Estudos Literarios 2020-07-27 Efraim Oscar Silva
Estudos Literarios 2020-07-27 Efraim Oscar Silva
Estudos Literarios 2020-07-27 Efraim Oscar Silva
ARARAQUARA – SP
2020
EFRAIM OSCAR SILVA
Bolsa: CAPES
ARARAQUARA – SP
2020
Silva, Efraim Oscar
Atos de equilibrista: as narrativas de Modesto
Carone entre a contenção e a fruição / Efraim Oscar
Silva — 2020
154 f.
Aos membros da Banca Examinadora, por terem aceitado o convite para avaliar este trabalho;
À Camila Serrador, à Elaine Teixeira, ao Luiz Gustavo Gonçalves e à Silvia Helena de Oliveira,
bibliotecários da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara, pelo respeito, pelo
interesse em ajudar e pelo nosso amor comum aos livros;
A todos com quem convivi nesses anos loucos e rudes, em especial a duas pessoas que os
fizeram mais suaves para mim, Bruno Ricardo da Silva e Vitor Pereira Gomes.
The fictional production of Modesto Carone – four books of short stories and a novel – shows
off as one of its main features the gliding from renowned forms of literary genres to other
discursive forms, proper of analytical, critical, reflectional, factual texts like the essay. It
proposes to analyze on Carone’s fiction discursive aspects that points out how his narratives
get close to other genres. The corpus is composed by thirteen short stories from As marcas do
real (1979), Aos pés de Matilda (1980), Dias melhores (1984) and Por trás dos vidros (2007).
It also includes the novel Resumo de Ana (1998). The problem is whether the predominant tone
on Carone’s narratives, sometimes implying the contention of the poeticity/ literariness, other
consenting the fruition of the text, allows to consider these narratives part of a literary tradition
that retreats from forms and themes consecrated by the tradition as specific of literature, started
in Modernism and echoing on contemporary productions. As a bibliographical-analytical
research, it aims to rise theoretical discussions around the theme in order to better understand
the objects and thus analyze them, contributing to widen the knowledge about them in Brazilian
literary criticism. It aimed to assure a theoretical operational support in benefit of the analysis,
which was achieved by narratology. About the theoretical basis, discussions from different
fields of knowledge, which come from the twentieth century last years to the present, focusing
on art and literature in the contemporaneity were
introduced. These discussions highlight among other things the literature’s field expansion,
deprived from autonomy. This thesis confirmed just partially the gliding of Carone’s fictional
work, once it was evidenced that his style, which results from a wide cultural and dialogical
formation, is determinant for the features that his works assumes.
INTRODUÇÃO 8
1 O ESCRITOR MÚLTIPLO E A OBRA NO FIO DA NAVALHA 14
1.1 Um pouco de tudo 14
1.2 O modo particular de escrever ficção 17
1.3 A mobilidade e a montagem 20
1.4 Fundamentos da montagem no teatro, no cinema e na literatura 24
2 AS FRONTEIRAS DA NARRATIVA 30
2.1 Continentes e transbordamentos 30
2.2 Novos lugares, visibilidades e atores 35
2.3 Campo literário, campo expandido e perda da autonomia 42
2.4 As sombras dos gêneros 49
2.5 A mancha e o fiel da balança 53
2.6 As focalizações e os desfocados 61
3 DESLIZAMENTOS 69
3.1 Os contos 69
3.2 Resumo de Ana 94
3.3 Em face da crítica e da teoria 116
CONSIDERAÇÕES 125
REFERÊNCIAS 131
ANEXO A – Resumo de Ana 140
ANEXO B – Résumé d’Ana 142
ANEXO C – Pai, filho: caligrafias do afeto 144
8
INTRODUÇÃO
Carone atuou como jornalista, professor universitário, tradutor, crítico literário, ensaísta
e escritor. Como escritor, publicou quatro livros – os volumes de contos As marcas do real
(1979), Aos pés de Matilda (1980), Dias melhores (1984) e Por trás dos vidros (2007) e um
romance, Resumo de Ana (1998). Sua produção ficcional se caracteriza pela ambiguidade
discursiva e temática, com vozes que enunciam em estilo indireto, mesclando o distanciamento
e a objetividade dos textos críticos e analíticos (como os ensaios acadêmicos) aos meios de
expressão com características muito próprias do universo literário, como figuras, imprecisões,
indefinições e opacidades.
A crítica que se dedicou anteriormente à ficção de Carone, sobretudo aos contos, como
a de Vilma Arêas (1997) e a de Galvão Filho (2004), deu-se conta da sua complexidade e da
forma original como se insere na produção literária brasileira, mas ainda há uma lacuna no que
se refere ao trabalho de reflexão em torno dessa obra na sua inter-relação com o estilo do escritor
e com as tendências gerais da literatura brasileira.
e ecoando nas produções contemporâneas, de afastar-se das formas e temas consagrados como
próprios da literatura. Para tanto, elegemos um corpus de pesquisa constituído por 13 contos e
pelo romance Resumo de Ana. No caso dos contos, nossa escolha se fundamentou na ideia de
realçar não o aspecto que neles consideramos de maior vulto, o nivelamento tonal da voz
narradora ao tom dos discursos verídicos, documentais, austeros. Tentamos fazer com que a
produção de Carone aparecesse no corpus não como unitária, homogênea. Quisemos mostrá-la
na sua complexidade, nas situações em que se mesclam os meios de expressão do literário com
os dos textos austeros.
Tendo em vista a análise desse corpus, mobilizamos uma base teórica para discutir a
obra de Carone a partir de duas perspectivas: 1. a da inespecificidade, da perda da autonomia,
do campo expandido e da busca do sentido político da partilha do sensível, um debate
contemporâneo que não parte de obras, mas das questões gerais que as atravessam (cf.
LUDMER, 2007; CANCLINI, 2012; GARRAMUÑO, 2014; RANCIÈRE, 2014); 2. a do novo
significado possível de antigas noções firmemente aderidas aos estudos literários de base
formalista e estruturalista, como poeticidade, literariedade e focalização (do universo da
narratologia): as questões que suscitam ainda derivam dos textos, mas mobilizam saberes do
mundo, levando em conta as vozes que falam ou silenciam no seu interior.
da peça. Tem-se um mise en abyme, o filme dentro do filme: o documentário em preto e branco,
com o decorrer dos ensaios, o cotidiano dos presos, as suas discussões sobre a peça e sobre a
sua condição, seus conflitos e por fim, em cores, a apresentação da peça ao público externo.
Mais do que mesclar linguagens e técnicas do documentário e da ficção, o filme desloca o
público para um ponto de fronteira seca onde sua expectativa elementar quanto ao que é real e
ao que é fictício não é atendida em termos da eleição de um ou outro, mas da coexistência e
concomitância de ambos.
1
Para fim de distinguir neste trabalho as situações em que empregamos história no sentido narratológico daquelas
situações nas quais nos referimos à História como ciência, campo do saber, optamos por grafar história, com inicial
minúscula, no sentido de trama narrativa, literária, e História, com inicial maiúscula, indicando a ciência. Esse
critério será adotado mesmo quando a palavra vier acompanhada de um adjetivo: “as linhas da grande História”.
12
em relação ao seus empregos originais, então circunspectos à enunciação verbal. Ambas estão,
agora, associadas a percepções do literário que não estão necessariamente vinculadas à
materialidade textual, mas sim, por exemplo, a tudo o que é lacunar, incompleto, intuído,
palidamente evocado. O mesmo se dá com a noção de focalização, que teóricos como Gérard
Genette (1972; 1995) e Mieke Bal (1985) trataram inicialmente em termos muito operacionais,
próprios do estruturalismo, mas que mais tarde a mesma Bal (2009) reconfigurou, buscando
superar a oposição sujeito/objeto, que excluía os problemas políticos da análise estrutural, e
introduzindo questões da ordem da subjetividade. Em 2.2, discorremos em torno de reflexões
recentes sobre a arte e a literatura que as vislumbram para além de campos específicos, ou de
discursos exclusivos, em contextos de interdependência nos quais nenhuma expressão artística
é autônoma. Denominamos esse pensamento de crítica da diáspora, cujo representante de maior
destaque é o filósofo Jacques Rancière. Entre as suas ideias, destacamos a de “escrita mais que
escrita” (RANCIÈRE, 2017, p. 11-13), na qual a experiência da criação literária é vista como
algo que excede o registro verbal. O literário na perspectiva da crítica da diáspora é mobilizada
nesta tese porque, a nosso ver, contribui para a compreensão da obra ficcional de Carone no
aspecto da mobilidade do seu discurso e dos seus temas para além da tradição e dos gêneros
literários. Em 2.4 nos ocupamos das transformações que ocorreram ao longo do tempo na noção
de gêneros, concentrando-nos posteriormente (2.5) em dois deles, o conto e o ensaio, já que a
ficção de Modesto Carone transita entre um e outro, entre a forma discursiva analítica, objetiva
e contida, e a outra, intuitiva, opaca e fruída.
A experiência que tivemos como leitores da ficção de Carone, tanto a anterior à pesquisa
como a que envolveu a produção desta tese, revelou-nos a sua contribuição à literatura brasileira
no sentido de agregar-lhe um material, se não original, ao menos inovador quanto à forma de
articular os temas e o discurso e, acima de tudo, muito sofisticado, com narradores que, além
13
O motivo de a crítica da diáspora nos permitir entender melhor uma produção como a
de Carone deve-se ao fato desses teóricos terem sido impactados pela literatura do século XX.
Mesmo quando se referem a escritores ditos contemporâneos, se percebe que estes ostentam,
ainda, muitas das características dos seus predecessores e se encontram em uma zona indefinida
e precária.
Modesto Carone não está em um lugar indeterminado e precário. Ainda que em muitos
momentos a sua ficção deixe patente o seu desejo de não pertencer a um único lugar, todo o seu
movimento – deslizamento – é seguro de si, meticuloso e autoral.
14
Modesto Carone nasceu em Sorocaba, interior de São Paulo, em 1937, e faleceu na capital
paulista, no fim de 2019. Desde muito jovem se interessava por leitura e frequentava
bibliotecas. Lia de tudo: literatura, filosofia, sociologia, etc. Aos 17 anos foi sozinho para São
Paulo. Passou a trabalhar como jornalista – a mesma profissão do pai – e em seguida ingressou
na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Formou-se no início da década de 60, período
de agitação política e cultural.
No início de 1965 ele recebeu um convite do Itamaraty para atuar como leitor brasileiro
na Universidade de Viena, Áustria. As dificuldades decorrentes do golpe militar de 1964 o
impeliram a aceitar. Em Viena, aprendeu o alemão que mais tarde lhe foi muito útil no trabalho
de tradutor, e lecionou literatura brasileira na Universidade. Considerava o convívio com a
língua alemã como “um dos mais duros” (CARONE, 2007b, p. 19). “Eu acho que nunca estudei
tanto alguma coisa como isto”, disse (2007b, p. 19).
existentes no Brasil eram feitas com base nas traduções para o inglês e o francês. Face à
complexidade envolvida na tradução de Kafka, um dos escritores mais importantes do século
XX, Carone passou a produzir ensaios e artigos sobre a sua obra e a falar sobre Kafka quando
concedia entrevistas. Em 2009 publicou Lição de Kafka, livro no qual analisa aspectos da vida
e da obra do grande escritor.
[...] o uso dessa palavra cria problemas diante da hipertrofia que ela tem
sofrido. É comum dizer que “kafkiano” é tudo aquilo que parece estranho,
inusual, impenetrável e absurdo – o que descaracterizaria o realismo de base
da prosa desse autor. Pois a rigor é kafkiana a situação de impotência do
indivíduo moderno que se vê às voltas com um superpoder (Übermacht) que
controla sua vida sem que ele ache uma saída para essa versão planetária da
alienação – a impossibilidade de moldar seu destino segundo uma vontade
livre de constrangimentos, o que transforma todos os esforços que faz num
padrão de iniciativas inúteis (CARONE, 2009, p. 100. Os grifos são
originais.).
Essa compreensão da literatura de Kafka lança luz sobre a própria ficção de Carone. Em
vários de seus contos, o narrador representa o indivíduo moderno frente a um poder invisível e
opressor. Em Resumo de Ana, embora as personagens centrais estejam, ao que tudo indica,
alienadas em relação aos eventos políticos e econômicos, percebe-se que esses fatos
contribuíram de forma decisiva para o fracasso de seus sonhos e planos.
Carone se ocupou, também, de alguns aspectos teóricos que a escrita de Kafka mobiliza
e que não implicam somente a produção do escritor tcheco, mas boa parte do que levou o nome
de literatura do século XX. Em depoimento ao Projeto Memória Oral, da Biblioteca Mário de
Andrade de São Paulo, Carone disse que considera o narrador de Kafka antionisciente, que nada
sabe (CARONE, 2007b, p. 18).
Como o personagem também não sabe de nada, e você tem que seguir
esta linha porque a perspectiva é do personagem, você entra num túnel de
alienação. Só que você sai do outro lado (se sai) com uma experiência concreta
do que é alienação. A literatura aí não deixou de ser pedagógica: ela ensinou
alguma coisa sobre a nossa realidade, que não é o mesmo tipo de projeto dos
realistas franceses do século XIX: Flaubert, Stendal e Balzac. Mas o mestre
de Kafka é Flaubert – Le mot juste, a palavra certa, então ali tem uma precisão
vocabular impressionante. Ele tem um ouvido maravilhoso, porque ele é um
16
poeta, embora à primeira visa não seja, mas ele era um poeta, entende?
(CARONE, 2007b, p. 18-19. O grifo é original.).
Ao evocar algo que é muito próprio do universo dos estudos literários, o foco narrativo,
Carone pensa em Kafka e no que significou traduzi-lo para o português. Ao mesmo tempo, é o
criador literário para o qual todas essas questões estão postas quando escreve sua ficção ou
quando a ela se refere. Ao longo da década de 80 do século XX ele escreveu resenhas e ensaios
na grande imprensa, como, por exemplo, no Folhetim, suplemento literário da Folha de S. Paulo
em formato tabloide. Ali também publicou contos, alguns dos quais foram mais tarde reunidos
em livros. Ainda publicou contos e artigos em revistas especializadas e acadêmicas, como a
Novos Estudos Cebrap e a Discurso, de Filosofia.
A inquietação dos seus anos de juventude, o anseio geracional por conhecer e discutir
ideias, parecem apontar para um homem que, na maturidade, não gostava de se ver como
especialista, embora o fosse, de fato: apreciava mais flanar por entre obras, escritores e gêneros.
Ao fazê-lo, porém, esbarrou em algumas dificuldades, como o idioma no qual Kafka produziu
suas obras. Quando do lançamento de uma de suas traduções de Kafka, Carone disse que
traduzia porque não conseguia ler em língua estrangeira. No caso do autor de O processo, o
trabalho de traduzi-lo para o português brasileiro significou criar uma ponte de acesso ao
escritor que mudou a forma de fazer literatura no século XX e, muito provavelmente, também
a forma de fazer teatro e cinema. Há, sem dúvida, fortes ecos de Kafka em Borges, Cortázar,
García Márquez, Vargas Llosa, Juan Rulfo e muitos outros escritores hispano-americanos,
como também em Beckett, no cinema noir e em Hitchcock. Kafka ecoa, enfim, na própria ficção
de Modesto Carone, mas, ao contrário do que se poderia supor pelo fato de estar tão próximo
da sua obra ao traduzi-la, não de forma direta: passa, antes, pelas obras dos já citados escritores
ligados ao boom literário hispano-americano.
Fica evidente para nós, leitores, que traduzir Kafka não foi para Modesto Carone apenas
uma atividade profissional. Foi, antes, um projeto de vida. Também fica evidente, pelo relevo
que deu a Kafka no seu trabalho de crítico e ensaísta, que não se tratava, para ele, de um escritor
qualquer, mas do seu escritor de predileção. E conhecendo toda a produção ficcional de
Modesto Carone, podemos dizer que não se traduz Kafka impunemente: há, nela, algo daquele
assombro de Kafka com a humanidade, algo que é profundamente realista e kafkiano, mas que
não está presente tal e qual nas páginas do autor de O processo.
Modesto Carone também produziu um estudo acadêmico relacionando a poesia de Paul
Celan, romeno que, como Kafka, escrevia em alemão, à de João Cabral de Melo Neto. Esse
trabalho foi publicado em 1978 pela Perspectiva, com o título de A poética do silêncio. Não nos
17
deteremos sobre ele nesta tese, já que comportaria uma outra discussão para além da
problemática que focalizamos aqui.
Balila a agredir violentamente, por suspeita de adultério. Ana passa a devotar-lhe aversão e,
como forma de escape, começa a beber.
Balila tem os bens penhorados em 1931, “o ano da grande depressão” (CARONE, 1998,
p. 44). Seu armazém é fechado e, para assegurar a sobrevivência da família, começa a trabalhar
como caixeiro-viajante. Enquanto se prepara para fazer uma dessas viagens, Ana morre (1933),
debilitada pela tuberculose e pelo álcool, aos 45 anos de idade. A família, então, se divide. Ciro
é retirado da escola para auxiliar o pai nas viagens. Lazinha e Zilda vão viver com a madrasta
de Balila e se desligam do pai e do irmão. Aos 14 anos de idade, Lazinha se põe a trabalhar de
dez a 14 horas por dia costurando sacos de café.
Finda a história de Ana, principia a de seu filho, Ciro, igualmente acidentada. Tendo
conhecido o trabalho desde muito cedo, em companhia do pai, como viajante, Ciro se emprega
como balconista de farmácia e bar, operário da Estrada de Ferro Sorocabana e em um jornal da
cidade, onde se inicia na profissão de gráfico. Conhece uma jovem, casa-se com ela e descobre
pouco tempo depois que está tuberculosa. Ciro a interna em um sanatório de Campos de Jordão,
onde ela fica por dois anos. Nesse período, ele se relaciona com outra mulher e o casamento
parece terminado. Mas, ao fim dos dois anos, a mulher deixa o sanatório e eles retomam a vida
conjugal. Ciro compra uma impressora e dá início à sua própria empresa gráfica.
Tendo descoberto o caso extraconjugal de Ciro, a mulher pede o desquite. Ciro se une a
outra mulher, Anita, que o acompanha até o fim da vida. Com ela tem seis filhas. A instabilidade
econômica do País no início dos anos 60, e sobretudo a recessão no governo de Castelo Branco,
levam Ciro à falência, seguindo o destino do pai, “que tinha conhecido a marginalização
econômica antes dos cinqüenta anos de idade” (CARONE, 1998, p. 91). A partir dali, Ciro
sobrevive de pequenos trabalhos. O último deles, de vendedor ambulante de aguardente. Anita
trabalha como operária e depois como caseira em uma chácara, onde a família passa a residir.
Mas, depois de um mal-entendido com os patrões, são dispensados e despejados, tendo de viver
novo e longo tempo de penúria. Já estavam, então, em plena vivência do milagre econômico
(início dos anos 70 do século XX).
Ciro morre em 1990, nos braços da mulher, declarando-lhe amor e ouvindo o apito de
uma fábrica. Depois de sepultado, descobrem que lhe tinham destinado a cova errada.
A última obra de ficção de Carone, Por trás dos vidros (2007), consiste na republicação
de 37 do total de 48 contos da sua antiga trilogia, acrescidos de outros 11 contos que ainda não
haviam sido publicados em livro. Não houve uma intervenção significativa do escritor nos
contos republicados, exceto em dois títulos: “Aos pés de Matilda” passou a se chamar
20
“Matilda”, apenas, e “Utopia do Jardim de Inverno por um Doutor em Letras” teve o título
encurtado para “Utopia do jardim-de-inverno”.
A edição desse livro foi problemática: Por trás dos vidros cometeu alguns equívocos
prejudiciais à difusão da obra de Carone. Os 11 contos mais recentes foram dispostos no início
do volume, antes daqueles publicados nos anos 70 e 80 do século XX. O leitor que tiver contato
com os contos por meio desse livro terá dificuldade em compreender as oscilações na sua forma,
na temática e na dicção.
Para além dos elementos intrínsecos à matéria, os livros de ficção de Carone, exceto Por
trás dos vidros, obedecem a uma simetria que impressiona: partes distribuídas uniformemente,
mesmo número de linhas e parágrafos. Essa forma de organizar o texto integra-se a um processo
de composição derivado da ideia de montagem.
A novidade da tese defendida por Carone em 1972 foi justamente aproximar e sobrepor
o conceito clássico de metáfora e o conceito moderno de montagem, como é empregado no
cinema. Mesmo não sendo exclusivo do cinema, foi naquele meio que adquiriu relevância e
passou a ser considerado como elemento importante no processo de criação das mais diversas
expressões da arte.
Carone, que é germanista, foi talvez o primeiro pesquisador brasileiro a enfrentar a obra
de Georg Trakl, poeta considerado difícil, criador de poemas enigmáticos, e ainda hoje pouco
conhecido no Brasil, mas reputado internacionalmente como um dos mais importantes poetas
de língua alemã de todos os tempos. Leitor de Rimbaud, cuja forma de construir imagens
poéticas pode ser sentida em sua produção, Trakl também teve vida breve e trágica.
Carone afirma que a sua leitura de Trakl deve muito ao cineasta Sergei Eisenstein,
bastante citado em seu trabalho, e que ele considera “o grande teórico da montagem”
(CARONE, 1974, p. 14). Sustenta que a ideia de montagem esteve no centro da própria forma
como organizou sua tese, por meio de um “mosaico” ou “montagem” de citações. O propósito
foi fazer com que a montagem crítica espelhasse e legitimasse a montagem criativa (CARONE,
1974, p. 14).
Carone observa que as teorias de Eisenstein não restringem a montagem ao cinema, mas
a estendem à pintura, ao teatro e à literatura, “percebendo sua atuação em manifestações tão
21
Eisenstein sustenta que duas pontas de película, uma vez juntas, formam uma nova
representação. O resultado da aglutinação é sempre diferente, do ponto de vista qualitativo, em
relação a cada um dos elementos isolados (CARONE, 1974, p. 104). A montagem produz,
assim, um amplo leque de combinações possíveis e o efeito de sentido que se obtém também é
variável, a depender de cada combinação e do interesse e preparo do público em atuar
ativamente na leitura e na construção dos significados.
