Amoroso Pasolini, o Outro e Nós
Amoroso Pasolini, o Outro e Nós
Amoroso Pasolini, o Outro e Nós
www.dialogosmediterranicos.com.br
Número 9 – Dezembro/2015
Resumo Abstract
O presente ensaio apoia-se nas reflexões e The present essay leans on the reflections and
posicionamentos políticos de Pier Paolo Pasolini a political positions of Pier Paolo Pasolini regarding
respeito da infelicidade dos jovens no início dos the infelicity of young people in the beginnings of
anos 70, do aburguesamento do mundo (que the seventies, of the bourgeoisification of the
destrói dimensões históricas do mundo) e dos world (which destroys its historical dimensions)
lugares-comuns do pensamento tolerante and of the commonplaces of the tolerant thought
daqueles anos. A partir disso, pretende pensar of those years. From that, it pretends to think how
como as constatações de Pasolini tornam-se ainda Pasolini’s findings become still clearer in the
mais claras no tempo presente. Nesse sentido, present time. In this sense, it shows how
apresenta como o pensamento pasoliniano é Pasolini’s thought are extremely contemporary,
extremamente contemporâneo, sobretudo no que especially in what regards the empty discourses
diz respeito aos discursos esvaziados de of militants, which, in the name of certain
militantes que, em nome de certa tolerância, por tolerance, sometimes are too intolerant.
vezes são demasiado intolerantes.
A expressão da burrice, essa cacofonia sem esforços, está enfim liberada para
todos. Reproduzida e amplificada, ela opera num ritmo veloz de virulência,
que desautoriza o tempo reflexivo e reduz as chances de sermos inteligentes
juntos. Ela intoxica o diálogo, elimina sutilezas e contradições em nome de
uma pasteurização grosseira, sustentada pelo oportunismo retórico de clichês,
frases de efeito, sofismas e imposturas. É a naturalidade do senso comum
contra o esforço do pensamento crítico. O encontro com o editor de direita não
revela apenas que retrocedemos no nível das ideias (afinal de contas, trata-se
de um editor), mas que agora, se quisermos continuar conversando, teremos
que retroceder ainda mais, para explicar tudo de novo, uns aos outros, do zero.
Bernardo Carvalho
Quando dá essa entrevista, Pasolini está se recuperando de uma gastrite que o tira de
circulação, obrigando-o a passar um mês inteiro de cama. Para a sua “desesperada vitalidade”
1 CARVALHO, Bernardo. Encontro com um editor de direita. Documento digital disponível em:
http://www.blogdoims.com.br/ims/encontro-com-um-editor-de-direita14.10.2015 (Consultado em
30.10.2015.
2 A frase é de Júlio Pimentel Pinto, retirada da sua página do facebook em 30.10.2015.
3 PASOLINI, Pier Paolo. Intervista a Giorgio Bocca In «Il Giorno», 19 luglio 1966.
não deve ter sido uma boa experiência. Comenta com o jornalista que pela primeira vez
vislumbrava a velhice, sentia no corpo os primeiros sinais de fragilidade embora não tivesse –
digo eu – ainda 40 anos e, é de se lembrar, irá morrer com 53, em 1975.
Parto desse momento lateral na sua vastíssima produção por estar interessada em um
dos temas mais constantes em Pasolini, o da relação entre pais e filhos: quem é o jovem para
Pasolini, quem são os pais, como as gerações se comunicam? De início já é bom esclarecer: o
jovem como tudo mais em Pasolini não é sempre o mesmo e nem é um: é amado e celebrado
nos primeiros poemas, líricos e edílicos, dos anos 40 e angustiadamente tratados no seu filme-
testamento Salò. Há um sentimento de amor que caminha em direção ao desamor, dirá o
próprio poeta. Foi com essa compreensão, aliás, que Michel Lahud escolheu como título para a
primeira antologia brasileira de ensaios pasolinianos “Os jovens infelizes” 4.
