaria conhecido como Declaração
Schuman, o político francês Robert Schuman propõe colocar a produção franco-alemã de aço e carvão sob
uma autoridade comum. A proposta foi acolhida e, na primavera de 1951, foi firmado em Paris o tratado
que criava a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), o que favoreceu o intercâmbio de
matérias-primas e resultou em um maior dinamismo da economia europeia. Em 1957, com a assinatura do
Tratado de Roma, cria-se a Comunidade Econômica Europeia (CEE), dando forte impulso para uma
cooperação mais ampla que incluísse questões econômicas, sociais e políticas, assim como para a formação
de um Mercado Comum Europeu que permitisse a livre circulação de bens, serviços, pessoas e capital.
Inicialmente, a Comunidade Econômica Europeia era formada por 6 Estados: Alemanha, Bélgica, França,
Itália, Luxemburgo e Países Baixos. Apenas em 1986, após 8 anos de negociações, Portugal se tornaria
formalmente membro da CEE.
56
Spínola menciona a EFTA European Free Trade Association e a acusação feita aos empresários
portugueses de não terem sabido tirar vantagem dos anos que se encontravam inserido na associação, o que,
para o General, seria uma acusação injusta. Na verdade, para que as oportunidades fossem devidamente
aproveitadas, primeiramente Portugal precisaria superar as suas próprias limitações econômicas e
administrativas, assim como de mercado e concorrência. A EFTA foi um bloco econômico Europeu,
fundado por Suécia, Reino Unido, Portugal, Dinamarca, Noruega, Suíça e Áustria, que tinha como objetivo
defender os interesses econômicos comuns através da criação de uma área de comércio livre de impostos o
que serviria para fomentar as trocas internacionais entre os países membros. Portugal manteve-se na EFTA
até a sua adesão à CEE em 1986.
72
Spínola visava alertar que o problema naquele contexto era muito diferente e
consideravelmente mais grave pois, conforme mencionamos anteriormente57, diante da
crise os portugueses acabavam optando por deixar a Nação. Nas palavras do autor:
[...] O português, quando movido pelo aguilhão da sobrevivência, já não
hesita em trocar as leis do seu país pela sujeição à lei estrangeira,
prescindindo portanto dos seus direitos de cidadania em favor do seu
bem-estar, pois temos de reconhecer que a atitude anímica mais
generalizada é a tendência para procurar fora o que dentro se não acha,
desde que para tanto concorram oportunidades e possibilidades. [...]
(SPÍNOLA, 1974, p. 23).
57
Vercapítulo I, página 56.
73
continente africano, Portugal passou a possuir um dos maiores exércitos ativos da Europa,
agravando cada vez mais a situação, sobretudo do ponto de vista econômico.
Nos primeiros anos da guerra a população masculina diminuiu em 3,1 %,
afetando principalmente a população ativa entre 15 e 64 anos. Antes de 1960, a imigração
girava em torno de 33 mil pessoas. Em 1965, esse número já tinha subido para 117 mil e,
em 1970, para 173 mil. Ao todo, mais de 40% acabavam saindo do país de maneira ilegal,
sendo que, entre 1960 e 1974, 1,43 milhões de pessoas deixaram Portugal (LOFF, 2007).
Para Spínola, além da questão puramente econômica, a emigração tinha um custo ainda
mais alto para a Nação: o fenômeno da “deserção psicológica”. Segundo o autor:
[...] A deserção psicológica da nova geração é alarmante, pois ainda que
se conserve agrupada em torno de uma organização política, não é essa
a sua opção mental. E, sendo assim, está-se perante o primeiro sintoma
do risco em que é posta a essência da Nação tal como a definimos. Mas
não é só isso. As centenas de milhar de emigrados criam seus laços nas
novas comunidades, integram-se nelas, adoptam-nas, e acabam
assimilados. Os esforços para conservar o traço de união à Pátria-Mãe
resultam duvidosos; e muitos voltam ao fim de largos anos, mais
turistas em férias do que filhos pródigos regressados, revelando nos
hábitos e na forma de viver que, no fundo e de facto, já não são
Portugueses, pois neles se perderam os traços da sua Nação. Este quadro
revela bem a crise de sobrevivência social que atravessamos, crise que
se projecta nos traços da essencialidade da Nação. (SPÍNOLA, 1974, p.
23-24).
Spínola esclarece ter sido essa crise de sobrevivência social um dos principais
motivos que o levaram a escrever Portugal e o Futuro. Para ele, a Nação portuguesa
estava pagando um alto custo pela irredutibilidade do regime. Portugal de fato teve ao
longo da guerra duas gerações de jovens arrastados pelo regime para o continente africano
a ver-se que cerca de 920 mil homens são mobilizados nos treze anos de conflito (LOFF,
2007). Ou seja, quando Spínola critica os custos que a guerra no Ultramar estava trazendo
para os portugueses, não se refere exclusivamente aos custos econômicos58, mas
sobretudo aos custos humanos e psicossociais com os quais Portugal vinha arcando.
Diante desse quadro Spínola projeta que, em uma perspectiva otimista, caso fosse
triplicado o esforço de crescimento e duplicada a taxa de desenvolvimento anual, em dez
anos Portugal atingiria nível econômico e social em relação idêntico aos seus vizinhos
europeus. Além disso impunha-se que o investimento global crescesse “[...] à taxa de 50%
ao ano, o que corresponde, grosso modo, a uma elevação das despesas de investimento
para ordem dos 40% da despesa nacional. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 35). António de
58
Em 1970, os gastos com a guerra, já consumiam 45% do orçamento do país.
74
Spínola admite que os dados processados por ele não possuíam exatidão, embora
servissem para traçar um panorama sobre uma possível evolução econômica dentro do
que seria humanamente possível. Para isso, todos os recursos seriam necessários e pelos
quais teriam de “[...] adoptar-se critérios de optimização fundados em imperativos que
hoje são, para o País, verdadeiras razões de Estado.” (SPÍNOLA, 1974, p. 35).
A estratégia adotada deveria ter como objetivo ultrapassar o estado em que
Portugal se encontrava. O General de fato se referia a uma estratégia que compreendesse
todas as parcelas da Nação, a fim evitar a “deserção psicológica” na metrópole e
possibilitar que cada cidadão português no ultramar escolhesse livremente se desejava ou
não permanecer junto a Portugal. Além disso, ao longo de toda a análise feita por António
de Spínola sobre a situação interna portuguesa, a crítica ao imobilismo do regime torna-
se flagrante. Deste modo por mais “atrasada” que fosse a sua proposta no sentido de
salvaguardar a unidade portuguesa, o General – diferente da postura adotada pelo regime
– mostrava-se plenamente consciente de que Portugal deveria acompanhar as mudanças
do mundo se quisesse continuar politicamente forte. Neste sentido, consideramos ímpar
uma frase utilizada pelo historiador Fernando Rosas59, e que resume o que teria levado à
ruína do que denomina de “Caetanismo” e que vai ao encontro da postura adotada por
Spínola. Segundo Rosas, com a repressão é possível “[...] conter um movimento, uma
insatisfação, pode-se conter uma greve, pode-se responder política ou policialmente a isto
ou aquele fenómeno, mas não se pode vencer o espírito de uma época [...]” (ROSAS,
1998).
59
Em entrevista para a rádio antena 2, no dia 20 de fevereiro de 1998.
75
60
Importante recordarmos que em 1933 é aprovada a Constituição que assinala a entrada em um novo
período e marca formalmente o início do Estado Novo Português. Além disso, o Acto Colonial ao qual o
autor mostra-se contrário foi aprovado em 1930, ano em que, na visão do autor, teria ocorrido o erro que
condenava a Nação. Como veremos à frente, Spínola se identificava e se aproximava das teses defendidas
por políticos e intelectuais que, apesar de serem colonialistas, não eram necessariamente salazaristas. Por
exemplo, o General Norton de Matos (1867-1955) embora tenha sido secretário da Missão Diplomática
para Delimitação do Território de Macau em 1909, governador-geral de Angola entre 1912 e 1915, alto-
comissário de Angola entre 1921 e 1924 e Ministério das Colónias em 1915, foi também candidato à
Presidência da República em 1949. Ou seja, Norton de Matos era um opositor ao Estado Novo Português e
rejeitava o Ato Colonial de 1930. Em vista disso, muitos dos seus textos foram censurados e o General
adquiriu inúmeros inimigos declarados. (NETO, 2016).
76
61
Segundo Aurora Almada, apesar de o conceito de autodeterminação ter sido incluído na Carta das Nações
Unidas como “uma ideia genérica e indeterminada”, acabou se tornando um dos pilares daquela instituição,
que diante das crescentes manifestações anticoloniais foi progressivamente transformando a ideia em um
direito. A partir da década de 1960, com o início da guerra colonial e diante da inconformidade portuguesa
em relação à autodeterminação das suas colônias – ou províncias ultramarinas – a questão colonial
portuguesa passou a ser uma questão prioritária para a ONU. (ALMADA, 2017). Sobre o papel que a ONU
desempenhou no processo de deslegitimação da dominação colonial assim como a forma como esta
instituição vai aos poucos acolhendo os movimentos de libertação, recomenda-se a obra ALMADA,
Aurora. A Organização das Nações Unidas e a Questão Portuguesa: 1960 – 1974. Instituto de Defesa
Nacional, Lisboa, 2017.
62
Essa luta crescente possuía o apoio (em diferentes medidas) dos dois polos de poder: EUA e URSS. Isso
possibilitou que ocorresse a Conferência de Bandung, em 1955, e a de Belgrado, em 1961, eventos
fundamentais para a estruturação do chamado Bloco do Terceiro Mundo, uma articulação estabelecida entre
as antigas colônias africanas. Esse bloco começa a crescer e passa a ter participação ativa na Assembleia
Geral da ONU, o que acaba por fortalecer a oposição que condenava o colonialismo Português e leva a
comunidade internacional a intensificar a ofensiva contra o País, deixando-o em uma posição defensiva.
77
63
Na década de 30, após a publicação de Casa Grande e Senzala, Gilberto Freyre foi tido como comunista
e subversivo, chegando a ser considerado como um inimigo em Portugal. A obra não foi bem recebida pela
elite política do regime devido ao conflito entre a exaltação da miscigenação apresentada na obra e a
estrutura colonial portuguesa, Vero Ato Colonial de 1930. Sobre a recepção de Freyre na década de 30, ver
SKOLAUDE, Mateus. Raça e Nação em Disputa: Instituto Luso-Brasileiro de Alta Cultura, 1ª Exposição
Colonial Portuguesa e o 1º Congresso Afro-Brasileiro (1934-1937). Porto Alegre, Programa de Pós-
Graduação em História da PUCRS, (Tese de Doutoramento em História), 2016.
64
Segundo Claúdia Castelo, em Casa Grande e Senzala, sua obra inaugural, Gilberto Freyre teve como
objetivo de estudo “[...] a ‘condição colonial’ no Brasil dos séculos XVI e XVII, mais especificamente no
nordeste açucareiro, sob o regime de economia de plantação de base esclavagista, estruturada em torno da
casa-grande e da família patriarcal dirigida pelo senhor de engenho” (CASTELO, 2011, p.261). Porém,
Freyre já elencava as capacidades de miscibilidade, mobilidade e a aclimatabilidade como características
que tornavam os portugueses um povo singular para a prática da colonização: “[...] o ‘ajustamento hábil’
do português ao mundo tropical é explicado através de uma interpretação causalista da mentalidade e da
cultura portuguesas.” (CASTELO, 2011, p.262), Eram atribuídas ao colonizador português uma série de
características, tais como a plasticidade social, versatilidades, apetência pela miscigenação, ausência de
orgulho racial. Na obra O Mundo que o Português Criou, de 1940, Freyre alarga o seu campo de pesquisa
do Brasil para todas as regiões colonizadas pelos portugueses e justifica este alargamento afirmando que as
regiões colonizadas por eles constituíam uma unidade de sentimento e de cultura. Entretanto, o termo
Lusotropicalismo viria ser cunhado apenas na década de 1950.
65
Essa viagem foi feita a convite do ministro do Estado Novo, Sarmento Rodrigues, sendo totalmente
financiada e monitorada pelo regime Salazarista, (Freyre só viu o que lhe foi permitido). Iniciavam-se aí as
relações entre Gilberto Freyre e o Estado Novo português.
66
Nas conferências lidas em Goa “Uma Cultura Moderna: A Lusotropical” (Instituto Vasco da Gama,
novembro de 1951), e em Coimbra, “Em Torno de um Novo Conceito de Tropicalismo” (Universidade de
Coimbra, janeiro de 1952), essas conferências posteriormente foram reunidas e dariam origem ao livro Um
Brasileiro em Terras Portuguesas (1953).
78
67
A partir das anotações feitas ao longo dessa viagem nascem as obras Aventura e Rotina (1953), a já
mencionada Um Brasileiro em Terras Portuguesas (1953) e posteriormente Integração Portuguesa nos
Trópicos (1953) e O Luso e o Trópico (1961), onde Freyre sistematiza e amadurece suas ideias em torno
do legado da ação colonial portuguesa.
68
Interessante mencionarmos que essa “apropriação” não se dava exclusivamente por parte do regime.
Podemos observar a influência de Freyre nos Claridosos Caboverdianos, a exemplo de Baltasar Lopes, um
dos criadores da revista Claridade, que encontra em Freyre o subsidio teórico necessário para a sua
interpretação sobre a identidade caboverdiana. Entretanto, a viagem de Freyre em 1951 acaba abalando
essa relação devido às afirmações que Freyre fez após a sua passagem pelo arquipélago jogarem por terra
muitos dos argumentos que fundamentavam o modo de pensar daqueles intelectuais. Freyre critica o
exotismo caboverdiano e a utilização do crioulo, como podemos ver no seguinte trecho: “[...] Do mesmo
modo que me repugna o dialecto cabo-verdiano, agrada-me ouvir a gente de Cabo Verde falar o português,
à sua maneira, que é a maneira tropical, brasileira” (FREYRE, 1953, p.248). Ou seja, Freyre critica o
resultado demasiado africano da colonização em Cabo Verde, o que rendeu uma resposta de Baltasar Lopes,
a criticar as opiniões de Freyre e dizer não compreender como o sociólogo dizia admirar tanto “O mundo
que o português criou” se repugnava a língua falada em Cabo Verde, o Crioulo, que seria segundo Baltasar
Lopes a maior criação daquela ilha. Sobre este assunto recomendamos a leitura um capítulo de João Alberto
Costa Pinto, intitulado “Gilberto Freyre e a cultura nacionalista em Cabo Verde (1936-1956)”, onde o autor
analisa a decepção dos Claridosos com Gilberto Freyre. Ver PINTO, João Alberto Costa. Gilberto Freyre
e a cultura nacionalista em Cabo Verde (1936-1956). In: PAREDES, Marçal (Org.). Portugal, Brasil,
África: História, identidades e fronteiras. 2012, p. 111-119.
69
O conceito de Lusotropicalismo passou a ser conhecido e utilizado em Portugal, pelos autores e políticos
que enalteciam Gilberto Freyre por este ter percebido a benignidade que Portugal fazia a esses povos ao
coloniza-los. Ou seja, o Estado Novo passa a se aproveitar das teses e do prestigio de Freyre para
reelaboração e promoção da sua política colonial, as obras de Freyre chegaram a ser distribuídas pelas
79
Diante desse quadro, apesar das medidas cosméticas adotadas pelo regime, as
pressões sobre o colonialismo português aumentavam gradativamente. Para António de
Spínola, o cerne de toda a questão sobre a inserção de Portugal no Mundo devia levar em
consideração o espirito que havia presidido a Conferencia de São Francisco70 e que teria
dado à luz o documento que ficaria conhecido como Carta das Nações Unidas. Tal
documento, nas palavras de Spínola, teria tido como motivador “[...] o desejo sincero de
uma nova era para a Humanidade, que por essa via se pretendia preservar do flagelo da
guerra. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 78), marcando o início de uma nova era. As palavras
de Spínola reproduzem as sentenças que encontramos no próprio preâmbulo da Carta das
Nações Unidas, instituição criada com intuito de se atingir em coletivo o objetivo de
[...] preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas
vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à
humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na
dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens
e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a
estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações
decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional
possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores
condições de vida dentro de uma liberdade ampla. (ONU, 1945, p. 4).
António de Spínola reitera que se Portugal não se orientasse a partir dos rumos
definidos pela ONU, as hostilidades contra o país seriam totalmente coerentes, sobretudo
tendo em vista os objetivos que constavam na própria Carta das Nações Unidas e que
colidiam com a política colonial posta em prática por Portugal. Conforme vemos no
segundo parágrafo do Artigo 1º, que declara ser o objetivo das Nações Unidas
“Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de
igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas
apropriadas ao fortalecimento da paz universal;” (ONU, 1945, p. 8) e no terceiro
parágrafo, que aponta para o objetivo de “[...] promover e estimular o respeito aos direitos
humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou
religião” (ONU, 1945, p. 8)71. Deste modo, embora não tenha influenciado tanto no
missões diplomáticas, a fim de promover a ideia de que o colonialismo português era pautado pela
afetividade e trocas entre colono e colonizado.
70
Conferencia ocorrida em 26 de junho de 1945, em São Francisco (EUA), e marca a criação das Nações
Unidas, com a elaboração e assinatura do documento que ficaria conhecido como Carta das Nações Unidas.
A Carta foi assinada por representantes de 50 países, tornando-se com a sua ratificação em 24 de outubro
de 1945, o documento fundador e mais importante da Organização. Devido ao isolamento internacional,
Portugal não foi convidado para a conferencia de são Francisco.
71
Os artigos 55, 56 e o Capítulo XI da Carta das Nações Unidas tornam a abordar essas questões.
80
tocante à guerra, a ONU “[...] tornou-se, a partir de 1960, o principal campo de batalha
diplomática contra o colonialismo português. [...]” (PINTO, 2001, p. 20).
Diante disso, António de Spínola conclui que o grande desafio português em
relação a este novo mundo residiria em ser atual no século XX, em parecer o que de fato
Portugal era, caso contrário sempre enfrentaria hostilidades. Entretanto, o autor alerta que
embora tenha existido na origem da ONU e em seus princípios uma inegável
benevolência, naquela altura a organização gozaria de um crescente descrédito em função
de nada fazer para impedir as ações dos nacionalismos que acabavam por conduzir à
desagregação em função da perigosa tese de que “[...] cada povo tem o direito de defender
os seus interesses pela melhor forma [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 80).
Apesar disso, Spínola reconhecia não ser mais possível negar aos outros o que se
reivindica para si, ou seja, que devia-se, por coerência, reconhecer o direito dos demais
de defenderem os seus interesses, por mais que esses interesses colidissem com os
interesses portugueses. Ainda assim, o General denuncia que na ONU prevalecia a
vontade dos mais fortes em detrimento dos mais fracos, devendo-se assumir que os ideais
dessa instituição se transformaram num amontoado de mitos (SPÍNOLA, 1974). Nas
palavras do General:
[...] A razão fundamental desse descrédito é que a Organização é uma
criação dos homens e como tal eivada de todas as suas virtudes e vícios,
a cavar um fosso entre a nobreza dos princípios proclamados sob
cortinas de idealismo. Das micro-sociedades às sociedades de nações,
o mundo está cheio de indivíduos que escondem sob belos mantos as
suas torpezas, reveladas sempre que a cobiça alheia colide com a sua
própria. O mundo pode assim comparar-se a um vasto oceano e, tal
como ali, os peixes grandes continuarão a comer os pequenos apenas
pela simples razão de que os pequenos não podem comer os grandes.
(SPÍNOLA, 1974. p. 80).
72
Jean Omer Marie Gabriel Monnet (1888-1979), foi um político francês que, embora nunca tenha sido
eleito para cargos públicos, foi considerado por muitos como o arquiteto da unidade europeia (CEE).
73
O IV Plano de fomento, que deveria ser de 1974 a 1979 mas não teve prosseguimento após o fim da
ditadura, tinha como objetivos “[...] A ‘progressiva elevação e dignificação da pessoa humana dentro da
82
por este ter tomado como base o prazo limite da vigência do Tratado de Bruxelas74. O
General afirma que isso só seria possível se a OTAN75 de fato tivesse se constituído como
uma alternativa econômica para Portugal, sendo para isso necessário o reconhecimento
das posições estratégicas76 que Portugal possuía no Atlântico. Entretanto, Spínola recorda
que a defesa dessas posições divergia fatalmente da opinião dos parceiros portugueses na
OTAN77. Ou seja, nas palavras do General, “Os interesses que ditaram a OTAN parecem
assim sentir-se mais comprometidos do que defendidos com a nossa presença em África;
e nada mais inglório do que defender quem não quer ser defendido. [...]” (SPÍNOLA,
1974, p. 94).
