Treinar A Escuta Por Meio de Mapas Sonor
Treinar A Escuta Por Meio de Mapas Sonor
Treinar A Escuta Por Meio de Mapas Sonor
AUDIOVISUAL1
Introdução
Desautomatizando a escuta
2 “No Brasil, o termo boom é usado para indicar o dispositivo tubular leve, com extensão ajustável e que
suporta o microfone. O microfonista sustenta esse dispositivo com os braços, posicionando o microfone
para a captação do som. Nos Estados Unidos, o termo boom é usado para designar o suporte de
microfone, normalmente construído sobre rodas, com uma longa vara metálica, que carrega o microfone,
sustentada por um eixo central. Esse sistema é operado pelo boom operator por meio de manivelas; seu
emprego é muito comum em gravações de sitcom. Fishpole ou mic boompole é um termo usado para
designar o suporte de microfone leve, sustentado com os braços pelo boom operator.” (SOUZA, 2018, p.
128).
3 Tratamos aqui o termo “trilha sonora” como o conjunto de sons presente em um filme, como as vozes, os
ruídos e as músicas.
consciente? A prática de Deep Listening apresentada pela compositora Pauline Oliveros
(2005) pode ser um bom caminho para pensarmos sobre nossa escuta, sobre como os
sons se relacionam com nossa mente e corpo. A Deep Listening, em aula, é um conjunto
de exercícios extraídos de diversas fontes e peças compostas por Oliveros e outros
praticantes que incluem exercícios respiratórios, de energia, vocalização, escuta e sonho.
Oliveros (2005, p. xxiv) comenta que esta prática é uma forma de meditação em que a
atenção de quem a pratica é direcionada para a interação dos sons e silêncios.
Outras maneiras de exercitar a escuta são apresentadas pelo compositor Murray
Schafer em obras como O Ouvido Pensante (1991) e Educação Sonora (2009). Schafer
propõe uma limpeza de ouvidos que trata de um programa sistemático para “treinar os
ouvidos a escutarem de maneira mais discriminada os sons, em especial os do ambiente”
(SCHAFER, 2001, p. 365). Schafer já sofreu críticas de várias direções, inclusive da
literatura dos Estudos do Som, como de Jonathan Sterne e Marie Thompson, e da
Antropologia, como Stephen Helmreich e Tim Ingold, para citar alguns.
Sterne (2013) critica a visão de paisagem sonora de Schafer por carregar consigo o
desejo por uma estética de pureza que “parece inteiramente parte de uma conversa sobre
alta fidelidade e reprodução estereofônica de música de concerto nas décadas de 1950 e
1960” (2013, p. 190, trad. nossa). Sterne (2012, p. 91) elucida também que alguns autores
usam o termo soundscape (paisagem sonora), mas o conceituam de maneira diferente.
Como a historiadora Emily Ann Thompson 4 que utliza o conceito para organizar uma
história da acústica arquitetônica, mas não usa os métodos e epistemologias de Schafer.
Uma das críticas de Marie Thompson (2017, p. 100) a Schafer está em sua
caracterização de ruído. Thompson observa que a estrutura de ruído do autor, como
interferência, perturbação, baixa fidelidade ou falta de clareza, se confunde com a
poluição sonora no que se refere aos níveis prejudiciais e destrutivos do som ambiental.
Assim, praticamente todas as manifestações de ruído na paisagem sonora
contemporânea são consideradas um problema.
Por outro lado, no campo do audiovisual, Schafer tem sido utilizado
recorrentemente em artigos da área, seja para gerar uma reflexão sobre os ruídos que
cercam o homem contemporâneo urbano e a influência desse cerco na produção
cinematográfica atual ou para analisar o som de filmes a partir de seus conceitos. Em
alguns cursos de Cinema e Audiovisual no Brasil, também é possível encontrar as obras
de Schafer nas referências bibliográficas de disciplinas relacionadas a som, como nos
cursos da UFPel, USP e UEG. O trabalho de Schafer também é bastante difundido em
4 Para mais informações ler The Soundscape of Modernity: Architectural Acoustics and the Culture of
Listening in America, 1900–1933 (Emily Ann Thompson, 2004).
cursos de graduação de Licenciatura em Música. Acreditamos que a disseminação de seu
trabalho no Brasil ocorreu por várias de suas obras terem sido traduzidas para a língua
portuguesa e lançadas por editoras brasileiras.
Outra forma de treinar a escuta é por meio das soundwalks (caminhadas sonoras
ou passeios sonoros). Segundo a compositora Hildegard Westerkamp (2007, p.49, trad.
nossa), “uma soundwalk é qualquer excursão cujo objetivo principal é ouvir o meio
ambiente”. É priorizar nossos ouvidos e expô-los a todos os sons ao redor, não
importando onde estamos. Já o etnomusicólogo e antropólogo Steven Feld comenta que
em seus passeios sonoros o que se ouve “são compósitos, não só de altura e
profundidade ou de espaço e tempo da floresta, mas também de uma história de escuta –
minha história de escutar e ser ensinado a fazê-lo durante vinte e cinco anos em Bosavi.”