Carone não só estudou o conceito de montagem como empregou-o na sua obra ficcional.
Resumo de Ana resulta de uma montagem editorial, pois traz, como primeira e segunda partes,
o que eram originalmente duas novelas publicadas antes, em revistas destinadas ao público
acadêmico. A primeira, “Resumo de Ana”, corresponde fielmente ao que depois viria a ser a
primeira parte do livro homônimo. Apareceu no nº 25 da revista Novos Estudos Cebrap, de
outubro de 1989. A novela seguinte, “Ciro”, foi publicada em 1996, no nº 26 da revista
Discurso. Corresponde a um excerto (cerca de oito páginas) da segunda parte do livro, com o
mesmo título. A diferença, além do tamanho, está na supressão, no livro, dos parágrafos inicial
e final da versão da revista.
a atenção é a forma como uma dessas referências foi inserida no trecho acima: montada e
sobreposta no relato memorialístico de Lazinha. É evidente que a oração a seguir não provém
do relato de Lazinha, mas da fonte bibliográfica: “Não há documento disponível sobre suas
posses, mas é provável que no correr dos anos tenham passado de proprietários a arrendatários
de terras e que nas últimas décadas do século XIX tenham vivido da cultura de subsistência”
(CARONE, 1998, p. 16). Montagens como essas implicam, na maioria das vezes, a história de
Sorocaba, mas também a do estado e a do País.
Tratando-se de Resumo de Ana, a leitura isolada das duas novelas tal como saíram nas
revistas Novos Estudos Cebrap e Discurso produz reações no leitor muito diversas daquelas
proporcionadas pela leitura sequencial, no volume. Integradas, as duas novelas passaram a ser
interdependentes, e “Ciro” dialoga com “Resumo de Ana”: o fracasso do filho ecoa a destruição
das esperanças, a aniquilação da mãe e o desaparecimento daquele núcleo familiar. Uma ruína
está imbricada na outra.
É necessário pensar de outra forma, diferente do que se pensou até hoje, uma literatura
que não só se desloca na direção de saberes e subjetividades próximas, como também opera
procedimentos “importados” da expertise de outras semióticas. Provavelmente são experiências
interligadas: a literatura desliza para fora de si e assimila outros discursos justamente porque já
buscou no teatro, no cinema, na pintura, na arquitetura, etc. os meios de expressão que por si
só não possui.
O que é que aproxima o cinema da literatura? Antes de mais, esta liberdade única de
que dispõem os artistas na utilização do material que lhes fornece a realidade e de o
organizar em sequência, segundo uma lógica própria a cada um. É uma definição que
pode parecer demasiado vasta e geral, mas ela é na realidade aquilo que o cinema e a
literatura mais têm em comum.
(Andrei Tarkovski, Le temps scellé, 1989, p. 58. Tradução do trecho por Maria do
Rosário Lupi Bello)
Como, então, o teatro poderia fazer frente aos grandes temas que lhe surgiam,
desafiando a sua capacidade de exprimi-los? Como se libertar da configuração clássica da cena
dramática, dependente do diálogo, impossibilitada de tratar conteúdos às vezes antidramáticos
e de se reportar a acontecimentos do passado? A solução encontrada por Bruckner foi
revolucionária: introduziu na cena dramática a técnica da montagem. Vejamos como ele a
concebeu na sua peça Die Verbrecher (Os criminosos), de 1929:
25
Optou-se pela reprodução de um trecho extenso para que se evidenciasse do que se trata:
de uma técnica narrativa construída com o recurso a diferentes semióticas e que ultrapassa em
muito aquilo que se poderia chamar de forma tradicional do drama, já que tudo é mais narrativo
do que dramático. Os diálogos como existiam até então, conduzindo as cenas, passam a
fragmentos, uma cena “desliza” para outra: deslizar é uma figura que é atual e atuante no
universo das artes. Qualquer um de nós haverá de se lembrar de uma peça à qual tenha assistido
que emprega a montagem tal qual Bruckner a idealizou, alternando o foco de luz, ou seja, a
focalização, como se dá em muitos romances modernistas. Se não a vimos no teatro, a vimos
no cinema, transfigurada, ou nas páginas de uma obra literária, em um interessante processo
moderno e contínuo de reapropriação daquilo que a própria literatura ensejou.
26
Também não se pode afirmar categoricamente que no século XX, ou no período que se
seguiu às vanguardas, todo o romance tenha se contagiado com o movimento frenético das
fábricas, das ruas, dos transportes e da própria vida, enfim, como se dá em Memórias
sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade. O fato é que há romances importantes
do século XX que parecem acompanhar o ritmo da vida que se acelerava, e os estados mentais
que acompanhavam esse ritmo. Há, por outro lado, romances que se detêm sobre pormenores,
fragmentos de memória, ínfimas oscilações de movimento do ambiente e das personagens,
como os sete volumes de Em busca do tempo perdido, de Proust.
2
Podemos falar em uma estética da montagem, pois ela se torna parte constitutiva daquilo que a obra comunica.
27
Também uma parte do chamado Primeiro Cinema, o dos primórdios, ajustava-se a esse
ideal de ordenamento do mundo, para que tudo parecesse verossímil, lógico, aceitável pelo
público. Uma exceção seria o cinema de Georges Méliès, pioneiro quanto a ser um ponto de
fuga da objetividade.
Xavier (2005) observa que, na fase inicial do cinema, que ele chama de “teatro
filmado”, quando havia a necessidade de se exibir uma cena dentro de um mesmo espaço e
tempo, contínuos, e logo depois uma cena em outro espaço, procedia-se assim: a primeira cena
era filmada em um único plano de conjunto e o corte era feito no momento da mudança para o
outro espaço (XAVIER, 2005, p. 28).
Segundo Xavier, ao tornar possível uma mudança de focalização dentro de uma mesma
cena, o cinema estaria aparentemente mais próximo da forma de representação da literatura,
pois o escritor tem ampla liberdade para compor uma cena literariamente, com o seu narrador
fazendo escolhas para atender aos propósitos da narração. A crítica, sobretudo nos anos
heroicos do cinema, tendia a apontar como principal diferença entre a representação literária e
a cinematográfica o fato de que a imagem seria realista e de que a palavra escrita seria
convencional. Mas Xavier observa que esse contraste esconde uma particularidade do método
3
Martin (2005, p. 167) define a montagem cinematográfica como “a organização dos planos de um filme segundo
determinadas condições de ordem e de duração.”
28
realista de montagem, e este, por sua vez, impõe como natural ou normal uma forma de se
aglutinar as imagens para não destruir a “impressão de realidade” (XAVIER, 2005, p. 32-33).
4
Entenda-se plano, aqui, como um segmento contínuo da imagem, situado entre dois cortes (XAVIER, 2005, p.
27).
29
combinatória, menos engessada pelas regras. Martin exemplifica com um filme emblemático:
Tempos modernos (1936), de Chaplin, no qual a abertura é constituída de imagens de um
rebanho de carneiros, seguidas por cenas de uma multidão saindo do metrô. É uma metáfora
ideológica, cujo propósito é “causar na consciência do espectador uma ideia cuja força
ultrapassa largamente o quadro da acção do filme e implica uma tomada de posição mais vasta
acerca dos problemas humanos” (MARTIN, 2005, p. 120). A montagem criou uma metáfora
que coloca o espectador como produtor de sentido. Ele pode lê-la como espetáculo visual ou
como crítica social, a depender do seu nível de sensibilidade, imaginação e cultura (MARTIN,
2005, p. 117).
Há, entre as pessoas envolvidas com o cinema – diretores, atores, produtores, etc. – a
ideia já estabelecida de que um filme pode ser construído na montagem, para o bem e para o
mal: tanto pode sair dela para ser bem-sucedido como para o fracasso. No cinema, Martin
observa, a montagem é veículo do ritmo (MARTIN, 2005, p. 202). Assim, o que se verá na tela,
o que o público dirá ser arrebatador ou tedioso, é resultado da montagem. Mas a montagem tem
a sua pré-história. Martin reconhece que a montagem é preexistente em relação ao cinema e que
Sergei Eisenstein, em um texto muito conhecido entre os estudiosos de cinema, “Montagem
1938”, aponta exemplos de montagem em Da Vinci, Pushkin, Maupassant e Maiakovski. A
montagem é percebida em um poema de Rimbaud, “Marine des iluminations”, de 1873
(MARTIN, 2005, p. 202).
2 AS FRONTEIRAS DA NARRATIVA
Chegamos ao fim das duas primeiras décadas do século XXI sem conseguir aglutinar um
conjunto de características em torno da literatura que não sejam precárias e fugidias, pois,
afinal, há uma estonteante atomização do universo literário e das suas energias filiadas –
narrativa, ficção, romance – em meio a domínios e produções que outrora não eram
consideradas literárias. Há, por outro lado, uma ausência de si no lugar de origem, ou seja,
buscamos e não encontramos traços típicos do objeto literário onde outrora pensávamos que
fosse o “campo” da literatura. Mas, sobre o “lugar” da literatura já não há, também, nenhuma
certeza.
O século XX foi marcado, e o início do atual também está sendo, pela percepção do
literário como mescla de formas e estilos, híbrido que opera uma concomitância neurótica de
texto artístico e descrição rude, de metalinguagem e de adesão ao contexto, assimilando
discursos e recursos de diferentes semióticas, sendo, então, verbo e imagem, presença e
ausência de si.
ensaio “A arte como procedimento”, Victor Chklovski (EIKHENBAUM et al., 1971) propõe
que a arte seja compreendida como forma de deslocar a percepção para além do automatismo
que instauramos nas nossas ações cotidianas, na nossa relação com o mundo, face à rotina que
as aprisiona.
Ainda naquele contexto caracterizado por um esforço teórico para distinguir o universo
da criação verbal das formas usuais da linguagem, o linguista Roman Jakobson propõe os
termos poeticidade e literariedade como moradas comuns para tudo o que é próprio da função
poética e da criação literária. Em conferência proferida em 1960, Jakobson (2000) estabelece
elos com reflexões que desenvolvera com seus colegas formalistas do Círculo Linguístico de
Moscou, nos três primeiros decênios do século XX. Reelaborada, a questão passou a ser bem
mais abrangente e propensa a estimular, no tocante à poética, a aproximação entre as ciências
da linguagem e os estudos literários: “Que é que faz de uma mensagem verbal uma obra de
arte?” – ele pergunta (JAKOBSON, 2000, p. 118).
32
Um novo problema surge mais tarde, já não no âmbito do objeto, mas do próprio ato
criador da literatura, quando se configura a situação inversa, isto é, a supremacia do referente
sobre a função poética.
5
Optamos por essa forma de nomear o movimento com base em Bradbury (1989), que fala, em uma abordagem
mais específica, em “visão modernista” e “movimento modernista”, e, em abordagem ampla, em “mundo
moderno” e “espírito moderno”. Isso traduz um escrúpulo dos críticos e teóricos que estudam a história da arte e
as vanguardas artísticas do século XX, para que não haja confusão com a Era Moderna ou a Modernidade da
História, mas é evidente a má vontade de quem toma uma noção pela outra.
33
evasão da sua realidade dada e conhecida para uma outra, destacado pela escritora Maria
Valéria Rezende, e a sensação de intimidade com o escritor, como se um estranho lhe falasse
em particular, destacado por Paul Auster. Analisemos mais detidamente:
Sempre me senti atraída pelas histórias que me tiram do já sabido [...], o que
interessa é aquele livro que me tira do meu cotidiano, da minha identidade e
me faz experimentar, de alguma forma, o que eu não sou (REZENDE, 2019,
p. 2).
[...]
[A leitura] é o único lugar, no mundo, onde dois estranhos podem se encontrar
em absoluta intimidade. Um estranho, alguém que você nunca viu, o escritor,
está falando com você. É um espaço muito íntimo (AUSTER, 2019, p. C1).
Essa evasão e essa presumida intimidade podem ser associadas à fruição da literatura. E
a fruição, por sua vez, pode ser considerada uma condição incidental que o texto literário
engendra na sua estrutura por meio de algumas estratégias discursivas. Mas é, também,
condição acidental, resultante de determinadas operações que o leitor executa recepcionando o
texto. Ao consentir a ambiguidade e a opacidade na superfície da sua matéria, a literatura cria
discursos que não produzem sentidos, desconexos em relação às demais partes do corpo verbal;
quebras de progressão nas fábulas6 e efeitos sensoriais (não necessariamente de sentido) que
advêm daquelas duas noções desdobradas da tradição formalista, desautomatização e
estranhamento. Ambas foram descoladas do plano essencialmente verbal proposto pelo
formalismo e hoje se assemelham mais àquelas seis propostas que Italo Calvino formulou no
final da vida como possíveis valores da criação literária do atual milênio (CALVINO, 2011).
Seja como for, a fruição do texto literário, o seu usufruto prazeroso, tem como
constituintes (não funcionando como regra, é óbvio), além do estranhamento no nível
discursivo, proporcionado pelo conjunto do léxico e pelo seu arranjo, por assim dizer, estético,
também e sobretudo a forma singular de representar a vida: incompleta, fraturada,
incompreensível, entrópica (portanto desordenada), imprecisa, repleta de episódios periféricos
que nos desviam o tempo todo do caminho supostamente principal, lacunas que a experiência
não permite completar, somente a imaginação, a suposição, os “possíveis” ficcionais. Trata-se
de uma vida propensa mais à atuação errática do que às soluções e ao sucesso preconizado por
tantos discursos motivacionais. Acrescentem-se aí a impossibilidade de conhecer a realidade
por se estar aderido demais à experiência presente; a condição marginal, a desmemoria, o nada
6
Fábula é o termo proposto pelo formalista russo B. Tomachevski para referir “o conjunto de acontecimentos
ligados entre si que nos são comunicados no decorrer da obra” (EIKHENBAUM et al., 1971, p. 173). É oposto à
suzjet/trama, “constituída pelos mesmos acontecimentos, mas que respeita sua ordem de aparição na obra e a
seqüência das informações que se nos destinam” (Id. ib.). Mieke Bal (1995) apropriou-se das duas noções, mas
designa trama de história, como se verá adiante.
34
Por vezes a arte erige uma parede branca e lisa, violenta por negar o além de si e a
posteridade. Mas até ali, onde a poesia parece interdita, é da condição humana buscá-la na sua
ausência, numa pequena ondulação na textura da parede, insinuando-se como falha, como
possibilidade de transcendê-la, de compreender o impedimento como momentâneo e
insustentável no tempo.
Proveniente do grego clássico, a palavra diáspora foi associada por muito tempo à
dispersão e ao deslocamento do povo judeu no mundo antigo. Em tempos mais recentes, ela
surgiu para se referir à circulação de ideias e culturas pelo mundo. O pós-estruturalismo e os
estudos culturais relacionaram o termo diáspora a lugares de passagem, transitórios, a não
lugares, identidades deslizantes, mas sempre mantendo da palavra na sua acepção original as
ideias de movimento e migração. Tornou-se muito próxima, assim, de termos como
nomadismo, deriva e transculturação. Em certo sentido, as artes visuais contemporâneas, com
suas performances, plasticidades e processos, são diaspóricas: basta visitar uma mostra de arte
para constatar que os artistas que produzem essas obras, bem como suas linguagens, técnicas,
etc., estão dispersos mundo afora e em contínuo deslocamento.
Está em curso um debate que alguns pensadores têm feito desde a virada do século XX
para o XXI com foco nas transformações políticas e culturais que ocorrem nas sociedades
humanas, estendendo-o para o universo da criação artística, sobretudo das artes plásticas, do
cinema e da literatura. Todos esses pensadores são, de uma forma ou de outra, filhos da nova
diáspora. Basta ver que atuam em campos distintos e transitam entre um e outro: Jacques
Rancière é filósofo e, mais do que filosofia, discute política, literatura, história e sociologia;
Josefina Ludmer era crítica literária, mas fazia incursões pela filosofia da arte, história,
sociologia e cultura; Néstor Canclini é antropólogo, mas tem se destacado com livros e ensaios
sobre comunicação, cultura, artes, literatura e sociologia. O mesmo se pode dizer de Florencia
Garramuño, que é crítica literária, mas incursiona pela estética contemporânea, pela cultura
popular, pela fotografia. A produção intelectual dessas pessoas é transdisciplinar. O seu mundo
– nosso mundo – é móvel, múltiplo, heterogêneo, plurilinguístico, metalinguístico,
36
intersemiótico. Mas é também contraditório, pois, a par de todas esses sentidos e comunhões,
algo que a priori deveria aproximar e eliminar as diferenças entre os homens, é um mundo
xenófobo, racista, concentrador de renda e riquezas, autoritário, machista, homofóbico,
reacionário, moralista, predador irracional dos recursos naturais, degradador da qualidade de
vida, fomentador e propagador das várias formas de fundamentalismos, etc. Frente a tal cenário,
que de modo algum lhes é indiferente, esses homens e mulheres tentam não se posicionar de
maneira pontual, mas evocando problemáticas amplas, sem abandonar suas teses. São
originários de espaços periféricos – em termos físicos, econômicos e do pensamento. Josefina
Ludmer (1939-2016) era argentina. Argentinos são também Néstor Canclini e Florencia
Garramuño. Jacques Rancière, embora radicado na França, nasceu na Argélia, ex-colônia
francesa no norte da África (como o escritor Albert Camus) e pode-se dizer que seus muitos
livros e ensaios escapam de uma “centralidade” temática: buscam as fissuras, os aspectos
deixados à margem, à deriva, como é o caso do seu último livro, Les bords de la fiction (As
margens da ficção), de 2017, que dedica o último capítulo à obra de João Guimarães Rosa,
escritor no mínimo pouco conhecido do público leitor francês.
Embora esteja quase todo o tempo incursionando fora do seu campo de origem, Rancière
sempre evoca as questões de fundo do seu pensamento. Os seus ensaios de maior repercussão,
aqueles que lançam um novo olhar sobre as inquietações e desajustes contemporâneos, realçam
o lastro da filosofia. Mas também a perturbam, ao proporem novos sentidos para noções e
conceitos clássicos. Quando retoma, por exemplo, a ideia de sensível, e mais tarde desenvolve
uma reflexão em torno do que chama de partilha ou comunhão do sensível, Rancière expande
o sentido que a filosofia sedimentou para o termo, desliza-o em um movimento que é mais de
aproximação com a política do que com a tradição filosófica. Mas, contraditoriamente ou não,
Rancière manifesta em cada novo escrito seu o vínculo com o ideal civilizatório e universalista
do Iluminismo.
como no outro caso e encaminha sua pesquisa só por meio das próprias idéias” (PLATÃO,
2006, p. 262), ou seja, “sem servir-se de nada que seja sensível, mas apenas das próprias idéias”
(PLATÃO, 2006, p. 263).
A filosofia define o sensível, então, como sendo “aquilo que é objeto de uma das
faculdades dos sentidos” (GILES, 1993, p. 139), ou como “aquilo que pode ser percebido pelos
sentidos” (ABBAGNANO, 2012, p. 1037). “Nesta acepção, ‘o Sensível’ é objeto do
conhecimento Sensível, assim como o ‘inteligível’ é objeto do conhecimento intelectivo”
(ABBAGNANO, 2012, p. 1037).
Em vez de anular a acepção consagrada de sensível, Rancière (2009; 2017) faz com que
ela coexista com o sentido ampliado que ele lhe atribui. Evoca o sensível a todo momento em
sua obra e nunca apenas e tão somente como uma experiência da subjetividade possível do eu,
nem como uma vivência puramente estética. “[...] o ato de escrever”, afirma, “é uma maneira
de ocupar o sensível e dar sentido a essa ocupação” (RANCIÈRE, 2017, p. 7). Aqui já se
percebe uma combinatória de metáforas, constituída pela metáfora matriz (o sensível,
justamente) e por uma metáfora transitória (ocupação), que vai sendo alterada ao longo do texto
para agregar outras possíveis associações. Ocupação é lugar, território. Se o ponto de partida
de Rancière é o de que o conceito de escrita é político (RANCIÈRE, 2017, p. 7), ocupar o
sensível corresponde a exercer plenamente a democracia.
atuar politicamente. Ao fazê-lo, Rancière ocupa o lugar de um cientista político, ou, mais
precisamente, modula a sua voz a esse outro discurso. Uma das marcas do pensamento
contemporâneo, como também da estética, é não se circunscrever a um único domínio, a um
campo, a um lugar preestabelecido. Isso não significa se afastar das suas matrizes de
pensamento, perder a identidade, etc. É, ao contrário, potência: amplia-se o alcance de uma voz
quando o que ela exprime de um dado problema busca representá-lo em toda a sua
complexidade. O todo é inalcançável. Seja na crítica ou na arte, a síntese se impõe como
necessária. Portanto, há sempre algo a ser sacrificado. No caso de Rancière, houve uma renúncia
de si como historiador do pensamento, papel que os filósofos não se furtam a ocupar na
modernidade, até como forma de legitimar seu discurso. Rancière renunciou a ser historiador
do pensamento talvez para que outros papéis tivessem realce. Por exemplo: no momento em
que dá forma a outra metáfora, a partilha do sensível, o filósofo torna-se, ao menos
temporariamente, poeta. É essa condição que lhe possibilita traduzir a operação pela qual o
Estado democrático atribui direitos e competências: “Uma partilha do sensível é [...] o modo
como a relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes exclusivas se
determina no sensível” (RANCIÈRE, 2017, p. 8).
Rancière objeta que o excesso de descritivismo realista implica uma questão política: a
de uma “distribuição de capacidades de experiência sensorial, do que os indivíduos podem
viver, o que podem experienciar e até que ponto vale a pena contar a outros seus sentimentos,
gestos e comportamentos” (RANCIÈRE, 2010, p. 79). “A democracia no romance realista”,
acrescenta, “é a música da igual capacidade de qualquer um de experienciar qualquer tipo de
vida” (RANCIÈRE, 2010, p. 80).
(RANCIÈRE, 2018). “Meu principal objeto é a abolição da antiga fronteira entre existências
que são dignas da ficção e existências que não o são”, declarou, em entrevista. “Estudo como a
ficção moderna atendeu às aspirações desses homens e mulheres do povo que queriam escapar
do universo da repetição e da reprodução ao qual se dedicavam” (RANCIÈRE, 2018).