António de Spínola reitera que essa situação toda teria levado algumas “vozes” a
sugerirem a exclusão de Portugal da OTAN78 e reconhece que, pela Aliança Atlântica,
também se encontrariam fechadas as portas de saída para o isolamento português,
afirmando ainda que “[...] será de recear que a importância da Aliança vá diminuindo face
aos rumos e perspectivas da política dos grandes blocos mundiais.” (SPÍNOLA, 1974, p.
94). Isso porque o General julgava insuficiente o apoio vindo dos membros da OTAN,
tornando-se evidente para ele que não se deveria esperar apoio dos seus “aliados
atlânticos”. Afinal, embora as posições geográficas e econômicas de Portugal bastassem
79
Golpe militar liderado pelo general Botelho Moniz, a fim de afastar Salazar do poder.
80
O Santa Maria era uma embarcação de luxo que fazia viagens regulares à América Central. A embarcação
saiu de Lisboa no dia 9 de janeiro de 1961, fazendo uma escala no porto venezuelano de La Guaira no dia
20, onde vinte membros da DRIL (Direcção Revolucionária Ibérica de Libertação) conseguem colocar em
prática um plano do assalto que denominaram de Operação Dulcineia. O grupo estaria completo no dia
seguinte com o embarque de mais três membros da DRIL acompanhados por seu comandante, o Capitão
Henrique Galvão (quem de fato teria orquestrado o sequestro), que embarcara clandestinamente em
Curaçau. O grupo tinha como objetivo conduzir o navio até a ilha de Fernando Pó, no Golfo da Guiné, onde
seria organizado um ataque a Luanda com intuito de constituir um governo revolucionário que contaria
com o apoio de um levantamento branco popular. Esse levantamento acabaria por contagiar, além das
demais colônias, a própria metrópole. O plano fracassa, deixando um morto, dois feridos e uma grande
repercussão internacional.
84
81
A partir de 1961, a fim de amenizar a pressão internacional e de apaziguar os ânimos coloniais, o regime
adota medidas em relação às “províncias”, levando, em 6 de setembro de 1961, à revogação do ESTATUTO
DOS INDÍGENAS PORTUGUESES DAS PROVÍNCIAS DA GUINÉ, ANGOLA E MOÇAMBIQUE.
Entretanto, apesar das reformas, diplomaticamente a situação continuou a se agravar, pois com a
repercussão da revolta angolana no plano internacional, os EUA passam a criticar mais abertamente as
políticas coloniais portuguesas. Além disso, em 1962 muito estados africanos já haviam aplicado sanções
econômicas a Portugal (PINTO, 2001).
82
Em Damão e Diu as tropas resistiram. A resistência em Damão chegou a durar 36 horas, um período
considerável em relação a Goa, onde a resistência foi quase nula.
83
Segundo Michel Cahen, em Moçambique, ao contrário de Angola, não houve revolta em massa, mas um
paciente trabalho político-militar da FRELIMO. (CAHEN, 1994).
85
e despender de tanto gasto não interessaria por simplesmente não fazer parte da filosofia
Soviética alterar aquele status em África. Ademais, a existência dessas tensões
favoreceria os interesses soviéticos.
Spínola sustenta ainda que os comunistas estavam sempre por detrás de todas as
oposições, com intuito de levar ao colapso os poderes estabelecidos, criando condições
para que a longo prazo se tornasse possível a implantação de regimes comunistas. O fato
de que o lado ocidental também apoiava os movimentos subversivos acabava por agravar
a situação portuguesa na África, já que aqueles viam a emancipação africana como algo
irreversível e buscavam atraí-los à sua órbita, com intuito de evitar que os países africanos
acabassem por cair nas órbitas soviética ou chinesa.
O General recorda que em 1961 Adlai Stevenson84 já havia definido qual seria a
diretriz política que os EUA adotariam para a África. Segundo ele, não se deveria esperar
a diminuição da ofensiva comunista enquanto ainda existisse a eminente polarização entre
brancos e negros, devendo-se desse modo oferecer auxilio para que se estabelecesse um
equilíbrio. Esse equilíbrio seria fundamental, pois, conforme Spínola assegura, “[...] toda
sociedade política contém em si mesma, o fim último que lhe permite existir [...]”
(SPÍNOLA, 1974, p. 76), desde que respeitada a conformação das sociedades, de modo a
integrar-se na comunidade universal. Nesse sentido, o autor reitera inúmeras vezes não
ser mais possível que as sociedades políticas sobrevivam de maneira hermética, por serem
os debates cada vez mais abertos e generalizados.
Com sua obra, Spínola defende buscar esclarecer o fato de não ser mais o
suficiente para uma Nação apenas existir, mas sim coexistir. Todavia, para que isso fosse
possível seria necessário se alinhar a esse contexto, o que implicaria em uma constante
revisão da sua estrutura interna e da sua dinâmica de continuidade histórica, sobretudo
para que as Nações Unidas aceitassem o país sem reticências. Deste modo, já não
adiantaria, na visão do General, apenas pretender impor ao mundo as razões que assistiam
Portugal, sendo que o caminho para a aceitação destas teses passaria pelo seu devido
ajustamento e pela síntese necessária que o contexto impunha. Uma síntese entre o
interesse nacional e a moral internacional dominante, o que, embora Spínola reconheça
ser um grande desafio, desafio maior seria para ele o de pretender não acompanhar a
renovação que embalava o mundo, o que seria o mesmo que minar a solidariedade
humana (SPÍNOLA, 1974).
84
Adlai Stevenson foi um político estadunidense filiado no Partido Democrata e candidato duas vezes à
presidência dos EUA.
86
Além disso o autor defende que a crise que Portugal enfrentava não era única e
exclusivamente resultado da repetição de um fenômeno, “a procura do equilíbrio mundial
de forças à custa dos territórios ultramarinos portugueses” (SPÍNOLA, 1974, p. 100).
Aceitar tal tese obviamente tornaria tudo muito mais simples. Entretanto, não seria este o
caso português, pois:
[...] há doze anos que se vem agravando o clima em que nos inserimos,
sem embargo do gigantesco esforço que vimos dispendendo. E também
nada parece existir que justifique a esperança de diferente ajuste entre
as grandes potências, conducente a um equilíbrio à margem das nossas
províncias ultramarinas; antes tudo indica que tal ajuste começa a
vislumbrar-se com menosprezo dos interesses nacionais. (SPÍNOLA,
1974, p. 100).
Sendo assim, a crise que assolava o mundo teria motivações econômicas que
levavam a condicionamentos ideológicos. Conforme Spínola, aquilo que era visto por uns
como uma crise poderia ser, na verdade, um sinal de mudança histórica:
Vivemos de facto num mundo em crise; crise que se manifesta em todos
os setores onde são postos em causa valores consagrados, estruturas e
instituições solidamente enraizadas, que num passado próximo
87
Para Spínola, essa mudança teria tido o seu início com a exploração do “espaço
interplanetário” que tornava modelos obsoletos. Isso incluía o modelo de colonialismo
adotado por Portugal, por ser algo completamente ultrapassado em um contexto onde os
interesses humanos já eram outros, um momento em que cada vez mais se reconheciam
os homens e cada vez menos as Nações. Nas palavras do General:
[...] Na verdade, ao dar-se o primeiro passo na conquista do espaço, a
dimensão universal reduz-se; e face a esse constante encurtar de
distâncias e rasgar de horizontes, não deverá surpreender-nos que
comece a ser posta em causa a balcanização do mundo herdada da Idade
histórica de que estamos a emergir – balcanização que os homens
reconhecem, tendendo a pôr-lhe termo, reagrupando-se em novos
espaços geo-morais, é certo, mas segundo uma ordem nova, irreversível
até à próxima viragem histórica e, por isso mesmo, incomportável pelos
modelos que vão caindo em obsolência. (SPÍNOLA, 1974, p. 67).
85
Em sua análise econômica, o autor privilegia a crise econômica metropolitana, conforme vimos
anteriormente.
89
na intervenção de uns sobre outros. Spínola alerta para o fato de que Portugal não se
encontrava sozinho no mundo, e principalmente que esse mundo não se resumiria ao
contexto europeu, tendo em consideração que para ele a Nação sequer era eminentemente
europeia. Partindo desse ponto, para o General a questão básica para a precária posição
portuguesa no mundo tinha raízes africanas e estaria diretamente relacionada à
divergência de interpretação sobre a “nova” posição dos povos africanos no mundo.
Em Portugal e o Futuro, António de Spínola considera ser essa tomada de
consciência, esse “despertar africano”, algo natural que há muito o Ocidente já tinha
consciência de que viria a ocorrer em algum momento. No entanto, essa realidade teria
sido totalmente ignorada, embora fosse
[...] perfeitamente previsível esta tomada de consciência africana e, para
ela, foi até veladamente chamada desde logo a atenção das potências
participantes na Conferência de Berlim pelo delegado americano, que
no seu comentário final salientava ser necessário o acordo das
populações aborígenes para que a teoria da ocupação efetiva pudesse
ser concretizada com garantia de permanência no tempo. [...]
(SPÍNOLA, 1974, p. 70-71).
Diante disso, António de Spínola defende que aquilo que os europeus chamavam
de caos africano era apenas uma crise natural decorrente do amadurecimento africano,
assim como durante séculos foi o caos europeu. Portanto o mapa da África, segundo o
86
A conferência de Yalta foi um conjunto de reuniões ocorridas, em 1945, entre os líderes das principais
potências das nações aliadas, com intuito de se discutir o fim da Segunda Guerra Mundial e a repartição
das zonas de influência entre o Oeste e o Leste.
90
mesmo, estaria longe de estar feito, assim como o da própria Europa não esteve ou, como
Hans Kohn e Wallace Sokolsky descrevem, na obra El Nacionalismo Africano:
Esta busca por um novo status requer um ajuste das atitudes sociais e
psicológicas existentes. Tal ajuste leva tempo e produz tensões críticas.
Os povos da Europa, Ásia e Américas passaram muitas vezes por
longos cataclismos, controvérsias amargas e lutas antes de se tornarem
nações integradas. (KOHN; SOKOLSKY, 1968, p. 18, tradução
nossa).87
87
No original: “Esta busqueda de nuevo status requiere um ajuste de las actitudes sociales y psicológicas
existentes. Tal ajuste toma tempo y produce tensiones críticas. Los pueblos de Europa, Asia y las Américas
han pasado a menudo por prolongados cataclismos, amargas controversias y luchas antes de llegar a
convertirse en naciones integradas.” (KOHN; SOKOLSKY, 1968, p. 18).
88
No original: “[...] las manifestaciones del nacionalismo difierem en forma preciable de acuerdo con las
circunstancias históricas de su surgimento, las tradiciones culturales y la estrutura social de los pueblos
implicados. [...]” (KOHN; SOKOLSKY, 1968, p.17).
91
89
Marcus Mosiah Garvey nasceu na Jamaica, em 1887. Cedo tomou consciência do racismo que afligia os
negros, iniciando a sua militância política aos 17 anos. Em 1914, funda a Universal Negro Improvement
and Conservation Association and African Communities League (Unia), que visava unir os negros em um
só povo com intuito de lutar em prol de seus direitos civis. Alguns dos seus principais Slogans eram “One
God, one aim, one destiny” e “Africa for Africans at home or abroad”. Garvey muda-se para os Estados
Unidos em 1916, angaria apoio dos negros do Harlem, em Nova York e, em 1921, forma a African
Orthodox Church.
90
Garvey representou, de fato, um importante divisor de águas para o pensamento pan-africanista, devido
a concentrar sua ideia em um projeto universal que unia política, educação, economia, cultura, militarismo
e até mesmo religião. Deste modo, edificada e conhecida a teoria, era chegada a hora de executar esse
projeto, que consistiria na construção dos “Estados Unidos da África”. Esse pragmatismo foi um fator
importante que levou o pensamento garveísta a se destacar como ponto fulcral de maturidade do pan-
africanismo no século XX.
92
91
William Du Bois (1868-1963) foi um norte americano nascido em 1868, em uma aldeia em
Massachusetts. Du Bois formou-se na universidade alemã de Heidelberg e foi professor de sociologia da
Universidade de Atlanta. Sociólogo, historiador e literato, fundou em 1908 a National Association for The
Advancement of Coloured People (N.A.A.C.P.).
93
Para Spínola, era obvio que a evolução do contexto mundial fez resvalar esse
movimento de uma neutralidade para o que chama de “cooperação preferencial”, algo
preponderantemente orientada para o lado soviético. Segundo ele buscaria explicar: “[...]
92
Kwame N’Krumah, nasceu no dia 21 de setembro de 1909, em Nkroful, uma vila no distrito de
Ellembelle, na região oeste do sul de Gana. Ocupou o cargo de primeiro ministro da Costa do Ouro
independente (atual Gana).
93
Senghor era um intelectual, católico, socialista, poeta e Presidente do Senegal cuja constituição inspirava-
se no modelo francês de 1946, no qual Presidente da República era o chefe de Estado mas o governo era
exercido pelo Presidente do Conselho de Ministros, ou seja, um modelo que em partes se assemelhava ao
português. (SCHOLL, 2018). Senghor pensava em uma solução federalista para o continente africano.
Segundo Camille Scholl, na obra “Um caminho do socialismo”, escrita por Senghor em 1960, portanto
durante a experiencia da Federação do Mali: “[...]As partes que têm como títulos “Nacionalidade”, “A
vontade de ser nação” e a “Realizar-se como Nação” são capítulos que o autor desenvolve entrelaçando
uma discussão teórica com o processo de construção de uma federação de estados africanos de antiga
colonização francesa.” (SCHOLL, 2018, p.128). Para Senghor, a unidade africana não poderia ser pensada
sem levar em conta a profunda simbiose entre o negro-africano, o berbere e o europeu, assim como a
contribuição de cada uma dessas “matrizes culturais” para a constituição da África Negra. Senghor era um
conciliador que defendia a tese do colonialismo como um “mal necessário” assim como a existência de
uma “simbiose dinâmica”, uma espécie de “mestiçagem cultural” que produziria um “fruto novo e mais
suculento” (SCHOLL, 2018). Isso se aproximava do lusotropicalismo defendido pelos portugueses e
inspirava Spínola. Ademais o General, como vimos, atribuiu a Senghor a proposta apresentada a Caetano
de constituição de uma federação entre Portugal e suas colônias, a qual Spínola traz a público com a
publicação de Portugal e o Futuro. Sobre o pensamento de Senghor, recomendamos a leitura apurada de
SCHOLL, C. J., Entre Senghor e Cheikh Anta, Entre a História e a Nação: Uma Reflexão Sobre a Ideia de
um Estado Federal para a África Negra (1960). Revista Ars Histórica, v. 16, p. 123, 2018.
94
Lê-se em George Padmore94 uma análise válida mas parcial deste facto; e se podemos
estar de acordo com aquele autor na verificação do efeito, já o mesmo não sucede quanto
à causa insinuada; [...]”. (SPÍNOLA,1974, p. 75) e complementa afirmando que:
[...] foram de facto os soviéticos quem melhor compreendeu o
fenômeno e mais decisivamente tentou colocá-lo ao seu serviço; mas
embora não deixe de haver traços de influência socialista em alguns dos
mais combativos prosélitos actuais da unidade africana, jamais será
lícito confundir pan-africanismo e comunismo. (SPÍNOLA,1974, p.
75).
94
George Padmore (pseudônimo de Malcolm Ivan Meredith Nurse) nasceu em 1902, em Tacariga, Trinidad
e Tobago. Estudou História e Ciências Sociais nos EUA, na universidade de Fisk e, posteriormente, Direito
em Howard. Dedicou-se à política e ao jornalismo e identificava-se com a ideologia comunista, acabando
por administrar o Departamento Comunista de Propaganda e Organização do Povo Negro em Moscou,
cargo onde ganha destaque como um dos maiores defensores dos movimentos de libertação da África.
Influenciou os nacionalistas africanos, gozando de considerável prestígio entre os intelectuais do
continente, tornando-se homem de confiança do primeiro ministro de Gana. Suas principais obras foram
The Gold Coast Revolution e Panafricanism or Communism? Sobre esta obra, Decraene detalha: “No
prefacio do livro, descreve-se o movimento pan-africano como movimento que aspira ‘a realizar o governo
dos africanos pelos africanos para os africanos, respeitando as minorias raciais ou religiosas que desejam
viver na África com a maioria negra’” (DECRAENE, 1962, p.28).
95
Ezekiel Maphalele (1919-2008) nasceu em Pretória, na África do Sul. Formou-se na UNISA,
Universidade da África do Sul e tornou-se um escritor, educador, artista e ativista, considerado o pai do
humanismo africano e um dos fundadores da literatura africana moderna. Em 1977, mudaria o seu nome
para Es'kia.
95
[...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 76)96. Deste modo, para Spínola, o pan-africanismo deveria ser
analisado rejeitando-se qualquer “véu preconceitual”. Caso contrário, se desvirtuaria do
“pensamento original”.
Além disso, para o General, a complexificação do fenômeno africano em sua
evolução teria sido evidentemente facilitada devido às esferas de influência terem levado
à “planetarização” dos problemas decorrentes da emergência africana e devido ao fato
de o “fardo do homem branco” ter adotado como prioridade questões econômicas ao invés
da promoção social. Todavia, esse processo acabou por ter de concorrer com a tomada de
consciência dos africanos e o desejo de assumirem o comando dos seus próprios destinos.
Ou seja, na visão de Spínola, as grandes potências teriam acelerado o fenômeno
africano ao tentarem tirar proveito dos movimentos de emancipação, envolvendo, desse
modo, a emancipação africana “[...] numa complexa teia de conspirações e conflitos,
desvirtuando-a em muitos aspectos e conferindo-lhe um caráter artificial aos olhos dos
menos avisados ou mais superficiais. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p74) e levando ao surto das
colonizações. Deste modo, em um contexto de uma África sacudida pela emergência dos
novos nacionalismos, para Spínola, o pan-africanismo teria ressurgido como forma de
denunciar violentamente o neocolonialismo.
Esses intelectuais pan-africanistas que Spínola menciona se reuniam em torno da
OUA (Organização da Unidade Africana)97. Segundo Torgal, a sua criação “[...] marca
afinal o princípio fundamental da lógica pan-africanista. [...]” (TORGAL, 2008, p. 232-
233). Spínola diz que o espírito e esperança de uma unificação e o sentimento
generalizado de resistência ao domínio colonial presidiam os rumos dessa organização
(SPÍNOLA, 1974). Segundo o autor, seria um grave erro pensar que com o caso português
seria diferente e que estes não estariam na mira de tal instituição. Todavia afirma ser
[...] interessante recordar, a esse respeito, que já nas suas acusações às
potências coloniais, Garvey vituperara violentamente a França, a Grã-
Bretanha, a Itália e a Bélgica, sem se referir ao nosso País. É que
estávamos, de facto, em posição ímpar para implantar Portugal no
fenómeno africano. Já não nos poupam hoje o pan-africanistas; e,
todavia, Portugal cabe ainda na corrente prevalecente do pan-
africanismo actual: a “negritude” cultural, política e social de Léopold
Senghor. (SPÍNOLA, 1974, p. 99-100).
96
Sobre a posição política adotada pelo Presidente Senegalês Léopold Sédar Senghor e a sua relação com
o Socialismo ver SCHOLL, Camille. A via do socialismo africano proposta por Léopold Senghor:
considerações pelas lentes da história intelectual. In: PAREDES, M; SOARES, F. (org.), A historicidade
e suas múltiplas escalas: Europa, América e África. Passo Fundo: Editora Acervus, 2020.
97
A OUA (Organização da Unidade Africana) foi criada em 25 de maio de 1962, em Addis-Abeba, Etiópia,
através da assinatura da sua Constituição por representantes de 32 governos de países africanos
independentes.
