A Rebeldia Tornou-Se de Direita - 2 Revisão - Indd 1
A Rebeldia Tornou-Se de Direita - 2 Revisão - Indd 1
A Rebeldia Tornou-Se de Direita - 2 Revisão - Indd 1
Reitor
Antonio José de Almeida Meirelles
Conselho Editorial
Presidente
Edwiges Maria Morato
Alexandre da Silva Simões – Carlos Raul Etulain
Cicero Romão Resende de Araujo – Dirce Djanira Pacheco e Zan
Iara Beleli – Iara Lis Schiavinatto – Marco Aurélio Cremasco
Pedro Cunha de Holanda – Sávio Machado Cavalcante
Tradução
beatriz marchesini
CDD – 320.5
– 320.54
isbn 978-85-268-1551-3 – 320.981
Impresso no Brasil.
Foi feito o depósito legal.
Direitos reservados à
Editora da Unicamp
Rua Sérgio Buarque de Holanda, 421 – 3o andar
Campus Unicamp
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Tel.: (19) 3521-7718 / 7728
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tão necessários, que se você desviar o olhar do engenho dessa obra de arte pode
perder o presente do espelho que ela nos oferece. Sim, nesse espelho há um
palhaço perturbado, entretanto, ele não está sozinho, nós estamos ali, ao lado
dele”. Em um diálogo crítico com Moore, o cinéfilo Slavoj Žižek2 sustentou que “a
elegância de Coringa reside em como a passagem de um impulso autodestrutivo a
um ‘novo desejo’ de um projeto político emancipador está ausente do argumento
do filme: nós, os espectadores, somos convidados a preencher essa ausência”.
Em ambas as leituras está implícito um “nós” que questiona o sistema “pela
esquerda”. Porém, a propósito do filme, há outro “nós” possível: aquele que
procuram construir e mobilizar as chamadas direitas alternativas, constelações
de fronteiras difusas, mas que se propõem a capturar o inconformismo social
em prol de distintas saídas políticas antiprogressistas. Assim, Joseph Watson,
que participa nas redes de ambientes da alt-right, descreveu o filme como “um
dos momentos culturais mais autênticos dos últimos dez anos”, porque “todas as
pessoas esperáveis o odeiam: The Guardian, Slate, Wall Street Journal”. “Por que
o establishment tinha tanto medo desse filme?”. Entre outras coisas, respondeu,
“porque a forma como nos lavaram o cérebro para viver e consumir cria
condições favoráveis para a solidão, o desespero e a doença mental. Porque nos
ensinaram que aqueles que pensam diferente são um perigo para a sociedade e
devem ser condenados ao ostracismo, intimidados e censurados”.3
Nessa perspectiva, o “nós” são os homens (brancos) revoltados, os jovens
incel (celibatários involuntários, em seu acrônimo em inglês) ou os “machos
beta”. O FBI inclinou-se por essa leitura niilista. Em sua estreia, preparou-se
não para um levante revolucionário, mas para alguma ação violenta, para algo
similar ao massacre que, em 2012, na estreia de Batman: O cavaleiro das trevas
ressurge, acabou em 12 mortos e mais de 50 feridos num cinema do Colorado.
Não nos interessa aqui discutir qual é a leitura “correta” do filme, e menos
ainda cair no clichê de que os extremos se encontram. Contudo, o exemplo é
ótimo para nos aproximar da ideia central deste livro: há argumentos tanto
para uma quanto para a outra interpretação. Se toda obra de arte é aberta e
polissêmica, Coringa é a expressão da dificuldade radical que enfrentamos hoje
para dar conta da orientação política e cultural da rebeldia.
Nas últimas décadas, ao se tornar defensiva e escudar-se na normatividade
do politicamente correto, a esquerda, sobretudo em sua versão “progressista”,
foi ficando deslocada, em grande medida, da imagem histórica da rebeldia, da
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Correspondente ao que seria governadora estadual no Brasil. (N. da T.)