O filósofo também se opõe ao juízo comum da crítica literária atual de que a ficção
contemporânea possui tendência documental.
Esse ceticismo [com a ficção] parte de gente que pensa provar a própria
superioridade. Toda a história da ficção moderna é uma alternância dos
valores atribuídos às palavras “realidade” e “ficção”.
Balzac já dizia que nenhum livro teve o poder da notícia. “Ontem, às
16h, uma jovem se jogou do rio Sena de cima da Pont des Arts”. [Joseph]
Conrad mostrou que a imaginação nunca inventou nada além de virtualidades
contidas em uma sombra, anedota ou frase ouvida ao acaso.
O cinema tem provado que a forma documental, na qual se organizam
fatos comprovados, implica em invenções ficcionais mais ricas do que as
necessárias para se criar uma ficção plausível. E o cinema mais interessante
hoje é aquele que embaralha documento e ficção. A ficção não é o oposto da
realidade, mas a construção de um senso de realidade (RANCIÈRE, 2018).
Ao fim e ao cabo, o sentido que depreendemos dos seus escritos é de que todos têm direito
à experiência com o sensível, e, mais do que isto, o próprio sensível não é refém de uma classe
social, de uma tradição imposta, de especialistas. É uma ideia que se percebe muito ativa em
um livro seu que não trata diretamente de arte, nem de literatura, O mestre ignorante (1987),
no qual Rancière parece apontar para a percepção política de que a ação e a experiência não
devem depender de uma competência, de uma expertise prévia conferida pela escolaridade,
posição social, etc., sem que por isso deixem de ser legítimas.
Entendemos que, para Rancière, a perda de autonomia por parte da arte e da literatura, a
inviabilização de um campo artístico e de um campo literário, não são problemas, são realidades
que os próprios criadores se esforçam para construir. O mal estaria na autonomia mesma, ou na
“ilusão de autonomia”, como disse Bourdieu (2002), pois significa a clausura, a captura por
uma classe, a torre de marfim, a arte aristocrática.
Rancière pensa a arte como visibilidade, insere-a em uma dinâmica política, dos visíveis
e não visíveis, dos lugares de cada um na cena. Vive-se hoje o momento da visibilidade de
novas demandas políticas, fazendo com que as relações no interior da sociedade se tornem
tensas, pautadas mais pelo dissenso do que pelo consenso, para permanecer na sua terminologia.
Ele se deu conta – e seu leitor atento idem – de que a forma de fazer arte (aí incluída a literatura)
e de recepcioná-la vem mudando, e isto não faz dela uma arte melhor ou pior, mas diferente do
que já se fez até aqui. Há um olhar atento desse pensador (como ocorre com Canclini e de certa
forma também com Garramuño) para a arte que se desempenha fora dos seus contextos
consagrados, que se inscreve nos muros, nas estações de metrô, é apreciada não só no interior
de prédios a ela destinados, mas a partir das janelas de transportes coletivos em movimento.
Arte performática, mobilizadora de múltiplos meios e em processo. Pode não ser um objeto,
mas estar impressa no corpo ou na roupa de alguém, ser ritmada, entoada, sussurrada. A
literatura tanto pode prescindir do objeto livro como pode ainda se servir dele em concomitância
com outros suportes e mídias.
Para que melhor se compreendam os novos paradigmas da crítica de arte e literatura que
Jacques Rancière, Josefina Ludmer, Néstor Canclini e Florencia Garramuño propõem, e para
que se possam estabelecer os pontos convergentes do seu pensamento, se faz necessário
estabelecer quais foram as noções precedentes das quais partiram e às quais se opuseram:
42
A instituição literária tal como vimos a conhecê-la surge, segundo Foucault (1966) e
Bourdieu (2002), no século XIX.
O campo literário, como todo campo de produção cultural, ocupa, segundo Bourdieu, uma
posição dominada no interior do campo do poder (BOURDIEU, 2002, p. 96; 244).
Bourdieu era sociólogo e em outro momento formulou a noção de capital cultural, muito
difundida entre pesquisadores da área de educação. Ali parece ficar mais claro que o seu
pensamento agrega à ideia de capital mais sentidos possíveis do que somente o de valor
econômico, consagrado por economistas e por outros sociólogos. Embora essa noção,
importante para se entender o seu conceito de campo do poder, seja atravessada todo o tempo
por um significado de capital que é, ao fim, econômico, há o reconhecimento de que os agentes
com atuação em cada campo têm diferentes graus de interesse, atendo-se tanto aos aspectos
objetivos quanto aos simbólicos.
43
Entre os exemplos literários arrolados por Garramuño está o romance Eles eram muitos
cavalos, de Luiz Ruffato (2001), composto, segundo ela, de “fragmentos heterogêneos, tanto
no que diz respeito ao formato quanto aos personagens” (GARRAMUÑO, 2014, p. 17).
Garramuño observa que, para Ruffato, a literatura brasileira tenta se aproximar da realidade
atual pela invenção de novas formas e pelo diálogo com outras artes e tecnologias, fazendo com
que o espaço romanesco se constitua pela absorção de outros gêneros, como a poesia, o ensaio,
a crônica e a oralidade (GARRAMUÑO, 2014, p. 17). Garramuño vê em obras como essa o
indício de um novo caminho que está sendo seguido pelo gênero romance.
Bourdieu publicou As regras da arte em 1992. Os anos que se seguiram foram de uma
transformação acelerada na forma como o homem produz, distribui e armazena conhecimento,
44
fazendo com que as fronteiras entre as áreas e subáreas do pensamento, e entre as linguagens
artísticas, passassem a ser tensionadas, vistas como obstáculos a serem superados, resquícios
de um mundo no qual a pertença exclusiva a um campo era assegurada por esses domínios
“específicos” de cada especialista. O próprio Bourdieu foi um exemplo de pensador não restrito
a um campo, pois, sendo oriundo das ciências sociais, incursionou pela análise literária no
ensaio em questão (BOURDIEU, 2002) inclusive propondo para essa análise um olhar
científico que, a seu ver, superava as abordagens formalistas dos críticos literários. Em outro
ensaio, Bourdieu se deslocou do seu lugar de origem e refletiu sobre os meios de difusão cultural
e a educação escolar. Fê-lo com o olhar do sociólogo, como outros que vieram depois dele não
deixaram de também fazer ao tratar das artes, da literatura, da educação e da cultura. Lançaram
nos seus objetos as suas marcas de formação: antropologia, filosofia, psicologia, etc.
Da mesma forma que Rancière, mas com mais ênfase, Canclini afirma que essa nova arte,
com seus novos discursos e meios, requer que a crítica seja outra, disposta a fazer não somente
a recepção e a análise, mas também o acompanhamento da trajetória que a criação fez para ser
considerada arte. Seria possível ir algo além, tratando-se sobretudo da literatura. Seria
7
Canclini propõe, em seu livro, a hipótese da arte e da estética iminentes, cujo atrativo provém, em parte, do fato
de anunciarem algo que pode vir a ocorrer, de prometerem o significado ou de alterá-lo por meio de insinuações
(CANCLINI, 2012, p. 19).
47
necessário se verificar como a própria crítica está inserida na obra de criação, seja na forma de
uma autocrítica, seja na forma de uma crítica que transcende a matéria e se ocupa das coisas do
mundo, pois esse é o sinal que nos dão as obras que têm surgido nos últimos anos, no Brasil e
no exterior.
Canclini (2012) sugere, portanto, que, no cerne de um processo de transformações da
literatura, por intermédio do qual ela se torna pós-autônoma (CANCLINI, 2012; LUDMER,
2014) e inespecífica (GARRAMUÑO, 2014), é possível que haja uma especificidade: algo que
não se exprime de todo, o entrevisto/entredito, o verbo incompleto, a “iminência de uma
revelação” (CANCLINI, 2012, p. 62). Ou ainda, como já vimos: os interstícios, o embotamento
da poeticidade, da literariedade e dos gêneros, que não estão onde deveriam e nem são mais o
que se esperava deles porque extrapolaram os domínios da linguagem e deslizaram para além
da superfície do texto.
Talvez uma forma de se compreender esse debate recente sobre arte e literatura sem cair
num certo catastrofismo e sem se perder em um emaranhado de conceitos, noções e metáforas,
é considerar que, diferentemente do edifício crítico do pós-estruturalismo e do pós-
modernismo, os críticos e teóricos que reuniríamos aqui sob o signo de crítica da diáspora (os
já aludidos Jacques Rancière, Josefina Ludmer, Néstor Canclini e Florencia Garramuño) 8 não
propõem que os edifícios do passado sejam demolidos ou desconsiderados, muito pelo
contrário: há o reconhecimento do legado teórico, da tradição, como preferem alguns, tanto que
tudo isso está sempre em questão, sendo citado e levado em conta. Opera-se, no entanto, uma
reconsideração, uma nova leitura desse legado, a exemplo da que faz Rancière ao tratar, como
vimos, de algumas noções da Poética aristotélica, como o ordenamento ficcional com base em
uma cadeia causal.
Esses críticos da diáspora, ao interagirem de forma menos destrutiva com o passado, estão
em harmonia com algumas interpretações do que é ser contemporâneo ou do que é a
8
É temerário aglutinar esses pensadores de origens tão diversas em torno de uma palavra que pode se tornar mero
rótulo, algo que, como se sabe, não ajuda em nada a compreensão daquilo que têm a dizer pessoas com algumas
ideias em comum e que podem vir a integrar uma tendência ou escola do pensamento crítico. Ainda não há um
termo destinado a Rancière e aos outros contemporâneos. Nem sequer sabemos se há um consenso em torno disso
e desconfiamos até que esses pensadores não desejam ser definidos. Ainda assim, mais por um capricho de estilo,
acreditamos que eles são críticos da diáspora pelo fato de Josefina Ludmer ter sido feliz ao empregar essa palavra
referindo-se à literatura recente e porque a ideia de dispersão se harmoniza com a diversidade de pensamento de
pessoas que provêm de vários e diferentes campos, estudam objetos de natureza também distinta e se preocupam
em ampliar seu foco de discussão para muito além de um contexto específico. Dispersos mas em diálogo, sem
dúvida: não se trata de um debate atomizado. A propósito, e em resposta a objeções que nos foram feitas em outro
momento, queremos dizer que a escolha desses quatro nomes e não outros se justifica pelo fato deles incluírem a
literatura em suas discussões e isto atender aos propósitos desta tese. É o motivo de o arcabouço teórico do nosso
trabalho não mobilizar críticos que eventualmente têm ideias afins, mas adotam como ponto de partida, por
exemplo, a arquitetura.
48
Acreditamos que a noção que faz convergir o pensamento desses quatro críticos é a de
pós-autonomia. Até porque é uma noção “diaspórica”, que contempla uma literatura não voltada
exclusivamente para a sua própria oficina, ou seja, pautada apenas pela metalinguagem,
“estanque no poço dela mesma”, como no verso de João Cabral de Melo Neto (MELO NETO,
2014, p. 461). Embora seja explicitada como tal em Ludmer (2014) e em Canclini (2002), a
ideia já havia sido constituída por Rancière no final do século XX. Além disso, a noção de
inespecificidade, desenvolvida por Garramuño (2014), vai ao encontro da de pós-autonomia,
pois afirmar a literatura como pós-autônoma corresponde a dizer que ela já não possui um
campo, um discurso, um lugar que possa reivindicar como específicos: não só deixou de ser
autossuficiente em termos de saberes e técnicas como ainda é tributária de outras formas de
expressão artística e do pensamento.
A noção de pós-autonomia também aponta para uma nova forma de ler literatura,
afastando-se da análise tradicional e das categorias de valor literário tal como se conhece
(ANDRADE et al., 2018, p. 166).
Não há lugar e discurso exclusivos, não há formas de expressão para chamar de suas: os
gêneros literários resistem como categorias de prêmios literários, seções de catálogos de
editoras e de estantes de livros nas livrarias. Mas o que é hoje, por exemplo, um romance? O
que o caracteriza?
9
Romance de ação, romance de personagem e romance de espaço (KAYSER, 1958, p. 263).
50
“De onde vêm os gêneros?” – pergunta Todorov (2018, p. 64). “Simplesmente, dos outros
gêneros. Um novo gênero é sempre a transformação de um ou de vários gêneros antigos: por
inversão, por deslocamento, por combinação” (TODOROV, 2018, p. 64). Em outro lugar e
momento, refletindo sobre as transformações pelas quais a literatura vem passando em épocas
recentes, Todorov observa:
Inspirados pela pergunta de Todorov, perguntamos: O que são e onde estão hoje os
gêneros? Certamente são, agora, mais espectros do que materializações formais: pressentidos,
evocados, ausentes da manta textual. Não se pode afirmar que os gêneros já não existam. Há
51
uma memória das formas romance, conto, etc. Continua a haver uma noção difusa do que são
essas formas, útil quando se quer lançar uma negação: isto não é um romance, isto não é um
conto, isto não é literatura, isto não é ficção – noção válida, também, quando se pretende afirmar
outros gêneros em contraposição aos gêneros literários: isto é um ensaio de reflexão; isto é uma
tese; isto é uma reportagem.
Há reflexões situadas entre o final do século XX e as primeiras duas décadas do XXI que
vislumbram a literatura deslizando para fora do seu campo, ou ficando fora dele por vontade
própria dos escritores. González Echevarría (2011), tendo em foco o romance latino-americano,
afirma que “a característica mais persistente dos livros que receberam o nome de romance na
Era Moderna é que sempre pretenderam não ser literatura” (GONZÁLEZ ECHEVARRÍA,
2011, p. 36, com tradução nossa)10. Embora o pertencimento ou não da literatura a um campo
específico não seja o tema do ensaio do autor, foi esse aspecto da sua reflexão que a tornou
conhecida. Detenhamo-nos nisso um pouco mais:
Podem ser arrolados dentre os muitos pares opositivos que surgiram ao longo do tempo
para estabelecer a diferença entre o que é literatura e o que é outra coisa: narrativa ficcional e
narrativa factual (GENETTE, 2004, p. 141); texto artístico ou poético e texto referencial;
biografia/autobiografia documental e autoficção; demandas do eu real e do eu fictício, etc.
Todos caíram na obsolescência, uma vez que estão edificados sobre uma falácia reducionista
que deixa fora dos “pares” uma ampla gama de problemas. É difícil ou até mesmo impossível,
hoje, pensar, por exemplo, em uma obra reconhecível como narrativa ficcional e narrativa
factual em estado puro, sem que elementos de uma e outra não estejam mesclados,
amalgamados. Muitas obras literárias contemporâneas, ao transporem a fronteira do literário,
ficam, citando novamente a imagem criada por Josefina Ludmer (2014), “fora e dentro”. É a
expressão que melhor designa a ambiguidade dessas obras. Os gêneros literários também
deslizam para aqui e acolá nessa zona imprecisa, nessa fronteira: estão e não estão. São a
memória que o leitor mobiliza nos seus processos mentais de algumas experiências com o
10
“La característica más persistente de los libros que han recibido el nombre de novelas en la era moderna es
que siempre han pretendido no ser literatura”.
11
“La novela [...] continúa existiendo sin una poética porque el principio más importante de su poética es no tener
ninguna. La novela viste disfraces para parecer otra cosa: la novela es siempre otra cosa”. É nossa a tradução
deste e dos demais trechos em espanhol ao longo desta tese.
52
romance, o conto, o drama, etc. Costumam estar opacos, no texto que esse leitor tem diante dos
olhos, vestígios consistentes da sua matriz genética. Há sombras, que oferecem a vaga sensação
de que aquela história se esforça para representar (ou traduzir) a vida humana nas suas
imperfeições, dúvidas e desilusões, a miserável recolha de fragmentos a cargo de um herói
problemático, há muito incapaz de aspirar à totalidade. Da mesma forma, a ausência da
poeticidade no texto, ou seja, das marcas verbais e não verbais que especificam a que natureza
ele pertence, criam no leitor a sensação – às vezes angustiante – de que a fruição lhe foi
deliberadamente negada, e que a experiência que lhe é dado desfrutar é tão somente residual de
uma outra, verdadeira e intensa, transcorrida longe de si.
Como se vê na série de e-mails trocados entre D’Agata e Fingal entre 2003 e 2010,
reunidos em livro em 2012, Fingal apontou uma série de problemas. Em 2010 o texto foi
finalmente publicado. O questionamento que emergiu dessa polêmica foi: “Não ficção é
realidade?” Como delimitar?
O escritor e o verificador divergiram até acerca de pormenores, como o tempo que teria
levado a queda do adolescente do alto do prédio: nove segundos para D’Agata e oito para
Fingal, que se baseou nos registros da polícia, por sua vez feitos com base nos depoimentos das
testemunhas que presenciaram o suicídio.
Cobra-se do ensaio o compromisso com a verdade dos fatos, mas o seu autor reivindica
o direito à poeticidade, entendendo a imprecisão não como defeito, mas como virtude. Ele
defende a ideia de que o texto de criação ou artístico usufrui da liberdade de introduzir na
história um elemento que desperte a curiosidade e a emoção do leitor, proporcionando-lhe,
afinal, a fruição, o que seria impossível se o texto não fizesse concessões à fantasia. Sabe-se,
porém, como veremos no próximo item, que o ensaio não goza do mesmo desprendimento em
relação ao factual que caracteriza o texto literário, da mesma permissão para “avançar o sinal”.
No ensaio, o gênero é mais do que uma sombra: é, ainda, um modelador temático e discursivo.
O nível de comprometimento do ensaio com as estruturas discursivas próprias da reflexão, da
análise crítica, dá a ele uma possibilidade menor de desempenhar-se como “outro”, como forma
deslizante, como sombra de outro gênero. Mesmo assim, não há interdição a que o ensaio, em
alguns de seus formatos, seja considerado gênero literário.
Piglia sustenta que o conto clássico de Edgar Allan Poe e Horacio Quiroga narra uma
primeira história e imiscui nela os traços de uma segunda história, secreta (PIGLIA, 2004, p.
89-90). Afirma, também, que o conto, que ele define como “microscópica máquina narrativa”
(2004, p. 91), na sua forma modernista, já não apresenta a surpresa no final e a estrutura fechada
54
(PIGLIA, 2004, p. 91). “O conto clássico à Poe contava uma história anunciando que havia
outra; o conto moderno conta duas histórias como se fossem uma só” (2004, p. 91).
Esse pensamento parece dialogar com Walter Benjamin, no seu ensaio sobre o narrador.
Perdeu-se algo, certa pureza de origem da narrativa mítica. Alguns estudos de teoria literária
diriam que essa questão é da ordem do narrador, das diferentes formas com que se desenvolvem
os jogos de focalização e de voz, implicando a própria voz, as personagens e o narratário, isto
é, o destinatário fictício.
É uma visão restritiva do conto, e de certa forma não condiz mais com a produção atual.
Porém, ainda que se ocupe mais do que Piglia de definir a forma conto e de prescrever as regras
que regem a sua composição, inclusive quanto à medida do seu recorte temporal, fica evidente
que, em ambos, os parâmetros usados para avaliar a natureza e a extensão da forma conto são
as obras dos contistas canônicos.
Magalhães Júnior dedica parte de seu livro ao conto breve, e, mais especialmente, aos
contos ultracurtos de Brecht e Kafka. Ali, indaga se o conto “O piloto”, de Kafka, é mesmo
conto ou estaria mais para “um pesadelo, uma mancha, uma impressão, ou um simples récit,
como querem alguns críticos franceses” (MAGALHÃES JÚNIOR, 1972, p. 280). Ele
empregou a palavra “mancha” provavelmente no sentido de algo que é quase indiscernível, um
enigma que resiste a ser decifrado, delimitado e analisado. Na terminologia da editoração
gráfica, mancha é o espaço de impressão dentro de uma página: a mancha gráfica, o lugar onde
a tinta cai sobre o papel. Se se caminhar um pouco mais além na busca de uma compreensão
do vocábulo mancha, pensa-se em uma página impressa em línguas que adotam outro alfabeto,
como o chinês e o árabe. Se não conhecermos essas línguas, a mancha será impenetrável.
Poderemos apenas nos deleitar com a forma daqueles sinais, sem alcançar o seu significado.
Ficaremos em uma zona de opacidade, mas ainda assim ela nos comunicará a beleza da sua
forma. Também podemos pensar a mancha em uma instalação artística, onde pode ter algum
significado ou absolutamente nenhum.
Com base nessa visão, portanto, há um ensaio que pode ser de livre criação, “literário”
no sentido de ser descompromissado e imaginativo, e um ensaio científico, veiculador de
conteúdos de pesquisas, rigoroso.
O sentido de ensaio como pesar, ponderar, medir os argumentos, deriva do latim tardio,
mas teve essa acepção consagrada no francês e no italiano, a partir dos quais se propagou para
outras línguas. Consta que Leonardo da Vinci referiu-se a ensaio como peso, a peça que
acompanha as balanças e indica o lado mais pesado. Conhecemo-la em português por fiel – o
fiel da balança. O exercício do pensamento em um texto deveria, então, pesar, avaliar os
argumentos. Vejamos como isso se configura em dois dicionários etimológicos da língua
italiana.
saggio¹ (agg.), dal frc. ant. sage, lat. volg. * sapjus […] v. SAPERE.
saggio² (prova), lat. tardo exagium ‘peso’ estr. da exigěre nel senso di
‘pesare’ [...].
saggio³ (scritto), calco sull’ingl. essay (DEVOTO, 1970, p. 369).
[...]
sàggio (1) agg./s.m.
dall’antico franc. sage, che è dal lat. volg. *sapjus, legato a sapere.
sàggio (2) s.m
dal lat. tardo exagium (=peso, bilancia), dal v. exigere (=pesare).
Esperimento, prova, exame (COLONNA, 2004, p. 328).
antigo (sage) e o inglês (essay). Não é por outro motivo que a forma ensaio se difundiu muito
no universo cultural anglófono.
Observe-se que pesar, provar é uma verificação que implica pôr algo à prova para que
alguém possa ser sábio, conhecer, aproximar-se da verdade.