96
Em Portugal e o Futuro, António de Spínola deixa clara a sua visão das colônias
como prolongamentos territoriais e humanos da metrópole. Ainda assim, o General critica
a crença na irrealidade política de que a permanência em África se eternizaria, sem que
para isso os portugueses precisassem se adaptar ao mundo. Para Spínola, uma possível
separação de Portugal das suas colônias era algo totalmente inconcebível, tendo em vista
que se essa “separação” ocorresse, se Portugal tivesse os seus membros amputados,
acabaria por se tornar mais fraco como Nação por sofrer consecutivamente a amputação
de membros. Nas palavras do autor:
[...] O Brasil representou, portanto, o nascimento de um filho; mas ao
lembrá-lo ocorre-nos Goa, a amputação de um membro; e entre estes
dois pólos opostos – iniludíveis realidades – cremos que tudo deve
fazer-se para que os valores essenciais preservados com o nascimento
do Brasil prevaleçam contra as “realidades permanentes” que geraram
a amputação de membros. (SPÍNOLA, 1974, p. 117-118).
98
Vercapítulo I, página 41.
99
Apesar do desfecho, a crise portuguesa na Índia não era nenhuma novidade. Muito
pelo contrário, era uma crescente preocupação do regime desde 1947, quando a Índia
britânica se tornou independente, criando para Portugal o “problema de Goa”. Os
territórios portugueses na Índia eram defendidos por Portugal como a “expressão
portuguesa na Índia”, tendo supostamente uma identidade própria e agindo de “modo
europeu”, constituindo uma amostra do Ocidente em terras do Oriente (NAVARRO,
2011). Mas a oposição reunida em torno do movimento “Combatentes da Liberdade”
defendia que aqueles eram territórios indianos indevidamente ocupados e explorados
pelos portugueses.
Além disso, os protestos de Nehru99, estadista e primeiro-ministro da Índia,
subiam de tom, por considerar inaceitável que mesmo após a saída dos britânicos da índia,
os portugueses ainda permanecessem lá. Nehru tentou negociar pacificamente a passagem
de Goa, Damão e Diu para a Índia, entre 1947 a 1961. Porém, apesar da saída dos
britânicos e dos embargos econômicos que a Índia impôs aos territórios portugueses na
Índia, Portugal se mantinha firme a partir do suporte econômico dado pela sua “preciosa
joia de família”, Goa (LOPES, 2017). Em 1950, a União Indiana apresentou formalmente
a reclamação pela soberania de Goa, Damão e Diu, mas Portugal mostrou-se inflexível.
Nas palavras do General, teria sido um grande erro de apreciação
[...] pretender que, há doze anos, um doutrinador pacifista desistisse de
uma agressão em nome dos seus princípios; agravou-se esse erro de
99
Jawaharlal Nehru (1889-1964) foi um estadista indiano, líder da ala socialista no congresso nacional
indiano e primeiro ministro da Índia independente. Defendia a independência completa da Índia e foi
considerado herdeiro político de Gandhi.
100
100
Essa metáfora do Brasil como o filho prospero em relação com a amputação de um membro ocorrida
em Goa, contrapõe os diferentes tipos de independência com os quais os portugueses tiveram que lidar ao
longo da sua história colonial. O Brasil primeira colônia portuguesa a se tornar independente, “faz” uma
independência sem descolonização, o oposto do que ocorreria na década de 70 na África lusófona onde a
independência se deu com descolonização e uma descolonização violenta. Ou seja o desejo português de
construir fosse na Índia (de onde as tropas portuguesas foram expulsas), mas sobretudo no continente
africano “novos Brasis” não se concretizou, muito pelo contrário, assim como Michel Cahen salienta em
uma reflexão sobre a sociedade Moçambicana a teimosia obsoleta do regime e as guerras que se seguiram
102
Diante disso e da experiencia de Spínola na Guiné, nas palavras do mesmo: “[...] Nem
faz sentido que se exiba o Brasil como expoente da nossa pluriculturalidade quando na
prática se tem pretendido eliminar a hipótese de futuros ‘Brasis’.” (SPÍNOLA, 1974. p.
125).
Apesar da independência conquistada, Spínola afirma que Portugal podia
contemplar no Brasil a evolução e o crescimento de um filho, visto que os laços de
portugalidade se fariam presentes ali, sendo perpetuados e inclusive comemorados:
[...] Celebrámos a independência do Brasil como o nascimento de um
filho, sem nos perturbar demasiado que esse filho tivesse nascido
soltando o grito do Ipiranga. E também aqui, passando sobre alguns
artifícios de interpretação histórica, podemos tirar conclusões
semelhantes. Na verdade, ignorando o incómodo grito soltado à
nascença, temos hoje no Brasil um prolongamento cultural sobre o qual
se podem vir a fundar as mais justificadas esperanças. Ali se fala o
português e se cultivam, em certos meios, com apreço e até orgulho, os
traços da cultura lusíada [...] (SPÍNOLA, 1974, p. 117).
acabaram impedindo tal feito “[...] não é um "novo Brasil" que apareceu, mas uma nova república negra
com elementos crioulos (preto, mestiço ou branco) que escolheram a nacionalidade moçambicana em 1975
[...]” (CAHEN, 1994, p.221), e que em tese buscou distanciar-se do passado colonial.
103
representava o filho próspero que saiu de casa e deu certo, mas sem abandonar as suas
raízes.
O Brasil independente simbolizava a grandeza do passado epopeico português, o
velho Portugal heroico, capaz de reproduzir novamente semelhante ação no continente
africano. Essa memória em relação ao Brasil foi utilizada pelo Estado Novo como forma
de legitimar a permanência dos portugueses no Ultramar. Ou seja, como uma Nação
grande e próspera, o Brasil acabava por atestar a capacidade portuguesa em promover o
bem-estar das populações além-mar. Contrariar tal pensamento seria o mesmo que
contrariar a possibilidade do nascimento de novos Brasis.
É exatamente nesse pensamento que António de Spínola se apoia. Existe em suas
falas uma grande dependência simbólica em relação à imagem construída sobre o Brasil,
mas principalmente sobre a participação de Portugal na história brasileira. Uma
dependência que não afetava apenas a forma como o autor de Portugal e o Futuro via o
mundo, mas sobretudo como via a posição portuguesa nesse mundo. Esse reflexo da
mítica imperial no pensamento de Spínola o fazia crer que Portugal ficaria ameaçado se
perdesse o Ultramar:
Contamo-nos entre o número daqueles que propugnam a essência do
Ultramar como requisito da nossa sobrevivência como Nação livre e
independente. Sem os territórios africanos, o País ficará reduzido a um
canto sem expressão numa Europa que se agiganta, e sem trunfos
potenciais para jogar em favor do seu valimento no concerto das
Nações, acabando por ter uma existência meramente formal num
quadro político em que a sua real independência ficará de todo
comprometida. (SPÍNOLA, 1974, p. 226).
Para o autor, esse seria um desfecho que nenhum português poderia aceitar, era o
mal contra o qual se deveria lutar. Entretanto, segundo o General, não seria “[...] pela
força, nem pela proclamação unilateral de uma verdade [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 227)
que Portugal conseguiria conservar como portugueses os seus territórios ultramarinos.
Pelo contrário, por essa via se caminharia “[...] para a desintegração do todo nacional pela
amputação violenta e sucessiva das suas parcelas, sem que dessas ruínas algo resulte sobre
que construir o futuro.” (SPÍNOLA, 1974, p. 227).
Portanto, em Portugal e o Futuro, António de Spínola se apoie na mítica do filho
próspero, o Brasil. Anda assim, é importante salientarmos que não era o exemplo “ideal”
do porvir que Spínola visava, tendo em vista que o pensamento do General objetivava
uma possível federação e não a independência total das colônias portuguesas:
[...] Não que o Brasil deva ser tomado como modelo da finalidade a
atingir, pois somos de opinião que é possível ainda realizar uma
individualização política na ordem externa como país pluricontinental
e pluricultural, ajustando para tanto a nossa estrutura interna a um
renovado conceito de unidade. [...] (SPÍNOLA, 1974, p.125).
De qualquer forma, diante daquele contexto era preferível que Portugal desse
novas Nações ao mundo, dando à luz novos filhos prósperos, a exemplo do Brasil, ao
invés de, a despeito de sua vontade, sofrer novamente a amputação de um membro, a
exemplo de Goa. Aquele território, na visão do General, possuía todas as condições para
permanecer ligado à metrópole pelos laços de solidariedade lá estabelecidos. O exemplo
que António de Spínola mirava era o posto em prática por ele mesmo na Guiné com os
Congressos do Povo, onde buscou formas de aproximar as populações locais da
administração dos seus interesses. Para o General, essa seria a única forma de se construir
uma verdadeira unidade nacional, tornando-se Portugal uma autêntica comunidade com
condições de encontrar a expressão que garantiria a salvaguarda da portugalidade, assim
como a permanência portuguesa no Mundo.
Portuguesa: a guerra ultramarina. Desde as primeiras páginas da obra, o autor deixa clara
a sua opinião sobre o ultramar português, assim como a sua defesa da autodeterminação
e a certeza de que, se um referendo fosse feito nos territórios portugueses no Ultramar, as
populações optariam por permanecerem portuguesas.
Conforme vimos anteriormente, António de Spínola relata já possuir ideias
semelhantes às expostas em Portugal e o Futuro desde 1961101. Todavia, foi a partir da
sua experiencia como Governador-Geral na Guiné-Bissau que se o General se viu em
condições de afirmar que:
[...] A experiência colhida ao longo de cinco anos de vivência no fulcro
desta problemática permite-nos afirmar que, realizada a autonomia no
grau necessário à expressão política e ao rápido progresso econômico,
nos encontraríamos de tal modo próximos do objetivo final que os
demais objetivos intermédios perderiam importância. [...] (SPÍNOLA,
1974, p. 166).
A partir da experiência obtida na Guiné, Spínola sente-se seguro de que a tese que
defendia era totalmente viável, pois “[...] se defendeu com sucesso essa mesma tese na
Província da Guiné [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 18). Essa “certeza” teria sido uma das
motivações para a publicação de Portugal e o Futuro. Para o General, era impossível
calar a voz da consciência e não abrir para o todo nacional as lições aprendidas na Guiné
(SPÍNOLA, 1974). Em suas palavras:
[...] na província da Guiné haviam sido criadas e inexplicavelmente
rejeitadas as condições psicossociais óptimas para uma justa solução
política; e não aceitavam que, ao fim de tantos anos de sacrifício e de
sangue vertido, se encaminhasse a solução do problema ultramarino
para um desfecho votado ao insucesso. Este irrealismo lançara sobre os
militares o fantasma de Goa, ao mesmo tempo que neles germinava a
convicção da total incapacidade política do Governo. (SPÍNOLA, 1978,
p. 251).
Desde a sua chegada em Bissau, Spínola deixava claro em seus discursos que
almejava buscar uma solução política para o problema da Guiné. Em seu improviso de
boas-vindas em Bissau, apela que todas as forças vivas da colônia estejam com ele, afinal
de contas tinha consciência da situação particularmente difícil em que se encontrava
Bissau: as forças portuguesas tinham perdido a iniciativa enquanto o PAIGC mostrava-
se cada vez mais forte. Segundo Carlos Alexandre Morais, que esteve sob comando de
Spínola na Guiné: “Quando chegou à Guiné, a situação militar revelava-se muito
preocupante, pois as tropas haviam-se remetido a uma atitude defensiva e, em resultado,
101
Ver capítulo I, página 29.
106
a liberdade de movimentos era quase nula, excepção feita às tropas especiais. [...]”
(MORAIS, 2007, p. 40).
Para avaliar a situação e estabelecer uma estratégia, António de Spínola percorre
pessoalmente o território guineense e logo compreende que para recuperar a iniciativa e
inverter a correlação de forças, seria necessário um verdadeiro saneamento das forças
militares portuguesas. Além disso, Spínola estabelece um comando unificado. Ou seja,
tudo passava por ele e ao invés de três guerras (exército, marinha e força aérea) como se
observava nas demais colônias, na Guiné se estabeleceu uma frente única atuando sob o
mesmo comando, de forma unificada e concentrada (REZOLA, 2005).
Como podemos observar, até mesmo a ação militar de António de Spínola passava
por ações políticas ao manipular as populações locais política e militarmente ao seu favor.
Além disso, como em um improviso na sessão de Conselho do Governo ocorrida em 7 de
novembro de 1969, Spínola já defendia abertamente uma solução política para o conflito
na Guiné:
Pode parecer estranho ao público menos avisado que, na presente
conjuntura de guerra, não me refira à situação militar. A explicação é
simples. A batalha da Guiné, em última análise, não se decidirá no
campo das armas, mas sim no campo da manobra político-social; plano
onde se vislumbra um movimento de contra-reação das populações, que
já se aperceberam que nada lucram com a guerra e, antes pelo contrário,
verificam que esta as conduz a uma precária situação de insegurança e
de retrocesso. (SPÍNOLA, 1970, p. 129).
102
Recordemos que um dos objetivos da Operação Chão Manjaco era converter a guerrilha ao exército
português, além disso em seus discursos na Guiné Spínola ressaltava a importância dos Guinéus
participarem da defesa dos seus interesses, discurso que foi transportado para Portugal e o Futuro.
103
Capítulo I, página 18-19.
104
Importante recordarmos que a Operação Chão Manjaco é encerrada após o massacre dos três majores,
ocorrido em Abril de 1970, e que em resposta a este evento António de Spínola autoriza o ataque à Conacri
em novembro deste ano. A operação ficaria conhecida como Operação Mar Verde e, por representar um
ataque não provocado a um Estado soberano, seria denunciada internacionalmente por vários países, tanto
africanos quanto do bloco soviético (REZOLA, 2005). Nesse mesmo contexto, ocorria em Moçambique a
Operação Nó Górdio (julho de 1970) comandada pelo General Kaúlza de Arriaga, que embora tenha
envolvido milhares de soldados em um confronto direto e violento, acabou tendo as suas expectativas
frustradas pois, além de aumentar o “desconforto” internacional em relação ao colonialismo português, não
conseguiu conter o avanço da FRELIMO.
109
após encarada a essência do problema, nada era mais inconveniente do que manter a
sustentação da tese de que o conflito que Portugal enfrentava era preponderantemente
militar, na defesa de fronteiras “[...] contra bandos mercenários infiltrados do exterior em
exclusivo quadro de agressão externa. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 129). Nas palavras do
General:
[...] A situação que se vive tem muito disso, mas não o é só. E se foi
possível mobilizar as populações africanas da Guiné para a sua defesa
e desequilibrar a nosso favor a massa combatente, tal se deveu ao facto
de as perspectivas traçadas terem aberto aos africanos a esperança de
poderem realizar-se no contexto lusíada; é vital para a sobrevivência de
Portugal em África que se não desvirtue este facto atribuindo-lhe outras
especiosas interpretações. [...] (SPÍNOLA, 1974, p. 129).
Diante desse quadro, uma possibilidade destacada por Spínola era a busca de uma
vitória a partir da conquista das populações. Entretanto, mesmo que as populações
ultramarinas passassem a colaborar ativamente no combate ao inimigo, essa ação traria à
Nação gastos incomportáveis considerando que a violência se voltaria contra as
populações, tornando necessário lhes assegurar proteção eficaz. Além disso as populações
acabariam cedendo e se identificando com o mais forte. Outra possibilidade consistiria na
conquista das forças combatentes. Neste caso, como afirma o General, se trataria de uma
vitória política e não militar. Ou seja:
Podemos assim chegar à evolução que, em qualquer guerra deste tipo,
a vitória exclusivamente militar é inviável. Às Forças Armadas apenas
compete, pois, criar e conservar pelo período necessário – naturalmente
não muito longo – as condições de segurança que permitirão soluções
político-sociais, únicos susceptíveis de pôr termo ao conflito. [...]
(SPÍNOLA, 1974, p. 47).
O General ainda alerta que no quadro que se desenhava Portugal, além da adesão
das populações, visava também à adesão e conversão dos combatentes inimigos, o que se
alcançaria apenas mediante uma solução política. Do contrário, “[...] Pretender ganhar
uma guerra subversiva através de uma solução militar é aceitar, de antemão, a derrota, a
menos que se possuam ilimitadas capacidades para prolongar indefinidamente a guerra,
fazendo dela uma instituição. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 47). Entretanto, para Spínola,
esse não seria o caso Português, ou seja, manter a guerra seria o mesmo que conduzir o
país cada vez mais ao estrangulamento econômico, ultrapassando inclusive os limites
humanos a que os portugueses teriam acesso.
Além de defender uma solução eminentemente política, António de Spínola
alertava para o fato de que as soluções políticas adotadas deveriam respeitar a
110
Desde 1968, esse foi o pensamento que norteou a ação de António de Spínola na
Guiné. Mária Inácia Rezola reconhece que apesar das críticas suscitadas pelas ações de
Spínola na Guiné, “[...] considerando esta actuação como demagógica, vários
testemunhos dão conta do seu enorme impacto e popularidade. Num curto espaço de
tempo, Spínola torna-se conhecido em toda a província e muitos nutrem por ele enorme
respeito e admiração. [...]” (REZOLA, 2005, p. 55).
Sob o lema Por Uma Guiné Melhor, o Governador-Geral tinha como objetivo a
conquista da população daquela província, com quem o mesmo fazia questão de manter
contato direto, além de dirigir insuflados discursos. Conforme Rezola: “[...] dando o
exemplo para os que pensavam que a guerra podia ser dirigida a partir dos gabinetes de
Bissau. Faz discursos em plena frente, para animar e incentivar os soldados.” (REZOLA,
2005, p. 46). Isso fez com que o General conquistasse grande influência na Guiné,
112
influência que levou a crer que se um plebiscito fosse feito naquela província, este
certamente o ganharia.
Além da reestruturação dos quadros militares e da conquista das populações, a
partir do lema Por Uma Guiné Melhor e dos Congressos do Povo, Spínola também dá
início a uma intensa campanha de propaganda das suas ações, o que culmina em uma
série de entrevistas que o General dá enquanto governador na Guiné. Nas palavras de
Rezola: “[...] O governador-geral da colônia estava consciente de que em guerra
subversiva, a propaganda era uma peça fundamental.” (REZOLA, 2005, p. 50). Essas
questões elucidam a defesa que António de Spínola faz, em Portugal e o Futuro, da
necessidade de se pôr fim ao abismo que se criava entre governantes europeus e
governados africanos, ao se pôr em prática uma política que pretendia administrar os
territórios ultramarinos à margem do diálogo ou da sua efetiva participação a todos os
níveis:
Nunca a política de um governo pode ser autêntica se não se orientar
pelos anseios dos governados, auscultados através do diálogo
permanente e com os seus elementos representativos, livremente
designados; e jamais um governo pode eximir-se à responsabilidade de
apresentar programas que os governados sancionem e aos quais prestará
contas. (SPÍNOLA, 1974, p. 129-130).
105
Eram considerados alfabetizados os indígenas que falassem “corretamente” o português, requisito
essencial para que um indígena adquirisse a cidadania, conforme definido pelo Estatuto dos Indígenas
Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique de 1954, Capítulo III, Artigo 56°.
106
Ao mencionar esse evento com o líder Mandinga durante um dos Congressos do Povo, Spínola
demonstra tentar afastar-se da orientação defendida pelo Salazarismo, a construção de uma grande Portugal
e de um único povo português a partir de um processo de assimilação que visava suprimindo as
113
daquela província. A partir destes contatos, Spínola recorda que muitos chefes de
guerrilha, embora tenham mantido as suas posições, o teriam feito em função dos riscos
pessoais que uma eventual ruptura representava. Entretanto, tais chefes teriam aderido à
ideologia do General e estariam convictamente ao seu lado, tendo ele afirmado que: “[...]
A experiência dos Congressos do Povo na Guiné provou, à evidencia, que, por mais
impreparadas que estejam as massas e mais divorciadas que delas se encontrem as suas
elites, a participação efectiva do povo é possível” (SPÍNOLA, 1974, p. 207), por assim o
desejarem. Spínola prossegue:
A nossa experiência de cinco anos de governo na Guiné demonstra à
evidência que não é rejeitando a participação de homens válidos sob a
alegação de que são analfabetos à face das leis – e, como tal, privando-
os de uma participação de que afinal são perfeitamente capazes – que
construiremos a solidariedade que suportará a nossa estrutura. E sempre
sustentámos que nada será preciso inventar, nem descobrir: bastará
voltar sobre o passado, até ao ponto em que nos desviámos da senda de
uma portugalidade que prosseguíamos e, a partir daí, retornar o
caminho. (SPÍNOLA, 1974, p. 158).