Os ‘jovens’ de Pasolini não foram sempre infelizes mas a partir de certo momento, por
volta dos anos 60, o do nascimento irrefreável da sociedade de consumo que via surgir, se
transformam em “infelizes” ou até “monstros” (a “monstruosidade” dos jovens assume os
traços mais urgentes na última entrevista dada por Pasolini, um pouco antes da sua morte,
publicada com o título “Estamos todos em perigo”5).
O surgimento da “infelicidade” dos jovens modernos que se contrapõe à “felicidade”
dos meninos que viveram ainda a experiência do mundo ancestral e sagrado é exposta não só
como tragédia por Pasolini mas como seu próprio destino: a “tristeza” passa a ser seu
“sentimento do mundo”.
Um dos momentos significativos dessa crônica que nos conta sobre a relação de
Pasolini com os filhos e com os pais está no episódio, muito explorado, ao redor da poesia O
PCI aos jovens!, escrita e publicada em maio de 1968. Recebido como um escândalo pela
esquerda e pelos jovens universitários que haviam ocupado a Universidade de Roma, alguns
dos versos do poema ganharam autonomia e marcaram Pasolini, na época, como reacionário,
um velho pai que não compreendia as razões da revolução dos jovens. São estes os versos:
4 PASOLINI, Pier Paolo. Os jovens infelizes. Antologia de ensaios corsários. Org. Michel Lahud. Trad. M.
Betânia Amoroso e Michel Lahud, 1ª. Edição. São Paulo, Brasiliense, 1979.
5 Idem. pp. 237-245.
6 PASOLINI, Pier Paolo. Poemas. Org.: Alfonso Berardinelli e Maurício Santana Dias. Trad. e notas Maurício
S. Dias. Posf. M. Betânia Amoroso.1ª. Edição. São Paulo, Cosacnaify, 2015, p. 235.
7 “Discurso sobre os tabus que precisam ser ’quebrados a qualquer custo’ ” é o título do texto de
intervenção de Pasolini, publicado originalmente no Tempo Illustrato em 26/4/1974; posteriormente foi
incluído na seção “documentos e anexos” do livro Scritti corsari (1975) com o título de “M. Daniel – A.
Baudry: ‘Gli omossessuali’”. Não é absolutamente casual a organização do livro: o texto figura como
documento para se pensar as questões das “minorias”. A tradução do texto foi publicada em PASOLINI,
Pier Paolo. Os jovens infelizes... pp. 161-169.
8 A entrevista foi originalmente publicada em La Fiera letteraria, a. XLII, n. 50, 14 dicembre 1967.
(disponível em: http://www.vincenzomaddaloni.it/2015/09/ppp-piu-moderno-di-ogni-moderno/
Consultada em 15/09/2015)
9 Idem. Ibidem.
*
Walter Siti, crítico e escritor italiano reconhecido e premiado por seus romances, é
também o responsável pela organização da obra completa de Pasolini, a partir do final da
década de 90. Mas neste momento Siti é ainda um jovem, que envia a Pasolini, em 1970, seu
trabalho de final de curso, sobre a obra de Pasolini. 12 Após lê-lo, Pasolini escreve-lhe uma
carta.
No início da carta o poeta diz o seguinte:
Caro Walter,
como professor te dou nota dez (o que provavelmente ocorrerá); como objeto
do teu estudo, eis o que tenho a dizer:
O primeiro e o último capítulo foram os primeiros a serem escritos e são de
longe a melhor parte; para você ter uma ideia, seriam sem dúvida publicáveis
nas revistas mais qualificadas. Quanto a mim, foram úteis e me fizeram
entender um assunto que hoje me interessa menos, mas foi útil. Não se
poderia ter feito melhor.
A parte central foi escrita numa segunda fase; não sei o que possa ter
acontecido no meio do caminho (...). Lendo essa parte passei realmente mal:
trancafiado naquele triangulozinho regressão-agressividade-narcisismo me
senti acabado e de fato você não me deu mais nenhuma chance. Não nego a
relativa eficiência do triangulozinho mas é absurdo que toda a minha obra
seja recortada em função dele, se esquecendo dos resultados “não expressos”
(...). Existe uma infinita vastidão de “objetos” nas minhas obras que não são
nem boas nem ruins, mas que são “representados” e como tais não julgáveis
moralisticamente. Digo isso porque todas as expressões que são puramente
10 Retirei essa frase da página do facebook de Júlio Pimentel Pinto, no dia 30 de outubro de 2015.
11 PASOLINI, Pier Paolo. Os jovens infelizes... pp. 156-7.
12 A monografia de Siti teve como título “A obra de Pasolini”, e foi apresentada na Universidade de Florença
em novembro de 1970.