Adorno escreveu um ensaio para discorrer sobre a forma ensaio É um texto bastante
conhecido, no qual afirma que o paradigma do gênero não é o ensaio acadêmico, constituído de
três partes rígidas e muito preocupado com a referências bibliográficas. A forma que Adorno
vislumbra é a dos ensaios de Lukács, Kassner e Benjamin (ADORNO, 2012, p. 15-16). Trata-
se de um gênero que suspende o conceito de método como foi difundido ao longo do tempo, é
metódico sem ter método (ADORNO, 2012, p. 27; 30). Filia-se, afinal, mais à retórica do que
ao método científico (ADORNO, 2012, p. 41).
Starobinski (2018, p. 13), como Adorno, defende a forma livre do ensaio, gênero, que,
segundo ele, não se submete a regras. Afirma que a trajetória do ensaio foi marcada pela
suspeição: seria superficial, não rigoroso, descompromissado em relação a quaisquer estudos
austeros (STAROBINSKI, 2018, p. 15).
Alguns traços marcantes da forma ensaio em Montaigne são a voz autoral presente no
discurso; uma leitura do mundo que toma a si mesmo como referência; o propósito moralizante
e pedagógico, lembrando os discursos de oradores nas tribunas; a autocrítica e a remissão às
obras alheias (caso de pensadores latinos, como Sêneca, citado em “Dos coxos”).
Discutindo as mobilidades da literatura recente, Moreira (2012, p. 215) afirma que Borges
aproximou a atividade intelectual de caráter reflexivo da criação literária, ao inserir textos
ensaísticos em obras que se apresentavam como de ficção literária, o que “desloca e coloca em
trânsito os espaços tradicionalmente dedicados ao pensamento e à imaginação” (MOREIRA,
2012, p. 215). Italo Calvino foi, segundo Moreira (2012), outro escritor que, com um projeto
literário híbrido, deslocou as fronteiras originais da ficção e da teoria.
Além de experimentar nas suas obras esse deslocamento, essa múltipla pertença,
Calvino manifestou-o em uma das suas “lições americanas”, as conferências que preparou e
nunca chegou a proferir nos Estados Unidos. Duas dessas conferências chamavam-se
“Exatidão” e “Multiplicidade”, projeções para a literatura do terceiro milênio que exprimem já
nos seus títulos a mescla possível de literatura e teoria. “Habituado como estou a ver na
59
Se pensamos agora em Jorge Luis Borges, a aproximação que fez entre as formas do
ensaio e a do conto na sua obra constitui um caso diferente do de Italo Calvino e de outros
escritores. Ali não chegou a haver uma fusão de formas e temáticas, com o discurso crítico,
analítico, próprio da reflexão ensaística, irrompendo no interior do discurso literário. Em várias
obras de Borges aparece, embora não de maneira uniforme, um esforço de analisar, refletir,
dissertar, jogar com a face lógica e racional do pensamento. Isso é parte de uma característica
muito conhecida de Borges, encontrável em Ficções (1944) e também em muitos de seus
poemas: uma espécie de provocação com a inteligência do leitor, conduzindo-o a um
determinado grau de certeza na interpretação da narrativa que é absolutamente ilusório,
enganoso. Kafka também faz esse jogo com o leitor, sabedor da sua avidez em interpretar e
colar significados a tudo o que lê. O leitor, então, se deixa levar por certezas que ele supõe
terem sido plantadas no texto, mas que acabam se revelando ilusórias. Finda a leitura, esse leitor
percebe (ou não) que o desfecho não consagra certeza alguma, nem solidez. Tudo é
inconclusivo, permanece opaco e difuso.
Tudo isso implica as múltiplas formas de ver, sentir e dizer acerca da experiência, bem
como todas as formas de representação e inscrição existentes, não apenas as admitidas como
literárias. Só que no âmbito da literatura tudo se torna mais complexo, pois a liberdade do ato
61
Mieke Bal usufruiu das vantagens de ser uma narratóloga tardia. Ela construiu a sua obra
após a publicação das principais referências teóricas dos estudos literários no que toca ao close
reading, como The craft of fiction (1921), de Percy Lubbock, “Point of view in fiction” (1955),
de Norman Friedman, The rhetoric of fiction (1961), de Wayne C. Booth e principalmente
Discours du récit (1972), de Gérard Genette. De todos estes, é de Genette que Bal mais se
aproxima no processo de construção do seu paradigma de análise de narrativas, mas o faz com
o objetivo de desenvolver um aparato teórico melhor, de se contrapor às suas definições,
classificações e nomenclaturas. Greimas é outra referência importante, já que, no seu livro
Narratology: introduction to the theory of narrative (1985), Bal emprega o modelo actancial
greimasiano, com algumas adaptações.
O termo narratologia define uma linha teórica dos estudos literários caracterizada pela
pesquisa norteada mais pelos elementos internos do texto do que pelos externos (contexto
histórico, vida social, etc.). A origem do termo é atribuída a Todorov. Por conta do ensaio de
Genette, a narratologia ficou muito associada ao estruturalismo francês. Bal, que teve uma
formação pautada por autores franceses, assumiu o termo narratologia e o difundiu
mundialmente, sobretudo no mundo anglófono, onde não era conhecido. Para tentar se
desvincular na herança estruturalista e talvez assegurar a permanência da linha teórica da qual
agora é a principal representante, Bal publicou, em 2002, o livro Travelling concepts in the
humanities: a rough guide, no qual se observa um esforço no sentido de atualizar e
redimensionar algumas noções da narratologia e propô-las como instrumental de análise para
os estudos culturais, hegemônicos nos Estados Unidos e no Canadá. Em 2009, foi publicada
uma edição revista e ampliada do seu Narratology, na qual também há essa tentativa de
aproximação com os estudos culturais.
Fábula e história, dois conceitos básicos que Bal (1995) apresenta no início do seu ensaio,
foram herdados do formalismo russo e tanto ali como mais tarde, no estruturalismo, implicaram
estados de linguagem, tempos qualitativamente distintos da enunciação. Mas, por força da
necessidade de se ajustarem tanto às narrativas literárias como às narrativas cotidianas,
emanciparam-se do plano verbal e foram investidos de um sentido mais amplo: embora a fábula
e a história sejam feitas da mesma matéria, a fábula é uma protonarrativa imaginária, suscetível
às inconstâncias da livre criação, enquanto a história é o seu arranjo ordenado. “Se se considera
a fábula primordialmente como produto da imaginação, caberia entender a história como
resultado de um ordenamento”, diz Bal (1995, p. 57. Grifos originais.)12. O que explica essa
ampliação de sentido é o que a autora explicita logo a seguir: “O objetivo da análise textual não
é a explicação do processo de escritura, mas sim das condições do processo de percepção”
(BAL, 1995, p. 57)13.
12
Si se considera a la fábula primordialmente como producto de la imaginación, cabría entender la historia como
resultado de una ordenación.
13
El objetivo del análisis textual no es la explicación del proceso de escritura, sino de las condiciones del proceso
de percepción.
14
El principio de ordenación más conocido consiste en la presentación de acontecimientos en un orden distinto
del cronológico. En la tradición de la teoría de la literatura, este aspecto ha sobrevivido a la distinción entre
fábula y suzjet tal como la utilizaban los formalistas rusos.
63
passamos para o plano da história, temos uma versão dos acontecimentos (BAL, 1995, p. 58),
apresentados a partir de uma certa perspectiva, que é um instrumento de manipulação (palavra
que deve ser tomada no sentido de “tratamento” ou operação) (BAL, 1995, p. 58). Temos,
também, a possibilidade de o narrador da história contá-la rompendo a cadeia cronológica da
fábula. Tal tratamento da matéria narrada é perfeitamente defensável em termos do
compromisso com a integridade da fábula, já que não sabemos se o ordenamento fabular não
resultou também ele de uma manipulação, isto é, se o relato matricial, supostamente verídico,
não foi descaracterizado quando recriado como fábula. Todos conhecem aquela brincadeira
juvenil de sussurrar uma frase no ouvido do colega e pedir que a repasse. Depois que todos
sussurram uns para os outros, a informação que se obtém é, com frequência, muito diferente da
original. O mesmo sucede com os boatos ou até mesmo com a reportagem jornalística de um
crime. A perspectiva é um fator a ser considerado no plano da história, da fábula ou em qualquer
outro que envolva a ação de narrar. É uma noção “clássica” da teoria literária que alguns autores
estruturalistas acabaram por desgastar, inserindo-a em um método de análise textual mecânico
e repetitivo. Porém, seja para a narrativa literária ou para as narrativas do cotidiano, estar ciente
de que a perspectiva interfere na mensagem é algo que qualifica ou torna mais intensa a
experiência do receptor com o texto artístico ou com os relatos do mundo.
Outra noção clássica dos estudos da narrativa é o ritmo, a forma como o tempo transcorre,
igualmente atrofiada pelas leituras estruturalistas, mas útil para se compreender a economia
narrativa, algo em contínuo processo de mudança. A teoria literária tende a considerá-lo uma
técnica narrativa, mas é mais do que isto: reflete amplo espectro de transformações
15
Este punto de vista a partir del cual se presentan los elementos de la fábula ostenta a menudo una importancia
decisiva en el significado que el lector atribuirá a la fábula. Además juega un papel en la mayor parte de las
situaciones cotidianas. Un conflicto se juzga mejor dejando que las dos partes den su propia versión de los
acontecimientos, su propia historia.
64
socioeconômicas. O ritmo das narrativas muda quando muda o ritmo do mundo, fazendo com
que haja menos tempo e paciência para os relatos minuciosos, para os pormenores. Essa
mudança, por sua vez, afeta a forma de inserção dos atores na sociedade, a sua visibilidade, a
partilha do sensível, adquirindo, como se vê, tom político e muito atual.
Desenha-se, neste comentário de natureza teórica, o processo pelo qual vem passando a
narrativa literária desde o período de apogeu do romance realista, no século XIX, até as
16
Percy Lubbock, no seu livro A técnica da ficção (The craft of fiction) (1921).
17
Se exprese la atención más o menos equitativamente en la fábula, siempre habrá una especie de alternancia
entre la presentación extensa y el resumen. Esta alternancia se considera generalmente la característica más
importante del género narrativo; sea como fuere, es claramente un señalizador de importancia. Lubbock ya hizo
una distinción entre estas dos formas. La escena y el resumen. Se ha señalado correctamente que este contraste
relativo debería llevarse hasta su extremo. Por un lado podemos distinguir la elipsis, una omisión en la historia
de una parte de la fábula. Cuando a una cierta parte de tiempo de una fábula no se le presta ninguna atención, la
cantidad de tiempo de fábula es infinitamente mayor que el tiempo de historia. Por otro lado podemos distinguir
la pausa, cuando un elemento que no ocupa tiempo (por lo tanto un objeto y no un proceso) nos es presentado en
detalle. El TF es entonces infinitamente menor que el TH. Normalmente es éste el caso en los fragmentos
descriptivos de tesis […]. La isocronía real, una coincidencia completa del TF y el TH, no se puede determinar
con precisión. Podemos, sin embargo, aceptar que, por ejemplo, un diálogo sin comentario ocupa tanto en TF
como en TH. El diálogo, y en principio cualquier escena, cualquier presentación detallada de un acontecimiento
con pretensiones de isocronía, funciona entonces como punto de comparación. Por escena, queremos dar a
entender aquí un segmento de texto en el que TF=TH.
65
18
La focalización es la relación entre la “visión”, el agente que ve, y lo que se ve […]. la focalización pertenece
a la historia, al estrato intermedio entre el texto lingüístico y la fábula.
19
Puesto que la definición de focalización se refiere a la relación, deberán estudiarse por separado ambos polos
de esa relación, el sujeto y el objeto de la focalización.
20
“la relación entre el objeto y el sujeto de la percepción”.
21
“con la posibilidad de superar la firme oposición sujeto/objeto”.
66
22
Quizás lo más importante fuera que mi versión de la focalización daba la posibilidad de analizar un texto, en
lugar de parafrasearlo y categorizarlo a grandes rasgos […] …esta idea fue totalmente contingente a la defensa
de una noción performativa de la producción de significado en la subjetividad y a través de ella […].
23
Si la distribución de posiciones de sujetos entre la primera y la segunda persona (lingüísticas) constituye la
base de la producción de significado – como yo y muchos otros creemos –, no existirá ningún apoyo lingüístico
para ninguna forma de desigualdad, supresión o predominancia de una cierta categoría de sujetos en la
representación.
En contraposición a la oposición entre objeto/sujeto que promueve la referencia, Benveniste ataca con un solo
gesto la autoridad individual y sus varias versiones e n los textos culturales. Para examinar las desigualdades y
autoridades que sin duda estructuran esos textos, la base de esas posiciones y distribuciones no debe buscarse ni
en el significado como producto de la referencia ni en la intención del autor. En lugar de ello, el significado es
producido por las presiones del “yo” y del “tú”, que continuamente cambian de lugar respecto a los significados
que son capaces de generar. Estas presiones no parten de los sujetos – cuya posición lingüística los sitúa
precisamente como vacíos de significado, al margen de la situación de la comunicación –, sino que llegan hasta
ellos y los llenan de significado. Este relleno les llega desde fuera […].
67
O que há de novo, o que está além da compreensão antiga do termo focalização, é que
o olhar que focaliza o sujeito na narrativa – e praticamente o instaura como tal – provém do
mundo e é detentor de um saber que não está no texto, nem nas suas camadas superficiais, nem
tampouco nas camadas profundas. Um saber – percepção, se se preferir – sobre o outro, sobre
outras realidades, sempre cindidos, precários, incompletos, fragmentados.
Novamente se conclui que a literatura, como todo ato criador no âmbito artístico, não
são autônomos e o que os move, em grande parte, são forças e desejos não específicos ou não
exclusivamente seus. Focalizam-se novos atores e conflitos, novas possibilidades de narrar com
perspectivas diferentes experiências já conhecidas. Um exemplo é o documentário Ziva Postec.
A montadora por trás do filme Shoah25. Ziva Postec é personagem lateral e esquecida da
produção de Shoah (1985), que notabilizou somente o seu diretor, o documentarista francês
Claude Lanzmann (1925-2018). Ela foi, no entanto, uma peça essencial para o êxito do filme,
tendo dedicado a esse trabalho parte significativa de sua vida, renunciando à família e a outros
projetos pessoais. Como espectadores, penetramos nas vísceras de Shoah, nas pesquisas e
entrevistas que lhe deram forma, ao mesmo tempo em que conhecemos a vida de Ziva, marcada
duplamente pelo rastro de sofrimento dos judeus nos campos de concentração nazistas, por
também ser judia e por ter tido contato em primeira mão com muitas horas de depoimentos que
reconstituíram no plano verbal a substância da gigantesca barbárie. Somos levados para o
interior de Shoah pelo olhar de Ziva, que foi, de fato, quem deu ao filme a forma definitiva.
Não apenas conhecemos aquele filme por uma via marginal como também nos conscientizamos
de que a obra reivindicada como de autor não teria chegado ao seu termo sem o trabalho de
uma mulher sensível, culta e obstinada, a montadora Ziva Postec. Como nas “margens” que
24
[...] la focalización, al llegar a su nuevo destino, al análisis visual, ha recibido un significado que no coincide
ni con su antiguo significado visual – enfocar con una lente – ni con su nuevo significado narratológico – la
amalgama de percepción e interpretación que guía la atención a través de la narrativa.
25
Ziva Postec. The Editor Behind the Film Shoah. Canadá, 2018, 92 minutos, direção de Catherine Hébert.
68
Rancière identifica nos contos de Guimarães Rosa, há, nesse documentário e em outras obras
recentes, o desejo de focalizar os anônimos, os esquecidos e de, sobretudo, construir os relatos
mediante um novo olhar, que os redimensione ou até transforme tudo o que outrora sabíamos a
respeito deles. A literatura, o cinema, as artes performáticas, etc. parecem se reencontrar com a
sua grande vocação histórica de dar visibilidade aos seres tornados invisíveis no bojo da grande
engrenagem socioeconômica: vocação à qual a arte jamais renunciou, mas que estava embotada
após mais de um século com o olhar fixo nos reflexos de si mesma.
69
3 DESLIZAMENTOS
3.1 Os contos
Recebo de um grupo de amigos e críticos o
estímulo para continuar escrevendo; mas o
material, quem me dá é a realidade que anda por
aí.
Em 1.2 já delineamos como estão configurados cada um dos livros de ficção de Modesto
Carone. Mas se faz necessário enfatizar aqui a simetria dos dois primeiros livros, As marcas do
real (1979) e Aos pés de Matilda (1980), nos aspectos tonal (o tom que prevalece na
enunciação), de focalização e temáticos. Há, porém, assimetrias relevantes em As marcas do
real que serão apontadas e discutidas em um dos contos do corpus.
A seguir procederemos, então, às análises dos 13 contos26 e do romance Resumo de Ana,
que constituem o corpus desta tese. As análises dos contos são precedidas da reprodução de
cada um deles na íntegra27.
AS FACES DO INIMIGO
26
Os contos são “As faces do inimigo”, “Choro de campanha”, “As marcas do real”, “Utopia do jardim de inverno
por um doutor em letras”, “Recato”, “Ponto de vista”, “Encontro”, “Passagem de ano”, “Novelo”, “O Natal do
viúvo”, “Visita”, “Por trás dos vidros” e “Café das flores”.
27
Foi mantida a ortografia das edições originais.
70
Um traço recorrente deste e de vários outros contos incluídos nos dois primeiros livros
de ficção de Carone é que o ato de narrar se constitui como parte da execução de um método:
o motivo principal, o motor da reflexão, se circunscreve a um dado muito particular do narrador-
personagem, aderido ao presente da narração. Pode ser o crescimento assimétrico dos pelos no
corpo, como no caso deste conto; pode ser a relação do indivíduo com os objetos que o rodeiam,
como a cama, a cadeira, a mesa do escritório. Parece haver uma inação brutal em torno do
narrador, uma paralisia das forças vitais, e todo movimento só pode ser simulacro de
movimento, fixado em pormenores, em erupções corporais, na mobília, nas paredes. A vida,
interditada, só é permitida no gesto medido, meticulosamente ensaiado e descrito. O discurso
bloqueia a expansão do pensamento, o devaneio, a evasão. Também é restritivo: vale-se, na
maior parte do tempo, de um léxico composto por palavras que não consentem a ambiguidade,
as livres associações e criam uma atmosfera hostil. O leitor é repelido da experiência como
percepção imediata: desliza pela matéria narrada e sai dela como entrou, sem senti-la para além
da superfície, sem usufruir sequer de um “aprendizado”, sem ser tocado por uma imagem
pungente ou por uma emoção especial, certo arrebatamento.
“As faces do inimigo” é um conto cuja narração se despe do invólucro literário para
adotar outro, próprio dos textos reflexivos, analíticos. Guarda, porém, um traço que denuncia a
sua origem, que revela que a pretensão de ser análise, ensaio, é simulacro. Diz o narrador: “o
tempo deixa de progredir à minha volta: ele fica encravado nas dobras do meu corpo como uma
sujeira adormecida”. A imagem é poética, posta aí para destoar do tom predominante. Contrasta
com uma construção como esta: “a multiplicação dos pelos é abundante, uma revista eficiente
exige a atenção mais pertinaz, os espécimes rebeldes proliferam”. O primeiro trecho se insinua
71
como um possível descolamento dos limites da experiência presente, mas o voo é tolhido.
Funciona como chave no interior de um sonho ou pesadelo que tomamos como real, crível, para
que, a certo momento, o cristal da fantasia se estilhace e, tomados pela consciência repentina,
despertemos em assombro. Tal chave ou janela está ausente de outros contos do volume, como
“As marcas do real” e “Utopia do jardim de inverno por um doutor em letras”. Está ausente,
também, do conto “O Sul”, de Borges, citado há pouco, que tem algumas semelhanças com os
contos de Carone. O que rompe o simulacro em “O Sul”, o que denuncia a sua condição de
texto ficcional e literário, não de ensaio historiográfico, é um dado externo à narrativa,
dependente do leitor: ele precisa saber que aqueles fatos e personagens não têm lastro na
verdade histórica. Essa chave exterior também é requisitada no conto “As Marcas do Real”. Em
outros contos, quando não há metáforas, críticas, traços de poeticidade para perturbar a
pertinência do discurso analítico, há um elemento insólito. Instaura-se, de uma forma ou de
outra, a ambiguidade no interior do discurso, com o propósito evidente e intencional de revelar
que se trata de literatura, não de outra coisa, embora, de fato, pareça ser outra coisa. O que
predomina na maior parte do conjunto formado pelos 22 contos de As marcas do real é o
despojamento da especificidade literária e a adoção de uma especificidade outra: as estratégias
enunciativas e os mecanismos de persuasão próprios dos discursos crítico-analíticos, tal como
vemos nos ensaios de sociologia, política, história, antropologia, etc., nos artigos de opinião,
nas teses e monografias.
A partir do volume Dias melhores (1984), atenua-se esse anseio do narrador por um relato
cerebral. O discurso é mais atravessado pela poesia, está mais claramente definido como
literário. A objetividade, no entanto, permanece, ainda que posta à prova pela dúvida, pelo ir e
vir entre o que se sabe e o que se supõe: o romance Resumo de Ana (1998) é feito dessa mescla.
O desejo obsessivo do narrador de “As faces do inimigo” por controle e vigilância
resvala na esquizofrenia. A experiência do narrador-personagem pertence em tal proporção ao
presente narrado, a fábula e a história estão de tal forma sobrepostas, que a expressão “me ver
de fora” só pode ser tomada como irônica. Não há como se ver de fora porque ele está alienado
das referências exteriores. Em outra expressão irônica, o narrador afirma: “[...] não me sinto
bem quando me surpreendo desatualizado – principalmente num setor importante como este”
(CARONE, 1979, p. 14).
Ao concluir o conto afirmando que “muito pouco se pode fazer contra as manifestações
espontâneas”, o narrador parece ter encontrado, afinal, uma pedagogia na sua odisseia com os
próprios pelos. Não há, porém, informação, formação ou aprendizado válidos, pois o método
só faz retroalimentar o próprio método. A afirmação alude à ditadura militar então vigente e à
72
sua necessidade de manter tudo e todos sob controle, algo que, no enredo do conto, com a sua
loucura em torno dos pelos que brotam na epiderme, equivale ao trabalho de Sísifo. Sem esse
sentido externo à matéria, sem o olhar “de fora”, o conto se oferece apenas como o enigma
contido na sua superfície.