O autor de Portugal e o Futuro reconhece ao longo da obra que a base das teses
defendidas por ele não era nenhuma novidade, inclusive afirmando que sequer o
pensamento dos políticos acima citados era original. Segundo o General, essas ideias já
se faziam presentes em Sá de Bandeira111 e na Reforma Ultramarina de 1836 e teriam
retornado com Almeida Garret112, na sua proposta legislativa de 1853, sendo seguida, em
parte, por Rebello da Silva113 na reforma de 1869, e por Júlio de Villena114 no Código
Administrativo Ultramarino em 1881115. Para António de Spínola, o erro da política
107
Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque (1855-1902) foi um Oficial de Cavalaria português que
ganhou grande fama em Portugal por ter protagonizado a captura do
Imperador nguni Gungunhana, em Chaimite (1895), e pela condução da subsequente campanha de
pacificação, conquista e subjugação das populações locais à administração colonial portuguesa, no território
que viria a constituir o atual Moçambique. A memória de Mouzinho foi revisitada durante o Estado Novo,
sobretudo durante a guerra colonial, devido aos seus “valorosos feitos em África”, sendo apontado como
um herói da expansão colonial portuguesa.
108
Henrique Mitchell de Paiva Cabral Couceiro (1861-1944) foi um militar, administrador colonial e
político português que se notabilizou nas campanhas de ocupação colonial em Angola e Moçambique. Sua
dedicação à causa monárquica e sua proximidade aos princípios do Integralismo Lusitano conduziram-no
por diversas vezes ao exílio, antes e depois da instituição do regime do Estado Novo em Portugal.
109
Aires de Ornelas e Vasconcelos (1866-1930) foi um militar, escritor e político português. Ocupou o
cargo de governador-geral de Moçambique (1896-1898) e Ministro da Marinha e Ultramar (1906-1907),
tendo publicado diversos trabalhos sobre as campanhas de África e a experiência de administração colonial
portuguesa.
110
Eduardo Augusto Ferreira da Costa (1865-1907) foi um Major do Exército Português que, entre outras
funções, exerceu o cargo de governador-geral de Angola.
111
Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo (1795-1876) foi um político português da Monarquia
Constitucional. Assumiu diversas pastas ministeriais e foi por cinco vezes presidente do Conselho de
Ministros.
112
João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799-1854) foi
um escritor e dramaturgo romântico, orador, ministro e secretário de estado honorário português.
113
Luís Augusto Rebelo da Silva (1822-1871) foi um jornalista, historiador, romancista e político
português, tendo exercido, entre outros, os cargos de deputado, par do Reino e ministro.
114
Júlio Marques de Vilhena (1845-1928) foi um jurista, intelectual, magistrado e político português.
115
Ao mencionar o Código Administrativo de 1881, novamente António de Spínola se afasta, se destaca do
colonialismo salazarista, um modelo rígido, controlador e assimilacionista. O General remonta aos
princípios coloniais de 1850-1890, o ideário da época baseava-se em um assimilacionismo natural e que
dispensava um controle rígido dessas populações. Essa “crença” foi mantida sobretudo após a primeira
república. O que Spínola faz é defender a retomada das teorias de um período em que o mesmo acreditava
encontrar-se o ideário colonial no caminho certo, e que seria interrompido e finalizado na década de 30 com
o início do salazarismo e da promulgação do Acto Colonial em 1930, o qual como vimos Spínola condena.
Ou seja, ao empreender salvaguardar a “unidade nacional” o General se afasta do ideário colonial do regime
salazarista e advoga a retomada das teorias e politicas coloniais dos liberais da república de 1910. A grande
questão para o General residia na fraqueza do argumento de que Portugal era uma sociedade multirracial
única e exclusivamente pelo convívio platônico das raças. Spínola argumenta que assim como o convívio
entre pobres e ricos não resolvia as questões sociais o mesmo se aplicava ao caso português. Seria
ingenuidade “[...] pretender solucionar o problema apenas consentindo que pretos e brancos viagem no
115
Ao longo da obra percebemos que perder o Ultramar, sobretudo a Guiné, não era
uma opção para Spínola, muito menos uma saída com honra116. Além disso, o pensamento
do General não era assombrado apenas pelo trauma de Goa, mas também pelas “perdas”
anteriores que Portugal já tinha sofrido. O autor esclarece em Portugal e o Futuro que em
todos os tempos teriam se polarizado as opiniões e os interesses sobre os territórios
ultramarinos no continente africano, por estes exercerem influência direta em questões
político-econômicas que afetavam diretamente o equilíbrio geoestratégico e econômico a
nível mundial (SPÍNOLA, 1974). Essa “polarização” teria conduzido à Nação a
constantes conflitos, fosse com Espanhóis, Britânicos, Franceses ou Holandeses, os quais,
diante do declínio moral de Portugal, acabaram por espoliar as posições portuguesas no
Ultramar, algumas das quais jamais foram recuperadas.
Os responsáveis por esse processo seriam os mesmos que naquele contexto se
opunham a Portugal, acabando por evidenciar que a Nação portuguesa não era mais uma
grande potência. Spínola recorda ter Portugal se mostrado totalmente incapaz de impedir
o “[...] sonho de Cecil Rhodes e impor o mapa cor de rosa [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 90)
117
, obedecendo aos desígnios imperialistas britânicos, acontecimento que teria
mesmo autocarro é tentativa que a nada conduz por insuficiente sequer para iludir o problema.”(SPÍNOLA,
1974, p.57), o convívio de raças apenas conduziria a resultados objetivos se fosse acompanhada por uma
equitativa repartição das oportunidades de acesso aos lugares de mando político-administrativo.
116
Capítulo I, página 21.
117
Cecil Rhodes (1853-1902) foi um colonizador e homem de negócios britânico que teve importante papel
na exploração mineira no continente africano e na construção do caminho de ferro. Mapa cor-de-rosa foi o
nome dado ao mapa que obedecia à pretensão portuguesa de manter a soberania dos territórios situados
entre Angola e Moçambique. Entretanto, em 11 de janeiro de 1890 Portugal recebe o Ultimato Britânico
116
evidenciado a fragilidade portuguesa. Desde então, Portugal vinha demonstrando não ser
capaz de ir contra a vontade dos mais fortes, não tendo conseguido “[...] levantar os povos
por um processo semelhante ao que mais tarde os mesmos ingleses vieram a utilizar na
Jordânia pela mão de T.E. Lawrence.” (SPÍNOLA, 1974, p. 90). Ainda assim, essas
espoliações teriam gerado em Portugal, grande fervor: “[...] Vibrou-se em Portugal de
indesmentível patriotismo; da alma do povo indignado saíram os acordes e as estrofes da
Portuguesa118. Todavia, o facto é que, apesar disso, passou a falar-se inglês do Cabo ao
Cairo.” (SPÍNOLA, 1974, p. 90). Este era o porvir que António de Spínola receava.
Apesar de reconhecer encontrar-se Portugal em um mundo que se fechava,
Spínola ainda defendia que Portugal conseguiria manter a sua posição no continente
africano119 por meio de soluções políticas. Esse pensamento recebia o reforço necessário
a partir da sua experiencia na Guiné, de maneira que o General defendia serem as suas
teses uma opção válida por se encontrarem à margem de “ideários extremos”,
constituindo-se em uma via possível de salvaguardar verdadeiramente a lusitanidade.
Diante disso, a edificação de uma verdadeira comunidade seria totalmente possível, desde
que:
[...] Respeitando os valores em que se alicerça a Nação Portuguesa,
plasmada nos mais puros princípios de solidariedade, fraternidade e
igualdade humanas, procurámos acompanhar a evolução do mundo,
ajustando às exigências sociais dos nossos dias, conceitos, métodos e
que exigia a retirada das forças portuguesas do caminho de ferro, sob pena de ruptura nas relações
diplomáticas entre os dois países.
118
A portuguesa, música de Alfredo Keil e letra de Henrique Lopes de Mendonça, data de 11 de janeiro de
1890 e viria a tornar-se hino nacional português em 1911. Segundo Catroga, “[...] o seu conteúdo não exalta
a liberdade e o advento de um mundo novo. Revela, antes, os feitos dos “heróis do mar” e da “Nação
valente”, num contexto condicionado pela questão colonial e pela consciência decadentista. [...]”
(CATROGA, 2005, p.156). Tratava-se de uma tentativa de se levantar novamente o “nome de Portugal”
com um fundo patriótico e imperial.
119
Em sua obra de 1978, António de Spínola afirma ter aceitado prolongar o seu mandato na Guiné
exclusivamente com o intuito de prosseguir com as suas conversações com Senghor, sentindo-se ludibriado
quando Caetano o proibiu de assim fazê-lo e perdendo as esperanças de que Portugal conseguiria manter a
sua posição no continente africano. Isso justificava-se primeiro pela postura adotada por Caetano e segundo
porque, em 20 de janeiro de 1973, Amílcar Cabral foi assassinado, inclusive o General atribui o assassinato
de Cabral à não realização do encontro entre este e o próprio Spínola. Ao retornar à Bissau, Spínola teria
encoberto a posição tomada pelo Governo Central de proibir o encontro, o que teria gerado um clima de
indefinição no PAIGC sobre os motivos dessa proibição. Em suas palavras: “Esclarece-se que a facção
guineense do PAIGC atribuiu a Amílcar Cabral a responsabilidade da não realização do encontro. Esta
suposição agudizou as dissidências internas do Partido, que, habilmente exploradas por Sekou Touré,
conduziram à morte de Amílcar Cabral.” (SPÍNOLA, 1978, p.43). Além disso, ocorreria em 24 de setembro
de 1973, em Medina Boé no sudeste da Guiné-Bissau, a proclamação pelo PAIGC da independência
unilateral da Guiné Bissau, sendo Luis Cabral eleito Presidente do Conselho de Estado. O evento, além de
contar com ampla cobertura, obteve também o apoio irrestrito da ONU. Este evento evidencia a crença de
Spínola de que guerra estava perdida. As perdas começavam exatamente pela Guiné que Spínola tanto se
empenhou em “salvar”. O evento ocorreu poucos dias após a posse do sucessor de Spínola no cargo de
Governador Geral.
117
4 A COMUNIDADE LUSO-AFRO-BRASILEIRA.
cultura que ultrapassava as fronteiras lusas e que seria capaz de retirar Portugal da crise
em que se encontrava, preservando-o em seu todo plurirracial, pluricultural e
pluricontinental. Neste capítulo, abordaremos a proposta trazida a público em Portugal e
o Futuro, o contexto intelectual no qual a obra estava inserida, assim como a recepção da
mesma. Conforme veremos, o livro acaba tendo importante papel em um processo que
ultrapassava as intenções do autor.
O autor ainda reconhece que a solução almejada por ele estaria sujeita a fortes
condicionalismos de ordem interna e que certos setores da opinião não estariam
preparados para tal evolução. Porém, a pressão militar interna se atenuaria e,
externamente, se Portugal possuísse teses sustentáveis certamente teria amigos dispostos
a apoia-lo.
Além de todas as críticas que a sua proposta receberia o autor admitiu estar ciente
da interrogação presente no espirito de alguns portugueses: “Para quê definir uma
estratégia nacional?” (SPÍNOLA, 1974, p. 135). Spínola acreditava ser primordial
esclarecer qual atitude melhor defenderia o espirito português e defendia que, sendo o
problema fundamentalmente interno, a solução também deveria ser120. Deste modo, o
primeiro passo para a resolução de um problema seria “[...] reconhecer a sua existência e
dimensão, para em sequente análise o definir claramente[...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 138),
a fim de se estabelecer uma estratégia. Do contrário, sem uma orientação definida e
baseada em objetivos nacionais e com projeção no tempo, Portugal seria conduzido “[...]
a um quadro de alternativa entre uma solução inviável e o abandono às forças da
desagregação. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 138).
Para o autor, o abandono das populações ultramarinas era inaceitável. Por outro
lado, dentro de um horizonte de tempo definido, era inviável aniquilar as forças de
guerrilha devido à sua constante possibilidade de renovação. Tendo isso em vista, o
General questiona: “Como poderia então terminar uma guerra deste tipo?” (SPÍNOLA,
1974, p. 41). Para Spínola, havia apenas três vias: I) concessões crescentes até que o limite
de ruptura fosse atingido, II) repressão totalitária ou III) o caminho da liberalização que,
segundo o autor, também possuiria riscos “[...] mas que apesar de tudo cremos ser a
solução, desde que se desenvolva progressivamente, na disciplina e sob o signo de uma
firme autoridade então fortalecida pela via da legitimidade. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p.
41).
120
Para tal, se apoiava em quatro argumentos:
I) A partir de um ponto de vista lógico deveria se estabelecer uma correspondência entre os fatos
passados e futuros, o que poderia dar-se de duas formas: a) deixar que se resolvesse conforme as leis
naturais ou b) controlar os fatos mediante o estabelecimento de uma estratégia. (SPÍNOLA, 1974, p.136).
II) Uma atitude voltada para o futuro que deveria guiar-se pela vontade de se atingir um bem e não
apenas evitar-se um mal, definindo uma estratégia comportável. (SPÍNOLA, 1974, p.136).
III) A busca de máximo benefício com o mínimo de esforço, o que também corresponderia à
formulação de uma estratégia. (SPÍNOLA, 1974, p.137).
IV) Definição clara de objetivos, traçando o caminho para os atingir, num quadro devidamente
coordenado. (SPÍNOLA, 1974, p.137).
120
Para António de Spínola, esse era o quadro realista com o qual Portugal teria que
lidar se pretendesse solucionar a crise social que enfrentava, quadro que exigia uma
urgente reformulação do ideário nacional a fim de convertê-lo “[...] em fórmulas
susceptíveis de o tornarem numa ideologia unificadora, pela transferência da força lógica
dos princípios proclamados e da sua real aplicabilidade prática. [...]” (SPÍNOLA, 1974,
p. 179), o que também exigiria uma estrutura nacional capaz de comportá-lo.
Partindo desse quadro, Spínola se propôs a tentar edificar uma possível arquitetura
nacional válida, o que só seria possível partindo-se da aceitação de três princípios: I) O
reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação; II) a aceitação da participação
popular em um referendo; e III) tornar públicas as decisões a fim de inserir Portugal no
contexto internacional121. Estas seriam, “[...] nas linhas gerais, as coordenadas do
equacionamento do presente, com vista à sua projeção no futuro que visualizamos.”
(SPÍNOLA, 1974, p. 61).
São esses os três pontos que constituem a base da tese apresentada e defendida
por António de Spínola, contra a qual este reconhece que se levantariam críticas tanto
daqueles que veriam os seus interesses ameaçados, quanto daqueles que pensariam que
Portugal não seria capaz de concretizá-la. Além disso, haveria parcelas que veriam no
proposto por ele uma nova versão da ideologia que estavam dispostos a combater,
“minorias” que pretendiam “[...] a todo transe, conservar os seus privilégios. [...]”
(SPÍNOLA, 1974, p. 165) e que não representariam a maioria da Nação.
Para o General, as críticas que a sua proposta receberia ocorreriam porque a Nação
encontrava-se em um quadro de posições extremas em confronto, uma visando objetivos
nacionais superiores, mas por um caminho impossível, e outra visando a anulação da
portugalidade. Deste modo, haveria aqueles que, por preferirem o abandono ou a
cedência, denunciariam a tese como contraditória e baseada em uma “[...] visão unilateral
dos problemas a equacionar, vendo-a demasiado influenciada pela experiencia da Guiné
[...]”122 (SPÍNOLA, 1974, p178). Spínola prossegue:
121
Esse plano deveria ser imediatamente anunciado, assim como a nova constituição, os passos e os prazos.
Segundo o autor, a anunciação traria grande alcance e reflexão nacional e internacional, acabando por
operar uma viragem na imagem portuguesa.
122
Caetano relata na sua obra Depoimento que, em uma conversa com Spínola, este teria lhe informado que
pretendia publicar um livro e teria lhe exposto a sua tese federalista, ao declarar que: “[...] Amistosamente
lhe observei, ao cabo de longa troca de impressões, que a sua visão do problema ultramarino português
continuava demasiado influenciada pelos anos que passara na Guiné. [...]” (CAETANO, 1974, p189).
Caetano teria sugerido que antes de publicar o livro, Spínola viajasse pelo Ultramar a fim de constatar a
realidade das demais colônias. O General teria tentado ir ao Ultramar em viagem oficial mas, diante da falta
de oportunidade, a publicação acabou acontecendo independente de a viagem ocorrer.
121
Embora todos os riscos fossem muito gravosos, para Spínola não haveria outra
alternativa123. Diante de tudo o que foi apresentado na primeira parte da obra, o General
resume os pontos do seu ideário nacional da seguinte forma:
[...] autonomia progressiva até ao nível de perfeita autonomia interna;
regionalização das estruturas, a todos os níveis; adequada
123
Diante dos riscos, a situação deveria ser vista a partir das seguintes opções: I) Defesa de posições rígidas
para as quais seria impossível obter apoio, o que as tornava inconsequentes, devendo-se rejeitá-las, II)
Aceitar a inelutabilidade dos fatos e ceder às pressões externas, o que levaria à perda de um futuro promissor
e corresponderia a uma renúncia covarde e inepta ou III) Adoptar uma linha política transparente a fim de
conseguir o apoio de qualquer dos blocos de poder (SPÍNOLA, 1974).
122
124
Recordemos que o general dedica uma parte da obra à análise das teorias e intelectuais que circulavam
pelo continente africano, tais como Du Bois (pai do pan-africanismo), Marcus Garvey, Kwameh Nkrumah
(que para o general era um extremista) e o Presidente senegalês Léopold Sédar Senghor, a quem Spínola
atribuiria posteriormente a proposta apresenta em Portugal e o Futuro. VerCapítulo II. 2.1.3.
125
Para Spínola, a insistência na uniformidade das leis acabava por impedir que o Ultramar se
desenvolvesse. Privilegiando-se apenas a metrópole e sem se atingir o desenvolvimento integral de cada
parcela, o nivelamento do todo nacional tornava-se impossível, etapa essencial para a unificação, pois o
atraso na evolução do Ultramar acabava resultando em contestação violenta. A grande questão, para o autor,
consistiria em não se confundir “unidade” com “uniformidade”. A unidade deveria ser garantida dentro da
uniformidade orgânica, ou seja, a conclusão de Spínola era a de que por mais flexível que se pretendesse,
uma concepção uniforme conduziria à desagregação, diferente de uma concepção pluralista de tipo
federativo que conduziria “[...] à unidade pelo caminho da solidarização.” (SPÍNOLA, 1974, p.181).
123
126
A defesa de uma autonomia progressiva e irreversível para as colônias portuguesas no continente
africano já havia sido apresentada ao regime português por Adriano Moreira (um fervoroso
lusotropicalista), em 1962, enquanto este ocupava o cargo de Ministro do Exterior.
124
a forma como entende os conceitos que utiliza, o que de fato dificulta a compreensão
sobre a forma como ele via as questões políticas que o rodeavam ou como se via em meio
a este processo. Além disso, o General nunca nomeia os “setores” a que se refere,
utilizando-se de artifícios como “um certo grupo”, “um certo setor”, “uma certa facção”
sem nunca especificar. Isso talvez acontecesse, assim como mencionamos
anteriormente127, em função da consciência que Spínola tinha de uma possível censura.
Além disso, embora defenda uma clara definição dos conceitos, etapas e prazos,
o General não traça um programa detalhado que pudesse guiar as questões econômicas
dentro dessa constituição federal. Para Spínola, economicamente não haveria conflito
entre a adoção de medidas econômicas comuns e a livre circulação entre a metrópole e os
territórios ultramarinos. O General apenas enfatiza a necessidade da promoção social de
cada parcela a fim de se atingir o nivelamento do todo, o que exigiria estudo da situação
local e aplicação de medidas flexíveis, sob controle do Governo Central e mantendo a
separação entre as funções econômicas e financeiras. Nesse processo seria necessário
descentralizar os poderes do Estado, ao mesmo tempo em que se buscasse uma integração
política e económica de todo o espaço português, a fim de se atingir a síntese entre as
“independências políticas” e as “integrações econômicas”. Para o General, o espaço
português oferecia condições excelentes para se atingir tais objetivos, desde que se
partisse da plena igualdade dos seus vários elementos constituintes (SPÍNOLA, 1974).
