Estudos Literarios 2020-07-27 Efraim Oscar Silva

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unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”


Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP

EFRAIM OSCAR SILVA

As narrativas de Modesto Carone


entre a contenção e a fruição

ARARAQUARA – SP
2020
EFRAIM OSCAR SILVA

As narrativas de Modesto Carone


entre a contenção e a fruição

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos Literários da Faculdade de
Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como
requisito para obtenção do título de Doutor em
Literatura.

Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Narrativa

Orientadora: Profª. Drª. Rejane Cristina Rocha

Bolsa: CAPES

ARARAQUARA – SP
2020
Silva, Efraim Oscar
Atos de equilibrista: as narrativas de Modesto
Carone entre a contenção e a fruição / Efraim Oscar
Silva — 2020
154 f.

Tese (Doutorado em Estudos Literários) —


Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita
Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus
Araraquara)
Orientador: Rejane Cristina Rocha

1. Literatura brasileira. 2. Literatura


contemporânea. 3. Carone, Modesto. 4. Ensaio. 5.
Narratologia. I. Título.

Ficha catalográfica elaborada pelo sistema automatizado


com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
EFRAIM OSCAR SILVA

As narrativas de Modesto Carone


entre a contenção e a fruição

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos Literários da Faculdade de
Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como
requisito para obtenção do título de Doutor em
Estudos Literários.

Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Narrativa


Orientadora: Profª. Drª. Rejane Cristina Rocha
Bolsa: CAPES

Data da defesa: 27/7/2020

MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:

Presidente e Orientadora: Profª. Drª. Rejane Cristina Rocha


UFSCar- Universidade Federal de São Carlos

Membro Titular: Profª. Drª. Gisele Novaes Frighetto


Univesp – Universidade Virtual do Estado de São Paulo

Membro Titular: Prof. Dr. Wilton José Marques


UFSCar- Universidade Federal de São Carlos

Membro Titular: Prof. Dr. Benedito Antunes


Unesp – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
Campus Assis

Membro Titular: Prof. Dr. Arnaldo Franco Junior


Unesp – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
Campus São José do Rio Preto

Local: Universidade Estadual Paulista


Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
Modesto,

o tempo maltrata o caminho


e turva as certezas,
mas é possível saber:
em algum Além Linha ou Além Ponte,
o mundo segue sendo.

Foto: Carla Romero (Valor), 2011


AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, Profª. Drª. Rejane Cristina Rocha;

Aos membros da Banca Examinadora, por terem aceitado o convite para avaliar este trabalho;

À Camila Serrador, à Elaine Teixeira, ao Luiz Gustavo Gonçalves e à Silvia Helena de Oliveira,
bibliotecários da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara, pelo respeito, pelo
interesse em ajudar e pelo nosso amor comum aos livros;

A todos com quem convivi nesses anos loucos e rudes, em especial a duas pessoas que os
fizeram mais suaves para mim, Bruno Ricardo da Silva e Vitor Pereira Gomes.

“O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal


de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001”.
RESUMO

A produção ficcional de Modesto Carone – quatro volumes de contos e um romance – ostenta,


como um de seus traços proeminentes, o deslizamento das formas consagradas dos gêneros
literários na direção das formas discursivas próprias dos textos analíticos, críticos, de reflexão,
factuais, como o ensaio. Propõe-se analisar, na ficção de Carone, as características do discurso
que indiciam a aproximação em relação a outros gêneros. O corpus é constituído por 13 contos
extraídos dos livros As marcas do real (1979), Aos pés de Matilda (1980), Dias Melhores
(1984) e Por trás dos vidros (2007). Também faz parte do corpus o romance Resumo de Ana
(1998). O problema que se coloca é se o tom predominante nas narrativas de Carone, ora
implicando a contenção da poeticidade/ literariedade, ora consentindo a fruição do texto,
permite-nos considerá-las parte de uma tendência da literatura, iniciada no modernismo e
ecoando nas produções contemporâneas, de afastar-se das formas e temas que a tradição
consagrou como específicos da literatura. Como se trata de uma pesquisa bibliográfica e
analítica, objetiva-se levantar discussões teóricas em torno do tema visando a compreender
melhor os objetos e analisá-los, contribuindo para ampliar o conhecimento sobre eles na crítica
literária brasileira. Buscou-se assegurar, em proveito da análise, um suporte teórico operacional,
o que se conseguiu por meio da narratologia. Ainda no âmbito da fundamentação teórica, foram
introduzidas discussões que, oriundas de diferentes campos de saber, vêm, desde os últimos
anos do século XX até o presente, enfocando a arte e a literatura na contemporaneidade. Essas
discussões realçam, entre outros pontos, a expansão de campo da literatura e a perda da sua
autonomia. A pesquisa confirmou apenas parcialmente o deslizamento da obra ficcional de
Carone na direção de outros gêneros e discursos como sendo parte de uma tendência da
literatura, já que se constatou que o estilo do escritor, resultado de uma formação cultural ampla
e dialógica, é determinante para as feições que essa obra assume.

Palavras-chave: Literatura brasileira. Literatura contemporânea. Modesto Carone. Ensaio.


Narratologia.
ABSTRACT

The fictional production of Modesto Carone – four books of short stories and a novel – shows
off as one of its main features the gliding from renowned forms of literary genres to other
discursive forms, proper of analytical, critical, reflectional, factual texts like the essay. It
proposes to analyze on Carone’s fiction discursive aspects that points out how his narratives
get close to other genres. The corpus is composed by thirteen short stories from As marcas do
real (1979), Aos pés de Matilda (1980), Dias melhores (1984) and Por trás dos vidros (2007).
It also includes the novel Resumo de Ana (1998). The problem is whether the predominant tone
on Carone’s narratives, sometimes implying the contention of the poeticity/ literariness, other
consenting the fruition of the text, allows to consider these narratives part of a literary tradition
that retreats from forms and themes consecrated by the tradition as specific of literature, started
in Modernism and echoing on contemporary productions. As a bibliographical-analytical
research, it aims to rise theoretical discussions around the theme in order to better understand
the objects and thus analyze them, contributing to widen the knowledge about them in Brazilian
literary criticism. It aimed to assure a theoretical operational support in benefit of the analysis,
which was achieved by narratology. About the theoretical basis, discussions from different
fields of knowledge, which come from the twentieth century last years to the present, focusing
on art and literature in the contemporaneity were
introduced. These discussions highlight among other things the literature’s field expansion,
deprived from autonomy. This thesis confirmed just partially the gliding of Carone’s fictional
work, once it was evidenced that his style, which results from a wide cultural and dialogical
formation, is determinant for the features that his works assumes.

Keywords: Brazilian Literature. Contemporary Literature. Modesto Carone. Essay.


Narratology.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8
1 O ESCRITOR MÚLTIPLO E A OBRA NO FIO DA NAVALHA 14
1.1 Um pouco de tudo 14
1.2 O modo particular de escrever ficção 17
1.3 A mobilidade e a montagem 20
1.4 Fundamentos da montagem no teatro, no cinema e na literatura 24
2 AS FRONTEIRAS DA NARRATIVA 30
2.1 Continentes e transbordamentos 30
2.2 Novos lugares, visibilidades e atores 35
2.3 Campo literário, campo expandido e perda da autonomia 42
2.4 As sombras dos gêneros 49
2.5 A mancha e o fiel da balança 53
2.6 As focalizações e os desfocados 61
3 DESLIZAMENTOS 69
3.1 Os contos 69
3.2 Resumo de Ana 94
3.3 Em face da crítica e da teoria 116
CONSIDERAÇÕES 125
REFERÊNCIAS 131
ANEXO A – Resumo de Ana 140
ANEXO B – Résumé d’Ana 142
ANEXO C – Pai, filho: caligrafias do afeto 144
8

INTRODUÇÃO

Modesto Carone (1937-2019) é um escritor para o qual as fronteiras que separam a


literatura de outras formas de expressão artística e do pensamento não são intransponíveis. Há
momentos, na sua obra ficcional, em que temos a sensação de que as fronteiras sequer existem.
Isto não é o mesmo que dizer que a sua obra ficcional suspende ou subverte o discurso literário,
pois, ao mesmo tempo em que a sua narrativa se assemelha ao discurso crítico e analítico muito
próprio do ensaio, por exemplo, há nela elementos consagrados no universo da literatura:
figuras, alegorias, evocações intertextuais de outras obras literárias. Tudo é, de fato, bastante
ambíguo nessa obra. O seu forte componente de metalinguagem a faz muito próxima das obras
ditas modernas – modernistas, mais especificamente (BRADBURY, 1989). Mas, a forma como
desliza entre gêneros e discursos, a ideia que parece presidi-la, de não reconhecer fronteiras
entre os “campos” do saber, tem pontos de contato com certa tendência da arte contemporânea
que se caracteriza pelo seu discurso inespecífico (GARRAMUÑO, 2014), que tem um novo
olhar sobre a cultura e a sociedade, próprio de um mundo em ebulição e contínua mudança, no
qual se impõe a comunhão do sensível como processo democrático de ocupação dos recursos,
dos meios e dos produtos, inclusive os estéticos, mas não somente (RANCIÈRE, 2009; 2017).

Carone atuou como jornalista, professor universitário, tradutor, crítico literário, ensaísta
e escritor. Como escritor, publicou quatro livros – os volumes de contos As marcas do real
(1979), Aos pés de Matilda (1980), Dias melhores (1984) e Por trás dos vidros (2007) e um
romance, Resumo de Ana (1998). Sua produção ficcional se caracteriza pela ambiguidade
discursiva e temática, com vozes que enunciam em estilo indireto, mesclando o distanciamento
e a objetividade dos textos críticos e analíticos (como os ensaios acadêmicos) aos meios de
expressão com características muito próprias do universo literário, como figuras, imprecisões,
indefinições e opacidades.

A crítica que se dedicou anteriormente à ficção de Carone, sobretudo aos contos, como
a de Vilma Arêas (1997) e a de Galvão Filho (2004), deu-se conta da sua complexidade e da
forma original como se insere na produção literária brasileira, mas ainda há uma lacuna no que
se refere ao trabalho de reflexão em torno dessa obra na sua inter-relação com o estilo do escritor
e com as tendências gerais da literatura brasileira.

A questão que mobilizou nosso esforço de pesquisa e a elaboração desta tese é se a


ficção de Modesto Carone, ora implicando a contenção da poeticidade/ literariedade, ora
consentindo a fruição do texto, integra-se a uma tendência da literatura, iniciada no modernismo
9

e ecoando nas produções contemporâneas, de afastar-se das formas e temas consagrados como
próprios da literatura. Para tanto, elegemos um corpus de pesquisa constituído por 13 contos e
pelo romance Resumo de Ana. No caso dos contos, nossa escolha se fundamentou na ideia de
realçar não o aspecto que neles consideramos de maior vulto, o nivelamento tonal da voz
narradora ao tom dos discursos verídicos, documentais, austeros. Tentamos fazer com que a
produção de Carone aparecesse no corpus não como unitária, homogênea. Quisemos mostrá-la
na sua complexidade, nas situações em que se mesclam os meios de expressão do literário com
os dos textos austeros.

Tendo em vista a análise desse corpus, mobilizamos uma base teórica para discutir a
obra de Carone a partir de duas perspectivas: 1. a da inespecificidade, da perda da autonomia,
do campo expandido e da busca do sentido político da partilha do sensível, um debate
contemporâneo que não parte de obras, mas das questões gerais que as atravessam (cf.
LUDMER, 2007; CANCLINI, 2012; GARRAMUÑO, 2014; RANCIÈRE, 2014); 2. a do novo
significado possível de antigas noções firmemente aderidas aos estudos literários de base
formalista e estruturalista, como poeticidade, literariedade e focalização (do universo da
narratologia): as questões que suscitam ainda derivam dos textos, mas mobilizam saberes do
mundo, levando em conta as vozes que falam ou silenciam no seu interior.

A hipótese a ser comprovada é a de que a ficção de Carone insere-se em uma nova


constituição do literário, na qual estão embotadas as marcas específicas do seu campo. Isso
validaria a aproximação dessa obra de formas e temáticas que ultrapassam o literário.

Já há um certo tempo é difícil atribuir a determinadas obras um lugar, um gênero, uma


categoria. Em anos mais recentes, tem se intensificado essa tendência de obras plurais, de vários
discursos mesclados em um único livro, filme, peça, instalação de videoarte, etc. Vamos nos
ater brevemente a dois exemplos. O ano de 1999 foi marcado, no Brasil, pela publicação do
livro que pode ser considerado como o de maior impacto na década: Estação Carandiru (1999)
de Drauzio Varela. O autor, médico conhecido pela sua participação em programas de TV, pôs
nesse livro o relato do seu cotidiano na Penitenciária do Carandiru, em São Paulo. A
Penitenciária está hoje extinta, como parte de uma política do governo paulista vendida para a
opinião pública como revitalização da área, mas que se tratou, na verdade, de uma maquiagem
para esconder os vestígios de um vergonhoso crime de Estado. Ali Drauzio desenvolveu, junto
aos detentos, um trabalho voluntário de prevenção à aids. O livro resultou do que Drauzio pôde
testemunhar e do que os presos lhe contaram, inclusive sobre o massacre praticado pela Polícia
Militar quando da invasão do Pavilhão 9 da Penitenciária, em 1992, resultando em 111 presos
10

mortos (número oficial, questionado). O massacre é o ponto culminante, como é, também, do


filme longa-metragem Carandiru, baseado no livro, que o cineasta Hector Babenco dirigiu em
2003.

O título Estação Carandiru provém da Estação de Metrô, situada nas proximidades da


antiga Casa de Detenção, e esta, por sua vez, devia o seu nome ao bairro paulistano do
Carandiru. O livro recebeu o Prêmio Jabuti do ano 2000, na categoria “não ficção”. À primeira
vista se dirá que é disto que se trata, não ficção, uma vez que o Dr. Drauzio relata o que
testemunhou e ouviu dos presos, e a invasão da Penitenciária foi um episódio amplamente
registrado pela imprensa brasileira e internacional. O volume é ilustrado com registros
fotográficos que o autor fez no interior das celas, mostrando não os presos, mas os seus
utensílios, as inscrições nas paredes, seus símbolos de crença religiosa. Também há fotos dos
corredores e da parte externa da Penitenciária. Porém, sob observação mais atenta, se constata
que há alguns elementos ficcionais – discursivos, melhor dizendo – que se assemelham aos da
ficção. Os diálogos dos presos, por exemplo, revelam um tratamento, um ajuste da linguagem
para se tornarem mais compreensíveis e integrados aos contextos nos quais foram inseridos. Os
capítulos foram nomeados e ordenados como se fossem contos.

Os capítulos de Estação Carandiru são quase todos dedicados ao cotidiano dos


apenados, mostrando como cada um deles tenta sobreviver no interior de um sistema que tem
as suas próprias regras. Há, inclusive, a menção aos presos que de uma forma ou outra não se
ajustaram e foram executados por outros detentos. Esses casos compõem um mosaico das
diversas formas de violência que ocorriam no Carandiru. Essa violência, às vezes velada, outras
vezes explícita, vai sendo conduzida para o ponto climático do massacre no Pavilhão 9. Ora, o
clímax é um recurso expressivo do texto ficcional, em especial do conto e do romance nas suas
formas clássicas. O livro não é ficcional, mas apresenta um arranjo da sua matéria que utiliza
estratégias próprias dos relatos ficcionais. A ficção de Carone parece fazer o caminho oposto:
assume-se como ficção, mas mobiliza elementos expressivos e discursivos (vocabulário,
constituição da voz narradora, por exemplo) que evocam a estrutura dos textos verídicos,
austeros, analíticos, caso de algumas vertentes da forma ensaio.

No cinema também se dá uma abolição das fronteiras distintivas de gêneros e categorias.


No longa-metragem italiano César deve morrer (Cesare deve morire), de 2012, os irmãos
cineastas Paolo e Vittorio Taviani se introduzem no interior do presídio de Rebibbia, em Roma,
para gravar um documentário em torno da seletiva de atores e dos ensaios da peça Júlio César,
de Shakespeare. Os atores são detentos, selecionados por meio de testes conduzidos pelo diretor
11

da peça. Tem-se um mise en abyme, o filme dentro do filme: o documentário em preto e branco,
com o decorrer dos ensaios, o cotidiano dos presos, as suas discussões sobre a peça e sobre a
sua condição, seus conflitos e por fim, em cores, a apresentação da peça ao público externo.
Mais do que mesclar linguagens e técnicas do documentário e da ficção, o filme desloca o
público para um ponto de fronteira seca onde sua expectativa elementar quanto ao que é real e
ao que é fictício não é atendida em termos da eleição de um ou outro, mas da coexistência e
concomitância de ambos.

No primeiro capítulo desta tese apresentamos uma característica que consideramos


relevante do escritor Modesto Carone: a multiplicidade. A sua formação intelectual ampla,
diversificada, contribuiu para que se dedicasse a várias atividades, como o jornalismo, na
juventude, a carreira de professor universitário, de pesquisador e crítico literário, a atividade de
tradutor e, finalmente, a literatura. Esse componente da sua biografia foi, sob nosso
entendimento, determinante para a composição do seu estilo como escritor, mais ainda do que
o Zeitgeist (espírito do tempo), as tendências literárias que ganharam espaço no modernismo e
depois. Também no Capítulo 1 apresentamos em linhas gerais os seus cinco livros de ficção,
destacando como a matéria está estruturada e, no caso específico de Resumo de Ana, trazendo
uma síntese da história1 (ou seja, da diegese ou do enredo, a depender da perspectiva teórica
que se adote). A entrada 1.3 discorre sobre a técnica da montagem, que Carone estudou na sua
tese de doutorado, associando a montagem como é praticada no cinema ao efeito da montagem
na poesia do expressionista austríaco Georg Trakl (1887-1914). Mostramos, ali, como a
montagem foi importante no processo que transformou duas novelas autônomas, “Resumo de
Ana” e “Ciro”, no romance Resumo de Ana. Em 1.4, apresentamos algumas reflexões teóricas
que se dedicaram a analisar a importância que a montagem adquiriu para o teatro, o cinema e a
literatura.

No Capítulo 2, buscamos historiar o esforço da teoria e da crítica literária do século XX


quanto a conferir uma especificidade aos objetos literários. Desse esforço derivaram noções
como automatização (e depois desautomatização), poeticidade e literariedade, todas concebidas
no âmbito do formalismo russo, mas com maior repercussão no estruturalismo, sobretudo nas
décadas de 50 e 60 do século XX. Mostramos como poeticidade e literariedade têm sobrevida
para além do formalismo e do estruturalismo, mas associados a campos semânticos mais amplos

1
Para fim de distinguir neste trabalho as situações em que empregamos história no sentido narratológico daquelas
situações nas quais nos referimos à História como ciência, campo do saber, optamos por grafar história, com inicial
minúscula, no sentido de trama narrativa, literária, e História, com inicial maiúscula, indicando a ciência. Esse
critério será adotado mesmo quando a palavra vier acompanhada de um adjetivo: “as linhas da grande História”.
12

em relação ao seus empregos originais, então circunspectos à enunciação verbal. Ambas estão,
agora, associadas a percepções do literário que não estão necessariamente vinculadas à
materialidade textual, mas sim, por exemplo, a tudo o que é lacunar, incompleto, intuído,
palidamente evocado. O mesmo se dá com a noção de focalização, que teóricos como Gérard
Genette (1972; 1995) e Mieke Bal (1985) trataram inicialmente em termos muito operacionais,
próprios do estruturalismo, mas que mais tarde a mesma Bal (2009) reconfigurou, buscando
superar a oposição sujeito/objeto, que excluía os problemas políticos da análise estrutural, e
introduzindo questões da ordem da subjetividade. Em 2.2, discorremos em torno de reflexões
recentes sobre a arte e a literatura que as vislumbram para além de campos específicos, ou de
discursos exclusivos, em contextos de interdependência nos quais nenhuma expressão artística
é autônoma. Denominamos esse pensamento de crítica da diáspora, cujo representante de maior
destaque é o filósofo Jacques Rancière. Entre as suas ideias, destacamos a de “escrita mais que
escrita” (RANCIÈRE, 2017, p. 11-13), na qual a experiência da criação literária é vista como
algo que excede o registro verbal. O literário na perspectiva da crítica da diáspora é mobilizada
nesta tese porque, a nosso ver, contribui para a compreensão da obra ficcional de Carone no
aspecto da mobilidade do seu discurso e dos seus temas para além da tradição e dos gêneros
literários. Em 2.4 nos ocupamos das transformações que ocorreram ao longo do tempo na noção
de gêneros, concentrando-nos posteriormente (2.5) em dois deles, o conto e o ensaio, já que a
ficção de Modesto Carone transita entre um e outro, entre a forma discursiva analítica, objetiva
e contida, e a outra, intuitiva, opaca e fruída.

O Capítulo 3, “Deslizamentos”, traz a análise dos 13 contos que compõem o corpus


desta tese: “As faces do inimigo”, “Choro de campanha”, “As marcas do real”, “Utopia do
jardim de inverno por um doutor em letras”, “Recato”, “Ponto de vista”, “Encontro”, “Passagem
de ano”, “Novelo”, “O Natal do viúvo”, “Visita”, “Por trás dos vidros” e “Café das flores”,
além da análise do romance Resumo de Ana. Em 3.3 estabelecemos um diálogo com parte da
crítica dos contos e de Resumo de Ana, tecendo-o com os pontos convergentes e divergentes. A
teoria elaborada pelos críticos da diáspora é mais uma vez mobilizada com o propósito de
verificar de que maneira a ficção de Carone se integra às tendências da literatura
contemporânea, ao já aludido espírito do tempo.

A experiência que tivemos como leitores da ficção de Carone, tanto a anterior à pesquisa
como a que envolveu a produção desta tese, revelou-nos a sua contribuição à literatura brasileira
no sentido de agregar-lhe um material, se não original, ao menos inovador quanto à forma de
articular os temas e o discurso e, acima de tudo, muito sofisticado, com narradores que, além
13

de seguros acerca do que pretendem obter em termos de efeito de sentido, desempenham


complexas performances de metalinguagem. Quanto ao fazer narrativo, propriamente dito, a
ficção de Carone ecoa fortemente o seu estilo, uma dicção própria, incomum, que ele adotou
desde o primeiro texto ficcional e que manteve até o final, apenas atenuando-o aqui e ali. E no
tocante à sua natureza performática, essa obra dialoga com toda a experiência literária do século
XX, com a tradição modernista, marcada pela autorreferência. São esses fatos que não nos
autorizam a associar integralmente a obra de Modesto Carone a algumas experiências mais
recentes em literatura, que, como a sua, também deslizam para outros discursos.

O motivo de a crítica da diáspora nos permitir entender melhor uma produção como a
de Carone deve-se ao fato desses teóricos terem sido impactados pela literatura do século XX.
Mesmo quando se referem a escritores ditos contemporâneos, se percebe que estes ostentam,
ainda, muitas das características dos seus predecessores e se encontram em uma zona indefinida
e precária.

Modesto Carone não está em um lugar indeterminado e precário. Ainda que em muitos
momentos a sua ficção deixe patente o seu desejo de não pertencer a um único lugar, todo o seu
movimento – deslizamento – é seguro de si, meticuloso e autoral.
14

1 O ESCRITOR MÚLTIPLO E A OBRA NO FIO DA NAVALHA

Eu estava teso e frio, eu era uma ponte, deitado


por cima de um abismo.

Franz Kafka, “Die Brücke” (“A ponte”)

1.1 Um pouco de tudo

Modesto Carone nasceu em Sorocaba, interior de São Paulo, em 1937, e faleceu na capital
paulista, no fim de 2019. Desde muito jovem se interessava por leitura e frequentava
bibliotecas. Lia de tudo: literatura, filosofia, sociologia, etc. Aos 17 anos foi sozinho para São
Paulo. Passou a trabalhar como jornalista – a mesma profissão do pai – e em seguida ingressou
na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Formou-se no início da década de 60, período
de agitação política e cultural.

No início de 1965 ele recebeu um convite do Itamaraty para atuar como leitor brasileiro
na Universidade de Viena, Áustria. As dificuldades decorrentes do golpe militar de 1964 o
impeliram a aceitar. Em Viena, aprendeu o alemão que mais tarde lhe foi muito útil no trabalho
de tradutor, e lecionou literatura brasileira na Universidade. Considerava o convívio com a
língua alemã como “um dos mais duros” (CARONE, 2007b, p. 19). “Eu acho que nunca estudei
tanto alguma coisa como isto”, disse (2007b, p. 19).

Anos depois, já de volta ao Brasil, fez doutorado em letras anglo-germânicas na


Universidade de São Paulo (USP). A sua tese de doutorado, sobre a produção do poeta austríaco
Georg Trakl, foi publicada em livro com o título Metáfora e montagem (1974). Em 1975
recebeu o título de livre-docente em letras e literatura comparada.
Estreou como escritor de ficção com o livro de contos As marcas no real (1979). Dois
anos depois, iniciou sua carreira no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), onde ficou por 15 anos. A partir de 2000, trabalhou como
professor visitante do Departamento de Teoria Literária da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Além de professor universitário e pesquisador de literatura, tradutor. A partir de 1983,
começou a traduzir para o português brasileiro quase toda a obra de Kafka diretamente do
alemão, trabalho que lhe rendeu o Prêmio Jabuti. Foi algo inédito na época: as traduções
15

existentes no Brasil eram feitas com base nas traduções para o inglês e o francês. Face à
complexidade envolvida na tradução de Kafka, um dos escritores mais importantes do século
XX, Carone passou a produzir ensaios e artigos sobre a sua obra e a falar sobre Kafka quando
concedia entrevistas. Em 2009 publicou Lição de Kafka, livro no qual analisa aspectos da vida
e da obra do grande escritor.

Carone procurou desconstruir o significado comumente atribuído ao adjetivo “kafkiano”,


levando-nos a compreender a construção do insólito e do alegórico na obra de Kafka como parte
da sua representação realista.

[...] o uso dessa palavra cria problemas diante da hipertrofia que ela tem
sofrido. É comum dizer que “kafkiano” é tudo aquilo que parece estranho,
inusual, impenetrável e absurdo – o que descaracterizaria o realismo de base
da prosa desse autor. Pois a rigor é kafkiana a situação de impotência do
indivíduo moderno que se vê às voltas com um superpoder (Übermacht) que
controla sua vida sem que ele ache uma saída para essa versão planetária da
alienação – a impossibilidade de moldar seu destino segundo uma vontade
livre de constrangimentos, o que transforma todos os esforços que faz num
padrão de iniciativas inúteis (CARONE, 2009, p. 100. Os grifos são
originais.).

Essa compreensão da literatura de Kafka lança luz sobre a própria ficção de Carone. Em
vários de seus contos, o narrador representa o indivíduo moderno frente a um poder invisível e
opressor. Em Resumo de Ana, embora as personagens centrais estejam, ao que tudo indica,
alienadas em relação aos eventos políticos e econômicos, percebe-se que esses fatos
contribuíram de forma decisiva para o fracasso de seus sonhos e planos.
Carone se ocupou, também, de alguns aspectos teóricos que a escrita de Kafka mobiliza
e que não implicam somente a produção do escritor tcheco, mas boa parte do que levou o nome
de literatura do século XX. Em depoimento ao Projeto Memória Oral, da Biblioteca Mário de
Andrade de São Paulo, Carone disse que considera o narrador de Kafka antionisciente, que nada
sabe (CARONE, 2007b, p. 18).

Como o personagem também não sabe de nada, e você tem que seguir
esta linha porque a perspectiva é do personagem, você entra num túnel de
alienação. Só que você sai do outro lado (se sai) com uma experiência concreta
do que é alienação. A literatura aí não deixou de ser pedagógica: ela ensinou
alguma coisa sobre a nossa realidade, que não é o mesmo tipo de projeto dos
realistas franceses do século XIX: Flaubert, Stendal e Balzac. Mas o mestre
de Kafka é Flaubert – Le mot juste, a palavra certa, então ali tem uma precisão
vocabular impressionante. Ele tem um ouvido maravilhoso, porque ele é um
16

poeta, embora à primeira visa não seja, mas ele era um poeta, entende?
(CARONE, 2007b, p. 18-19. O grifo é original.).

Ao evocar algo que é muito próprio do universo dos estudos literários, o foco narrativo,
Carone pensa em Kafka e no que significou traduzi-lo para o português. Ao mesmo tempo, é o
criador literário para o qual todas essas questões estão postas quando escreve sua ficção ou
quando a ela se refere. Ao longo da década de 80 do século XX ele escreveu resenhas e ensaios
na grande imprensa, como, por exemplo, no Folhetim, suplemento literário da Folha de S. Paulo
em formato tabloide. Ali também publicou contos, alguns dos quais foram mais tarde reunidos
em livros. Ainda publicou contos e artigos em revistas especializadas e acadêmicas, como a
Novos Estudos Cebrap e a Discurso, de Filosofia.
A inquietação dos seus anos de juventude, o anseio geracional por conhecer e discutir
ideias, parecem apontar para um homem que, na maturidade, não gostava de se ver como
especialista, embora o fosse, de fato: apreciava mais flanar por entre obras, escritores e gêneros.
Ao fazê-lo, porém, esbarrou em algumas dificuldades, como o idioma no qual Kafka produziu
suas obras. Quando do lançamento de uma de suas traduções de Kafka, Carone disse que
traduzia porque não conseguia ler em língua estrangeira. No caso do autor de O processo, o
trabalho de traduzi-lo para o português brasileiro significou criar uma ponte de acesso ao
escritor que mudou a forma de fazer literatura no século XX e, muito provavelmente, também
a forma de fazer teatro e cinema. Há, sem dúvida, fortes ecos de Kafka em Borges, Cortázar,
García Márquez, Vargas Llosa, Juan Rulfo e muitos outros escritores hispano-americanos,
como também em Beckett, no cinema noir e em Hitchcock. Kafka ecoa, enfim, na própria ficção
de Modesto Carone, mas, ao contrário do que se poderia supor pelo fato de estar tão próximo
da sua obra ao traduzi-la, não de forma direta: passa, antes, pelas obras dos já citados escritores
ligados ao boom literário hispano-americano.
Fica evidente para nós, leitores, que traduzir Kafka não foi para Modesto Carone apenas
uma atividade profissional. Foi, antes, um projeto de vida. Também fica evidente, pelo relevo
que deu a Kafka no seu trabalho de crítico e ensaísta, que não se tratava, para ele, de um escritor
qualquer, mas do seu escritor de predileção. E conhecendo toda a produção ficcional de
Modesto Carone, podemos dizer que não se traduz Kafka impunemente: há, nela, algo daquele
assombro de Kafka com a humanidade, algo que é profundamente realista e kafkiano, mas que
não está presente tal e qual nas páginas do autor de O processo.
Modesto Carone também produziu um estudo acadêmico relacionando a poesia de Paul
Celan, romeno que, como Kafka, escrevia em alemão, à de João Cabral de Melo Neto. Esse
trabalho foi publicado em 1978 pela Perspectiva, com o título de A poética do silêncio. Não nos
17

deteremos sobre ele nesta tese, já que comportaria uma outra discussão para além da
problemática que focalizamos aqui.

1.2 O modo particular de escrever ficção

Um traço que se mantém constante ao longo de toda a produção ficcional de Modesto


Carone é a adoção do estilo indireto, embora com diferenças acentuadas quanto ao efeito
quando se compara os contos produzidos em diferentes períodos entre si e com Resumo de Ana.
A maior parte dos contos, sobretudo os de As marcas do real e Aos pés de Matilda, tem íntima
relação com o momento da sua escrita, a ditadura militar brasileira (1964-1985). Esses contos
refletem a atmosfera opressiva daquele momento, a violência, a tensão, os esforços voltados
para a vigilância, a censura e a autocensura, a burocracia, a tecnocracia. Por isso vários deles
são enunciados por uma voz testemunhal e agônica, proferida por alguém que se encontra à
beira do precipício. O outro só aparece a distância na ficção de Carone: é sempre narrado, não
narrador de si. Isso não remonta somente a uma marca de estilo: não só é componente da dicção
do escritor, como é uma forma particular de compreender o mundo e de representá-lo.
Discutiremos os contos que constituem o corpus desta tese e Resumo de Ana no Capítulo
III. Ocupemo-nos, agora, da forma como os livros estão organizados, arranjados, o que, no caso
da obra ficcional de Carone, em particular, implica a noção de montagem, compreendida nos
âmbitos do fazer literário e da editoração, mas em estreita relação com o sentido que a
montagem adquiriu – e a notabilizou – no teatro e, sobretudo, na criação cinematográfica.
O livro de estreia de Carone, As marcas do real, rendeu-lhe o Prêmio Jabuti. Tem o texto
das orelhas assinado por Antonio Candido. São ao todo 22 contos breves, e alguns muito curtos,
como “Noite de circo”, que tem quatro parágrafos e 26 linhas, e “Pista dupla”, com quatro
parágrafos e 28 linhas.
Os dois livros seguintes, Aos pés de Matilda e Dias melhores, têm seus contos
organizados em torno de temas. No caso de Aos pés de Matilda, o conto-título, que pela
extensão é quase uma novela, constitui praticamente um tema isolado. Os demais são temáticos:
“Recato”, “A força do hábito” e “Ponto de vista” estão reunidos sob o título “Os móveis”, já
que explicitam a relação do narrador com peças do mobiliário da sua casa ou do trabalho. “Bens
familiares”, “O mensageiro”, “Encontro” e “À sombra de Borel” foram reunidos sob o título
“O outro”, pois retratam os conflitos do narrador com esse “outro” presente ou pressentido,
podendo ser, ainda, sombra do passado, como em “Bens familiares”, um inimigo envolto no
estranhamento que é percebido como adversário, como em “O mensageiro” (lembrando “A casa
18

tomada”, de Cortázar) ou simplesmente o duplo do narrador, como em “Encontro”. Aos pés de


Matilda está dividido em 11 blocos de texto, identificados por algarismos romanos.
A organização do volume Dias melhores é muito semelhante à de Aos pés de Matilda:
novamente os contos são aglutinados ao redor de temas. O mais extenso, “O ponto sensível”, é
por si só um tema. Está dividido em cinco blocos de texto numerados com algarismos romanos.
Sob o título “Ameaças” estão agrupados os contos “Dias melhores”, “Corte”, “Janela aberta”,
“O espantalho”, “Passagem de ano” e “O assassino ameaçado”. As ameaças não são sempre
explícitas, mas intuídas, pressentidas, um sentimento que está no ar e o texto busca traduzir.
O tema “Masculino/feminino” reúne contos que tratam de relacionamentos (quase sempre
conturbados) entre homens e mulheres. São eles: “O som e a fúria”, “Chamas”, “Rodeio”,
“Determinação”, “A tempestade”, “Subúrbio”, “Silhuetas”, “Novelo”, “Rito sumário”, “Fim de
caso” e “Escombros”.
Dias melhores tem traços de intertextualidade: “O assassino ameaçado” apresenta como
subtítulo “alusões a partir do quadro de Magritte”, já que o título é o mesmo de um quadro do
pintor surrealista René Magritte e o conto é uma leitura e uma análise da cena retratada na tela.
Os temas têm como epígrafes versos dos poetas Friedrich Höelderlin, Manuel Bandeira e
Charles Baudelaire.
A intertextualidade já se faz presente em As marcas do real: os títulos de alguns contos
citam obras como “Crime e castigo”, “Eros e civilização” e “O eterno marido”, uma
composição, “Sagração da primavera”, de Stravinsky, e uma canção popular, “Águas de
março”, de Tom Jobim.
Veremos, em 3.2, que Resumo de Ana também estabelece relações intertextuais, só que
mais sutis.
É temerário sintetizar as histórias contidas em Resumo de Ana, mas se impõe que seja
feito aqui, para maior clareza da exposição.
Resumo de Ana, o livro, narra, na primeira parte, a vida de Ana, nascida em 1887, na zona
rural de Sorocaba. Órfã muito cedo, uma mulher a adota como filha de criação e passa a explorá-
la tanto nos trabalhos domésticos quanto nos externos. Ainda jovem, se muda para São Paulo,
onde trabalha em casas de famílias abastadas. Isto a faz conhecer hábitos próprios e exclusivos
dos ricos, relacionados ao lazer, à indumentária e aos códigos de etiqueta.
Ao retornar a Sorocaba, ela se casa com um jovem rústico, o comerciante Balila
Baldochi. Ana perde os quatro primeiros filhos: “vingam” Lázara, que é quem fará o relato oral
da vida de Ana, Ciro e depois Zilda. Os primeiros anos de vida em comum foram felizes, até
19

Balila a agredir violentamente, por suspeita de adultério. Ana passa a devotar-lhe aversão e,
como forma de escape, começa a beber.
Balila tem os bens penhorados em 1931, “o ano da grande depressão” (CARONE, 1998,
p. 44). Seu armazém é fechado e, para assegurar a sobrevivência da família, começa a trabalhar
como caixeiro-viajante. Enquanto se prepara para fazer uma dessas viagens, Ana morre (1933),
debilitada pela tuberculose e pelo álcool, aos 45 anos de idade. A família, então, se divide. Ciro
é retirado da escola para auxiliar o pai nas viagens. Lazinha e Zilda vão viver com a madrasta
de Balila e se desligam do pai e do irmão. Aos 14 anos de idade, Lazinha se põe a trabalhar de
dez a 14 horas por dia costurando sacos de café.
Finda a história de Ana, principia a de seu filho, Ciro, igualmente acidentada. Tendo
conhecido o trabalho desde muito cedo, em companhia do pai, como viajante, Ciro se emprega
como balconista de farmácia e bar, operário da Estrada de Ferro Sorocabana e em um jornal da
cidade, onde se inicia na profissão de gráfico. Conhece uma jovem, casa-se com ela e descobre
pouco tempo depois que está tuberculosa. Ciro a interna em um sanatório de Campos de Jordão,
onde ela fica por dois anos. Nesse período, ele se relaciona com outra mulher e o casamento
parece terminado. Mas, ao fim dos dois anos, a mulher deixa o sanatório e eles retomam a vida
conjugal. Ciro compra uma impressora e dá início à sua própria empresa gráfica.
Tendo descoberto o caso extraconjugal de Ciro, a mulher pede o desquite. Ciro se une a
outra mulher, Anita, que o acompanha até o fim da vida. Com ela tem seis filhas. A instabilidade
econômica do País no início dos anos 60, e sobretudo a recessão no governo de Castelo Branco,
levam Ciro à falência, seguindo o destino do pai, “que tinha conhecido a marginalização
econômica antes dos cinqüenta anos de idade” (CARONE, 1998, p. 91). A partir dali, Ciro
sobrevive de pequenos trabalhos. O último deles, de vendedor ambulante de aguardente. Anita
trabalha como operária e depois como caseira em uma chácara, onde a família passa a residir.
Mas, depois de um mal-entendido com os patrões, são dispensados e despejados, tendo de viver
novo e longo tempo de penúria. Já estavam, então, em plena vivência do milagre econômico
(início dos anos 70 do século XX).
Ciro morre em 1990, nos braços da mulher, declarando-lhe amor e ouvindo o apito de
uma fábrica. Depois de sepultado, descobrem que lhe tinham destinado a cova errada.
A última obra de ficção de Carone, Por trás dos vidros (2007), consiste na republicação
de 37 do total de 48 contos da sua antiga trilogia, acrescidos de outros 11 contos que ainda não
haviam sido publicados em livro. Não houve uma intervenção significativa do escritor nos
contos republicados, exceto em dois títulos: “Aos pés de Matilda” passou a se chamar
20

“Matilda”, apenas, e “Utopia do Jardim de Inverno por um Doutor em Letras” teve o título
encurtado para “Utopia do jardim-de-inverno”.

A edição desse livro foi problemática: Por trás dos vidros cometeu alguns equívocos
prejudiciais à difusão da obra de Carone. Os 11 contos mais recentes foram dispostos no início
do volume, antes daqueles publicados nos anos 70 e 80 do século XX. O leitor que tiver contato
com os contos por meio desse livro terá dificuldade em compreender as oscilações na sua forma,
na temática e na dicção.

Para além dos elementos intrínsecos à matéria, os livros de ficção de Carone, exceto Por
trás dos vidros, obedecem a uma simetria que impressiona: partes distribuídas uniformemente,
mesmo número de linhas e parágrafos. Essa forma de organizar o texto integra-se a um processo
de composição derivado da ideia de montagem.

1.3 A mobilidade e a montagem

A novidade da tese defendida por Carone em 1972 foi justamente aproximar e sobrepor
o conceito clássico de metáfora e o conceito moderno de montagem, como é empregado no
cinema. Mesmo não sendo exclusivo do cinema, foi naquele meio que adquiriu relevância e
passou a ser considerado como elemento importante no processo de criação das mais diversas
expressões da arte.

Carone, que é germanista, foi talvez o primeiro pesquisador brasileiro a enfrentar a obra
de Georg Trakl, poeta considerado difícil, criador de poemas enigmáticos, e ainda hoje pouco
conhecido no Brasil, mas reputado internacionalmente como um dos mais importantes poetas
de língua alemã de todos os tempos. Leitor de Rimbaud, cuja forma de construir imagens
poéticas pode ser sentida em sua produção, Trakl também teve vida breve e trágica.

Carone afirma que a sua leitura de Trakl deve muito ao cineasta Sergei Eisenstein,
bastante citado em seu trabalho, e que ele considera “o grande teórico da montagem”
(CARONE, 1974, p. 14). Sustenta que a ideia de montagem esteve no centro da própria forma
como organizou sua tese, por meio de um “mosaico” ou “montagem” de citações. O propósito
foi fazer com que a montagem crítica espelhasse e legitimasse a montagem criativa (CARONE,
1974, p. 14).

Carone observa que as teorias de Eisenstein não restringem a montagem ao cinema, mas
a estendem à pintura, ao teatro e à literatura, “percebendo sua atuação em manifestações tão
21

diversas quanto a poesia de Milton e Púchkin, a prosa de Dickens e Maupassant, a pintura de


Leonardo e o ideograma e haicai japoneses” (CARONE, 1974, p. 14).

Não se trata, segundo Carone, de entender a montagem metaforicamente, como fizeram


alguns estudiosos da produção de Trakl, ou como a apropriação que o poeta fez de textos de
outros poetas. Trata-se, sim, de uma montagem literal, uma “junção de imagens descontínuas”
(CARONE, 1974, p. 15). Montagem, portanto, muito mais no sentido que ela tem na arte
cinematográfica do que em qualquer outra.

Apresenta-se, dessa forma, como um conjunto de metáforas visuais


agrupadas sem necessidade “lógica”, ou seja, reunidas num sistema
semiológico em que uma não decorre necessariamente da outra, como
acontece no discurso linear comum ou na obra literária que lhe acompanha de
perto os passos. Trata-se […] de propor uma resposta à pergunta mais
freqüente suscitada pela obra trakliana: como as imagens individuais deste
poema estão relacionadas umas com as outras? Cremos que a montagem […]
pode dar indícios a esse respeito. Isto é: as imagens isoladas do poema se
comportam como as “tomadas” ou os fotogramas montados num filme,
articulando planos e cenas cujo significado seria aferível pela forma em que
essas unidades colaboram ou colidem umas com as outras na consciência de
quem lê o poema (como ocorre na mente de quem vê o filme). É nesse
momento que se pode pensar na afinidade entre a metáfora e a montagem, pois
não só a primeira é, em certo sentido, uma junção de elementos incongruentes
que aponta para um “terceiro termo” que deles se diferencia, como também a
montagem é uma metáfora, na medida em que se apresenta como a “idéia”
que salta da colisão de signos ou imagens justapostas (CARONE, 1974, p. 15.
Grifo original.).

Na poesia de Trakl, a metáfora e a montagem, entrelaçadas, nomeiam algo que se situa


além da experiência verbalizável, um não dito (CARONE, 1974, p. 16). O poeta constrói tanto
uma metáfora ilógica como uma metáfora descontínua, o que o mantém distante de toda forma
de convencionalidade discursiva (1974, p. 17) e faz com que sua poesia obtenha o
“desfiguramento do 'real' por meio de uma deformação da linguagem” (1974, p. 32-33).

O “terceiro termo” ao qual Carone se referiu integra a teoria de Eisenstein sobre a


montagem. No livro A forma do filme (1942), o cineasta afirma que a montagem é a ideia que
nasce da colisão de duas tomadas independentes, princípio que ele aplicou a outras modalidades
artísticas além do cinema: a poesia, o romance, a pintura e o teatro (CARONE, 1974, p. 103-
104). Nessa formulação de Eisenstein,

podem ser reconhecidos dois fatores relevantes da Estética moderna: o


fragmento, unidade material de que se vale a composição, e a produção de
significados, chamados por Eisenstein de “terceiro termo”, circunstância que
aproxima o processo da montagem do processo metafórico, em cuja forma
literal se observa a junção “alógica” de elementos estranhos um ao outro para
22

engendrar uma possibilidade semântica que não pode ser encontrada em


nenhum dos termos da equação considerados isoladamente (CARONE, 1974,
p. 104. O grifo é nosso.).

Eisenstein sustenta que duas pontas de película, uma vez juntas, formam uma nova
representação. O resultado da aglutinação é sempre diferente, do ponto de vista qualitativo, em
relação a cada um dos elementos isolados (CARONE, 1974, p. 104). A montagem produz,
assim, um amplo leque de combinações possíveis e o efeito de sentido que se obtém também é
variável, a depender de cada combinação e do interesse e preparo do público em atuar
ativamente na leitura e na construção dos significados.