Ao que parece, Pasolini identifica no trabalho universitário do jovem Siti algo muito
próximo às “prerrogativas pequeno-burguesas”: ansiedade, pressa, protagonismo,
autocomplacência que se resumem no desejo de classificá-lo, imobilizando-o como uma
borboleta morta e alfinetada num mostruário. À exacerbação da racionalidade burguesa
corresponderia, neste caso, a fúria moralista que transforma a busca de conhecimento em
julgamento. Esses são alguns dos elementos que comporiam o anticonformismo que é novo
conformismo o qual, por sua vez, não é só geracional, tão sutil quanto ferrenho, que faz com
que considerem as verdades de grupo, de classe social, como verdades universais.
Conformismo de classe social. Essa espécie de acusação poética de Pasolini contra os jovens
está lá nos versos do poema de 68.
O motivo dessa acusação vem explicitado já no final do poema, com a nota Apologia.
Escreve Pasolini:
A infelicidade está em descobrir que não se sabe infeliz, ou dito de outro modo, para
quem vive uma única dimensão da história, a da história burguesa, as outras histórias não
existem. E daqui advém, eu diria, todo tipo de racismo. Ontem como hoje. Há ainda outra forte
dimensão de Pasolini em jogo e assim voltamos a Walter Siti.
13 PASOLINI, Pier Paolo. Lettere 1955-1975. A cura di Nico Naldini. 1ª. Edizione.Torino, Einaudi, 1988, p.
674.
14 Idem, ibidem.
15 A tradução do título completo do poema é O PCI aos jovens! (Notas em verso para uma poesia em prosa
seguidas por uma ‘Apologia”) e foi publicado em PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo Eretico. Milano,
Garzanti, 1972. (Tradução da autora do ensaio.)
O mesmo Walter Siti já citado, não mais jovem, transformado agora num dos maiores
estudiosos de Pasolini na atualidade, dirá que a sexualidade no escritor, homossexual como
ele próprio, Siti, “oscila entre os dois polos extremos, de eros, o amor sexual propriamente
dito, e do ágape, do amor sublimado na amizade e posto a serviço de uma dimensão
pedagógica pública”.16
Libertino e pedagogo17, incluindo a própria sexualidade na plataforma política de sua
vida e de suas intervenções, nada escreve porém que possa ser assumido como um discurso
favorável ao discurso das ou pelas “minorias”. E como isso foi possível justamente a alguém
como ele que foi perseguido até à morte, estigmatizado como homossexual?
Há, sem dúvida, em Pasolini a desconfiança profunda quanto a definição identitária
quando construída discursivamente pela repetição ad nauseam do lugar comum, pelo
barateamento do pensar. Em uma pequena passagem, pelo menos, e em dois artigos, em
particular, sem deixar de acusar o preconceito e violência da sociedade italiana contra os
homossexuais e contra as mulheres, desmonta assertivas que compõem o discurso militante
italiano dos anos 70, constituindo um dos momentos altos do seu pedagogismo libertário.18
Da resenha que faz ao livro dos franceses M. Daniel e A. Baudry, Os homossexuais,
destaco um primeiro trecho:
Eu não acredito que a atual forma de tolerância seja real. Ela foi decidida “de
cima”: é a tolerância do poder consumista, que necessita de uma absoluta
elasticidade formal nas “existências” para que os indivíduos se tornem bons
consumidores. (...)19
16 BAZZOCCHI, Marco Antonio. Pier Paolo Pasolini. 1ª. Edizione. Milano, Bruno Mondadori, 1998, p. 138.
17 “(...) A libertinagem não exclui de fato a vocação pedagógica. Sócrates era libertino: de Lísis a Fedro,
foram inúmeros os seus amores por jovens rapazes. Aliás, quem ama rapazes não pode deixar de amar
todos os rapazes (é esta, justamente, a razão de sua vocação pedagógica)”. PASOLINI, Pier Paolo. Os
jovens... p. 165.