Em suas palavras:
Defendemos deste modo o conceito de que as características do espaço
português abrem largas perspectivas à sua continuidade histórica, mas
apenas desde que se evolua para soluções políticas amplamente
descentralizadoras, que respeitem o princípio da autonomia de todos os
seus territórios, sem quebra da solidariedade nacional nos termos em
que, aliás, a própria constituição a define. [...] Não será, assim,
necessário – neste ponto como em alguns outros – forjar doutrinas
novas ou ir buscar argumentos a outras fontes; bastará, muito
simplesmente, atermo-nos ao espirito da lei fundamental, procurando
nele o germe das soluções nacionais. (SPÍNOLA, 1974, p. 155-156).
Entretanto, uma formação desse tipo exigiria um legislativo federal com suficiente
representatividade do conjunto, um executivo altamente coordenador e um poder judicial
funcionalmente estruturado. Esse legislativo seria constituído em um Congresso
127
Conforme abordamos no Capítulo II, página 2, Spínola tinha consciência das possibilidades de sua obra
ser censurada. Além disso, era vetado a um General a publicação de obras de cunho político, o que explica
esses subterfúgios adotados pelo autor. Assim como qualquer sistema político, o Estado Novo possuía as
suas “fissuras” e vários setores políticos, a exemplo dos socialistas, comunistas, conservadores e
ultraconservadores. Desse modo, a postura adotada pelo autor dificulta o entendimento da obra.
125
128
Spínola afirma não se empenhar em falar sobre duração de mandatos, partidos, etcetera, para não se
desviar do que realmente pretendia abordar na obra. Sendo puramente pragmáticas, estas questões não
seriam de fato importantes. Quanto à denominação dos territórios do País, poderia adotar-se “Províncias
autónomas” ou “Estados Federados” e o Governo poderia ser “Central” ou “Federal”. Spínola apenas
sinaliza que o Governo Central deveria controlar o processo até que esse esquema se encontrasse totalmente
estável.
129
Com base em três pontos, seriam:
I – Aceitação clara da renovação e utilização de conceitos mais abertos, consubstanciados no
reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e dos direitos dela decorrentes, deixando claras
as intenções ao mundo, a fim de ser Portugal novamente aceito e apoiado.
II- Desenvolvimento acelerado da descentralização administrativa e da progressiva autonomia dos Estados
e Províncias Ultramarinas, em clima de perfeita regionalização das estruturas, resultando em uma autêntica
autonomia.
III- Realização de uma consulta, no final do prazo estipulado, a fim de provar a real opção dos africanos,
que diante da promoção social e liberdade de expressão cívica, desejariam a integração. (SPÍNOLA, 1974,
p.202).
126
130
O esquema deveria partir do poder exercido pelas Assembleias Legislativas provinciais, seguido de
Parlamentos Estaduais até chegar no sufrágio dos cidadãos de cada Estado, conforme Estatuto elaborado
por cada Estado. As leis deveriam ser votadas localmente e, no que fosse relativo às leis gerais do País, os
tribunais centrais ou federais supervisionariam constituindo-se assim Estados Federados. Dentro dessa
estrutura a metrópole se constituiria como uma província autônoma, como todas as demais parcelas do País,
cada Estado com seu Governador eleito por sufrágio direto.
131
Esse esquema, além de afastar Portugal da construção de uma verdadeira unidade, evitava a evolução e
conduzia a Nação à desagregação, já que tanto os cidadãos portugueses quanto os africanos desejavam ser
cidadãos de fato. Porém, aqueles que permaneciam no poder os afastavam da participação essencial na
vivência nacional, partindo do pretexto da impreparação das massas, caso contrário seria impossível exigir
que as mesmas cumprissem com os seus deveres como cidadãos (SPÍNOLA, 1974). Vale recordar o relato
de Spínola relacionado ao episódio do líder mandinga na Guiné e a amargura do mesmo por ser excluído
das tomadas de decisões locais, além de ser considerado analfabeto. Ver capítulo II, pág.112.
132
O que poderia dar-se em três fases:
I) Realização imediata das transformações necessárias ao estabelecimento de uma base da partida
para uma estrutura federativa, estabelecimento de bases e estatutos e início na descentralização dos poderes,
governos, etecetera. Essa fase seria preparatória.
II) Etapa de transformação, a fim de estabelecer a ligação indispensável ao encadeamento do
processo, individualização, estruturação, composição dos órgãos que deveriam entrar em pleno
funcionamento na próxima fase. Eleições, elaboração de estatutos.
127
III) Entrada em funcionamento do novo esquema e dos órgãos correspondentes. No final desta fase,
ficaria completamente implantada a estrutura da nova República Federal Portuguesa. [...] (SPÍNOLA, 1974,
p. 220-223).
133
O primeiro princípio seria parar de exigir do País sacrifícios tão pesados sem uma finalidade palpável,
sem objetivos ou programas realistas com o qual a Nação se identificasse. O segundo princípio residiria no
quadro de segurança e de planificação socioeconômica conduzindo a uma complementaridade que a todos
beneficiaria, com a justa participação de todos. O terceiro princípio consistiria na mobilização de todos os
recursos, voltando-se principalmente para a substituição da mobilização militar pela civil no continente
africano, para a “[...] construção acelerada, com os africanos, de comunidades multirraciais florescentes”.
(SPÍNOLA, 1974, p.169).
134
Recordar o relato de Spínola onde o mesmo afirma que tanto Senghor quanto Amílcar Cabral teriam
reconhecido o despreparo das populações da Guiné para regerem a si mesmas, assim como a necessidade
de um período de 10 anos pra prepará-las para uma solução federativa. Ver capítulo I, pág. 40.
128
(SPÍNOLA, 1974, p. 192) e reitera defender a tese federativa por ser “[...] dos que creem
firmemente no portuguesismo da nossa gente africana [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 198) e
por ser esta a única que daria real expressão ao País plural que os portugueses
idealizavam. Além disso, em sua obra País sem Rumo, Spínola recorda que
Sobre este tema, julga-se de interesse – embora meramente histórico –
rememorar que a solução federalista fora defendida, entre outros, por
Amílcar Cabral em 1960, como sendo a que melhor se ajustava ao caso
da Guiné. Quer isto dizer que, se o Governo português tivesse sabido
evoluir a tempo para um esquema desse tipo, poderia ter evitado não só
a guerra na Guiné como, talvez, em Angola e Moçambique. (SPÍNOLA,
1978, p. 11).
135
A solução política apresentada por Spínola em sua proposta, aproxima-se como vimo da Commonwealth
britânica, de uma federação que apostava numa autonomia progressiva e gradual assim como o
colonialismo britânico pôs em prática no continente africano e asiático. Sobre isso ver a obra
BIRMINGHAM, David. The decolonization of Africa. Introduction of History. UCL Press, 1995.
136
No original: “Britain was the first imperial power to acknowledge that it could benefit by granting
self-government to its colonies. [...]” (BIRMINGHAM, 1995, p.4).
137
No original: “[...]Britain was the first imperial power to acknowledge that it could benefit by granting
self-government to its colonies. It also calculated that a negotiated transfer of power would avoid the need
to defend the colonies by force of arms when frustrated nationalist claims for independence led to violent
protest. The economic and strategic benefits of holding the colonies, it was thought, could be maintained
without the political and financial cost of direct control. [...]” (BIRMINGHAM, 1995, p.4).
129
138
Inicialmente, com a exceção da Guiné Conakri de Sekou Touré, todos os demais países se interessaram
pela opção federalista. A constituição da Federação do Mali deveria ser composta por Alto Volta, Daomé,
Senegal e o Sudão Francês (Federação dos Quatro). O Sudão e o Senegal aprovaram sem dificuldades a
nova constituição federal. Entretanto, em Alto Volta e Daomé o desfecho é diferente. Devido às pressões
sofridas, essas nações acabam por não dar continuidade à adesão, pondo fim à Federação dos Quatro. Ainda
assim, o Sudão e o Senegal optam por seguir em frente com a federação e, unidos pela mesma, proclamam
a independência em 20 de junho de 1960. Porém, em consequência de divergências políticas,
administrativas e religiosas, dois meses depois a Federação teve oficialmente um fim. (DIALLO, 2011).
139
Em entrevista ao historiador Fernando Rosas na Rádio Antena 2, o General Costa Gomes menciona a
obsessão de Spínola em fazer uma federação de expressão lusa, Em suas palavras, Spínola tinha a pretensão
de transformar Portugal “[...]Numa comunidade de estados federados, mas claro que isso talvez tivéssemos
podido fazer em 195.., depois da guerra, 45, entre 45 e 50, talvez pudéssemos.[...]Na altura em que a França
pretendeu fazer[...]” (GOMES, 1998).
140
De dentro do regime houve as iniciativas de José Silvestre Ferreira Bossa, na Índia, onde exercia o cargo
de governador. Em busca de consolidar a posição portuguesa, dá início a uma reorganização administrativa,
entra em contato com Gandhi e defende a possibilidade de um plebiscito para a população da índia decidir
o seu futuro. Porém, sua demissão em 1947 interrompe as negociações. Em 1962, Adriano Moreira sugere
uma reforma federalista, enquanto ministro do Ultramar. Homem de Mello, em 1962 publica uma obra
denominada Portugal, o Ultramar e o Futuro, onde apontava uma solução federalista de inspiração
americana. De fora do Regime, em 1963 os norteamericanos trariam aos portugueses o Plano Ball
(RODRIGUES, 2004, p.101), e em 1965 o Plano Anderson. Ambos foram sumariamente rejeitados por
Salazar – ver PINTO, António Costa. O Fim do Império Português: A Cena Internacional, a Guerra
Colonial, e a descolonização, 1961-1975. Lisboa: Livros Horizonte Lda, 2001, p.26.
130
do ocorrido nas demais Nações. Segundo Luís Nuno Rodrigues, Spínola mostrava-se “[...]
coerente com a solução federativa que preconizara em Portugal e o Futuro e que também
já tinha sido defendida, muitos anos antes, por Venâncio Deslandes [governador-geral e
comandante-chefe de Angola] e pelo próprio Marcello Caetano, em 1962141. [...]”
(RODRIGUES, 2010, p. 2). Além disso, António de Spínola não via outra forma de
salvaguardar a unidade do País. Segundo ele, seria
[...] nos seus traços muito gerais, uma hipótese de estruturação política
do País. Acreditamos firmemente na sua viabilidade, que apenas
depende da nossa capacidade e da nossa coragem para enfrentar o
desafio do futuro e de firmeza para resistir às pressões que, das extremas
direita e esquerda, haveriam de procurar opor-se à realização do mais
formal desmentido das suas asserções. (SPÍNOLA, 1974, p. 224).
Em linhas gerais, essa era a terceira via defendida por António de Spínola, tese
que o mesmo diz defender por portuguesismo e sobretudo por respeito aos que morreram
em terras de África (SPÍNOLA, 1974), por ser a única capaz de salvaguardar a
lusitanidade integrando o todo nacional. Afinal, segundo o General: “[...] O que no fundo
prevalece, a maior ou menor prazo, é a vontade do povo; e, por isso, nada conseguiremos
se a grande massa dos africanos não for parte actuante no processo [...]” (SPÍNOLA,
1974, p. 165). Esse foi, no fundo, o mesmo pensamento que guiou a aproximação do
General às elites da Guiné e, embora ele acreditasse que os africanos não se encontravam
preparados para assumir a administração dos seus destinos, reitera que caberia a Portugal
criar as condições necessárias para tal. Pois seria na maioria africana que residiria de fato
a expressão do povo português nos territórios ultramarinos, e não nas populações brancas
normalmente privilegiadas nos cargos públicos, realidade que o mesmo buscou alterar na
Guiné. Além disso, Spínola recorda que
A “belle amitié” experimentada no Katanga seria, a tal respeito, um
precedente aliciante, em que os europeus da África portuguesa
poderiam depositar esperanças; mas nada garante que num quadro de
intransigência essa possível realidade se torne efectiva. A saída
desenha-se então bem nítida, podendo, na linha de defesa desses
europeus, ocorrer futuras Rodésias. Também, portanto, do ponto de
vista do sector europeu ultramarino, se vê um perigoso resvalar para a
141
Enquanto Ministro das colônias (1944-1947), Marcello Caetano defendia que a independência poderia
mostrar-se catastrófica para as populações do Ultramar, em função de seu atraso civilizacional.
Recomendava uma adequação da situação colonial, devendo abolir-se a hierarquia entre metrópole e
Ultramar e buscar-se uma equiparação dos interesses de ambos, o que poderia dar-se através da concessão
de autonomia administrativa, permitindo a participação das populações nas decisões locais (LOPES, 2017).
Em 1962, quando consultado a respeito de uma proposta apresentada por Sarmento Rodrigues, então
Governador-Geral de Moçambique, sobre a revisão do sistema governativo das províncias ultramarinas,
Caetano teria sugerido uma eventual solução federalista para o Ultramar.
131
Deste modo, para que esse processo se consolidasse de forma tranquila seria
necessário “[...] fomentar e dar expressão às verdadeiras elites africanas dentro de um
contexto assente nas estruturas tradicionais [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 165). Tais
estruturas tradicionais deveriam evoluir por síntese natural143, assim se evitaria a
“anarquia tribal” que dominava o continente. Diante disso, as elites africanas deveriam
ser progressivamente inseridas no governo em diversos níveis e setores da administração
pública e privada, dispondo cada governo regional de autonomia suficiente para resolver
as suas necessidades específicas sem gerar condicionalismos atrofiantes.
Para o General, o nivelamento econômico só seria possível a partir da livre
expressão individual, o que não acarretaria em prejuízos a um poder coordenador ou
moderador que definisse em linhas gerais o caminho a seguir. Contudo, “[...] Chegar-se-
ia a tanto pela ampliação da autonomia até os limites comportáveis pela estrutura política
prevalecente, o que se atingiria plenamente numa constituição do tipo federativo.”
(SPÍNOLA, 1974, p. 166). Apenas ao final deste esquema:
Finalmente, a maioria africana. As nossas populações africanas, com
prolongamentos étnicos de um e outro lado das fronteiras das províncias
ultramarinas, estabelecem confrontos que, embora nos sejam
francamente favoráveis em muitos aspectos, não o são num, que apesar
de tudo, supera todos os outros: não serem administradas por irmãos de
raça. Por enquanto, mantêm-se do nosso lado e ao nosso se batem, e
isso por três razões: o primeiro, porque localmente ainda somos os mais
fortes, o que em ambiente africano é de importância primordial;
segundo, porque lhes proporcionamos benefícios de ordem econômica
e social superiores aos que auferem os seus irmãos de cor além-
fronteiras; e, terceiro, porque ainda acreditam numa possível evolução
para um estatuto autónomo no contexto de uma comunidade portuguesa
em que continuam interessados. Quando estas três razões
142
A federação Central Africana teve início em 1953, quando a Grã-Bretanha pensou que a descolonização
controlada a partir de uma estrutura federal seria a melhor forma de evitar maiores desgastes na região da
bacia do Zambeze. Segundo David Birmingham, os três territórios envolvidos (Malawi [Niassalândia],
Zâmbia [Rodésia do Norte] e o Zimbabwe [Rodésia do Sul, depois Rodésia]) eram muito diferentes entre
si, mesmo que fossem economicamente complementares. Conforme o autor, após a Primeira Guerra
Mundial havia sido dado aos colonos um estatuto semiautônomo de auto-governo. (BIRMINGHAM, 1995).
Segundo o pesquisador nigeriano Kalu Ezera, a Federação Central Africana teria também como objetivo
promover uma “[...] associação racial entre os colonizadores minoritários mas dominantes europeus e a
maioria omissa dos indígenas africanos. [...] Essa experiencia foi fruto do cérebro do governo inglês, mas
recebeu o apoio liberal dos colonizadores europeus.” (EZERA, 1964, p. 125). Tais colonizadores desejavam
construir um domínio britânico legal, estável e seguro para a sua permanência na região. Entretanto, a
Federação Central Africana representou uma parceria tão desigual que logo entrou em colapso
(BIRMINGHAM, 1995).
143
Novamente Spínola faz menção ao ideário colonial do séc. XIX, o qual preconizava o primado da cultura
europeia e um assimilacionismo ao natural. O simples contato entre culturas seria o suficiente para que os
colonizados evoluíssem.
132
144
António de Spínola defende que qualquer atitude paternalista deveria ser combatida, por ser atitude
intolerável e com consequências eram evidentes. Todavia, afirma que não deveria confundir-se
paternalismo com promoção social. Para o autor, era necessário pôr-se em uma intensa promoção social e
valorização da pessoa humana, a fim de tornar todos os portugueses capazes de exercerem a sua cidadania,
o que não se configuraria em paternalismo.
145
Além disso, António de Spínola visava a opinião internacional e um referendo (quando com resultado
positivo) mostraria ao mundo que a Comunidade era a representação do autêntico sentimento nacional e
133
não insistência de Salazar e Caetano. Deste modo, não restariam margens para contestações e,
consequentemente, a pressão externa se atenuaria.
134
como anular o que o autor considerou como uma anomalia gerada por princípios
uniformizantes, seria a construção de uma verdadeira solidariedade. Nesse sentido,
haveria dois processos possíveis para se tentar atingir esse fim:
I) Sob uma fórmula imperial decorre da aglomeração de Estados sob a
hegemonia de um deles, o que sempre tenderia à desagregação violenta.
Quanto mais hegemônico, mais rápida seria a desagregação.
II) Pela via democrática, onde os Estados federados reconheceriam o
imperativo da centralização e delegariam cada vez mais poderes em um
governo central de cuja formação participariam e cuja atração
conservariam o poder de julgar. Esta formação tenderia a uma integração
pacífica a partir de uma solidarização consistente.
Para Spínola, a segunda opção era certamente a mais confiável, porque ele
considerava que quanto antes o caminho do federalismo fosse adotado mais tranquila e
pacifica seria a construção de uma comunidade. Entretanto, os portugueses
permaneceriam afastados deste caminho caso se mantivesse a estrutura bipolarizada
baseada no reconhecimento de dois blocos, Metrópole e Ultramar. Afinal, nem o Ultramar
era um todo homogêneo, nem a Metrópole deveria ser considerada como um polo de igual
peso, e por isso a Nação se encontrava longe “[...] de uma ponderabilidade equitativa das
diversas parcelas da Nação, proclamada una e indivisível na igualdade de todas, mas na
prática una e indivisível sob a hegemonia de uma. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 57). Nas
palavras do autor, este seria
[...] o mal que está na origem da crise actual caracterizada pela
deterioração das forças morais que unem os grupos humanos que
compõem a Nação. E contra tal haverá que promover a unidade de todos
os portugueses numa base de amplo debate e activa participação, em
ordem a firmá-la em ideais com total e inequívoca expressão nacional.
Por isso mesmo temos vindo apelando para a unidade dos portugueses,
europeus ou africanos, na construção de um Portugal renovado de todos
e para todos; mas raras vezes esses apelos têm encontrado eco nas
facções que pretendem essa unidade pela abdicação total da parte
contrária, a quem exigem a incondicional rendição a uma pretensa
evidencia própria. [...] (SPÍNOLA, 1974, p. 52-53).
tranquilidade da ordem pública, por esta ser abertamente defendida e resultar do “pensar
e do sentir” de todos os cidadãos. Spínola prossegue:
Pretendemos, assim, sustentar quanto pode de facto unir os Portugueses
e demonstrar quanto de inconveniente há nos dogmas que nos desunem.
Para tanto, argumentamos com o fruto da experiência vivida numa
discutida parcela da Pátria por aqueles que melhor do que ninguém
sentem toda a gama dos esforços ali realizados na construção de uma
comunidade portuguesa, em clima de livre debate. (SPÍNOLA, 1974, p.
54).
Precisamos compreender que o debate que Spínola mencionava não era “Lesa-
Pátria” por não discutir a constituição da Nação como ele entendia e defendia (ou seja,
no seu todo pluricontinental), e sim versava sobre a busca de uma unidade e como essa
se daria, dentro de fórmulas uniformizantes ou dentro de uma estrutura pluriestatal,
constituindo-se assim em uma federação de Estados. Além disso, o autor guiava-se pela
premissa de que a soberania residia na Nação, sendo que por Nação se entendia toda a
população nacional. Portanto, não levar em conta a opinião popular seria totalmente
inconstitucional, independente de qual fosse o pretexto, e por isso o referendo não poderia
ser rejeitado. Assim sendo, na visão de Spínola a constituição federal não lesava a Nação,
o Estado ou sequer a autoridade exercida por esse Estado, apenas alteraria a forma como
esse Estado seria constituído e como seria executada essa autoridade (SPÍNOLA, 1974).