Eisenstein, ao refletir sobre os vários aspectos da arte cinematográfica, percebeu que o


fragmento é um aspecto essencial da arte moderna (CARONE, 1974, p. 106). E o fez muito
antes até mesmo que teóricos e críticos que refletiram sobre a arte na primeira metade do século
XX.

Através do apelo ao fragmento e de sua atualização estética – a


montagem – é que nasce o produto artístico contemporâneo. Essa colocação
do problema situa Eisenstein entre os teóricos da vanguarda, inclusive dos que
vêem, na “abertura” da obra, uma característica fundamental, que exige a
participação ativa do “consumidor” para a consecução dos resultados estéticos
propostos (CARONE,1974, p. 106).

Carone não só estudou o conceito de montagem como empregou-o na sua obra ficcional.
Resumo de Ana resulta de uma montagem editorial, pois traz, como primeira e segunda partes,
o que eram originalmente duas novelas publicadas antes, em revistas destinadas ao público
acadêmico. A primeira, “Resumo de Ana”, corresponde fielmente ao que depois viria a ser a
primeira parte do livro homônimo. Apareceu no nº 25 da revista Novos Estudos Cebrap, de
outubro de 1989. A novela seguinte, “Ciro”, foi publicada em 1996, no nº 26 da revista
Discurso. Corresponde a um excerto (cerca de oito páginas) da segunda parte do livro, com o
mesmo título. A diferença, além do tamanho, está na supressão, no livro, dos parágrafos inicial
e final da versão da revista.

Além dessa montagem, há outras, operadas internamente. Vejamos. O relato de Lazinha


é organizado, montado pela voz narradora, para dar origem à história tal como se configura.
Outra ocorrência se apresenta nas duas notas no final do livro. A nota número 2 traz a seguinte
informação: “As principais fontes consultadas pelo Autor foram História de Sorocaba e A
Revolução Liberal de 1842, do historiador Aluísio de Almeida” (CARONE, 1998, p. 114). Em
um livro que tem a ação transcorrendo quase exclusivamente em Sorocaba, entre o final do
século XIX e o ano de 1990, seria natural que se valesse de referências históricas. O que chama
23

a atenção é a forma como uma dessas referências foi inserida no trecho acima: montada e
sobreposta no relato memorialístico de Lazinha. É evidente que a oração a seguir não provém
do relato de Lazinha, mas da fonte bibliográfica: “Não há documento disponível sobre suas
posses, mas é provável que no correr dos anos tenham passado de proprietários a arrendatários
de terras e que nas últimas décadas do século XIX tenham vivido da cultura de subsistência”
(CARONE, 1998, p. 16). Montagens como essas implicam, na maioria das vezes, a história de
Sorocaba, mas também a do estado e a do País.

Há um questionamento no meio acadêmico brasileiro em torno de decisões relativas ao


formato editorial definitivo de algumas obras literárias. Na maioria dos casos, essa discussão
envolve a Companhia das Letras, que é a editora de Modesto Carone, e o seu editor, Luiz
Schwarcz. Suspeita-se que boa parte das decisões quanto a reunir publicações anteriores (como
foi o caso de Por trás dos vidros) e justapô-las, criando novo efeito de sentido (como em
Resumo de Ana), resultem de sugestões do editor para o escritor. Em outras situações, isso é
declarado pelo próprio escritor nos agradecimentos, como forma de reconhecer o trabalho do
editor. Assim ocorreu com Milton Hatoum, em A noite da espera (2017). Coube a Schwarcz a
decisão de dividir editorialmente a matéria em mais de um volume.

A ingerência dos editores no produto final raramente é assumida. Chamam a esse


procedimento de edição, como na imprensa, termo genérico que escamoteia a montagem como
modus faciendi. Do ponto de vista do livro como negócio, como produto complexo e fetiche, é
justificável: o livro não é concebido para fracassar no mercado. É papel do editor potencializar
as suas qualidades e torná-lo mais atraente para o cliente/leitor. Outro aspecto que torna a
montagem defensável no processo de produção do livro é que, em outras artes que também
recorrem a ela, como o teatro e o cinema, as decisões que permeiam todas as etapas da criação
são tomadas em conjunto, pelos membros da equipe. Não deveria causar estranhamento que
também fosse assim com o livro.

A montagem editorial de fato interfere na recepção do livro e no seu efeito de sentido.


Os contos de Carone extraídos dos três volumes iniciais dialogam com o leitor de uma forma
em Por trás dos vidros e de outra muito diferente nos livros originais. No contexto em que
apareceram originalmente, entre 1979 e 1984, esses contos tendiam a ser lidos e interpretados
como enfrentamento àquela atmosfera opressiva do regime militar, que já se encaminhava para
o seu fim, com o processo de abertura política do presidente João Figueiredo. Alguns contos
em especial, como “Choro de campanha” e “Aos pés de Matilda”, poderiam ser lidos como
alusões à violência de Estado e ao excesso de tutela sobre a vida do indivíduo.
24

Tratando-se de Resumo de Ana, a leitura isolada das duas novelas tal como saíram nas
revistas Novos Estudos Cebrap e Discurso produz reações no leitor muito diversas daquelas
proporcionadas pela leitura sequencial, no volume. Integradas, as duas novelas passaram a ser
interdependentes, e “Ciro” dialoga com “Resumo de Ana”: o fracasso do filho ecoa a destruição
das esperanças, a aniquilação da mãe e o desaparecimento daquele núcleo familiar. Uma ruína
está imbricada na outra.

É necessário pensar de outra forma, diferente do que se pensou até hoje, uma literatura
que não só se desloca na direção de saberes e subjetividades próximas, como também opera
procedimentos “importados” da expertise de outras semióticas. Provavelmente são experiências
interligadas: a literatura desliza para fora de si e assimila outros discursos justamente porque já
buscou no teatro, no cinema, na pintura, na arquitetura, etc. os meios de expressão que por si
só não possui.

1.4 Fundamentos da montagem no teatro, no cinema e na literatura

O que é que aproxima o cinema da literatura? Antes de mais, esta liberdade única de
que dispõem os artistas na utilização do material que lhes fornece a realidade e de o
organizar em sequência, segundo uma lógica própria a cada um. É uma definição que
pode parecer demasiado vasta e geral, mas ela é na realidade aquilo que o cinema e a
literatura mais têm em comum.

(Andrei Tarkovski, Le temps scellé, 1989, p. 58. Tradução do trecho por Maria do
Rosário Lupi Bello)

Dedicando-se ao estudo do drama moderno e ao que denomina de crise do drama, isto


é, a dificuldade de exprimir o mundo, Peter Szondi (2001) foi em busca das obras de
dramaturgos como Luigi Pirandello, Ferdinand Bruckner e Eugene O’Neill. Tentou, assim,
verificar o que eles fizeram para superar as contradições do drama moderno. Uma dessas
contradições diz respeito ao tempo. “A linguagem dramática é estritamente referida à ação, que
decorre em um presente contínuo; por isso a análise do passado está em contradição com a
forma dramática” (SZONDI, 2001, p. 98).

Como, então, o teatro poderia fazer frente aos grandes temas que lhe surgiam,
desafiando a sua capacidade de exprimi-los? Como se libertar da configuração clássica da cena
dramática, dependente do diálogo, impossibilitada de tratar conteúdos às vezes antidramáticos
e de se reportar a acontecimentos do passado? A solução encontrada por Bruckner foi
revolucionária: introduziu na cena dramática a técnica da montagem. Vejamos como ele a
concebeu na sua peça Die Verbrecher (Os criminosos), de 1929:
25

O primeiro ato expõe, em justaposição ou em sucessão desarticulada, o


caminho de alguns moradores da casa para o crime [...]. O primeiro ato conta
tudo isso de maneira não dramática, sem um encadeamento dos diversos
momentos, mas em uma justaposição desatada, restringindo-se a poucas cenas
pregnantes, que apontam para o passado e o futuro e mais sugerem do que
representam os acontecimentos reais. As cenas não levam umas às outras
dentro de uma funcionalidade fechada, como no drama; ao contrário, elas são
a obra do eu-épico, a dirigir o seu refletor alternadamente a uma ou a outra
casa de aluguel. O espectador ouve fragmentos de diálogos; quando ele
entendeu o seu sentido e pode imaginar por si mesmo o que virá, o refletor
volta a girar e ilumina uma outra cena. Desse modo, tudo é epicamente
relativizado, inscrito em um ato narrativo. [...] Uma vez que não permite ao
seu eu tomar a palavra como narrador, a épica não pode certamente renunciar
ao diálogo, mas torna possível que o diálogo se negue a si mesmo. Visto que
o diálogo não deve mais responder pela evolução da obra (esta é assegurada
pelo eu-épico), ele pode ser meras franjas, como nos monólogos
tchekhovianos, ou até mesmo se retirar para o silêncio, negando o dialogismo
como tal. [...] A mudança de cenas deixa de se basear na liberdade do narrador
épico, que se volta ora para este ora para aquele grupo de personagens. Agora
é essencial que os fragmentos dos diversos debates judiciais coincidam para
formar uma imagem unitária do tribunal. O que é alcançado à medida que as
passagens são misturadas segundo o princípio-dominó de falsa identidade.
Um processo se interrompe com as palavras do presidente. “O delito é claro”,
a cena cai na escuridão, uma outra sala do tribunal se ilumina, e o espectador
se vê diante de um novo processo, com o novo presidente pronunciando
idênticas palavras: “O delito é claro”. No mesmo sentido são empregadas na
seqüência as expressões “Eu pergunto à testemunha”, “O senhor conhece o
réu?”, “O senhor Procurador tem a palavra”, “O conceito de pena perderia
todo o sentido...”, “Qual é a essência do direito?”, “Em nome do povo...”.
Com essas frases cada cena transcende o caráter fechado do drama: suas
citações são tiradas do mundo jurídico real, e através delas a cena desliza para
uma outra. [...] Mas isso é montagem. Não podemos aqui senão aludir ao seu
significado histórico-formal, já que ela pertence à patologia não da dramática,
mas à da épica e da pintura (SZONDI, 2001, p. 142; 143-145).

Optou-se pela reprodução de um trecho extenso para que se evidenciasse do que se trata:
de uma técnica narrativa construída com o recurso a diferentes semióticas e que ultrapassa em
muito aquilo que se poderia chamar de forma tradicional do drama, já que tudo é mais narrativo
do que dramático. Os diálogos como existiam até então, conduzindo as cenas, passam a
fragmentos, uma cena “desliza” para outra: deslizar é uma figura que é atual e atuante no
universo das artes. Qualquer um de nós haverá de se lembrar de uma peça à qual tenha assistido
que emprega a montagem tal qual Bruckner a idealizou, alternando o foco de luz, ou seja, a
focalização, como se dá em muitos romances modernistas. Se não a vimos no teatro, a vimos
no cinema, transfigurada, ou nas páginas de uma obra literária, em um interessante processo
moderno e contínuo de reapropriação daquilo que a própria literatura ensejou.
26

No cinema, da mesma forma que no teatro, o procedimento técnico da montagem2,


historiado por Xavier (2005) e descrito quanto à sua natureza e potencialidades por Martin
(2005), possui preexistência em outras formas de expressão artística: no próprio teatro, na
pintura e na literatura.

Para se compreender a importância da montagem em determinadas obras, é necessário


se atentar para o processo histórico que consolidou a narrativa em prosa na modernidade.
Quando se lê um romance do século XIX, período da História em que esse gênero se consolidou
e adquiriu prestígio, faz-se uma experiência com um certo ritmo da narração que acaba se
impondo ao próprio ato de ler. As ilusões perdidas (1837), de Balzac, e Madame Bovary (1857),
de Flaubert, por exemplo, concentram-se em descrições de cenas, personagens e ambientes, de
tal forma que a ação não só se dilui como retarda o desenlace de alguns episódios que o leitor
deseja avidamente ver solucionados. É evidente que não se pode tomar essa estrutura como lei
geral do romance do século XIX. Alguém poderia observar que Crime e castigo (1866), de
Dostoiévski, ostenta um ritmo acelerado e neurótico, sobretudo nas longas passagens em que a
polifonia se faz mais pronunciada e múltiplas vozes atormentam a consciência de Raskolnikov.

Também não se pode afirmar categoricamente que no século XX, ou no período que se
seguiu às vanguardas, todo o romance tenha se contagiado com o movimento frenético das
fábricas, das ruas, dos transportes e da própria vida, enfim, como se dá em Memórias
sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade. O fato é que há romances importantes
do século XX que parecem acompanhar o ritmo da vida que se acelerava, e os estados mentais
que acompanhavam esse ritmo. Há, por outro lado, romances que se detêm sobre pormenores,
fragmentos de memória, ínfimas oscilações de movimento do ambiente e das personagens,
como os sete volumes de Em busca do tempo perdido, de Proust.

De qualquer forma, ao pensarmos em um típico romance europeu do século XIX,


pensamos em uma narrativa repleta de digressões e descrições, “preenchimentos”, como prefere
classificar o crítico Franco Moretti. Os preenchimentos foram, segundo ele, a grande invenção
narrativa daquele período – “século sério” do romance – e se firmaram porque o prazer narrativo
que proporcionavam era compatível com a regularidade da vida burguesa, fazendo do romance
uma “paixão calma” (MORETTI, 2009, p. 842). O ideal estético do romance realista europeu,
o princípio que o fundamentava, era “dividir ordenadamente o fluxo confuso da vida” (2009, p.
847).

2
Podemos falar em uma estética da montagem, pois ela se torna parte constitutiva daquilo que a obra comunica.
27

Também uma parte do chamado Primeiro Cinema, o dos primórdios, ajustava-se a esse
ideal de ordenamento do mundo, para que tudo parecesse verossímil, lógico, aceitável pelo
público. Uma exceção seria o cinema de Georges Méliès, pioneiro quanto a ser um ponto de
fuga da objetividade.

Xavier (2005) observa que, na fase inicial do cinema, que ele chama de “teatro
filmado”, quando havia a necessidade de se exibir uma cena dentro de um mesmo espaço e
tempo, contínuos, e logo depois uma cena em outro espaço, procedia-se assim: a primeira cena
era filmada em um único plano de conjunto e o corte era feito no momento da mudança para o
outro espaço (XAVIER, 2005, p. 28).

O corte estaria aí justificado pela mudança de cena, e a imediata


sucessão, sem perda de ritmo, estaria justamente possibilitada pelo corte.
Teríamos uma montagem3 elementar em que a descontinuidade espaço-
temporal no nível da diegese (diegético = tudo o que diz respeito ao mundo
representado) motiva e solicita o corte. A montagem, inevitável, só vem
quando a descontinuidade é indispensável para a representação de eventos
separados no espaço e no tempo, não se violando a integridade de cada cena
em particular. A platéia aceita esta sucessão não-natural imediata de imagens
porque esta sucessão caminha de encontro a uma convenção da representação
pragmática perfeitamente assimilada. Tal convergência redime o salto, que
permanece aceitável e natural porque a descontinuidade temporal é diluída
numa continuidade lógica (de sucessão de cenas ou fatos) (XAVIER, 2005, p.
28).

O procedimento que os teóricos do cinema dedicados a reconstituir a evolução da


linguagem cinematográfica apontam como libertador em relação à representação do teatro é o
corte no interior da cena, “a mudança do ponto de vista para mostrar de um outro ângulo ou de
uma outra distância o 'mesmo fato' que, supostamente, não sofreu solução de continuidade, nem
se deslocou para outro espaço” (XAVIER, 2005, p. 29).

Segundo Xavier, ao tornar possível uma mudança de focalização dentro de uma mesma
cena, o cinema estaria aparentemente mais próximo da forma de representação da literatura,
pois o escritor tem ampla liberdade para compor uma cena literariamente, com o seu narrador
fazendo escolhas para atender aos propósitos da narração. A crítica, sobretudo nos anos
heroicos do cinema, tendia a apontar como principal diferença entre a representação literária e
a cinematográfica o fato de que a imagem seria realista e de que a palavra escrita seria
convencional. Mas Xavier observa que esse contraste esconde uma particularidade do método

3
Martin (2005, p. 167) define a montagem cinematográfica como “a organização dos planos de um filme segundo
determinadas condições de ordem e de duração.”
28

realista de montagem, e este, por sua vez, impõe como natural ou normal uma forma de se
aglutinar as imagens para não destruir a “impressão de realidade” (XAVIER, 2005, p. 32-33).

Essa ilusão de verdade existe já como fundamento da noção aristotélica de mimese


(representação), e aderiu firmemente a todas as formas de produção artística: as artes plásticas,
a literatura, a cena teatral e, como não podia deixar de ser, a fotografia e o cinema. Mas
couberam ao cinema, talvez por requerer maior grau de produção técnica do que qualquer outra
arte, as ações mais radicais visando ao rompimento efetivo com a normatividade clássica da
representação, que é, na verdade, o que preside a estética realista e os vários realismos,
neorrealismos e hiper-realismos até hoje existentes.

Os processos técnicos de ligação e transição de um plano4 a outro, feitos com o objetivo


de articular a narrativa cinematográfica (MARTIN, 2005, p. 109), implicaram muitas
experimentações, várias das quais tornaram-se procedimentos empregados até hoje no cinema
e já naturalizados: o público “comum” sequer os percebe. Foi dentro dessas duas operações
primárias, ligar e “fazer a passagem”, que o cinema implementou a planificação e a montagem,
como observa Martin (2005, p. 109), e foi nesse momento que ganhou estatuto de arte.

Assim como a noção de montagem cinematográfica tornou possível não só ao cinema


como às outras artes transgredirem as rígidas normas da representação clássica, o cinema
também se apropriou da metáfora, figura de linguagem muito cara à arte e que se confunde com
a própria expressão poética em verso e prosa. O notável é que essa apropriação da metáfora se
fez concomitantemente à universalização da ideia de montagem. O cinema criou uma forma
peculiar de construir metáforas e a partir daí foi seguido pela literatura. Vejamos como a
conceitua Martin:

Chamo metáfora à justaposição, por meio da montagem, de duas imagens cuja


confrontação deve produzir no espírito do espectador um choque psicológico
com a finalidade de facilitar a percepção e a assimilação de uma ideia que o
realizador quer exprimir. A primeira dessas imagens é geralmente um
elemento da acção, mas a segunda (cuja presença cria a metáfora) pode
também ser retirada da acção e anunciar a sequência da narrativa, ou então
pode constituir um facto fílmico sem qualquer relação com a acção, não tendo
valor senão em relação com a imagem precedente (MARTIN, 2005, p. 118).

Perceba-se que a inserção da metáfora no cinema por meio da montagem ou colagem


de fragmentos do filme mudou o sentido clássico dessa figura, possibilitando maior liberdade

4
Entenda-se plano, aqui, como um segmento contínuo da imagem, situado entre dois cortes (XAVIER, 2005, p.
27).
29

combinatória, menos engessada pelas regras. Martin exemplifica com um filme emblemático:
Tempos modernos (1936), de Chaplin, no qual a abertura é constituída de imagens de um
rebanho de carneiros, seguidas por cenas de uma multidão saindo do metrô. É uma metáfora
ideológica, cujo propósito é “causar na consciência do espectador uma ideia cuja força
ultrapassa largamente o quadro da acção do filme e implica uma tomada de posição mais vasta
acerca dos problemas humanos” (MARTIN, 2005, p. 120). A montagem criou uma metáfora
que coloca o espectador como produtor de sentido. Ele pode lê-la como espetáculo visual ou
como crítica social, a depender do seu nível de sensibilidade, imaginação e cultura (MARTIN,
2005, p. 117).

O emprego da metáfora potencializou a força expressiva da imagem no cinema, algo


que se perdeu um pouco com a introdução do som, mas que os filmes de melhor qualidade
sempre resgataram. A literatura não tardou a perceber que teria muito a ganhar se apropriando
da metáfora na mesma perspectiva com que o cinema a tomou. Isso aproximou a arte literária
da técnica da montagem. É algo mais perceptível na produção poética do que na prosa: na poesia
hermética italiana e na poesia concreta cultivada no Brasil a partir da década de 50 do século
XX, por exemplo. Mas, como na modernidade a forma da poesia se avizinha muito da forma
da prosa e vice-versa, há narrativas construídas com fragmentos montados.

Há, entre as pessoas envolvidas com o cinema – diretores, atores, produtores, etc. – a
ideia já estabelecida de que um filme pode ser construído na montagem, para o bem e para o
mal: tanto pode sair dela para ser bem-sucedido como para o fracasso. No cinema, Martin
observa, a montagem é veículo do ritmo (MARTIN, 2005, p. 202). Assim, o que se verá na tela,
o que o público dirá ser arrebatador ou tedioso, é resultado da montagem. Mas a montagem tem
a sua pré-história. Martin reconhece que a montagem é preexistente em relação ao cinema e que
Sergei Eisenstein, em um texto muito conhecido entre os estudiosos de cinema, “Montagem
1938”, aponta exemplos de montagem em Da Vinci, Pushkin, Maupassant e Maiakovski. A
montagem é percebida em um poema de Rimbaud, “Marine des iluminations”, de 1873
(MARTIN, 2005, p. 202).

Quando frequentemente se fala em influência do cinema sobre a literatura no século


XX, em grande parte está-se a falar da apropriação da técnica da montagem cinematográfica
pela produção literária. Foi necessário que uma outra semiótica reconfigurasse a montagem
literária para que ela passasse a ditar um novo ritmo à ficção e à poesia. Esse movimento não
é, todavia, apenas intersemiótico: dá-se entre os diversos gêneros textuais e, no caso da
literatura, como veremos, sempre conspira contra a ideia de estabilidade.
30

2 AS FRONTEIRAS DA NARRATIVA

2.1 Continentes e transbordamentos

As energias artísticas criam obras de arte.


Perguntar pela utilidade de uma obra de arte é
inútil. A obra de arte tem um sentido. Todas as
obras de arte têm um sentido: o de proclamar a
ordem espiritual da matéria.

Lothar Schreyer, “Educação das energias


artísticas”, 1923. Tradução de Zé Pedro Antunes.

Um dos legados que recebemos da travessia do século XX foi a perda da estabilidade e


da rigidez dos conceitos, noções e categorias, que se tornaram fluidos, como preferem alguns,
ou viajantes, como afirma a crítica literária Mieke Bal (2009). Há uma ampla possibilidade de
associações positivas e negativas a esse fato. Uma vez que, nesta tese, focamos nosso interesse
no texto literário, adotamos como premissa que não há em tal perda – da “aura”, da autonomia
da literatura, da identidade dos gêneros e do prestigio e influência do cânone – algo que autorize
alguém a proclamar o desaparecimento da literatura, a sucumbência da arte às imposições do
mercado, o apocalipse total.

Chegamos ao fim das duas primeiras décadas do século XXI sem conseguir aglutinar um
conjunto de características em torno da literatura que não sejam precárias e fugidias, pois,
afinal, há uma estonteante atomização do universo literário e das suas energias filiadas –
narrativa, ficção, romance – em meio a domínios e produções que outrora não eram
consideradas literárias. Há, por outro lado, uma ausência de si no lugar de origem, ou seja,
buscamos e não encontramos traços típicos do objeto literário onde outrora pensávamos que
fosse o “campo” da literatura. Mas, sobre o “lugar” da literatura já não há, também, nenhuma
certeza.

O século XX foi marcado, e o início do atual também está sendo, pela percepção do
literário como mescla de formas e estilos, híbrido que opera uma concomitância neurótica de
texto artístico e descrição rude, de metalinguagem e de adesão ao contexto, assimilando
discursos e recursos de diferentes semióticas, sendo, então, verbo e imagem, presença e
ausência de si.

Nos primórdios das elaborações teóricas em torno da literatura, o formalismo russo


defendia o combate ao automatismo da linguagem poética pela via da singularização. No seu
31

ensaio “A arte como procedimento”, Victor Chklovski (EIKHENBAUM et al., 1971) propõe
que a arte seja compreendida como forma de deslocar a percepção para além do automatismo
que instauramos nas nossas ações cotidianas, na nossa relação com o mundo, face à rotina que
as aprisiona.

Se examinamos as leis gerais da percepção, vemos que uma vez


tornadas habituais, as ações tornam-se também automáticas. Assim, todos os
nossos hábitos fogem para um meio inconsciente e automático [...]. As leis de
nosso discurso prosaico com frases inacabadas e palavras pronunciadas pela
metade se explicam pelo processo de automatização. [...] para devolver a
sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe
o que se chama arte. O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão
e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da
singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a
forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção (EIKHENBAUM et
al., 1971, p. 43-44;45. O grifo é nosso).

O texto do teórico formalista ainda pode dialogar com o contexto histórico


contemporâneo caracterizado pela extrema intermediação – mediação eletrônica – do homem
com o mundo. Na origem, Chklovski pretendia contrapor o universo da representação prosaica
do mundo e o que ele designou como “língua poética”, inserida dentro do seu próprio campo.
A poesia deveria buscar a singularização dos objetos, recuperando-os do automatismo da língua
prosaica. Seus ensinamentos acabaram assimilados pela instituição literária, ou seja, pela crítica
literária do século XX e também pelos escritores. Noções como desautomatização e
estranhamento, gestadas a partir do termo singularização empregado por Chklovski no seu
ensaio, não só parecem ter se tornado autônomas em relação ao pensamento matriz como
também passaram a frequentar conferências e oficinas de criação literária.

Ainda naquele contexto caracterizado por um esforço teórico para distinguir o universo
da criação verbal das formas usuais da linguagem, o linguista Roman Jakobson propõe os
termos poeticidade e literariedade como moradas comuns para tudo o que é próprio da função
poética e da criação literária. Em conferência proferida em 1960, Jakobson (2000) estabelece
elos com reflexões que desenvolvera com seus colegas formalistas do Círculo Linguístico de
Moscou, nos três primeiros decênios do século XX. Reelaborada, a questão passou a ser bem
mais abrangente e propensa a estimular, no tocante à poética, a aproximação entre as ciências
da linguagem e os estudos literários: “Que é que faz de uma mensagem verbal uma obra de
arte?” – ele pergunta (JAKOBSON, 2000, p. 118).
32

Alguns dos traços característicos da escrita modernista5, como a ambiguidade e a


fragmentação, estão representados no seu ensaio.

A supremacia da função poética sobre a função referencial não oblitera


a referência, mas torna-a ambígua. A mensagem de duplo sentido encontra
correspondência num remetente cindido, num destinatário cindido e, além
disso, numa referência cindida, conforme o expõem convincentemente os
preâmbulos dos contos de fada dos diversos povos, como, por exemplo, o
habitual exórdio dos contadores de história de Majorca: Aixo era y no era
(“isso era e não era”) (JAKOBSON, 2000, p. 150. Grifo original.).

Um novo problema surge mais tarde, já não no âmbito do objeto, mas do próprio ato
criador da literatura, quando se configura a situação inversa, isto é, a supremacia do referente
sobre a função poética.

Os termos poeticidade e literariedade englobam tudo o que é próprio do universo da


função poética e da criação literária. Delas e Filliolet (1975) observam que Jakobson não
distinguiu poeticidade e literariedade, o que, segundo ambos, seria algo necessário (DELAS e
FILLIOLET, 1975, p. 52;53). “A literariedade está ligada a mecanismos que o leitor percebe
porque são colocados numa forma” (DELAS e FILLIOLET, 1975, p. 53). Para os autores,
recusa-se a distinção poeticidade/literariedade para preservar a unidade do literário: “aquilo que
se diz do literário deve valer para o poético, e vice-versa” (DELAS e FILLIOLET, 1975, p. 53).

A noção de poeticidade é mais abrangente do que a de literariedade. Fazendo-se justiça


a Jakobson, ele já aponta, em seu ensaio, que a poeticidade implica componentes do discurso
que excedem as questões de ordem puramente verbal: “a ‘poeticidade’”, afirma, “não consiste
em acrescentar ao discurso ornamentos retóricos; implica, antes, numa total reavaliação do
discurso e de todos os seus componentes, quaisquer que sejam” (JAKOBSON, 2000, p. 161).

O mesmo século XX agregou à poeticidade o sentido de percepção do mundo, de um


olhar: preexiste em relação ao objeto estético e verbal porque está implicada na subjetividade,
no desejo, na necessidade às vezes indiscernível da fruição do poético.

O texto literário é comumente associado a um conjunto de experiências de leitura cujos


traços marcantes alguns escritores costumam evocar em seus depoimentos e entrevistas aos
meios de comunicação massivos. Dois desses traços são: o poder de proporcionar ao leitor uma

5
Optamos por essa forma de nomear o movimento com base em Bradbury (1989), que fala, em uma abordagem
mais específica, em “visão modernista” e “movimento modernista”, e, em abordagem ampla, em “mundo
moderno” e “espírito moderno”. Isso traduz um escrúpulo dos críticos e teóricos que estudam a história da arte e
as vanguardas artísticas do século XX, para que não haja confusão com a Era Moderna ou a Modernidade da
História, mas é evidente a má vontade de quem toma uma noção pela outra.
33

evasão da sua realidade dada e conhecida para uma outra, destacado pela escritora Maria
Valéria Rezende, e a sensação de intimidade com o escritor, como se um estranho lhe falasse
em particular, destacado por Paul Auster. Analisemos mais detidamente:

Sempre me senti atraída pelas histórias que me tiram do já sabido [...], o que
interessa é aquele livro que me tira do meu cotidiano, da minha identidade e
me faz experimentar, de alguma forma, o que eu não sou (REZENDE, 2019,
p. 2).
[...]
[A leitura] é o único lugar, no mundo, onde dois estranhos podem se encontrar
em absoluta intimidade. Um estranho, alguém que você nunca viu, o escritor,
está falando com você. É um espaço muito íntimo (AUSTER, 2019, p. C1).

Essa evasão e essa presumida intimidade podem ser associadas à fruição da literatura. E
a fruição, por sua vez, pode ser considerada uma condição incidental que o texto literário
engendra na sua estrutura por meio de algumas estratégias discursivas. Mas é, também,
condição acidental, resultante de determinadas operações que o leitor executa recepcionando o
texto. Ao consentir a ambiguidade e a opacidade na superfície da sua matéria, a literatura cria
discursos que não produzem sentidos, desconexos em relação às demais partes do corpo verbal;
quebras de progressão nas fábulas6 e efeitos sensoriais (não necessariamente de sentido) que
advêm daquelas duas noções desdobradas da tradição formalista, desautomatização e
estranhamento. Ambas foram descoladas do plano essencialmente verbal proposto pelo
formalismo e hoje se assemelham mais àquelas seis propostas que Italo Calvino formulou no
final da vida como possíveis valores da criação literária do atual milênio (CALVINO, 2011).

Seja como for, a fruição do texto literário, o seu usufruto prazeroso, tem como
constituintes (não funcionando como regra, é óbvio), além do estranhamento no nível
discursivo, proporcionado pelo conjunto do léxico e pelo seu arranjo, por assim dizer, estético,
também e sobretudo a forma singular de representar a vida: incompleta, fraturada,
incompreensível, entrópica (portanto desordenada), imprecisa, repleta de episódios periféricos
que nos desviam o tempo todo do caminho supostamente principal, lacunas que a experiência
não permite completar, somente a imaginação, a suposição, os “possíveis” ficcionais. Trata-se
de uma vida propensa mais à atuação errática do que às soluções e ao sucesso preconizado por
tantos discursos motivacionais. Acrescentem-se aí a impossibilidade de conhecer a realidade
por se estar aderido demais à experiência presente; a condição marginal, a desmemoria, o nada

6
Fábula é o termo proposto pelo formalista russo B. Tomachevski para referir “o conjunto de acontecimentos
ligados entre si que nos são comunicados no decorrer da obra” (EIKHENBAUM et al., 1971, p. 173). É oposto à
suzjet/trama, “constituída pelos mesmos acontecimentos, mas que respeita sua ordem de aparição na obra e a
seqüência das informações que se nos destinam” (Id. ib.). Mieke Bal (1995) apropriou-se das duas noções, mas
designa trama de história, como se verá adiante.
34

saber do outro, os narradores inconfiáveis, os pontos de indistinção entre testemunho verídico


e narrativa ficcional.

Amplificando aquela noção de estranhamento e confrontando-a a problematizações


recentes em torno da arte e da literatura, associamo-la a tudo o que possa haver de específico
nos campos artístico e literário. Instaurada, como veremos adiante, a crise nas noções de campo,
de domínio e de autonomia do campo, a especificidade cede lugar ao seu oposto imediato,
expresso no neologismo inespecificidade.

Por vezes a arte erige uma parede branca e lisa, violenta por negar o além de si e a
posteridade. Mas até ali, onde a poesia parece interdita, é da condição humana buscá-la na sua
ausência, numa pequena ondulação na textura da parede, insinuando-se como falha, como
possibilidade de transcendê-la, de compreender o impedimento como momentâneo e
insustentável no tempo.

Na literatura, os interstícios costumam ser deixados a cargo do leitor, que, se


desprendendo do texto, fica livre para resolvê-los ou não da forma que desejar. Algo assim faz
parte da memória da formação como leitor do escritor Joca Reiners Terron. Em depoimento
publicado na imprensa (TERRON, 2019), ele recorda que, na infância, passando férias em
Santos, comprava edições encadernadas da personagem Tintim. Os livros reuniam as tiras
publicadas semanalmente na imprensa, mas eram histórias em andamento. Terron não tinha
acesso ao início, que estava em outro volume, e nem tampouco ao final, pois lhe faltavam os
volumes seguintes.

Sem os capítulos anteriores e seguintes do Tintim, eu não conhecia o


início e muito menos o final das aventuras. Só me restava imaginá-los. Vale
dizer que esse tipo de experiência interrompida e não linear, em tempos de
streaming e acesso irrestrito ao conteúdo da internet, parece em vias de
extinção. Ninguém se lembra mais da sensação de pegar o bonde andando, ou
o filme começado na TV (e depois assistir ao início na reprise, tudo fora de
ordem).
E aqui aparece um problema [...], a literatura imaginativa trabalha com
dilemas semelhantes aos da ficção menos original, além de operar sob a
mesma equação: somar para multiplicar (ou cortar, copiar e colar). Porém
como os resultados podem soar tão diferentes? Serão mesmo tão diferentes?
A imaginação [...] testa a resistência dos materiais narrativos: ao ignorar
a origem, o desdobramento ou o desfecho dos fatos, a imaginação preenche os
espaços vazios” (TERRON, 2019, p. 2).

Percebe-se que se trata de uma experiência com a poeticidade que se dá no âmbito da


recepção, dos estímulos posteriores à leitura, mas que tem relação direta com as fábulas e as
histórias tais como estão dispostas na obra. Na literatura, ou em parte dela, a que mais nos
35

mobiliza e emociona, a ausência se transforma em memória do ausente, às vezes em desejo.


Embora isto possa se tornar matéria da História, da Sociologia ou da Antropologia, é a literatura
que melhor acomoda as incompletudes, inconstâncias e assimetrias da vida ordinária.

2.2 Novos lugares, visibilidades e atores

Ao discorrer sobre algumas obras literárias publicadas recentemente na Argentina,


Josefina Ludmer (2014) tece um cenário desalentador quanto aos novos rumos da literatura –
esvaziada, sem metáforas, experimentando a perda da sua autonomia, com implicações nos
modos de ler. Ela chama de “diaspórica” a posição de muitas obras atuais que, ao transporem
a fronteira da literatura, “ficam fora e dentro”: “fora, mas presas em seu interior” (LUDMER,
2014, p. 148).

Proveniente do grego clássico, a palavra diáspora foi associada por muito tempo à
dispersão e ao deslocamento do povo judeu no mundo antigo. Em tempos mais recentes, ela
surgiu para se referir à circulação de ideias e culturas pelo mundo. O pós-estruturalismo e os
estudos culturais relacionaram o termo diáspora a lugares de passagem, transitórios, a não
lugares, identidades deslizantes, mas sempre mantendo da palavra na sua acepção original as
ideias de movimento e migração. Tornou-se muito próxima, assim, de termos como
nomadismo, deriva e transculturação. Em certo sentido, as artes visuais contemporâneas, com
suas performances, plasticidades e processos, são diaspóricas: basta visitar uma mostra de arte
para constatar que os artistas que produzem essas obras, bem como suas linguagens, técnicas,
etc., estão dispersos mundo afora e em contínuo deslocamento.

Está em curso um debate que alguns pensadores têm feito desde a virada do século XX
para o XXI com foco nas transformações políticas e culturais que ocorrem nas sociedades
humanas, estendendo-o para o universo da criação artística, sobretudo das artes plásticas, do
cinema e da literatura. Todos esses pensadores são, de uma forma ou de outra, filhos da nova
diáspora. Basta ver que atuam em campos distintos e transitam entre um e outro: Jacques
Rancière é filósofo e, mais do que filosofia, discute política, literatura, história e sociologia;
Josefina Ludmer era crítica literária, mas fazia incursões pela filosofia da arte, história,
sociologia e cultura; Néstor Canclini é antropólogo, mas tem se destacado com livros e ensaios
sobre comunicação, cultura, artes, literatura e sociologia. O mesmo se pode dizer de Florencia
Garramuño, que é crítica literária, mas incursiona pela estética contemporânea, pela cultura
popular, pela fotografia. A produção intelectual dessas pessoas é transdisciplinar. O seu mundo
– nosso mundo – é móvel, múltiplo, heterogêneo, plurilinguístico, metalinguístico,
36

intersemiótico. Mas é também contraditório, pois, a par de todas esses sentidos e comunhões,
algo que a priori deveria aproximar e eliminar as diferenças entre os homens, é um mundo
xenófobo, racista, concentrador de renda e riquezas, autoritário, machista, homofóbico,
reacionário, moralista, predador irracional dos recursos naturais, degradador da qualidade de
vida, fomentador e propagador das várias formas de fundamentalismos, etc. Frente a tal cenário,
que de modo algum lhes é indiferente, esses homens e mulheres tentam não se posicionar de
maneira pontual, mas evocando problemáticas amplas, sem abandonar suas teses. São
originários de espaços periféricos – em termos físicos, econômicos e do pensamento. Josefina
Ludmer (1939-2016) era argentina. Argentinos são também Néstor Canclini e Florencia
Garramuño. Jacques Rancière, embora radicado na França, nasceu na Argélia, ex-colônia
francesa no norte da África (como o escritor Albert Camus) e pode-se dizer que seus muitos
livros e ensaios escapam de uma “centralidade” temática: buscam as fissuras, os aspectos
deixados à margem, à deriva, como é o caso do seu último livro, Les bords de la fiction (As
margens da ficção), de 2017, que dedica o último capítulo à obra de João Guimarães Rosa,
escritor no mínimo pouco conhecido do público leitor francês.
Embora esteja quase todo o tempo incursionando fora do seu campo de origem, Rancière
sempre evoca as questões de fundo do seu pensamento. Os seus ensaios de maior repercussão,
aqueles que lançam um novo olhar sobre as inquietações e desajustes contemporâneos, realçam
o lastro da filosofia. Mas também a perturbam, ao proporem novos sentidos para noções e
conceitos clássicos. Quando retoma, por exemplo, a ideia de sensível, e mais tarde desenvolve
uma reflexão em torno do que chama de partilha ou comunhão do sensível, Rancière expande
o sentido que a filosofia sedimentou para o termo, desliza-o em um movimento que é mais de
aproximação com a política do que com a tradição filosófica. Mas, contraditoriamente ou não,
Rancière manifesta em cada novo escrito seu o vínculo com o ideal civilizatório e universalista
do Iluminismo.

Para entender os novos sentidos agregados à caracterização do sensível, o primeiro passo


é recuperar um pouco da antinomia socrática do visível (sensível) e do invisível (inteligível).
No Livro VI de República de Platão, Sócrates, no seu diálogo com Gláucon e Adimanto,
discorre sobre os gêneros visível e inteligível e distingue um do outro (PLATÃO, 2006, p. 261-
263). O mundo visível é constituído por imagens, “em primeiro lugar, as sombras, depois as
aparições refletidas nas águas e nas superfícies opacas” (PLATÃO, 2006, p. 262), e, além disso,
“os seres vivos [...], todas as plantas e todo gênero de artefatos” (PLATÃO, 2006, p. 262). No
gênero inteligível, a alma perscruta o mundo e elabora hipóteses “sem servir-se de imagens
37

como no outro caso e encaminha sua pesquisa só por meio das próprias idéias” (PLATÃO,
2006, p. 262), ou seja, “sem servir-se de nada que seja sensível, mas apenas das próprias idéias”
(PLATÃO, 2006, p. 263).

A filosofia define o sensível, então, como sendo “aquilo que é objeto de uma das
faculdades dos sentidos” (GILES, 1993, p. 139), ou como “aquilo que pode ser percebido pelos
sentidos” (ABBAGNANO, 2012, p. 1037). “Nesta acepção, ‘o Sensível’ é objeto do
conhecimento Sensível, assim como o ‘inteligível’ é objeto do conhecimento intelectivo”
(ABBAGNANO, 2012, p. 1037).

Outro termo pertencente ao mesmo campo semântico, “sensibilidade”, elucida o vocábulo


primitivo:

[...] a sensibilidade é, em Kant, uma das “duas fontes do conhecimento


humano”; se os objetos são pensados pelo entendimento, são dados pela
sensibilidade, por um lado, graças às intuições empíricas ou sensíveis que
fornecem o material dos fenômenos e, por outro, graças às intuições puras, ou
formas a priori, da sensibilidade (espaço e tempo) que predeterminam o
contexto no qual esse material é ordenado (DUROZOI e ROUSSEL, 1993, p.
430. Grifos originais.).

Em vez de anular a acepção consagrada de sensível, Rancière (2009; 2017) faz com que
ela coexista com o sentido ampliado que ele lhe atribui. Evoca o sensível a todo momento em
sua obra e nunca apenas e tão somente como uma experiência da subjetividade possível do eu,
nem como uma vivência puramente estética. “[...] o ato de escrever”, afirma, “é uma maneira
de ocupar o sensível e dar sentido a essa ocupação” (RANCIÈRE, 2017, p. 7). Aqui já se
percebe uma combinatória de metáforas, constituída pela metáfora matriz (o sensível,
justamente) e por uma metáfora transitória (ocupação), que vai sendo alterada ao longo do texto
para agregar outras possíveis associações. Ocupação é lugar, território. Se o ponto de partida
de Rancière é o de que o conceito de escrita é político (RANCIÈRE, 2017, p. 7), ocupar o
sensível corresponde a exercer plenamente a democracia.

O pensamento do filósofo ecoa valores iluministas – reveste-se de um ideal civilizatório,


que milita contra a barbárie e o obscurantismo. Talvez por isso ele busque construir a ideia do
dissenso, desonerando a democracia da busca obsedante pelo consenso. O ponto de partida é o
“estado estético” delineado por Schiller, marca de uma “identidade fundamental dos contrários”
(RANCIÈRE, 2009, p. 34). Rancière ocupa o corpo da palavra dissenso para fazê-la
semanticamente outra, naturalizá-la no jogo democrático e assim superar a crise contemporânea
advinda da impossibilidade do consenso. Dar novo significado aos elementos de um discurso é
38

atuar politicamente. Ao fazê-lo, Rancière ocupa o lugar de um cientista político, ou, mais
precisamente, modula a sua voz a esse outro discurso. Uma das marcas do pensamento
contemporâneo, como também da estética, é não se circunscrever a um único domínio, a um
campo, a um lugar preestabelecido. Isso não significa se afastar das suas matrizes de
pensamento, perder a identidade, etc. É, ao contrário, potência: amplia-se o alcance de uma voz
quando o que ela exprime de um dado problema busca representá-lo em toda a sua
complexidade. O todo é inalcançável. Seja na crítica ou na arte, a síntese se impõe como
necessária. Portanto, há sempre algo a ser sacrificado. No caso de Rancière, houve uma renúncia
de si como historiador do pensamento, papel que os filósofos não se furtam a ocupar na
modernidade, até como forma de legitimar seu discurso. Rancière renunciou a ser historiador
do pensamento talvez para que outros papéis tivessem realce. Por exemplo: no momento em
que dá forma a outra metáfora, a partilha do sensível, o filósofo torna-se, ao menos
temporariamente, poeta. É essa condição que lhe possibilita traduzir a operação pela qual o
Estado democrático atribui direitos e competências: “Uma partilha do sensível é [...] o modo
como a relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes exclusivas se
determina no sensível” (RANCIÈRE, 2017, p. 8).

Relacionando política e estética, Rancière atribui a esta o sentido de um “regime


específico de identificação e pensamento das artes: um modo de articulação entre maneiras de
fazer, formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de pensabilidade de suas
relações” (RANCIÈRE, 2009, p. 13). Seu ponto de discussão sobre a literatura se origina das
maneiras de fazer, ou práticas artísticas: “A questão da ficção é, antes de tudo, uma questão de
distribuição dos lugares”, diz Rancière (2009, p. 17), e os lugares são sempre políticos: está em
questão quem fala, em lugar de quem, em quais espaços, com que legitimidade, etc. Está em
questão, por conseguinte, o próprio sentido de fazer literatura nas sociedades democráticas.
Pois, como pontua Souza (2018), a partilha do sensível, na perspectiva de Rancière (2009),
consiste em “uma maneira de relacionar as práticas artísticas com o funcionamento das outras
práticas da vida” (SOUZA, 2018, p. 24), o que já indicia o fato de que, para o filósofo, a arte
não é autorreferencial e autônoma. Esse aspecto do debate mobiliza outros pensadores, como
Ludmer e Canclini e, no caso da literatura, abre a perspectiva de um novo olhar crítico sobre a
produção, circulação e recepção de obras literárias.

