Voz Do Eco
Voz Do Eco
Voz Do Eco
Coleção TerramaR
Coordenadores
Nina Virgínia de Araújo Leite (Unicamp)
J. Guillermo Milán-Ramoss (Udelar/Uruguai – Outrarte/Unicamp)
Conselho Editorial
Cláudia de Lemos (Unicamp)
Flávia Trócoli (UFRJ)
Viviane Veras (Unicamp)
Paulo Endo (USP)
Erik Porge
Voz do Eco
Prefácio
Claude Jaeglé
Tradução
Viviane Veras
Título original em francês: Voix de l’echo
Direitos reservados para a língua francesa: ©Erik Porge, 2012
Tradução: Viviane Veras
14-02363 CDD-152.3842
Índices para catálogo sistemático:
1. Voz : Psicanálise : Psicologia 152.3842
1a edição
abril/2014
IMPRESSÃO DIGITAL
IMPRESSO NO BRASIL
PREFÁCIO............................................................................9
Claude Jaeglé
INTRODUÇÃO..................................................................19
A INCLUSÃO DA VOZ NA
LISTA DOS OBJETOS a..................................................25
O além da significação..........................................................37
DA EXISTÊNCIA DE UM
ESTÁDIO DO ECO..........................................................77
De boca a orelha..................................................................86
Eco e espelho........................................................................98
CONCLUSÃO...................................................................123
Prefácio
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“estádio do espelho”, cuja natureza conceitual per-
manece, ela própria, discutível. Se Erik Porge reto-
ma o termo “estádio”, talvez seja porque a imagem
sonora de um grande conceito tenha alguma coi-
sa de estimulante, mas talvez, sobretudo, porque o
“estádio do eco” pareça o avesso desse tempo de
apropriação e de confirmação que o “estádio do
espelho” oferece ao sujeito pela percepção de sua
imagem reduplicada. Também é pertinente pôr em
relação esses dois momentos narcísicos como “es-
tádios”, noção rica de uma problemática cujo teor
Porge amplia, acrescentando a ela um componente
inédito: o de espaço de jogo.
Se esse ensaio nos parece, contudo, o lugar
de nascimento de um conceito, é de saída porque
assume o risco e a felicidade da invenção. Erik Por-
ge dá o pulo do gato que o liberta das reiterações
que frequentemente limitam o pensamento da voz
a uma retomada de esquemas estruturais que ter-
minam por destruir qualquer interesse pela mani-
festação vocal empírica. E, em seguida, porque ele
consegue unir os fenômenos de invocação – grito,
voz, silêncio, apelo ao outro – em uma representa-
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ção teórica original, e porque dá a esse lance de da-
dos da voz, definida como “eco” da voz, um nome
que se fixa imediatamente no pensamento como o
atrator de uma instrumentação inovadora.
Se o julgamos pelo escasso número de obras
de psicanálise que lhe são consagradas, o pensamen-
to da voz tem sido – ao menos na França – his-
toricamente deixado de lado. “Sobre o divã [...], é
frequentemente por uma modificação na ordem da
voz que nos apercebemos de que alguma coisa, na
ordem do desejo, tenha sido tocada [...]”, constata
Denis Vasse, mas “não se fala disso frequentemen-
te”.1 A história dessa negligência permanece por
escrever, a começar pelo pouco tempo consagrado
pelo próprio Lacan à “pulsão invocante” e ao “afeto
auricular”. Erik Porge estabelece o histórico da con-
cepção lacaniana da voz como objeto pulsional e
ordena de forma útil seus componentes. Mas nesse
trajeto ele para, paciente, ante os fatos negligencia-
dos. O pensamento psicanalítico retém, por exem-
plo, das Metamorfoses de Ovídio a figura de um Nar-
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ciso apaixonado por sua imagem contemplada na
água, e fixa, por isso mesmo, o narcisismo ao olhar e
à visão. Ora, o texto de Ovídio ilustra não somente
uma reduplicação da imagem de Narciso na água,
mas também uma reduplicação de sua voz na da
ninfa Eco. Erik Porge tira disso importantes hipó-
teses concernentes a um eco que precede a própria
voz em vez de ser dela a reduplicação consecutiva.