CHORO DE CAMPANHA
predomina. Vejamos alguns exemplos: “tive a sensação de que no brilho de aço dos seus olhos
havia um halo de sombra”; “o tempo voava”; “na linha das colinas pairava um por-de-sol
melancólico”. A fábula se constitui de quatro estações: a inicial, com o narrador, velho político
em campanha, vendo sua professora primária já idosa, na escola onde ele estudou; a climática,
com o avião militar caindo e se incendiando no decorrer do banquete e com a morte sendo
representada pelo sangue da picanha no prato; o êxtase, com o narrador tendo uma ereção
proporcionada pela memória da origem dos seus sonhos de poder que a casa de detenção lhe
proporciona; finalmente, a farda fantasmática que se desprende do espelho e vem em sua
direção.
Está presente, de forma mais ostensiva do que em “As faces do inimigo”, a sombra da
sociedade militarizada, desta vez evocando a morte e a despersonalização. As duas situações
de choro do velho político são resultam de tensões: ele se emociona ao reencontrar a antiga
professora e se lembrar da educação que dela recebeu, com castigos físicos. Também se
emociona ao visitar a casa de detenção, mas ali o choro se dá quase ao mesmo tempo que a
ereção, pois a atmosfera predominante foi a mesma que o motivou perversamente no passado a
se tornar político e agora o excita sexualmente. A farda sem pescoço é a vinculação final do
narrador com o contexto histórico, os anos do regime militar (1964-1985).
A nossa hipótese é de que esse conto, ao fazer duas alusões claras ao poder militar (a
queda do avião e a farda), cumpre o papel de contextualizar as demais narrativas, de vinculá-
las de forma mais clara à ditadura. E isso é feito por meio de um velho político conivente com
a violência do momento, além de insensível aos seus efeitos.
AS MARCAS DO REAL
O conto que dá título ao livro é de todos o mais radical no sentido de ser um discurso
analítico, de ostentar algumas especificidades que não são literárias e sim afinadas com a
estrutura do ensaio acadêmico. O narrador, mesmo embotado, não é neutro: apesar de o tom
predominante ser o do discurso acadêmico, objetivo, frio e medido, o texto está repleto de juízos
75
de valor. Isso o distancia da tese de doutorado que Modesto Carone produziu tendo como tema
a poesia de Georg Trakl (1887-1914), poeta expressionista austríaco de vida breve e conturbada.
O paradoxo do conto está em adotar o discurso acadêmico, que distancia o narrador do objeto,
e ao mesmo tempo realçar dados da biografia do poeta, como o seu envolvimento com
entorpecentes, que justificariam o seu processo de composição e o teor dos principais poemas.
“Quem lê seus poemas reconhece a experiência do drogado: o texto alimenta-se de um cortejo
de imagens intensamente coloridas onde deslizam barcas e papoulas” (CARONE, 1979, p. 39).
Se fosse extraído do livro e deslocado para outra materialidade, esse conto seria lido como
ensaio ou como artigo de caderno literário da imprensa. O distanciamento com que a história é
narrada e a forma como o narrador transita dos dados biográficos do poeta para o contexto
histórico fazem de “As marcas do real”, como apontou Arêas (1997), uma possível matriz de
Resumo de Ana (1998).
1
Todas as vezes que eu entro no jardim de inverno alguma novidade me
espera. Não que lá aconteçam coisas excepcionais – a não ser para os olhos
habituados ao trato maleável com as nuances. Isso significa que é preciso ter
um mínimo de familiaridade e traquejo para perceber o que mudou no mundo
complicado de uma estufa. Evidentemente ele não se abre ao primeiro que
passa. Mas seu recato só é impenetrável para quem não sabe acompanhar os
movimentos sutis de sua história. No caso não se trata de evidências ou
clarões, mas de sinais aparentemente insignificantes, como trocas discretas de
posições, acréscimos e arranjos que a vista destreinada não distingue. Não
quero dizer com isso que as alterações tenham deixado de ser substanciais:
elas o são sempre. Assim é que, para exemplificar, uma luz inusitada pode
trazer à tona todo um traçado de manifestações riquíssimas até então latentes
no seio de uma falsa imobilidade. Foi uma contingência como essa que me
levou a imaginar que as cores, as linhas e a consistência, em suma: a
constelação de forças daquele mundo privilegiado se comportavam como
peças de um caleidoscópio. A diferença fundamental, porém, é que nele se
mexe um organismo vivo, capaz de acusar e absorver, sem manipulação, o
encontro de suas camadas mais secretas. Tudo depende, é claro, da condição
76
e sua estufa, ou entre ambas e o cortejo de coisas que lhes dão consistência –
casa, cidade, país – o que as faz habitar um âmbito que a rigor não é o seu.
Talvez essa circunstância explique a tendência dessas plantas a dizerem
alguma coisa que existe mas não tem nome certo e que por isso aceita outro
totalmente provisório (CARONE, 1979, p. 121-131).
Há aí uma comicidade que embute uma crítica à retórica vazia, à primeira vista dirigida
aos textos acadêmicos, pois é o que o título sugere. Mas, se atentamos para as temáticas
presentes nesses contos, detectamos manifestações da violência com várias formas e matizes,
podendo estar associada ao sentimento de estagnação, de impossibilidade de atuar sobre o
próprio mundo circundante, dando origem a uma espécie de conformismo, como é o caso de
“As faces do inimigo”; “Fendas” e “A força do hábito”; à percepção da ameaça que paira no ar
e pode, inclusive, dar forma efetiva a um cenário de morte, como em “Choro de campanha” e
“Dias melhores”; às relações pessoais e afetivas marcadas pela incomunicabilidade, pela
submissão e dependência do outro, como em “Aos pés de Matilda”. No caso de “Utopia do
jardim de inverno por um doutor em letras”, o discurso que diz sem nada dizer é também uma
modalidade de violência, pois subtrai da expressão toda forma de criatividade e leveza,
negando-se até mesmo como ato criador. Não é de espantar que esse conto esteja no livro As
marcas do real, de todos o mais incisivo quanto a trazer para a linguagem a crítica aos
cerceamentos à liberdade de expressão, ao livre pensamento e à autonomia do indivíduo.
A sombra nesses textos de uma mão forte que proíbe, vigia e pune extrapola os temas:
está na própria dicção do escritor, nos momentos, como vimos, em que uma escrita proposta
como literária imprime na sua própria matéria uma contenção obsessiva da poeticidade, de tudo
o que consagrou o literário como tal. Ainda que o estilo de Carone tenha se permitido pouco a
pouco a fruição do texto e estendido esse direito ao leitor, a sua dicção nunca se converteu
plenamente à ideia de um ato criador que captura o leitor da experiência com o real e o leva
para um deslocamento espaçotemporal, a uma evasão necessária. O seu texto está sempre
ancorado no aqui e agora, mesmo quando a matéria se assenta em um relato memorialístico,
como em Resumo de Ana. O narrador não se permite evasões e devaneios. Tudo isso ostenta
tantos vestígios de elaboração, de depuração da forma, que não há margem alguma para se
supor que poderia ser acidental, inconsciente, algo não posto a si mesmo como balizas estética,
moral e política.
RECATO
Como em “As faces do inimigo” e “Ponto de vista”, há, aqui, uma capitulação do
indivíduo a uma realidade que o limita, seja enclausurando-o ao corpo cuja satisfação dos
desejos foi negada, seja restringindo-o a um embate surdo e estéril com objetos ao seu redor.
A interdição do desejo e a autocensura tornam-se um hábito, parte da rotina do indivíduo. A
construção imaginária, a cadeira como evocação do corpo feminino, portanto sensualizada,
dissipa-se por completo na rigidez do real, onde não há espaço para o sonho e a evasão. O desejo
reprimido se traduz em inação, “a inércia acaba me dominando; ao me levantar estou esgotado”
(CARONE, 1980, p. 14).
PONTO DE VISTA
1
Faz anos que passo os dias agachado embaixo da mesa. Evidentemente
a posição é incômoda para quem trabalha: ainda hoje sinto uma dor aguda no
meio das costas. Isso não impede que eu me adapte ao desconforto; pelo
contrário, o processo de ajustamento sempre despertou em mim energias
inusitadas. Tanto é assim que houve épocas em que a dor só se manifestava
nas horas de repouso. É verdade que me perseguia de perto: se o meu
desempenho diminuía ela atacava de novo. Em vista disso era previsível que
eu me esforçasse ao máximo: a providência me assegurava uma jornada
tranqüila e o aumento da produtividade.
2
Pode parecer estranho que alguém funcione agachado. No meu caso
porém a postura era indicada, uma vez que me protegia das distrações usuais.
Como se sabe, elas interferem numa tarefa que precisa de fluência. Assim é
que o ruído de um sofá na sala vizinha ou a presença de um raio de sol no
teclado podem desviar um escriturário. Ele se deixa embalar por apetites que
nada têm a ver com as fronteiras do seu ofício. Por causa disso não é raro
surpreender um chefe de seção de olhos espetados na janela ou um office-boy
apalpando o fundo do bolso: na certa estão à procura de alguma novidade. O
que nisto tem o ar de coisa permitida não passa de ilusão, pois no conjunto
esses comportamentos refletem desprezo pelo real. Noutras palavras, a
81
Expõe-se ao ridículo o trabalho que, para ter legitimidade, precisa ser impenetrável:
números e discursos prolixos embrutecem e escravizam. O “sistema” impõe a assimilação da
violência, que passa, assim, a fazer parte do cotidiano. As negativas ao prazer, os cerceamentos
moralistas de toda ordem, levam os indivíduos à prática da autocensura, forma mais sofisticada
de controle e repressão por parte do Estado autoritário: “nessas pessoas a consciência do próprio
corpo é quase intolerável” (CARONE, 1980, p. 23). Novamente, a negação do desejo e de toda
e qualquer forma de devaneio, vistos como perigosos (subversivos) e contraproducentes.
ENCONTRO
Quando pisei no viaduto senti que a noite tinha chegado. Pois embora
eu ainda guardasse na memória a imagem de um dia cinzento, era evidente
que as nuvens tinham desaparecido atrás de mim. Talvez por isso o cenário à
minha frente parecesse tão nítido: os arranha-céus mantinham as luzes acesas
e os faróis se multiplicavam nas pistas do vale. A diferença é que eu não
escutava nem de longe o ruído das buzinas e os pneus rodavam sem barulho
pelo trançado de ruas abaixo. Suponho que mesmo os anúncios de neon se
mexiam no alto com gestos policiados.
Foi nessa atmosfera recuada que o relógio do mosteiro começou a bater;
mas o som fora de lugar aderiu logo aos reflexos do mercúrio no chão.
Entretido com o espetáculo não contei as badaladas; só mais tarde verifiquei
que eram seis.
Apesar da hora o viaduto estava vazio – a meu lado a amurada de ferro
parecia morta. Cheguei a tocá-la com a ponta dos dedos prevendo que as
hastes não acusavam a menor vibração. Certamente o motivo era o mês de
junho: a temperatura tinha baixado e as pessoas não se arriscavam a sair de
casa nos fins-de-semana; as que eu vi de perto passaram encapotadas.
Inseguro por não estar agasalhado ergui automaticamente a gola do
paletó; no meio do viaduto o vento levantava para o alto algumas folhas de
jornal. Ao esfregar a nuca nas fibras do tecido senti falta do velho cachecol de
lã. Há muito tempo não me lembrava dele, nem sabia onde o tinha
abandonado; entretanto a cor dos fios e a qualidade do contato com a pele me
despertavam para uma perda intolerável. A sensação foi aguda ao ponto de
enxergá-lo a poucos metros de mim.
A princípio fiquei parado na expectativa de que a visão se desfizesse;
sou sensível a coincidências desse tipo, porisso não me entrego à primeira que
aparece. O fato porém é que os minutos iam passando – já soava o primeiro
quarto de hora no mosteiro – e o cachecol não se dissipava diante dos meus
olhos. Eu recompunha lentamente seus detalhes; as dobras e a costura tinham
os mesmos relevos e era possível ouvir o estalo magnético da malha nas
épocas de muito frio: sem dúvida ele estava ali.
Pressionado pela surpresa não me dei conta de que também as costas e
o pescoço se moviam à minha frente; na verdade se dirigiam ao espaço aberto
em que o viaduto dominava o vale. Agora o couro dos sapatos ecoava na
estrutura de metal e a agitação lá de baixo subia à altura do parapeito. Sem me
virar para os lados eu recebia a corrente de ar na barra das calças; breve ela
chegaria aos meus cabelos. À minha esquerda balançavam as roupas
estendidas nas janelas dos apartamentos; os escritórios pareciam desertos nos
andares iluminados.
84
Retoma-se o tema do duplo, mas não nos termos clássicos nos quais a literatura o fez
célebre, e sim em uma mão dupla da composição que ressalta o ambiente social opressivo e a
sua incidência sobre o narrador. Ao aludir a “gestos policiados” o narrador parece construir em
linguagem figurada a ideia de que tudo é policiado. É sugestiva a situação na qual o narrador
está só sobre um viaduto, mas logo abaixo há todo o movimento próprio do trânsito da
metrópole. A friagem e a altura intimidam e parecem realçar o sentimento de solidão. Eis que
surge diante do si o cachecol, uma peça do seu guarda-roupa que evoca, evidentemente, o
passado e outras experiências, talvez amenas. Quando avança sobre o outro com o intuito de
tomar de volta para si o cachecol, ocorre a invariável revelação do duplo: tão somente o seu eu
pretérito, mas estampando a alegria do momento da sua chegada à cidade, quando ela ainda
propiciava uma expectativa positiva, sem ter sido corroída, ainda, pelas agruras que o narrador
teve de vivenciar. O encontro é com um duplo de confrontação: o seu próprio passado lança
uma crítica cáustica sobre o presente. É talvez o conto dessa fase da sua produção no qual
Carone mais investiu em termos de uma expressão inequivocamente literária. Desde o momento
em que o narrador inicia a sua incursão no viaduto até o desfecho, tudo conspira para que ali a
vida pareça tomada pelos tormentos do espírito humano, algo que o mundo da ficção apreende
melhor do que o campo estrito do pensamento analítico.
PASSAGEM DE ANO
1
Ninguém duvida que sua morte esteja ligada à passagem de ano; caso
contrário seria difícil supor que ele abandonasse a casa de um modo tão
radical. Pois a verdade é que sobre a mesa estavam dispostos os trechos de um
trabalho começado e uma agenda de compromissos pessoais. Além do mais a
limpeza das salas era estrita e a ordem do quarto maior que a habitual.
Evidentemente nada disso seria um indício relevante se não fosse o
testemunho de que sua vida continuava regrada e de que ele planejava os dias
com rigor. Fica assim prejudicada a hipótese de que ao fechar a porta e tomar
o elevador ele já soubesse que não ia mais voltar.
85
2
A questão é que a noite estava única e o céu manchado pelos luminosos
comerciais: talvez o teto baixo e a luz artificial o incomodassem. Não que a
sua consciência repudiasse o espaço reduzido; o que o feria era a proximidade
das coisas a despeito do seu ar inalcançável. Tanto é assim que a multidão e
as vitrinas deslizavam desgarradas como uma vertigem sem causa.
Certamente restava a possibilidade de evitar os corpos em sentido contrário e
os metais ao alcance do seu braço; seria ingênuo porém achar que recursos
como esse agora bastassem. Não surpreende portanto que escolhesse o meio
da praça para encarar o relógio da loja: quem sabe dessa forma pudesse ainda
fixar o que acontecia.
3
Não consta que a expectativa se cumpriu: quadrado e silencioso o
relógio movia os ponteiros com a regularidade esperada. Foi a partir daí que
ele provavelmente girou nos calcanhares e viu o teatro, o prédio ao lado e os
arranha-céus do vale. Imaginava talvez que o conjunto oferecesse algum tipo
de contato ou que dele brotasse uma nova noção de realidade. O fato porém é
que o milagre não veio e ele ficou parado exatamente no mesmo lugar.
4
Ao que parece foram os sinos e as buzinas que o fizeram dar meia volta
e examinar o viaduto. Ele permanecia nítido como nunca e nenhum
impedimento interior o constrangia a não olhar para lá. Sentiu-se então
estimulado e atravessou a rua apalpando os bolsos à procura do último cigarro.
Dizem os mais próximos que no ponto em que o vale se abre inteiramente à
vista ele parou e esfregou os dedos nas traves de metal. É possível também
que tenha acompanhado os rostos que passavam ao seu lado; mas, como não
adivinhassem neles nenhum sinal particular, subiu na amurada e saltou no
vazio com a determinação própria dos grandes momentos de euforia
CARONE, 1984, p. 23-25).
Retoma-se em parte o tom da escrita de análise que predomina no primeiro livro, mas que
neste (Dias melhores) já vai esvaecendo quase por completo: os contos tratam da solidão, da
incomunicabilidade e da violência na metrópole, e não opõem resistência à fruição da leitura,
ou a que o leitor faça as associações que desejar. Aqui, os momentos finais de um suicida são
narrados com a aridez da análise fria, distanciada. Não há aquela radicalidade de As marcas do
real, mas se prenuncia o tom lacônico e neutro com que o narrador de Resumo de Ana narra
momentos dramáticos da vida das personagens. Observemos dois trechos do conto: “a limpeza
das salas era estrita e a ordem do quarto maior que a habitual” (CARONE ,1984, p. 23); “Não
que a sua consciência repudiasse o espaço reduzido; o que o feria era a proximidade das coisas
a despeito do seu ar inalcançável” (CARONE, 1984, p. 24). O adjetivo estrita, que é de uso
passivo na linguagem coloquial mas de largo emprego nos textos formais, subtrai do enunciado
qualquer possibilidade de expressão de sentimentos como empatia ou compaixão28. Em outros
28
A literatura oferece muitos exemplos dessa compaixão do narrador com as personagens e com o que é narrado.
Citamos um deles, traço comum a alguns contos de Luigi Pirandello: a pietà (piedade) pirandelliana, aspecto muito
conhecido pela crítica especializada na obra do escritor italiano. Veja-se o conto “Il lume dell’altra casa” (“A luz
da outra casa”), de 1909. Em 3.3 estabeleceremos um paralelo entre o conto “O jogo das partes”, de Carone, e a
86
contextos se diria: não há envolvimento com o objeto. Efeito semelhante é obtido com a frase
“a despeito do seu ar inalcançável”: a formalidade é uma barreira de contenção, impedindo que
metáforas e sentimentos adentrem o discurso.
NOVELO
Este conto integra uma parte do volume intitulada Masculino/Feminino, com textos cuja
temática é dedicada aos relacionamentos. Tal como este "Novelo", trata-se de contos
relativamente “suaves” em comparação aos de As marcas do real, trazendo, inclusive, a
intertextualidade com o mito de Ariadne, permitindo e desejando que o leitor estabeleça essa
relação. A Ariadne original usa seu fio de lã para guiar Teseu na fuga do labirinto e das garras
do Minotauro, em troca de uma promessa de casamento. Já a Ariadne de “Novelo” está em um
relacionamento no qual um parceiro está enleado ao outro, ambos desprovidos do tônus moral
necessário para o rompimento, embora percebam a relação como problemática. Não se
vislumbra a possibilidade da fuga.
peça Sei personaggi in cerca d’autore (Seis personagens à procura de um autor), do mesmo Pirandello, divisor
de águas na história do teatro ocidental.
87
O NATAL DO VIÚVO
É tarde, a chuva bate nos vidros, ele está sentado num canto da sala.