No início da década de 90 do século XX, Rancière publicou um ensaio contendo as linhas


mestras do pensamento que, de forma coerente e rigorosa, vem construindo desde então. Em
Os nomes da história (1994) já se faz presente um sentido político da literatura, cuja discussão
39

ampliaria em “O efeito de realidade e a política da ficção” (2010) e em A partilha do sensível


(2009). Embora o foco esteja na constituição do discurso da história, Rancière aproxima a
literatura do momento histórico da ascensão das massas e da legitimação das suas demandas (a
“papelada”) na idade da democracia.

É afirmando-se em seu absoluto, desligando-se da mimesis e da divisão


dos gêneros, que a literatura torna a história possível como discurso da
verdade. Ela o faz pela invenção de um relato novo. Assegurando o
deslizamento dos tempos e das pessoas no presente do sentido, este relato
funda bem mais que a elegância de um estilo. Ele fixa a maneira de ser que
convém em comum ao povo e à ciência. A literatura dá seu estatuto de verdade
à papelada dos pobres” (RANCIÈRE, 1994, p. 60).

Em ensaio originado de uma conferência de 2009, Rancière diverge de um famoso texto


de Roland Barthes, “O efeito de realidade”, de 1968. Para Barthes, a descrição de cenários em
Flaubert é onerosa para a informação narrativa, produzindo um efeito de real que se vincula a
uma tradição clássica virtuosística, cumprindo a função de atestar a verossimilhança do
elemento ficcional.

Rancière objeta que o excesso de descritivismo realista implica uma questão política: a
de uma “distribuição de capacidades de experiência sensorial, do que os indivíduos podem
viver, o que podem experienciar e até que ponto vale a pena contar a outros seus sentimentos,
gestos e comportamentos” (RANCIÈRE, 2010, p. 79). “A democracia no romance realista”,
acrescenta, “é a música da igual capacidade de qualquer um de experienciar qualquer tipo de
vida” (RANCIÈRE, 2010, p. 80).

Barthes analisa o “efeito de real” da perspectiva “modernista”,


igualando modernidade literária, e seu significado político, com a purificação
da estrutura do enredo, descartando as imagens “parasíticas” do real. Mas a
literatura como configuração moderna da arte de escrever é justamente o
oposto: ela é a supressão das fronteiras que delineiam o espaço dessa pureza.
O que está em jogo nesse “excesso” não é a oposição do singular e da
estrutura, é o conflito entre duas distribuições do sensível” (RANCIÈRE,
2010, p. 81).

“Distribuições do sensível”: operações que envolvem a inter-relação complexa entre


“democracia política e democracia literária” (RANCIÈRE, 2010, p. 81).

Rancière diverge da representação aristotélica, que dá à ficção poética uma condição


privilegiada e cria dois tempos: o da ação, ou seja, da narração, e o cronológico, o tempo
reprodutível das pessoas comuns. Para ele, a ficção modernista subverteu essa ordem clássica
e o sensível não tem hierarquia; o tempo do homem comum coexiste com o da ficção
40

(RANCIÈRE, 2018). “Meu principal objeto é a abolição da antiga fronteira entre existências
que são dignas da ficção e existências que não o são”, declarou, em entrevista. “Estudo como a
ficção moderna atendeu às aspirações desses homens e mulheres do povo que queriam escapar
do universo da repetição e da reprodução ao qual se dedicavam” (RANCIÈRE, 2018).

O filósofo também se opõe ao juízo comum da crítica literária atual de que a ficção
contemporânea possui tendência documental.

Esse ceticismo [com a ficção] parte de gente que pensa provar a própria
superioridade. Toda a história da ficção moderna é uma alternância dos
valores atribuídos às palavras “realidade” e “ficção”.
Balzac já dizia que nenhum livro teve o poder da notícia. “Ontem, às
16h, uma jovem se jogou do rio Sena de cima da Pont des Arts”. [Joseph]
Conrad mostrou que a imaginação nunca inventou nada além de virtualidades
contidas em uma sombra, anedota ou frase ouvida ao acaso.
O cinema tem provado que a forma documental, na qual se organizam
fatos comprovados, implica em invenções ficcionais mais ricas do que as
necessárias para se criar uma ficção plausível. E o cinema mais interessante
hoje é aquele que embaralha documento e ficção. A ficção não é o oposto da
realidade, mas a construção de um senso de realidade (RANCIÈRE, 2018).

Na sua leitura de Guimarães Rosa (2018b), Rancière nomina os contos de Primeiras


estórias como “margens de história”, “quase-histórias”, momentos em que a vida se apresenta
separada de si, contando-se a si mesma. Dessa forma, ele enxerga no excesso de ficção em
“Sorôco, sua mãe, sua filha”, por exemplo, não um escapismo, nem virtuosismo, mas a vida
das pessoas comuns investida do dom de se transfigurar, de transpor seus limites (RANCIÈRE,
2018, p. 97). A força que impulsiona histórias como essa seria proveniente da experiência
efetiva do seu criador com pessoas, cenários, lugares, acontecimentos que, ao entrarem nesse
universo particular da ficção, parecem prescindir de um espaço e de um tempo. É algo que se
acerca da sua ideia de “escrita mais que escrita” (RANCIÈRE, 2017, p. 11-13), que busca ir
além dos limites impostos pelos registros verbais; “a escrita viva do espírito, aquela em que o
sentido não se separa do corpo que o apresenta” (RANCIÈRE, 2017, p. 13). Trata-se, claro, de
uma imagem utópica no âmbito do pensamento filosófico e subversiva na esfera da criação
literária, pois evoca uma escrita verdadeira, perene, inscrita nas próprias coisas.

A ordenação ficcional deixa de ser o encadeamento causal aristotélico


das ações “segundo a necessidade e a verossimilhança”. Torna-se uma
ordenação de signos. Todavia, essa ordenação literária de signos não é de
forma alguma autorreferencialidade solitária da linguagem. É a identificação
dos modos de construção ficcional aos modos de uma leitura dos signos
escritos na configuração de um lugar, um grupo, um muro, uma roupa, um
rosto [...]. A soberania estética da literatura não é [...] o reino da ficção. É, ao
contrário, um regime de indistinção tendencial entre a razão das ordenações
41

descritivas e narrativas da ficção e as ordenações da descrição e interpretação


dos fenômenos do mundo histórico e social (RANCIÉRE, 2009, p. 55).

Ao fim e ao cabo, o sentido que depreendemos dos seus escritos é de que todos têm direito
à experiência com o sensível, e, mais do que isto, o próprio sensível não é refém de uma classe
social, de uma tradição imposta, de especialistas. É uma ideia que se percebe muito ativa em
um livro seu que não trata diretamente de arte, nem de literatura, O mestre ignorante (1987),
no qual Rancière parece apontar para a percepção política de que a ação e a experiência não
devem depender de uma competência, de uma expertise prévia conferida pela escolaridade,
posição social, etc., sem que por isso deixem de ser legítimas.

Entendemos que, para Rancière, a perda de autonomia por parte da arte e da literatura, a
inviabilização de um campo artístico e de um campo literário, não são problemas, são realidades
que os próprios criadores se esforçam para construir. O mal estaria na autonomia mesma, ou na
“ilusão de autonomia”, como disse Bourdieu (2002), pois significa a clausura, a captura por
uma classe, a torre de marfim, a arte aristocrática.

Rancière pensa a arte como visibilidade, insere-a em uma dinâmica política, dos visíveis
e não visíveis, dos lugares de cada um na cena. Vive-se hoje o momento da visibilidade de
novas demandas políticas, fazendo com que as relações no interior da sociedade se tornem
tensas, pautadas mais pelo dissenso do que pelo consenso, para permanecer na sua terminologia.
Ele se deu conta – e seu leitor atento idem – de que a forma de fazer arte (aí incluída a literatura)
e de recepcioná-la vem mudando, e isto não faz dela uma arte melhor ou pior, mas diferente do
que já se fez até aqui. Há um olhar atento desse pensador (como ocorre com Canclini e de certa
forma também com Garramuño) para a arte que se desempenha fora dos seus contextos
consagrados, que se inscreve nos muros, nas estações de metrô, é apreciada não só no interior
de prédios a ela destinados, mas a partir das janelas de transportes coletivos em movimento.
Arte performática, mobilizadora de múltiplos meios e em processo. Pode não ser um objeto,
mas estar impressa no corpo ou na roupa de alguém, ser ritmada, entoada, sussurrada. A
literatura tanto pode prescindir do objeto livro como pode ainda se servir dele em concomitância
com outros suportes e mídias.
Para que melhor se compreendam os novos paradigmas da crítica de arte e literatura que
Jacques Rancière, Josefina Ludmer, Néstor Canclini e Florencia Garramuño propõem, e para
que se possam estabelecer os pontos convergentes do seu pensamento, se faz necessário
estabelecer quais foram as noções precedentes das quais partiram e às quais se opuseram:
42

sobretudo a de campo literário e a de autonomia da literatura, a segunda praticamente derivada


da primeira.

2.3 Campo literário, campo expandido e perda da autonomia

A instituição literária tal como vimos a conhecê-la surge, segundo Foucault (1966) e
Bourdieu (2002), no século XIX.

[...]desde Dante, desde Homero, existiu, realmente, no mundo ocidental


uma forma de linguagem que nós outros, agora, denominamos “literatura”.
Mas a palavra é de fresca data, como é recente também na nossa cultura o
isolamento de uma linguagem particular cuja modalidade própria é ser
“literária”. É que, no início do século XIX, na época em que a linguagem se
entranhava na sua espessura de objeto e se deixava, de parte a parte, atravessar
por um saber, reconstituia-se ela alhures, sob uma forma independente, de
acesso difícil, dobrada sobre o enigma do seu nascimento e inteiramente
referida ao puro acto de escrever (FOUCAULT, 1966, p. 393).

Foi o momento em que, segundo Bourdieu, os escritores conquistaram a sua autonomia,


que ele julgaria mais apropriado chamar de ilusão de autonomia. Grandes escritores como
Flaubert e Baudelaire entendiam que a nova legitimidade do artista consistia em não ser
escravizado pelos poderes e pelo mercado (BOURDIEU, 2002, p. 79).

O campo literário, como todo campo de produção cultural, ocupa, segundo Bourdieu, uma
posição dominada no interior do campo do poder (BOURDIEU, 2002, p. 96; 244).

O campo do poder é o espaço das relações de força entre agentes ou


instituições que têm em comum possuir o capital necessário para ocupar
posições dominantes nos diferentes campos (econômico ou cultural,
especialmente). Ele é o lugar de lutas entre detentores de poderes (ou de
espécies de capital) diferentes que, como as lutas simbólicas entre os artistas
e os “burgueses” do século XIX, têm por aposta a transformação ou a
conservação do valor relativo das diferentes espécies de capital que determina,
ele próprio, a cada momento, as forças suscetíveis de ser lançadas nessas lutas
(BOURDIEU, 2002, p. 244).

Bourdieu era sociólogo e em outro momento formulou a noção de capital cultural, muito
difundida entre pesquisadores da área de educação. Ali parece ficar mais claro que o seu
pensamento agrega à ideia de capital mais sentidos possíveis do que somente o de valor
econômico, consagrado por economistas e por outros sociólogos. Embora essa noção,
importante para se entender o seu conceito de campo do poder, seja atravessada todo o tempo
por um significado de capital que é, ao fim, econômico, há o reconhecimento de que os agentes
com atuação em cada campo têm diferentes graus de interesse, atendo-se tanto aos aspectos
objetivos quanto aos simbólicos.
43

Como desdobramento da atividade crítica, cabe à crítica universitária a tarefa de


legitimar um conjunto de obras e escritores, considerá-los canônicos, o que implica historiar a
literatura, emitir juízos de valor, apontar marcas específicas nos textos e no estilo dos seus
autores, organizar as obras segundo certas manifestações ou tendências. Com o decorrer do
tempo, ganhou realce o papel de atribuir valor à obra literária como tal e, dessa forma, a crítica
universitária adquiriu um caráter pedante ou menos amigável na relação com outros campos ou
mesmo no interior do próprio campo literário. É sob essa perspectiva que Bourdieu vê o analista
literário, o lector, o crítico profissional, cujo trabalho ele critica como “metadiscurso impotente
e esterilizante” (BOURDIEU, 2002, p. 207).

Atualmente o campo literário vem sendo colocado em xeque em decorrência de novas


experimentações literárias que parecem prescindir do campo, deslizar para fora dele ou, numa
outra perspectiva, fazer com que o campo se expanda para fora de si. Alguns teóricos têm
identificado e procurado compreender esse movimento no âmbito das artes e da literatura,
especificamente. É o caso de Josefina Ludmer (2014), com a sua tese da perda de autonomia
pela literatura, e de Florencia Garramuño (2014), defendendo a inespecificidade da arte
contemporânea e propondo para a literatura os estados de “fora de si” e de “campo expandido”
(este último pensado originalmente por Rosalind Krauss).

Entre os exemplos literários arrolados por Garramuño está o romance Eles eram muitos
cavalos, de Luiz Ruffato (2001), composto, segundo ela, de “fragmentos heterogêneos, tanto
no que diz respeito ao formato quanto aos personagens” (GARRAMUÑO, 2014, p. 17).
Garramuño observa que, para Ruffato, a literatura brasileira tenta se aproximar da realidade
atual pela invenção de novas formas e pelo diálogo com outras artes e tecnologias, fazendo com
que o espaço romanesco se constitua pela absorção de outros gêneros, como a poesia, o ensaio,
a crônica e a oralidade (GARRAMUÑO, 2014, p. 17). Garramuño vê em obras como essa o
indício de um novo caminho que está sendo seguido pelo gênero romance.

O enfraquecimento da forma aglutinante e individualizante do romance


produz em obras como as de Luiz Ruffato uma escrita que se distancia
constantemente de qualquer tipo de particularização ou especificação, criando
sempre pontes e laços de conexão inesperados entre personagens e
comunidades separados, heterogêneos e muito diferentes entre si. É assim que
Eles eram muitos cavalos é mais o romance – coletivo – de uma cidade do que
a história de um indivíduo (GARRAMUÑO, 2014, p. 18).

Bourdieu publicou As regras da arte em 1992. Os anos que se seguiram foram de uma
transformação acelerada na forma como o homem produz, distribui e armazena conhecimento,
44

fazendo com que as fronteiras entre as áreas e subáreas do pensamento, e entre as linguagens
artísticas, passassem a ser tensionadas, vistas como obstáculos a serem superados, resquícios
de um mundo no qual a pertença exclusiva a um campo era assegurada por esses domínios
“específicos” de cada especialista. O próprio Bourdieu foi um exemplo de pensador não restrito
a um campo, pois, sendo oriundo das ciências sociais, incursionou pela análise literária no
ensaio em questão (BOURDIEU, 2002) inclusive propondo para essa análise um olhar
científico que, a seu ver, superava as abordagens formalistas dos críticos literários. Em outro
ensaio, Bourdieu se deslocou do seu lugar de origem e refletiu sobre os meios de difusão cultural
e a educação escolar. Fê-lo com o olhar do sociólogo, como outros que vieram depois dele não
deixaram de também fazer ao tratar das artes, da literatura, da educação e da cultura. Lançaram
nos seus objetos as suas marcas de formação: antropologia, filosofia, psicologia, etc.

Os pensadores que se seguiram a Bourdieu parecem divisá-lo ao fundo quando discutem


os novos lugares e discursos assumidos pelas artes e pela literatura. O exemplo mais notório e
já aludido é o de Rancière, cuja posicionamento crítico de maior impacto para as artes e para a
literatura foi, talvez, o de considerar que ambas não podem ser consideradas autônomas em
relação ao mundo. Trata-se de um claro contraponto à crítica imanente, sobretudo a que foi
produzida na década de 60 do século XX. Daí a sua insurgência, como vimos há pouco, contra
o ensaio da fase estruturalista de Barthes, “O efeito de realidade”, e a sua defesa de uma certa
gratuidade da literatura. Daí, por fim, a sua defesa de uma literatura feita a partir das margens,
como nos contos de Guimarães Rosa.

Um romance pode ser “fruto estranho” (GARRAMUÑO, 2014): ter a reminiscência da


forma clássica do gênero, mas também ser bricolagem ensandecida de pedaços de notícias de
jornal, anúncios, anotações esparsas, trechos de outras obras, como Zero, de Ignácio de Loyola
Brandão (1975). Pode ser um híbrido de memória pessoal do autor, ficção, depoimentos
verídicos de outras pessoas, etc. Pode lançar mão de arquivos de imagem: fotos de família,
desenhos, mapas, etc. Pode conter um link para um site no qual haverá um vídeo que é parte da
história (ou não). Pode deslizar da forma romance para a forma ensaio. Pode ser transplantado
para outro discurso como um órgão para outro corpo, e exprimir o corpo primeiro na voz do
corpo segundo.
“Fruto estranho” era o nome de uma instalação do artista Nuno Ramos, exposta no Museu
de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 2010, pondo em questão a especificidade da linguagem
artística ao combinar diferentes formas e expressões. A partir dela, Florencia Garramuño
desenvolve um conjunto de reflexões que se destina a tentar compreender a arte contemporânea.
45

Frutos estranhos e inesperados, difíceis de ser categorizados e


definidos, que, nas suas apostas por meios e formas diversas, misturas e
combinações inesperadas, saltos e fragmentos soltos, marcas e
desenquadramentos de origem, de gêneros – em todos os sentidos do termo –
e disciplinas, parecem compartilhar um mesmo desconforto em face de
qualquer definição específica ou categoria de pertencimento em que instalar-
se (GARRAMUÑO, 2014, p. 11-12).

Para Garramuño, a arte contemporânea aposta no inespecífico (2014, p. 15) e a literatura


revela uma
[...] indistinção ou indiferenciação entre o ficcional e o real, como se [...] a
negativa a se articular de modo fechado e a colocar limites entre a realidade e
a ficção fosse um modo de apagar as fronteiras entre esse mundo autônomo
que seria a obra e o mundo exterior em que essa obra é lida ou percebida
(GARRAMUÑO, 2014, p. 21).

Afinado com o pensamento de Rancière, sobretudo no aspecto da distinção entre estéticas


do consenso e do dissenso, Néstor Canclini (2012) também dialoga proximamente com a tese
da pós-autonomia desenvolvida pela compatriota Josefina Ludmer (2014) para o contexto da
literatura, e a emprega na sua reflexão sobre as artes, sem, no entanto, assimilar o juízo
pessimista que Josefina manifesta a respeito.
A arte fora de si é a ideia que preside a reflexão de Canclini sobre o papel desempenhado
pela arte no mundo contemporâneo, extrapolando a especificidade do seu campo, tensionando
as ciências humanas e propondo novos sentidos para uma realidade que se supunha bem
mapeada.
“A história contemporânea da arte é uma combinação paradoxal de condutas dedicadas
a afiançar a independência de um campo próprio e outras obstinadas em derrubar os limites que
o separam”, sustenta Canclini (2012, p. 23). Intersectando-se com outros campos, a arte torna-
se pós-autônoma (CANCLINI, 2012, p. 24), e, assim, esgota-se o próprio conceito de campo
artístico (CANCLINI, 2012, p. 28) tal como se vislumbra em Bourdieu (2002).
Desprovida de certezas e das grandes narrativas que organizavam o mundo, a arte já não
pleiteia um lugar: busca o que está fora da arte, o mundo exterior, a cultura do outro
(CANCLINI, 2012, p. 29). Nesse sentido, a arte faz um movimento para fora de si que nada
tem de negativo ou autodepreciativo, pelo contrário: envolve a assimilação de linguagens,
técnicas e materiais que não pertencem ao circuito da arte, mas que circulam pelo mundo, pelas
periferias das grandes cidades, nas mídias massivas e alternativas, nas organizações e
comunidades políticas e sociais. Tudo isso resulta em colocar a arte (e a literatura) em novos
contextos, nos quais nunca se supunha que ela pudesse ser inserida, às vezes por preconceito.
46

Impressiona a resistência, na sociedade brasileira, da ideia de que, nos estratos populacionais


mais pobres, não há interesse nem as condições necessárias para fruir e produzir a arte dita mais
sofisticada. Recentemente, quando do lançamento do livro de contos O sol na cabeça, do
estreante Geovani Martins, jovem morador do Vidigal, Rio de Janeiro, houve espanto, em
alguns mais velado e em outros nem tanto, quanto ao fato do morador de um morro do Rio,
inserido em um contexto de pobreza e violência, conseguir tal façanha. Não deveria haver
estranheza, já que um escritor situado entre os de maior relevo na literatura de língua portuguesa
nasceu e passou parte da sua vida no morro do Livramento, também no Rio.
Canclini e Rancière veem com clareza o surgimento de novos lugares e atores devotados
à experiência estética. É um processo que a história da consolidação do pensamento
democrático no Ocidente leva em seu bojo, mas que, como ação política, prática social, agenda
governamental e aspiração das massas, é algo que vem se intensificando nos últimos 50 anos.
Há uma disseminação do estético, que surge como ênfase formal “em outras cenas”
(CANCLINI, 2012, p. 44): no trabalho, no consumo, na ciência e na tecnologia, nos espaços
urbanos, nos meios de comunicação de massa. “Estamos em meio de um giro transdisciplinar,
intermedial e globalizado que contribui para redefinir o que entendíamos por arte tanto no
Ocidente moderno como no Ocidente pré-global” (CANCLINI, 2012, p. 45). Surgir “em outras
cenas” é algo próximo do que experimentaram, na literatura brasileira recente, escritores como
Modesto Carone, Bernardo Carvalho, Luiz Ruffato e Victor Heringer (1988-2018).
Canclini vê a arte como “desenmoldurada” em virtude da impossibilidade de ordená-la
mediante regras estéticas, “campos” ou “mundos” (CANCLINI, 2012, p. 45).

A literatura e a arte dão ressonância a vozes que procedem de diversos


lugares da sociedade e as escutam de modos diferentes de outros, fazem com
elas algo distinto dos discursos políticos, sociológicos ou religiosos [...].
Talvez sua especificidade resida nesse modo de dizer que não chega a se
pronunciar plenamente, nessa iminência7 de uma revelação (CANCLINI,
2012, p. 61-62).

Da mesma forma que Rancière, mas com mais ênfase, Canclini afirma que essa nova arte,
com seus novos discursos e meios, requer que a crítica seja outra, disposta a fazer não somente
a recepção e a análise, mas também o acompanhamento da trajetória que a criação fez para ser
considerada arte. Seria possível ir algo além, tratando-se sobretudo da literatura. Seria

7
Canclini propõe, em seu livro, a hipótese da arte e da estética iminentes, cujo atrativo provém, em parte, do fato
de anunciarem algo que pode vir a ocorrer, de prometerem o significado ou de alterá-lo por meio de insinuações
(CANCLINI, 2012, p. 19).
47

necessário se verificar como a própria crítica está inserida na obra de criação, seja na forma de
uma autocrítica, seja na forma de uma crítica que transcende a matéria e se ocupa das coisas do
mundo, pois esse é o sinal que nos dão as obras que têm surgido nos últimos anos, no Brasil e
no exterior.
Canclini (2012) sugere, portanto, que, no cerne de um processo de transformações da
literatura, por intermédio do qual ela se torna pós-autônoma (CANCLINI, 2012; LUDMER,
2014) e inespecífica (GARRAMUÑO, 2014), é possível que haja uma especificidade: algo que
não se exprime de todo, o entrevisto/entredito, o verbo incompleto, a “iminência de uma
revelação” (CANCLINI, 2012, p. 62). Ou ainda, como já vimos: os interstícios, o embotamento
da poeticidade, da literariedade e dos gêneros, que não estão onde deveriam e nem são mais o
que se esperava deles porque extrapolaram os domínios da linguagem e deslizaram para além
da superfície do texto.
Talvez uma forma de se compreender esse debate recente sobre arte e literatura sem cair
num certo catastrofismo e sem se perder em um emaranhado de conceitos, noções e metáforas,
é considerar que, diferentemente do edifício crítico do pós-estruturalismo e do pós-
modernismo, os críticos e teóricos que reuniríamos aqui sob o signo de crítica da diáspora (os
já aludidos Jacques Rancière, Josefina Ludmer, Néstor Canclini e Florencia Garramuño) 8 não
propõem que os edifícios do passado sejam demolidos ou desconsiderados, muito pelo
contrário: há o reconhecimento do legado teórico, da tradição, como preferem alguns, tanto que
tudo isso está sempre em questão, sendo citado e levado em conta. Opera-se, no entanto, uma
reconsideração, uma nova leitura desse legado, a exemplo da que faz Rancière ao tratar, como
vimos, de algumas noções da Poética aristotélica, como o ordenamento ficcional com base em
uma cadeia causal.

Esses críticos da diáspora, ao interagirem de forma menos destrutiva com o passado, estão
em harmonia com algumas interpretações do que é ser contemporâneo ou do que é a

8
É temerário aglutinar esses pensadores de origens tão diversas em torno de uma palavra que pode se tornar mero
rótulo, algo que, como se sabe, não ajuda em nada a compreensão daquilo que têm a dizer pessoas com algumas
ideias em comum e que podem vir a integrar uma tendência ou escola do pensamento crítico. Ainda não há um
termo destinado a Rancière e aos outros contemporâneos. Nem sequer sabemos se há um consenso em torno disso
e desconfiamos até que esses pensadores não desejam ser definidos. Ainda assim, mais por um capricho de estilo,
acreditamos que eles são críticos da diáspora pelo fato de Josefina Ludmer ter sido feliz ao empregar essa palavra
referindo-se à literatura recente e porque a ideia de dispersão se harmoniza com a diversidade de pensamento de
pessoas que provêm de vários e diferentes campos, estudam objetos de natureza também distinta e se preocupam
em ampliar seu foco de discussão para muito além de um contexto específico. Dispersos mas em diálogo, sem
dúvida: não se trata de um debate atomizado. A propósito, e em resposta a objeções que nos foram feitas em outro
momento, queremos dizer que a escolha desses quatro nomes e não outros se justifica pelo fato deles incluírem a
literatura em suas discussões e isto atender aos propósitos desta tese. É o motivo de o arcabouço teórico do nosso
trabalho não mobilizar críticos que eventualmente têm ideias afins, mas adotam como ponto de partida, por
exemplo, a arquitetura.
48

contemporaneidade, como a que Antonio Andrade e outros (ANDRADE et al., 2018)


elaboraram a partir do pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben. Eles propõem a
apreensão da ideia de contemporâneo como “dobra reflexiva sobre o presente, um modo crítico
de lidar com o nosso tempo, que nos permita enfrentar a sedução do presentismo – um presente
intransitivo, sem diálogo com o passado e o futuro” (ANDRADE et al., 2018, p. 158).

Acreditamos que a noção que faz convergir o pensamento desses quatro críticos é a de
pós-autonomia. Até porque é uma noção “diaspórica”, que contempla uma literatura não voltada
exclusivamente para a sua própria oficina, ou seja, pautada apenas pela metalinguagem,
“estanque no poço dela mesma”, como no verso de João Cabral de Melo Neto (MELO NETO,
2014, p. 461). Embora seja explicitada como tal em Ludmer (2014) e em Canclini (2002), a
ideia já havia sido constituída por Rancière no final do século XX. Além disso, a noção de
inespecificidade, desenvolvida por Garramuño (2014), vai ao encontro da de pós-autonomia,
pois afirmar a literatura como pós-autônoma corresponde a dizer que ela já não possui um
campo, um discurso, um lugar que possa reivindicar como específicos: não só deixou de ser
autossuficiente em termos de saberes e técnicas como ainda é tributária de outras formas de
expressão artística e do pensamento.

A noção de pós-autonomia também aponta para uma nova forma de ler literatura,
afastando-se da análise tradicional e das categorias de valor literário tal como se conhece
(ANDRADE et al., 2018, p. 166).

Pós-autonomia implica, essencialmente, uma dissolução de fronteiras


(ou o reconhecimento de que elas nunca existiram senão como a ficção
necessária para a sustentação do paradigma), entre gêneros literários, entre
realidade e ficção, entre o dentro e o fora do texto, entre a literatura e outras
formas de expressão. É o apagamento dos contornos com os quais se
delimitava o domínio da literatura (ANDRADE et al., 2018, p. 168).

Dentre as características e dados contextuais de uma literatura produzida em uma


realidade pós-autônoma, Andrade et al. citam o predomínio do mercado; a ambiguidade nas
formas dos textos; a aproximação com as artes plásticas contemporâneas; o fato de a letra
impressa já não ser o meio hegemônico de informar, mas apenas parte de um vasto espectro
comunicacional do qual fazem parte, com grande realce, a imagem e o som; a indistinção dos
discursos; obras com aspecto de inacabamento; a confusão entre os espaços da ficção e do
documento (ANDRADE et al., 2018, p. 170;171;173;174;197;198).
49

Perder autonomia, para a literatura, significou reconhecer que os seus recursos


expressivos clássicos, circunscritos à linguagem verbal, já não são suficientes para que ela possa
exprimir tudo o que julga necessário. Significou reconhecer, também, que a poeticidade e a
literariedade são possíveis e existem em outros domínios, em outras formas artísticas, além da
poesia e da literatura produzidas com a materialidade verbal, às quais se circunscreviam os
conceitos de Jakobson no início do século XX.

[...] poderíamos talvez pensar a literatura já não como um campo de


conhecimento, mas como um campo aberto, por onde circulam os
conhecimentos os mais diversos (ANDRADE et al., 2018, p. 176).

Não há lugar e discurso exclusivos, não há formas de expressão para chamar de suas: os
gêneros literários resistem como categorias de prêmios literários, seções de catálogos de
editoras e de estantes de livros nas livrarias. Mas o que é hoje, por exemplo, um romance? O
que o caracteriza?

A proximidade do universo da produção literária em relação a outros campos não é,


evidentemente, fato novo: Bakhtin (2002) afirma que é a plasticidade do romance que favorece
a sua aproximação com outros discursos. O teórico sustenta que o romance é um gênero
inacabado, cuja trajetória se vincularia à das línguas modernas, também constituídas
historicamente como híbridas. Uma inovação trazida pelo romance seriam as suas relações
“com os 'gêneros extraliterários', a vida cotidiana e a ideologia”. Haveria uma “zona de contato”
do romance com a “atualidade inacabada” (BAKHTIN, 2002, p. 422).
Wolfgang Kayser (1958), ao constatar que muitas obras apresentadas como romances não
derivam dos três gêneros de romance identificados por ele9, diz que “a investigação deve
observar se não entram em jogo forças positivas provenientes de algum outro sector alheio ao
romance” (KAYSER, 1958, p. 272).

2.4 As sombras dos gêneros

Em 2018, quando se completaram 40 anos da primeira edição francesa do livro de ensaios


Os gêneros do discurso, de Tzvetan Todorov, o editor brasileiro reeditou esse título e publicou
o seguinte texto anônimo na contracapa:

9
Romance de ação, romance de personagem e romance de espaço (KAYSER, 1958, p. 263).
50

Enquanto se liquefaz o conceito de literatura, confundindo-se até


mesmo os limites de seus últimos avatares, retornam, em compensação, as
discussões sobre os gêneros do discurso, que pareciam estar mortas e
enterradas. Isto porque os gêneros, que dizem respeito às propriedades
essenciais do discurso, transcendem a própria separação histórica e cultural
entre aquilo a que se chama literatura e aquilo que estaria alheio às funções
poéticas da linguagem (TODOROV, 2018).

A imagem do conceito de literatura se liquefazendo está aí, certamente, à moda de


Bauman. Mas Todorov escreveu esses ensaios entre 1971 e 1977, quando o estruturalismo ainda
não havia se liquefeito de todo, embora ele próprio já assumisse acerca dele um posicionamento
crítico, de revisão. Todorov antecipa discussões que amadureceriam 20 anos depois. Para ele,
como se vê a seguir, a literatura nada pode ter de específico, de exclusivamente seu. Uma
consequência quase natural desse pensamento é chegar-se ao fato de que não há, também, uma
autonomia da literatura.

Se admitirmos a existência de discursos (no plural), nossa questão sobre


a especificidade literária deveria ser assim reformulada: há regras que são
próprias a todas as instâncias da literatura (identificadas de modo intuitivo), e
apenas a elas? Colocada dessa forma, a questão, a meu ver, só pode receber
uma resposta negativa. Já citei vários exemplos que dão testemunho de que as
propriedades “literárias” também são encontradas fora da literatura (do
jogo de palavras e das canções infantis à meditação filosófica, passando pela
reportagem jornalística ou pela narrativa de viagem). Também relembrei a
impossibilidade em que nos encontramos para descobrir um denominador
comum a todas as produções “literárias” (a menos que seja: a utilização da
linguagem) (TODOROV, 2018, p. 27. Os grifos são nossos.).

“De onde vêm os gêneros?” – pergunta Todorov (2018, p. 64). “Simplesmente, dos outros
gêneros. Um novo gênero é sempre a transformação de um ou de vários gêneros antigos: por
inversão, por deslocamento, por combinação” (TODOROV, 2018, p. 64). Em outro lugar e
momento, refletindo sobre as transformações pelas quais a literatura vem passando em épocas
recentes, Todorov observa:

O que me parece característico dessa literatura não é o inesgotável


gênero autobiográfico no qual ela se excede, mas o fato de ela, abertamente,
assumir sua heterogeneidade, o fato de ser, ao mesmo tempo, ficção e panfleto,
história e filosofia, poesia e ciência” (TODOROV, 2015, p. 253).

Inspirados pela pergunta de Todorov, perguntamos: O que são e onde estão hoje os
gêneros? Certamente são, agora, mais espectros do que materializações formais: pressentidos,
evocados, ausentes da manta textual. Não se pode afirmar que os gêneros já não existam. Há
51

uma memória das formas romance, conto, etc. Continua a haver uma noção difusa do que são
essas formas, útil quando se quer lançar uma negação: isto não é um romance, isto não é um
conto, isto não é literatura, isto não é ficção – noção válida, também, quando se pretende afirmar
outros gêneros em contraposição aos gêneros literários: isto é um ensaio de reflexão; isto é uma
tese; isto é uma reportagem.

Há reflexões situadas entre o final do século XX e as primeiras duas décadas do XXI que
vislumbram a literatura deslizando para fora do seu campo, ou ficando fora dele por vontade
própria dos escritores. González Echevarría (2011), tendo em foco o romance latino-americano,
afirma que “a característica mais persistente dos livros que receberam o nome de romance na
Era Moderna é que sempre pretenderam não ser literatura” (GONZÁLEZ ECHEVARRÍA,
2011, p. 36, com tradução nossa)10. Embora o pertencimento ou não da literatura a um campo
específico não seja o tema do ensaio do autor, foi esse aspecto da sua reflexão que a tornou
conhecida. Detenhamo-nos nisso um pouco mais:

O romance [...] continua existindo sem uma poética porque o princípio


mais importante de sua poética é não ter nenhuma. O romance veste disfarces
para parecer outra coisa: o romance é sempre outra coisa (GONZÁLEZ
ECHEVARRÍA, 2011, p. 75)11.

Podem ser arrolados dentre os muitos pares opositivos que surgiram ao longo do tempo
para estabelecer a diferença entre o que é literatura e o que é outra coisa: narrativa ficcional e
narrativa factual (GENETTE, 2004, p. 141); texto artístico ou poético e texto referencial;
biografia/autobiografia documental e autoficção; demandas do eu real e do eu fictício, etc.
Todos caíram na obsolescência, uma vez que estão edificados sobre uma falácia reducionista
que deixa fora dos “pares” uma ampla gama de problemas. É difícil ou até mesmo impossível,
hoje, pensar, por exemplo, em uma obra reconhecível como narrativa ficcional e narrativa
factual em estado puro, sem que elementos de uma e outra não estejam mesclados,
amalgamados. Muitas obras literárias contemporâneas, ao transporem a fronteira do literário,
ficam, citando novamente a imagem criada por Josefina Ludmer (2014), “fora e dentro”. É a
expressão que melhor designa a ambiguidade dessas obras. Os gêneros literários também
deslizam para aqui e acolá nessa zona imprecisa, nessa fronteira: estão e não estão. São a
memória que o leitor mobiliza nos seus processos mentais de algumas experiências com o

10
“La característica más persistente de los libros que han recibido el nombre de novelas en la era moderna es
que siempre han pretendido no ser literatura”.
11
“La novela [...] continúa existiendo sin una poética porque el principio más importante de su poética es no tener
ninguna. La novela viste disfraces para parecer otra cosa: la novela es siempre otra cosa”. É nossa a tradução
deste e dos demais trechos em espanhol ao longo desta tese.
52

romance, o conto, o drama, etc. Costumam estar opacos, no texto que esse leitor tem diante dos
olhos, vestígios consistentes da sua matriz genética. Há sombras, que oferecem a vaga sensação
de que aquela história se esforça para representar (ou traduzir) a vida humana nas suas
imperfeições, dúvidas e desilusões, a miserável recolha de fragmentos a cargo de um herói
problemático, há muito incapaz de aspirar à totalidade. Da mesma forma, a ausência da
poeticidade no texto, ou seja, das marcas verbais e não verbais que especificam a que natureza
ele pertence, criam no leitor a sensação – às vezes angustiante – de que a fruição lhe foi
deliberadamente negada, e que a experiência que lhe é dado desfrutar é tão somente residual de
uma outra, verdadeira e intensa, transcorrida longe de si.

Um exemplo de como se tornou difícil e improdutivo trazer de volta a noção tradicional


de gênero aderida à forma é o texto What happens there (“O que acontece lá”), que foi parte de
uma polêmica entre as revistas norte-americanas Harper’s e The Believer, bem como entre o
escritor John D’Agata e o verificador de informações (fact-checker) Jim Fingal (BAPTISTA
NETO, 2019).

Em 2003, John D’Agata recebeu da revista Harper’s a encomenda de um texto sobre o


fato de, àquela altura, a cidade de Las Vegas (Estado de Nevada) ostentar o maior número de
suicídios dos Estados Unidos. D’Agata decidiu adotar como ponto de partida o caso do suicídio
de um adolescente de 16 anos que saltou do alto de um prédio. A Harper’s não publicou o texto
por julgar que possuía imprecisões factuais. D’Agata levou-o a outra revista, a The Believer,
cujos editores, antes de publicá-lo, submeteram-no a uma verificação de informações a cargo
de Jim Fingal.

Como se vê na série de e-mails trocados entre D’Agata e Fingal entre 2003 e 2010,
reunidos em livro em 2012, Fingal apontou uma série de problemas. Em 2010 o texto foi
finalmente publicado. O questionamento que emergiu dessa polêmica foi: “Não ficção é
realidade?” Como delimitar?

[...] o quão negociável é um fato dentro de um texto de não ficção? Para


complicar um pouco mais [...], D’Agata rebate várias correções do checador,
dizendo que não é jornalista e que não tem a pretensão de escrever um texto
jornalístico. Diz ter escrito um ensaio, e vale-se desse argumento mais de uma
vez.
É um debate complexo, pois parte do pressuposto de que o ensaio esteja
na categoria de não ficção, mas seria algo diferente do jornalismo literário ou
do texto científico. Nos termos de D’Agata, um ensaio é não ficção, mas não
necessariamente se atém aos fatos (BAPTISTA NETO, 2019, p. 2).
53

O escritor e o verificador divergiram até acerca de pormenores, como o tempo que teria
levado a queda do adolescente do alto do prédio: nove segundos para D’Agata e oito para
Fingal, que se baseou nos registros da polícia, por sua vez feitos com base nos depoimentos das
testemunhas que presenciaram o suicídio.

Confrontado com a informação, D’Agata responde que o número nove


tem um significado importante para a história – remete, por exemplo, aos nove
níveis do Taekwondo que o jovem praticava. Em outras palavras, não
considerava tão importante assim o fato de ter acrescentado um segundo à
queda, ainda mais se foi com a intenção de criar um efeito poético [...]. Aliás,
esse é um argumento frequente do autor: de estar usando arte e poesia para
narrar uma história, e que arte e poesia são mais importantes que fatos
verificáveis (BAPTISTA NETO, 2019, p. 2. Grifos nossos.).

Cobra-se do ensaio o compromisso com a verdade dos fatos, mas o seu autor reivindica
o direito à poeticidade, entendendo a imprecisão não como defeito, mas como virtude. Ele
defende a ideia de que o texto de criação ou artístico usufrui da liberdade de introduzir na
história um elemento que desperte a curiosidade e a emoção do leitor, proporcionando-lhe,
afinal, a fruição, o que seria impossível se o texto não fizesse concessões à fantasia. Sabe-se,
porém, como veremos no próximo item, que o ensaio não goza do mesmo desprendimento em
relação ao factual que caracteriza o texto literário, da mesma permissão para “avançar o sinal”.
No ensaio, o gênero é mais do que uma sombra: é, ainda, um modelador temático e discursivo.
O nível de comprometimento do ensaio com as estruturas discursivas próprias da reflexão, da
análise crítica, dá a ele uma possibilidade menor de desempenhar-se como “outro”, como forma
deslizante, como sombra de outro gênero. Mesmo assim, não há interdição a que o ensaio, em
alguns de seus formatos, seja considerado gênero literário.

2.5 A mancha e o fiel da balança


Quando o escritor Ricardo Piglia discorre, no ensaio “Novas teses sobre o conto” (2004),
acerca do conto clássico e do conto moderno, contrapondo a sua forma e a sua recepção, é dos
contos de outros grandes escritores que ele está se ocupando, embora deixe transparecer que dá
às suas teses o status de regras gerais para o gênero. Aliás, a palavra gênero sequer está presente
nessas teses de Piglia: nós, leitores, é que intuímos que, ao decidir tratar do conto, a ideia de
gênero ainda tenha alguma relevância para ele.

Piglia sustenta que o conto clássico de Edgar Allan Poe e Horacio Quiroga narra uma
primeira história e imiscui nela os traços de uma segunda história, secreta (PIGLIA, 2004, p.
89-90). Afirma, também, que o conto, que ele define como “microscópica máquina narrativa”
(2004, p. 91), na sua forma modernista, já não apresenta a surpresa no final e a estrutura fechada
54

(PIGLIA, 2004, p. 91). “O conto clássico à Poe contava uma história anunciando que havia
outra; o conto moderno conta duas histórias como se fossem uma só” (2004, p. 91).

No desenvolvimento das suas teses, Piglia novamente se fundamenta nas páginas de


grandes escritores.

Borges considera que o romance não é narrativa, porque é demasiado


alheio às formas orais, ou seja, perdeu os rastros de um interlocutor presente,
a possibilitar o subentendido e a elipse, e portanto a rapidez e a concisão dos
relatos breves e dos contos orais.
A presença de quem escuta o relato é uma espécie de estranho arcaísmo,
mas o conto como forma sobreviveu porque levou em consideração essa figura
que vem do passado (PIGLIA, 2004, p. 101).

Esse pensamento parece dialogar com Walter Benjamin, no seu ensaio sobre o narrador.
Perdeu-se algo, certa pureza de origem da narrativa mítica. Alguns estudos de teoria literária
diriam que essa questão é da ordem do narrador, das diferentes formas com que se desenvolvem
os jogos de focalização e de voz, implicando a própria voz, as personagens e o narratário, isto
é, o destinatário fictício.

Pertence à parte “nobre” da criação literária a técnica de capturar um elemento presente


no interior da própria narrativa, embotado ou deixado à margem, tendo passado despercebido
pelo leitor, e colocá-lo no centro da cena. Algo que surge ou ressurge buscando o efeito de
desconcertar o leitor, desestabilizar o final do relato, desviá-lo da previsibilidade.

O sentido de um relato tem a estrutura do segredo (remete à origem


etimológica da palavra: se-cernere, pôr à parte), está escondido, separado do
conjunto da história, reservado para o final e em outra parte. Não é um enigma,
é uma figura que se oculta (PIGLIA, 2004, p. 106).

Se retrocedemos mais de 30 anos no tempo, encontramos o autor de um estudo brasileiro


considerado clássico sobre o conto, R. Magalhães Júnior, que tem uma compreensão bem
diferente do gênero.

O conto é uma narrativa linear, que não se aprofunda no estudo da


psicologia dos personagens nem nas motivações de suas ações. Ao contrário,
procura explicar aquela psicologia e essas motivações pela conduta dos
próprios personagens. A linha do conto é horizontal: sua brevidade não
permitiria que tivesse um sentido menos superficial. Já o romance, em vez de
episódico, como o conto, é, ao contrário deste, uma sucessão de episódios,
interligados. E exige do autor tratamento diverso, quer na apresentação dos
acontecimentos, quer no estudo dos personagens. O romance explora-os em
sentido vertical, com uma profundidade a que o conto não pode aspirar. Outra
distinção, em que insistem alguns críticos e ensaístas literários, é a de que o
55

conto geralmente narra um acontecimento pretérito, ao passo que o romance


historia um acontecimento ou série de acontecimentos no tempo presente, à
medida que estes se desenrolam (MAGALHÃES JÚNIOR, 1972, p. 10-11).