Todo um debate deveria daí decorrer, porque, se na
vida da criança a anterioridade da experiência da voz
sobre a do olhar foi proposta, foi para assimilar esse
tempo de identificação vocal à identificação narcísi-
ca permitida pela experiência do espelho.2 Porge, ao
contrário, distingue-as fundamentalmente. A voz é
não somente um contraponto ao visual, em oposi-
ção diferencial ao campo do olhar, mas encontra-se
de saída em contraponto a ela mesma, de maneira
bem mais perturbadora.
Se Erik Porge sente-se autorizado a susten-
tar essa distinção até o fim, é sem dúvida porque
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ele possui alguma coisa a mais que muitos autores e
psicanalistas: ele desafina. E desafina mesmo. Nada
a fazer. Em sua vida, essa experiência tem sido
permanente e decepcionante. Porge teria adorado
cantar afinado e poder abandonar-se mais intima-
mente a seu gosto pela música, mas lhe foi preciso
des(en)cantar ao contrário. Alguma coisa na sua voz
jamais cessou de dar atenção ao desejo de escutar
a re(a)finamento de seu gosto musical confirmado
pela faculdade de cantar afinadamente. Essa falta de
confirmação, essa estranha infidelidade da voz ao
desejo de cantar do melômano, o autor nos mostra
que são essenciais para caracterizar a estrutura do
objeto voz e sua experiência subjetiva. É mais afi-
nado desafinar, se o que se quer é tornar audível a
dissonância própria ao fato vocal e o mal-estar que
dela resulta na percepção do sujeito por ele mesmo.
O sonoro e suas modulações agradáveis ou desa-
gradáveis são interessantes ocasiões para refletir
sobre a estrutura áfona da voz. Um segundo ele-
mento, sobretudo, retém sua atenção: desafinar não
tem relação com uma causa orgânica. O retorno
intempestivo de notas desafinadas na voz não vem
de uma deficiência fisiológica, mas – e o compreen-
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deremos pouco a pouco no decorrer de sua enquete
– de uma falha irredutível entre escutar, escutar-se
e fazer-se escutar. Entre ouvir, ouvir-se e fazer-se
ouvir. De uma maneira ou de outra, cada sujeito faz
a experiência de desconhecer alguma coisa de sua
própria voz, de sofrer o equívoco e de suportar a
cisão que esse desconhecimento provoca na iden-
tidade subjetiva. Desafinar, ouvir vozes, não reco-
nhecer sua voz quando é gravada são experiências
sonoras pelas quais o indivíduo faz a experiência de
uma identidade não confirmada da voz. Desafinar é
apenas uma das manifestações dessa fatalidade que
assombra a voz: ser, sem cessar, uma cópia não con-
forme dela mesma.
O autor mostra, enfim, que o trajeto espe-
cífico da pulsão invocante modifica, em compen-
sação, o esquema geral de outras pulsões sexuais. A
estrutura em eco não é uma característica adicional,
própria unicamente ao objeto voz, mas, como Lacan
deixa entender em uma passagem de seu seminário
circunscrita pelo autor, um dado que caracteriza as
outras pulsões. Assim, último a chegar, o “estádio
do eco” vem reajustar todo o campo das pulsões
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que o precede, o que lhe dá um valor operatório que
vai muito além da vocalização tomada isoladamente
– e essa não é a menor lição desse ensaio.
Se se estima a qualidade de uma ideia pelo
número de hipóteses e de ideias que ela, por sua vez,
engendrará, parece-me que o conceito de “estádio
do eco” está destinado a um belo futuro. Resta uma
questão inelutável: os autores afinados arriscam-se
a ter uma falsa concepção de voz? Não podemos
afirmar isso, mas, falando francamente, isso seria
apenas justiça.3
Claude Jaeglé
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