Talvez apóie o rosto numa das mãos ou cruze as pernas mas não se percebe
nenhum movimento. A obscuridade é maior porque as cortinas estão descidas
e a luz só filtra por algumas frestas. Não é possível registrar nada com nitidez,
ele está parado ou parece parado na poltrona do canto da sala. Provavelmente
os olhos permanecem fechados e se as pálpebras se abrem a vista acusa
tonalidades de cor na quina de um móvel. Os carros passam pela rua da frente
chiando os pneus no asfalto e alguma coisa estremece na casa, um ruído de
folhas, o tinido de um cristal. Os copos estão enfileirados sobre a toalha ao
lado dos pratos e talheres e dos guardanapos dobrados com um par de asas na
penumbra. Os vidros e os metais não cintilam, as velas vermelhas dormem nos
castiçais, o mais provável é que ainda não tenham saído dos armários e da
cristaleira. Ele não fixa o olhar na mesa pois conserva a cabeça baixa ou
apoiada na mão direita, talvez na esquerda. Se olhasse não veria nada porque
lá também não há luz. Mas ele não é cego, olha para dentro e remexe, apalpa
o que vê, as imagens vão de um lado para outro, rodopiam, escondem-se atrás
da coluna de gesso e desaparecem sem deixar vestígio. O ar que ele respira é
espesso, a neblina sobe do chão, a coluna vacila, de repente desaba, os pedaços
se espalham pelo chão, sem barulho. A criada de avental está varrendo o
assoalho, a vassoura de pêlo trabalha como um autômato, a moça vira as costas
para a sala, some pela porta da copa. Ele faz um gesto de impaciência, pode
ser de dor, mergulha o rosto nas conchas das mãos e um resto de poeira branca
se agita quando os carros passam pela rua. A campainha toca, toca, o chiado
das rodas no asfalto abafa o toque remoto, ela toca outra vez, sobrevém o
silêncio. Os passos se aproximam, o salto dos sapatos bate nos tacos, a esposa
abre a porta, introduz a filha na casa com um beijo, as duas passam pela
poltrona falando em surdina, agora é possível que ele se mova no assento da
poltrona, faça menção de ir até a janela para abrir as cortinas. No centro da
sala iluminada a filha está conversando com a mãe, elas mantêm os dedos
enlaçados, o filho desce a escada em caracol e abraça as duas mulheres de
perfil idêntico. A mesa foi posta, as velas vermelhas ardem nos castiçais, a
moça de avental entra sorrindo com uma travessa nos braços. Os filhos
chegam à poltrona do canto da sala, erguem as taças, pelo meio dos dois a
mulher espia para ele, sorri, os dentes são brancos, as maçãs do rosto coradas
e da linha alva do pescoço emerge um clarão. A cera começa a derreter, não
se refaz, as figuras balançam como recortes de papelão no vento, o sino da
igreja está batendo alto e uma rajada abre as vidraças sobre a praça. As árvores
decoradas estão molhadas de chuva, os canteiros floridos, ele vê a família
abraçada junto à janela, a mulher ainda se volta para a poltrona, faz um gesto
com as mãos, insiste, insiste, ele quer dizer alguma coisa e emudece, talvez
ele chore. As lágrimas devem rolar no escuro, escorrer pelo peito, pingar no
tapete; não é exato descrever o que acontece. Pelas cortinas fechadas percebe-
se que a noite avança, ele ainda está sentado imóvel na sala do sobrado que dá
para a praça. Talvez apóie o rosto mas mãos ou cruze as pernas mas não se
nota nenhum movimento. O sino não soa, não há sinos por perto, a sombra
desliza sobre a mesa e os armários. O sobrado se destaca num halo de luz que
vem de cima e tinge as nuvens de rosa, talvez um sopro as leve logo para
88
VISITA
Este conto ou inspirou uma passagem do romance Resumo de Ana ou dele foi extraído:
ambos têm como cenário a cidade natal de Modesto Carone, Sorocaba. Embora a cidade não
esteja nominada no conto, os logradouros, prédios e instituições são evidentemente
sorocabanos: o colégio de freiras é o Santa Escolástica, que existe até hoje; a estação ferroviária
é a da Estrada de Ferro Sorocabana; o rio próximo é o Sorocaba. A avó que sobe a escadaria do
teatro é Ana Godoy de Almeida, depois Ana Baldochi, personagem do romance. Assim como
o narrador de Resumo de Ana faz com a mãe, Lazinha, levando-a para visitar pontos da cidade
com o intuito de avivar a sua memória, o narrador de “Visita” vai até esses lugares que
marcaram a sua infância e juventude. A diferença é que a visita se torna uma viagem no tempo,
estabelecendo sincronia entre a fábula e a história, entre o presente do narrador e o passado que
ele evoca e transpõe para o aqui e agora. Embora o discurso seja austero tanto no conto como
90
casaco azul de gola de pele e parece encolhida de frio a dois passos de uma
lareira acesa. Passo a mão direita pelo rosto pálido e desço os dedos até o
queixo fino. Ela agradece com um movimento muito leve e eu cubro sua mão
esquerda sobre a toalha. Lembro então que temos apenas meia hora para
embarcar. A viagem, que devia durar duas horas, chegou a quatro e resta ainda
esse intervalo de minutos para tomar o trem de volta. A verdade é que ela
havia consultado antes os mapas e se enganado completamente em relação à
cidade. Eu estava surpreso com o erro pois nada assim acontecera antes: sua
acuidade nos detalhes sempre tinha sido superior à minha em vinte e cinco
anos de convívio. Em vez de estarmos andando em Amsterdã acabávamos de
beber uma xícara de chá numa casa envidraçada que dá para a estação de trem
de Rotterdã. O ímpeto de reclamar recuou logo porque uma angústia fina,
vinda não sei de onde, cortava a pele a contrapelo. Ela tinha sofrido dores de
cabeça duas semanas inteiras e o passeio pretendia ser um alívio planejado
para os dois – assim como para alguém que se levanta da cama sem febre e
amarra os sapatos para enfrentar um dia comum. Eu havia desviado o olhar da
estação e examinado seu rosto e as mãos descobertas. Tudo imóvel como a
carga de neve cor de cinza que no centro da praça se preparava para desabar
no chão. Toquei os dedos brancos, esfreguei as palmas e ela reagiu sem o
sorriso e a vivacidade que reasseguravam seu afeto. As pupilas pareciam de
estanho, o busto crispado debaixo do casaco de lã, ela não olhava para mim
mas para um ponto do espelho ou quem sabe para parte alguma. A inquietação
era maior à medida que o relógio se movia na neblina e ela, sentada e quase
inerte, abria e fechava as pálpebras como se fossem asas pesadas. Nítido como
um facho de luz passou por mim o gesto com que o médico examinou o fundo
dos seus olhos e disse que estava tudo bem. O analgésico rendeu por três dias
mas a dor voltou: no trem notei que ela revirava a bolsa em busca de alguma
pílula. Agora eu a encarava com firmeza e agarrava seu braço para que ela se
erguesse da cadeira. Por uma fração de segundo percebi que ela me fitava
lúcida e desperta – um lapso de tempo em estado puro. Mas o brilho
desapareceu e eu senti a força com que a flor de sangue plantada no seu crânio
crescia em todas as direções. Ela não estava ali comigo, na casa de chá de
Rotterdã ou Amsterdã, mas em outro lugar, que se confundia com as nuvens
de gelo sobre a praça e o último apito de trem dentro da gare (CARONE, 2007,
p. 22-24).
Como em “Visita”, temos aqui um relato biográfico, muito distante, no tema e na forma,
dos contos dos anos 70 e 80; relativamente distante, também, de Resumo de Ana: nos contos
anteriores, o narrador não exprime os sentimentos advindos da sua experiência com o mundo,
mas o assombro de quem, por intervenção de uma força externa, é impedido de viver
plenamente e de exprimir o que sente. Nos primeiros contos, a experiência é cerebral,
intencionalmente artificializada pelo formalismo e pelas figuras de linguagem. Já em “Por trás
dos vidros”, o narrador se permite a pungência de uma situação na qual se dá conta de que
perderia a companheira em breve, de que já não seria possível resistir à doença. A situação
remete à morte da primeira mulher de Modesto Carone, a psicanalista Marilene Carone, que
faleceu na Europa em 1987, aos 45 anos, acometida de um tumor cerebral. Há a introjeção de
um quadro emotivo que pereniza o exato momento em que o narrador adquire consciência da
92
A ocorrência de fatos insólitos atravessando uma cena do cotidiano é algo que nos remete
aos contos iniciais de Carone. Mas há diferenças importantes: aqui, o insólito não incide apenas
sobre o narrador, em um ambiente privado. Ainda que o discurso continue a ter um único
enunciador, o eu, há a menção a uma outra personagem, a acompanhante, e o espaço é um
estabelecimento comercial de São Paulo, presumivelmente real. Outra diferença é a dicção. A
maior parte dos contos de As marcas do real contém discursos enclausurados e impenetráveis.
Neste “Café das flores”, a composição se constrói com traços de poeticidade, ou seja, de
ambiguidade, imprecisão, incerteza, deriva entre o real e o onírico, constituindo uma mescla
movediça, em nada parecida com as pedras brutas dos contos anteriores, que proíbem acerca de
si divagações, dubiedades, todas as formas de escape em relação às “marcas do real”. No final,
o narrador constrói um paradoxo que sintetiza o seu processo criador: a poesia que se origina
de uma narrativa violenta, “vi no céu de Pinheiros uma lua de sangue que brilhava no silêncio
eterno dos astros”, é confrontada com o mundo real, pois “as imagens poéticas não mudam o
mundo”.
94
contos que são pedras brutas do real, como “Reflexos” (de As marcas do real) e “O espantalho”
(de Dias melhores) um efeito de interditar a fruição em proveito do que a expressão verbal pode
ter de mais circunspecto, de menos amigável em relação às associações e escapes da poesia.
Mas há Resumo de Ana, este romance breve constituído por duas novelas tenuamente costuradas
uma à outra, e ali a escrita não só é permeável às interpretações do leitor como espera dele uma
ação participante: enquanto em alguns contos as situações que embrutecem são transformadas
em alegorias, negando-se plenamente ao leitor, no Resumo as forças exteriores que têm ação
devastadora sobre as duas personagens são apenas evocadas, citadas de passagem,
marginalmente. Cabe ao leitor informado e formado pelas linhas da História estabelecer os
nexos entre o flagelo de Ana e Ciro e as crises cíclicas das sociedades capitalistas centrais,
como a crise da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, ecoando na periferia: o Brasil, com seus
desastrosos planos econômicos e rupturas institucionais. Esse leitor fruirá a leitura a partir das
lacunas que a voz instaura na narração, pois, como ela se impõe não analisar e não emocionar,
encurralando a subjetividade das duas fábulas no rigor objetivo do discurso formal, a verdade
do texto se estabelece de fora para dentro: pensando-se em termos estritos da técnica narrativa,
é o efeito obtido pelo deslocamento sutil e minimalista da focalização (BAL, 2009), ora
concentrando-se no narrador, ora em Lazinha, e iluminando seres marginais, condenados ao
esquecimento, mas sem lhes dar voz própria.
O distanciamento é uma característica da narração que se constitui de uma forma nos
contos e de outra em Resumo de Ana: naqueles, o leitor é mantido a distância da experiência
real; neste, é a voz narradora que se distancia do relato que o implica indiretamente, como
membro da família, neto de Ana Baldochi, sobrinho de Ciro, filho de Lazinha. Há, no entanto,
pontos específicos da narração nos quais o narrador se afirma como implicado nas histórias de
Ana e Ciro: é o parágrafo introdutório e as remissões feitas no discurso à presença de Lazinha
como narradora primordial, instaurando a metalinguagem. Vejamos como isso já se apresenta
nas páginas iniciais de Resumo de Ana.
Tudo o que ouvi dizer de minha avó materna devo à insistência com
que abordei o assunto. Minha mãe gostava de contar casos de família depois
do jantar, sentada à mesa da copa ou numa poltrona de couro da sala, mas esse
ela muitas vezes evitava com habilidade. Dizia que ainda era menina quando
minha avó morreu, que as coisas que sabia tinha escutado entro os oito e os
doze anos de idade, que a partir daí o convívio com a mãe ficou muito
prejudicado ou então que sua memória andava fraca ultimamente. A
impressão que me dava, vendo-a passar o dedo em cima de um friso da toalha
ou de um veio saliente no braço da poltrona, era a de alguém que no primeiro
instante se recorda e no seguinte abafa compulsivamente as imagens evocadas.
Os motivos alegados podiam ser reais, mas não era verdade que sua memória
96
O primeiro parágrafo do livro coloca-nos frente a uma voz autoral, inserida na história,
fórmula frequente na literatura ocidental, principalmente em romances e contos nos quais o
narrador, um eu narrante, reivindica ao leitor a autoridade daquele que conhece a fábula e a
partir de agora se põe a narrá-la. A condição de narrador segundo, isto é, de alguém que obtém
o depoimento oral do narrador primeiro (no caso a sua mãe, Lazinha) e passa a recontá-lo, é
também parte de um procedimento clássico da literatura em prosa e do cinema. Essa forma de
narrar contém um simulacro ao qual o leitor, entretido pela continuidade da história, não
costuma se deter: a fábula não está sendo narrada em tempo real. Na verdade, o narrador
organiza, edita e seleciona partes da fábula para depois compor a história. Há uma organização,
uma reelaboração do material de origem, operação de natureza estética, que também podemos
chamar de ajuste fino. Por esse motivo é um resumo. Se quisermos ser mais precisos, é o resumo
97
de um outro resumo: o narrador compõe a história, a versão estruturada que é, enfim, aquilo
que o título da obra nomina como Resumo. Provém do relato de Lazinha, fragmentado,
impreciso, turvado pelo peso dos anos e pela dificuldade de resgatar alguns pormenores, fatos
presenciados de relance na infância, às vezes por meio de uma porta entreaberta. O relato de
Lazinha, evocado por um narrador nele implicado pela sua condição de membro da família, é
também um resumo.
A intervenção inicial do narrador sugere-nos, em princípio, uma delegação de voz a
Lazinha, o que seria um novo simulacro da representação: ela iria adquirir a condição de
enunciadora e passaria, depois, a simular os discursos das personagens. Mas essa expectativa é
frustrada logo em seguida. O narrador não só continua a ser a única voz efetiva do discurso
como o entabula em estilo indireto, em tom que poderíamos chamar de standard. O padrão é o
dos discursos que não podem, em virtude dos espaços nos quais pretendem circular, interferir
na narrativa, mantendo, assim, uma distância segura do objeto, como preconizam, por exemplo,
os manuais de escrita científica e do jornalismo clássico, e como é próprio, também, do ensaio
dedicado à análise e à crítica.
Pelo tom no qual são apresentadas, as informações sobre a família de Ana poderiam estar
em um livro de História do Brasil que se ativesse àquele momento finissecular, ou seja, à
passagem do século XIX para o XX. No entanto, há pormenores que dificilmente estariam em
um texto de História, como os que se referem à forma como Ana, ainda criança, era explorada
por Ernestina Pacheco. Trata-se de um elemento da fábula, do testemunho de Lazinha, que o
narrador manteve na história. Ernestina é uma avara, mas em nenhum momento o narrador
afirma isto de maneira explícita.
Passagens de forte intensidade dramática são sumarizadas e narradas com objetividade
no interior da história, como vemos a seguir:
[...] as informações sobre o período são vagas, mas não é exagero
admitir que, da infância ao fim da adolescência, órfã e sem apoio externo – o
irmão João ficou muito tempo com o sítio da família e numa crise de desespero
ateou fogo na plantação, queimando o dinheiro entesourado numa enxerga –,
a vida de Ana não foi amena, submetida como estava ao zelo e às
conveniências da senhora e do marido (CARONE, 1998, p. 17).
enquanto em Resumo de Ana o narrador faz breve menção a fatos da História brasileira ou
mundial que tiveram grande impacto na sociedade, expondo, ao mesmo tempo, perdas materiais
nas vidas das personagens que repercutiram de forma negativa nos seus rumos futuros. Ora,
tanto o leitor atento dos contos como do Resumo associará ao mundo exterior os desarranjos
representados nas histórias, embora a fruição dos textos não dependa desse saber qualificado.
Um dos traços que alinha Resumo de Ana à escrita ficcional modernista é a
metalinguagem: o narrador reitera seguidamente a condição de Lazinha como depoente,
memorialista. Se fosse um historiador, a partir desse relato de Lazinha o narrador faria uma
digressão sobre o Brasil na transição do século XIX para o XX, sobre a crise decorrente da
quebra da bolsa de Nova Iorque, etc. Se fosse um antropólogo, talvez fizesse uma reflexão sobre
a memória coletiva de velhos, como a que Ecléa Bosi escreveu. Mas Resumo de Ana também é
uma obra literária porque, embora o discurso predominante lembre a exposição e análise frias
dos fatos tal como delas se desincumbiria um historiador, um antropólogo ou um sociólogo,
tudo no seu “resumo” está repleto de indefinições, lacunas, suposições. A sua metalinguagem
é uma legitimação da voz que narra, expediente próprio da literatura. E o Resumo é uma obra
literária também contemporânea porque os seus dois movimentos, voltando-se sobre si mesma
e para o passado, colocam em crise não o passado, mas o presente, não a ficção, mas a vida.
Ao interromper a sequência do discurso e se reinserir na história, no aqui e agora da
narração, a voz que narra não está apenas operando uma mudança de focalização como quem
troca a marcha do seu carro. Não é uma ação de caráter estritamente técnico. Como bem
observou Bal (2009), a focalização implica os seres que atuam sobre seu tempo, seu espaço,
sobre a história e a vida social. Ora, ao sair da opacidade, da neutralidade, essa voz narradora
está assumindo que é ativa. De fato, nos momentos em que se insere como eu no discurso,
percebemos que esse narrador está construindo Ana e Ciro com os recortes que a memória faz
de ambos. Há um substrato da matéria do passado que ele legitima ao mencionar a mãe, mas é
perceptível que Ana e Ciro que emergem das memórias de Lazinha, e dão forma à fábula, não
são os mesmos da história construída pelo narrador, e não somente em virtude de eventuais
preenchimentos das lacunas da memória pela ficção: eles e seu tempo são lidos pelo olhar
crítico do narrador, pela sua posição privilegiada advinda de um saber a mais, que lhe permite
dar saliência somente ao dados particulares que, de uma forma ou outra, corroboram os dados
gerais, resultando no Resumo tal qual o lemos. Essas mudanças de focalização estão
materialmente marcadas por um espaço em branco entre um bloco e outro do texto. Ali se dá,
então, uma transição de voz: interrompe-se a linearidade do discurso e o narrador fica visível,
passando de uma condição de observador distanciado para a de narrador em 1ª pessoa, e passa
99
Em Resumo de Ana, toda vez que esse processo é desencadeado tem lugar a falácia
literária do discurso em processo, como se estivéssemos lendo a própria fábula recitada por
Lazinha e não a história composta e editada pelo narrador, como se vê a seguir: “Minha mãe
falava sem que eu a interrompesse: as perguntas ficavam pairando no ar à espera de uma
oportunidade. Ana não gostava realmente de Balila?” (CARONE, 1998, p. 29). A voz já não é
percebida como isenta: a pessoa que ela tem diante de si dando testemunho é a sua própria mãe,
e o relato diz respeito à sua avó materna, mas o tom não é intimista: continua a ser formal.
Ainda que a perspectiva tenha sido alterada, essa passagem é suave, quase imperceptível,
justamente por que o tom do discurso não se altera radicalmente junto com a mudança na
focalização. Obtém-se um efeito parecido com a coesão discursiva entre um período e outro
quando se vai abordar aspecto diferente do tema: há a antecipação gradativa daquilo que se vai
enunciar em breve. Aquela e outras perguntas que o narrador vai elencando e que dá a entender
que se destinam a Lazinha são, na verdade, respondidas por ele próprio sem a contribuição da
mãe. Percebemos que a memória de Lazinha tem lapsos, ou o seu relato possui pontos que não
têm como ser esclarecidos simplesmente porque ela não sabe tudo a respeito de Ana, e isso a
impede de responder quase todas as perguntas que o narrador elabora nesses intervalos nos
quais insere a si e a Lazinha no discurso. A maior parte das perguntas, então, tem caráter
100
retórico: são as situações nas quais o narrador mescla as informações prestadas por Lazinha
com as suas conjecturas e hipóteses. Vejamos:
Não havia outros pretendentes? Sem dúvida, porque desde a
adolescência sua figura alinhada chamava a atenção. O filho mais velho de um
comerciante árabe estabelecido na rua Barão do Rio Branco, por exemplo,
costumava cumprimentá-la com um sorriso quando ela se dirigia à casa dos
parentes de Júlio Prestes na rua Direita para entregar o café moído e a roupa
lavada e engomada. Um dia ele decidiu falar com ela, Ana respondeu e os dois
conversaram. Ainda se encontraram algumas vezes no largo de São Bento em
frente à velha igreja, a quinhentos metros da casa da patroa. O rapaz era muito
bonito – um sírio de olhos verdes. Ana porém logo se desinteressou, não se
sabe bem por quê. Certamente porque não gostava dele. E do noivo? O
empenho que ele demonstrava não a tocava nem um pouco? Mesmo que para
ela aquele casamento fosse de conveniência, é duvidoso que só contassem as
razões objetivas. Além do mais que filho ou filha pode julgar com
discernimento a vida afetiva dos pais? Diante dessas questões cortantes ou
elaboradas minha mãe emudecia, pensativa; mas o intuito não era de modo
algum silenciá-la” (CARONE, 1998, p. 29-30. Grifos nossos).
vimos que a ambiguidade tonal da narração também se faz presente nos contos de As marcas
do real, Aos pés de Matilda e Dias melhores. Atentemos, então, para o entorno da descrição
que o narrador faz das características físicas e psicológicas da jovem Ana:
Há um substrato literário e também ficcional (considerando-se que uma noção não está
colada à outra) no início desse trecho: o narrador diz, e sustenta outras vezes ao longo da
matéria, que a origem da história de Ana são as confidências a respeito da sua vida que a mãe
fez a Lazinha. Ora, quando Ana morreu, Lazinha tinha 14 anos apenas. Essas confidências
teriam sido feitas a Lazinha quando ela era tão menina que não poderia nem ter se lembrado de
todos os pormenores que a história contém nem percebido certas sutilezas do comportamento
da mãe. Em outro momento, como vimos, o próprio narrador descrê da capacidade de Lazinha
julgar a vida afetiva dos adultos a partir do que observou na infância. A questão-chave está
justamente nessa transformação da fábula em história: ela é, por si só, literária, pois amplia
sentidos, desdobra palavras, faz com que a caracterização final de Ana a torne muito diferente
da Ana original, sem que seja uma traição. O corpo da matéria narrada, todavia, mantém opaca
essa sobreposição da matriz literária ao relato original porque o discurso foi construído à
102
29
Sumário é um termo oriundo da crítica e teoria literária produzidas no universo cultural anglófono. Designa toda
situação, na narrativa, na qual há um resumo da história: narra-se com brevidade no interior do discurso longos
períodos de tempo do mundo real. Para a vertente narratológica da teoria literária, sobretudo a que se fundamenta
em Gérard Genette, o sumário pertence ao âmbito da noção de velocidade (REIS e LOPES, 1998, p. 397-398).
103
Castelo Branco. Sob nosso ponto de vista, o percurso é o oposto: os marcos históricos estão
iluminados pelo rumo das histórias de Ana e Ciro. O século XX está, de certa maneira, em
questão no livro, mas é a narrativa que lhe dá relevo. Resumo de Ana não é romance histórico,
mas, com o seu discurso que lembra o da escrita historiográfica e a explicitação do impacto das
linhas da grande História nas vidas de pessoas comuns, pode fazer com que o leitor de um livro
de História dedicado ao século XX feche-o por algum tempo e se ponha a ler Resumo de Ana.
Em outras palavras, o romance não depende da grande História, mas agrega a ela vidas, cores,
lugares, eventos, etc. Podemos exemplificar com outra obra finissecular que tem um olhar
retrospectivo sobre o século XX: o longa-metragem documental Nós que aqui estamos por vós
esperamos, de 1999, com seu frenesi de imagens de arquivos e a trilha sonora que sugere um
movimento para Tânatos. Ali, é também a criação ficcional expressa pela montagem, pela
música e pelas legendas que pontua a história, não o contrário.
Antes do casamento, trabalhando como empregada em São Paulo, Ana teve contato com
o teatro e a ópera, já que a família Ellis era abastada e a levava consigo às apresentações no
Teatro Municipal. O contraponto entre Ana, sensível e apreciadora das artes, e seu marido,
Balila Baldochi, homem rústico, de pouca instrução, totalmente devotado aos negócios, indicia
o malogro da união conjugal. Com o passar dos anos, a convivência foi se tornando tediosa e
opressiva para Ana, mas foi sobretudo depois de uma agressão física que ela ficou insuportável.