É uma visão restritiva do conto, e de certa forma não condiz mais com a produção atual.
Porém, ainda que se ocupe mais do que Piglia de definir a forma conto e de prescrever as regras
que regem a sua composição, inclusive quanto à medida do seu recorte temporal, fica evidente
que, em ambos, os parâmetros usados para avaliar a natureza e a extensão da forma conto são
as obras dos contistas canônicos.

Magalhães Júnior dedica parte de seu livro ao conto breve, e, mais especialmente, aos
contos ultracurtos de Brecht e Kafka. Ali, indaga se o conto “O piloto”, de Kafka, é mesmo
conto ou estaria mais para “um pesadelo, uma mancha, uma impressão, ou um simples récit,
como querem alguns críticos franceses” (MAGALHÃES JÚNIOR, 1972, p. 280). Ele
empregou a palavra “mancha” provavelmente no sentido de algo que é quase indiscernível, um
enigma que resiste a ser decifrado, delimitado e analisado. Na terminologia da editoração
gráfica, mancha é o espaço de impressão dentro de uma página: a mancha gráfica, o lugar onde
a tinta cai sobre o papel. Se se caminhar um pouco mais além na busca de uma compreensão
do vocábulo mancha, pensa-se em uma página impressa em línguas que adotam outro alfabeto,
como o chinês e o árabe. Se não conhecermos essas línguas, a mancha será impenetrável.
Poderemos apenas nos deleitar com a forma daqueles sinais, sem alcançar o seu significado.
Ficaremos em uma zona de opacidade, mas ainda assim ela nos comunicará a beleza da sua
forma. Também podemos pensar a mancha em uma instalação artística, onde pode ter algum
significado ou absolutamente nenhum.

Há diferenças significativas entre o ensaio literário, que é um gênero muito cultivado


em outros países, como no México, por exemplo, e o ensaio que se pauta pelo desenvolvimento
de uma tese, pela discussão e análise de um dado problema, nos contextos da historiografia, da
sociologia, da política, da antropologia, etc. Vejamos como um manual de redação científica
distingue um e outro:

Num ensaio literário a abordagem não precisa ser sistemática; o tema


pode ser desenvolvido sem argumentação formal e a redação imaginativa é
incentivada. O escritor não precisa necessariamente lutar a favor da clareza:
ao leitor pode ser confiado o trabalho de extrair do texto o melhor que este
contenha.
Para um cientista, o ensaio é um meio de transmitir informações e
idéias. É uma breve explicação escrita de um assunto bem delimitado, clara e
decisiva, sistemática e compreensiva (BARRASS, 1986, p. 51).
56

Com base nessa visão, portanto, há um ensaio que pode ser de livre criação, “literário”
no sentido de ser descompromissado e imaginativo, e um ensaio científico, veiculador de
conteúdos de pesquisas, rigoroso.

Um bom primeiro passo para compreender o ensaio e as suas variantes é visitar as


acepções atribuídas à palavra nos dicionários. O Novo Aurélio (1999) registra como segunda
entrada de ensaio a informação sobre a sua raiz etimológica na forma francesa essai, derivada
do latim tardio exagiu. “Obra literária em prosa, analítica ou interpretativa, sobre determinado
assunto, porém menos aprofundada e/ou menor que um tratado formal e acabado” (FERREIRA,
1999, p. 765). O Dicionário Houaiss (2009) registra a matriz etimológica também no latim
tardio, na forma exagĭum, significando “ato de pesar; ponderar; avaliar” (HOUAISS e VILLAR,
2009, p. 766).

Avaliação crítica sobre as propriedades, a qualidade ou a maneira de


usar algo; teste, experimento [...] ação ou efeito de testar (algo) ou de agir,
sem que se tenha certeza do resultado final: tentativa, experiência [...] prosa
livre que versa sobre tema específico, sem esgotá-lo, reunindo dissertações
menores, menos definitivas que as de um tratado formal, feito em
profundidade (HOUAISS e VILLAR, 2009, p. 766).

O sentido de ensaio como pesar, ponderar, medir os argumentos, deriva do latim tardio,
mas teve essa acepção consagrada no francês e no italiano, a partir dos quais se propagou para
outras línguas. Consta que Leonardo da Vinci referiu-se a ensaio como peso, a peça que
acompanha as balanças e indica o lado mais pesado. Conhecemo-la em português por fiel – o
fiel da balança. O exercício do pensamento em um texto deveria, então, pesar, avaliar os
argumentos. Vejamos como isso se configura em dois dicionários etimológicos da língua
italiana.

saggio¹ (agg.), dal frc. ant. sage, lat. volg. * sapjus […] v. SAPERE.
saggio² (prova), lat. tardo exagium ‘peso’ estr. da exigěre nel senso di
‘pesare’ [...].
saggio³ (scritto), calco sull’ingl. essay (DEVOTO, 1970, p. 369).
[...]
sàggio (1) agg./s.m.
dall’antico franc. sage, che è dal lat. volg. *sapjus, legato a sapere.
sàggio (2) s.m
dal lat. tardo exagium (=peso, bilancia), dal v. exigere (=pesare).
Esperimento, prova, exame (COLONNA, 2004, p. 328).

Assim, o sentido atribuído atualmente à palavra ensaio deriva de quatro matrizes


linguísticas: o latim tardio, do qual provém a acepção ligada ao peso e por metonímia ao
instrumento, à balança; o latim vulgar, que originou o verbo italiano sapere (saber); o francês
57

antigo (sage) e o inglês (essay). Não é por outro motivo que a forma ensaio se difundiu muito
no universo cultural anglófono.

Observe-se que pesar, provar é uma verificação que implica pôr algo à prova para que
alguém possa ser sábio, conhecer, aproximar-se da verdade.

Adorno escreveu um ensaio para discorrer sobre a forma ensaio É um texto bastante
conhecido, no qual afirma que o paradigma do gênero não é o ensaio acadêmico, constituído de
três partes rígidas e muito preocupado com a referências bibliográficas. A forma que Adorno
vislumbra é a dos ensaios de Lukács, Kassner e Benjamin (ADORNO, 2012, p. 15-16). Trata-
se de um gênero que suspende o conceito de método como foi difundido ao longo do tempo, é
metódico sem ter método (ADORNO, 2012, p. 27; 30). Filia-se, afinal, mais à retórica do que
ao método científico (ADORNO, 2012, p. 41).

A serena flexibilidade do raciocínio do ensaísta obriga-o a uma


intensidade maior que a do pensamento discursivo, porque o ensaio não
procede cega e automaticamente como este, mas sim precisa a todo instante
refletir sobre si mesmo. É certo que essa reflexão não abrange apenas a sua
relação com o pensamento estabelecido, mas igualmente também sua relação
com a retórica e a comunicação (ADORNO, 2012, p. 44).

Starobinski (2018, p. 13), como Adorno, defende a forma livre do ensaio, gênero, que,
segundo ele, não se submete a regras. Afirma que a trajetória do ensaio foi marcada pela
suspeição: seria superficial, não rigoroso, descompromissado em relação a quaisquer estudos
austeros (STAROBINSKI, 2018, p. 15).

A universidade, no apogeu de seu período positivista, tendo fixado as


regras e os cânones da pesquisa exaustiva séria, repelia o ensaio e o ensaísmo
para as trevas exteriores, correndo o risco de banir ao mesmo tempo o brilho
do estilo e as audácias do pensamento. Visto da sala de aula, o ensaísta é um
simpático diletante fadado a juntar-se ao crítico impressionista na zona
suspeita da cientificidade. E não deixa de ser verdade que, perdendo às vezes
algo de sua substância, o ensaio metamorfoseou-se em crônica de jornal,
panfleto polêmico, conversa atropelada (STAROBINSKI, 2018, p. 15).

Os ensaios de Michel de Montaigne são considerados matrizes do gênero ensaio. O


filósofo francês não criou o gênero, mas lhe deu uma feição marcante, que ainda faz parte do
conjunto de ideias que vêm à mente quando se diz que determinado texto é um ensaio. Tome-
se por referência “Dos coxos” (“Des boiteux”), um dos textos da portentosa obra Ensaios
(1580), do qual extraiu-se o trecho a seguir:
58

Era de praxe em Roma que os depoimentos das testemunhas e as


decisões dos juízes assim se iniciassem: “Parece-me que...”. Eu chego a odiar
as coisas verossímeis se me são apresentadas como infalíveis, e prefiro as
expressões que atenuam a audácia da preposição, como por exemplo: “Talvez,
até certo ponto, dizem, penso”, e outras do mesmo gênero. Se tivesse tido de
educar crianças, eu as houvera habituado às dúvidas e não às afirmações.
Diriam: “Como? Não sei, pode ser, será?”. Assim mais pareceriam aprendizes
aos sessenta anos do que doutores aos dez, como acontece hoje. Quem deseja
curar-se de sua ignorância precisa confessá-la” (MONTAIGNE, 2016, p. 949-
950).

Alguns traços marcantes da forma ensaio em Montaigne são a voz autoral presente no
discurso; uma leitura do mundo que toma a si mesmo como referência; o propósito moralizante
e pedagógico, lembrando os discursos de oradores nas tribunas; a autocrítica e a remissão às
obras alheias (caso de pensadores latinos, como Sêneca, citado em “Dos coxos”).

O trecho reproduzido praticamente define o que é o ensaio para Montaigne – o que é o


seu ensaio, em particular, e o que são os ensaios que têm o seu como paradigma: textos que
recusam as certezas, as ideias prontas, consagradas.

Vê-se que há uma fundamentação socrática no pensamento de Montaigne. Suas reflexões


com aparência de despretensiosas inquietam mais do que propõem soluções. O discurso de “Dos
coxos” acerca-se da gratuidade e da indefinição encontráveis em muitos textos literários e
distancia-se da forma que o racionalismo consagrou para o ensaio: aferidora, comprovadora,
reivindicante de autoridade, vizinha do que chamam de ensaio científico ou acadêmico. A forma
ensaio que foi posta à margem do pensamento científico, tachada de impressionista
(STAROBINSKI, 2018, p. 15), foi justamente a matricial, a de Montaigne.

Discutindo as mobilidades da literatura recente, Moreira (2012, p. 215) afirma que Borges
aproximou a atividade intelectual de caráter reflexivo da criação literária, ao inserir textos
ensaísticos em obras que se apresentavam como de ficção literária, o que “desloca e coloca em
trânsito os espaços tradicionalmente dedicados ao pensamento e à imaginação” (MOREIRA,
2012, p. 215). Italo Calvino foi, segundo Moreira (2012), outro escritor que, com um projeto
literário híbrido, deslocou as fronteiras originais da ficção e da teoria.

Além de experimentar nas suas obras esse deslocamento, essa múltipla pertença,
Calvino manifestou-o em uma das suas “lições americanas”, as conferências que preparou e
nunca chegou a proferir nos Estados Unidos. Duas dessas conferências chamavam-se
“Exatidão” e “Multiplicidade”, projeções para a literatura do terceiro milênio que exprimem já
nos seus títulos a mescla possível de literatura e teoria. “Habituado como estou a ver na
59

literatura uma busca do conhecimento”, afirmou, “para mover-me no terreno existencial


necessito considerá-lo extensível à antropologia, à etnologia, à mitologia” (CALVINO, 2011,
p. 39).

Se pensamos agora em Jorge Luis Borges, a aproximação que fez entre as formas do
ensaio e a do conto na sua obra constitui um caso diferente do de Italo Calvino e de outros
escritores. Ali não chegou a haver uma fusão de formas e temáticas, com o discurso crítico,
analítico, próprio da reflexão ensaística, irrompendo no interior do discurso literário. Em várias
obras de Borges aparece, embora não de maneira uniforme, um esforço de analisar, refletir,
dissertar, jogar com a face lógica e racional do pensamento. Isso é parte de uma característica
muito conhecida de Borges, encontrável em Ficções (1944) e também em muitos de seus
poemas: uma espécie de provocação com a inteligência do leitor, conduzindo-o a um
determinado grau de certeza na interpretação da narrativa que é absolutamente ilusório,
enganoso. Kafka também faz esse jogo com o leitor, sabedor da sua avidez em interpretar e
colar significados a tudo o que lê. O leitor, então, se deixa levar por certezas que ele supõe
terem sido plantadas no texto, mas que acabam se revelando ilusórias. Finda a leitura, esse leitor
percebe (ou não) que o desfecho não consagra certeza alguma, nem solidez. Tudo é
inconclusivo, permanece opaco e difuso.

Em Borges, o engano também habita a percepção de se estar lendo um ensaio, pois


muitas obras citadas, datas, notas explicativas, nomes, eventos do passado são derivados da
“biblioteca” suspensa, ou seja, da ficção, do fingere. As ficções do título do livro de Borges,
que em alguns dos contos insinuam-se como não ficções, são exatamente o que o título
proclama. Algo semelhante (mas não idêntico) à forma como essa grande obra da modernidade
opera com a palavra ficções foi feito por José Saramago com a palavra ensaio, nos seus
romances Ensaio sobre a cegueira (1995) e Ensaio sobre a lucidez (2004). Ali, as histórias
suscitam no leitor reflexões e críticas em torno das sociedades humanas, mas os narradores das
matérias apenas narram, não comentam, avaliam, julgam. A ideia de ensaio nos dois romances
de Saramago está apenas nos títulos, pois é fora das narrativas que os ensaios acontecem, nas
inquietações dos leitores. Em Ficções, Borges convence o leitor de que o título é irônico, pois
foram introduzidos nas histórias comentários, digressões, etc. que são próprios dos textos do
universo do pensamento, mas tudo o que fazem é consagrar o discurso como pertencente à
esfera da criação literária. Vejamos um trecho do conto “O Sul”:
60

O homem que desembarcou em Buenos Aires em 1871 chamava-se


Johannes Dahlmann e era pastor da igreja evangélica; em 1939, um de seus
netos, João Dahlmann, era secretário de uma biblioteca municipal, na rua
Córdoba, e sentia-se profundamente argentino. Seu avô materno fora aquêle
Francisco Flores, do 2 de infantaria de linha, que morreu na fronteira de
Buenos Aires, lanceado pelos índios de Catriel; na discórdia de suas linhagens,
João Dahlmann (talvez por impulso do sangue germânico) apoiou a dêsse
antepassado romântico, ou de morte romântica. Um estôjo como daguerrótipo
de um homem inexpressivo e barbudo, uma velha espada, a ventura e a
coragem de certas músicas, o hábito de estrofes do Martin Fierro, os anos, o
fastio e a solidão fomentaram esse crioulismo algo voluntário, mas nunca
ostensivo. À custa de algumas provações, Dahlmann havia conseguido salvar
o casco de uma estância do Sul, que foi dos Flores; dos hábitos de sua memória
era a imagem dos eucaliptos balsâmicos e da ampla casa rosada que certa vez
havia sido carmesim. As tarefas e quem sabe a indolência o retinham na
cidade. Verão após verão, contentava-se com a idéia abstrata de posse e com
a certeza de que sua casa o estava esperando, num determinado sítio da
planície. Nos últimos dias de fevereiro de 1939, alguma coisa lhe aconteceu
(BORGES, 1972, p. 181-182).

O narrador de Borges dá informações pormenorizadas, expostas com objetividade. Os


nomes e as datas parecem apontar para biografias reais. O narrador oferece, também, as
referências históricas quanto à ancestralidade da personagem. Tudo parece corroborar a ideia
de que são dados verídicos. Sabe-se, porém, que muitas das informações expostas dessa forma
pelo narrador de Borges, como se estivessem baseadas em um documento histórico, costumam
ser fictícias. O rigor está apenas na forma, que cria a ilusão da veracidade do conteúdo: tratar-
se-ia, então, de una trampa, como se diz em espanhol.

Mobiliza-se, aqui, questões em torno do conflito entre verídico e inverídico e uma


tendência de se conferir credibilidade apenas à narrativa histórica, construída com dados
documentais e depoimentos, além de ser exposta com objetividade e austeridade. Mas muitas
obras da modernidade perturbam essa “ordem”: um exemplo é Se questo è un uomo (É isto um
homem? na tradução brasileira), na qual Primo Levi narra a sua experiência no campo de
concentração nazista de Auschwitz, na II Guerra Mundial. Publicado em 1947, sabe-se que esse
livro contém os fatos que lá ocorreram, mas que resultou de um arranjo literário e estético
(ordenamento, escolha do vocabulário, etc.), de tal forma que foi integrado à história da
literatura italiana. Não é ficcional, nem tampouco é um ensaio historiográfico na pura acepção
do termo. É, no entanto, depoimento, seja do ponto de vista da literatura, seja do ponto de vista
da História.

Tudo isso implica as múltiplas formas de ver, sentir e dizer acerca da experiência, bem
como todas as formas de representação e inscrição existentes, não apenas as admitidas como
literárias. Só que no âmbito da literatura tudo se torna mais complexo, pois a liberdade do ato
61

criador consente a indefinição e as sombras.

2.6 As focalizações e os desfocados

Mieke Bal usufruiu das vantagens de ser uma narratóloga tardia. Ela construiu a sua obra
após a publicação das principais referências teóricas dos estudos literários no que toca ao close
reading, como The craft of fiction (1921), de Percy Lubbock, “Point of view in fiction” (1955),
de Norman Friedman, The rhetoric of fiction (1961), de Wayne C. Booth e principalmente
Discours du récit (1972), de Gérard Genette. De todos estes, é de Genette que Bal mais se
aproxima no processo de construção do seu paradigma de análise de narrativas, mas o faz com
o objetivo de desenvolver um aparato teórico melhor, de se contrapor às suas definições,
classificações e nomenclaturas. Greimas é outra referência importante, já que, no seu livro
Narratology: introduction to the theory of narrative (1985), Bal emprega o modelo actancial
greimasiano, com algumas adaptações.

O termo narratologia define uma linha teórica dos estudos literários caracterizada pela
pesquisa norteada mais pelos elementos internos do texto do que pelos externos (contexto
histórico, vida social, etc.). A origem do termo é atribuída a Todorov. Por conta do ensaio de
Genette, a narratologia ficou muito associada ao estruturalismo francês. Bal, que teve uma
formação pautada por autores franceses, assumiu o termo narratologia e o difundiu
mundialmente, sobretudo no mundo anglófono, onde não era conhecido. Para tentar se
desvincular na herança estruturalista e talvez assegurar a permanência da linha teórica da qual
agora é a principal representante, Bal publicou, em 2002, o livro Travelling concepts in the
humanities: a rough guide, no qual se observa um esforço no sentido de atualizar e
redimensionar algumas noções da narratologia e propô-las como instrumental de análise para
os estudos culturais, hegemônicos nos Estados Unidos e no Canadá. Em 2009, foi publicada
uma edição revista e ampliada do seu Narratology, na qual também há essa tentativa de
aproximação com os estudos culturais.

Em decorrência de uma série de características da sua narratologia sobre as quais não


cabe discorrer aqui, Bal está muito mais próxima do estruturalismo do que desejaria admitir.
Mas, é inegável que a forma como amplia o alcance do conceito de focalização, por exemplo,
associando-o um olhar para o mundo, não mais somente para a engenharia do texto, cria pontos
de contato com o debate teórico recente sobre a literatura, com o que designamos aqui de crítica
da diáspora. Por isso nos decidimos a mesclar a abordagem dos nossos objetos com alguns
conceitos narratológicos “viajantes” propostos por Bal.
62

A condição de narratóloga tardia possibilitou-lhe avaliar o conjunto da produção anterior


e efetuar algumas mudanças no corpo da teoria. A mais significativa delas foi pensar a narrativa
não no âmbito exclusivo da expressão literária, mas como potência narrável presente nas mais
diferentes situações cotidianas. Por isso é frequente que os exemplos citados provenham do uso
corriqueiro da linguagem, não da língua dita literária. Isso parece fortuito, mas abre uma grande
distância entre dois momentos da narratologia: o da sua vertente modal ou pragmática, com
Genette, e o da vertente revista, expansível, de Bal.

Fábula e história, dois conceitos básicos que Bal (1995) apresenta no início do seu ensaio,
foram herdados do formalismo russo e tanto ali como mais tarde, no estruturalismo, implicaram
estados de linguagem, tempos qualitativamente distintos da enunciação. Mas, por força da
necessidade de se ajustarem tanto às narrativas literárias como às narrativas cotidianas,
emanciparam-se do plano verbal e foram investidos de um sentido mais amplo: embora a fábula
e a história sejam feitas da mesma matéria, a fábula é uma protonarrativa imaginária, suscetível
às inconstâncias da livre criação, enquanto a história é o seu arranjo ordenado. “Se se considera
a fábula primordialmente como produto da imaginação, caberia entender a história como
resultado de um ordenamento”, diz Bal (1995, p. 57. Grifos originais.)12. O que explica essa
ampliação de sentido é o que a autora explicita logo a seguir: “O objetivo da análise textual não
é a explicação do processo de escritura, mas sim das condições do processo de percepção”
(BAL, 1995, p. 57)13.

O princípio de ordenamento mais conhecido consiste na apresentação


de acontecimentos em uma ordem diferente da cronológica. Na tradição da
teoria literária, esse aspecto sobreviveu à distinção entre fábula e suzjet, tal
como os formalistas russos a utilizavam (BAL, 1995, p. 58. Grifos
originais.)14.

Em nenhum momento a autora aproxima as noções de fábula e ficção, ou toma uma


coisa por outra. Isto nos faz perceber que é perfeitamente possível que uma fábula seja
originária de um acontecimento verídico como também de uma lenda ou anedota:
“Chapeuzinho vermelho”, por exemplo. De qualquer forma, o que se afigura mais ajustado ao
plano da fábula é sequenciar os acontecimentos de forma lógica e cronológica. Quando

12
Si se considera a la fábula primordialmente como producto de la imaginación, cabría entender la historia como
resultado de una ordenación.
13
El objetivo del análisis textual no es la explicación del proceso de escritura, sino de las condiciones del proceso
de percepción.
14
El principio de ordenación más conocido consiste en la presentación de acontecimientos en un orden distinto
del cronológico. En la tradición de la teoría de la literatura, este aspecto ha sobrevivido a la distinción entre
fábula y suzjet tal como la utilizaban los formalistas rusos.
63

passamos para o plano da história, temos uma versão dos acontecimentos (BAL, 1995, p. 58),
apresentados a partir de uma certa perspectiva, que é um instrumento de manipulação (palavra
que deve ser tomada no sentido de “tratamento” ou operação) (BAL, 1995, p. 58). Temos,
também, a possibilidade de o narrador da história contá-la rompendo a cadeia cronológica da
fábula. Tal tratamento da matéria narrada é perfeitamente defensável em termos do
compromisso com a integridade da fábula, já que não sabemos se o ordenamento fabular não
resultou também ele de uma manipulação, isto é, se o relato matricial, supostamente verídico,
não foi descaracterizado quando recriado como fábula. Todos conhecem aquela brincadeira
juvenil de sussurrar uma frase no ouvido do colega e pedir que a repasse. Depois que todos
sussurram uns para os outros, a informação que se obtém é, com frequência, muito diferente da
original. O mesmo sucede com os boatos ou até mesmo com a reportagem jornalística de um
crime. A perspectiva é um fator a ser considerado no plano da história, da fábula ou em qualquer
outro que envolva a ação de narrar. É uma noção “clássica” da teoria literária que alguns autores
estruturalistas acabaram por desgastar, inserindo-a em um método de análise textual mecânico
e repetitivo. Porém, seja para a narrativa literária ou para as narrativas do cotidiano, estar ciente
de que a perspectiva interfere na mensagem é algo que qualifica ou torna mais intensa a
experiência do receptor com o texto artístico ou com os relatos do mundo.

Esse ponto de vista a partir do qual se apresentam os elementos da


fábula ostenta frequentemente uma importância decisiva no significado que o
leitor atribuirá à fábula. Além disso, desempenha um papel na maior parte das
situações cotidianas. Julga-se melhor um conflito permitindo que as partes
deem sua própria versão dos acontecimentos, sua própria história (BAL, 1995,
p. 58)15.

As diferenças entre o ordenamento na história e a cronologia da fábula são chamadas por


Bal de desvios cronológicos ou anacronias (BAL, 1995, p. 61). O início in media res, forma
adotada pelo romance clássico e depois pelo cinema, mantendo sua vitalidade até os dias de
hoje, é um exemplo desse descompasso intencional engendrado pelo narrador.

Outra noção clássica dos estudos da narrativa é o ritmo, a forma como o tempo transcorre,
igualmente atrofiada pelas leituras estruturalistas, mas útil para se compreender a economia
narrativa, algo em contínuo processo de mudança. A teoria literária tende a considerá-lo uma
técnica narrativa, mas é mais do que isto: reflete amplo espectro de transformações

15
Este punto de vista a partir del cual se presentan los elementos de la fábula ostenta a menudo una importancia
decisiva en el significado que el lector atribuirá a la fábula. Además juega un papel en la mayor parte de las
situaciones cotidianas. Un conflicto se juzga mejor dejando que las dos partes den su propia versión de los
acontecimientos, su propia historia.
64

socioeconômicas. O ritmo das narrativas muda quando muda o ritmo do mundo, fazendo com
que haja menos tempo e paciência para os relatos minuciosos, para os pormenores. Essa
mudança, por sua vez, afeta a forma de inserção dos atores na sociedade, a sua visibilidade, a
partilha do sensível, adquirindo, como se vê, tom político e muito atual.

No romance europeu do século XIX, é comum um longo transcurso do tempo, cobrindo


toda a vida do herói, da infância à maturidade e à morte. Alguns episódios são melhor
desenvolvidos que outros. A infância costuma ser narrada como um resumo breve e o primeiro
amor em pormenores.

Se se atentar mais ou menos equitativamente à fábula, sempre haverá


uma espécie de alternância entre a apresentação extensa e o resumo.
Geralmente se considera essa alternância a característica mais importante do
gênero narrativo. Seja como for, é claramente um indicador de importância.
Lubbock16 já fez uma distinção entre essas duas formas, a cena e o resumo,
assinalando corretamente que esse contraste relativo deveria ser levado até o
seu limite extremo. Podemos distinguir, por um lado, a elipse, uma omissão,
na história, de uma parte da fábula. Quando não se presta nenhuma atenção a
uma certa parte do tempo de uma fábula, a quantidade de TF (tempo de fábula)
é infinitamente maior que o TH (tempo de história). Por outro lado, podemos
identificar a pausa, que se dá quando um elemento que não ocupa tempo (um
objeto, portanto, e não um processo) nos é apresentado em detalhes. O tempo
da fábula é, então, infinitamente menor que o tempo da história. É esse o caso,
normalmente, dos fragmentos descritivos das teses [...]. Não é possível
determinar com precisão a isocronia real, isto é, a coincidência completa do
tempo da fábula e do tempo da história. Mas podemos admitir que, por
exemplo, um diálogo sem comentário ocupe tempo tanto no tempo da fábula
como no tempo da história. O diálogo, e em princípio qualquer cena, qualquer
apresentação detalhada de um acontecimento com pretensões de isocronia,
funciona, então, como ponto de comparação. Queremos dar a entender por
cena, aqui, um segmento de texto em que TF=TH (BAL, 1995, p. 78-79)17.

Desenha-se, neste comentário de natureza teórica, o processo pelo qual vem passando a
narrativa literária desde o período de apogeu do romance realista, no século XIX, até as

16
Percy Lubbock, no seu livro A técnica da ficção (The craft of fiction) (1921).
17
Se exprese la atención más o menos equitativamente en la fábula, siempre habrá una especie de alternancia
entre la presentación extensa y el resumen. Esta alternancia se considera generalmente la característica más
importante del género narrativo; sea como fuere, es claramente un señalizador de importancia. Lubbock ya hizo
una distinción entre estas dos formas. La escena y el resumen. Se ha señalado correctamente que este contraste
relativo debería llevarse hasta su extremo. Por un lado podemos distinguir la elipsis, una omisión en la historia
de una parte de la fábula. Cuando a una cierta parte de tiempo de una fábula no se le presta ninguna atención, la
cantidad de tiempo de fábula es infinitamente mayor que el tiempo de historia. Por otro lado podemos distinguir
la pausa, cuando un elemento que no ocupa tiempo (por lo tanto un objeto y no un proceso) nos es presentado en
detalle. El TF es entonces infinitamente menor que el TH. Normalmente es éste el caso en los fragmentos
descriptivos de tesis […]. La isocronía real, una coincidencia completa del TF y el TH, no se puede determinar
con precisión. Podemos, sin embargo, aceptar que, por ejemplo, un diálogo sin comentario ocupa tanto en TF
como en TH. El diálogo, y en principio cualquier escena, cualquier presentación detallada de un acontecimiento
con pretensiones de isocronía, funciona entonces como punto de comparación. Por escena, queremos dar a
entender aquí un segmento de texto en el que TF=TH.
65

experiências mais ousadas com a linguagem e a metalinguagem literárias. Percebe-se o


predomínio de um certo regime expressivo que se caracteriza pela condensação da matéria
narrada em discursos cada vez mais econômicos, cada vez menos propensos a longas descrições
e digressões, como as do texto de Flaubert que mobilizou a crítica de Roland Barthes e, mais
tarde, a de Jacques Rancière. Mesmo que se ofereça como exemplos que contrariam essa
tendência os romances mais extensos de José Saramago e o ciclo de romances autobiográficos
de Karl Ove Knausgård, por exemplo, há de se perceber que, ainda ali, se lança mão de resumos
e elipses, há um mundo revelado e outro oculto, somente sugerido, no qual se elege a narrativa
de uma certa experiência em detrimento de outra.
Chegamos, por fim, à noção de focalização, que, além de cara aos estudos literários,
sobretudo àqueles circunscritos ao texto, é afeita, segundo Bal (2009), a uma migração que a
leva ao encontro das problemáticas contemporâneas. Já no seu ensaio narratológico, o sentido
que empresta à focalização já se diferenciava daquele que a análise estruturalista consagrou.
“A focalização é a relação entre a “visão”, o agente que vê, e aquilo que se vê [...]. [A]
focalização pertence à história, ao estrato intermediário entre o texto lingüístico e a fábula”
(BAL, 1995, p. 110)18.
O ponto que vincula mais fortemente a narratologia da autora à sua matriz estruturalista
da década de 60 do século XX é a separação de sujeito e objeto, algo que, mais tarde (2009),
ela se empenhará em desacreditar. “Considerando-se”, diz, “que a definição de focalização se
refere à relação, os dois polos dessa relação, o sujeito e o objeto da focalização, devem ser
estudados separadamente” (BAL, 1995, p. 110)19. Em Conceptos viajeros en las humanidades
(2009), Bal redefine a focalização como “a relação entre o objeto e o sujeito da percepção (BAL,
2009, p. 61)20. Ela afirma, então, que a sua busca pelo sujeito da focalização está relacionada à
“possibilidade de superar a firme oposição sujeito/objeto” (BAL, 2009, p. 62)21, que teria sido
responsável por excluir os problemas políticos do seio da análise estrutural (BAL, 2009, p. 62).

18
La focalización es la relación entre la “visión”, el agente que ve, y lo que se ve […]. la focalización pertenece
a la historia, al estrato intermedio entre el texto lingüístico y la fábula.
19
Puesto que la definición de focalización se refiere a la relación, deberán estudiarse por separado ambos polos
de esa relación, el sujeto y el objeto de la focalización.
20
“la relación entre el objeto y el sujeto de la percepción”.
21
“con la posibilidad de superar la firme oposición sujeto/objeto”.
66

O mais importante foi, talvez, que a minha versão da focalização dava


a possibilidade de analisar um texto, em vez de parafraseá-lo e categorizá-lo
amplamente [...] ...esta ideia possibilitou a defesa de uma noção performativa
da produção de significado na subjetividade e por meio dela [...] (BAL, 2009,
p. 62)22.

A subjetividade na linguagem adentrou as discussões de Bal desde que se aproximou da


obra de Émile Benveniste e apreendeu uma das ideias básicas do linguista: a de que o mais
importante da linguagem não é a referência e sim a subjetividade advinda do intercâmbio entre
o eu e o tu (BAL, 2009, p. 60).
À noção de focalização zero em Genette – ou seja, a visão abrangente, totalizadora,
própria da condição de onisciência – Mieke Bal opõe a ideia de um sujeito da focalização,
tentando transpor o limite conceitual da oposição sujeito/objeto (BAL, 2009, p. 61-62) e superar
o persistente esquema mental construído no estruturalismo que estabelece o texto como o alfa
e o ômega da análise literária.

Se a distribuição de posições de sujeitos entre a primeira e a segunda


pessoa linguísticas constitui a base da produção de significado – como eu e
muitos outros cremos -, não existe nenhum respaldo linguístico para nenhuma
forma de desigualdade, supressão ou predominância de uma certa categoria de
sujeito na representação.
Contrapondo a oposição objeto/sujeito promovida pela referência,
Benveniste ataca com um único gesto a autoridade individual e as suas várias
versões nos textos culturais. Para examinar as desigualdades e as autoridades
que sem dúvida estruturam esses textos, não se deve buscar a fonte dessas
posições e distribuições nem no significado como produto da referência nem
na intenção do autor. O significado é, em vez disso, produzido pelas pressões
do “eu” e do “tu”, que mudam de lugar continuamente em relação aos
significados que são capazes de gerar. Essas pressões não partem dos sujeitos
– cuja posição linguística situa-os precisamente como esvaziados de
significado, à margem da situação de comunicação –, mas chegam até eles e
enchem-nos de significado. Esse preenchimento provém de fora [...] (BAL,
2009, p. 62-63. Grifos originais.)23.

22
Quizás lo más importante fuera que mi versión de la focalización daba la posibilidad de analizar un texto, en
lugar de parafrasearlo y categorizarlo a grandes rasgos […] …esta idea fue totalmente contingente a la defensa
de una noción performativa de la producción de significado en la subjetividad y a través de ella […].
23
Si la distribución de posiciones de sujetos entre la primera y la segunda persona (lingüísticas) constituye la
base de la producción de significado – como yo y muchos otros creemos –, no existirá ningún apoyo lingüístico
para ninguna forma de desigualdad, supresión o predominancia de una cierta categoría de sujetos en la
representación.
En contraposición a la oposición entre objeto/sujeto que promueve la referencia, Benveniste ataca con un solo
gesto la autoridad individual y sus varias versiones e n los textos culturales. Para examinar las desigualdades y
autoridades que sin duda estructuran esos textos, la base de esas posiciones y distribuciones no debe buscarse ni
en el significado como producto de la referencia ni en la intención del autor. En lugar de ello, el significado es
producido por las presiones del “yo” y del “tú”, que continuamente cambian de lugar respecto a los significados
que son capaces de generar. Estas presiones no parten de los sujetos – cuya posición lingüística los sitúa
precisamente como vacíos de significado, al margen de la situación de la comunicación –, sino que llegan hasta
ellos y los llenan de significado. Este relleno les llega desde fuera […].
67

O conceito de focalização empreendeu uma “viagem” e ao longo do percurso teve o


sentido alterado. Migrou do campo visual para a narratologia e desta para a análise
especializada das imagens visuais (BAL, 2009, p. 57).

[...] a focalização, ao chegar ao seu novo destino, a análise visual,


recebeu um significado que não coincide com o seu antigo significado visual
– enfocar com uma lente – nem com o seu novo significado narratológico – o
amálgama de percepção e interpretação que guia a atenção ao longo da
narrativa (BAL, 2009, p. 57-58)24.

O que há de novo, o que está além da compreensão antiga do termo focalização, é que
o olhar que focaliza o sujeito na narrativa – e praticamente o instaura como tal – provém do
mundo e é detentor de um saber que não está no texto, nem nas suas camadas superficiais, nem
tampouco nas camadas profundas. Um saber – percepção, se se preferir – sobre o outro, sobre
outras realidades, sempre cindidos, precários, incompletos, fragmentados.
Novamente se conclui que a literatura, como todo ato criador no âmbito artístico, não
são autônomos e o que os move, em grande parte, são forças e desejos não específicos ou não
exclusivamente seus. Focalizam-se novos atores e conflitos, novas possibilidades de narrar com
perspectivas diferentes experiências já conhecidas. Um exemplo é o documentário Ziva Postec.
A montadora por trás do filme Shoah25. Ziva Postec é personagem lateral e esquecida da
produção de Shoah (1985), que notabilizou somente o seu diretor, o documentarista francês
Claude Lanzmann (1925-2018). Ela foi, no entanto, uma peça essencial para o êxito do filme,
tendo dedicado a esse trabalho parte significativa de sua vida, renunciando à família e a outros
projetos pessoais. Como espectadores, penetramos nas vísceras de Shoah, nas pesquisas e
entrevistas que lhe deram forma, ao mesmo tempo em que conhecemos a vida de Ziva, marcada
duplamente pelo rastro de sofrimento dos judeus nos campos de concentração nazistas, por
também ser judia e por ter tido contato em primeira mão com muitas horas de depoimentos que
reconstituíram no plano verbal a substância da gigantesca barbárie. Somos levados para o
interior de Shoah pelo olhar de Ziva, que foi, de fato, quem deu ao filme a forma definitiva.
Não apenas conhecemos aquele filme por uma via marginal como também nos conscientizamos
de que a obra reivindicada como de autor não teria chegado ao seu termo sem o trabalho de
uma mulher sensível, culta e obstinada, a montadora Ziva Postec. Como nas “margens” que

24
[...] la focalización, al llegar a su nuevo destino, al análisis visual, ha recibido un significado que no coincide
ni con su antiguo significado visual – enfocar con una lente – ni con su nuevo significado narratológico – la
amalgama de percepción e interpretación que guía la atención a través de la narrativa.
25
Ziva Postec. The Editor Behind the Film Shoah. Canadá, 2018, 92 minutos, direção de Catherine Hébert.
68

Rancière identifica nos contos de Guimarães Rosa, há, nesse documentário e em outras obras
recentes, o desejo de focalizar os anônimos, os esquecidos e de, sobretudo, construir os relatos
mediante um novo olhar, que os redimensione ou até transforme tudo o que outrora sabíamos a
respeito deles. A literatura, o cinema, as artes performáticas, etc. parecem se reencontrar com a
sua grande vocação histórica de dar visibilidade aos seres tornados invisíveis no bojo da grande
engrenagem socioeconômica: vocação à qual a arte jamais renunciou, mas que estava embotada
após mais de um século com o olhar fixo nos reflexos de si mesma.
69

3 DESLIZAMENTOS

3.1 Os contos
Recebo de um grupo de amigos e críticos o
estímulo para continuar escrevendo; mas o
material, quem me dá é a realidade que anda por
aí.

Modesto Carone, Dias melhores.

Em 1.2 já delineamos como estão configurados cada um dos livros de ficção de Modesto
Carone. Mas se faz necessário enfatizar aqui a simetria dos dois primeiros livros, As marcas do
real (1979) e Aos pés de Matilda (1980), nos aspectos tonal (o tom que prevalece na
enunciação), de focalização e temáticos. Há, porém, assimetrias relevantes em As marcas do
real que serão apontadas e discutidas em um dos contos do corpus.
A seguir procederemos, então, às análises dos 13 contos26 e do romance Resumo de Ana,
que constituem o corpus desta tese. As análises dos contos são precedidas da reprodução de
cada um deles na íntegra27.

AS FACES DO INIMIGO

É à tarde que vejo os pêlos crescerem no meu corpo. Instalo-me no meu


quarto, sento-me no meio da cama e, munido de uma lupa que guardo à chave
numa escrivaninha de aço, fico observando essas explosões silenciosas da
minha pele. Nem preciso dizer que nesses momentos o tempo deixa de
progredir à minha volta: ele fica encravado nas dobras do meu corpo como
uma sujeira adormecida. Enquanto isso eu me entrego, com uma paixão
escolada, à tarefa de vigiar essa vida estranha que evolui em mim, mas à minha
revelia.
Preciso esclarecer que sempre olhei com muita desconfiança unhas e
cabelos: a simples insinuação de que eles escapam a qualquer controle me
enfurece. Por isso resolvi vistoriá-los todas as tardes com a ajuda desta
lente excepcional. Compenso, com a vigilância implacável, o desconforto de
saber que eles crescem por contra própria.
Eu a exerço sem o menor constrangimento. Se vejo um pêlo da perna
ou da orelha crescendo torto ou fraco; se ele não se ajusta à simetria que sinto
necessária ao meu rigor, não hesito: alcanço umas das pinças que ficam à
minha mão e extirpo-o com um golpe seco, para não deixar raízes nem
seqüelas.

26
Os contos são “As faces do inimigo”, “Choro de campanha”, “As marcas do real”, “Utopia do jardim de inverno
por um doutor em letras”, “Recato”, “Ponto de vista”, “Encontro”, “Passagem de ano”, “Novelo”, “O Natal do
viúvo”, “Visita”, “Por trás dos vidros” e “Café das flores”.
27
Foi mantida a ortografia das edições originais.
70

É verdade que esse trabalho se tem tornado intenso e dispendioso: a


multiplicação dos pelos é abundante, uma revista eficiente exige a atenção
mais pertinaz, os espécimes rebeldes proliferam, a conta de luz, por causa dos
refletores, sobe sem parar, e a reposição das pinças –são tantas as que perdem
a garra – transformou-se de lúdica em exasperante. Estou ciente, além disso,
de que, por melhor que seja minha lente, têm aparecido, por toda parte,
instrumentos de maior precisão, e não me sinto bem quando me surpreendo
desatualizado – principalmente num setor importante como este. A esses
pequenos percalços devo acrescentar o medo de perder a acuidade dos dedos
indispensáveis à minha missão. Mas sei que se trata apenas de um temor
passageiro, por isso não a levo a sério.
Sério mesmo parece o pensamento que me veio à mente quando
terminava, já no crepúsculo da manhã, uma das mais árduas sessões de
vigilância sobre pêlos dos membros inferiores: o que será que eles acham de
tudo isto? Fiquei tão mortificado com a minha pergunta que tive de me olhar
no espelho, para me ver de fora. Ocorreu-me, então, diante daquele rosto
abismado, que muito pouco se pode fazer contra as manifestações
espontâneas (CARONE, 1979, p. 11-15. Grifos nossos.).

Um traço recorrente deste e de vários outros contos incluídos nos dois primeiros livros
de ficção de Carone é que o ato de narrar se constitui como parte da execução de um método:
o motivo principal, o motor da reflexão, se circunscreve a um dado muito particular do narrador-
personagem, aderido ao presente da narração. Pode ser o crescimento assimétrico dos pelos no
corpo, como no caso deste conto; pode ser a relação do indivíduo com os objetos que o rodeiam,
como a cama, a cadeira, a mesa do escritório. Parece haver uma inação brutal em torno do
narrador, uma paralisia das forças vitais, e todo movimento só pode ser simulacro de
movimento, fixado em pormenores, em erupções corporais, na mobília, nas paredes. A vida,
interditada, só é permitida no gesto medido, meticulosamente ensaiado e descrito. O discurso
bloqueia a expansão do pensamento, o devaneio, a evasão. Também é restritivo: vale-se, na
maior parte do tempo, de um léxico composto por palavras que não consentem a ambiguidade,
as livres associações e criam uma atmosfera hostil. O leitor é repelido da experiência como
percepção imediata: desliza pela matéria narrada e sai dela como entrou, sem senti-la para além
da superfície, sem usufruir sequer de um “aprendizado”, sem ser tocado por uma imagem
pungente ou por uma emoção especial, certo arrebatamento.
“As faces do inimigo” é um conto cuja narração se despe do invólucro literário para
adotar outro, próprio dos textos reflexivos, analíticos. Guarda, porém, um traço que denuncia a
sua origem, que revela que a pretensão de ser análise, ensaio, é simulacro. Diz o narrador: “o
tempo deixa de progredir à minha volta: ele fica encravado nas dobras do meu corpo como uma
sujeira adormecida”. A imagem é poética, posta aí para destoar do tom predominante. Contrasta
com uma construção como esta: “a multiplicação dos pelos é abundante, uma revista eficiente
exige a atenção mais pertinaz, os espécimes rebeldes proliferam”. O primeiro trecho se insinua
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como um possível descolamento dos limites da experiência presente, mas o voo é tolhido.
Funciona como chave no interior de um sonho ou pesadelo que tomamos como real, crível, para
que, a certo momento, o cristal da fantasia se estilhace e, tomados pela consciência repentina,
despertemos em assombro. Tal chave ou janela está ausente de outros contos do volume, como
“As marcas do real” e “Utopia do jardim de inverno por um doutor em letras”. Está ausente,
também, do conto “O Sul”, de Borges, citado há pouco, que tem algumas semelhanças com os
contos de Carone. O que rompe o simulacro em “O Sul”, o que denuncia a sua condição de
texto ficcional e literário, não de ensaio historiográfico, é um dado externo à narrativa,
dependente do leitor: ele precisa saber que aqueles fatos e personagens não têm lastro na
verdade histórica. Essa chave exterior também é requisitada no conto “As Marcas do Real”. Em
outros contos, quando não há metáforas, críticas, traços de poeticidade para perturbar a
pertinência do discurso analítico, há um elemento insólito. Instaura-se, de uma forma ou de
outra, a ambiguidade no interior do discurso, com o propósito evidente e intencional de revelar
que se trata de literatura, não de outra coisa, embora, de fato, pareça ser outra coisa. O que
predomina na maior parte do conjunto formado pelos 22 contos de As marcas do real é o
despojamento da especificidade literária e a adoção de uma especificidade outra: as estratégias
enunciativas e os mecanismos de persuasão próprios dos discursos crítico-analíticos, tal como
vemos nos ensaios de sociologia, política, história, antropologia, etc., nos artigos de opinião,
nas teses e monografias.
A partir do volume Dias melhores (1984), atenua-se esse anseio do narrador por um relato
cerebral. O discurso é mais atravessado pela poesia, está mais claramente definido como
literário. A objetividade, no entanto, permanece, ainda que posta à prova pela dúvida, pelo ir e
vir entre o que se sabe e o que se supõe: o romance Resumo de Ana (1998) é feito dessa mescla.
O desejo obsessivo do narrador de “As faces do inimigo” por controle e vigilância
resvala na esquizofrenia. A experiência do narrador-personagem pertence em tal proporção ao
presente narrado, a fábula e a história estão de tal forma sobrepostas, que a expressão “me ver
de fora” só pode ser tomada como irônica. Não há como se ver de fora porque ele está alienado
das referências exteriores. Em outra expressão irônica, o narrador afirma: “[...] não me sinto
bem quando me surpreendo desatualizado – principalmente num setor importante como este”
(CARONE, 1979, p. 14).
Ao concluir o conto afirmando que “muito pouco se pode fazer contra as manifestações
espontâneas”, o narrador parece ter encontrado, afinal, uma pedagogia na sua odisseia com os
próprios pelos. Não há, porém, informação, formação ou aprendizado válidos, pois o método
só faz retroalimentar o próprio método. A afirmação alude à ditadura militar então vigente e à
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sua necessidade de manter tudo e todos sob controle, algo que, no enredo do conto, com a sua
loucura em torno dos pelos que brotam na epiderme, equivale ao trabalho de Sísifo. Sem esse
sentido externo à matéria, sem o olhar “de fora”, o conto se oferece apenas como o enigma
contido na sua superfície.