Segundo o autor:
[...] o mundo de hoje caminha para uma nova definição do Estado,
comportando cada vez menos a sua concepção extranacional, a impor
uma ordem à margem da participação dos seus cidadãos. É que, por
mais social que um Estado seja, já não pode ser considerado terreno
reservado a privilegiados, havendo que abrir-se à participação de todo
136
cidadão, preparado ou não, pois que, por mais flagrante que seja a
impreparação, esta jamais será reconhecida por aqueles que se virem
afastados, e que por legitima reação vão engrossando, de forma
crescente, a força ameaçadora da ordem política estabelecida.
(SPÍNOLA, 1974, p. 69).
que preservasse a matriz portuguesa no continente africano não pôde ser incluída no
discurso oficial e o slogan “autonomia progressiva” rapidamente foi abandonado. É nesse
sentido que Spínola afirma que o fulcro da questão não era se os africanos desejariam ou
não serem integrados, mas sim se estariam “[...] os europeus, decididos a abdicar da
dominação e da hegemonia para construir realmente um país plurinacional e fortemente
unido [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 127). Spínola prossegue:
[...] E que, de duas, uma: ou realmente desejamos misturar-nos, nós
metropolitanos, na nova Nação que queremos construir, em pleno pé de
igualdade com africanos e asiáticos igualmente portugueses, aceitando
por natural a preponderância da maioria territorial e étnica, e então
seremos coerentes com a tese integracionista, ou não conseguiremos
uma correspondência entre o que proclamamos e os nossos verdadeiros
desígnios, e então jamais alcançaremos a desejada unidade, nem
poderemos esperar qualquer evolução favorável da compreensão alheia.
(SPÍNOLA, 1974, p. 127).
Diante desse quadro, o autor conclui que qualquer política ultramarina que não se
norteasse pela franca aceitação do direito dos povos à autodeterminação estaria
condenada cedo ou tarde ao fracasso por não ser mais compatível com o sentimento das
populações ultramarinas. Spínola define autodeterminação como
[...] a liberdade de os povos, por intermédio de instituições próprias,
democraticamente constituídas, afirmarem a sua expressão no contexto
internacional, decidirem os fins comuns a alcançar e as acções a serem
empreendidas para os atingir, e exercerem a soberania na ordem interna
sem outras limitações nem delegações senão as que por eles próprios
forem decididas. E nesta definição haverá de entender-se por povos os
grupos demo-geográficos homogêneos, individualizados nos seus
elementos população-território, dispondo de tradições, necessidades, e
aspirações comuns, e portadores de características que perfeitamente os
individualizem e permitam a sua conformação por comparação com
outros adentro do contexto universal. [...] (SPÍNOLA, 1974, p. 143).
A partir dessa definição o autor reitera que “[...] nem nós próprios, no nosso foro
íntimo, admitimos possa ser rejeitado quando é posta em causa a nossa autodeterminação.
[...] Não será, pois, defensável que neguemos a outros aquilo de que não abdicamos.”
(SPÍNOLA, 1974, p. 142). Além disso, defende ter a experiência demonstrado ser a
maioria dos africanos “gratos que essa Pátria seja uma comunidade portuguesa”, ideal
pelo qual lutavam e continuariam a lutar, desde que tivessem certeza de que se buscariam
soluções que permitissem oferecer-lhes expressão em um contexto adequado e a
preservação de sua verdadeira independência, diferentemente das “independência
fictícias” que se viam pelo continente. Desejava-se uma independência que oferecesse às
populações dos territórios portugueses no ultramar “[...] uma Pátria autêntica, que sintam
138
Diante disso, de forma alguma deveria ser uma pretensão portuguesa relegar os
cargos de administração aos ditos mais aptos. Tal ação seria o mesmo que colocar os
territórios portugueses sob o regime neocolonial o que, segundo o autor, salvo raríssimas
exceções “[...] não trouxe a verdadeira independência, mas apenas a substituição da
139
dependência do colono branco pela dependência do colono negro. [...]” (SPÍNOLA, 1974,
p. 206). Nesses esquemas, as massas acabavam permanecendo no seu estatuto de sujeição
devido ao fato de suas estruturas governamentais serem compostas por “[...] elites
totalmente divorciadas das realidades africanas. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 206). A título
de resolver este impasse, o autor afirma conhecer “[...] suficientemente os africanos para
saber no que acreditam e no que não acreditam; e podemos afirmar que o africano crê,
com espantosa perspicácia, descortina no olhar e na expressão dos seus interlocutores
[...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 172) e recorda que na Guiné se optou por uma solução de
compromisso e representatividade das massas a qual, “[...] tal como a sua participação
directa no exercício do poder que lhes pertence, é assegurada pelo “Congresso do Povo”
que, na sua reunião anual, aprecia, discute, julga e delibera, formulando conclusões com
força executiva suficiente. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 206-207). O General alega não
pretender afirmar que “[...] a experiencia seja generalizável, embora se creia que o é; mas
é uma experiencia, citada, a título de clarificação de conceitos, perante quantos se
empenharão em destruir o sistema aqui preconizado com base em objecções de ordem
estrutural. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 207). De qualquer forma, afirma que todas as
objeções representariam problemas solúveis desde que se desejasse honestamente debate-
las e resolve-las, a fim de evitar que ocorresse no Ultramar português o que vinha se
alastrando pelo continente africano: o avanço do domínio neocolonial.
Para o autor, o neocolonialismo seria resultado da interferência externa nas
questões africanas. Estas questões teriam em sua origem conflitos diversos devido ao que
o General denomina de “estádio pré-capitalista”. Ou seja: a tribo ainda seria “[...] a
verdadeira nação africana, caracterizada por uma distribuição igualitária e muito
colectivizada dos meios de produção. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 77). Segundo o autor,
exatamente a influência ocidental, ao trazer novas concepções a esses esquemas, teria
gerado nas sociedades tradicionais um sentimento de ameaça à sua soberania, sentimento
do qual teriam resultado os movimentos rebeldes contra os poderes constituídos,
atendendo aos interesses das potencias neocoloniais.
Diante desse quadro, a única forma de competir com as influências neocoloniais
seria inserindo-se de fato na África e ocupando o lugar que competia aos portugueses.
Entretanto, ao continuar se tratando a questão como um tabu, abria-se as portas aos
“manipuladores do comunismo internacional” e vivia-se, segundo o autor, a “[...]
preocupação, aliás fundada, da subversão comunista. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 230).
Além disso, Spínola salienta que o abandono puro e simples do Ultramar não seria o
140
mesmo que resolver o problema. Tal atitude, além de ameaçar a sobrevivência nacional,
seria o mesmo que abandonar e relegar todos os que lá construíram as suas vidas sob a
Bandeira Nacional a soberanias duvidosas, aos interesses de outras potências ou a hordas
intoxicadas psicologicamente ao serviço e a soldo de neocolonialismos (SPÍNOLA,
1974)146. Spínola prossegue:
[...] Não pode encarar-se, senão como criminosa demissão, toda a
orientação que vise a substituição pura e simples das actuais estruturas
institucionais pelas dos partidos revolucionários, que não representam
as populações africanas nem os seus legítimos interesses. Seria
criminoso e fundamentalmente anti-português abandonar à sua sorte
esses milhares de europeus e milhões de africanos que em nós confiam.
(SPÍNOLA, 1974, p. 146-147).
Além disso, o General busca demonstrar ao longo da obra que o conflito que o
País enfrentava não era um problema local. Ao invés disso, seria “[...]resultado de uma
fenomenologia diversa, sobreposta e concorrente que se impõe analisar nos seu vários
planos e separar nas suas várias componentes[...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 148), a fim de
compreender quais seriam realmente as ambições africanas e o que havia de exploração
146
Spínola se refere às populações brancas que residiam no Ultramar e que, a exemplo do massacre às
aldeias brancas ocorrido em 15 de março de 1961, correriam um perigo real caso fossem abandonadas.
141
147
Nesse sentido, se Portugal permanecesse oferecendo às suas populações no Ultramar apenas opções
teóricas inaceitáveis, os “movimentos subversivos” aparentariam ser a única solução viável aos autóctones,
quando, na realidade, era totalmente possível oferecer-lhes sólidos valores de substituição perante os quais
os partidos subversivos ficariam ultrapassados. Para o General, era primordial que se enfrentasse a situação
e se dialogasse com os africanos. Assim, “[...] A paz, então, viria por acréscimo, e Portugal reencontraria o
seu rumo e a sua posição na África e no Mundo.” (SPÍNOLA, 1974, p.232).
142
estabelecer uma estratégia para resolver o problema que condenava a Nação: a guerra
colonial. Entretanto, conforme vimos, a estratégia apresentada por Spínola ultrapassa as
fronteiras portuguesas ao propor uma unidade que envolvia três continentes: a
Comunidade Luso-Afro-Brasileira. Nesse subcapitulo, abordaremos a forma como
António de Spínola instrumentaliza e ressignifica as relações com o Brasil e teorias
correntes como o Lusotropicalismo Freyreano. Além disso, faremos uma breve análise da
recepção da obra do General e do seu exílio no Brasil, a fim de adicionar alguma luz a
um período delicado e ainda pouco revisitado da história das relações luso-brasileiras.
Como vimos, António de Spínola defende ter escrito Portugal e o Futuro a fim de
denunciar o sonho “chauvinista” de se alcançar uma vitória militar no continente africano,
sem que se soubesse como atingir tal fim (SPÍNOLA, 1974). Diante disso, o livro teria
sido escrito com o intuito de trazer a público a informação de que, entre os caminhos
possíveis, encontrava-se uma terceira via para a construção de uma verdadeira
comunidade lusa. Na obra, o autor afirma que a solução eminentemente nacional que
defendia visava resolver o problema ultramarino pela criação de um sentimento que
unisse de fato os vários grupos humanos constitutivos da Nação e que os tornasse “[...]
aptos a conscientemente permanecerem portugueses com a plena aceitação da opinião
mundial. [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 147).
Segundo Fernando Catroga, com o tempo “[...] o termo nação passou a aludir a
uma população quando sintetizada como uma identidade colectiva, ou melhor, como um
“nós” [...]” (CATROGA, 2008, p. 20). Ou seja, assim como o termo Pátria, o termo Nação
carrega consigo uma forte carga afetiva, sendo este “nós” constituinte da Nação o que, na
visão do General Spínola, se encontraria ameaçado. A crise que assolava Portugal e que
Spínola se vê no ímpeto moral de denunciar, na verdade, ameaçava o que este considerava
como a “unidade moral portuguesa”. Diante disso, a desagregação e a abdicação dos
superiores interesses nacionais não seriam uma opção.
Embora António de Spínola reconhecesse que, assim como o imobilismo conduzia
a Nação para o separatismo pela via revolucionaria, uma tese autonomista também
poderia conduzir a tal fim. Contudo para o autor na primeira opção seria possível
preservar no mínimo “a unidade moral da cultura portuguesa” (SPÍNOLA, 1974, p. 148).
143
Portanto, o apoio a essa grande comunidade lusa viria apenas se Portugal adotasse
teses politicamente defensáveis. Afinal, contrariamente ao que vinha-se imaginando, o
abandono não seria para o General a única solução defensável. Spínola afirma que:
[...] Os próprios Estados Unidos que, como nós, construíram sobre
características semelhantes de heterogeneidade e descontinuidade o
país que hoje são, não deixariam por certo de reconhecer os
fundamentos de uma tese construída à semelhança da que esteve na
origem da nação americana. Isto sem esquecer, por exemplo, a
heterogeneidade que caracteriza a própria União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas e o estatuto político dessa União. (SPÍNOLA,
1974, p. 154).
inevitavelmente impactando a opinião pública. Além disso, nem todos partilhariam dos
mesmos conceitos expressos pelas suas elites a respeito da posição portuguesa no mundo.
Entretanto, apesar das aparentes dificuldades, Spínola acreditava ser a Comunidade Luso-
Brasileira a que oferecia maiores perspectivas para Portugal, não só pelo passado histórico
das relações com o Brasil, como também pela defesa de interesses em comum, mas apenas
se Portugal entrasse nessa comunidade prestigiado e engrandecido. Em suas palavras:
“[...] Julgamos ser esse, de facto, o caminho, mas para tanto seria de aceitar desde já a sua
ulterior evolução para mais amplas dimensões numa perspectiva “luso-afro-brasileira”.
[...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 96). Para tal
[...] conviria desfazer, desde já, o equívoco decorrente da
visualização que nos revela como País eminentemente europeu,
quando afinal, constitucionalmente, a maioria dos cidadãos é
africana e é na África que se situa a quase totalidade do território
nacional. Tudo então ficaria claro, coerente e aceitável, pois
seríamos finalmente iguais a nós próprios: um País
pluricontinental, com estados na Europa, em África e na Ásia,
cujo desenvolvimento e autonomia aceleraríamos, para com
esses estados formarmos uma comunidade em que todos
beneficiaríamos das posições e potencialidades do todo
português. (SPÍNOLA, 1974, p. 200-201).
O General reconhece que poderiam alegar ser essa uma via demasiado longa,
todavia seria certamente a mais segura por garantir rapidamente o restabelecimento da
paz. Reconhece também que poderia haver dúvidas sobre a estabilidade de um regime
federativo, devido ao fato de Portugal carecer de um Estado dissuasor como a U.R.S.S.,
ou de um alicerce de tradição moral e alta noção de solidariedade como nos E.U.A., ou
sequer de um elevado grau de formação cívica e consciência nacional como possuiriam
os alemães. Entretanto, Portugal possuiria a força da razão (SPÍNOLA, 1974). Além
disso, diante deste plano, Spínola afirma crer que nenhum português de boa-fé poderia
afastar-se dos imperativos que em última instância se traduziriam “[...] na construção
acelerada de um Portugal renovado, aberto a um espírito franco e decisivamente
comunitário [...]” (SPÍNOLA, 1974, p. 167).
Contudo o General defendia desde 1970 o reconhecimento unanime de que pra
que essa estabilidade fosse alcançada fazia-se necessário uma renovação que deveria
necessariamente “[...] realizar-se nos domínios do espírito e na esfera da orgânica, para
que a retaguarda responda, efectiva e oportunamente, às solicitações das frentes africanas
146
148
Ao longo da história imperial portuguesa, “Portugal” foi adotando inúmeras bandeiras com o intuito de
defender a sua permanência no Ultramar. Com o início das guerras coloniais, em 1961, o lusotropicalismo
viu seu papel fortalecido como uma das principais bases da ideologia colonial do Estado Novo português.
Segundo Leonard Yves, o providencialismo que se apodera das autoridades as levou a ver a sua ação como
uma suposta continuidade história de uma missão divina, como uma espécie de uma nova “cruzada”, um
“empreendimento cientifico”, a “última cruzada” em defesa dos valores cristãos. Essa era a missão histórica
de Portugal. (YVES, 1997, p.222).
147
por lealdade para com essas fiéis populações. [...]”149 (SPÍNOLA, 1974, p. 159). Deste
modo, segundo António de Spínola, se a ação portuguesa fosse “[...] alicerçada na língua
comum e na total tolerância e harmonia cultural e racial, poderíamos construir no mundo,
como resultante da expressão inequívoca da vontade das populações, uma federação de
estados portugueses. [...]” (SPÍNOLA, 1974. p. 159). Spínola prossegue:
[...] É evidente que não desarmariam as cobiças e interesses que
agravam os nossos problemas; mas a agressão seria fortemente
minimizada, pois teria a enfrentá-la vinte e cinco milhões de
portugueses de todas as raças, apoiados numa razão inatacável. Em
torno de um tal ideário não temos dúvidas que se processaria, de facto,
a unidade moral dos portugueses de todos os quadrantes. [...]
(SPÍNOLA, 1974. p. 159).
149
Nesse trecho, António de Spínola refere-se sobretudo às populações brancas portuguesas que residiam
no Ultramar.
150
Segundo Cláudia Castelo, o conceito de “modo português de estar no mundo” foi introduzido no discurso
acadêmico nacional português nos anos 50, por Adriano Moreira, sendo rapidamente reproduzido pelo
discurso do Estado Novo como uma forma particular portuguesa de se relacionar com o outro, o que os
distinguia dos demais colonizadores. Esse “modo português” de se relacionar seria muito mais humano,
tolerante, fraterno, plástico e cristão. (CASTELO, 2011, p.112).
150
O governo português defendia ser Portugal um todo uno e indivisível unido pelas
características “tipicamente portuguesas” sintetizadas no conceito de Portugalidade. Tal
conceito passou a ser teorizado após a apropriação feita pelo salazarismo da teoria de
Freyre de que os territórios por onde o Português passou seriam unidos pela sua cultura,
pelo sentimento e pelo sangue, constituindo um só povo (FREYRE, 1953). Isso deu-se
sobretudo porque o Estado Novo Português precisou construir uma retórica em que a
identidade cultural fosse além do sentimento de pertença a um território compartilhado
por um grupo de pessoas (SOUSA, 2017), precisou criar uma ideia de continuidade que
ultrapassasse as fronteiras nacionais. Em Portugal e o Futuro, António de Spínola
defende a força aglutinadora da portugalidade:
Temos sempre defendido ser essa portugalidade uma franca, aberta,
generosa e tolerante maneira de viver e conviver. Nela cabem a nossa
franqueza rude, o nosso espírito de aventura, a nossa capacidade de
adaptação, a nossa aptidão para fazer amizades e cultivar amizades, a
simplicidade com que oferecemos auxílio, a total ausência de
preconceito racial e essa espantosa capacidade de miscigenação cultural
que nos confere uma extraordinária aptidão para sobreviver em
qualquer ambiente. Foi essa portugalidade que nos abriu as portas de
África e é nela que têm de mergulhar as raízes do nosso futuro.
(SPÍNOLA, 1974, p. 157).
151
Eduardo Lourenço define a hiperidentidade como resultado do déficit da identidade portuguesa,
fenômeno que acabava por conduzir a uma compensação imaginaria sobrecarregada de mitos e de
fantasmas baseados em um passado idealizado. (LOURENÇO, 2016)
151
Como vimos ao longo deste trabalho, as ideias defendidas por Spínola resultavam
da interpretação de ideias e teorias que já eram correntes, tanto dentro quanto fora de
Portugal, ao longo dos doze anos em que o General maturou as ideias que dariam origem
à sua obra. Inclusive, a própria defesa de uma suposta portugalidade que justificava a
permanência portuguesa no continente africano não era um pensamento “original” do
autor. Ou seja, como vemos, embora a proposta defendida por Spínola divergisse
frontalmente da posição oficial adotada pelo governo nas práticas coloniais, os
“elementos” que a embasavam, no fundo, não traziam a público nada de novo154.
152
No original: “[...] Déjà, en 1944, Gilberto Freyre avait averti son public nord-américain que les ‘pays de
langue Portugaise’ allaient peut-être ‘s’organiser en une espèce de fédération, avec une citoyenneté
commune et des droits et des responsabilités communs’. [...] (ENDERS, 1997, p.205-206).
153
Recordemos o debate que António de Spínola faz em Portugal e o Futuro sobre a necessidade de
identificar-se os verdadeiros “valores essenciais”, a fim de defendê-los. Ver capítulo I: 1.3.
154
As teorias de Gilberto Freyre já haviam sido anteriormente reivindicadas pelos defensores da tese
federalista, como evidenciado pelo trabalho publicado por Manuel José Homem de Mello, Portugal, o
152
ultramar e o futuro, que é a favor da evolução para um sistema de autogoverno no âmbito de uma sociedade
verdadeiramente multirracial. Uma solução federalista de inspiração norte-americana. Homem de Mello
afirmou que a sua obra "não era uma tentativa de solução. Era uma tentativa de tocar o sinal de alarme no
sentido de indicar que a solução oficial é que não era solução". Embora a obra tenha dado o que falar, não
foi ouvida pelo regime. (BARBOSA, 2007). Além da obra de Homem de Mello, antes de Portugal e o
Futuro outras obras com ideias semelhantes já haviam sido publicadas. Em 1962, Armando Cortesão
publica a obra Realidades e Desvarios Africanos e António Maria Godinho publica uma obra descritiva de
vários territórios ultramarinos, chamada O Ultramar Português: Uma comunidade multirracial. Antes
disso, em 1953, António Alberto de Andrade publica a obra O Tradicional anti-racismo da acção
civilizadora dos portugueses, que surgiria totalmente remodelada em 1968, com o nome Muitas raças, uma
nação: Esboço da teoria do Humanismo dos portugueses. Por sua vez, em 1969, António Ferronha publica
a obra Ideário de Portugalidade. Consciência da Luso/Tropicalidade, onde defende uma língua
unificadora, uma cultura comum, uma só bandeira, uma só Pátria. (TORGAL, 2009).