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Por um lado, existem diferentes movimentos, que vão do veganismo à deep ecology
ou “ecologia profunda”,11 passando pela etologia, que questionam a fronteira entre
seres humanos e animais na qual se baseou toda a antropologia ocidental; e, pelo
outro, existe o desenvolvimento da inteligência artificial.
Por isso se pergunta pelo lugar do ser humano: “E nós, onde estamos? Uma
vez que os dois ‘extremos’ se baseiam em formas de determinismo (biológico
ou estatístico) que ignoram completamente o sentido e os valores em benefício
de uma extensão da normatividade”.12
Por sua parte, Garcés afirma que o mundo contemporâneo é “radicalmente
anti-ilustrado” e que a educação, o saber e a ciência se fundem também em um
desprestígio do qual só podem sair se se mostrarem capazes de oferecer soluções
concretas para a sociedade: laborais, técnicas e econômicas (uma resposta à
covid-19, por exemplo?). “O solucionismo é o pretexto de um saber que perdeu
a atribuição de nos tornar melhores, como pessoas e como sociedade.”13
O futuro vem provocando mais angústia do que resistência, e as imagens
catastróficas colonizaram as velhas utopias antropocêntricas, com suas ideologias
que prometiam progresso, um milênio sociotécnico e uma humanidade a salvo
da natureza.14 Por isso, diz Garcés, “nosso tempo é o tempo do tudo acaba. Vimos
acabarem a modernidade, a história, as ideologias e as revoluções”. E ainda
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de Bernie Sanders para que, já com o veterano senador fora da corrida à Casa
Branca, votassem nele, para castigar as cúpulas elitistas e corruptas do Partido
Democrata. Que fosse bem-sucedido ou não é outra história (as pesquisas
mostram que isso não aconteceu). Na Europa, Alternativa para a Alemanha
(AfD), um partido de direita xenófobo, pode disputar votos, sobretudo no
Leste, com A Esquerda (Die Linke), uma força situada no extremo oposto do
arco político..
Essa “confusão sob o céu”, como diria Mao Tsé-Tung, levou o progressismo
a se tornar cada vez mais defensor do status quo. Se o futuro parece ameaçador,
o mais seguro e sensato talvez seja defender o que há: as instituições que
temos, o Estado de bem-estar que pudemos conseguir, a democracia (embora
esteja desnaturalizada pelo poder do dinheiro e pela desigualdade) e o
multilateralismo. Se “mudança” significa o risco de que sejamos governados
por um Trump, uma Marine Le Pen, um Viktor Orbán, um Bolsonaro ou um
Boris Johnson, parece uma resposta razoável. Se, quando o povo vota, ganha
o Brexit, ou vence o “Não” nos acordos de paz na Colômbia, não será melhor
que não haja referendos? Se as mudanças tecnológicas nos “uberizam”, não
será melhor defender os atuais sistemas de trabalho e sentir saudade do mundo
fabril fordista? E assim poderíamos seguir. Mas justamente nessa razoabilidade
reside também o risco de cair no conservadorismo e renunciar a disputar o
sentido do mundo que virá.
Em 2020 o historiador e ensaísta argentino Alejandro Galliano publicou
um livro cujo título propõe, em forma de pergunta, uma tese forte: ¿Por qué el
capitalismo puede soñar y nosotros no?. Esse nós, outra vez, fazia referência à
esquerda num sentido amplo. “O erro – diz – foi o de nós deixarmos de sonhar,
dar o futuro de presente a um punhado de milionários dementes por vergonha
a soarmos ingênuos ou totalitários”. E acrescenta:
Poderíamos parafrasear esse título e nos perguntar: “Por que a direita pode
ser audaz e nós não?”. Pode-se descartar rapidamente essa pergunta e dizer que
a audácia da extrema direita se baseia, sobretudo, na sua demagogia, na sua
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