CHORO DE CAMPANHA

Quando vi a velhinha no sobrado onde funcionava o grupo escolar,


chorei pela primeira vez desde o início da campanha. Os cabelos dela estavam
brancos, os pulsos acusavam um desgaste de cem anos. Nada mais naquele
corpo lembrava a coordenação impecável das mãos, braços e olhos no instante
do castigo corporal. Senti nos dedos a dor aguda que chegava aos ossos, as
linhas da sala modelando o roteiro de réguas e palmatórias. Um ajudante-de-
ordens interrompeu-me dizendo que estava na hora do banquete oficial.
Despedi-me da mestra com pesar e quando endireitei a espinha tive a sensação
de que no brilho de aço dos seus olhos havia um halo de sombra. Os lábios
porém conservavam um ar escarninho que me deixou confuso.
No banquete o movimento foi intenso e as atenções à minha condição
de candidato devolveram-me o bom humor. Por isso não dei maior
importância ao acidente com a esquadrilha da fumaça que acabou num
incêndio em campo aberto. Concentrei-me na picanha que estava quase crua
e enxuguei o sangue no miolo de pão. Suporto mal a vista de sangue no prato;
o gosto eu em geral corrijo com molho vinagrete.
Acho que naquele dia o tempo voava: ao entrar no carro, de volta ao
aeroporto, a cidadezinha já estava morta. Na linha das colinas pairava um por-
de-sol melancólico. É muito natural que o entardecer comova, principalmente
no lugar onde se passou a infância.
Essa reflexão entretinha meus sentimentos quando divisei, na sua
principal, os muros da casa de detenção: atendendo a um apelo surdo, mandei
o chofer parar. Desci a pé até o monumento, o pessoal da segurança invadindo
o espaço deserto.
O que então aconteceu deve ter sido muito rápido. Pois assim que entrei
no prédio reconheci, de um só golpe, a atmosfera que havia inspirado meus
primeiros sonhos de poder. Uma alegria inesperada agitou meus músculos de
velho: diante das celas, das portas severamente guardadas, dos ecos que
vinham do fundo sujo dos corredores, a erecção era inevitável. Foi aí que
chorei pela segunda vez. Mas o avião me esperava e a visita fora de programa,
apesar de fascinante, não podia prosseguir.
Ia me retirar quando dei de cara com um espelho de canto. Alguma coisa
nele chamava a atenção. Aproximei-me com cautela e vi: na superfície rasa
uma farda sem pescoço caminhava ao meu encontro. Como não entendo nada
de miragens, virei as costas e parti (CARONE, 1979, p. 21-25).

Comparativamente aos contos anteriores, este está construído sobre um conjunto de


especificidades literárias, alguns elementos do discurso que consentem ao leitor a fruição do
texto, que lhe permitem percorrê-lo, cotejar a experiência contida na matéria com a sua própria
ou a de outrem. Há, nesse sentido, uma progressão da fábula e um vocabulário amigável. A
poeticidade, que nos demais contos é suprimida ou reduzida a uma ou duas ocorrências, aqui
73

predomina. Vejamos alguns exemplos: “tive a sensação de que no brilho de aço dos seus olhos
havia um halo de sombra”; “o tempo voava”; “na linha das colinas pairava um por-de-sol
melancólico”. A fábula se constitui de quatro estações: a inicial, com o narrador, velho político
em campanha, vendo sua professora primária já idosa, na escola onde ele estudou; a climática,
com o avião militar caindo e se incendiando no decorrer do banquete e com a morte sendo
representada pelo sangue da picanha no prato; o êxtase, com o narrador tendo uma ereção
proporcionada pela memória da origem dos seus sonhos de poder que a casa de detenção lhe
proporciona; finalmente, a farda fantasmática que se desprende do espelho e vem em sua
direção.

Está presente, de forma mais ostensiva do que em “As faces do inimigo”, a sombra da
sociedade militarizada, desta vez evocando a morte e a despersonalização. As duas situações
de choro do velho político são resultam de tensões: ele se emociona ao reencontrar a antiga
professora e se lembrar da educação que dela recebeu, com castigos físicos. Também se
emociona ao visitar a casa de detenção, mas ali o choro se dá quase ao mesmo tempo que a
ereção, pois a atmosfera predominante foi a mesma que o motivou perversamente no passado a
se tornar político e agora o excita sexualmente. A farda sem pescoço é a vinculação final do
narrador com o contexto histórico, os anos do regime militar (1964-1985).

A nossa hipótese é de que esse conto, ao fazer duas alusões claras ao poder militar (a
queda do avião e a farda), cumpre o papel de contextualizar as demais narrativas, de vinculá-
las de forma mais clara à ditadura. E isso é feito por meio de um velho político conivente com
a violência do momento, além de insensível aos seus efeitos.

AS MARCAS DO REAL

Os estudos mais recentes confirmam que desde a adolescência Georg


Trakl consumia ópio, clorofórmio, veronal e cocaína. Explica-se: sua mãe
Maria, uma protestante de Praga rejeitada pela comunidade católica de
Salzburg, passava os dias fechada no quarto, às voltas com bonecas de louça;
os filhos ficavam sob os cuidados de uma governanta. Há quem diga que
durante muito tempo Maria foi viciada em narcóticos pesados.
Tobias, o pai, era um atacadista próspero, mas faliu quando Georg fazia
o secundário. Os biógrafos o descrevem como um homem vulnerável; num
poema do filho a figura recorrente do pai se transforma em ancião coberto de
lepra.
A vida afetiva do poeta estava orientada para a irmã mais nova, Grete,
que as fotografias mostram crispada e bela. Foi a única pessoa que ele amou:
tornou-a sua amante e induziu-a ao uso de entorpecentes. Costumam
identificá-la com a Forasteira e a Monja dos versos da última fase. Depois de
estudar piano em Viena Grete casou-se em Berlim com um homem muito mais
velho. Georg visitou-a uma só vez, quando ela teve que praticar aborto e quase
morreu. Abandonada pelo marido suicidou-se com um tiro dois anos depois
74

da morte do irmão. O último poema, Lamento, refere-se à “irmã de


tempestuosa melancolia”.
Sem recursos financeiros próprios a partir dos 16 anos Georg foi
obrigado a trabalhar como balconista e funcionário público para ganhar a vida.
Mas não fez carreira: esquivo ao convívio e à rotina ficou duas horas no
melhor emprego que teve – um posto burocrático no Ministério do Trabalho.
Seu único título na vida acadêmica foi o de farmacêutico; na época o cidadão
austríaco podia estudar Farmácia sem ter concluído o colegial. É possível
porém que o poeta tenha feito a escolha pensando num acesso mais fácil às
drogas. Quem lê seus poemas reconhece a experiência do drogado: o texto
alimenta-se de um cortejo de imagens intensamente coloridas onde deslizam
barcas e papoulas.
Isso não impede que a dicção da obra seja clara e segura, lembrando um
mundo complementar à realidade histórica circundante. Pois esta vivia uma
crise sem precedentes desde que a Monarquia do Danúbio perdera as bases de
sua sustentação social. Há indícios de que Georg registrou essa ruptura na
subjetividade desintegrada do psicótico. Seus melhores poemas – aqueles que
dos 25 aos 27 anos escreveu e burilou nas costas de envelopes e guardanapos
- falam em noite e decomposição, à qual não falta contudo o brilho tenaz da
redenção. Sem dúvida isso remete a Hölderlin, poeta com quem Georg tinha
grande afinidade: em Patmos consta que onde há perigo cresce também a
salvação.
Quando estourou a Primeira Guerra Mundial o poeta alistou-se como
voluntário porque estava desempregado. Imediatamente enviado a uma frente
de batalha, participou como oficial-farmacêutico da chacina de Grodek, na
Galícia. Foi nela que se viu cuidando de uma centena de mutilados aos quais
não podia socorrer por escassez de remédios. Ao seu redor, pendurados em
árvores, balançavam os corpos de soldados enforcados por falta de bravura.
Georg puxou o revólver e tentou matar-se, mas foi impedido pelos
companheiros e despachado com escolta para o sanatório militar de Cracóvia.
Diagnosticado como esquizofrênico (dementia praecox) ficou internado
quinze dias numa cela acolchoada ao lado de um tenente delirante. Nesse lugar
recebeu a visita do amigo e protetor Ludwig von Ficker a quem entregou os
originais dos dois últimos poemas, Grodek e Lamento. Na noite de 3 de
novembro de 1914, não se sabe como, tomou uma dose violenta de cocaína e
sofreu uma parada cardíaca. O mais provável é que tenha se suicidado. Três
dias depois chegava ao hospital, trazendo-lhe dinheiro, o lógico vienense
Ludwig Wittgenstein, que admirava sua poesia embora afirmasse não
entendê-la. As linhas finais de Grodek dizem o seguinte:
Uma dor poderosa nutre hoje a
chama do espírito,
Os anjos não-nascidos.
Georg já estava enterrado no cemitério Rakowicz de Cracóvia quando
saiu na Alemanha Sebastian em Sonho, coletânea de suas primeiras obras-
primas. Ao ler o livro em 1916 Rainer Maria Rilke perguntou: quem teria sido
ele? (CARONE, 1979, p. 35-40).

O conto que dá título ao livro é de todos o mais radical no sentido de ser um discurso
analítico, de ostentar algumas especificidades que não são literárias e sim afinadas com a
estrutura do ensaio acadêmico. O narrador, mesmo embotado, não é neutro: apesar de o tom
predominante ser o do discurso acadêmico, objetivo, frio e medido, o texto está repleto de juízos
75

de valor. Isso o distancia da tese de doutorado que Modesto Carone produziu tendo como tema
a poesia de Georg Trakl (1887-1914), poeta expressionista austríaco de vida breve e conturbada.
O paradoxo do conto está em adotar o discurso acadêmico, que distancia o narrador do objeto,
e ao mesmo tempo realçar dados da biografia do poeta, como o seu envolvimento com
entorpecentes, que justificariam o seu processo de composição e o teor dos principais poemas.
“Quem lê seus poemas reconhece a experiência do drogado: o texto alimenta-se de um cortejo
de imagens intensamente coloridas onde deslizam barcas e papoulas” (CARONE, 1979, p. 39).

Se fosse extraído do livro e deslocado para outra materialidade, esse conto seria lido como
ensaio ou como artigo de caderno literário da imprensa. O distanciamento com que a história é
narrada e a forma como o narrador transita dos dados biográficos do poeta para o contexto
histórico fazem de “As marcas do real”, como apontou Arêas (1997), uma possível matriz de
Resumo de Ana (1998).

Na tese de Carone, publicada em livro com o título de Metáfora e montagem (1974), o


viés biográfico está ausente e a obra poética é colocada em primeiro plano, juntamente com os
procedimentos de composição. No conto, então, o discurso acadêmico é um artifício e, como
no conto “O Sul”, de Borges, a sensação de verdade comunicada pelo ensaio escamoteia a sua
essência ficcional. A diferença é que as informações sobre o consumo de drogas e o
temperamento instável do poeta, contidas em “As marcas do real”, são verídicas, oriundas da
sua biografia.

UTOPIA DO JARDIM DE INVERNO


POR UM DOUTOR EM LETRAS

1
Todas as vezes que eu entro no jardim de inverno alguma novidade me
espera. Não que lá aconteçam coisas excepcionais – a não ser para os olhos
habituados ao trato maleável com as nuances. Isso significa que é preciso ter
um mínimo de familiaridade e traquejo para perceber o que mudou no mundo
complicado de uma estufa. Evidentemente ele não se abre ao primeiro que
passa. Mas seu recato só é impenetrável para quem não sabe acompanhar os
movimentos sutis de sua história. No caso não se trata de evidências ou
clarões, mas de sinais aparentemente insignificantes, como trocas discretas de
posições, acréscimos e arranjos que a vista destreinada não distingue. Não
quero dizer com isso que as alterações tenham deixado de ser substanciais:
elas o são sempre. Assim é que, para exemplificar, uma luz inusitada pode
trazer à tona todo um traçado de manifestações riquíssimas até então latentes
no seio de uma falsa imobilidade. Foi uma contingência como essa que me
levou a imaginar que as cores, as linhas e a consistência, em suma: a
constelação de forças daquele mundo privilegiado se comportavam como
peças de um caleidoscópio. A diferença fundamental, porém, é que nele se
mexe um organismo vivo, capaz de acusar e absorver, sem manipulação, o
encontro de suas camadas mais secretas. Tudo depende, é claro, da condição
76

peculiar de cada planta, pássaro ou grão de terra no conjunto minuciosamente


regulado e no entanto livre das suas formas de acomodação. Por isso a imagem
que talvez se aproxime mais dessa carnação de caules, folhas e raízes seja a
de um tecido embrionário e pleno que a todo instante se afirma e se desfaz na
produção germinal de sua própria existência.
2
Quem convive com fatos dessa natureza sabe que o anoitecer é o
momento mais propício para se conhecer por dentro o ritmo de um jardim de
inverno. Em grande parte isso se deve à circunstância de nessas horas
descrever sensivelmente a agitação das ruas e das casas. A ressalva necessária
é de que ainda há muita coisa não esclarecida nesse fenômeno arisco, apesar
de cotidiano. Seja como for, o importante é sentar-se à tardinha, numa cadeira
de vime, diante dos vidros ainda iluminados, e observar como as cores vivas
do fim do dia empalidecem até o ponto crítico de uma grande mancha azul.
Ela se espalha dos caixilhos da vidraça até o chão de cerâmica e os canteiros
superiores, num roteiro desigual que no fim se confunde com os contornos da
estufa. A pausa que então se instala é tão profunda quanto a que marca a
conversão no metabolismo das plantas. É a partir desse momento que elas
começam a se expandir, estirando ramos e penugens no espaço ainda recente
dessa bolha desconhecida que é o sono de um vegetal. Embora não se possa
pretender que já estejam despertas, o fato é que o torpor acumulado de um dia
de trabalho começa a descolar-se dos seus próprios veios como uma camisa
usada. A própria terra onde elas armazenam suas forças passa a emitir
comandos subterrâneos que sobem à superfície das folhas. Nesse lance
floresce o arco de tensão cuja energia liga a raiz ao caule e este por sua vez às
extremidades. O primeiro resultado concreto dessa consciência crepuscular de
unidade são os meneios circulares de onde, com toda certeza, nascem os
compassos iniciais de uma dança individual. Esta pode complicar-se de uma
maneira infinita, mas as bases de sua evolução foram dadas quando a luz do
sol desapareceu de todo. O mais decisivo, no entanto, ainda está para
acontecer: a comunicação entre os exemplares vivos do jardim. Tudo indica
que ela se dá através de insetos minúsculos que as plantas albergam durante o
dia e que, ao anoitecer, ficam contagiados pelo movimento noturno de suas
habitações. O que um ouvido apurado então percebe são riscos sonoros que
aos poucos enlaçam os espécimes mais distantes, armando entre eles uma teia
de sinais afinadíssimos – a tal ponto que o tempo acaba por torná-los
palpáveis. A materialização desses zumbidos pode oferecer a mais fantástica
das visões se há luar dentro da estufa. Pois a prata fria tem a propriedade de
se depositar nos fios da tela de sons, escorrendo depois até o chão, onde
desencadeia uma maré de pingos luminosos. O espetáculo chega ao auge
quando o coro dos vegetais imprime o fôlego da relva à trama de rumor e
colorido que se lança pelas paredes e atravessa o ar da redoma em todas as
direções. Se esse ponto é alcançado, mesmo o observador mais imparcial não
pode deixar de sentir a intensa levitação que se apodera do seu corpo e o
mergulha por completo no espaço fervilhante da felicidade.
3
Num jardim de verdade cada manhã é uma experiência original. Se é
verão e o dia amanhece cedo, o ímpeto das cores, logo nas primeiras horas,
pode ser comparado à turbulência de um bando de sanhaços descobrindo um
pomar novo. Mas no caso em questão a analogia não é apenas retórica, porque
de manhã os pássaros passam a compor naturalmente a paisagem do jardim de
inverno – com a condição de que ele já tenha atingido um estágio maduro. Em
outros termos isso quer dizer que a estufa só chega à vida plena quando
consegue absorver o exterior dentro dos seus limites de vidro. Com relação às
aves é possível admitir, por exemplo, que uma ninhada de bem-te-vis
77

disputando as lanças vermelhas de uma flor-de-são-joão representa uma parte


indispensável de sua organização interna. O mesmo se pode afirmar em
relação a todas as andorinhas do bairro, seja quando elas perseguem flocos no
ar, seja quando esticam seus fraques em cima de uma antena de televisão. O
processo de incorporação não se restringe, aliás, aos pássaros, pois vale
igualmente para pessoas e árvores. É desse modo que o entregador de leite,
que sempre chega de madrugada, deixa, sem saber, uma mancha branca no
ânimo de flores e xaxins. As árvores da redondeza, por seu lado, já têm mais
consciência do que acontece nessa troca de mensagens. Por isso não é de
estranhar a sem-cerimônia com que o bico-de-papagaio do corredor afunda o
seu florete no forro aceso da folhagem.
4
As regras de adequação desses elementos até certo ponto incongruentes
são muito complexas e não se deixam prever nos pormenores. Mesmo assim
é visível que um jardim de inverno pesa as necessidades concretas. Nesse
sentido não é raro ver o setor operário dos vasos vestir a carranca das usinas,
ou a terra dos canteiros morder nos seus túneis uma fúria enrustida de motores.
A diferença de nível manifesta-se no caráter exemplar que as plantas impõem
aos seus comportamentos. Pois o que fora do jardim remói a reprodução
compulsiva da vida, nele abriga o risco e a descoberta.
Um exemplo clássico da visão áurea que envolve o dia-a-dia das plantas
é a dialética de luz e sombra na economia de avencas e samambaias. É sabido
que elas mantêm um vínculo arcaico e indissolúvel com a umidade. Isso se
explica em grande parte pela tradição, uma vez que sua permanência no tempo
tem dependido de barrancos, recessos pantanosos e cavernas dágua. É notório
porém que mesmo lugares inacessíveis como estes estejam sendo alcançados
pelo sol. Ele costuma descer no dorso da argila e no levíssimo das ramagens:
sua inquietação transmite-se à produção de seiva desde há muito tempo. Por
esse motivo sempre viaja uma tepidez flutuante nas suas rendas mais íntimas.
Mas não foi só isso como também um evidente toque dourado no corpo de
suas hastes. O analista experiente não pode deixar de percebê-lo,
principalmente se a escada irregular de uma samambaia ou o cabelo
encarapinhado de uma avenca se lavam no fogo solto da tarde. Sendo assim,
o que nelas parece realmente um impasse de necessidades contraditórias se
resolve numa fotossíntese final.
5
Um olhar capaz de discernimento não se satisfaz com a impressão de
repouso, mesmo que ele seja o de uma simples planta do deserto. Não há nada
mais parado, na verdade, do que um cactus mexicano. Mas é evidente que essa
insensibilidade, tantas vezes confundida com desligamento do mundo, não
passa de uma miragem: basta ver que seu teor intratável se deve justamente à
existência de espinhos apontados para fora.
Esse modo de entender o cruzamento de imobilidade e estado de alerta
merecia ser mais explorado. Pois o que vale para um fenômeno restrito pode
não só abarcar um jardim inteiro como também desvendar os avessos de uma
paisagem. Certamente aqui têm que ser tomadas as cautelas necessárias para
desarmar o engano da extrapolação. A dificuldade costuma nascer, como se
sabe, de expectativas tão mais abrangentes quanto menos elaboradas elas são
– por exemplo, as que envolvem a relação factual entre o jardim e o jogo da
aparência. Não seria inadequado insistir que neste caso se trata de uma relação
complementar com elementos miméticos. O modo de articulação dos últimos
foi referido atrás, e nessa medida dispensa repetição. O importante no
momento é perceber que a complementaridade de um jardim de fato o
transforma em contradição de algo a que ele só alude enquanto manifestação
autônoma. Isso quer dizer que aqui se desdobra o laço entre a planta individual
78

e sua estufa, ou entre ambas e o cortejo de coisas que lhes dão consistência –
casa, cidade, país – o que as faz habitar um âmbito que a rigor não é o seu.
Talvez essa circunstância explique a tendência dessas plantas a dizerem
alguma coisa que existe mas não tem nome certo e que por isso aceita outro
totalmente provisório (CARONE, 1979, p. 121-131).

Se no conto “As marcas do real” a formalidade do discurso acadêmico visa a fazer o


narrador parecer neutro em relação ao objeto, enquanto devassa a sua biografia, aqui há uma
exacerbação desse discurso, que se torna prolixo e desempenha-se como análise científica que
pretende não só observar todos os fenômenos do jardim como “enquadrá-los” em um paradigma
teórico. Mas, ao fazê-lo, estabelece relações ajustadas às problemáticas humanas. Isso fica mais
patente nos dois blocos finais, 4 e 5. O narrador afirma, considerando as “necessidades
concretas” do jardim (CARONE, 1979, p. 128), que “não é raro ver o setor operário dos vasos
vestir a carranca das usinas, ou a terra do canteiros morder nos seus túneis uma fúria enrustida
de motores” (CARONE, 1979, p. 128).
O narrador assume-se como uma forma híbrida de observador meticuloso de fenômenos
naturais, próprio das ciências duras, e de cientista social, revelando, ali, as formulações teóricas
que mobilizaria na descrição e compreensão da dinâmica das sociedades humanas. Vejamos:
“Um exemplo clássico da visão áurea que envolve o dia-a-dia das plantas é a dialética de luz e
sombra na economia de avencas e samambaias” (CARONE, 1979, p. 129). Logo depois, afirma
que o vínculo das plantas com a umidade “se explica em grande parte pela tradição” (CARONE,
1979, p. 129) e conclui dizendo que aquilo que parece ser um impasse de “necessidades
contraditórias” nas plantas “se resolve numa fotossíntese final” (CARONE, 1979, p. 129).
É um narrador, então, que transforma a visita a um jardim de inverno na formulação de
um problema a ser desenvolvido em tese acadêmica. É como se ele não consentisse a si mesmo
a experiência singela de entrar, observar e sair. Há, nisso, um movimento repleto de auto-ironia.
O discurso consagra uma retórica que acaba se revelando estéril e incompatível com a
experiência, não só porque o jardim poderia ser apenas visitado – e não dissecado –, mas
sobretudo porque esse esforço parece ser inútil. No trecho a seguir essa construção retórica fica
evidente:
A dificuldade costuma nascer, como se sabe, de expectativas tão mais
abrangentes quanto menos elaboradas elas são – por exemplo, as que
envolvem a relação factual entre o jardim e o jogo da aparência. Não seria
inadequado insistir que neste caso se trata de uma relação complementar com
elementos miméticos. O modo de articulação dos últimos foi referido atrás, e
nessa medida dispensa repetição. O importante no momento é perceber que a
complementaridade de um jardim de fato o transforma em contradição de algo
a que ele só alude enquanto manifestação autônoma (CARONE, 1979, p. 130).
79

Há aí uma comicidade que embute uma crítica à retórica vazia, à primeira vista dirigida
aos textos acadêmicos, pois é o que o título sugere. Mas, se atentamos para as temáticas
presentes nesses contos, detectamos manifestações da violência com várias formas e matizes,
podendo estar associada ao sentimento de estagnação, de impossibilidade de atuar sobre o
próprio mundo circundante, dando origem a uma espécie de conformismo, como é o caso de
“As faces do inimigo”; “Fendas” e “A força do hábito”; à percepção da ameaça que paira no ar
e pode, inclusive, dar forma efetiva a um cenário de morte, como em “Choro de campanha” e
“Dias melhores”; às relações pessoais e afetivas marcadas pela incomunicabilidade, pela
submissão e dependência do outro, como em “Aos pés de Matilda”. No caso de “Utopia do
jardim de inverno por um doutor em letras”, o discurso que diz sem nada dizer é também uma
modalidade de violência, pois subtrai da expressão toda forma de criatividade e leveza,
negando-se até mesmo como ato criador. Não é de espantar que esse conto esteja no livro As
marcas do real, de todos o mais incisivo quanto a trazer para a linguagem a crítica aos
cerceamentos à liberdade de expressão, ao livre pensamento e à autonomia do indivíduo.
A sombra nesses textos de uma mão forte que proíbe, vigia e pune extrapola os temas:
está na própria dicção do escritor, nos momentos, como vimos, em que uma escrita proposta
como literária imprime na sua própria matéria uma contenção obsessiva da poeticidade, de tudo
o que consagrou o literário como tal. Ainda que o estilo de Carone tenha se permitido pouco a
pouco a fruição do texto e estendido esse direito ao leitor, a sua dicção nunca se converteu
plenamente à ideia de um ato criador que captura o leitor da experiência com o real e o leva
para um deslocamento espaçotemporal, a uma evasão necessária. O seu texto está sempre
ancorado no aqui e agora, mesmo quando a matéria se assenta em um relato memorialístico,
como em Resumo de Ana. O narrador não se permite evasões e devaneios. Tudo isso ostenta
tantos vestígios de elaboração, de depuração da forma, que não há margem alguma para se
supor que poderia ser acidental, inconsciente, algo não posto a si mesmo como balizas estética,
moral e política.

RECATO

Desde que decidi não me sentar mais, a simples presença de uma


cadeira me transtorna. Acho natural que seja assim, pois mesmo que não
queira vejo-me instalado nela. Isto é suficiente para que meu tronco estremeça
e as contorções se irradiem para o resto do corpo. Embora eu continue lúcido,
o desgaste é inevitável: durante horas ouço o assento ranger embaixo de mim.
Nessas ocasiões meu impulso é gritar, mas por mais que me esforce o grito
não sai – como se tudo fosse um pesadelo.
80

A verdade porém é que permaneço atento aos meus movimentos e a


cada detalhe do móvel. Constato que no conjunto ele lembra uma matrona que
o espaldar ereto a todo instante desmente. Além do que os braços de metal
contrastam com a imagem de um colo. Desorientado por esses estímulos
contraditórios eu me entrego simultaneamente à passividade e à revolta. Como
o resultado é sempre nulo, a inércia acaba me dominando; ao me levantar estou
esgotado.
É claro que diante do desconforto resolvi me livrar das cadeiras que
posso. Por radical que pareça, a solução é a única adequada: ela me poupa
energia para outras atividades. Mesmo o hábito de ficar em pé ou deitado não
me custa muito – com a vantagem secundária de que meu sistema digestivo
melhorou. Quanto às intransigências que sou obrigado a enfrentar, já não as
levo em conta: eu mesmo vivo todos os dias a dificuldade de me pôr no lugar
dos outros (CARONE, 1980, p. 13-14).

Como em “As faces do inimigo” e “Ponto de vista”, há, aqui, uma capitulação do
indivíduo a uma realidade que o limita, seja enclausurando-o ao corpo cuja satisfação dos
desejos foi negada, seja restringindo-o a um embate surdo e estéril com objetos ao seu redor.
A interdição do desejo e a autocensura tornam-se um hábito, parte da rotina do indivíduo. A
construção imaginária, a cadeira como evocação do corpo feminino, portanto sensualizada,
dissipa-se por completo na rigidez do real, onde não há espaço para o sonho e a evasão. O desejo
reprimido se traduz em inação, “a inércia acaba me dominando; ao me levantar estou esgotado”
(CARONE, 1980, p. 14).

PONTO DE VISTA

1
Faz anos que passo os dias agachado embaixo da mesa. Evidentemente
a posição é incômoda para quem trabalha: ainda hoje sinto uma dor aguda no
meio das costas. Isso não impede que eu me adapte ao desconforto; pelo
contrário, o processo de ajustamento sempre despertou em mim energias
inusitadas. Tanto é assim que houve épocas em que a dor só se manifestava
nas horas de repouso. É verdade que me perseguia de perto: se o meu
desempenho diminuía ela atacava de novo. Em vista disso era previsível que
eu me esforçasse ao máximo: a providência me assegurava uma jornada
tranqüila e o aumento da produtividade.
2
Pode parecer estranho que alguém funcione agachado. No meu caso
porém a postura era indicada, uma vez que me protegia das distrações usuais.
Como se sabe, elas interferem numa tarefa que precisa de fluência. Assim é
que o ruído de um sofá na sala vizinha ou a presença de um raio de sol no
teclado podem desviar um escriturário. Ele se deixa embalar por apetites que
nada têm a ver com as fronteiras do seu ofício. Por causa disso não é raro
surpreender um chefe de seção de olhos espetados na janela ou um office-boy
apalpando o fundo do bolso: na certa estão à procura de alguma novidade. O
que nisto tem o ar de coisa permitida não passa de ilusão, pois no conjunto
esses comportamentos refletem desprezo pelo real. Noutras palavras, a
81

tendência ao sonho tem a carga nefasta de um protesto. Aceitá-la é dispensar


os atos necessários à manutenção do contínuo social. Talvez por isso ele
suprima a digressão e seus derivados à medida que se constitui.
3
Ao contrário do que se supõe, trabalhar agachado compensa muito mais
do que molesta. Já me referi ao incremento da produção ligado à dor nas
costas, mas isso não basta. É preciso acrescentar que as pontadas incitam à
integração dos objetos. Creio que o fato se deve à redução do ângulo visual
por parte do sujeito. Para ser mais explícito, a posição forçada da cabeça e do
pescoço leva a um aprimoramento do contato com o mundo. Este se faz mais
rigoroso à proporção que seu tamanho decresce, possibilitando a percepção
ideal de que olha. Nesse sentido não admira que os clips caídos no assoalho
emitam reflexos tanto mais nítidos quanto mais numerosos eles são. Acresce
que a teia de raios metálicos encontra na parte interna da mesa a tela adequada
às suas projeções. Embora o desfrute dos desenhos coincida com um descaso
transitório pelos números, não se pode negar que eles estimulam um apego à
matéria industrial – de tal maneira que no jogo silencioso confluem as esferas
do prazer e do trabalho.
4
O que no caso é verdadeiro para os objetos isolados adquire
dramaticidade naqueles que aderem às pessoas. Exemplo disso é o fascínio
que as barras das calças de um inspetor qualificado exercem sobre a mente de
quem está agachado. De fato há um nível em que elas deixam de ser meras
peças de vestuário para encarnarem as dobras do poder. Quem as observa de
perto pode entender o que estou dizendo. Pois é evidente que das fímbrias à
costura uma aura as envolve como um facho solitário.
5
Se este fenômeno é válido para as calças, tanto mais para um par de
sapatos. Em primeiro lugar porque eles aparecem inteiros – o que não ocorre
com uma roupa vista de baixo. Em segundo porque a textura do couro adere
sem mediações à concepção do que é duro e impermeável. Além disso a
circunstância de se adornarem os sapatos com fivelas à moda antiga é um
sintoma de que eles se destacam no meio que pisam. Isso fica mais à mostra
para aqueles que os examinam a meio metro de distância. Quem os enxerga
brilhando, não pode evitar que um calafrio lhe cruze a espinha com toques
premonitórios.
6
Sem dúvida o que aconteceu há quinze dias confirma a procedência
desses pressentimentos. Lembro-me de que estava agachado no meio da tarde
e concluía um relatório sobre gastos orçamentários. Apesar de nunca ter
captado o conteúdo dessas demonstrações – elas são elaboradas por outros que
trabalham debaixo de mesas como eu – os gráficos têm uma singeleza que
comove. Pode ser que eles não interessem aos meus colegas de repartição –
aos quais, de resto, mal cumprimento. Sou tão subalterno quanto eles, mas a
antigüidade no posto me confere uma distinção que lhes falta. Em geral são
jovens dissipados e distraídos que ainda não reconheceram o alcance da
própria posição. Seja como for, naquela tarde dei o melhor de mim mesmo,
superando meus índices de aplicação. Certamente o motivo básico do
empenho era a incidência da pressão nas vértebras; mas não posso esconder
que minha dedicação também derivava da importância atribuída àquela
incumbência. O rádio de pilha que trago no bolso falava de um anúncio
iminente da contabilidade pública: por si só ela era capaz de provocar atritos
partidários. A princípio não liguei os fatos, mas ao me aprofundar nos
pormenores percebi que tinha nas mãos a peça final do documento. Movido
pela descoberta concentrei nela toda a minha atenção, acabando por pinçar na
82

trama dos dados vícios palpáveis. No fim do expediente coloquei os papéis


corrigidos na cesta que fica diante da minha testa e puxei o cordão que a
transporta pelo ar até a mesa da chefia. Esperei com serenidade o
pronunciamento superior, imaginando palavras de estímulo a um trabalho
diligente. Penso que esse tipo de devaneio seja comum à média dos
funcionários – o que não lhe retira a pecha do supérfluo. Acontece que não
conheço o recurso mais duradouro para preencher as horas vagas de quem vive
agachado, uma vez que nessas pessoas a consciência do próprio corpo é quase
intolerável. Tenho ainda presente que lutei para conter o lance de dispersão,
mas a todo instante me pilhava polindo uma medalha na gola do paletó. Como
ele anda sempre amassado, a fantasia compensava o mal-estar. Foi
mergulhado nela que levei o pontapé na base do tronco. O impacto foi tão
firme que me estirei na sala; ainda atordoado percorri-a com os olhos pela
primeira vez: fiquei surpreso com tanto espaço. Na realidade eu estava
confinado a contornos que iam do tampo da mesa às paredes laterais e o
assoalho. Sendo assim era plausível que do meu cubículo eu não suspeitasse
da amplidão lá fora. Entretido nesse raciocínio esqueci as contrações
musculares – sem me perguntar, inclusive, porque estava estendido no chão.
Só me dei conta do foco dolorido e do dorso deitado quando ouvi a voz que
me descompunha; pode ser que me engane, mas a impressão é de que ela
chegava do alto.
7
Não sou suscetível aos delírios persecutórios, por isso acato com
naturalidade o fato de estar sendo desfuncionalizado. Realmente há mais de
uma semana não desce à minha frente a cesta de papéis que alimenta minha
atividade. Isso me acabrunha: com mágoa nos olhos verifico que meus colegas
continuam debaixo de suas mesas cercados de petições. Às vezes julgo que a
má distribuição diz respeito à rapidez com que me desincumbo dos meus
afazeres ou à possibilidade de ter diminuído o fluxo burocrático. É possível
também que o prêmio com que fantasiei tenha vindo na forma de suspensão
das minhas tarefas. É claro que nada disso me consola, visto que a falta do que
fazer só serve para agravar meu padecimento. Basta dizer que fico gemendo o
tempo todo, acossado pelas pontadas. Elas têm se irradiado para a nuca e para
os lados com absoluta impiedade. Para não ter de gritar escuto música de
câmara sempre que posso: os tons menores me acalmam; além do que distingo
nos acordes a beleza das cifras oficiais. O mais curioso é que em certas horas
chego a computar as notas musicais como quem realiza operações aritméticas.
Naturalmente continuo no mesmo espaço apertado onde as colunas de madeira
suportam a minha angústia. A diferença porém é que a dor no lombo agora
modela meu ócio como um ofício: a tanto conduz a auto-complacência de um
corpo acuado (CARONE, 1980, p. 17-25).

“Ponto de vista” é a alegoria plena do indivíduo oprimido pelo trabalho burocrático e


hierarquizado, a cujas regras deve se submeter a ponto de naturalizá-las. A burocracia em
questão é inútil como trabalho de Sísifo, o que fica patente no trecho abaixo:

Lembro-me de que estava agachado no meio da tarde e concluía um


relatório sobre gastos orçamentários. Apesar de nunca ter captado o conteúdo
dessas demonstrações – elas são elaboradas por outros que trabalham debaixo
de mesas como eu – os gráficos têm uma singeleza que comove (CARONE,
1980, p. 21-22).
83

Expõe-se ao ridículo o trabalho que, para ter legitimidade, precisa ser impenetrável:
números e discursos prolixos embrutecem e escravizam. O “sistema” impõe a assimilação da
violência, que passa, assim, a fazer parte do cotidiano. As negativas ao prazer, os cerceamentos
moralistas de toda ordem, levam os indivíduos à prática da autocensura, forma mais sofisticada
de controle e repressão por parte do Estado autoritário: “nessas pessoas a consciência do próprio
corpo é quase intolerável” (CARONE, 1980, p. 23). Novamente, a negação do desejo e de toda
e qualquer forma de devaneio, vistos como perigosos (subversivos) e contraproducentes.

ENCONTRO

Quando pisei no viaduto senti que a noite tinha chegado. Pois embora
eu ainda guardasse na memória a imagem de um dia cinzento, era evidente
que as nuvens tinham desaparecido atrás de mim. Talvez por isso o cenário à
minha frente parecesse tão nítido: os arranha-céus mantinham as luzes acesas
e os faróis se multiplicavam nas pistas do vale. A diferença é que eu não
escutava nem de longe o ruído das buzinas e os pneus rodavam sem barulho
pelo trançado de ruas abaixo. Suponho que mesmo os anúncios de neon se
mexiam no alto com gestos policiados.
Foi nessa atmosfera recuada que o relógio do mosteiro começou a bater;
mas o som fora de lugar aderiu logo aos reflexos do mercúrio no chão.
Entretido com o espetáculo não contei as badaladas; só mais tarde verifiquei
que eram seis.
Apesar da hora o viaduto estava vazio – a meu lado a amurada de ferro
parecia morta. Cheguei a tocá-la com a ponta dos dedos prevendo que as
hastes não acusavam a menor vibração. Certamente o motivo era o mês de
junho: a temperatura tinha baixado e as pessoas não se arriscavam a sair de
casa nos fins-de-semana; as que eu vi de perto passaram encapotadas.
Inseguro por não estar agasalhado ergui automaticamente a gola do
paletó; no meio do viaduto o vento levantava para o alto algumas folhas de
jornal. Ao esfregar a nuca nas fibras do tecido senti falta do velho cachecol de
lã. Há muito tempo não me lembrava dele, nem sabia onde o tinha
abandonado; entretanto a cor dos fios e a qualidade do contato com a pele me
despertavam para uma perda intolerável. A sensação foi aguda ao ponto de
enxergá-lo a poucos metros de mim.
A princípio fiquei parado na expectativa de que a visão se desfizesse;
sou sensível a coincidências desse tipo, porisso não me entrego à primeira que
aparece. O fato porém é que os minutos iam passando – já soava o primeiro
quarto de hora no mosteiro – e o cachecol não se dissipava diante dos meus
olhos. Eu recompunha lentamente seus detalhes; as dobras e a costura tinham
os mesmos relevos e era possível ouvir o estalo magnético da malha nas
épocas de muito frio: sem dúvida ele estava ali.
Pressionado pela surpresa não me dei conta de que também as costas e
o pescoço se moviam à minha frente; na verdade se dirigiam ao espaço aberto
em que o viaduto dominava o vale. Agora o couro dos sapatos ecoava na
estrutura de metal e a agitação lá de baixo subia à altura do parapeito. Sem me
virar para os lados eu recebia a corrente de ar na barra das calças; breve ela
chegaria aos meus cabelos. À minha esquerda balançavam as roupas
estendidas nas janelas dos apartamentos; os escritórios pareciam desertos nos
andares iluminados.
84

Provavelmente por instinto o homem à frente andava mais rápido; eu o


seguia com os olhos grudados no cachecol. Quando alcançamos o ponto em
que é iminente a vertigem no viaduto, senti que havia chegado o momento da
decisão: saltei sobre os ombros que fugiam e rolei na calçada segurando o
cachecol entre os dedos; o baque do corpo se transmitiu às vigas de ferro e
ficou ressoando em cima das pedras da praça. Foi então que o rosto se voltou
para mim e me fitou com interesse do fundo das pupilas; custei a identificá-
lo, pois estava quase sem fôlego e constrangido a olhar do chão contra a luz.
Mas a confusão durou pouco, porque nos traços remoçados eu reconheci o
sorriso que me acompanhou no primeiro contato com esta cidade (CARONE,
1980, p. 39-42).

Retoma-se o tema do duplo, mas não nos termos clássicos nos quais a literatura o fez
célebre, e sim em uma mão dupla da composição que ressalta o ambiente social opressivo e a
sua incidência sobre o narrador. Ao aludir a “gestos policiados” o narrador parece construir em
linguagem figurada a ideia de que tudo é policiado. É sugestiva a situação na qual o narrador
está só sobre um viaduto, mas logo abaixo há todo o movimento próprio do trânsito da
metrópole. A friagem e a altura intimidam e parecem realçar o sentimento de solidão. Eis que
surge diante do si o cachecol, uma peça do seu guarda-roupa que evoca, evidentemente, o
passado e outras experiências, talvez amenas. Quando avança sobre o outro com o intuito de
tomar de volta para si o cachecol, ocorre a invariável revelação do duplo: tão somente o seu eu
pretérito, mas estampando a alegria do momento da sua chegada à cidade, quando ela ainda
propiciava uma expectativa positiva, sem ter sido corroída, ainda, pelas agruras que o narrador
teve de vivenciar. O encontro é com um duplo de confrontação: o seu próprio passado lança
uma crítica cáustica sobre o presente. É talvez o conto dessa fase da sua produção no qual
Carone mais investiu em termos de uma expressão inequivocamente literária. Desde o momento
em que o narrador inicia a sua incursão no viaduto até o desfecho, tudo conspira para que ali a
vida pareça tomada pelos tormentos do espírito humano, algo que o mundo da ficção apreende
melhor do que o campo estrito do pensamento analítico.

PASSAGEM DE ANO

1
Ninguém duvida que sua morte esteja ligada à passagem de ano; caso
contrário seria difícil supor que ele abandonasse a casa de um modo tão
radical. Pois a verdade é que sobre a mesa estavam dispostos os trechos de um
trabalho começado e uma agenda de compromissos pessoais. Além do mais a
limpeza das salas era estrita e a ordem do quarto maior que a habitual.
Evidentemente nada disso seria um indício relevante se não fosse o
testemunho de que sua vida continuava regrada e de que ele planejava os dias
com rigor. Fica assim prejudicada a hipótese de que ao fechar a porta e tomar
o elevador ele já soubesse que não ia mais voltar.
85

2
A questão é que a noite estava única e o céu manchado pelos luminosos
comerciais: talvez o teto baixo e a luz artificial o incomodassem. Não que a
sua consciência repudiasse o espaço reduzido; o que o feria era a proximidade
das coisas a despeito do seu ar inalcançável. Tanto é assim que a multidão e
as vitrinas deslizavam desgarradas como uma vertigem sem causa.
Certamente restava a possibilidade de evitar os corpos em sentido contrário e
os metais ao alcance do seu braço; seria ingênuo porém achar que recursos
como esse agora bastassem. Não surpreende portanto que escolhesse o meio
da praça para encarar o relógio da loja: quem sabe dessa forma pudesse ainda
fixar o que acontecia.
3
Não consta que a expectativa se cumpriu: quadrado e silencioso o
relógio movia os ponteiros com a regularidade esperada. Foi a partir daí que
ele provavelmente girou nos calcanhares e viu o teatro, o prédio ao lado e os
arranha-céus do vale. Imaginava talvez que o conjunto oferecesse algum tipo
de contato ou que dele brotasse uma nova noção de realidade. O fato porém é
que o milagre não veio e ele ficou parado exatamente no mesmo lugar.

4
Ao que parece foram os sinos e as buzinas que o fizeram dar meia volta
e examinar o viaduto. Ele permanecia nítido como nunca e nenhum
impedimento interior o constrangia a não olhar para lá. Sentiu-se então
estimulado e atravessou a rua apalpando os bolsos à procura do último cigarro.
Dizem os mais próximos que no ponto em que o vale se abre inteiramente à
vista ele parou e esfregou os dedos nas traves de metal. É possível também
que tenha acompanhado os rostos que passavam ao seu lado; mas, como não
adivinhassem neles nenhum sinal particular, subiu na amurada e saltou no
vazio com a determinação própria dos grandes momentos de euforia
CARONE, 1984, p. 23-25).