155
Vercapítulo II, pág. 76-78.
156
No original: “[...] mais une appropriation aussi tardive qu’ambiguë qui épouse fidèlement les
principales inflexions de la politique et de l’idéologie coloniales du régime. (YVES, 1997, p.211).
157
No original: “La situation dans les colonies portugaises à partir des années cinquante et en particulier à
partir des années soixante, liée à l’éclosion des guerres coloniales, a provoqué un effort idéologique
particulier menant à une réinterprétation de l’abordage « socio-historique » de Gilberto Freyre. [...]”
(OPPENHEIMER, 1997, p.473).
153
158
No original: “sur le plan idéologique , le régime salazariste se rapproche du lusotropicalisme et tente de
promouvoir l’image d’une présence portugaise outre-mer différente de celle des autres pays d’Europe en
Afrique et en Asie : contrairement à ses voisins européens qui chercheraient à imposer outre-mer des valeurs
spécifiquement européennes, le Portugal se serait efforcé de transmettre des valeurs chrétiennes, de portée
universelle et de se mélanger avec les populations indigènes, créant ainsi une véritable civilisation « luso-
tropicale », sorte de paradis terrestre protégé des affres de la modernité.” (YVES, 1997, p.217).
159
A tentativa francesa de edificar uma federação era nitidamente uma inspiração para o General. A
proposta trazida a público em Portugal e o Futuro, conforme mencionamos anteriormente (VerCapítulo I:
1.2.2) teria inclusive sido sugerida por Léopold Sédar Senghor.
154
estava impresso nos códigos da lei, além de ser uma prática social
fortemente incrustada naquele país, particularmente no Sul.
(SCHNEIDER, 2019, p. 219).
160
No original: ‘[...] voulu retenir du lusotropicalisme l’idée d’une identité lusitane semée à travers le
monde pour l’éternité, résistante à tous les appétits et à tous les nationalismes. [...]’ (ENDERS, 1997, p.206).
161
Embora não tenha sido incorporado oficialmente o Lusotropicalismo não tenha sido incorporado ao
discurso oficial Salazarista, e sim a sua versão adaptada, segundo Leonard Yves até mesmo Salazar citou
obras ou palavras de Gilberto Freyre, ou utilizado como uma essencial referência indireta, por louvar a
excepcionalidade da política multirracial portuguesa. (YVES, 1997). Em um discurso de 1961, Salazar teria
afirmado que a política multirracial era uma criação portuguesa que resultava das excepcionais
características portuguesas, esta seria a base das sociedades luso-tropicais, que constituiriam uma forma de
vida e um estado de espirito. Além de Salazar outros agentes do governo, como Franco Nogueira quando
ocupava o cargo de Ministro das Relações Exteriores de 1961 a 1969, afirmava que os portugueses eram
os únicos que praticavam o multirracialismo. (YVES, 1997).
155
162
Paralelamente à instrumentalização do Lusotropicalismo pela retórica colonial portuguesa, houve a
penetração deste no meio acadêmico e cientifico português, em especial nos setores ligados à formação dos
quadros da administração ultramarina, a fim de incutir nos portugueses a ideia da benignidade da
colonização, processo no qual a propaganda foi fundamental. A partir de 1961, com o início do conflito
colonial e a chegada de Adriano Moreira ao Ministério do Ultramar, foi promulgado um pacote de medidas
legislativas reformistas inspiradas no Lusotropicalismo e o processo de apropriação das teorias de Freyre
foi “radicalizado”, a fim de moldar o comportamento dos agentes coloniais no ideário luso-tropical.
(CASTELO, 2010).
163
Embora tenha sido Gilberto Freyre quem de fato se debruçou sobre o ‘modo português de estar no
mundo’ havia intelectuais como Roger Bastide, Toynbee e outros que, na década de 1960, possuíam
pensamentos semelhantes ao Lusotropicalismo de Freyre.
164
No original “des déformations que ni le régime salazariste, ni même, peut-être, Gilberto Freyre,
n’avaient envisagés.” (YVES, 1997, p.225).
157
Freyre, Um Brasileiro em Terras Portuguesas, que tinha como base a experiencia do autor
pelos territórios portugueses e que carrega consigo uma serie de contradições e
ambiguidades as quais, aos nossos olhos, tornam-se de difícil compreensão, em vista que
[...] O mesmo texto que exalta a benignidade da colonização portuguesa
na África e parece legitimar o regime colonial português no contexto
do pós-Segunda Guerra Mundial coloca a comunidade lusotropical
(comunidade de sentimento e de cultura) acima dos estreitos
nacionalismos, encarando a soberania portuguesa sobre as colônias
como dispensável e transitória. A comunidade lusotropical –
transnacional ou supranacional – existia independentemente do império
português. [...] (CASTELO, 2010, p. 29).
Diante disso, segundo Lacerda, a obra seria de grande interesse aos brasileiros por
um motivo simples. Tal motivo, nas palavras do mesmo, seria a obra tratar de uma
federação, que poderia ser, “[...] o começo de uma confederação dos povos de fala
portuguesa, em cinco continentes plantados e caracterizados por certo tipo de cultura que
tem na mestiçagem racial e cultural sua primeira e principal contribuição ao mundo. [...]”
(LACERDA, 1974, p. 11). Lacerda prossegue: “[...] Ao Brasil cabe levar por diante esta
158
idéia, perante o mundo. Por quê? Exatamente porque ele, que é a maior prova dessa
vocação, será também o maior beneficiário dela. (LACERDA, 1974, p. 11).
Estas são as palavras escolhidas por Carlos Lacerda165 para iniciar o prefácio
escrito por ele, em 31 de março de 1974, para a obra Portugal e o Futuro: Análise da
Conjuntura Nacional. Nas palavras do jornalista: “Por tudo o que diz e pelo que sugere,
este é um livro fácil de ler mas difícil de esquecer. Pois, além de mudar o rumo de um
grande povo, numa hora decisiva, ele pode atualizar noções que andam um tanto confusas
[...]” (LACERDA, 1974, p. 12). Carlos Lacerda estava em Lisboa quando a obra do
General Spínola fora publicada e, segundo Manuel Carvalho, teria dado “[...] um máximo
de quatro meses de sobrevivência ao Governo de Marcello Caetano. Errou por excesso”
[...] (CARVALHO, 2014).
Desde o início de 1974 já circulavam em Portugal rumores sobre a intenção de
Spínola de publicar um livro166. Entretanto, apenas dois dias antes da publicação Caetano
teria finalmente começado a ler a obra do General, não restando dúvidas sobre as
intenções da publicação: “[...] ao fechar o livro tinha compreendido que o golpe de Estado
militar, cuja marcha eu pressentia há meses: era agora inevitável.” (CAETANO, 1974, p.
192). Caetano convoca para a manhã do dia 22 uma reunião com Spínola e seu superior
165
Carlos Lacerda (1914-1977) foi um jornalista e político brasileiro membro da União Democrática
Nacional (UDN). Foi vereador em 1947, deputado federal entre 1955 e 1960 e governador do estado da
Guanabara entre 1960 e 1965. Fundou, em 1949, o jornal Tribuna da Imprensa e, em 1965, a editora Nova
Fronteira. Em 1964, foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo de Portugal. Em 1968, teve
os seus direitos políticos cassados pela ditadura militar.
166
Em sua obra Depoimento, Caetano relatou só ter tido contato com Portugal e o Futuro no dia 18 de
fevereiro: “[...] Não pude lê-lo nesse dia, nem no seguinte [...] E só no dia 20, consegui, passadas já as onze
da noite, encetar a leitura [...]” (CAETANO, 1974, p. 192). Entretanto, segundo Zélia de Oliveira, esta teria
sido a versão que Caetano quis deixar para a história, pois já teria conhecimento da obra, tendo acusado
demitir-se caso Spínola a publicasse. (OLIVEIRA, 2012).
159
direto, Costa Gomes167. Nessa reunião, os generais teriam reafirmado a sua fidelidade ao
governo e, assim, contando com uma ampla campanha publicitária168 orquestrada dentro
do maior sigilo, Portugal e o Futuro chega às bancas naquele mesmo dia.
A publicação de Portugal e o Futuro instaurou um verdadeiro caos no
Marcellismo. Segundo Caetano, “[...] A publicação do livro, vinda de onde viera, era
grave em si: mas ainda se tornava mais grave pela ocasião em que ocorria, a dar uma
doutrina e a emprestar uma bandeira ao chamado movimento dos capitães [...]”
(CAETANO, 1974, p. 194). A repercussão da publicação fez o Presidente do Conselho
considerar impossível continuar a governar169. Em vista disso fez um “convite”, no dia
13 de março, aos generais Spínola e Costa Gomes, para que comparecessem a uma
audiência que deveria ocorrer no dia 14, deixando claro as consequências do não
comparecimento170. Porém, para a surpresa de Caetano, nenhum dos dois generais
compareceu à audiência, fato que culminou na exoneração dos generais, no dia 15 de
março.
Logo após a exoneração dos generais, nota-se nos quarteis uma considerável e
anormal movimentação. Àquela altura Caetano ainda não sabia, mas havia dado o
arranque para a consolidação das conspirações que vinham ocorrendo desde meados de
1973. Não tardou até Caetano receber um telefonema urgente: tinha início o Golpe das
Caldas171. No dia 16 de março de 1974, um grupo de oficiais do Regimento de Infantaria
5 das Caldas da Rainha leva a cabo uma tentativa de golpe de Estado que, apesar de não
167
Em suas memórias, Marcello Caetano detalha a conversa tida com os generais. * Ver Depoimento, p.
193.
168
Apesar das constantes visitas da PIDE às livrarias, a campanha foi um sucesso e a obra rapidamente
esgotou a tiragem inicial (50 mil copias), vendendo em um curto espaço de tempo 220 mil cópias, tornando-
se um best-seller que ultrapassou as fronteiras lusas. Segundo Oliveira: “[...] Temendo que o governo não
autorizasse a publicação, os 50 mil exemplares do livro começaram a ser compostos em várias tipografias,
havendo ainda um exemplar datilografado em França e preparado para ser editado. [...]” (OLIVEIRA, 2012,
p.6-7). Além disso, exemplares foram enviados através de uma pessoa de confiança para Moçambique e
Angola. A obra chegou a ter edições publicadas em Alemão.
169
Para Caetano, “[...] O manifesto lançado, sob o nome de Spínola, pelo estado Maior General, traduzia a
intenção de um golpe de Estado [...]” (CAETANO, 1974, p.193). Diante disso, era necessário que cada um
assumisse as suas responsabilidades na crise que se aproximava, não cabendo a ele renunciar. Na verdade,
nem os generais reivindicam o poder e nem o Presidente da República aceitou a demissão de Caetano.
170
O evento que ficaria conhecido como “cerimónia da brigada do reumático” tinha como objetivo que
Spínola e Costa Gomes, na presença do Presidente do Conselho e de todos os oficiais generais em serviço
na metrópole, afirmassem que as forças armadas não tinham política própria. (CAETANO, 1974).
171
Segundo Francisco Ruivo, “O golpe falhado de 16 de Março é considerado por vários autores como uma
tentativa dos spinolistas se apropriarem da liderança do Movimento. Para Sánchez Cervelló, tendo Spínola
e os seus fiéis como preocupação fundamental o Ultramar, o golpe das Caldas justifica-se por o Movimento
não ter ainda um Programa definitivo, o que permitiria a Spínola impor as suas soluções federalistas.
Spínola sustenta o oposto, ou seja, que o 16 de Março não foi mais do que a tentativa de afastar os oficiais
da sua confiança.” (RUIVO, 2013, p.89). Spínola expõe a sua visão sobre o Golpe das Caldas em sua obra
de 1978, País sem Rumo nas páginas 100-102).
160
ter obtido sucesso, serviu para medir as forças do governo e o despreparo das mesmas
para reagir diante de um golpe. Agora sim, Caetano sabia que os dias do regime estavam
contados.
O fracasso da tentativa de golpe, ao invés de desestimular os membros do MFA,
acabou ensinando-lhes importantes lições e fortalecendo ainda mais as suas forças. Um
novo golpe foi planejado e posto em prática. Às 00h do dia 25 de Abril, tinha início o
evento que mudaria os rumos da história portuguesa e faria o mundo assistir, em menos
de vinte e quatro horas, ao derrube da mais antiga ditadura europeia contemporânea172.
Diante dos acontecimentos, Marcello Caetano dirige-se ao quartel do Carmo, onde
é cercado e concorda em render-se, desde que a “transferência de poder” fosse para uma
figura de conhecida autoridade, responsabilidade e, sobretudo, legitimidade, para que o
“poder não caísse na rua”. A figura escolhida por Caetano acaba por ser o General
António de Spínola173 (REZOLA, 2005). De modo geral, a transmissão de poderes
aconteceu de forma tranquila. Não cabia mais a Caetano resistir e ele sequer possuía
condições para tal. Marcello Caetano tenta implicar à transição de poder um caráter de
“transferência de poder”, estabelecendo dessa forma uma aura de continuidade.
Bastou apenas um dia para que, praticamente sem resistências, um golpe militar
empreendido por oficiais intermédios derrubasse a longuíssima ditadura que suprimia
Portugal há mais de 40 anos. Conforme ressaltou Kenneth Maxwell: “É preciso oponentes
para fazer uma revolução sangrenta, mas em 25 de abril de 1974 a vontade de resistir a
um golpe não existia. [...]” (MAXWELL, 2006, p. 90).
Agora Presidente da JSN (Junta de Salvação Nacional), Spínola mantêm os eixos
estratégicos do seu pensamento e projeto político, apenas adaptando-os à nova realidade,
mas conservando o essencial no tratante à questão colonial, tendo como base fulcral as
teses expostas em Portugal e o Futuro. A partir disso, o que se verifica são tentativas
constantes de Spínola e de seus apoiadores de ultrapassar e substituir o programa do
172
Para uma análise detalhada dos acontecimentos do dia 25, ver: REZOLA, Maria Inácia. António de
Spínola. Grandes Protagonistas da História de Portugal. Editora Planeta DeAgostini, S.A., Lisboa, 2005.
Sobre as múltiplas interpretações do 25 de Abril, ver: MAXWELL, K. O império derrotado: revolução e
democracia em Portugal. Rio de Janeiro: Editora Companhia das Letras, 2006.
173
Inicialmente, o escolhido dos militares para comandar o movimento era Costa Gomes. Porém, Portugal
e o Futuro acaba catapultando Spínola para o poder, atribuindo-lhe a legitimidade necessária para tal. Tal
legitimidade seria reforçada por Caetano quando este telefona diretamente para Spínola. Ao receber o
telefonema de Caetano, o General apressa-se em garantir não possuir ligações com a direção do golpe, mas
encontrava-se disposto a auxiliar na busca de soluções. Às 17h, Spínola recebe outro importante
telefonema, dessa vez do comando do movimento, autorizando-o a aceitar a rendição de Caetano.
(REZOLA, 2005).
161
MFA174 pelas teses expostas em Portugal e o Futuro. Estava dada a largada nas
divergências entre António de Spínola e o MFA175.
Spínola logo começa a defender que a missão do MFA já estava concluída e que
estes deveriam retornar para os quarteis, deixando que ele o Presidente da República176
conduzissem o processo político daquele momento em diante. Internamente, o primeiro
mês após o 25 de abril é marcado pelas sucessivas tentativas de Spínola em tomar uma
posição sobre a descolonização.177 Enquanto isso, internacionalmente
[...] os correspondentes estrangeiros e diplomatas decifravam
laboriosamente a sintaxe barroca de Portugal e o Futuro em busca de
alguma pista para o que poderia acontecer a seguir em Lisboa, o
programa do movimento era pouco debatido, apesar do fato de logo ser
promulgado como a Constituição provisória da república portuguesa.
Esse foi um grave erro de avaliação, particularmente por parte dos
aliados de Portugal na Otan. Portugal e o Futuro foi importante porque
impeliu Spínola para a posição de liderança e notoriedade internacional.
Mas teve muito menos valor como indicador do pensamento entre os
que realmente haviam executado o golpe. (MAXWELL, 2006, p. 98).
Além das ingerências do MFA, havia outra questão com a qual o novo Presidente
rapidamente precisou preocupar-se. Para o espanto de Spínola, os temores de Caetano
mostravam-se legítimos, obrigando o General a lidar com uma explosão social que
destruiu a imagem de que a nação portuguesa era uma nação pacífica e apolítica178. A
174
O programa do MFA previa a constituição de uma Junta de Salvação Nacional que deveria salvaguardar
o programa até a formação de um governo provisório civil. Na noite do dia 25, em reunião com a JSN,
Spínola aceita as exigências da mesma, porém convence os militares a aceitarem a alteração de alguns
trechos do programa, para amenizar o caráter “comunista”, assim como o tocante à descolonização. Na
madrugada do dia 26, Spínola faz uma proclamação ao país, lê o programa do MFA e proclama o seu
compromisso em garantir a sobrevivência da Nação no seu todo pluricontinental, o que muitos
consideraram uma tentativa de ultrapassar o MFA. Ver a obra País sem Rumo, que contêm todos os
discursos de Spínola, as principais leis assinadas por ele, assim como o próprio programa do MFA.
175
A desconfiança de que Spínola pretendia colocar em prática as teses expostas em Portugal e o Futuro
fez com que o MFA mantivesse a estrutura da conspiração e criasse a Comissão Coordenadora, com intuito
de salvaguardar o seu programa. Isso levaria Spínola a afirmar que a JSN, e consequentemente ele, nunca
possuíram o poder de fato devido às ingerências da Comissão Coordenadora.
176
Em 15 de maio de 1974, Spínola toma posse como Presidente da República. Seu mandato foi marcado
pela fidelidade ao seu projeto político que, segundo Rezola, “[...] passava por uma solução federativa de
tipo referendário para o problema colonial e uma transição política ‘musculada’, de cunho presidencialista,
sem sobressaltos no domínio económico-social. [...]” (REZOLA, 2005, p.114-115).
177
Enquanto o MFA preconizava uma descolonização imediata, Spínola tentava impor estratégias
semelhantes às que haviam sido postas em prática por ele na Guiné-Bissau.
178
A agitação popular torna-se evidente já no 25 de Abril quando, contrariando o apelo dos militares para
que as pessoas permanecessem em suas casas, uma multidão tomou conta das ruas. Com o desenrolar da
situação, o governo buscou fazer acordos, não alcançando grandes resultados. O presidente manifesta-se,
alegando não ser contra a revolução em Portugal, inclusive a grande revolução já estaria feita, mas o caos
não poderia continuar. Além disso, a crescente aproximação entre o MFA e os movimentos sociais acaba
aumentando a legitimidade destes para questionar e dificultar as movimentações do Presidente, o qual,
diante da incapacidade de controlar o poder, mostra-se cada vez mais isolado com seu projeto. Sobre a
relação estabelecida entre as movimentações sociais e a Presidência de Spínola ver: RUIVO, Francisco.
162
ocorre. Entretanto, diferente do que Spínola pensava, a “maioria silenciosa” não era a
maioria ou sequer representava a maioria, sendo rapidamente reprimidos pelo MFA.
Diante da falta de apoio e da demissão eminente, António de Spínola adianta-se e
renúncia ao cargo de presidente da república no dia 30 de setembro de 1974182. Conforme
ressalta Mária Inácia Rezola “[...] O homem que meses antes se comprometera a servir o
País com a mesma isenta devoção com que sempre o servira como soldado revelava assim
que não pretendia transformar-se num presidente decorativo.” (REZOLA, 2005, p.