Nesse momento o narrador introduz sutilmente na obra uma referência literária importante, na
verdade uma remissão, e faz com que uma matéria que tenta não se assemelhar à literatura
104
Lazinha pode ter visto a cena e a relatado ao narrador, mas o seu arranjo no interior da
história faz jus ao que antes dissemos a respeito da composição desse romance: a história
ultrapassa a fábula, e não apenas na forma, mas também e principalmente no desenvolvimento
da trama. Depois da violência do marido, Ana se deprime cada vez mais e busca lenitivo no
álcool. No final da vida, perambula por Sorocaba em companhia dos filhos, embebedando-se.
É o álcool que acaba por debilitá-la e, juntamente com a tuberculose, levá-la à morte em 1933.
Foi um processo lento de autodestruição, mas que guarda alguma similitude com o fim trágico
de Emma Bovary. O bovarismo está na epiderme do texto, não em camada profunda. Embora
só seja percebido pelo leitor que conheça o romance de Flaubert e faça a associação entre uma
história e outra, não é determinante para a compreensão e fruição da obra, como não o é o
conhecimento dos fatos históricos evocados no Resumo.
105
Ao final da história de Ana, quando seu destino já está selado, nos damos conta de que o
casamento e a maternidade foram parte de um anseio de emancipação que ela acalentou na
juventude. Porém, face à condição submissa que a sociedade da época impunha à mulher,
aprisionando-a numa rotina doméstica e impedindo-a de ter uma vida plena, aquela aspiração
se frustrou. Ana concluiu que uma vida de renúncias, muito aquém de tudo aquilo pelo que
lutara desde que se libertou da exploração de Ernestina Pacheco, não faria mais nenhum sentido.
Mas Resumo de Ana tem outras mulheres fortes e determinadas: Lazinha é uma delas. Depois
da morte da mãe e a ida do pai ao Vale do Ribeira para trabalhar como caixeiro viajante, sua
família praticamente desapareceu e com apenas 14 anos de idade ela se viu obrigada a trabalhar
de dez a 14 horas diárias costurando sacos de café. A vida das mulheres retratadas nesses livro
repete ciclos de exploração, interdições e escolhas preestabelecidas. Na história de Ciro, Anita,
a mulher que o acompanha até a morte, é quem impede a ruína total da família diante das
adversidades financeiras, ocupando-se da casa e trabalhando fora.
Anita foi a companheira de Ciro até o fim da vida. Sua atitude de mulher
disposta e encarar a pobreza sem desespero, traço herdado pelas seis filhas do
casal, aplainou o caminho da vida em comum. Ela era pouco mais que uma
adolescente quando ele a encontrou e o recorte do corpo esguio acentuava o
brilho da pele e o desenho sensível do modo de andar. A mãe a transformara
em arrimo de família e antes dos catorze anos Anita trabalhava como
camareira, recebendo meio salário por ser menor de idade. Apesar das
tentativas de estudar à noite não tinha conseguido chegar à Escola Normal, o
que a impediu de ser professora; a compensação foi cursar uma escola de corte
e costura mantida pelo município. Foi dessa maneira que aprendeu a coser e
bordar com desenvoltura, talento que nos anos 70 facilitou sua vida de
operária nas fábricas de roupa da cidade (CARONE, 1998, p. 88-89).
As seis filhas do casal são descritas como “saudáveis, claras e castanhas”, e o narrador
acresce que elas, “como a avó materna conheceram muito cedo a rude rotina do trabalho
compulsório” (CARONE, 1998, p .101).
A história de Ana, nomeada homonimamente em relação ao livro, está na primeira parte,
ocupa pouco menos da metade (50 páginas) e está disposta de forma simétrica em dez blocos
de texto, separados uns dos outros por um espaço de dois centímetros. Cobre toda a vida de
Ana, desde seu nascimento, em 1887, até a morte, em 1933, aos 46 anos de idade. Corresponde,
também, a um período muito difícil da vida brasileira: os dois anos finais do Segundo Reinado,
a abolição da escravatura, o início da República, as muitas crises institucionais da chamada
República Velha, culminando com a Revolução de 1930 e a ascensão de Getúlio Vargas ao
poder. A quebra da bolsa de Nova Iorque atingiu em cheio as vendas brasileiras de café,
principal produto de exportação do País. O governo de Vargas já começa com o colapso
106
Há uma passagem que narra um episódio de ruína financeira que precede o auge da crise
econômica do País e a falência de Balila. Citamo-la para que se compreenda como a literatura
toma para si os dramas humanos deixados de fora da grande História e qual o tratamento que
lhe é dado pelo narrador do Resumo. Quando Ana deixou o trabalho como governanta na casa
dos Ellis, em São Paulo, o Sr. Ellis, inglês de nascimento, empregado de alto escalão da Light,
havia sido preso, acusado de dar um desfalque na empresa. A família ficou arruinada e com a
crise a situação se agravou. Vários anos depois, já casada, Ana recebeu notícias de Judith, a
antiga patroa, e foi a São Paulo visitá-la. Ana viajou em companhia da filha mais velha, Lazinha.
O narrador conta de forma lacônica, em poucas e rudes palavras, como foi o reencontro da ex-
empregada com a ex-patroa:
Assim que chegaram a São Paulo, cujas ruas Ana, passados quinze
anos, quase não reconhecia, foram ambas ao endereço dado por Ernestina: era
na avenida São João. Talvez fosse possível imaginar as dificuldades que Judith
vinha enfrentando desde a prisão de Ellis; o que Ana não podia prever era o
choque de encontrá-la um dia morando num porão – Judith estava
completamente só e para se sustentar trabalhava como costureira num circo
de arrabalde (CARONE, 1998, p. 40).
Descritos de forma breve no interior da matéria narrada, os dramas desses seres sem voz
própria, mantidos a distância, reconstituídos a partir de um relato oral e de impressões
fragmentadas, sensibilizam o leitor pela percepção de uma ausência intuída: sente-se falta de
uma empatia qualquer do narrador pelas partes da matéria que narra. Mas Resumo de Ana está
entre as obras do espírito moderno que sensibilizam por aquilo que silenciam.
Para que a transição de uma parte a outra do livro se fizesse suavemente, a história de
Ciro começa com uma analepse30, um flash-back. Recua-se até o ano de 1925, com o
nascimento do próprio Ciro, segundo filho do casal Ana e Balila, que chegou para fazer
companhia a Lazinha, a única dos cinco filhos anteriores que havia sobrevivido. É como se se
tivesse feito uma emenda na história anterior e introduzido essa parte. Consegue-se, assim,
30
Movimento temporal retrospectivo. O termo faz parte da nomenclatura adotada por Genette (1995) (REIS e
LOPES, 1998, p. 29).
107
evitar uma entrada brusca, pois as duas histórias eram independentes e foram escritas em
momentos distintos. Consegue-se muito mais do que isso: ao longo de oito páginas dedicadas
à infância de Ciro, chega-se ao ponto em que a primeira história terminou, isto é, na morte de
Ana, efeito coesivo necessário e indispensável para que a obra se tornasse um romance breve e
não a justaposição das duas novelas originais. Resumo de Ana resulta de uma montagem, como
vimos, não somente de uma edição.
Ciro tinha apenas oito anos quando sua mãe morreu. Era, então, bem pequeno quando
Ana, já no ponto crítico do seu vício em álcool, levava-o consigo, bem como a Lazinha, para
bairros longínquos de Sorocaba, fazendo-os entrar nos bares e comprar a bebida da qual tanta
necessitava para aplacar os seus fantasmas interiores.
A voz narradora é nuclear em Resumo de Ana: é uma autoria que se apresenta como não
autorizada, que obedece a certos escrúpulos de não faltar com verdade. Carone não acredita na
mimese clássica. Isso fica evidenciado no seu depoimento à Biblioteca Mário de Andrade: o
que ele não podia dizer a respeito de Ciro por não saber só pôde ser preenchido pela ficção, mas
construída de forma a respeitar a verdade da personagem.
Essa fala do escritor revela que alguns elementos da composição foram importantes para
evitar o “erro formal grave” de se intrometer na vida da pessoa (a personagem Ciro): o
distanciamento, a prevalência da diegese sobre a mimese, a objetividade.
Tal como acontece na primeira parte do livro, a segunda, intitulada “Ciro”, percorre toda
a vida da personagem, do nascimento à morte, em 1990. Há algumas diferenças entre uma
história e outra. A primeira e mais significativa é que “Resumo de Ana” se sustenta
autonomamente, enquanto “Ciro” não. Para que o volume Resumo de Ana produza efeito de
sentido como romance, a segunda parte tem de depender da primeira. O fato é que “Ciro”
depende, mais do que das informações contidas na primeira história, da consciência, pelo leitor,
de que existe uma vida trágica precedente, pois a desagregação da família e a vida acidentada
a que Ciro foi submetido na infância e na adolescência explicam em parte a sua pusilanimidade,
algo que ele tentava ocultar se entregando por inteiro ao trabalho árduo ou se escorando nas
mulheres com as quais se relacionou, principalmente Anita.
Outra diferença é que, em “Ciro”, como acontece em vários dos contos de Carone, o plano
da fábula e o plano da história parecem justapostos e concomitantes. Na primeira parte, sabemos
todo o tempo que há um relato oral de Lazinha, e a voz que narra modula o discurso para que
não tenha marcas nem de oralidade nem de subjetividade. A autoria do relato matricial é
frequentemente atribuída a Lazinha pela via da instauração do foco narrativo em 1ª pessoa31 e
de um processo de escrita autorreferencial. Na primeira parte, ainda, as incursões do narrador
pelos logradouros de Sorocaba são feitas em companhia de Lazinha, para ajudá-la a se lembrar
das partes esquecidas da história de Ana. Já em “Ciro”, a memória é do próprio narrador, mas
se conecta à primeira parte da história. Se agregarmos a descrição da estação ferroviária de
Sorocaba, já citada, que deu origem ao conto “Visita”, damo-nos conta de que os logradouros
fazem parte da memória afetiva do escritor relativamente à sua cidade natal. Resumo de Ana é
um percurso sentimental, ainda que o narrador se mantenha à distância do que narra. Mas, na
segunda parte, o distanciamento diminui, porque quase não há a intermediação de Lazinha e
porque o memorialista já é o próprio narrador. Vejamos:
31
A terminologia de Genette (1995) é mais precisa para caracterizar essa situação narrativa: a alternância da
focalização em Resumo de Ana faz com que se passe por algum tempo de um narrador heterodiegético, ou seja, o
que narra a história sem fazer parte dela, para um narrador homodiegético, o que toma parte na história como
personagem mas não é protagonista dela (REIS e LOPES, 1998, p. 259-267).
109
Foi ali que vi Ciro pela primeira vez depois de muitos anos. As notícias
que eu tinha dele chegavam através de Lazinha e de alguns parentes próximos,
daí o espanto de percebê-lo a poucos metros de mim segurando pela alça um
garrafão de vidro que faiscava ao sol. Ele havia me reconhecido antes que eu
me desse conta da sua presença e veio ao meu encontro com um sorriso que
deixava à mostra os dentes já amarelos de nicotina. Vestia jeans e camiseta,
os olhos redondos continuavam sem malícia sob as pálpebras cheias de rugas
e as mechas de prata dominavam o cabelo farto. Era evidente que estava
satisfeito por me encontrar e foi para esticar a conversa que me convidou para
um café e um copo de leite da esquina da Ubaldino com a rua Brigadeiro
Tobias. Enquanto caminhávamos lado a lado ele cedeu a calçada sem que eu
reparasse e seguiu pela pista de paralelepípedos que naquela tarde parecia uma
placa de granito. Embora eu não perguntasse nada, disse que as filhas estavam
bem e que a mais velha ia estudar medicina e a do meio balé. Os negócios
estavam melhorando, tinha acabado de arrematar uma Brasília para as
entregas e pretendia construir uma casa no terreno comprado fazia algum
tempo no Alto do Cerrado. O que não disse, certamente porque o constrangia,
é que a família dependia mais do trabalho de Anita e das filhas do que das
vendas de aguardente nos bares da cidade. Como quer que fosse parecia feliz,
e a não ser a pressão alta, que o deixava sem fôlego para trabalhar num dia
como aquele, o resto estava em ordem e a vida corria pelo trilho certo. Fez
questão de pagar o café e o copo de leite que havia tomado no balcão e para
se despedir disse com uma solenidade esquiva que tinha de passar pelos
clientes de Árvore Grande. Já na esquina da rua Quinze de Novembro voltei
110
o olhar para a descida que se precipita da praça do canhão para a ponte sobre
o rio e pude enxergá-lo de longe com a alça do garrafão verde na mão direita.
Como se tivesse adivinhado que eu o observava, virou-se para mim naquele
instante e fez um aceno com a mão esquerda, mas não demorei em dar-lhe as
costas para subir a ladeira no sentido contrário (CARONE, 1998, p. 102-103).
O narrador conclui a história estando presente ao sepultamento de seu tio Ciro, e com o
que seria o avesso de um final grandiloquente ou revestido de significação profunda, uma
anedota amarga, representativa do que foi Ciro na sua existência mais ou menos breve: um
homem comum, assolado por circunstâncias adversas que ele próprio jamais compreendeu,
mas, ao mesmo tempo, invulgar na memória familiar pela candura, pela persistência, pelo seu
sentido humano, afinal.
Resumo de Ana tem laços de afinidade com um ensaio publicado em 1994 por Francisco
Foot Hardman, à época também professor da Unicamp, como Carone, fazendo parte de um
amplo dossiê que a Revista USP dedicou ao tema da Nova História. O editorial observa que
aquele número incluía textos “sobre” e “de” Nova História. O ensaio de Hardman, incluído na
segunda categoria, exercita a leitura da correspondência trocada entre o escritor Euclides da
Cunha e seu filho “Quidinho”, destacando os sentimentos ali presentes, incorporando esses
discursos repletos de afetividade ao seu próprio, e assim construindo uma forma de ler as cartas
e os postais que se enreda a todo momento com as vozes e os gestos congelados no tempo de
pai e filho. A voz narradora, no entanto, faz com que os sentimentos extraídos dos textos
permaneçam em uma zona intermediária, fronteiriça entre o seu próprio discurso e as vozes do
passado.
Restou muito pouco da memória dessas tragédias complementares:
universais, por um lado, tipicamente nacionais, por outro, reveladoras da
dialética perversa entre violência e afeto nos fundamentos societários da
família brasileira, profundamente enraizada entre nós, assunto de já tanta
história e literatura. A Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional conserva,
a propósito, fragmento de apenas uma folha do texto atribuído a Euclides
Filho, com sinais visíveis de que terá sido queimado todo o restante, isto é,
sua quase totalidade.
Na mitologia euclidiana, muito se falou sobre o cérebro do genial
criador de Os Sertões, guardado em formol no Museu Histórico Nacional para
futuros estudos e averiguações, e transportado, com pompa solene e mórbida,
bem conforme ao messianismo brasileiro, em setembro de 1983, para seu
município natal, Cantagalo, convertida a casa em que nascera num pequeno
museu.
112
O ensaio remete de forma velada a obras literárias, a outros ensaios e à mitologia grega,
como em Resumo de Ana o bovarismo é reverenciado a certo momento, parecendo que, ao fazê-
lo, evoca-se e homenageia-se a grande tradição do romance realista do século XIX.
113
Tal qual ocorre em Resumo de Ana, o leitor é informado a respeito do desenlace das
trajetórias de vida daquelas pessoas, mas não por meio do relato de uma personagem, e sim pela
História, tão presente também em vários momentos no romance de Carone. Euclides pai foi
morto a tiros pelo amante de sua mulher no episódio que ficou conhecido como tragédia da
Piedade. O filho delegado de Polícia foi morto em ação no Acre em 1916 quase sete anos depois
do assassinato de Euclides. É atribuída a ele, na agonia final da morte, a frase “Ai, meu pai”,
que Hardman incorporou ao ensaio, vinculando-a à cadeia afetiva entre pai e filho.
Completando a tríade da fatalidade, Quidinho foi morto naquele mesmo ano pelo assassino do
pai.
A matéria do ensaio desliza para a prosa literária, com reiterações, digressões e metáforas.
Consente a si mesma uma evasão ficcional, ao supor a visita de pai e filho à Exposição Nacional
de 1908, no Rio, sem que haja uma prova de que esse encontro ocorreu de fato:
É o percurso inverso de Resumo de Ana, que tem o ensaio como paradigma de estilo, mas
ambos os textos se encontram no hiato formal gerado pela inespecificidade. Ao mesmo tempo,
e paradoxalmente, o ensaio incorpora elementos próprios do artigo acadêmico: muitas e
extensas notas, analitismo, formalidade.
O vínculo desse ensaio com a Nova História está na incorporação de uma micronarrativa
extraída de uma narrativa maior: a biografia do Euclides autor de Os sertões, que no entanto
não se materializa no ensaio. O Euclides ali presente é o pai de Quidinho. Seus atos e gestos
são comuns a outros pais, mas a sombra do grande escritor lá está, desgarrada da película da
grande História.
A apropriação do teor da correspondência para estabelecer as caligrafias do afeto equivale
à “pesquisa de campo” feita pelo narrador de Resumo de Ana, colhendo o depoimento de
Lazinha. As mãos de direção do ensaio de Hardman e do romance de Carone estão de fato
114
invertidas pelas vozes que os narram: a do ensaio quer ser voz literária, ao passo que a do
Resumo conduz a matéria com mão e dicção de ensaísta.
A micro-história é o fator que une as duas narrativas enquanto processos e produtos finais.
Bethencourt e Curto (1991, p. VIII), ao discorrerem sobre a natureza das pesquisas
desenvolvidas pelo historiador Carlo Ginzburg, afirmam que a maioria dos seus trabalhos é
atravessada pela linha condutora da “valorização dos fenómenos aparentemente marginais,
como os ritos de fertilidade, ou dos casos obscuros, protagonizados pelos pequenos e pelos
excluídos, cuja verdadeira dimensão cultural e social acaba por ser demonstrada”
(BETHENCOURT e CURTO, 1991, p. viii).
[...] não há dúvida de que o autor introduziu uma nova maneira de fazer
a História que deu os seus frutos nas décadas de 70 e 80: uma abordagem que
privilegia os fenómenos marginais, as zonas de clivagem, as estruturas
arcaicas, os conflitos entre configurações socioculturais – uma abordagem que
procede a partir da microanálise de casos bem delimitados mas cujo estudo
intensivo revela problemas de ordem mais geral, que põem em causa ideias
feitas sobre determinadas épocas (nomeadamente a impossibilidade de
descrença no século XVI postulada por Lucien Febvre) (BETHENCOURT e
CURTO, 1991, p. X).
Em outro lugar, Ginzburg (2007) comenta um ensaio publicado em 1869 pelo crítico
Saint-René Taillandier, logo depois da publicação do romance A educação sentimental, de
115
Flaubert. Nesse ensaio/resenha, Taillandier afirma que a obra parece conter a ideia de que os
fatos históricos de um quarto de século são explicados pelo comportamento da personagem
central (GINZBURG, 2007, p. 243). Ginzburg elenca, ainda, os pontos que Taillandier realçou
na sua leitura de A educação sentimental:
estranheza do autor em relação à obra; procedimentos narrativos que são fins
em si mesmos; impassibilidade; história em que se entrelaçam acontecimentos
públicos e assuntos privados sem importância, irrelevância global; desencanto
do mundo (GINZBURG, 2007, p. 244).
Seria mais apropriado dizer que é um programa tão literário quanto científico, sem que
um sobrepuje o outro. Esse entrelaçamento dos acontecimentos históricos, macro-história, com
a vida ordinária das personagens, micro-história, é o substrato que compõe as matérias do ensaio
de Hardman e, de certa forma, também de Resumo de Ana. É uma prova da mobilidade do
literário, do seu deslizamento para as formas de expressão não literárias, da sua expansão de
campo, da sua inespecificidade. Mas também é a prova de que há uma sedução pelo estilo, pela
exuberância rebelde das letras, rondando outros campos das ciências humanas, como a história,
a antropologia e a sociologia.
O ensaio de Hardman é o ponto culminante daquilo que, amalgamando a liberdade do
espírito criador e a contenção do esforço analítico, pode-se chamar de literatura. Resumo de
Ana, por outro lado, não é um ensaio: não se destina a “transmitir informações e ideias”, nem
se pretende “uma breve explicação escrita de um assunto bem delimitado” (BARRASS, 1986,
p. 51). Também não contém aquele traço marcante dos ensaios de Montaigne, que é uma tomada
de posição relativamente a um fato ou problema tendo como norte suas próprias convicções.
Assim como o ensaio de Hardman não deixa de ser ensaio porque executa uma performance
literária, também Resumo de Ana não deixa de ser romance, ou literatura, porque o seu discurso
desliza para a forma do ensaio. As questões que daí surgem são: por que o escritor optou por
tratar dessa forma um relato que faz parte da sua memória familiar? Por que a insistência no
discurso indireto e por que uma única voz narradora com tal distanciamento daquilo que narra?
Acreditamos que a preocupação que revela com a verdade da personagem, em não traí-la,
conforme se lê no depoimento à Biblioteca Mário de Andrade, já aludido (CARONE, 2007b),
responde em parte a essas questões: não faltar com a verdade, não trair é não simular uma voz,
116
não lhe atribuir um discurso. Isso implica um posicionamento ético, estético, filosófico e
político, além de ser uma particularidade do estilo.
Resumo de Ana parece ilustrar com exemplos vivos, em plano fechado, o que o discurso
historiográfico, ou sociológico, ou antropológico, só consegue fazer em plano geral. E o que a
matéria narrada do Resumo embota, mas o leitor que lê o País percebe, é que este resumo resume
o Brasil, a incongruência da sua modernidade, o sofrimento e a ruína de gerações sem lenitivo
e esperanças, a “pequena multidão de moças e rapazes cujos rostos a escuridão ocultava”
(CARONE, 1998, p. 50). As histórias agônicas de Ana e Ciro ultrapassam as duas narrativas
particulares e iluminam a grande História do século XX, com a sua industrialização frenética,
a urbanização, os deslocamentos urbanos, as massas deserdadas – promessas de prosperidade e
felicidade que só se cumpriram para poucos. Mais de uma vez no livro o narrador se refere ao
trabalho compulsório a que tiveram de se submeter Ana, seus filhos e depois as filhas de Ciro.