Retoma-se em parte o tom da escrita de análise que predomina no primeiro livro, mas que
neste (Dias melhores) já vai esvaecendo quase por completo: os contos tratam da solidão, da
incomunicabilidade e da violência na metrópole, e não opõem resistência à fruição da leitura,
ou a que o leitor faça as associações que desejar. Aqui, os momentos finais de um suicida são
narrados com a aridez da análise fria, distanciada. Não há aquela radicalidade de As marcas do
real, mas se prenuncia o tom lacônico e neutro com que o narrador de Resumo de Ana narra
momentos dramáticos da vida das personagens. Observemos dois trechos do conto: “a limpeza
das salas era estrita e a ordem do quarto maior que a habitual” (CARONE ,1984, p. 23); “Não
que a sua consciência repudiasse o espaço reduzido; o que o feria era a proximidade das coisas
a despeito do seu ar inalcançável” (CARONE, 1984, p. 24). O adjetivo estrita, que é de uso
passivo na linguagem coloquial mas de largo emprego nos textos formais, subtrai do enunciado
qualquer possibilidade de expressão de sentimentos como empatia ou compaixão28. Em outros

28
A literatura oferece muitos exemplos dessa compaixão do narrador com as personagens e com o que é narrado.
Citamos um deles, traço comum a alguns contos de Luigi Pirandello: a pietà (piedade) pirandelliana, aspecto muito
conhecido pela crítica especializada na obra do escritor italiano. Veja-se o conto “Il lume dell’altra casa” (“A luz
da outra casa”), de 1909. Em 3.3 estabeleceremos um paralelo entre o conto “O jogo das partes”, de Carone, e a
86

contextos se diria: não há envolvimento com o objeto. Efeito semelhante é obtido com a frase
“a despeito do seu ar inalcançável”: a formalidade é uma barreira de contenção, impedindo que
metáforas e sentimentos adentrem o discurso.

NOVELO

A casa de Ariadne é a teia onde costumo me enroscar. Não que a


sensação de ficar atado por todos os lados me agrade; pelo contrário, são raras
as vezes em que não saio de lá sufocado. A questão é que essas distrações têm
um fascínio cada vez mais difícil de dispensar. Assim é que os próprios
membros envolvidos já se adaptaram – a tal ponto que se contraem à simples
menção de que um dia posso me cansar. Talvez isso explique que
periodicamente eu pendure o training no cabide mais próximo e me prepare
para uma nova incursão nos seus domínios. Em geral eles permanecem
escuros à luz do dia, mas essa particularidade não me intimida, uma vez que
o importante é dar conta do essencial. Pois quem se vê enleado por uma trama
que a vista não capta é capaz de se apavorar e perder o senso da aventura; não
é o meu caso. Em parte porque me habituei a essa forma de desconforto, em
parte porque ela já faz parte do jogo. Nada impede, é claro, que eu sucumba
nos momentos de fraqueza; mas pressinto que Ariadne está por perto e que a
proximidade atenua o ângulo trágico da situação. O que nunca cheguei a
entender direito é por que até nessas ocasiões não a enxergo como devo.
Imagino que ela não se expõe à toa e que defende com unhas e dentes a própria
privacidade; de qualquer modo acredito que exagere a aversão às minhas
visitas. Se não fosse assim, como justificar que invoque constantemente o meu
contato? É verdade que o faz por métodos obscuros como sonhos e mensagens
cifradas; seja como for estou sempre pronto a atendê-los e a enfrentar os fios
da sua teia. O que continua em aberto é a persistência de uma relação
complicada: às vezes penso que seria menos embaraçoso habitar cômodos
iluminados e pôr o resto de lado. A dificuldade porém é que enredar-se tornou-
se de uns tempos para cá a única alternativa para o tédio de uma vida solta –
e percebo claramente que desde o início tanto eu como ela sabemos disso
(CARONE, 1984, p. 51-52).

Este conto integra uma parte do volume intitulada Masculino/Feminino, com textos cuja
temática é dedicada aos relacionamentos. Tal como este "Novelo", trata-se de contos
relativamente “suaves” em comparação aos de As marcas do real, trazendo, inclusive, a
intertextualidade com o mito de Ariadne, permitindo e desejando que o leitor estabeleça essa
relação. A Ariadne original usa seu fio de lã para guiar Teseu na fuga do labirinto e das garras
do Minotauro, em troca de uma promessa de casamento. Já a Ariadne de “Novelo” está em um
relacionamento no qual um parceiro está enleado ao outro, ambos desprovidos do tônus moral
necessário para o rompimento, embora percebam a relação como problemática. Não se
vislumbra a possibilidade da fuga.

peça Sei personaggi in cerca d’autore (Seis personagens à procura de um autor), do mesmo Pirandello, divisor
de águas na história do teatro ocidental.
87

O NATAL DO VIÚVO

à maneira de Molloy de Beckett

É tarde, a chuva bate nos vidros, ele está sentado num canto da sala.
Talvez apóie o rosto numa das mãos ou cruze as pernas mas não se percebe
nenhum movimento. A obscuridade é maior porque as cortinas estão descidas
e a luz só filtra por algumas frestas. Não é possível registrar nada com nitidez,
ele está parado ou parece parado na poltrona do canto da sala. Provavelmente
os olhos permanecem fechados e se as pálpebras se abrem a vista acusa
tonalidades de cor na quina de um móvel. Os carros passam pela rua da frente
chiando os pneus no asfalto e alguma coisa estremece na casa, um ruído de
folhas, o tinido de um cristal. Os copos estão enfileirados sobre a toalha ao
lado dos pratos e talheres e dos guardanapos dobrados com um par de asas na
penumbra. Os vidros e os metais não cintilam, as velas vermelhas dormem nos
castiçais, o mais provável é que ainda não tenham saído dos armários e da
cristaleira. Ele não fixa o olhar na mesa pois conserva a cabeça baixa ou
apoiada na mão direita, talvez na esquerda. Se olhasse não veria nada porque
lá também não há luz. Mas ele não é cego, olha para dentro e remexe, apalpa
o que vê, as imagens vão de um lado para outro, rodopiam, escondem-se atrás
da coluna de gesso e desaparecem sem deixar vestígio. O ar que ele respira é
espesso, a neblina sobe do chão, a coluna vacila, de repente desaba, os pedaços
se espalham pelo chão, sem barulho. A criada de avental está varrendo o
assoalho, a vassoura de pêlo trabalha como um autômato, a moça vira as costas
para a sala, some pela porta da copa. Ele faz um gesto de impaciência, pode
ser de dor, mergulha o rosto nas conchas das mãos e um resto de poeira branca
se agita quando os carros passam pela rua. A campainha toca, toca, o chiado
das rodas no asfalto abafa o toque remoto, ela toca outra vez, sobrevém o
silêncio. Os passos se aproximam, o salto dos sapatos bate nos tacos, a esposa
abre a porta, introduz a filha na casa com um beijo, as duas passam pela
poltrona falando em surdina, agora é possível que ele se mova no assento da
poltrona, faça menção de ir até a janela para abrir as cortinas. No centro da
sala iluminada a filha está conversando com a mãe, elas mantêm os dedos
enlaçados, o filho desce a escada em caracol e abraça as duas mulheres de
perfil idêntico. A mesa foi posta, as velas vermelhas ardem nos castiçais, a
moça de avental entra sorrindo com uma travessa nos braços. Os filhos
chegam à poltrona do canto da sala, erguem as taças, pelo meio dos dois a
mulher espia para ele, sorri, os dentes são brancos, as maçãs do rosto coradas
e da linha alva do pescoço emerge um clarão. A cera começa a derreter, não
se refaz, as figuras balançam como recortes de papelão no vento, o sino da
igreja está batendo alto e uma rajada abre as vidraças sobre a praça. As árvores
decoradas estão molhadas de chuva, os canteiros floridos, ele vê a família
abraçada junto à janela, a mulher ainda se volta para a poltrona, faz um gesto
com as mãos, insiste, insiste, ele quer dizer alguma coisa e emudece, talvez
ele chore. As lágrimas devem rolar no escuro, escorrer pelo peito, pingar no
tapete; não é exato descrever o que acontece. Pelas cortinas fechadas percebe-
se que a noite avança, ele ainda está sentado imóvel na sala do sobrado que dá
para a praça. Talvez apóie o rosto mas mãos ou cruze as pernas mas não se
nota nenhum movimento. O sino não soa, não há sinos por perto, a sombra
desliza sobre a mesa e os armários. O sobrado se destaca num halo de luz que
vem de cima e tinge as nuvens de rosa, talvez um sopro as leve logo para
88

longe. A porta lateral da casa está trancada, a campainha muda, o portão de


ferro coberto pela hera, as vidraças vazias. Ele está sentado num canto da sala,
quem sabe estique a cabeça e os braços no escuro. É tarde e a chuva bate nos
vidros. Não era tarde. Não estava chovendo (CARONE, 2007, p. 11-13).

É uma narrativa circular acerca do tema da solidão e do abandono, em diálogo intertextual


(que a epígrafe sinaliza) com o romance Molloy, de Samuel Beckett. Beckett é, certamente,
mais radical no âmbito da forma e do tema, propondo o grau zero da linguagem e da existência
humana, a condição de quase não ter como narrar a própria história e de esta história exprimir
a miséria e a degradação extremas da personagem-título.
No conto, a visita da mulher e dos filhos é imaginária, pois tem elementos de clichê
familiar. A cera derrete, denunciando que há uma realidade subjacente à cena. Tudo está imóvel
e entregue à ação do tempo: um tempo que é espera e desesperança. É um dos 11 contos iniciais
de Por trás dos vidros que são mais recentes, não foram incluídos nos volumes anteriores.
Vários contos dos três livros anteriores foram selecionados para compor o volume Por trás dos
vidros. “O natal do viúvo” e os outros dez contos da sua produção mais recente ostentam como
característica comum um percurso introspectivo: os demônios não estão no mundo lá fora –
autoritarismo, violência, burocracia, etc., mas no interior do próprio indivíduo.

VISITA

Saio pela calçada escura e chego à esquina da ladeira central. Ônibus e


caminhões levantam o pó de asfalto que fere a vista e ao desviar a cabeça vejo
esculpido no prédio ao lado o ano do meu nascimento. Os números recortam
um ângulo da fachada e as lascas de mica brilham como uma ironia diante dos
faróis. Corto a rua em direção ao largo e paro em frente ao teatro que agora
serve à prefeitura: minha avó está subindo os degraus de entrada com o casaco
pendurado no braço. O primeiro impulso é chamá-la mas ela vira o rosto e
inclina o ombro para cochichar alguma coisa no ouvido da filha. Sem olhar
para o beco à esquerda volto-me para o fim da rua e antes de tomar a última
transversal ouço a badalada das onze no relógio da torre. A essa altura o largo
está quase deserto e pelas frestas da folhagem é possível sentir os respingos
da fonte que se ergue em silêncio e traz até a pérgola um perfume recente de
jasmim. Deixo o banco de pedra e ao endireitar o corpo avisto pelo canto dos
olhos a adolescente de vestido verde que escorrega no portão da casa e mostra
um pedaço de coxa que reluz como um peixe assustado. Estou diante do sinal
de uma alameda enfeitada de lanternas e os ônibus e caminhões levantam a
poeira preta que se deposita na pele. Decido descer e com o corpo embalado
pela inclinação passo defronte da fachada do colégio em que freiras de cinza
educaram minha irmã de feições judias. Ela pisa sobre os paralelepípedos que
cintilam ao sol e sorri com a ponta dos lábios enquanto leva a mão à boina
vermelha que contrasta com a blusa de cambraia branca. Termina ali a ruela
asfaltada que dá para o vulto azul da catedral ao fundo: lá passei os primeiros
anos entre tios e avós e mais tarde conheci como uma lembrança viva de
amêndoas na garganta o peso do trabalho obrigatório. Quase sem perceber
entro no cruzamento ainda dominado pela cúpula de mármore rosa construída
89

por um comendador. A estação de trem está próxima e para alcançá-la escolho


o caminho de cascalho entre as mangueiras: os galhos formam arcadas baixas
que estreitam a sombra e por alguns minutos só ouço meus passos no escuro.
A fachada da estação está iluminada – uma aura amarela emerge do abrigo de
entrada e invade o ponto de táxi vazio. Subo a escada que agora parece menor
e passo ao hall inundado de néon. À direita e à esquerda ficam as bilheterias
esmaltadas, à frente o portão de ferro batido e no alto o balcão de madeira
sobre o qual se abrem os vitrais. Atravesso a catraca que o porteiro de boné
gira sem mover a cabeça e piso na plataforma de cimento. Meus passos ecoam
sob a armação de aço quando me aproximo do leito da ferrovia. Os trilhos
refletem os holofotes da locomotiva que está chegando e os apitos rasgam uma
nuvem de vapor: meu pai salta do vagão de passageiros com uma pasta de
couro na mão, levanto o braço para o aceno e sou arrastado pela massa dos
que querem embarcar e desembarcar. Estou só no meio da plataforma e ando
até a passarela que dá acesso ao outro lado por cima dos fios de alta-tensão.
Apoiado no corrimão de metal escuto os ruídos soarem no teto sustentado
pelos postes de concreto plantados nas duas margens da estação. Procuro
enxergar pela treliça suja de fuligem o trecho do rio que segue a linha de trem
na curva da estrada. Mas a batida das passadas atrai meu olhar para baixo e
vejo as colunas de operários marchando pela plataforma esquerda. Eles
vestem o uniforme escuro da ferrovia e suas faces estão pálidas e marcadas
pelo desgaste. Os apitos regulam o ritmo das solas pesadas e assim que a
última fileira ultrapassa o portão de saída o molho de chaves retine nas grades.
Desço até a catraca e pelo hall apagado chego à entrada da estação. O pátio da
frente continua vazio e o vento levanta as folhas de jornal espalhadas pelo
chão. Movido pelo ar úmido atravesso a rua e dobro a ladeira que pega impulso
na altura da casa colonial. A porta e as janelas estão fechadas e me surpreende
a grama que cresce reluzente à beira da calçada. Acompanhando a linha de
paralelepípedos debaixo do asfalto completo a subida em direção à ruela que
abre para a catedral ao fundo. A pista molhada pela chuva irradia as luzes de
mercúrio e a ponta dos postes já some na neblina. Atendendo a um apelo surdo
estaco na esquina do beco por onde aparece o teatro do outro lado e na frente
de uma vitrine acesa levanto a cabeça: minha mãe está na janela do sobrado e
seu rosto brilha entre as cortinas de renda. É meia noite, o sino da catedral está
batendo e nesse momento eu encosto as mãos na parede da casa onde nasci
(CARONE, 2007, p. 18-21).

Este conto ou inspirou uma passagem do romance Resumo de Ana ou dele foi extraído:
ambos têm como cenário a cidade natal de Modesto Carone, Sorocaba. Embora a cidade não
esteja nominada no conto, os logradouros, prédios e instituições são evidentemente
sorocabanos: o colégio de freiras é o Santa Escolástica, que existe até hoje; a estação ferroviária
é a da Estrada de Ferro Sorocabana; o rio próximo é o Sorocaba. A avó que sobe a escadaria do
teatro é Ana Godoy de Almeida, depois Ana Baldochi, personagem do romance. Assim como
o narrador de Resumo de Ana faz com a mãe, Lazinha, levando-a para visitar pontos da cidade
com o intuito de avivar a sua memória, o narrador de “Visita” vai até esses lugares que
marcaram a sua infância e juventude. A diferença é que a visita se torna uma viagem no tempo,
estabelecendo sincronia entre a fábula e a história, entre o presente do narrador e o passado que
ele evoca e transpõe para o aqui e agora. Embora o discurso seja austero tanto no conto como
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no romance, a visita do conto é um percurso sentimental que se origina do reencontro com os


lugares físicos e da memória mobilizada pelo narrador, inclusive com a presença espectral e
afetiva dos seus familiares.
Vejamos, a seguir, o trecho de Resumo de Ana que dialoga com “Visita”. Atente-se para
o fato de a descrição do conto ser mais pormenorizada e de a narração estar a cargo de um
narrador-personagem. A estação e o seu entorno, visitados no presente, mobilizam no narrador
um significado que está no seu passado: trata-se de uma visita sentimental e intimista. No trecho
do romance, ainda que a estação esteja sendo descrita no presente da enunciação, seu diálogo é
tanto com o passado de Ciro, especificamente, quanto com o passado tal como as várias
gerações o vivenciam, e tal como a história da cidade de Sorocaba o captura.

A entrada principal da estação fica sob um abrigo de vidro art nouveau


e na fachada branca do prédio consta o ano de 1875. O portão é de ferro batido
e no saguão que agora parece menor estão os guichês de madeira esmaltada
das passagens de primeira e segunda classe. Para chegar à plataforma é preciso
atravessar a catraca junto à qual um funcionário de uniforme azul e boné com
as insígnias da ferrovia confere os bilhetes e sem erguer os olhos aponta para
a sala de espera ao lado. No cômodo escuro servido por bancos descascados
há pouca gente porque a maioria dos trens transporta carga e já não leva mais
tantos passageiros para São Paulo. A plataforma de cimento tem uma
cantoneira de aço que vibra assim que os vagões surgem num ponto visível do
horizonte e até hoje os passos ecoam sob a velha armação de ferro. Cinqüenta
metros à direita começa a escada de caibros, que emenda na passarela
metálica, e pela grade de varais cobertos de fuligem é possível ver os fios de
alta-tensão e acompanhar as linhas de trem sobre os dormentes assentados na
esteira de cascalho. No meio e nas extremidades da plataforma as placas
encardidas indicam o nome da cidade e no momento em que as composições
de carga passam a estação inteira estremece, para retomar o silêncio cortado
ao longe pela estridência de uma serra. O ruído chega à cobertura vindo de
três galpões, erguidos a pouca distância para as obras de manutenção da
ferrovia. A sigla EFS, em relevo nas paredes laterais dos prédios recortados
como castelos de papelão, tem o desenho nítido de dragonas que contrasta
com o céu de chumbo e o trabalho dos operários que há mais de meio século
se revezam durante os sete dias da semana (CARONE, 1998, p. 69-70).

POR TRÁS DOS VIDROS

Pelas vidraças da casa de chá posso ver a fachada maciça da estação de


ferro. As cúpulas de cobre estão fora de foco porque a temperatura baixou e o
nevoeiro gelado começou a descer. A praça é oval, o pavimento de pedra
brilha sob um reflexo instável e o relógio da estação está marcando quatro e
meia. É inevitável que daqui a pouco ele soe claro como uma caixa de música
holandesa. Não distingo os ponteiros metálicos depois que uma estria de névoa
fica flutuando em frente ao mostrador. Estamos os dois sentados numa mesa
vermelha coberta por uma toalha de renda e terminamos de beber o chá. Acho
o lugar confortável só de observar o tempo lá fora e quando vou falar com ela
sobre isso noto que a névoa também esconde sua cabeça. Ela não tirou o
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casaco azul de gola de pele e parece encolhida de frio a dois passos de uma
lareira acesa. Passo a mão direita pelo rosto pálido e desço os dedos até o
queixo fino. Ela agradece com um movimento muito leve e eu cubro sua mão
esquerda sobre a toalha. Lembro então que temos apenas meia hora para
embarcar. A viagem, que devia durar duas horas, chegou a quatro e resta ainda
esse intervalo de minutos para tomar o trem de volta. A verdade é que ela
havia consultado antes os mapas e se enganado completamente em relação à
cidade. Eu estava surpreso com o erro pois nada assim acontecera antes: sua
acuidade nos detalhes sempre tinha sido superior à minha em vinte e cinco
anos de convívio. Em vez de estarmos andando em Amsterdã acabávamos de
beber uma xícara de chá numa casa envidraçada que dá para a estação de trem
de Rotterdã. O ímpeto de reclamar recuou logo porque uma angústia fina,
vinda não sei de onde, cortava a pele a contrapelo. Ela tinha sofrido dores de
cabeça duas semanas inteiras e o passeio pretendia ser um alívio planejado
para os dois – assim como para alguém que se levanta da cama sem febre e
amarra os sapatos para enfrentar um dia comum. Eu havia desviado o olhar da
estação e examinado seu rosto e as mãos descobertas. Tudo imóvel como a
carga de neve cor de cinza que no centro da praça se preparava para desabar
no chão. Toquei os dedos brancos, esfreguei as palmas e ela reagiu sem o
sorriso e a vivacidade que reasseguravam seu afeto. As pupilas pareciam de
estanho, o busto crispado debaixo do casaco de lã, ela não olhava para mim
mas para um ponto do espelho ou quem sabe para parte alguma. A inquietação
era maior à medida que o relógio se movia na neblina e ela, sentada e quase
inerte, abria e fechava as pálpebras como se fossem asas pesadas. Nítido como
um facho de luz passou por mim o gesto com que o médico examinou o fundo
dos seus olhos e disse que estava tudo bem. O analgésico rendeu por três dias
mas a dor voltou: no trem notei que ela revirava a bolsa em busca de alguma
pílula. Agora eu a encarava com firmeza e agarrava seu braço para que ela se
erguesse da cadeira. Por uma fração de segundo percebi que ela me fitava
lúcida e desperta – um lapso de tempo em estado puro. Mas o brilho
desapareceu e eu senti a força com que a flor de sangue plantada no seu crânio
crescia em todas as direções. Ela não estava ali comigo, na casa de chá de
Rotterdã ou Amsterdã, mas em outro lugar, que se confundia com as nuvens
de gelo sobre a praça e o último apito de trem dentro da gare (CARONE, 2007,
p. 22-24).

Como em “Visita”, temos aqui um relato biográfico, muito distante, no tema e na forma,
dos contos dos anos 70 e 80; relativamente distante, também, de Resumo de Ana: nos contos
anteriores, o narrador não exprime os sentimentos advindos da sua experiência com o mundo,
mas o assombro de quem, por intervenção de uma força externa, é impedido de viver
plenamente e de exprimir o que sente. Nos primeiros contos, a experiência é cerebral,
intencionalmente artificializada pelo formalismo e pelas figuras de linguagem. Já em “Por trás
dos vidros”, o narrador se permite a pungência de uma situação na qual se dá conta de que
perderia a companheira em breve, de que já não seria possível resistir à doença. A situação
remete à morte da primeira mulher de Modesto Carone, a psicanalista Marilene Carone, que
faleceu na Europa em 1987, aos 45 anos, acometida de um tumor cerebral. Há a introjeção de
um quadro emotivo que pereniza o exato momento em que o narrador adquire consciência da
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enfermidade da mulher. O discurso exprime esse envolvimento do narrador com a cena


recorrendo a uma adjetivação intensa, diferentemente do que ocorre na maioria dos contos de
Carone. Diferente também, como veremos, de Resumo de Ana, no qual até situações dolorosas
são narradas em tom protocolar.

CAFÉ DAS FLORES

Estacionei o carro junto à calçada em frente ao Café das Flores e vi que


ela estava esperando em pé debaixo do toldo de lona. O rosto era o mesmo
daquele mês de outubro crespo e frio como as rugas que desciam em cortes de
navalha até a boca franzida num dos lados. Para ganhar tempo pisei no
acelerador antes de desligar a chave de contato, subi os vidros laterais e ao pôr
o pé na pista examinei as poças d’água nas fendas do asfalto. Subi na calçada
medindo os passos e só enfrentei o olhar dela depois de ajustar o boné azul-
marinho que combina com o meu suéter de lã. Seu rosto continuava empinado
sobre duas estacas e a bolsa de couro a tiracolo balançava na altura dos quadris
amassados nas calças jeans. À primeira vista o que mais chamava a atenção
eram os olhos de borracha refletindo nas órbitas o néon vermelho do Café.
Antes de cumprimenta-la apontei para a mesa vazia perto de uma janela de
vidro que abre para o movimento da rua. Ela entendeu o sinal mas se dirigiu a
outra mesa no canto da sala; desinteressado em argumentar, segui-a e sentei-
me à sua frente na cadeira de ferro batido. É possível que tenha passado muito
tempo sem que alguém dissesse alguma coisa – o garçom de peito engomado
quebrou o silêncio trazendo os cardápios. Ela desviou a mira da minha barba
escanhoada e pediu um expresso curto; animado pela idéia escolhi um café
carioca com espuma de leite. Não há dúvida de que estávamos concentrados,
pois ficamos segurando o cardápio até as xícaras pousarem no tampo de
mármore junto com o açucareiro. Tenho a impressão de que foi ela quem
começou a falar porque fui o primeiro a sentir as pálpebras picadas pelos
espinhos que vinham dos lábios curvados em forma de arco. Passei o lenço
nos olhos convencido de que não podia perder o humor por causa de uma
ninharia. Acredito que essa inércia atiçou suas energias, uma vez que os
arrebites de aço zuniram no ar e traçaram o “x” que ia da ponta das minhas
sobrancelhas às extremidades do maxilar. Pode ser que nesse instante eu a
tenha levado a sério protegendo com o guardanapo o alvo mais vulnerável das
retinas. Ainda assim consegui vislumbrar grupos de adolescentes que numa
travessa próxima travavam uma batalha de tchacos e estiletes. A cena não
interrompia o curso das coisas na mesa do café, que agora ganhava em nervo
e intensidade. Foi estimulada por isso que ela abriu o zíper da bolsa a tiracolo
e sacou do fundo uma sevilhana nova em folha. A lâmina cintilou na minha
direção embora eu não julgasse aquele queixo rombudo compatível com a
arma proibida no bairro. De qualquer jeito para mim não havia o que fazer
senão levantar os braços e receber os talhos nos punhos para evitar um mal
maior. Estava à mercê dos acontecimentos e essa circunstância exigia um
sentido de adequação que as palavras eram incapazes de garantir. Reconheço
que ele foi o único a livrar minha carótida de um risco fatal: erra quem imagina
poder aplacar com paliativos a fome de uma fúria. As asas que subiam dos
cabelos de cobre confirmavam a apreensão: em rápida seqüência eles me
derrubaram da cadeira, recobraram o ímpeto voando para o teto e depois se
abateram a prumo sobre o peito e o baixo-ventre. Só escapei ao sacrifício
invocando os bons momentos que havíamos passado em épocas remotas ou
recentes nos cômodos mais resguardados. O intervalo de memória permitiu
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que eu saltasse do chão, pusesse a cadeira em pé e pedisse ao garçom outro


café carioca com espuma de leite. Senti que o líquido escorria quente pela
garganta e nesse nível de conforto avaliei de novo a situação. Minha esperança
era que os assaltantes que invadiam a casa seguidos por um cortejo de
mendigos chegassem à nossa mesa e nos forçassem a sair dali sob os gritos e
os canos serrados das espingardas calibre 12. Percebi então que tudo não
passava de uma quimera porque as viaturas da polícia fechavam a calçada com
as sereias abertas. Logo que o tiroteio espatifou os vidros das janelas e as
garrafas enfileiradas mas prateleiras, mergulhei o tronco embaixo da mesa e
nesse momento dei de cara com as sandálias de alumínio. Presumi que eram
peças de vestuário ditadas pela escassez e não me preocupei com o seu aspecto
até que ela apertou as solas sobre minhas faces escanhoadas e me trincou os
dentes da frente. Devo ter ficado suscetível a ponto de puxá-la pelas pernas,
consciente de que ela não cederia jamais, jamais. Restava no entanto a
perseverança em esperar o fim do encontro entre mendigos, assaltantes e
polícia e uma vez eliminados os dois primeiros ela empurrou a cadeira para
trás disposta a se despedir. Mesmo de joelhos no ladrilho dei-lhe a mão direita
já azulada e tive a surpresa de constatar que ela retribuía ao gesto.
Possivelmente considerava cumprida a missão daquele dia e me estendia os
dedos cobertos de esporas. Não fiz nenhum comentário para não parecer
aborrecido, apesar da dor que escorria das feridas para o piso como um cacho
de lágrimas. A realidade é que o tempo urgia: vendo-a lá de baixo atravessar
a porta de saída, calcando sob as sandálias pedaços de roupa, estilhaços de
vidros e cápsulas detonadas, saí do esconderijo, limpei o suéter como pude,
ajeitei o boné e reconciliado com a vida fui cambaleando para o carro
estacionado junto à calçada em frente ao Café das Flores. Ao abrir a porta
perfurada pelas balas perdidas ergui a cabeça e vi no céu de Pinheiros uma lua
de sangue que brilhava no silêncio eterno dos astros. Como as imagens
poéticas não mudam o mundo, dei a partida e fui para casa aliviado por não
pensar em mais nada (CARONE, 2007, p. 38-41).

A ocorrência de fatos insólitos atravessando uma cena do cotidiano é algo que nos remete
aos contos iniciais de Carone. Mas há diferenças importantes: aqui, o insólito não incide apenas
sobre o narrador, em um ambiente privado. Ainda que o discurso continue a ter um único
enunciador, o eu, há a menção a uma outra personagem, a acompanhante, e o espaço é um
estabelecimento comercial de São Paulo, presumivelmente real. Outra diferença é a dicção. A
maior parte dos contos de As marcas do real contém discursos enclausurados e impenetráveis.
Neste “Café das flores”, a composição se constrói com traços de poeticidade, ou seja, de
ambiguidade, imprecisão, incerteza, deriva entre o real e o onírico, constituindo uma mescla
movediça, em nada parecida com as pedras brutas dos contos anteriores, que proíbem acerca de
si divagações, dubiedades, todas as formas de escape em relação às “marcas do real”. No final,
o narrador constrói um paradoxo que sintetiza o seu processo criador: a poesia que se origina
de uma narrativa violenta, “vi no céu de Pinheiros uma lua de sangue que brilhava no silêncio
eterno dos astros”, é confrontada com o mundo real, pois “as imagens poéticas não mudam o
mundo”.
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A composição do texto ficcional de Carone se originou da tentativa radical de se construir


sem poesia, de ser um rígido exercício do pensamento, avizinhando-se de formas textuais
austeras, como o ensaio crítico-analítico. Mas, de uma para outra obra, essa radicalidade se
esvai e a escrita se rende aos elementos clássicos (conhecidos, esperados, desejáveis, etc.) da
criação literária. Ainda assim, os seus narradores mantêm certa descrença em relação à
composição literária típica, o que aparece nesses contos recentes e também em Resumo de Ana,
o romance, no qual o narrador se esforça para conter a emoção de narrar uma história familiar,
mas faz uma ou outra concessão ao sentimento e à poesia.

3.2 Resumo de Ana


O melhor o tempo esconde
Longe muito longe
Mas bem dentro aqui
Quando o bonde dava volta ali.
[...]
Bonde da Trilhos Urbanos
Vão passando os anos
E eu não te perdi
Meu trabalho é te traduzir.

Caetano Veloso, “Trilhos urbanos”

A experiência com a leitura do conjunto da obra ficcional de Modesto Carone deixa no


leitor a sensação de que Resumo de Ana não só difere totalmente dos contos como ainda não
possui com eles quaisquer afinidades ou traços de filiação. Mais tempo em contato com essa
obra, porém, revela que o Resumo foi “ensaiado” ou preparado nos contos. Há, sim, diferenças
importantes a destacar, mas, mesmo a maior delas, se bem aferida, aponta para uma coerência
na construção do projeto da obra. Vejamos. A maior parte dos seus contos é disruptiva em
relação à linguagem e à temática do conto literário brasileiro, ao passo que Resumo de Ana é
uma obra integrada à tradição do romance memorialístico, confessional, e, nesse sentido, mais
empática com as expectativas e experiências pregressas do leitor. Os enredos da maioria dos
contos não são permeáveis, como já dissemos, à fruição que o leitor habitualmente encontra em
textos literários. Estão ausentes aquelas saliências, suspensões, cisões que encontramos nas
grandes histórias e que, em meio ou logo após a narração de desastres, coletivos ou individuais,
nos propiciam algum alento, evocam certa pungência, empregam os meios de que dispõe a
linguagem na sua tensão artística para perturbar e despertar nosso sentimento de pertença à
humanidade.
Percebemos, no caso da obra ficcional de Carone, o empenho por não mobilizar os meios
esperados e que, em certa medida, já se tornaram lugares comuns. Em vez disso, há, naqueles
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contos que são pedras brutas do real, como “Reflexos” (de As marcas do real) e “O espantalho”
(de Dias melhores) um efeito de interditar a fruição em proveito do que a expressão verbal pode
ter de mais circunspecto, de menos amigável em relação às associações e escapes da poesia.
Mas há Resumo de Ana, este romance breve constituído por duas novelas tenuamente costuradas
uma à outra, e ali a escrita não só é permeável às interpretações do leitor como espera dele uma
ação participante: enquanto em alguns contos as situações que embrutecem são transformadas
em alegorias, negando-se plenamente ao leitor, no Resumo as forças exteriores que têm ação
devastadora sobre as duas personagens são apenas evocadas, citadas de passagem,
marginalmente. Cabe ao leitor informado e formado pelas linhas da História estabelecer os
nexos entre o flagelo de Ana e Ciro e as crises cíclicas das sociedades capitalistas centrais,
como a crise da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, ecoando na periferia: o Brasil, com seus
desastrosos planos econômicos e rupturas institucionais. Esse leitor fruirá a leitura a partir das
lacunas que a voz instaura na narração, pois, como ela se impõe não analisar e não emocionar,
encurralando a subjetividade das duas fábulas no rigor objetivo do discurso formal, a verdade
do texto se estabelece de fora para dentro: pensando-se em termos estritos da técnica narrativa,
é o efeito obtido pelo deslocamento sutil e minimalista da focalização (BAL, 2009), ora
concentrando-se no narrador, ora em Lazinha, e iluminando seres marginais, condenados ao
esquecimento, mas sem lhes dar voz própria.
O distanciamento é uma característica da narração que se constitui de uma forma nos
contos e de outra em Resumo de Ana: naqueles, o leitor é mantido a distância da experiência
real; neste, é a voz narradora que se distancia do relato que o implica indiretamente, como
membro da família, neto de Ana Baldochi, sobrinho de Ciro, filho de Lazinha. Há, no entanto,
pontos específicos da narração nos quais o narrador se afirma como implicado nas histórias de
Ana e Ciro: é o parágrafo introdutório e as remissões feitas no discurso à presença de Lazinha
como narradora primordial, instaurando a metalinguagem. Vejamos como isso já se apresenta
nas páginas iniciais de Resumo de Ana.

Tudo o que ouvi dizer de minha avó materna devo à insistência com
que abordei o assunto. Minha mãe gostava de contar casos de família depois
do jantar, sentada à mesa da copa ou numa poltrona de couro da sala, mas esse
ela muitas vezes evitava com habilidade. Dizia que ainda era menina quando
minha avó morreu, que as coisas que sabia tinha escutado entro os oito e os
doze anos de idade, que a partir daí o convívio com a mãe ficou muito
prejudicado ou então que sua memória andava fraca ultimamente. A
impressão que me dava, vendo-a passar o dedo em cima de um friso da toalha
ou de um veio saliente no braço da poltrona, era a de alguém que no primeiro
instante se recorda e no seguinte abafa compulsivamente as imagens evocadas.
Os motivos alegados podiam ser reais, mas não era verdade que sua memória
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estivesse fraca; pelo contrário, os anos pareciam beneficiá-la com as reflexões


da velhice e a busca silenciosa de um sentido para a experiência. Além disso
era inevitável que mencionasse minha avó como personagem relevante da sua
história pessoal, o que acabou levando às linhas de força de um quadro
inteligível, ainda que sumário, das desventuras de Ana Baldochi, nascida
Godoy de Almeida.

Os Godoy de Almeida eram sitiantes de Itavuvu, região anexada ao


município de Sorocaba. Não há documento disponível sobre suas posses, mas
é provável que no correr dos anos tenham passado de proprietários a
arrendatários de terras e que nas últimas décadas do século 19 tenham vivido
da cultura de subsistência. Ana nasceu no sítio da família em dezembro de
1887 e ficou órfã de pai e mãe aos cinco anos de idade. Os dados a respeito
dos pais são imprecisos, quando não inexistentes: ao que parece morreram na
mesma época, vítimas de alguma epidemia no campo. Com a morte deles seus
filhos mais velhos, João e Gabriel, decidiram encaminhar a irmã, entregando-
a a uma família interessada em criá-la. Ana foi recolhida do sítio em Itavuvu
por uma senhora protestante de Sorocaba e a partir dessa data passou a morar
na casa dela, localizada na estreita rua Treze de Maio, hoje área central da
cidade. Durante doze anos, ou seja, de 1892 a 1904, foi menos filha de criação,
como se dizia, do que criada de Ernestina Pacheco. Aos seis anos de idade já
cuidava de trabalhos domésticos significativos: levantava-se de madrugada,
acendia o fogão a lenha, preparava a mesa do café, varria o quintal, enxaguava
a roupa numa tina dágua, passava e engomava com ferro a carvão; para lavar
a louça punha-se em pé sobre um caixote de madeira porque não tinha ainda
altura suficiente para alcançar a pia. Um pouco mais tarde, depois de adestrar
melhor a cria, a patroa também a incumbiu não só de cuidar de uma sobrinha
doente, de dois ou três anos, que passou a morar na casa com os direitos
devidos a uma parente de sangue, mas igualmente de torrar café, moê-lo no
pilão e vendê-lo aos familiares de Júlio Prestes que ocupavam uma chácara na
rua Direita, atual Dr. Braguinha, para os quais Ana já na época lavava e
engomava roupa; os rendimentos pelos serviços prestados iam para os bolsos
de Ernestina, que vivia pobremente mas era proprietária de uma fileira de
casas na rua Treze (CARONE, 1998, p. 15-17. O intervalo entre os parágrafos
é do original.).

O primeiro parágrafo do livro coloca-nos frente a uma voz autoral, inserida na história,
fórmula frequente na literatura ocidental, principalmente em romances e contos nos quais o
narrador, um eu narrante, reivindica ao leitor a autoridade daquele que conhece a fábula e a
partir de agora se põe a narrá-la. A condição de narrador segundo, isto é, de alguém que obtém
o depoimento oral do narrador primeiro (no caso a sua mãe, Lazinha) e passa a recontá-lo, é
também parte de um procedimento clássico da literatura em prosa e do cinema. Essa forma de
narrar contém um simulacro ao qual o leitor, entretido pela continuidade da história, não
costuma se deter: a fábula não está sendo narrada em tempo real. Na verdade, o narrador
organiza, edita e seleciona partes da fábula para depois compor a história. Há uma organização,
uma reelaboração do material de origem, operação de natureza estética, que também podemos
chamar de ajuste fino. Por esse motivo é um resumo. Se quisermos ser mais precisos, é o resumo
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de um outro resumo: o narrador compõe a história, a versão estruturada que é, enfim, aquilo
que o título da obra nomina como Resumo. Provém do relato de Lazinha, fragmentado,
impreciso, turvado pelo peso dos anos e pela dificuldade de resgatar alguns pormenores, fatos
presenciados de relance na infância, às vezes por meio de uma porta entreaberta. O relato de
Lazinha, evocado por um narrador nele implicado pela sua condição de membro da família, é
também um resumo.
A intervenção inicial do narrador sugere-nos, em princípio, uma delegação de voz a
Lazinha, o que seria um novo simulacro da representação: ela iria adquirir a condição de
enunciadora e passaria, depois, a simular os discursos das personagens. Mas essa expectativa é
frustrada logo em seguida. O narrador não só continua a ser a única voz efetiva do discurso
como o entabula em estilo indireto, em tom que poderíamos chamar de standard. O padrão é o
dos discursos que não podem, em virtude dos espaços nos quais pretendem circular, interferir
na narrativa, mantendo, assim, uma distância segura do objeto, como preconizam, por exemplo,
os manuais de escrita científica e do jornalismo clássico, e como é próprio, também, do ensaio
dedicado à análise e à crítica.
Pelo tom no qual são apresentadas, as informações sobre a família de Ana poderiam estar
em um livro de História do Brasil que se ativesse àquele momento finissecular, ou seja, à
passagem do século XIX para o XX. No entanto, há pormenores que dificilmente estariam em
um texto de História, como os que se referem à forma como Ana, ainda criança, era explorada
por Ernestina Pacheco. Trata-se de um elemento da fábula, do testemunho de Lazinha, que o
narrador manteve na história. Ernestina é uma avara, mas em nenhum momento o narrador
afirma isto de maneira explícita.
Passagens de forte intensidade dramática são sumarizadas e narradas com objetividade
no interior da história, como vemos a seguir:
[...] as informações sobre o período são vagas, mas não é exagero
admitir que, da infância ao fim da adolescência, órfã e sem apoio externo – o
irmão João ficou muito tempo com o sítio da família e numa crise de desespero
ateou fogo na plantação, queimando o dinheiro entesourado numa enxerga –,
a vida de Ana não foi amena, submetida como estava ao zelo e às
conveniências da senhora e do marido (CARONE, 1998, p. 17).

O dado a respeito do irmão é importante para explicar as dificuldades que Ana


experimentou na infância e na juventude, mas é citado en passant, sem maiores explicações e
sem comentários, graças à uniformidade de tom da voz que narra. O efeito se repete em outras
passagens do livro. Da mesma forma que em alguns de seus contos, forças externas têm ação
devastadora sobre os seres. Nos contos são frequentemente transfiguradas em alegorias,
98

enquanto em Resumo de Ana o narrador faz breve menção a fatos da História brasileira ou
mundial que tiveram grande impacto na sociedade, expondo, ao mesmo tempo, perdas materiais
nas vidas das personagens que repercutiram de forma negativa nos seus rumos futuros. Ora,
tanto o leitor atento dos contos como do Resumo associará ao mundo exterior os desarranjos
representados nas histórias, embora a fruição dos textos não dependa desse saber qualificado.
Um dos traços que alinha Resumo de Ana à escrita ficcional modernista é a
metalinguagem: o narrador reitera seguidamente a condição de Lazinha como depoente,
memorialista. Se fosse um historiador, a partir desse relato de Lazinha o narrador faria uma
digressão sobre o Brasil na transição do século XIX para o XX, sobre a crise decorrente da
quebra da bolsa de Nova Iorque, etc. Se fosse um antropólogo, talvez fizesse uma reflexão sobre
a memória coletiva de velhos, como a que Ecléa Bosi escreveu. Mas Resumo de Ana também é
uma obra literária porque, embora o discurso predominante lembre a exposição e análise frias
dos fatos tal como delas se desincumbiria um historiador, um antropólogo ou um sociólogo,
tudo no seu “resumo” está repleto de indefinições, lacunas, suposições. A sua metalinguagem
é uma legitimação da voz que narra, expediente próprio da literatura. E o Resumo é uma obra
literária também contemporânea porque os seus dois movimentos, voltando-se sobre si mesma
e para o passado, colocam em crise não o passado, mas o presente, não a ficção, mas a vida.
Ao interromper a sequência do discurso e se reinserir na história, no aqui e agora da
narração, a voz que narra não está apenas operando uma mudança de focalização como quem
troca a marcha do seu carro. Não é uma ação de caráter estritamente técnico. Como bem
observou Bal (2009), a focalização implica os seres que atuam sobre seu tempo, seu espaço,
sobre a história e a vida social. Ora, ao sair da opacidade, da neutralidade, essa voz narradora
está assumindo que é ativa. De fato, nos momentos em que se insere como eu no discurso,
percebemos que esse narrador está construindo Ana e Ciro com os recortes que a memória faz
de ambos. Há um substrato da matéria do passado que ele legitima ao mencionar a mãe, mas é
perceptível que Ana e Ciro que emergem das memórias de Lazinha, e dão forma à fábula, não
são os mesmos da história construída pelo narrador, e não somente em virtude de eventuais
preenchimentos das lacunas da memória pela ficção: eles e seu tempo são lidos pelo olhar
crítico do narrador, pela sua posição privilegiada advinda de um saber a mais, que lhe permite
dar saliência somente ao dados particulares que, de uma forma ou outra, corroboram os dados
gerais, resultando no Resumo tal qual o lemos. Essas mudanças de focalização estão
materialmente marcadas por um espaço em branco entre um bloco e outro do texto. Ali se dá,
então, uma transição de voz: interrompe-se a linearidade do discurso e o narrador fica visível,
passando de uma condição de observador distanciado para a de narrador em 1ª pessoa, e passa
99

a existir um presente da narração, um momento em que a narrativa modernista alardeia para o


público o seu processo de composição, como quando os atores da peça dentro da peça em Seis
personagens à procura de um autor (1921) começam a discutir entre si pormenores relativos
às entranhas da própria peça, naquele que é o mais célebre exercício de metadrama que se
conhece. É interessante nos atermos brevemente a ele, pois ilumina a compreensão do nosso
objeto quanto a ser metarromance:

Pensemos no modo como se faz uma peça. Um cenário é desenhado e


construído, e um assistente de direção designado. O diretor escolhe e ensaia
os atores, que podem ou não ter semelhanças com as personagens que vão
encarnar [...]. Tudo [...] se passa de um dos lados da cortina; do outro fica a
platéia. Quando sobe o pano, as máscaras já foram colocadas, os papéis foram
aprendidos, a ilusão está completa. Mas, se víssemos aquela ilusão antes de
ficar completa, antes de o assistente de direção sair do palco, ou mesmo antes
de o texto da peça estar terminado – então [...] poderíamos estar no teatro de
Pirandello [...]. O solapamento gradual do naturalismo, a revelação insistente
do modo como a arte cria suas ilusões, a idéia de que o próprio fazer da ficção
artística é o tema da arte – tudo isso [...] constitui um dos temas mais básicos
do modernismo. [...] o que Pirandello faz é construir [a] ilusão teatral para nós,
bem diante de nossos olhos, ao mesmo tempo dando a entender que também
vivemos num mundo ilusório semelhante (BRADBURY, 1989, p. 178;179. Os
grifos são nossos.).