(FELD, 2014, p. 3). Feld chama de acustemologia o “modo aural de conhecer o lugar, de
dar ouvidos à escuta, de participar e absorver. Mesmo fisicamente parado, o corpo faz
movimento. E mesmo fisicamente fixos, os microfones captam movimento.” (FELD, 2014,
p.4). Feld (2015, p. 14-15) indica que a acustemologia vai contra a ideia de ecologia
acústica de Murray Schafer, porque não é um estudo do som como um indicador de como
os seres humanos vivem nos ambientes, mas sua abordagem se concentra em histórias
de escuta relacional, em métodos de escuta de histórias de escuta. A acustemologia
aborda “a experiência e a ação de escutar histórias, entendidas como relacionais e
contingentes, situadas e reflexivas” (FELD, 2015, p. 15, tradução nossa).
Escutar o meio também é nos escutar, entendermos a partir do fora, o que há
dentro. Escutar o exterior, para escutar a si mesmo. Assim como Jean-Luc Nancy
comenta que
Estar à escuta é estar ao mesmo tempo fora e dentro, é estar aberto
de fora e de dentro, de um ao outro, portanto, e de um no outro. A
escuta formaria assim a singularidade sensível que portaria, no modo
mais ostensivo, a condição sensível ou sensitiva (aisthética) como tal:
a partilha de um dentro/fora, divisão e participação, desconexão e
contágio. (NANCY, 2014, p. 30)
Mapas Sonoros
Há um boletim de som em que cada equipe leva consigo nas captações, com os
seguintes campos: local, horário, data, descrição do take, observações, longitude e
latitude (informações para serem inclusas no mapa), autor do áudio, equipamento
utilizado, formato do arquivo, tempo de gravação e sample rate. As informações do
formato, tempo e frame rate dos arquivos nos servem também para organizarmos que
arquivos podem ser utilizados nos filmes. A elaboração do Mapa Sonoro de Cachoeira
partiu também da ausência de sons locais que pudéssemos usar nos filmes feitos na
UFRB. Muitos estudantes acabavam por buscar sons ambientes de bibliotecas de áudio
estrangeiras. Estes ambientes sonoros não condizem com nosso ambiente. Por isso,
sentimos a necessidade de captar nossos próprios sons ambientes e compartilhá-los no
mapa para download para que todos e todas pudessem acessá-los. Decidimos também
que seria interessante captar sons da manhã, da tarde e da noite de um mesmo local,
tanto para termos estes arquivos em diferentes horários, quanto para analisarmos suas
diferenças.
Após a caminhada, a escuta e a busca por sons para o mapa, cada equipe ficou
incumbida de elaborar um relato sobre sua captação 11. Nestes textos, percebe-se que os
estudantes se colocavam à escuta, dando atenção, dando ouvidos aos sons que sempre
estavam ali, mas que não percebiam antes. O estudantes conseguiam alcançar uma
Foi engraçado captar o áudio do Curiachito, por ser a rua em que vivi
e vivo, eu acreditava que seria meio chato captar e ouvir os sons pelo
fato de já ser algo do convívio levando a mesmice, mas aconteceu o
contrário, me surpreendia a cada captação. A noite era um dos
horários que eu achava ser o mais silencioso da rua, mas não, esse é
o horário em que mais passa carro, e pessoas conversando, sem
falar das televisões ligadas e crianças brincando pelas calçadas
(relato de Matheus Állan Maia em MAPA SONORO DE CACHOEIRA,
2020).
Não só os estudantes vão se relacionando com a própria escuta, de fora para dentro e de
dentro para fora, mas também vão conhecendo novos trajetos e tecendo uma rede de
afetos a partir da busca de novos sons. Um dos estudantes relata um ato de cuidado de
uma das mulheres que estava sentada na calçada, preocupada com ele, pois ali era um
lugar não muito seguro para estar com um equipamento.
Considerações Finais
Referências
FELD, Steven. Acoustemology. In: David Novak e Matt Sakakeeny (orgs.). Keywords in
Sound, Duke University Press, 2015.
13 www.mapasonorodecachoeira.sonatorio.org
14 http://www.faap.br/mapa-sonoro/
15 http://www.uel.br/projetos/cartografiasonora/
01/08/2020.
MIGLIORIN, Cezar [et al]. Cadernos do Inventar: cinema, educação e direitos humanos.
Ilustrações Fabiana Egrejar. Niterói: EDG, 2016.
NANCY, Jean-Luc. À escuta. Trad. Fernanda Bernardo. Belo Horizonte: Edições Chão de
Feira, 2014.
SCHAFER, R. Murray. O Ouvido Pensante. Trad. Marisa Fonterrada, Magda Silva, Maria
Pascoal. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1991.
SOUZA, João Baptista Godoy de. A prática de captação do som direto. In: CARREIRO,
Rodrigo. (org). O som do filme: uma introdução. Curitiba: Ed. UFPR: Ed. UFPE, 2018
STERNE, Jonathan. The Sound Studies Reader. New York: Routledge, 2012
THOMPSON, Marie. Beyond Unwanted Sound: Noise, Affect and Aesthetic Moralism. New
York: Bloomsburry, 2017.