126).183 Em seu discurso de renúncia na dramática sessão do Conselho de Estado, pouco
antes das 11 horas da manhã, Spínola apenas repetiu o que vinha dizendo há pelo menos
cinco meses. Para o General, o 25 de Abril na sua “pureza original” contida no
“verdadeiro espirito” do programa do MFA nunca se cumpriu, foi uma “revolução traída”
que encaminhava a nação à ruína.
Após a renúncia à Presidência da República, embora não tenha se mantido ocioso
em nenhum momento, António de Spínola mantêm uma posição discreta, recebendo em
sua residência regularmente a visita de apoiadores dos meios político e militar, que
incluíam desde membros do PPD (Partido Popular Democrático) e do CDS (Partido do
Centro Democrático Social) a membros do PS (Partido Socialista). Segundo Mária Inácia
Rezola, o afastamento de Spínola foi mais aparente do que real “[...] e o próprio Spínola
terá confidenciado ter aprendido mais de política entre Outubro e Dezembro de 1974 que
em toda a sua vida militar.” (REZOLA, 2005, p. 131). As movimentações dos chamados
“Spinolistas” procuravam explorar os descontentamentos internos ao MFA com o
objetivo de fragilizar o movimento, extinguir a sua Comissão Coordenadora e reconduzir
Spínola à Presidência da República, a fim de condicionar o processo de descolonização
bem como as movimentações em Portugal. (NORONHA, 2016).
Em finais de 1974, as movimentações “Spinolistas” se intensificam. Entretanto,
não há como afirmar com certeza se a intenção destes e de Spínola era efetivamente
concorrer às eleições. Além disso, segundo Rezola, a psicose golpista era evidente,
restando apenas saber qual seria o lado a dar o primeiro passo: “[...] Certo é que, a partir
de meados de Fevereiro, os acontecimentos se precipitam num processo muito pouco
claro que ultrapassa o próprio “núcleo duro” dos fiéis do general. [...]” (REZOLA, 2005,
p. 133).
182
Após a renúncia de Spínola, a JSN nomeia Costa Gomes como novo Presidente da República.
183
Discurso de renúncia de António de Spínola à Presidência da República, gravado e veiculado pela
RTP: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/renuncia-de-antonio-de-spinola/
164
184
Na manhã do dia 11 de março de 1975, o quartel do Regimento de Artilharia Ligeira n.º 1 (RAL 1, na
zona da Encarnação, em Lisboa), foi atacado por efetivos provenientes da Base Aérea 3 (BA 3, em Tancos),
em uma operação militar cujo epicentro era o general António Spínola. Para uma descrição detalhada dos
eventos ocorridos no dia 11 de março, ver REZOLA, Maria Inácia. António de Spínola. Grandes
Protagonistas da História de Portugal. Editora Planeta DeAgostini, S.A., Lisboa, 2005, p.137-139.
185
Em 25 de março de 1975, Spínola é expulso pelo conselho da revolução das fileiras das forças armadas.
186
Sua fuga de helicóptero no final do dia 11 de março, de Tancos para a base aérea espanhola de Talavera
la Real, perto de Badajoz, criou um problema diplomático que as autoridades de Madrid se apressaram em
resolver, enviando o General para o Brasil sem comunicar às autoridades brasileiras. Em repúdio à atitude
espanhola, o desembarque do General no Brasil não é autorizado, obrigando-o a voar com seu staff para
Buenos Aires, onde o Governo argentino lhe concede asilo durante um “período de trânsito”. Durante o
período de trânsito, Augusto Pinochet oferece asilo ao general. Entretanto, no final do dia 15, Spínola recebe
de Brasília o estatuto de exilado. Sua entrada é autorizada mediante a assinatura de uma declaração de
renúncia a atividades políticas no território brasileiro.
165
Figura 6: Capa da primeira edição de Figura 7: Nota escrita por Helio Fernandes sobre a
Portugal e o Futuro, pela editora publicação da edição brasileira de Portugal e o
Nova Fronteira. Futuro, no jornal Tribuna da Imprensa. 30 abril de
1974, p.3.
Figura 9: Nota sobre a crise portuguesa e a Figura 10: Nota sobre a publicação e
publicação de Portugal e o Futuro. Diário de conteúdo de Portugal e o Futuro. Correio
Notícias, em 13 de março de 1974. p. 4. da Manhã, 21 de março de 1974, p.5.
187
No início de maio de 1975, Spínola recebe, de um grupo de exilados portugueses na Espanha, a proposta
de criação de um movimento de resistência sob a sua liderança. Convite que o General aceita de imediato,
empenhando-se em sua construção. Inicialmente, o movimento deveria chamar-se “Frente de Salvação
Nacional”. Entretanto, Spínola recusa essa denominação e opta pelo conceito de “movimento democrático
de libertação” depois de o assunto ter sido “[...]largamente meditado e resolvido com base no conselho do
Dr. Carlos Lacerda, homem de excepcional experiência política”. (RODRIGUES, 2014, p.76).
188
Nessas viagens, Spínola palestrou em diversos lugares: “[...] Na Universidade de Connecticut, profere a
conferência O Declínio do Ocidente. Discursa depois no prestigiado Council of Foreign Relations. A
destruição da democracia em Portugal seria um passo para a destruição da liberdade no Ocidente, insiste.
No dia 19, reúne mais de quatro mil pessoas num evento em Newark. Quatro dias depois está no Canadá,
falando para 800 pessoas numa sala. A imprensa relata que duas a três mil tinham ficado sem lugar no
exterior.” (CARVALHO, 2014).
170
permanecer ativa durante apenas três meses189. A recusa do governo brasileiro em ajudar
Spínola foi a primeira de uma série de derrotas que o ex-General ainda sofreria.
O Brasil, mesmo antes do 25 de Abril, já era um dos destinos preferidos dos
exilados portugueses. Entretanto, com o início da revolução o número de portugueses que
se instalam no território brasileiro cresce exponencialmente, pois parte da elite econômica
portuguesa fugindo das “incertezas da revolução” desloca-se para o Brasil. Conforme
vimos, com Spínola não foi diferente. Entretanto, o exílio do ex-General no Brasil acabou
aumentando o “mal-estar” nas relações bilaterais luso-brasileiras. Além das entrevistas
concedidas, Spínola vinha desenvolvendo a partir do território brasileiro todo um
conjunto de atividades políticas centralizadas no MDLP e que tinham como intuito uma
intervenção em Portugal.
Além de contrariar a declaração assinada por ele como pré-requisito para a sua
entrada no Brasil, em que renunciava a qualquer atividade política, as movimentações de
Spínola também contrariavam os princípios de não ingerência e de oposição a todas as
formas de terrorismo que conduziam a política externa brasileira, comprometendo cada
vez mais as relações entre o Brasil e Portugal. Segundo Luís Nuno Rodrigues: “[...] O
governo português alertava para o teor das atividades de Spínola e para o grave prejuízo
que elas inevitavelmente trariam às relações luso-brasileiras, se acaso a sua continuidade
fosse permitida.” (RODRIGUES, 2014, p. 74).
Apesar disso, Spínola não recebe nenhuma “sanção” do governo brasileiro e
continua concedendo uma série de entrevistas, fazendo inúmeras viagens em diligências
do MDLP, inclusive se encontrava nos EUA quando recebeu notícias sobre o 25 de
Novembro de 1975190. Além disso, no dia 18 de agosto António de Spínola escreve e
envia uma carta aberta ao Presidente de Portugal, Costa Gomes, questionando-lhe “Para
onde leva Portugal” e convocando todos os portugueses a se juntarem ao MDLP no
caminho para a reconstrução da Pátria191.
189
Na reunião, Spínola teria solicitado uma área no interior do país para treinamento de 600 homens
exilados no Brasil, ou que viriam de Angola e Portugal, a fim de invadir Portugal e assumir o governo. No
dia 23, a solicitação chega até o Presidente Ernesto Geisel, que apenas escreveria em um despacho sem
data: “Não podemos e não devemos nos engajar”. Spínola insistiria, afirmando que a sua solicitação não
traria “custos” para o Brasil pois, após o treino, as tropas seriam transferidas para algum lugar na Espanha
em no máximo seis meses, de onde partiria a ação, provavelmente em dezembro daquele ano. Mas o pedido
continuou sendo negado. (CARVALHO, 2014).
190
Quando recebe notícias do 25 de Novembro, Spínola encontra-se ativo em busca de apoios internacionais
ao MDLP, preparando-se para uma ação mais direta no território português. Esta sempre foi uma das
intenções de uma facção interna do MDLP, a ação armada a fim de “salvar Portugal”. Entretanto, os
acontecimentos de 25 de novembro inviabilizavam a ação do movimento.
191
Ver SPÍNOLA, António de. Ao serviço de Portugal. Lisboa: Ática/Livraria Bertrand, 1976.p.263-265.
171
192
Sobre as mobilizações de Spínola no território brasileiro, ver RODRIGUES, Luís Nuno. António de
Spínola no exílio: a estadia no Brasil. História (São Paulo) v.33, n.1, p. 66-96, jan./jun. 2014 ISSN 1980-
4369. Ver também a reportagem escrita por Manuel Carvalho, em 27 de abril de 2014, para a Revista 2.
https://www.publico.pt/2014/04/27/politica/noticia/quando-spinola-quis-invadir-portugal-com-ajuda-do-
brasil-1633441
193
Spínola começa a adotar uma postura mais prudente, afastando-se dos membros mais extremistas do
MDLP. A partir de 16 outubro, todas as declarações e ações deveriam ser previamente autorizadas por ele.
Spínola passou a controlar cada vez mais as ações do MDLP, em uma tentativa de melhorar a imagem do
movimento.
194
Em março de 1976, disfarçado de membro de um movimento de direita europeu, o jornalista alemão
Gunter Wallraff se infiltra no MDLP, afirmando estar interessado em financiar as suas atividades. Walraff
conheceu desde membros envolvidos com questões operacionais até financiadores. Reúne-se com o líder
do movimento no restaurante Schellenburg, em Dusseldorf e, com um gravador, registra a conversa tida
com Spínola, onde o ex-General aceita apoio para desencadear um golpe em maio ou junho de 1976 em
Portugal. As consequências do “escândalo Walraff” acabaram sendo muito graves para o ex-General,
atrasando o seu retorno a Portugal.
172
Figura 15: Um muro em Campo de Ourique onde se pode ler “Spínola Nazi”.
Figura 16: Um muro em Campo de Ourique onde se pode ler “Spínola Morte Já!”
195
No início de abril de 1976, foi aprovada em Portugal a nova Constituição da República e, no dia 25 de
abril, realizaram-se as primeiras eleições para a Assembleia da República.
173
196
Diante do seu afastamento político, retoma a escrita e publica mais dois livros: Ao Serviço de Portugal,
em 1976 (contendo todos os discursos, falas e entrevistas do período de abril de 1974 até fevereiro de 1976)
e País Sem Rumo: Contribuição para a História de uma Revolução, em 1978 (onde o General detalha todo
o período em que esteve na Presidência da República).
197
Em 1984, Spínola foi convidado a presidir as comemorações nacionais do 10º Aniversário da Revolução.
Em 1987, Mário Soares envia o General para Macau, durante as comemorações dos 300 anos da polícia de
Macau.
198
Em 1981, Spínola recusa o título alegando ética militar. Porém, o seu requerimento é indeferido em 1982
pelo Presidente da República.
199
Em dezembro de 1995, António de Spínola dá entrada no Hospital Militar de Belém, onde permaneceu
por escolha própria até o seu falecimento, em 13 de agosto de 1996, aos 86 anos de idade, por embolia
pulmonar. Nesses meses em que esteve hospitalizado, Spínola recebe políticos de diversos setores, inclusive
internacionais. Segundo Carlos Alexandre de Morais, até o ex inimigo de Spínola, o então presidente da
Guiné-Bissau, Nino Vieira, teria visitado Spínola no hospital (MORAIS, 2007).
174
Embora “a ideia” de Spínola, conforme Lacerda enunciou, não tenha mudado o curso da
história e uma comunidade de expressão lusófona não tenha sido verdadeiramente
erguida, Portugal e o Futuro: Análise da Conjuntura Nacional e o seu autor deixaram um
marco não apenas na história portuguesa, como também na história das relações luso-
afro-brasileiras.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.
p. 46). Em Portugal e o Futuro, António de Spínola expõe o seu plano político para a
questão Ultramarina portuguesa, o que ele denomina de “uma saída portuguesa”, “uma
terceira via”, “uma tese equilibrada” que seria capaz de levar Portugal a encontrar a paz
e a ser inquestionavelmente aceite.
Como foi demonstrado nesse trabalho, além de estabelecer uma proposta, Spínola
tece inúmeras críticas à economia e à própria estrutura política portuguesa e questiona
quais seriam as “realidades permanentes” portuguesas? Isso porque, para ele, se possuía
alguma pretensão de permanecer uma Nação, Portugal precisava ser renovado, adotando
teses defensáveis que partiriam da plena aceitação do direito dos povos à
autodeterminação. Na obra, Spínola analisa repetidamente questões como: as
consequências econômicas e políticas da guerra, o medo do comunismo e do avanço
soviético e o medo de que Portugal deixaria de ser uma Nação se perdesse os seus
“prolongamentos territoriais”.
Todas essas questões influenciavam não apenas a forma como o General
demonstrava ver o mundo, mas como via Portugal e os portugueses dentro desse mundo.
Embora Portugal e o Futuro tenha sido considerado um manifesto por Caetano, na obra
o General não advoga nada absurdo. Pelo contrário, apegava-se ao slogan construído pelo
próprio Marcello Caetano, “Renovação na Continuidade”, e continuava a defendê-lo
mesmo após o próprio governo já o ter abandonado. Diante disso, concluímos que a
peculiaridade do pensamento exposto por Spínola em Portugal e o Futuro reflete a
tomada de consciência do mesmo de que não havia condições de manter o Ultramar pela
força das armas. Era necessário desistir da Guerra, mas não do Ultramar, que deveria e
precisava ser conservado e, para isso, um novo ideário deveria ser traçado.
Para tal, o autor propõe a construção de uma Commonwealth dos países de fala
portuguesa, a construção de uma comunidade pluriestatal, pluricultural e pluricontinental:
a comunidade Luso-Afro-Brasileira. Esse é o ideário Nacional apresentado por António
de Spínola em Portugal e o Futuro. A visão utópica de Spínola residia na crença
demasiadamente otimista de que caso fossem consultadas, as populações africanas
prontamente desejariam permanecer portuguesas. Não havia espaço no pensamento de
Spínola para uma eventual derrota em um referendo direto. Para ele, os africanos queriam
ser portugueses, mas em um contexto africano de livre expressão.
A Utopia de Spínola começa a delinear-se quando este afasta-se do ideário
defendido pelo Estado Novo português e, mostrando-se conhecedor dos processos
ocorridos no continente africano, busca unir o que ele próprio aprendeu ao longo dos anos
177
200
No original: “[...] ce sont les forces et les conjonctures qui inventent et déterminent les classifications
et ensuite les identités.” (BARBEITOS, 1997, p. 324).
178
de 1968, a perda de Goa em 1961 e até mesmo Brasil, o “filho próspero”, e não o 25 de
Abril de 1974. E em hipótese alguma devemos olhar para Portugal e o Futuro com os
olhos de 11 de março de 1975. Além disso, não devemos olhar para obras como Portugal
e o Futuro como se a história fosse construída entre bons e maus, pois a própria história
é muito mais complexa do que isso (SOUSA, 2017). Mais complexas ainda são as obras
e teorias propostas por agentes políticos/intelectuais.
Ao analisar Portugal e o Futuro precisamos ter em vista, conforme aponta Marçal
de Menezes Paredes, “[...] que a identidade é um campo conceitual forjado por um
processo de demarcação de evidências.” (PAREDES, 2010). Além disso, quer sejam
fabricadas inconscientemente ou conscientemente, segundo Arlindo Barbeitos as
identidades “[...] representam categorias mentais e construções sociais e políticas. Nesse
sentido, somos todos homens imaginários!” (BARBEITOS, 1997, p. 324, tradução
nossa).201 Deste modo, a proposta que António de Spínola apresenta em sua obra passa
certamente por um conjunto de pensamentos e mitos nacionais. Embora em alguns
momentos o autor critique os mesmos e até consiga ultrapassá-los em alguma medida,
ainda assim a sua obra não sai invicta da influência destes mitos.
Em outras palavras, a ideia de Spínola de que ao propor a construção de uma
comunidade lusíada estaria rompendo com os mitos que “encerravam a Nação em uma
espiral de contradições” mostra-se na prática, em sua obra, uma ilusão. Uma ilusão que
em parte resulta do fato de o nacionalismo português até aquele momento ser por via de
regra imperialista. Entre os mitos que vemos refletidos em Portugal e o Futuro, encontra-
se a mítica da mãe-pátria que dá à luz novas nações, dando assim ao mundo, a exemplo
do Brasil, nações livres e prósperas; uma excepcionalidade portuguesa ao se relacionar
com as “gentes”; assim como a existência de uma suposta Portugalidade e de uma unidade
de sentimentos e cultura capaz de unir “o todo” da Nação e de fazê-la prosperar em
estatutos autônomos, e onde um plebiscito obviamente daria bons frutos à nação.
Ao se relacionar com esses mitos, Spínola no máximo os “adapta”. Desta forma,
tanto a mística colonial quanto a experiencia vivida por ele no Ultramar acabavam por
reforçar o pensamento do General de que Portugal era constituído por uma unidade de
sentimentos e cultura, fruto da intensa miscigenação e heterogeneidade. Como salienta
Barbosa, Spínola “[...] não imaginava Portugal sem o Atlântico, nem este sem a presença
dos portugueses. Porém, haveria de divergir quanto à “ideia central e dominante – A
No original “[...] représentent des catégories mentales et des constructions sociales et politiques.”
201
construção do futuro a que nove séculos de História nos deram pleno direito.” (SPÍNOLA,
1974. p. 236).
Com estas palavras António de Spínola encerra Portugal e o Futuro: Análise da
Conjuntura Nacional, onde ao reafirmar os imperativos que o teriam levado a publicar a
obra, cai novamente nas armadilhas que tanto acusa a Nação de ser vítima. Conforme já
salientamos ao apresentar as suas teses, o General acaba inúmeras vezes por contradizer-
se: ressalta ser necessário desmontar os mitos, mas se utiliza do mito da capacidade
portuguesa de dar novos mundos ao mundo. E defende que após séculos de história os
portugueses tinham o direito de ocupar o seu lugar no mundo e de vislumbrar um futuro
no continente africano a partir da ideia da constituição de um espaço comunitário luso-
afro-brasileiro que integrasse o “mundo que o português criou”.
De acordo com a análise feita, renovamos a afirmação de Carlos Lacerda de que
“O livro do general Spínola não deve ser apenas lido. Deve ser dado a ler [...]”
(LACERDA, 1974, p. 12), mas sobretudo consideramos que a obra deve ser analisada
sem determinismos ou essencialismos que prejudiquem a compreensão da sua dimensão
e da sua importância. Obras como Portugal e o Futuro, quando sob olhar atento do
investigador, podem suscitar variadas interrogações que podem desdobrar-se em
inúmeras investigações. O que buscamos verdadeiramente ao longo da escrita desse
trabalho foi lançar algumas pistas que quiçá sejam capazes de instigar outros
pesquisadores a dedicar o seu olhar a essa obra que até hoje é muito lembrada, porém
pouco investigada.
Portugal e o Futuro, diferentemente da forma como ela é comumente interpretada,
não resultou unicamente do fato de Spínola ter percebido não haver lugar para ele no
Governo de Caetano. A obra constitui-se em uma última tentativa do autor de
consciencializar, se não o governo (recordemos que Spínola relata ter tentado sem sucesso
dialogar com o regime), então à Nação de que o momento era grave, de que haviam outras
possibilidades além daquelas que lhes eram até então oferecidas. E por isso não pode ser
lida tendo como pano de fundo o pós-25 de Abril. Precisamos reconhecer que Antes da
Revolução Portugal e o Futuro representava de fato uma obra ousada, tendo em vista a
conjuntura política portuguesa e a posição política e militar ocupada pelo seu autor. Por
sua vez, no pós-25 de Abril a obra assume um caráter profundamente conservador diante
do avanço da revolução.
António de Spínola escreve um livro a fim de trazer à público uma solução capaz
de conservar o “todo português” unido, ou seja, Portugal e o Futuro, é, antes de qualquer
182
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ANEXOS