Em Resumo de Ana, toda vez que esse processo é desencadeado tem lugar a falácia
literária do discurso em processo, como se estivéssemos lendo a própria fábula recitada por
Lazinha e não a história composta e editada pelo narrador, como se vê a seguir: “Minha mãe
falava sem que eu a interrompesse: as perguntas ficavam pairando no ar à espera de uma
oportunidade. Ana não gostava realmente de Balila?” (CARONE, 1998, p. 29). A voz já não é
percebida como isenta: a pessoa que ela tem diante de si dando testemunho é a sua própria mãe,
e o relato diz respeito à sua avó materna, mas o tom não é intimista: continua a ser formal.
Ainda que a perspectiva tenha sido alterada, essa passagem é suave, quase imperceptível,
justamente por que o tom do discurso não se altera radicalmente junto com a mudança na
focalização. Obtém-se um efeito parecido com a coesão discursiva entre um período e outro
quando se vai abordar aspecto diferente do tema: há a antecipação gradativa daquilo que se vai
enunciar em breve. Aquela e outras perguntas que o narrador vai elencando e que dá a entender
que se destinam a Lazinha são, na verdade, respondidas por ele próprio sem a contribuição da
mãe. Percebemos que a memória de Lazinha tem lapsos, ou o seu relato possui pontos que não
têm como ser esclarecidos simplesmente porque ela não sabe tudo a respeito de Ana, e isso a
impede de responder quase todas as perguntas que o narrador elabora nesses intervalos nos
quais insere a si e a Lazinha no discurso. A maior parte das perguntas, então, tem caráter
100

retórico: são as situações nas quais o narrador mescla as informações prestadas por Lazinha
com as suas conjecturas e hipóteses. Vejamos:
Não havia outros pretendentes? Sem dúvida, porque desde a
adolescência sua figura alinhada chamava a atenção. O filho mais velho de um
comerciante árabe estabelecido na rua Barão do Rio Branco, por exemplo,
costumava cumprimentá-la com um sorriso quando ela se dirigia à casa dos
parentes de Júlio Prestes na rua Direita para entregar o café moído e a roupa
lavada e engomada. Um dia ele decidiu falar com ela, Ana respondeu e os dois
conversaram. Ainda se encontraram algumas vezes no largo de São Bento em
frente à velha igreja, a quinhentos metros da casa da patroa. O rapaz era muito
bonito – um sírio de olhos verdes. Ana porém logo se desinteressou, não se
sabe bem por quê. Certamente porque não gostava dele. E do noivo? O
empenho que ele demonstrava não a tocava nem um pouco? Mesmo que para
ela aquele casamento fosse de conveniência, é duvidoso que só contassem as
razões objetivas. Além do mais que filho ou filha pode julgar com
discernimento a vida afetiva dos pais? Diante dessas questões cortantes ou
elaboradas minha mãe emudecia, pensativa; mas o intuito não era de modo
algum silenciá-la” (CARONE, 1998, p. 29-30. Grifos nossos).

Estamos em um campo repleto de dúvidas, incertezas, prognósticos – tudo muito familiar


à literatura modernista. Vê-se que o narrador questiona, em uma pergunta ampla, até mesmo a
capacidade de a mãe avaliar o afeto entre Ana e seu futuro marido, Balila Baldochi. E ainda
sustenta que Lazinha silenciou “diante dessas questões cortantes ou elaboradas”. Ora, as
questões são cortantes e elaboradas porque pertencem ao nível da história, posterior à fábula e
ao relato de Lazinha. São perguntas que o narrador não fez a ela, de fato, ao menos da forma
como aparecem na história, por dois motivos principais: primeiro porque elas resultam de um
intrincado arranjo discursivo e segundo porque o grau de elaboração que o narrador reconhece
que há nelas (leia-se sofisticação, complexidade) decorre do esforço analítico que impregna a
matéria narrada, pois o discurso busca a todo o momento deslizar para fora do que, em termos
de expressão consagrada, é muito próprio da literatura e da sua ourivesaria. Quando se impõe
como necessário descrever Ana fisicamente e compor alguns traços da sua personalidade, o
narrador não o faz se atendo de forma rigorosa ao relato de Lazinha, mas recorrendo a um
vocabulário requintado, embora sóbrio, sem nenhum vestígio da oralidade materna, como
ocorre no restante da matéria. Essa descrição, no nível da história, tampouco traz consigo a
poesia e a evasão que se aproximariam da poeticidade e da literariedade –nas acepções fluidas
e viajantes que esses conceitos adquiriram ao longo da crítica e do pensamento do século XX:
a percepção e a sensação de estados de consciência que não se circunscrevem à experiência
imediata, mobilizam uma gama de informações do leitor e do espectador que têm relação direta
ou indireta com o seu repertório artístico e sensorial. Há, todavia, um elemento sutil na
apresentação de Ana que escapa a esse tom predominantemente formal, analítico, cerebral. Já
101

vimos que a ambiguidade tonal da narração também se faz presente nos contos de As marcas
do real, Aos pés de Matilda e Dias melhores. Atentemos, então, para o entorno da descrição
que o narrador faz das características físicas e psicológicas da jovem Ana:

Pelos depoimentos da filha, baseados nas confidências de Ana, que nos


últimos anos viu aberta a possibilidade de contar a alguém a sua história, o
que para ela chegou a assumir um caráter de urgência diante da solidão afetiva
em que vivia, a jovem órfã era esperta e recatada, de olhos vivos, cabelos
pretos e pele alva, que gostava de se enfeitar com os poucos recursos
disponíveis. Nas manhãs de domingo e dias santos, depois da faina que
começava de madrugada, ela saía de casa acompanhando Ernestina e o marido
e caminhava até a igreja. Para quem andava a pé o percurso era relativamente
longo e Ana observava com atenção nas ruas da cidade os transeuntes mais
solenes, pois o que observava neles era o porte e as boas maneiras, que
procurava mimetizar sempre que possível para um dia compor o seu estilo
pessoal. Segundo consta ela se desenvolveu rápido e com cerca de dezesseis
anos parecia uma portuguesa do tipo mignon, vestida com alguma fantasia e
traindo no olhar uma inquietação que a vivência da orfandade e o trabalho
compulsório não conseguiram embotar, traços confirmados por uma
minúscula fotografia (a única que restou) dos tempos em que já era casada e
mãe de família, na qual aparece de cabelo apanhado atrás, dentes brancos à
mostra e as mãos apoiadas na cintura fina [...]. Sua curiosidade pelas pessoas
e pelas coisas sempre foi autêntica, alcançando um impulso considerável
quando aos dezessete anos teve a coragem de se libertar de Ernestina para ir
trabalhar, por indicação de uma vizinha, na casa de um professor e sua família
em São Paulo. Essa virada pouco previsível na vida de Ana leva a crer que ela
não se conformou a todos os desígnios dos Pacheco, casal essencialmente
prático e tanto mais implacável porque consciente da falta de escolha de uma
moça pobre. É ponto pacífico no entanto que eles não lograram acabrunhá-
la nem mortificar o seu entusiasmo por um perfil de vida que desde cedo ela
julgou mais condizente com os sonhos plausíveis de todo adulto precoce
(CARONE, 1998, p. 18-20. Grifos nossos.).

Há um substrato literário e também ficcional (considerando-se que uma noção não está
colada à outra) no início desse trecho: o narrador diz, e sustenta outras vezes ao longo da
matéria, que a origem da história de Ana são as confidências a respeito da sua vida que a mãe
fez a Lazinha. Ora, quando Ana morreu, Lazinha tinha 14 anos apenas. Essas confidências
teriam sido feitas a Lazinha quando ela era tão menina que não poderia nem ter se lembrado de
todos os pormenores que a história contém nem percebido certas sutilezas do comportamento
da mãe. Em outro momento, como vimos, o próprio narrador descrê da capacidade de Lazinha
julgar a vida afetiva dos adultos a partir do que observou na infância. A questão-chave está
justamente nessa transformação da fábula em história: ela é, por si só, literária, pois amplia
sentidos, desdobra palavras, faz com que a caracterização final de Ana a torne muito diferente
da Ana original, sem que seja uma traição. O corpo da matéria narrada, todavia, mantém opaca
essa sobreposição da matriz literária ao relato original porque o discurso foi construído à
102

imagem e semelhança de um discurso verídico, almejando a austeridade de um ensaio


científico. Não é um ensaio, com certeza, como o conto “O Sul”, de Borges, também não é.
O trecho citado já ostenta uma característica onipresente do Resumo que é a narração
sumarizada. Corroborando o título do livro, sem que no entanto seja algo óbvio, Resumo de Ana
resulta da junção de sumários29. A história de Ana, por exemplo, a encaminha rapidamente para
a experiência de trabalho em São Paulo, e logo depois virá o casamento, a insatisfação com a
vida conjugal e a ruína.
Quanto à descrição, propriamente dita, que também é econômica, destacamos em itálico,
no trecho, palavras que ajudam a compor o tom do discurso, a sua precisão formal obtida pela
fórmula observação/demonstração/análise. Não é o léxico que sustenta esse discurso, é um
conjunto do qual faz parte a escrita contida, empenhada em não explicitar a subjetividade e as
emoções. Mesmo assim, é pertinente que nos atenhamos às frases “segundo consta ela se
desenvolveu rápido e “não lograram acabrunhá-la”. Não há impedimentos de nenhuma espécie
quanto a um estilo literário se valer de expressões, palavras e estruturas sintáticas que lembram
muito a forma dos textos verídicos ou dos gêneros devotados ao esforço de análise e crítica,
como o ensaio. Por outro lado, não é algo que ocorra com frequência na criação literária. Já
dissemos que é um traço recorrente na produção ficcional de Modesto Carone, pois vários dos
seus contos iniciais têm essa peculiaridade ainda mais realçada, empregando verbos de sentido
estrito. Não se trata de algo acidental, portanto, mas de uma construção. Também não se trata
de banir da escrita o que seria próprio do literário em favor da precisão e da univocidade
características de outros campos de expressão artística e do saber. Acreditamos que a obra de
Carone, ao mesclar recursos da escrita analítica aos da ficção literária, a exemplo do que o
cinema tem feito em alguns documentários, ou a própria literatura ao criar a partir de eventos
verídicos, faz com que o discurso literário seja integrado ao processo cognitivo acerca da
História e da sociedade, sem que pareça um corpo estranho, um intruso.
Algumas leituras de Resumo de Ana propõem que a narrativa se baseia nos eventos da
grande História para construir literatura a partir deles, como é o percurso dos romances
históricos. Essa tese seria corroborada pelas remissões a personagens e dados históricos no
romance, como a quebra da Bolsa de Nova Iorque, a crise brasileira de 1931, decorrente
daquela, a breve prosperidade dos anos de Juscelino Kubitschek e a recessão do governo

29
Sumário é um termo oriundo da crítica e teoria literária produzidas no universo cultural anglófono. Designa toda
situação, na narrativa, na qual há um resumo da história: narra-se com brevidade no interior do discurso longos
períodos de tempo do mundo real. Para a vertente narratológica da teoria literária, sobretudo a que se fundamenta
em Gérard Genette, o sumário pertence ao âmbito da noção de velocidade (REIS e LOPES, 1998, p. 397-398).
103

Castelo Branco. Sob nosso ponto de vista, o percurso é o oposto: os marcos históricos estão
iluminados pelo rumo das histórias de Ana e Ciro. O século XX está, de certa maneira, em
questão no livro, mas é a narrativa que lhe dá relevo. Resumo de Ana não é romance histórico,
mas, com o seu discurso que lembra o da escrita historiográfica e a explicitação do impacto das
linhas da grande História nas vidas de pessoas comuns, pode fazer com que o leitor de um livro
de História dedicado ao século XX feche-o por algum tempo e se ponha a ler Resumo de Ana.
Em outras palavras, o romance não depende da grande História, mas agrega a ela vidas, cores,
lugares, eventos, etc. Podemos exemplificar com outra obra finissecular que tem um olhar
retrospectivo sobre o século XX: o longa-metragem documental Nós que aqui estamos por vós
esperamos, de 1999, com seu frenesi de imagens de arquivos e a trilha sonora que sugere um
movimento para Tânatos. Ali, é também a criação ficcional expressa pela montagem, pela
música e pelas legendas que pontua a história, não o contrário.

Há informações relevantes sobre a sociedade brasileira do princípio do século XX que a


historiografia não traz ou acaba tratando marginalmente. Para obtê-los, é preciso ter acesso a
algumas estudos específicos. Um exemplo é o papel da mulher. Algo que Resumo de Ana deixa
evidente é que as mulheres, ainda que pareçam subalternas ao jugo masculino, são, na verdade,
centrais na sustentação moral e familiar daqueles homens, dos seus negócios e famílias. A
contrapartida negativa é que a não compreensão desse fato, sobretudo no caso de Ana, e a
desconsideração dos seus anseios íntimos, acabaram por destruí-la. Ana casou-se com Balila
Baldochi em 1912, em Sorocaba, quando ela estava com 25 anos de idade e ele com 26. Os
negócios de Balila tiveram uma fase de prosperidade, primeiro com a posse de uma padaria,
depois de um armazém de secos e molhados. Ana perdeu os quatro primeiros filhos, situações
que envolveram grande sofrimento para ela e uma certa indiferença por parte do marido, mais
preocupado com os negócios. Ana ainda cuidava sozinha da casa, mantendo-a limpa e
aconchegante para as visitas.

Antes do casamento, trabalhando como empregada em São Paulo, Ana teve contato com
o teatro e a ópera, já que a família Ellis era abastada e a levava consigo às apresentações no
Teatro Municipal. O contraponto entre Ana, sensível e apreciadora das artes, e seu marido,
Balila Baldochi, homem rústico, de pouca instrução, totalmente devotado aos negócios, indicia
o malogro da união conjugal. Com o passar dos anos, a convivência foi se tornando tediosa e
opressiva para Ana, mas foi sobretudo depois de uma agressão física que ela ficou insuportável.
Nesse momento o narrador introduz sutilmente na obra uma referência literária importante, na
verdade uma remissão, e faz com que uma matéria que tenta não se assemelhar à literatura
104

esteja ao mesmo tempo reverenciando um romance nuclear na tradição literária ocidental. Já


não conseguindo tolerar uma vida limitada e sem expectativas, Ana decide se aproximar de
outro homem. Ora, eis Emma Bovary. Vejamos como isso se afigura na obra:

A atividade do armazém de secos e molhados progredia e com ela o


prestígio de Balila Baldochi no bairro e na cidade. Várias vezes por ano ele
era convidado para padrinho de casamento e a maneira de se mostrar
reconhecido era ser pródigo, o que obviamente aumentava a popularidade e o
número dos convites. Na condição de padrinho ele tanto se incumbia de prover
a mesa da festa com os produtos do armazém como de colocar um carro branco
de aluguel à disposição da noiva no dia do casamento. Foi por essa via que
conheceu e se aproximou de João Franco, dono de uma limusine que fazia
ponto na ladeira da rua Quinze de Novembro. Ana deve tê-lo visto com
freqüência no armazém e tudo indica que desde o início se sentiu atraída por
ele: sem dúvida as frustrações do casamento alimentavam as fantasias de
sedução. Assim que o homem passou a freqüentar a casa do casal ela adotou
uma atitude mais desenvolta. Ao que parece João Franco não permaneceu
insensível ao interesse de Ana, mas por algum motivo impenetrável decidiu
castigá-la. Um dia em que o marido não pôde ir pessoalmente contratar o carro
para um casamento ela se prontificou a fazê-lo. Encontrou a limusine branca
estacionada e a informaram que o dono estava numa barbearia próxima. Foi
até lá sem pressentir as conseqüências do passo em falso e naquela mesma
noite João Franco disse a Baldochi que Ana o assediava por toda parte. Ao se
saber denunciada ela procurou o chofer de praça e o descompôs na frente da
mulher; João Franco desviou os olhos e não respondeu uma palavra. Quando
voltou para casa o marido estava no armazém, onde ficou até muito tarde, as
portas travadas com trancas; assim que ele surgiu na sala ela quis dizer alguma
coisa e foi esbofeteada. Com o nariz sangrando Ana se refugiou no quarto do
casal cuja porta Balila não teve dificuldade de arrombar com o peso do corpo.
Vendo-a recolhida a um canto ele se despiu como num ritual e completamente
nu surrou-a com um cinto de couro até perder o fôlego: o quarto estava escuro
mas Lazinha pôde ver a cena pela porta escancarada (CARONE, 1998, p. 40-
42).

Lazinha pode ter visto a cena e a relatado ao narrador, mas o seu arranjo no interior da
história faz jus ao que antes dissemos a respeito da composição desse romance: a história
ultrapassa a fábula, e não apenas na forma, mas também e principalmente no desenvolvimento
da trama. Depois da violência do marido, Ana se deprime cada vez mais e busca lenitivo no
álcool. No final da vida, perambula por Sorocaba em companhia dos filhos, embebedando-se.
É o álcool que acaba por debilitá-la e, juntamente com a tuberculose, levá-la à morte em 1933.
Foi um processo lento de autodestruição, mas que guarda alguma similitude com o fim trágico
de Emma Bovary. O bovarismo está na epiderme do texto, não em camada profunda. Embora
só seja percebido pelo leitor que conheça o romance de Flaubert e faça a associação entre uma
história e outra, não é determinante para a compreensão e fruição da obra, como não o é o
conhecimento dos fatos históricos evocados no Resumo.
105

Ao final da história de Ana, quando seu destino já está selado, nos damos conta de que o
casamento e a maternidade foram parte de um anseio de emancipação que ela acalentou na
juventude. Porém, face à condição submissa que a sociedade da época impunha à mulher,
aprisionando-a numa rotina doméstica e impedindo-a de ter uma vida plena, aquela aspiração
se frustrou. Ana concluiu que uma vida de renúncias, muito aquém de tudo aquilo pelo que
lutara desde que se libertou da exploração de Ernestina Pacheco, não faria mais nenhum sentido.
Mas Resumo de Ana tem outras mulheres fortes e determinadas: Lazinha é uma delas. Depois
da morte da mãe e a ida do pai ao Vale do Ribeira para trabalhar como caixeiro viajante, sua
família praticamente desapareceu e com apenas 14 anos de idade ela se viu obrigada a trabalhar
de dez a 14 horas diárias costurando sacos de café. A vida das mulheres retratadas nesses livro
repete ciclos de exploração, interdições e escolhas preestabelecidas. Na história de Ciro, Anita,
a mulher que o acompanha até a morte, é quem impede a ruína total da família diante das
adversidades financeiras, ocupando-se da casa e trabalhando fora.

Anita foi a companheira de Ciro até o fim da vida. Sua atitude de mulher
disposta e encarar a pobreza sem desespero, traço herdado pelas seis filhas do
casal, aplainou o caminho da vida em comum. Ela era pouco mais que uma
adolescente quando ele a encontrou e o recorte do corpo esguio acentuava o
brilho da pele e o desenho sensível do modo de andar. A mãe a transformara
em arrimo de família e antes dos catorze anos Anita trabalhava como
camareira, recebendo meio salário por ser menor de idade. Apesar das
tentativas de estudar à noite não tinha conseguido chegar à Escola Normal, o
que a impediu de ser professora; a compensação foi cursar uma escola de corte
e costura mantida pelo município. Foi dessa maneira que aprendeu a coser e
bordar com desenvoltura, talento que nos anos 70 facilitou sua vida de
operária nas fábricas de roupa da cidade (CARONE, 1998, p. 88-89).

As seis filhas do casal são descritas como “saudáveis, claras e castanhas”, e o narrador
acresce que elas, “como a avó materna conheceram muito cedo a rude rotina do trabalho
compulsório” (CARONE, 1998, p .101).
A história de Ana, nomeada homonimamente em relação ao livro, está na primeira parte,
ocupa pouco menos da metade (50 páginas) e está disposta de forma simétrica em dez blocos
de texto, separados uns dos outros por um espaço de dois centímetros. Cobre toda a vida de
Ana, desde seu nascimento, em 1887, até a morte, em 1933, aos 46 anos de idade. Corresponde,
também, a um período muito difícil da vida brasileira: os dois anos finais do Segundo Reinado,
a abolição da escravatura, o início da República, as muitas crises institucionais da chamada
República Velha, culminando com a Revolução de 1930 e a ascensão de Getúlio Vargas ao
poder. A quebra da bolsa de Nova Iorque atingiu em cheio as vendas brasileiras de café,
principal produto de exportação do País. O governo de Vargas já começa com o colapso
106

avassalador da economia nacional, a falência dos cafeicultores e o desemprego massivo. O curto


período entre 1931 e 1933 está bem representado em Resumo de Ana como aquele em que os
efeitos da crise internacional foram mais intensos e afetaram negativamente a vida brasileira.
Balila Baldochi, então um comerciante estabelecido com um grande armazém, perdeu tudo e
se viu obrigado a trabalhar como caixeiro viajante. A penúria se abateu sobre a família e Ana,
que já estava em declínio emocional e físico, viu sua vida se deteriorar ainda mais.

Há uma passagem que narra um episódio de ruína financeira que precede o auge da crise
econômica do País e a falência de Balila. Citamo-la para que se compreenda como a literatura
toma para si os dramas humanos deixados de fora da grande História e qual o tratamento que
lhe é dado pelo narrador do Resumo. Quando Ana deixou o trabalho como governanta na casa
dos Ellis, em São Paulo, o Sr. Ellis, inglês de nascimento, empregado de alto escalão da Light,
havia sido preso, acusado de dar um desfalque na empresa. A família ficou arruinada e com a
crise a situação se agravou. Vários anos depois, já casada, Ana recebeu notícias de Judith, a
antiga patroa, e foi a São Paulo visitá-la. Ana viajou em companhia da filha mais velha, Lazinha.
O narrador conta de forma lacônica, em poucas e rudes palavras, como foi o reencontro da ex-
empregada com a ex-patroa:

Assim que chegaram a São Paulo, cujas ruas Ana, passados quinze
anos, quase não reconhecia, foram ambas ao endereço dado por Ernestina: era
na avenida São João. Talvez fosse possível imaginar as dificuldades que Judith
vinha enfrentando desde a prisão de Ellis; o que Ana não podia prever era o
choque de encontrá-la um dia morando num porão – Judith estava
completamente só e para se sustentar trabalhava como costureira num circo
de arrabalde (CARONE, 1998, p. 40).

Descritos de forma breve no interior da matéria narrada, os dramas desses seres sem voz
própria, mantidos a distância, reconstituídos a partir de um relato oral e de impressões
fragmentadas, sensibilizam o leitor pela percepção de uma ausência intuída: sente-se falta de
uma empatia qualquer do narrador pelas partes da matéria que narra. Mas Resumo de Ana está
entre as obras do espírito moderno que sensibilizam por aquilo que silenciam.

Para que a transição de uma parte a outra do livro se fizesse suavemente, a história de
Ciro começa com uma analepse30, um flash-back. Recua-se até o ano de 1925, com o
nascimento do próprio Ciro, segundo filho do casal Ana e Balila, que chegou para fazer
companhia a Lazinha, a única dos cinco filhos anteriores que havia sobrevivido. É como se se
tivesse feito uma emenda na história anterior e introduzido essa parte. Consegue-se, assim,

30
Movimento temporal retrospectivo. O termo faz parte da nomenclatura adotada por Genette (1995) (REIS e
LOPES, 1998, p. 29).
107

evitar uma entrada brusca, pois as duas histórias eram independentes e foram escritas em
momentos distintos. Consegue-se muito mais do que isso: ao longo de oito páginas dedicadas
à infância de Ciro, chega-se ao ponto em que a primeira história terminou, isto é, na morte de
Ana, efeito coesivo necessário e indispensável para que a obra se tornasse um romance breve e
não a justaposição das duas novelas originais. Resumo de Ana resulta de uma montagem, como
vimos, não somente de uma edição.

Ciro tinha apenas oito anos quando sua mãe morreu. Era, então, bem pequeno quando
Ana, já no ponto crítico do seu vício em álcool, levava-o consigo, bem como a Lazinha, para
bairros longínquos de Sorocaba, fazendo-os entrar nos bares e comprar a bebida da qual tanta
necessitava para aplacar os seus fantasmas interiores.

Até o fim da adolescência, Ciro viveu em companhia do pai, ajudando-o no trabalho de


caixeiro viajante, que dava a Balila grande satisfação e era um alento depois da mais completa
ruína financeira e da desagregação da família. Quando Balila faleceu, Ciro chegou a manter
contato com Lazinha, mas por pouco tempo, pois a irmã já estava casada e o cunhado lhe era
hostil. O fato é que toda a vida de Ciro foi marcada pelo isolamento em relação às irmãs Lazinha
e Zilda. Esse aspecto marca uma importante inflexão quanto à estrutura da história anterior:
esta já não conta com a contribuição das memórias de Lazinha, pelo motivo óbvio de que ela e
o irmão praticamente não conviveram. Supõe-se, então, que o narrador está se pautando por
informações que obteve de outros familiares, na condição de sobrinho de Ciro, ou está supondo
dentro de uma gama de plausibilidades, ou seja, criando ficção.

A voz narradora é nuclear em Resumo de Ana: é uma autoria que se apresenta como não
autorizada, que obedece a certos escrúpulos de não faltar com verdade. Carone não acredita na
mimese clássica. Isso fica evidenciado no seu depoimento à Biblioteca Mário de Andrade: o
que ele não podia dizer a respeito de Ciro por não saber só pôde ser preenchido pela ficção, mas
construída de forma a respeitar a verdade da personagem.

Eu precisei tirar toda a gordura da linguagem, precisei ser conciso


mesmo e, depois, muito cauteloso, porque eu estava tratando de vidas reais.
[...] Até hoje eu penso por que demorei tanto tempo, por que fiquei
desanimado no meio. Mas por que eu fiquei desanimado no meio? Porque eu
não sei quem é essa pessoa e eu não posso me intrometer na vida dela e dizer
para ela o que ela é, porque ela mesma não sabe. Este tipo de intrusão é um
erro formal grave. Então até que eu falei: “Ele não sabe quem é, eu também
não sei”, então vamos em frente. [...] Nos últimos três meses eu cheguei à
conclusão: “Eu não sei quem é, eu não vou me intrometer na vida desta pessoa,
vou escrever aquilo que eu sei, com o maior respeito possível e vou ver se isto
108

se encaixa” e, por sorte, se encaixou. Porque depende, o Hemingway é que


diz: “Depende de um pouco de sorte” (CARONE, 2007b, p. 30-31).

Essa fala do escritor revela que alguns elementos da composição foram importantes para
evitar o “erro formal grave” de se intrometer na vida da pessoa (a personagem Ciro): o
distanciamento, a prevalência da diegese sobre a mimese, a objetividade.

Tal como acontece na primeira parte do livro, a segunda, intitulada “Ciro”, percorre toda
a vida da personagem, do nascimento à morte, em 1990. Há algumas diferenças entre uma
história e outra. A primeira e mais significativa é que “Resumo de Ana” se sustenta
autonomamente, enquanto “Ciro” não. Para que o volume Resumo de Ana produza efeito de
sentido como romance, a segunda parte tem de depender da primeira. O fato é que “Ciro”
depende, mais do que das informações contidas na primeira história, da consciência, pelo leitor,
de que existe uma vida trágica precedente, pois a desagregação da família e a vida acidentada
a que Ciro foi submetido na infância e na adolescência explicam em parte a sua pusilanimidade,
algo que ele tentava ocultar se entregando por inteiro ao trabalho árduo ou se escorando nas
mulheres com as quais se relacionou, principalmente Anita.

Outra diferença é que, em “Ciro”, como acontece em vários dos contos de Carone, o plano
da fábula e o plano da história parecem justapostos e concomitantes. Na primeira parte, sabemos
todo o tempo que há um relato oral de Lazinha, e a voz que narra modula o discurso para que
não tenha marcas nem de oralidade nem de subjetividade. A autoria do relato matricial é
frequentemente atribuída a Lazinha pela via da instauração do foco narrativo em 1ª pessoa31 e
de um processo de escrita autorreferencial. Na primeira parte, ainda, as incursões do narrador
pelos logradouros de Sorocaba são feitas em companhia de Lazinha, para ajudá-la a se lembrar
das partes esquecidas da história de Ana. Já em “Ciro”, a memória é do próprio narrador, mas
se conecta à primeira parte da história. Se agregarmos a descrição da estação ferroviária de
Sorocaba, já citada, que deu origem ao conto “Visita”, damo-nos conta de que os logradouros
fazem parte da memória afetiva do escritor relativamente à sua cidade natal. Resumo de Ana é
um percurso sentimental, ainda que o narrador se mantenha à distância do que narra. Mas, na
segunda parte, o distanciamento diminui, porque quase não há a intermediação de Lazinha e
porque o memorialista já é o próprio narrador. Vejamos:

31
A terminologia de Genette (1995) é mais precisa para caracterizar essa situação narrativa: a alternância da
focalização em Resumo de Ana faz com que se passe por algum tempo de um narrador heterodiegético, ou seja, o
que narra a história sem fazer parte dela, para um narrador homodiegético, o que toma parte na história como
personagem mas não é protagonista dela (REIS e LOPES, 1998, p. 259-267).
109

A rua Treze de Maio está asfaltada e continua silenciosa porque é via


de mão única. O tráfego pesado passa pelas paralelas que ligam num único
lance a cidade ao Sul do país, de um lado, e do outro os bairros altos com a
região do Além-Ponte e a saída para São Paulo. A pista é estreita e reta e ao
longo das calçadinhas alinhadas por guias de granito as casas de porta e janela
estão sufocadas pelos prédios de cimento à vista, erguidos nos períodos de
especulação imobiliária.
Quase na esquina da rua Treze com a Professor Toledo ficava a fileira
de residências acanhadas à frente do calçamento de paralelepípedos em cujas
frestas ainda nos anos 50 crescia capim: elas pertenciam a Ernestina Pacheco
no início do século, quando a velha senhora resolveu adotar num sítio de
Itavuvu a órfã Ana Godoy de Almeida, de cinco anos de idade. Diante do
portão de madeira de uma daquelas casas baixas, há muito tempo destruídas,
o entregador de pão Balila Baldochi, chegado aos doze de Marselha, avistou
pela primeira vez a adolescente de cabelos pretos e pele alva com quem foi se
casar em 1912 numa igreja do outro lado do rio (CARONE, 1998, p. 84-85).

Outra diferença entre a segunda parte e a primeira é que, em determinado momento, a


mudança de focalização se dá no sentido de introduzir o narrador no interior da história: ele
narra o encontro que teve com seu tio, Ciro, com o qual teve pouco contato, já que se manteve
afastado das irmãs Lazinha e Zilda. Esse fato comprova que, relativamente à narração da
segunda parte do livro, as memórias são do próprio narrador, e o que não são memórias próprias
são as de outras pessoas ou resultam de invenção. Vejamos a narração desse encontro entre tio
e sobrinho:

Foi ali que vi Ciro pela primeira vez depois de muitos anos. As notícias
que eu tinha dele chegavam através de Lazinha e de alguns parentes próximos,
daí o espanto de percebê-lo a poucos metros de mim segurando pela alça um
garrafão de vidro que faiscava ao sol. Ele havia me reconhecido antes que eu
me desse conta da sua presença e veio ao meu encontro com um sorriso que
deixava à mostra os dentes já amarelos de nicotina. Vestia jeans e camiseta,
os olhos redondos continuavam sem malícia sob as pálpebras cheias de rugas
e as mechas de prata dominavam o cabelo farto. Era evidente que estava
satisfeito por me encontrar e foi para esticar a conversa que me convidou para
um café e um copo de leite da esquina da Ubaldino com a rua Brigadeiro
Tobias. Enquanto caminhávamos lado a lado ele cedeu a calçada sem que eu
reparasse e seguiu pela pista de paralelepípedos que naquela tarde parecia uma
placa de granito. Embora eu não perguntasse nada, disse que as filhas estavam
bem e que a mais velha ia estudar medicina e a do meio balé. Os negócios
estavam melhorando, tinha acabado de arrematar uma Brasília para as
entregas e pretendia construir uma casa no terreno comprado fazia algum
tempo no Alto do Cerrado. O que não disse, certamente porque o constrangia,
é que a família dependia mais do trabalho de Anita e das filhas do que das
vendas de aguardente nos bares da cidade. Como quer que fosse parecia feliz,
e a não ser a pressão alta, que o deixava sem fôlego para trabalhar num dia
como aquele, o resto estava em ordem e a vida corria pelo trilho certo. Fez
questão de pagar o café e o copo de leite que havia tomado no balcão e para
se despedir disse com uma solenidade esquiva que tinha de passar pelos
clientes de Árvore Grande. Já na esquina da rua Quinze de Novembro voltei
110

o olhar para a descida que se precipita da praça do canhão para a ponte sobre
o rio e pude enxergá-lo de longe com a alça do garrafão verde na mão direita.
Como se tivesse adivinhado que eu o observava, virou-se para mim naquele
instante e fez um aceno com a mão esquerda, mas não demorei em dar-lhe as
costas para subir a ladeira no sentido contrário (CARONE, 1998, p. 102-103).

O trabalho como vendedor de aguardente ao qual o narrador se refere foi o último da


vida de Ciro. Ele revendia em garrafões nos bares da cidade uma aguardente que comprava em
alambique de Votorantim. Ironicamente, acabou lhe sendo destinado comercializar um produto
que contribuiu para a morte de sua mãe muitos anos antes. A vida de Ciro foi marcada por
longos anos de penúria e por pouco tempo de prosperidade. Além de caixeiro viajante em
companhia do pai, em uma região de mata fechada, foi, entre outras coisas, balconista de
farmácia e de bar, operário da Estrada de Ferro Sorocabana e gráfico do jornal Cruzeiro do Sul.
O conhecimento que adquiriu como gráfico o levou a montar a sua própria empresa. Foi o
momento de maior prosperidade de sua vida, coincidindo com os anos do governo de Juscelino.
Os negócios, porém, entraram em declínio, ao mesmo tempo em que a situação econômica do
País se deteriorava, no início da ditadura militar. Tal como acontecera ao pai, Ciro foi à falência
e nunca mais se reabilitou. Morando em casas alugadas, peregrinava pelos bairros periféricos
de Sorocaba, já que era obrigado a desocupar os imóveis por falta de pagamento e locar outros.
Da mesma forma como Ana representa a mulher tolhida nos seus desejos e na sua
sensibilidade pelas convenções sociais vigentes na sua época, Ciro representa o homem
brasileiro pertencente aos estratos sociais de baixa renda. Não há redenção para nenhum dos
dois, nem tampouco sublimação da dor. A descrição da morte de Ciro é a passagem mais
literária da segunda parte do livro. É romântica no sentido lato da palavra, pois funde pungência
e apelo emotivo na imagem clássica do herói que perece nos braços da companheira, jurando
amor a ela. É também realista, pois tudo se consuma à uma hora da tarde, marcada pelo apito
de uma fábrica – remissão ao trabalho assalariado rude e repetitivo destinado aos pobres.

Assistiu à passagem de tudo o que tinha vivido e só soube o que aquilo


representava quando, no início da tarde, esteve com Anita pela última vez.
Antes disso fez as entregas, despediu-se dos clientes mais chegados, no
caminho da padaria passou os dedos pelo reboco do mosteiro de São Bento,
comprou dois litros de leite e um quilo de pão e abriu a porta da casa ao meio-
dia. Tomou um copo de leite na cozinha e foi até o barracão dos fundos para
descansar. Anita chegou pouco depois e ao atravessar a soleira percebeu que
Ciro estava tendo um enfarte. Ainda foi capaz de desabotoar a camisa
empapada de suor, procurou reanimá-lo chamando-o pelo nome e no momento
em que ele abriu os olhos e os músculos do rosto se descontraíram, a única
coisa que ouviu direito foi uma pergunta – se ela sabia que ele gostava dela.
Anita tinha certeza de que era uma hora da tarde e que por algum motivo
estava soando o apito de uma fábrica. Não vinha de muito longe do barracão
111

onde o marido acabava de morrer nos seus braços: chegava do centro de


Votorantim, sede do império industrial da família Ermírio de Morais
(CARONE, 1998, p. 111-112).

O narrador conclui a história estando presente ao sepultamento de seu tio Ciro, e com o
que seria o avesso de um final grandiloquente ou revestido de significação profunda, uma
anedota amarga, representativa do que foi Ciro na sua existência mais ou menos breve: um
homem comum, assolado por circunstâncias adversas que ele próprio jamais compreendeu,
mas, ao mesmo tempo, invulgar na memória familiar pela candura, pela persistência, pelo seu
sentido humano, afinal.

Quando o caixão é finalmente transportado para o interior do cemitério,


agarro uma das alças e constato que o revés não abandonou Ciro até o fim,
pois é numa tumba sem lápide que ele some sob a terra e só no dia seguinte
chega a notícia de que o corpo foi enterrado na cova errada (CARONE, 1998,
p. 112-113).

Resumo de Ana tem laços de afinidade com um ensaio publicado em 1994 por Francisco
Foot Hardman, à época também professor da Unicamp, como Carone, fazendo parte de um
amplo dossiê que a Revista USP dedicou ao tema da Nova História. O editorial observa que
aquele número incluía textos “sobre” e “de” Nova História. O ensaio de Hardman, incluído na
segunda categoria, exercita a leitura da correspondência trocada entre o escritor Euclides da
Cunha e seu filho “Quidinho”, destacando os sentimentos ali presentes, incorporando esses
discursos repletos de afetividade ao seu próprio, e assim construindo uma forma de ler as cartas
e os postais que se enreda a todo momento com as vozes e os gestos congelados no tempo de
pai e filho. A voz narradora, no entanto, faz com que os sentimentos extraídos dos textos
permaneçam em uma zona intermediária, fronteiriça entre o seu próprio discurso e as vozes do
passado.
Restou muito pouco da memória dessas tragédias complementares:
universais, por um lado, tipicamente nacionais, por outro, reveladoras da
dialética perversa entre violência e afeto nos fundamentos societários da
família brasileira, profundamente enraizada entre nós, assunto de já tanta
história e literatura. A Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional conserva,
a propósito, fragmento de apenas uma folha do texto atribuído a Euclides
Filho, com sinais visíveis de que terá sido queimado todo o restante, isto é,
sua quase totalidade.
Na mitologia euclidiana, muito se falou sobre o cérebro do genial
criador de Os Sertões, guardado em formol no Museu Histórico Nacional para
futuros estudos e averiguações, e transportado, com pompa solene e mórbida,
bem conforme ao messianismo brasileiro, em setembro de 1983, para seu
município natal, Cantagalo, convertida a casa em que nascera num pequeno
museu.
112

Mas, certamente, desde Afrânio Peixoto, médico-escritor amigo de


Euclides, então chefe dos Serviços Médicos Legais da Polícia, e Roquette
Pinto, diretor do Museu Histórico Nacional, os que se aventurassem no
temerário caminho de promover ciência devassando aquele encéfalo
esbarrariam nos limites da própria razão. Por trás do foco pretendido com as
luzes cefálicas, ocultam-se motivos de coração, estes sim historicamente
determinados e cientificamente determinantes. Românticos por excelência,
como aliás o foram em grande parte a concepção de mundo e expressão
literária euclidianas, tais motivos e mistérios insinuam-se delicada e
fugidiamente nas caligrafias que o afeto desenha, por exemplo, em cartas
familiares que surgem, assim, como “vestígios do dia”, afeto que se contém
nas barras da autoridade imposta e do superego cristalizado; afeto que quase
nunca é dito como tal, inscrevendo-se, porém, caligráfica e cartograficamente
em folhas de papel que certa deusa das lembranças, feminina e acolhedora,
capaz de aplacar, por algum século, a fúria destrutiva de Zeus, nos restitui
agora.
Afeto que desapareceu nas malhas da civilização que se selou a pólvora
e sangue. Cujo ciclo vingador deixa sinais, por toda parte, da enorme
fragilidade do processo. Curto-circuitado, este, pelo afeto não-resolvido,
explosivo. Afeto que permaneceu como resíduo, entretanto, na grafia feita
com tinta, pena e papel, em folhas e cartões. Que os correios timbraram e
expediram. Muitas vezes estimulando, na sua volta, respostas, ora breves ora
longas, ora no mais do tempo para sempre extraviadas. Correspondência que
a memória, ela também deusa manuscrita, reteve para nós. Vestígios à espera
de serem re-significados. Vestígios do dia antes da morte do patriarca e suas
criaturas. Fragmentos mínimos, sabemos, de um discurso amoroso [...]. Ante
a morte que iguala valentes, convém perguntar pelo destino de alguma bala
perdida, que nos leve para trás, flash-back embaçado em que se divisa, para
além da linha do fogo cruzado, o peso possível e real das palavras, a esperança
singular, irrepetível, que só o tempo-postal, materializado na intimidade
manuscrita de poucos papéis restantes, é capaz de evocar. A história, aqui,
nada mais é do que esse correio imaginário, essa posta-restante sempre
transitória, mas único albergue viável para esses pequenos vazamentos de
corações solitários, pai-filho unidos no nome e na carne, na nervura sangüínea
da escrita ocasional, bala perdida no folhetim da vida, caligramas do amor que
precede a morte, ai meu pai, o futuro dirá? (HARDMAN, 1994, p. 94; 95).

“[...]motivos e mistérios insinuam-se delicada e fugidiamente nas caligrafias que o afeto


desenha”: passa-se flagrantemente ao largo do rigor científico. Um advérbio, fugidiamente,
crava a imprecisão no meio do enunciado. Algo que ocorre de forma fugidia já está sendo
enunciado com o recurso ao sentido figurado, com o sentido de ser fugaz, efêmero. O verbo
desenhar, também em sentido figurado, é licença poética concedida onde a poesia sequer seria
cogitada.

O ensaio remete de forma velada a obras literárias, a outros ensaios e à mitologia grega,
como em Resumo de Ana o bovarismo é reverenciado a certo momento, parecendo que, ao fazê-
lo, evoca-se e homenageia-se a grande tradição do romance realista do século XIX.
113

Tal qual ocorre em Resumo de Ana, o leitor é informado a respeito do desenlace das
trajetórias de vida daquelas pessoas, mas não por meio do relato de uma personagem, e sim pela
História, tão presente também em vários momentos no romance de Carone. Euclides pai foi
morto a tiros pelo amante de sua mulher no episódio que ficou conhecido como tragédia da
Piedade. O filho delegado de Polícia foi morto em ação no Acre em 1916 quase sete anos depois
do assassinato de Euclides. É atribuída a ele, na agonia final da morte, a frase “Ai, meu pai”,
que Hardman incorporou ao ensaio, vinculando-a à cadeia afetiva entre pai e filho.
Completando a tríade da fatalidade, Quidinho foi morto naquele mesmo ano pelo assassino do
pai.
A matéria do ensaio desliza para a prosa literária, com reiterações, digressões e metáforas.
Consente a si mesma uma evasão ficcional, ao supor a visita de pai e filho à Exposição Nacional
de 1908, no Rio, sem que haja uma prova de que esse encontro ocorreu de fato:

Poderíamos fixar este instante como a mais sublime representação de


um encontro ideal, imaginando o que teria sido (não se sabe se, com efeito,
ocorreu) essa viagem pelos pavilhões feéricos do delírio tecnológico
modernista, o adolescente saindo da reclusão do internato para o “infinito
artificial” de um passeio enciclopédico e ciclópico, conduzido pelas mãos do
pai-engenheiro-escritor, às voltas, então, ele também, com o caos do universo
e os dramas insolúveis da existência, com os impasses da modernidade
brasileira e o vazio da burocracia de Estado – e com o deserto da ordem
familiar. De que ele próprio não conseguiria jamais se libertar. Sina que seus
filhos seguiriam cegamente, presos nas malhas de afeto cativante ao extremo
de cativeiro e tragédia (HARDMAN, 1994, p. 100).

É o percurso inverso de Resumo de Ana, que tem o ensaio como paradigma de estilo, mas
ambos os textos se encontram no hiato formal gerado pela inespecificidade. Ao mesmo tempo,
e paradoxalmente, o ensaio incorpora elementos próprios do artigo acadêmico: muitas e
extensas notas, analitismo, formalidade.
O vínculo desse ensaio com a Nova História está na incorporação de uma micronarrativa
extraída de uma narrativa maior: a biografia do Euclides autor de Os sertões, que no entanto
não se materializa no ensaio. O Euclides ali presente é o pai de Quidinho. Seus atos e gestos
são comuns a outros pais, mas a sombra do grande escritor lá está, desgarrada da película da
grande História.
A apropriação do teor da correspondência para estabelecer as caligrafias do afeto equivale
à “pesquisa de campo” feita pelo narrador de Resumo de Ana, colhendo o depoimento de
Lazinha. As mãos de direção do ensaio de Hardman e do romance de Carone estão de fato
114

invertidas pelas vozes que os narram: a do ensaio quer ser voz literária, ao passo que a do
Resumo conduz a matéria com mão e dicção de ensaísta.
A micro-história é o fator que une as duas narrativas enquanto processos e produtos finais.
Bethencourt e Curto (1991, p. VIII), ao discorrerem sobre a natureza das pesquisas
desenvolvidas pelo historiador Carlo Ginzburg, afirmam que a maioria dos seus trabalhos é
atravessada pela linha condutora da “valorização dos fenómenos aparentemente marginais,
como os ritos de fertilidade, ou dos casos obscuros, protagonizados pelos pequenos e pelos
excluídos, cuja verdadeira dimensão cultural e social acaba por ser demonstrada”
(BETHENCOURT e CURTO, 1991, p. viii).