18 Os artigos são “Donne mie” e “Discurso sobre os tabus que precisam ser ‘quebrados a qualquer custo’”
publicados originalmente em PASOLINI, Pier Paolo. Descrizioni di descrizioni. 1ª. Edizione,Torino,
Einaudi, 1979, pp. 327-332, e, traduzidos em PASOLINI, Pier Paolo. Os jovens infelizes... pp. 161-169.
19 Idem. Ibidem.
Por ocasião dos 20 anos do assassinato de Pasolini, escrevi para a Folha de S. Paulo um
artigo que intitulei “A herança de Pasolini” 22; hoje, passados 40 anos, me propus a escrever
algumas notas e, desta vez, o título é “Pasolini, o outro e nós”. Tudo dialoga com tudo na
perspectiva de fundo que é a de Pasolini e segundo a qual a racionalidade burguesa,
contaminante por natureza, em nome da ordem e da produção, descrê, reprimindo e matando
se preciso, que qualquer operação humana se dá sempre na fronteira que separa
racionalidade e loucura. As citações que abrem este texto, as passagens pasolinianas
escolhidas, o artigo de 20 anos atrás e este, atual, falam de um processo ‘incivilizatório’ (aspas,
muitas aspas!) e da necessidade de recomeçar pedagogicamente do zero como escreve
Carvalho. Estamos todos dominados! O que encontro, mais uma vez, como há 20 anos, é o
alerta duplo tanto para os riscos do pensar por slogans, mesmo que sofisticadamente
elaborados a partir de grandes filósofos da contemporaneidade – se diminuírem a potência do
próprio exercício de viver a realidade, abrindo mão da expressividade – como também para a
preferência pelos gestos da tribo, das palavras que quase podem desaparecer, cada vez mais
abreviadas e mesmo desnecessárias. O que importaria, nesse caso, é a comunicação imediata,
de militância, garantida pela existência do grupo. A pressa, a ânsia em se comunicar traz
consigo e denuncia uma concepção de tempo que é a mesma do tempo da produtividade, do
mercado e da mercadoria. É essa a crítica à tese universitária de Siti; falar para interlocutores
que são um só, e portanto capazes de se entender pelo uso de uma espécie de código cifrado.
Essa é, para Pasolini, uma das provas da submissão, consciente ou não, não importa, dos
jovens italianos aos padrões e a moral que os ventos do neo-capitalismo trouxeram para Itália,
transformando-a definitivamente. Pensar por slogans é assimilar o discurso pragmático e
propagandístico mais elementar, o de se ver a si próprio como mercadoria que precisa ser
vendida. Essa é a nova condição, parte integrante daquele mesmo processo de
aburguesamento geral; o ‘estar de fora dela’, dessa condição, é inimaginável a não ser
metafisicamente, diz na nota apologética ao poema.
Finalizo citando, com estupor por esta espécie antevisão de Pasolini e certo horror
pelos nossos tempos, um outro trecho da mesma resenha ao livro dos autores franceses.
Com isto quero dizer que Daniel e Baudry se enganam ao esperar que a
tolerância inclua também a homossexualidade entre seus objetivos. Isso
ocorreria caso se tratasse de uma tolerância real, conquistada pelas bases.
Trata-se entretanto de uma falsa tolerância, que certamente prenuncia um
período de intolerância e de racismo ainda piores (embora talvez menos
horripilantes) que nos tempos de Hitler. Por quê? Porque a tolerância real
(falsamente assimilada e proposta pelo próprio poder) é privilégio social das
elites cultas; ao passo que a massa “popular” goza hoje de um terrível espectro
de tolerância que a torna, na verdade, de uma intolerância, de um fanatismo
quase neurótico (antigamente característico da pequena burguesia).23