[...] não há dúvida de que o autor introduziu uma nova maneira de fazer
a História que deu os seus frutos nas décadas de 70 e 80: uma abordagem que
privilegia os fenómenos marginais, as zonas de clivagem, as estruturas
arcaicas, os conflitos entre configurações socioculturais – uma abordagem que
procede a partir da microanálise de casos bem delimitados mas cujo estudo
intensivo revela problemas de ordem mais geral, que põem em causa ideias
feitas sobre determinadas épocas (nomeadamente a impossibilidade de
descrença no século XVI postulada por Lucien Febvre) (BETHENCOURT e
CURTO, 1991, p. X).

O próprio Ginzburg (1991, p. 172) discorre sobre as pesquisas históricas “caracterizadas


pela análise extremamente próxima de fenómenos circunscritos (uma comunidade aldeã, um
grupo de famílias, mesmo um indivíduo)”.

A análise micro-histórica é [...] bifronte. Por um lado, movendo-se


numa escala reduzida, permite em muitos casos uma reconstituição do vivido
impensável noutros tipos de historiografia. Por outro lado, propõe-se indagar
as estruturas invisíveis dentro das quais aquele vivido se articula. O modelo
implícito é o da relação entre langue e parole formulado por Saussure. As
estruturas que regulam as relações sociais são, como as da langue,
inconscientes. Entre a forma e a substância há um hiato, que compete à ciência
preencher. (Se a realidade fosse transparente, e portanto imediatamente
cognoscível, dizia Marx, a análise crítica seria supérflua.) Por isto propomos
definir a micro-história, e a história em geral, ciência do vivido: uma definição
que procura compreender as razões tanto dos adeptos como das adversários
da integração da história nas ciências sociais – e assim irá desagradar a ambos.
O termo “estrutura” é todavia ambíguo. Os historiadores têm-no
identificado predominantemente com a “longa duração”. Talvez tenha
chegado o momento de, noção de estrutura, acentuar antes a característica de
sistema, que engloba, como mostrou Jakobson, tanto a sincronia como a
diacronia (GINZBURG, 1991, p. 177-178).

Em outro lugar, Ginzburg (2007) comenta um ensaio publicado em 1869 pelo crítico
Saint-René Taillandier, logo depois da publicação do romance A educação sentimental, de
115

Flaubert. Nesse ensaio/resenha, Taillandier afirma que a obra parece conter a ideia de que os
fatos históricos de um quarto de século são explicados pelo comportamento da personagem
central (GINZBURG, 2007, p. 243). Ginzburg elenca, ainda, os pontos que Taillandier realçou
na sua leitura de A educação sentimental:
estranheza do autor em relação à obra; procedimentos narrativos que são fins
em si mesmos; impassibilidade; história em que se entrelaçam acontecimentos
públicos e assuntos privados sem importância, irrelevância global; desencanto
do mundo (GINZBURG, 2007, p. 244).

É pertinente retomar uma reflexão de Jacques Rancière, já citada:


Passar dos grandes acontecimentos e personagens à vida dos anônimos,
identificar os sintomas de uma época, sociedade ou civilização nos detalhes
ínfimos da vida ordinária, explicar a superfície pelas camadas subterrâneas e
reconstituir mundos a partir de seus vestígios, é um programa literário, antes
de ser científico (RANCIÈRE, 2014, p. 49).

Seria mais apropriado dizer que é um programa tão literário quanto científico, sem que
um sobrepuje o outro. Esse entrelaçamento dos acontecimentos históricos, macro-história, com
a vida ordinária das personagens, micro-história, é o substrato que compõe as matérias do ensaio
de Hardman e, de certa forma, também de Resumo de Ana. É uma prova da mobilidade do
literário, do seu deslizamento para as formas de expressão não literárias, da sua expansão de
campo, da sua inespecificidade. Mas também é a prova de que há uma sedução pelo estilo, pela
exuberância rebelde das letras, rondando outros campos das ciências humanas, como a história,
a antropologia e a sociologia.
O ensaio de Hardman é o ponto culminante daquilo que, amalgamando a liberdade do
espírito criador e a contenção do esforço analítico, pode-se chamar de literatura. Resumo de
Ana, por outro lado, não é um ensaio: não se destina a “transmitir informações e ideias”, nem
se pretende “uma breve explicação escrita de um assunto bem delimitado” (BARRASS, 1986,
p. 51). Também não contém aquele traço marcante dos ensaios de Montaigne, que é uma tomada
de posição relativamente a um fato ou problema tendo como norte suas próprias convicções.
Assim como o ensaio de Hardman não deixa de ser ensaio porque executa uma performance
literária, também Resumo de Ana não deixa de ser romance, ou literatura, porque o seu discurso
desliza para a forma do ensaio. As questões que daí surgem são: por que o escritor optou por
tratar dessa forma um relato que faz parte da sua memória familiar? Por que a insistência no
discurso indireto e por que uma única voz narradora com tal distanciamento daquilo que narra?
Acreditamos que a preocupação que revela com a verdade da personagem, em não traí-la,
conforme se lê no depoimento à Biblioteca Mário de Andrade, já aludido (CARONE, 2007b),
responde em parte a essas questões: não faltar com a verdade, não trair é não simular uma voz,
116

não lhe atribuir um discurso. Isso implica um posicionamento ético, estético, filosófico e
político, além de ser uma particularidade do estilo.
Resumo de Ana parece ilustrar com exemplos vivos, em plano fechado, o que o discurso
historiográfico, ou sociológico, ou antropológico, só consegue fazer em plano geral. E o que a
matéria narrada do Resumo embota, mas o leitor que lê o País percebe, é que este resumo resume
o Brasil, a incongruência da sua modernidade, o sofrimento e a ruína de gerações sem lenitivo
e esperanças, a “pequena multidão de moças e rapazes cujos rostos a escuridão ocultava”
(CARONE, 1998, p. 50). As histórias agônicas de Ana e Ciro ultrapassam as duas narrativas
particulares e iluminam a grande História do século XX, com a sua industrialização frenética,
a urbanização, os deslocamentos urbanos, as massas deserdadas – promessas de prosperidade e
felicidade que só se cumpriram para poucos. Mais de uma vez no livro o narrador se refere ao
trabalho compulsório a que tiveram de se submeter Ana, seus filhos e depois as filhas de Ciro.
O adjetivo compulsório é unívoco, preciso, muito mais do que, por exemplo, obrigatório. Por
isso está na justa medida de um artigo ou ensaio de sociologia, não da ficção literária. É evidente
que o fato de estar em Resumo de Ana não obedece ao acaso nem tampouco a uma injunção
poética: presta-se ao diagnóstico e à análise de um aspecto da realidade social brasileira, levados
a cabo em um discurso que mescla a gratuidade da literatura à intencionalidade do ensaio. Esse
aspecto é a permanência das relações escravistas de trabalho no Brasil, algo que autores como
Caio Prado Jr. abordaram em suas análises da conjuntura social e econômica do País. Vê-se,
inclusive, que a exploração do trabalho infantil tem longa sobrevida na sociedade brasileira,
escamoteada pela situação precária do “agregado”. A figura avara de Ernestina parece extraída
de uma página dos romances de Dickens e Victor Hugo, ou dos contos de Chekhov.
Um traço distintivo importante do Resumo é que introduz no presente um real in absentia,
algo não visível no “real que está por aí”, do qual fazem parte as muitas vozes silenciadas pelo
discurso da História. Há, ali, toda a economia do fabrico artístico modernista: mesclando
linguagens, deslizando para fora de si, falando de si.

3.3 Em face da crítica e da teoria

Parte expressiva da produção contística de Modesto Carone surgiu da necessidade urgente


de defenestrar a experiência opressiva dos anos 70, o pior período da ditadura militar, quando
o Estado policial perseguiu, prendeu, torturou, matou, exilou, mas não só: também violentou
pela censura à informação, pela tirania econômica, pela imposição de um falso recato. São
gritos agônicos, tomando forma nas matérias narradas por meio de representações alegóricas
da violência, da morte, da incomunicabilidade, do cerceamento à liberdade de ir e vir e de se
117

exprimir livremente. Embora a maioria dos contos exprima a voz de um eu aderido ao seu
presente e na superfície, testemunha a dor geracional e a incredulidade frente ao Estado
devotado à violência.
Os contos dos três primeiros livros, sobretudo, são o que se costuma designar de
“difíceis”: há enredos, enunciados e expressões herméticos, que resistem à interpretação,
criando uma barreira entre o leitor e os textos. Mais do que isso: a leitura do conjunto dessa
produção nos faz perceber que a barreira não deve ser ultrapassada, que os contos precisam ser
lidos na opacidade da neblina densa, para que nós consigamos captar parte da atmosfera na qual
foram concebidos. Por esse motivo não concordamos com leituras dos contos como as que
fizeram Arêas (1997) e Galvão Filho (2004), embora respeitemos o rigor que as norteou. É que
esses autores, em virtude do rumo dado à sua argumentação, tiveram de colar significações às
alegorias e sentidos às passagens herméticas, o que (sob nosso ponto de vista, sublinhamos)
acaba se constituindo em uma crítica que dirige e limita excessivamente o olhar do leitor.
Na sua recepção ao livro As marcas do real, Antonio Candido destacou o risco de
incomunicabilidade que ali se punha. A percepção desse risco, a nosso ver, advém do fato de
ser uma primeira recepção crítica. Não há incomunicabilidade porque a criação literária acaba,
de uma forma ou outra, e por mais dificuldades que haja no percurso, comunicando. Os contos
de Carone não correm o risco de cair no abismo da incompreensão porque tudo neles é muito
medido, preciso, ainda que no seu limite extremo. Todavia, um teorema matemático e um
problema filosófico podem ser construídos de forma precisa e ainda assim serem de difícil
intelecção. O equilíbrio complexo da criação de Carone – vislumbrando-a no seu conjunto, isto
é, considerando também Resumo de Ana – não é o da comunicabilidade/ incomunicabilidade, é
o da especificidade/ inespecificidade, é o da pertença a um campo específico ou a vários campos
diferentes (GARRAMUÑO, 2014, p. 17), é o da autonomia/ pós-autonomia (CANCLINI, 2012,
p. 24), o da ficção literária/ veracidade. Leiamos Antonio Candido:

As idéias que vêm ao espírito lendo estes textos de Modesto Carone são
a de corda esticada e a de fio da navalha. O equilibrista andando com
tranquilidade, embora cautelosamente, na superfície arisca que quase não
existe, que pode fazê-lo cair a cada instante para um lado ou outro do abismo.
O abismo no caso é o insignificante, isto é, o que não forma sentido nenhum,
dissolvendo-se na assemia do nada [...]. Os textos parecem a cada instante
empurrar a percepção para um objeto ou um fato concreto do mundo e da
alma, mas a cada instante eles se dissolvem, para ficar apenas a estrutura
arbitrária das palavras. Então o leitor se prepara a fim de receber o impacto
dessa combinação quase abstrata, mas logo lhe parece que o mundo se propõe
de novo com uma densa realidade. Flutuando entre as duas tensões, empurrado
para a palavra em si e puxado para a imagem do mundo, ele vai percebendo
como se forma uma espécie de realidade nova, - a realidade poética, na qual
118

a palavra visa a si mesma e no entanto cria o mundo. Esses textos são fortes,
porque são instituidores (CANDIDO, 1979. Grifo nosso.)32.

Candido aproxima a metalinguagem e a poeticidade do movimento de olhar para o


mundo exterior, esforço coerente com uma forma de construir a crítica ainda em voga no Brasil
na época em que ele escreveu esse texto, mas já em um ponto de transição da perspectiva
imanente para a transcendente das obras. Percebem-se no seu texto, vestígios da leitura das
obras de escritores como Guimarães Rosa, Pedro Nava e Clarice Lispector, nas quais há, de
fato, uma simultaneidade entre o ato de se construir olhando para si mesmas e de representar
poeticamente a realidade exterior.
Leituras mais recentes dos contos de Carone já não vislumbram como tão próximas a
autorreferência, a presença no texto de elementos que o constituem como poético e a visada
externa. Veremos a seguir. Por ora destacamos outro aspecto da crítica de Antonio Candido que
entendemos ser elucidativo quanto ao processo de criação de Carone.

Modesto Carone parece chegar aqui a uma espécie de fusão das suas
capacidades. Poeta conciso e penetrante, que custa a divulgar os seus poemas,
ele convive desde sempre com os modos peculiares da elaboração poética.
Crítico imaginoso e preciso, tem publicado estudos excelentes, nos quais o
poeta vai ao encontro do estudioso com uma naturalidade feliz (CANDIDO,
1979).

Observe-se que Antonio Candido foi, em certa medida, contemporâneo de Carone, além
de seu colega na crítica literária e na docência acadêmica. A complexidade em torno do escritor
Modesto Carone é que o criador literário se funde ao crítico, ao ensaísta, ao tradutor e as
qualidades e características de cada uma das atuações se mesclam de tal maneira que há algo
do crítico, do ensaísta e do tradutor no contista e no romancista.
Vilma Arêas, que foi colega de Carone quando lecionou na Unicamp, produziu um
ensaio (1997) no qual analisa os três primeiros livros de contos e “Resumo de Ana”, ainda a
novela, publicada em 1989 na revista Novos Estudos Cebrap, nove anos antes do romance
homônimo. Extraindo uma frase do conto “Aos pés de Matilda” (“atrás da porta um sopro torpe
desmascara os objetos mais familiares”), Arêas afirma que “essas palavras revelam [...] a
intencionalidade do autor – abalar com violência os fundamentos e o conforto dos lugares
amenos ou dos lugares-comuns da figuração literária [...]” (ARÊAS, 1997, p. 120).

32
Trata-se do texto que o crítico assina nas orelhas do volume.
119

Não nos parece apropriado afirmar que tenha havido a intenção de abalar os
fundamentos da representação literária, mas sim demonstrar que a expressão literária é possível
sem os recursos, as técnicas, os meios de expressão e os invólucros consagrados como literários.
A autora questiona, e o faz acertadamente, se há uma continuidade do que ela chama de
um projeto narrativo dos três primeiros livros de contos para a novela “Resumo de Ana”, mesmo
com diferenças tão significativas entre eles:

De um lado uma construção convulsa que pode indispor o leitor (a


intenção é mesmo esta), de outro uma narrativa lisa que conta uma história,
assim como avisados, verídica. O que poderia haver em comum entre o feitio
cortante dos primeiros textos, nos quais a repetição incansável das cenas – de
trabalho, de amor, de assassínios, de pequenas e crônicas moléstias, de
violação, etc., sob o denominador comum do autoritarismo – é esvaziada de
subjetividade, e Resumo de Ana, que flui ao ritmo regular da construção
intencional da memória? (ARÊAS, 1997, p. 121).

Para Arêas há, de fato, esse elo entre os contos e a novela. Ela o identifica por exemplo,
no conto “As marcas do real”, que, com a sua “dicção clara e segura” (ARÊAS, 1997, p. 128),
seria passagem para a novela posterior, por também ser biografia e relato verdadeiro. Isso é
discutível, pois a “dicção clara e segura” está presente em muitos outros contos, inclusive
naqueles que não possuem a conformação discursiva própria de uma tese acadêmica, caso de
“As marcas do real”. O conto “Choro de campanha”, que a autora analisa, é narrado com
sobriedade e clareza, mas o seu enredo ostenta marcas de ficcionalidade, e aparentemente não
se trata nem de biografia, nem de relato verídico.
Permaneçamos na sua leitura de “Choro de campanha”:

[...] quem quer que leia com atenção “Choro de campanha”, num conjunto de
textos extremamente violentos em relação às circunstâncias nacionais nos
anos 70 (As marcas do real), percebe que tem diante dos olhos uma verdadeira
paideia do militar fascista entre nós, sua formação a partir dos primeiros anos,
suas pretensões políticas, sua doença em estreita relação com a crise do
processo histórico, dedilhada em todos os diapasões no resto do livro. Aí estão
a velhinha de cem anos, antiga professora do grupo escolar que torturava os
alunos com réguas e palmatórias, e a educação da caserna, que alimenta
sonhos de poder e conecta erotismo com abjeção: em visita compulsiva à casa
de detenção o personagem tem uma ereção inevitável com os ruídos
possivelmente de tortura que vinham do fundo sujo dos corredores (ARÊAS,
1997, p. 122, grifos originais.).

Um traço marcante das análises feitas pela autora é a atribuição de sentidos, algo que,
como já dissemos, tem a desvantagem de eleger um sentido em detrimento de outros. Arêas
também fala na “sentimentalização que envolve todas as cenas” desse conto (ARÊAS, 1997, p.
120

127), uma vez que o candidato chora ao reencontrar a antiga professora e ao adentrar no
presídio. Esse choro, no entanto, está repleto de ironia: é postiço e até esquizofrênico. Tem-se
aí um antissentimentalismo.
Um estudo dos contos de Carone posterior a esse ensaio de Arêas também defende a tese
da subjetividade. A análise que Galvão Filho (2004) faz da trilogia de contos de Modesto
Carone recorre às teorias psicanalíticas em busca do sentido dos textos além da camada
superficial do discurso, mas o centro da sua discussão é a representação do real, o que ele
identifica como tensão entre a subjetividade contida no discurso do narrador e a objetividade
do real. Haveria, assim, uma ambiguidade nos contos: ao mesmo tempo em que o enunciador
fica preso ao mundo objetivo representado no seu discurso, há a manifestação de uma
subjetividade latente.

[...] um aspecto fundamental da narrativa caroniana consiste na dualidade que


se estabelece entre a articulação da subjetividade e a objetividade. Por um
lado, pode-se observar que a subjetividade, ou o discurso do narrador, produz
a objetividade. E por outro lado, cabe observar o inverso: o aspecto objetivo
da realidade também determina a subjetividade de um texto. No primeiro
caso, a subjetividade é compreendida como espaço de produção da realidade,
já que esta última não consiste em um produto pré-existente. As relações,
nesse caso, entre um texto qualquer e sua definição de realidade dependem
exclusivamente de uma motivação subjetiva, mesmo que esta se encontre em
um estado de latência ou esteja oculta pelos marcadores da confecção textual.
A obra de Carone, no entanto, também sugere o inverso, em sua articulação
ambígua: o mundo objetivo é o ponto de partida para a formação da
subjetividade (GALVÃO FILHO, 2004, p. 14-15. Grifos nossos.).

Há alguns problemas nessa leitura, advindos da tentativa de fazer convergir dois


paradigmas distintos de compreensão do mundo (antes de serem perspectivas teóricas): a
mimese aristotélica e as teorias psicanalíticas de Freud e de alguns de seus seguidores no século
XX. No conto “O jogo das partes”, de As marcas do real, que Galvão Filho analisa, a pessoa
verbal que enuncia é um eu, mas se sabe que, em parte considerável da literatura produzida no
século XX, esse eu que enuncia não é portador de subjetividade. A voz constitui-se, assim,
como simulacro, para dar a ilusão de um domínio sobre a linguagem e o mundo que acabam
não se confirmando, pela debilidade do herói, pela impossibilidade de se tornar senhor da sua
própria história. Não é uma voz de sujeito, investida de potência para exprimir a própria
subjetividade, é uma voz sujeitada a forças e movimentos alheios a si, neutralizada e presa à
superfície do discurso. Se há camadas profundas no discurso, o leitor as perceberá, mas não
esse eu narrador. A voz narradora de Kafka poderia ser um eu em vez de ele, Josef K., sem que
por isto a percepção de impotência e sujeição dessa voz fosse muito diferente. Talvez a maior
121

contribuição do formalismo e do estruturalismo para a crítica literária tenha sido instaurar a


suspeita em torno da voz que enuncia o texto literário, que é um entre outros artifícios do
processo de criação.
Outros dois críticos, Waldman e Pécora (1984), na sua análise do mesmo “O jogo das
partes”, cometem alguns equívocos ao tratarem da voz que enuncia.

[...] o eu é enunciado como um ele, uma nãopessoa, incapaz de contar-se a si


mesmo, então o lugar de sujeito de discurso é ocupado por um discurso pronto,
acabado, cristalizado. Portanto, um anti-discurso [...] (WALDMAN e
PÉCORA, 1984, p. 110. Grifos originais.).

O eu não é enunciado como ele; é, sim, esvaziado da natureza ativa que lhe seria inerente
como pessoa verbal. Ver a si mesmo representado como outro, investir contra a sua imagem no
espelho como se lhe revelasse um ser estranho, ver-se fora de si, tudo isso aparece com
frequência nos contos da trilogia de Carone, todos temporalmente muito próximos, situados,
em termos de edição em livro, entre 1979 e 1984. Esse eu que vê a si mesmo a partir do espelho
da cena é muito próprio da arte moderna: não está na literatura de Kafka, mas em alguns contos
e dramas de Pirandello e no cinema de Ingmar Bergman, por exemplo. É a forma de o século
XX dizer que o homem é “uno, nessuno e centomila”. O conto “O jogo das partes”, aliás, a
exemplo de muitos outros de Carone e do romance Resumo de Ana, traz uma referência sutil a
outra obra literária, marco da modernidade no teatro: a já mencionada peça Seis personagens à
procura de um autor (1921) é certamente aludida na cena final do conto, na qual uma das
personagens é baleada no palco e um médico é chamado para socorrê-la, saindo do meio da
plateia. No texto pirandelliano, como no conto de Carone, as pessoas da plateia “talvez
confundissem o que estava acontecendo com o enredo da peça” (CARONE, 1979, p. 107).
Resumo de Ana foi construído com fragmentos da memória pessoal e familiar do escritor,
mas o que expõe não é o sentimento de um indivíduo e sim um olhar crítico e inclusivo sobre
o século XX. Retomemos a leitura de Vilma Arêas (1997).

Em Resumo de Ana, nada de imperativos espetaculares, nada de mise-


en-scène [...], nada de literatura. Da passagem de uma representação a outra,
a ficção é recolocada por alteração de cena: sobe ao proscênio o humilde,
personagem ingrato e difícil de tratar” (ARÊAS, 1997, p. 129).

Essa proeminência conferida às personagens precárias que a História deixou no


anonimato é percebida por Jacques Rancière, como vimos, em um percurso crítico que começa
por se ater à entrada das massas populares na cena da História (1994), depois se atém à
122

introdução das personagens populares no romance realista do século XIX, já não mais visando
ao escárnio (2010), propõe a metáfora da partilha do sensível para representar em termos
políticos o direito à arte nas sociedades democráticas (2009) e, finalmente, exalta uma literatura
feita pelas margens, com “a vida das pessoas comuns investida do dom de transfigurar, de
transpor seus limites” (2018b), que ele encontra nas Primeiras estórias de João Guimarães
Rosa.
Arêas aprofunda a discussão sobre o deslocamento da prosa de Carone para além do
literário em “Resumo de Ana”: “Desaparecem nesse momento”, diz ela, “as imagens
intensamente coloridas; a aparente retração dos recursos artísticos parece fazer a prosa de
Carone passar rente ao não-literário, avançando até seus próprios limites (ARÊAS, 1997, p.
129. Grifo original.).

O poeta e crítico José Paulo Paes, recepcionando o livro Resumo de Ana no ano do seu
lançamento, toca na problemática do gênero pelas margens, ao dizer que o livro substitui a
metáfora pela objetividade e que a escrita “se coloca decididamente sob o signo do impessoal
e do objetivo” (PAES, 1998, p. 9).
Waldman (1998), também resenhando o Resumo, põe em questão a sua ficcionalidade.

Estirada ao máximo, a linguagem é montada por uma escrita exata,


disciplinada, atenta aos objetos do mundo, à matéria, a tal ponto que esta
parece servir de guia ao trabalho da forma. [...] a atitude objetiva e distanciada
desse tipo de formalização traz à tona algo que se identifica com o rigor
científico, provocando estranhamento no leitor, que chega a se indagar sobre
o caráter ficcional do texto [...]. A construção do relato é difícil de classificar,
pois o texto não é propriamente biográfico, embora haja um traçado biográfico
dos protagonistas; nem memorialístico, ainda que o relato resulte de
lembranças muito mediadas do convívio com Ana e com Ciro; não é um
ensaio histórico, embora as contingências históricas que emolduram a
narrativa, no período de transição do regime escravocrata para o capitalista,
estejam implicadas; nem um depoimento, ainda que a história resulte algumas
vezes de uma experiência partilhada com os protagonistas (WALDMAN,
1998. Grifos nossos.).

Uma obra inclassificável, como também o são vários dos contos de Carone, porque
deslizam entre formas, gêneros e temas, sem no entanto fundear em nenhum deles. Ainda assim,
não se pode negar, neles, a presença pálida daquelas mesmas formas, gêneros e temas. Assim,
sem outra opção aceitável, chamamos a essas obras contos e romance.
A exemplo do que fizeram outros autores posteriormente, como Paes (1998) e Dionísio
(2006), Arêas também identifica diferentes vozes em “Resumo de Ana”.
123

[...] há diferentes vozes embutidas na voz do narrador e que permanecem, por


decisão expressa deste último, estranhamente audíveis, decerto por não se
saber exatamente qual o sentido da experiência individual em todas as suas
particularidades irredutíveis (ARÊAS, 1997, p. 136).

Mas, relativamente à personagem Ana, a autora faz uma objeção:

[...] nessa história que se transmite de boca em boca – de mão em mão, como
num jogo de anel – a voz principal não soa. [...] A voz de Ana não soa
verdadeiramente; é transmitida e retransmitida, eco ou vestígio, semelhante à
imobilidade da mulher um dia viva na fotografia minúscula, sorridente e de
mãos apoiadas na cintura fina (ARÊAS, 1997, p. 136-137. Destaque da
autora.).

Dionísio (2006) sustenta que, em Resumo de Ana – aqui já se referindo a livro e às suas
duas partes,

o corpo da escrita opera com a existência de várias vozes – ou


“entidades”: a voz de Ana, que confidencia sua história a Lazinha, sua filha
mais velha; a voz de Lazinha, que é também personagem da história, que relata
o passado ao seu filho; a voz de Anita, que se tornara companheira de Ciro até
o fim da vida; e a voz do próprio narrador, neto de Ana, filho de Lazinha (cujo
nome não figura na narrativa) – que é, antes de tudo, o leitor de um texto
narrado, que recolhe as memórias e palavras de sua mãe e de Anita [...]
(DIONÍSIO, 2006, p. 166-167).

Os estudos literários, e de certa forma o conjunto das humanidades, têm padecido no


Brasil, já há algum tempo, dessa tendência a identificar vozes, resultante da apropriação um
tanto apressada e acrítica das reflexões de Bakhtin concernentes à polifonia. Tratando-se de
Resumo de Ana, o exagero é flagrante. A única voz audível no romance é a do narrador. As
demais não existem efetivamente, pois tudo o que teriam feito ou dito nos é relatado pelo
narrador pela via do discurso indireto – e não pelo discurso indireto livre, como também
sustenta Dionísio (2006, p. 167). O outro não é alcançado nem mesmo em seus pensamentos.
O fato de haver uma única voz narradora em Resumo de Ana aproxima o discurso do ensaio
analítico-crítico, como também de outros textos do pensamento.
Luciene Azevedo (2017), dialogando com um texto do crítico português Abel Barros
Baptista, identifica a invasão da ficção modernista por uma dicção próxima da do ensaio.

Para desenvolver melhor o argumento, o crítico português avança em


uma direção que é a que mais me interessa agora. Defendendo a ideia de que
a literatura moderna “tem reputação de se distinguir pela natureza ensaística”,
o argumento caminha para constatar que inúmeras vezes a literatura, o
romance, o conto, deixam-se contaminar pelo ensaio, deglutindo-o sem perder
sua identidade, sem deixar de ser literatura, romance ou conto e que o inverso
124

também deveria ser verdadeiro: o ensaio poderia incorporar a forma ficcional


sem perder sua identidade. Mas a possibilidade dessa última premissa logo é
descartada porque o crítico assevera que a própria concepção moderna de
literatura é marcada pela possibilidade de imitação, de fingimento de qualquer
outro gênero, já que o romance, o conto, as formas ficcionais incorporam
qualquer outro gênero discursivo não ficcional como dispositivo da própria
ficção (AZEVEDO, 2017).

Azevedo sustenta, ainda, que essa discussão “procura problematizar o lugar comum das
análises literárias e desrecalcar a secundarização das formas não ficcionais no regime de
funcionamento da própria ficção” (AZEVEDO, 2017).

Há um Zeitgeist – um espírito do tempo – a rondar a literatura produzida em anos recentes,


mas que já se manifestava no modernismo. Néstor Canclini (2012) foi quem melhor o
sintetizou: é uma tendência da literatura a “surgir em outras cenas”, ou seja, a deslizar para
outros contextos de produção da arte e do conhecimento, já que para esse crítico da diáspora
não há mais domínios exclusivos, como se fossem territórios. Uma literatura que também pode
ser chamada de diaspórica. Ao que parece, isso afeta também a cena política na qual o escritor
se insere e os papéis que ele desempenha: o escritor hoje, tal como ocorria com Modesto
Carone, não se dedica exclusivamente à tarefa de produzir literatura. O seu olhar sobre a
realidade é múltiplo e com frequência o vemos fazendo pontes com outras culturas: traduzindo
livros, participando de eventos no exterior, engajando-se em campanhas globais.
125

CONSIDERAÇÕES

Muitas obras de arte recentes, quer sejam literárias ou não, caracterizam-se pela
mobilidade entre formas de expressão, traços de gêneros e temas, sendo indefiníveis e, por
conseguinte, inespecíficas. Encontramos vários exemplos no cinema, nas artes plásticas, na
videoarte e, é claro, também na literatura. Há, inclusive, obras que originalmente se destinam
ao registro jornalístico e biográfico e incursionam pela ficção. Podemos dizer que esse
deslizamento é uma característica comum de várias obras da literatura contemporânea,
destacando-se em meio a outras. Não é, todavia, algo que se possa considerar recente: advém
das experimentações do século XX, na vigência das vanguardas artísticas e na sua posteridade.
Quando elaboramos o projeto de pesquisa que resultou nesta tese, vislumbramos a
vinculação da obra ficcional de Modesto Carone a uma certa tendência das artes e da literatura
contemporâneas de serem inespecíficas e desprovidas de autonomia, nos termos do debate
proposto por Néstor Canclini (2002) e Florencia Garramuño (2014), autores que vêm
construindo uma reflexão que denominamos nesta tese de “crítica da diáspora”. No caso
específico do nome de maior expressão dentre esses autores, o filósofo Jacques Rancière, poder-
se-ia vislumbrar, nas suas indagações, até mesmo os indícios de uma diáspora da crítica. Demo-
nos conta, ao longo da nossa pesquisa, de que essas características mais gerais da literatura e da
arte contemporâneas, embora identificáveis no corpo da ficção de Carone, correspondem, no
caso deste escritor, às singularidades da sua dicção, do seu estilo, decorrendo da sua formação
ampla como leitor e crítico. O observador sempre arguto que foi Antonio Candido captou logo
de início essa vocação do Carone escritor a uma pertença múltipla. O trecho já foi citado, mas
o trazemos novamente para dar relevo ao fato:

Modesto Carone parece chegar [...] a uma espécie de fusão das suas
capacidades. Poeta conciso e penetrante, que custa a divulgar os seus poemas,
ele convive desde sempre com os modos peculiares da elaboração poética.
Crítico imaginoso e preciso, tem publicado estudos excelentes, nos quais o
poeta vai ao encontro do estudioso com uma naturalidade feliz (CANDIDO,
1979).

Uma forma de compreender a ficção de Carone é pensá-la desde as duas grandes


possibilidades que instaura para o leitor: a do desabafo, do grito que a voz narradora não pode
conter, que é da maioria dos contos, e a da arqueologia do outro a partir dos resíduos da sua
trajetória, presente nas reminiscências de quem testemunhou seus sonhos, desejos,
perambulações e frustrações dolorosas: é o caso do romance Resumo de Ana. Nos contos, o
126

narrador surge como aquele que tenta exprimir uma angústia entranhada no presente,
inalcançável pelo discurso, que acerca dela só pode oferecer uma percepção enevoada. O leitor
atento poderá depreender dali uma dor vivida não no âmbito individual, mas em uma
perspectiva geracional, dos que tiveram seus ideais, desejos, expectativas turvados pela
violência institucionalizada, pelo moralismo e pela censura disseminados no tecido social. Esse
processo narrativo impõe duro teste à literatura, que é o de se fazer abdicando da poesia, da
ambiguidade, das formas de evasão do real que, familiares ao universo do literário, tornam
possível o enternecimento face, por exemplo, às mais devastadoras cenas de guerras, catástrofes
ou instintos homicidas. Às voltas com recursos discursivos mais apropriados ao mundo da
análise crítica e da reflexão, a literatura cria, em Carone, um efeito ambíguo que é o mais de si
em menos de si, o excesso de presença na ausência. Trata-se, ali, de uma literatura que, mais do
que se negar como poesia e sentido, impõe que a experiência com a sua matéria seja construída
a cada passo, que o ato de ler extraia das palavras rudes o que elas tentam a todo custo embotar.
Para não atravessar aqueles textos tomado pelo espanto e pela inação, o leitor precisa se
conectar mentalmente a eles, se adequar ao seu imediatismo congelado no tempo e no espaço.
Se entendidos como gritos, como partes de uma necessidade urgente de narrar e traduzir
experiências dolorosas, contos como “Ponto de vista” e “Janela aberta” poderiam se
circunscrever aos limites de uma escrita catártica. Mas os ecos dessa forma de narrar se
manifestam na representação do outro em Resumo de Ana. Ali, o que aproximaria o narrador
da matéria, o que criaria um apelo subjetivo, na verdade o distancia: os vínculos parentais, o
fato de atuar como editor, organizador, montador sobre a matriz fabular, as memórias de sua
própria mãe. Tanto naqueles contos mais difíceis de As marcas do real, Aos pés de Matilda e
Dias melhores, como também em Resumo de Ana, não há um dizer do narrador que seja
exclusivamente seu, nem do outro. É um mundo ambíguo, que mescla a experiência particular
e a coletiva. No caso da representação do outro, em especial, a ficção de Carone se identifica
com a modernidade na literatura, pois revela o quão impossível é, na perspectiva de uma
verdade da arte, representar esse outro como parte de um simulacro de autonomia, já que ele é
insondável, inalcançável e intraduzível.
A leitura dos três primeiros livros de ficção de Carone põe-nos frente a uma radicalidade
do plano da expressão que, no entanto, não pode ser encerrada no âmbito da matéria narrada,
por possuir estreita vinculação com o desempenho de múltiplos papéis pelo escritor, com a sua
atuação como crítico literário, ensaísta, tradutor e professor. Vincula-se ainda, e fortemente,
com o contexto político e social no qual aqueles contos foram produzidos, justificando a
atmosfera opressiva e autorrepressiva que circunda a voz narradora. Resumo de Ana não tem a
127

mesma radicalidade, é evidente. Embora haja um esforço na construção de um discurso austero


e objetivo, há, também, um consentimento para que o leitor frua o texto. A narração continua a
ser parte de um jogo ambíguo que ora impede ora admite que o texto se desempenhe
poeticamente e seja assim usufruído pelo leitor. Tudo isso está posto em Resumo de Ana, mas
com muito menos intensidade do que na maioria dos contos. Por quê? Parece-nos que Resumo
de Ana, diferentemente dos contos, é movido por um sentido pedagógico: ministra o
ensinamento de que há de se ir além das linhas da grande História para se compreendê-la na
sua dimensão humana, trágica. Isso requer que se dê visibilidade àquelas duas personagens,
salvando-as do esquecimento, fazendo com que as trajetórias de ambas resumam dado período
de tempo, constituído, sobretudo, pelo breve século XX. Essa questão deve ser entendida como
procedimento narratológico, mas tomado em perspectiva expansiva – leia-se sociocultural.
Pertence, de qualquer forma, à ordem da focalização. Mas focalizar, aqui, não significa
conceder voz própria sob os spots, como seria de se esperar de uma representação literária
devotada a soprar, sobre a argila que modela os entes ficcionais, a divindade dramática que os
vivifica, dotando-os de fala, pensamento e emoções comuns aos outros seres. Curiosamente, e
nisto reside uma parte da força expressiva de Resumo de Ana, as personagens em questão, Ana
e Ciro, embora tenham ganhado visibilidade nas duas histórias do livro, são mantidas pelo
narrador em uma espécie de zona acrônica, na qual há uma suspensão tanto do passado das
personagens como do presente da narração. Isto pode parecer estranho ou contraditório em um
romance que faz remissões aqui e ali a fatos e personagens históricas. A breve condição de
prosperidade de Ciro é associada ao governo de Juscelino Kubitschek, enquanto o início do seu
suplício financeiro coincide com o governo de Castelo Branco, ou seja, com os primeiros anos
da ditadura militar. Na primeira parte, há alusões à crise da Bolsa de Nova Iorque (1929) e à
depressão econômica posterior. Esse é um traço do caráter ensaístico do discurso do narrador
e, mais especialmente, da sua proximidade com o discurso historiográfico.
É exatamente essa proximidade formal com a escrita da história, cujos traços mais
visíveis são o distanciamento e a objetividade analítica, que explica a condição acrônica das
personagens: a escrita historiográfica opera com frequência um efeito de estilo que é a adoção,
ao tratar dos fatos do passado, de um tempo verbal correspondente, no âmbito estrito da forma
gramatical, ao presente do indicativo, mas que, do ponto de vista semântico, ultrapassa as
noções valorativas de presente e passado. Vejamos um exemplo. Quando o historiador, na sua
obra, e a voz over do documentário histórico dizem que o período que tem início em 1914 e se
estende até 1949 muda radicalmente a face do mundo, sabemos que os fatos históricos aí
implicados são o início da I Guerra Mundial e o seu transcurso, toda a II Guerra Mundial e o
128

início da Guerra Fria. Seria ingênuo supor que essa construção linguística consiste em um
presente do passado, para causar no destinatário a sensação de estar no palco dos
acontecimentos. Os verbos no pretérito perfeito não impediriam esse efeito, pelo contrário: até
o intensificariam, pois é sempre desafiador e excitante buscar nos fatos tidos como resolvidos
e assentados na História algo que passou despercebido, uma lacuna, uma incoerência ou erro
de interpretação. Esse presente gramatical paira sobre a noção de tempo efetivo. Quando o
discurso diz que o período tem início, o sentido mais profundo é de que tudo está inserido em
um processo, de que o passado não está resolvido, e de que os acontecimentos históricos não
são do passado ou do presente, mas se inter-relacionam uns com os outros. Não são, portanto,
estanques e autônomos. É um efeito que guarda alguma semelhança com o encontrável nos
evangelistas do Novo Testamento, sobretudo quando aludem às palavras do Cristo: emprega-
se muito o futuro simples, que, todavia, não remete a um futuro determinado. A profecia que
ali está também é acrônica. O tempo no qual ela poderá vir a se concretizar está condicionado
ao encontro perfeito entre os rumos que a humanidade adotará para a sua civilização e tudo o
que lhe foi predito pelos profetas, ou seja, entre a História e a mística judaico-cristã.
Acerca ainda das personagens de Resumo de Ana, é importante se atentar para o fato de
que, embora estejam representadas e focalizadas no interior de uma matéria narrada cuja forma
se aproxima da de um ensaio historiográfico, Ana e Ciro não são personagens históricas. Ambas
resultam de fragmentos de memória, repletos de lacunas. Não são, portanto, autônomas, nem
tampouco autossuficientes. Há, aí, uma fratura que não é própria do fazer historiográfico ou do
gênero ensaio, mas da escrita literária. Ao serem deslocados do seu tempo, e também não
pertencendo ao presente, nem ao futuro, Ana e Ciro se inserem em um protocolo peculiar da
escrita historiográfica de representar um tempo fora do tempo. Mas, em Resumo de Ana, esse
protocolo já não está funcionando como estilo da História, e sim como metáfora literária da
condição humana. Ana e Ciro passam a e ecoar, assim, os infortúnios de milhões de indivíduos
cujos ideais e expectativas são frustrados por uma sociedade desigual. Poder-se-ia falar, em
outros termos, em utopia versus distopia, oposição sobejamente conhecida da arte modernista
e tão presente no mundo contemporâneo. As vidas de ambos são o breve adendo que a literatura
faz constar no relato da grande História, normalmente pouco atenta aos pormenores e às
existências anônimas. Lembramos que foi a mesma literatura que pôs as personagens populares
no centro da cena, no romance realista do século XIX: como não lembrar dos romances de
Dickens e Balzac, da galeria de homens e mulheres comuns de Os miseráveis, da Félicité de
Um coração singelo, só para citar algumas obras?
129

O problema central da nossa pesquisa suscita outras questões, como: há algo muito
próprio do literário que constitua a literatura como tal? Há, assim, uma literariedade ou uma
poeticidade do texto? A crítica da diáspora, sobretudo Rancière, afirma que não, e antes dele,
outros, como Todorov (2018), já o disseram. Para Rancière, a literatura pode ser feita com o
improvável aquém ou além da escrita, da mesma forma como ensinar algo a outrem pode
prescindir do conhecimento especializado do objeto. Mas, à parte as questões linguageiras, há,
sim, a presença sutil de um olhar, certa forma de traduzir o mundo, as ideias e os sentimentos
que são literários e poéticos em alguns momentos e em outros não. Há, sim, a percepção da
ausência de algo que seja literário ou poético em um objeto no qual ambos eram esperados ou
desejados. Há a mescla desses elementos sutis com as coisas do mundo verídico, austero,
analítico, crítico, científico, etc. Como fruidores da arte literária, já sabemos de longa data que,
quaisquer que sejam os meios que mobiliza para consegui-lo, ela busca sempre validar a dor
que não sentimos vivida por seres ficcionais, distantes e ausentes; promover a partilha da
experiência humana, seja ela negativa ou positiva, vertendo-a de particular em universal;
perenizar no tempo e no espaço das obras as sensações efêmeras, como um afago materno, um
aroma, um sabor e um lugar que desapareceram para sempre da face tangível deste mundo.

Não há, mesmo, como responder cabalmente às duas questões anteriores. Temos, como
leitores, a percepção de que a criação literária está fazendo experiências consistentes com
formas e temas que nunca foram exatamente os seus. Tem demonstrado, assim, uma vocação
expansiva. Incorpora, inclusive, iconografias e elementos de outras linguagens artísticas e de
outras semióticas, como no passado já assimilou a montagem ressignificada pelo teatro e pelo
cinema. Percebem-se essas transformações no ar e nas páginas, um novo Zeitgeist talvez, mas
não há, ainda, no conjunto da produção literária atual, um volume de obras que o comprove
naquele nível que a crítica literária exige para admitir esse movimento como tendência e não
mais como casos isolados.

Não gostaríamos de finalizar sem antes fazer menção a um sentimento especial que
sempre habitou nossa relação com a obra ficcional de Modesto Carone. Fomos, como leitores,
tocados pela força incomum que tem essa obra de dizer acerca de um tempo aquilo que a
História não diz – não porque não queira, ou não possa, mas porque não é próprio dela se deter
nos pormenores, nas margens, nas minúsculas falhas das vidas comuns. É difícil depreender de
muitos dos seus contos o grito denunciador da condição inumana que a ditadura civil-militar
impôs à sociedade brasileira, mas, quando conseguimos, nos damos conta de que aqueles textos
130

estão muito mais próximos da experiência, na condição de testemunhos, do que o olhar da


narrativa historiográfica.

Poucas vezes o Brasil do século XX terá sido revelado de forma tão próxima da
experiência dos que o vivenciaram como nas páginas de Resumo de Ana. E, curiosamente, e
também compreensivelmente, para revelar as entranhas desse tempo foi preciso uma voz
distanciada que emudecesse as demais, de maneira que, no silêncio, o que escapou ao registro
da História fosse captado pela sensibilidade do leitor.

É instigante pensar que a ficção de Carone, na busca para comunicar o seu sentido, não
acertou o passo nem com a literatura nem com a História ou outro campo do saber, mas criou
o seu próprio movimento. Algo original, sem dúvida, na justa medida do intelectual e do artista
multifacetado que o concebeu.

***
131

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ANEXO A - Resumo de Ana

Capa do romance Resumo de Ana. Reproduz uma foto em P&B, tom sépia, nomeada
“Equilibrista alemão”, e tomada em 1953, em Sorocaba, por João Carone, pai do escritor.
141
142

ANEXO B - Résumé d’Ana

Capa de Résumé d’Ana (Éditions Chandeigne, 2005), tradução francesa, feita por Michel
Riaudel, autor de um ensaio que trata de três romances brasileiros recentes, dentro os quais
Resumo de Ana. Foto: São Paulo, anos 20.
143
144

ANEXO C – ensaio “Pai, filho: caligrafias do afeto”, de Francisco Foot


Hardman (Revista USP, novembro de 1994)
2 R E V I S T A U S P
R E V I S T A U S P 3
4 R E V I S T A U S P
R E V I S T A U S P 5
6 R E V I S T A U S P
R E V I S T A U S P 7
8 R E V I S T A U S P
R E V I S T A U S P 9
10 R E V I S T A U S P
R E V I S T A U S P 11

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