O adjetivo compulsório é unívoco, preciso, muito mais do que, por exemplo, obrigatório. Por
isso está na justa medida de um artigo ou ensaio de sociologia, não da ficção literária. É evidente
que o fato de estar em Resumo de Ana não obedece ao acaso nem tampouco a uma injunção
poética: presta-se ao diagnóstico e à análise de um aspecto da realidade social brasileira, levados
a cabo em um discurso que mescla a gratuidade da literatura à intencionalidade do ensaio. Esse
aspecto é a permanência das relações escravistas de trabalho no Brasil, algo que autores como
Caio Prado Jr. abordaram em suas análises da conjuntura social e econômica do País. Vê-se,
inclusive, que a exploração do trabalho infantil tem longa sobrevida na sociedade brasileira,
escamoteada pela situação precária do “agregado”. A figura avara de Ernestina parece extraída
de uma página dos romances de Dickens e Victor Hugo, ou dos contos de Chekhov.
Um traço distintivo importante do Resumo é que introduz no presente um real in absentia,
algo não visível no “real que está por aí”, do qual fazem parte as muitas vozes silenciadas pelo
discurso da História. Há, ali, toda a economia do fabrico artístico modernista: mesclando
linguagens, deslizando para fora de si, falando de si.
exprimir livremente. Embora a maioria dos contos exprima a voz de um eu aderido ao seu
presente e na superfície, testemunha a dor geracional e a incredulidade frente ao Estado
devotado à violência.
Os contos dos três primeiros livros, sobretudo, são o que se costuma designar de
“difíceis”: há enredos, enunciados e expressões herméticos, que resistem à interpretação,
criando uma barreira entre o leitor e os textos. Mais do que isso: a leitura do conjunto dessa
produção nos faz perceber que a barreira não deve ser ultrapassada, que os contos precisam ser
lidos na opacidade da neblina densa, para que nós consigamos captar parte da atmosfera na qual
foram concebidos. Por esse motivo não concordamos com leituras dos contos como as que
fizeram Arêas (1997) e Galvão Filho (2004), embora respeitemos o rigor que as norteou. É que
esses autores, em virtude do rumo dado à sua argumentação, tiveram de colar significações às
alegorias e sentidos às passagens herméticas, o que (sob nosso ponto de vista, sublinhamos)
acaba se constituindo em uma crítica que dirige e limita excessivamente o olhar do leitor.
Na sua recepção ao livro As marcas do real, Antonio Candido destacou o risco de
incomunicabilidade que ali se punha. A percepção desse risco, a nosso ver, advém do fato de
ser uma primeira recepção crítica. Não há incomunicabilidade porque a criação literária acaba,
de uma forma ou outra, e por mais dificuldades que haja no percurso, comunicando. Os contos
de Carone não correm o risco de cair no abismo da incompreensão porque tudo neles é muito
medido, preciso, ainda que no seu limite extremo. Todavia, um teorema matemático e um
problema filosófico podem ser construídos de forma precisa e ainda assim serem de difícil
intelecção. O equilíbrio complexo da criação de Carone – vislumbrando-a no seu conjunto, isto
é, considerando também Resumo de Ana – não é o da comunicabilidade/ incomunicabilidade, é
o da especificidade/ inespecificidade, é o da pertença a um campo específico ou a vários campos
diferentes (GARRAMUÑO, 2014, p. 17), é o da autonomia/ pós-autonomia (CANCLINI, 2012,
p. 24), o da ficção literária/ veracidade. Leiamos Antonio Candido:
As idéias que vêm ao espírito lendo estes textos de Modesto Carone são
a de corda esticada e a de fio da navalha. O equilibrista andando com
tranquilidade, embora cautelosamente, na superfície arisca que quase não
existe, que pode fazê-lo cair a cada instante para um lado ou outro do abismo.
O abismo no caso é o insignificante, isto é, o que não forma sentido nenhum,
dissolvendo-se na assemia do nada [...]. Os textos parecem a cada instante
empurrar a percepção para um objeto ou um fato concreto do mundo e da
alma, mas a cada instante eles se dissolvem, para ficar apenas a estrutura
arbitrária das palavras. Então o leitor se prepara a fim de receber o impacto
dessa combinação quase abstrata, mas logo lhe parece que o mundo se propõe
de novo com uma densa realidade. Flutuando entre as duas tensões, empurrado
para a palavra em si e puxado para a imagem do mundo, ele vai percebendo
como se forma uma espécie de realidade nova, - a realidade poética, na qual
118
a palavra visa a si mesma e no entanto cria o mundo. Esses textos são fortes,
porque são instituidores (CANDIDO, 1979. Grifo nosso.)32.
Modesto Carone parece chegar aqui a uma espécie de fusão das suas
capacidades. Poeta conciso e penetrante, que custa a divulgar os seus poemas,
ele convive desde sempre com os modos peculiares da elaboração poética.
Crítico imaginoso e preciso, tem publicado estudos excelentes, nos quais o
poeta vai ao encontro do estudioso com uma naturalidade feliz (CANDIDO,
1979).
Observe-se que Antonio Candido foi, em certa medida, contemporâneo de Carone, além
de seu colega na crítica literária e na docência acadêmica. A complexidade em torno do escritor
Modesto Carone é que o criador literário se funde ao crítico, ao ensaísta, ao tradutor e as
qualidades e características de cada uma das atuações se mesclam de tal maneira que há algo
do crítico, do ensaísta e do tradutor no contista e no romancista.
Vilma Arêas, que foi colega de Carone quando lecionou na Unicamp, produziu um
ensaio (1997) no qual analisa os três primeiros livros de contos e “Resumo de Ana”, ainda a
novela, publicada em 1989 na revista Novos Estudos Cebrap, nove anos antes do romance
homônimo. Extraindo uma frase do conto “Aos pés de Matilda” (“atrás da porta um sopro torpe
desmascara os objetos mais familiares”), Arêas afirma que “essas palavras revelam [...] a
intencionalidade do autor – abalar com violência os fundamentos e o conforto dos lugares
amenos ou dos lugares-comuns da figuração literária [...]” (ARÊAS, 1997, p. 120).
32
Trata-se do texto que o crítico assina nas orelhas do volume.
119
Não nos parece apropriado afirmar que tenha havido a intenção de abalar os
fundamentos da representação literária, mas sim demonstrar que a expressão literária é possível
sem os recursos, as técnicas, os meios de expressão e os invólucros consagrados como literários.
A autora questiona, e o faz acertadamente, se há uma continuidade do que ela chama de
um projeto narrativo dos três primeiros livros de contos para a novela “Resumo de Ana”, mesmo
com diferenças tão significativas entre eles:
Para Arêas há, de fato, esse elo entre os contos e a novela. Ela o identifica por exemplo,
no conto “As marcas do real”, que, com a sua “dicção clara e segura” (ARÊAS, 1997, p. 128),
seria passagem para a novela posterior, por também ser biografia e relato verdadeiro. Isso é
discutível, pois a “dicção clara e segura” está presente em muitos outros contos, inclusive
naqueles que não possuem a conformação discursiva própria de uma tese acadêmica, caso de
“As marcas do real”. O conto “Choro de campanha”, que a autora analisa, é narrado com
sobriedade e clareza, mas o seu enredo ostenta marcas de ficcionalidade, e aparentemente não
se trata nem de biografia, nem de relato verídico.
Permaneçamos na sua leitura de “Choro de campanha”:
[...] quem quer que leia com atenção “Choro de campanha”, num conjunto de
textos extremamente violentos em relação às circunstâncias nacionais nos
anos 70 (As marcas do real), percebe que tem diante dos olhos uma verdadeira
paideia do militar fascista entre nós, sua formação a partir dos primeiros anos,
suas pretensões políticas, sua doença em estreita relação com a crise do
processo histórico, dedilhada em todos os diapasões no resto do livro. Aí estão
a velhinha de cem anos, antiga professora do grupo escolar que torturava os
alunos com réguas e palmatórias, e a educação da caserna, que alimenta
sonhos de poder e conecta erotismo com abjeção: em visita compulsiva à casa
de detenção o personagem tem uma ereção inevitável com os ruídos
possivelmente de tortura que vinham do fundo sujo dos corredores (ARÊAS,
1997, p. 122, grifos originais.).
Um traço marcante das análises feitas pela autora é a atribuição de sentidos, algo que,
como já dissemos, tem a desvantagem de eleger um sentido em detrimento de outros. Arêas
também fala na “sentimentalização que envolve todas as cenas” desse conto (ARÊAS, 1997, p.
120
127), uma vez que o candidato chora ao reencontrar a antiga professora e ao adentrar no
presídio. Esse choro, no entanto, está repleto de ironia: é postiço e até esquizofrênico. Tem-se
aí um antissentimentalismo.
Um estudo dos contos de Carone posterior a esse ensaio de Arêas também defende a tese
da subjetividade. A análise que Galvão Filho (2004) faz da trilogia de contos de Modesto
Carone recorre às teorias psicanalíticas em busca do sentido dos textos além da camada
superficial do discurso, mas o centro da sua discussão é a representação do real, o que ele
identifica como tensão entre a subjetividade contida no discurso do narrador e a objetividade
do real. Haveria, assim, uma ambiguidade nos contos: ao mesmo tempo em que o enunciador
fica preso ao mundo objetivo representado no seu discurso, há a manifestação de uma
subjetividade latente.
O eu não é enunciado como ele; é, sim, esvaziado da natureza ativa que lhe seria inerente
como pessoa verbal. Ver a si mesmo representado como outro, investir contra a sua imagem no
espelho como se lhe revelasse um ser estranho, ver-se fora de si, tudo isso aparece com
frequência nos contos da trilogia de Carone, todos temporalmente muito próximos, situados,
em termos de edição em livro, entre 1979 e 1984. Esse eu que vê a si mesmo a partir do espelho
da cena é muito próprio da arte moderna: não está na literatura de Kafka, mas em alguns contos
e dramas de Pirandello e no cinema de Ingmar Bergman, por exemplo. É a forma de o século
XX dizer que o homem é “uno, nessuno e centomila”. O conto “O jogo das partes”, aliás, a
exemplo de muitos outros de Carone e do romance Resumo de Ana, traz uma referência sutil a
outra obra literária, marco da modernidade no teatro: a já mencionada peça Seis personagens à
procura de um autor (1921) é certamente aludida na cena final do conto, na qual uma das
personagens é baleada no palco e um médico é chamado para socorrê-la, saindo do meio da
plateia. No texto pirandelliano, como no conto de Carone, as pessoas da plateia “talvez
confundissem o que estava acontecendo com o enredo da peça” (CARONE, 1979, p. 107).
Resumo de Ana foi construído com fragmentos da memória pessoal e familiar do escritor,
mas o que expõe não é o sentimento de um indivíduo e sim um olhar crítico e inclusivo sobre
o século XX. Retomemos a leitura de Vilma Arêas (1997).
introdução das personagens populares no romance realista do século XIX, já não mais visando
ao escárnio (2010), propõe a metáfora da partilha do sensível para representar em termos
políticos o direito à arte nas sociedades democráticas (2009) e, finalmente, exalta uma literatura
feita pelas margens, com “a vida das pessoas comuns investida do dom de transfigurar, de
transpor seus limites” (2018b), que ele encontra nas Primeiras estórias de João Guimarães
Rosa.
Arêas aprofunda a discussão sobre o deslocamento da prosa de Carone para além do
literário em “Resumo de Ana”: “Desaparecem nesse momento”, diz ela, “as imagens
intensamente coloridas; a aparente retração dos recursos artísticos parece fazer a prosa de
Carone passar rente ao não-literário, avançando até seus próprios limites (ARÊAS, 1997, p.
129. Grifo original.).
O poeta e crítico José Paulo Paes, recepcionando o livro Resumo de Ana no ano do seu
lançamento, toca na problemática do gênero pelas margens, ao dizer que o livro substitui a
metáfora pela objetividade e que a escrita “se coloca decididamente sob o signo do impessoal
e do objetivo” (PAES, 1998, p. 9).
Waldman (1998), também resenhando o Resumo, põe em questão a sua ficcionalidade.
Uma obra inclassificável, como também o são vários dos contos de Carone, porque
deslizam entre formas, gêneros e temas, sem no entanto fundear em nenhum deles. Ainda assim,
não se pode negar, neles, a presença pálida daquelas mesmas formas, gêneros e temas. Assim,
sem outra opção aceitável, chamamos a essas obras contos e romance.
A exemplo do que fizeram outros autores posteriormente, como Paes (1998) e Dionísio
(2006), Arêas também identifica diferentes vozes em “Resumo de Ana”.
123
[...] nessa história que se transmite de boca em boca – de mão em mão, como
num jogo de anel – a voz principal não soa. [...] A voz de Ana não soa
verdadeiramente; é transmitida e retransmitida, eco ou vestígio, semelhante à
imobilidade da mulher um dia viva na fotografia minúscula, sorridente e de
mãos apoiadas na cintura fina (ARÊAS, 1997, p. 136-137. Destaque da
autora.).
Dionísio (2006) sustenta que, em Resumo de Ana – aqui já se referindo a livro e às suas
duas partes,
Azevedo sustenta, ainda, que essa discussão “procura problematizar o lugar comum das
análises literárias e desrecalcar a secundarização das formas não ficcionais no regime de
funcionamento da própria ficção” (AZEVEDO, 2017).
CONSIDERAÇÕES
Muitas obras de arte recentes, quer sejam literárias ou não, caracterizam-se pela
mobilidade entre formas de expressão, traços de gêneros e temas, sendo indefiníveis e, por
conseguinte, inespecíficas. Encontramos vários exemplos no cinema, nas artes plásticas, na
videoarte e, é claro, também na literatura. Há, inclusive, obras que originalmente se destinam
ao registro jornalístico e biográfico e incursionam pela ficção. Podemos dizer que esse
deslizamento é uma característica comum de várias obras da literatura contemporânea,
destacando-se em meio a outras. Não é, todavia, algo que se possa considerar recente: advém
das experimentações do século XX, na vigência das vanguardas artísticas e na sua posteridade.
Quando elaboramos o projeto de pesquisa que resultou nesta tese, vislumbramos a
vinculação da obra ficcional de Modesto Carone a uma certa tendência das artes e da literatura
contemporâneas de serem inespecíficas e desprovidas de autonomia, nos termos do debate
proposto por Néstor Canclini (2002) e Florencia Garramuño (2014), autores que vêm
construindo uma reflexão que denominamos nesta tese de “crítica da diáspora”. No caso
específico do nome de maior expressão dentre esses autores, o filósofo Jacques Rancière, poder-
se-ia vislumbrar, nas suas indagações, até mesmo os indícios de uma diáspora da crítica. Demo-
nos conta, ao longo da nossa pesquisa, de que essas características mais gerais da literatura e da
arte contemporâneas, embora identificáveis no corpo da ficção de Carone, correspondem, no
caso deste escritor, às singularidades da sua dicção, do seu estilo, decorrendo da sua formação
ampla como leitor e crítico. O observador sempre arguto que foi Antonio Candido captou logo
de início essa vocação do Carone escritor a uma pertença múltipla. O trecho já foi citado, mas
o trazemos novamente para dar relevo ao fato:
Modesto Carone parece chegar [...] a uma espécie de fusão das suas
capacidades. Poeta conciso e penetrante, que custa a divulgar os seus poemas,
ele convive desde sempre com os modos peculiares da elaboração poética.
Crítico imaginoso e preciso, tem publicado estudos excelentes, nos quais o
poeta vai ao encontro do estudioso com uma naturalidade feliz (CANDIDO,
1979).
narrador surge como aquele que tenta exprimir uma angústia entranhada no presente,
inalcançável pelo discurso, que acerca dela só pode oferecer uma percepção enevoada. O leitor
atento poderá depreender dali uma dor vivida não no âmbito individual, mas em uma
perspectiva geracional, dos que tiveram seus ideais, desejos, expectativas turvados pela
violência institucionalizada, pelo moralismo e pela censura disseminados no tecido social. Esse
processo narrativo impõe duro teste à literatura, que é o de se fazer abdicando da poesia, da
ambiguidade, das formas de evasão do real que, familiares ao universo do literário, tornam
possível o enternecimento face, por exemplo, às mais devastadoras cenas de guerras, catástrofes
ou instintos homicidas. Às voltas com recursos discursivos mais apropriados ao mundo da
análise crítica e da reflexão, a literatura cria, em Carone, um efeito ambíguo que é o mais de si
em menos de si, o excesso de presença na ausência. Trata-se, ali, de uma literatura que, mais do
que se negar como poesia e sentido, impõe que a experiência com a sua matéria seja construída
a cada passo, que o ato de ler extraia das palavras rudes o que elas tentam a todo custo embotar.
Para não atravessar aqueles textos tomado pelo espanto e pela inação, o leitor precisa se
conectar mentalmente a eles, se adequar ao seu imediatismo congelado no tempo e no espaço.
Se entendidos como gritos, como partes de uma necessidade urgente de narrar e traduzir
experiências dolorosas, contos como “Ponto de vista” e “Janela aberta” poderiam se
circunscrever aos limites de uma escrita catártica. Mas os ecos dessa forma de narrar se
manifestam na representação do outro em Resumo de Ana. Ali, o que aproximaria o narrador
da matéria, o que criaria um apelo subjetivo, na verdade o distancia: os vínculos parentais, o
fato de atuar como editor, organizador, montador sobre a matriz fabular, as memórias de sua
própria mãe. Tanto naqueles contos mais difíceis de As marcas do real, Aos pés de Matilda e
Dias melhores, como também em Resumo de Ana, não há um dizer do narrador que seja
exclusivamente seu, nem do outro. É um mundo ambíguo, que mescla a experiência particular
e a coletiva. No caso da representação do outro, em especial, a ficção de Carone se identifica
com a modernidade na literatura, pois revela o quão impossível é, na perspectiva de uma
verdade da arte, representar esse outro como parte de um simulacro de autonomia, já que ele é
insondável, inalcançável e intraduzível.
A leitura dos três primeiros livros de ficção de Carone põe-nos frente a uma radicalidade
do plano da expressão que, no entanto, não pode ser encerrada no âmbito da matéria narrada,
por possuir estreita vinculação com o desempenho de múltiplos papéis pelo escritor, com a sua
atuação como crítico literário, ensaísta, tradutor e professor. Vincula-se ainda, e fortemente,
com o contexto político e social no qual aqueles contos foram produzidos, justificando a
atmosfera opressiva e autorrepressiva que circunda a voz narradora. Resumo de Ana não tem a
127
início da Guerra Fria. Seria ingênuo supor que essa construção linguística consiste em um
presente do passado, para causar no destinatário a sensação de estar no palco dos
acontecimentos. Os verbos no pretérito perfeito não impediriam esse efeito, pelo contrário: até
o intensificariam, pois é sempre desafiador e excitante buscar nos fatos tidos como resolvidos
e assentados na História algo que passou despercebido, uma lacuna, uma incoerência ou erro
de interpretação. Esse presente gramatical paira sobre a noção de tempo efetivo. Quando o
discurso diz que o período tem início, o sentido mais profundo é de que tudo está inserido em
um processo, de que o passado não está resolvido, e de que os acontecimentos históricos não
são do passado ou do presente, mas se inter-relacionam uns com os outros. Não são, portanto,
estanques e autônomos. É um efeito que guarda alguma semelhança com o encontrável nos
evangelistas do Novo Testamento, sobretudo quando aludem às palavras do Cristo: emprega-
se muito o futuro simples, que, todavia, não remete a um futuro determinado. A profecia que
ali está também é acrônica. O tempo no qual ela poderá vir a se concretizar está condicionado
ao encontro perfeito entre os rumos que a humanidade adotará para a sua civilização e tudo o
que lhe foi predito pelos profetas, ou seja, entre a História e a mística judaico-cristã.
Acerca ainda das personagens de Resumo de Ana, é importante se atentar para o fato de
que, embora estejam representadas e focalizadas no interior de uma matéria narrada cuja forma
se aproxima da de um ensaio historiográfico, Ana e Ciro não são personagens históricas. Ambas
resultam de fragmentos de memória, repletos de lacunas. Não são, portanto, autônomas, nem
tampouco autossuficientes. Há, aí, uma fratura que não é própria do fazer historiográfico ou do
gênero ensaio, mas da escrita literária. Ao serem deslocados do seu tempo, e também não
pertencendo ao presente, nem ao futuro, Ana e Ciro se inserem em um protocolo peculiar da
escrita historiográfica de representar um tempo fora do tempo. Mas, em Resumo de Ana, esse
protocolo já não está funcionando como estilo da História, e sim como metáfora literária da
condição humana. Ana e Ciro passam a e ecoar, assim, os infortúnios de milhões de indivíduos
cujos ideais e expectativas são frustrados por uma sociedade desigual. Poder-se-ia falar, em
outros termos, em utopia versus distopia, oposição sobejamente conhecida da arte modernista
e tão presente no mundo contemporâneo. As vidas de ambos são o breve adendo que a literatura
faz constar no relato da grande História, normalmente pouco atenta aos pormenores e às
existências anônimas. Lembramos que foi a mesma literatura que pôs as personagens populares
no centro da cena, no romance realista do século XIX: como não lembrar dos romances de
Dickens e Balzac, da galeria de homens e mulheres comuns de Os miseráveis, da Félicité de
Um coração singelo, só para citar algumas obras?
129
O problema central da nossa pesquisa suscita outras questões, como: há algo muito
próprio do literário que constitua a literatura como tal? Há, assim, uma literariedade ou uma
poeticidade do texto? A crítica da diáspora, sobretudo Rancière, afirma que não, e antes dele,
outros, como Todorov (2018), já o disseram. Para Rancière, a literatura pode ser feita com o
improvável aquém ou além da escrita, da mesma forma como ensinar algo a outrem pode
prescindir do conhecimento especializado do objeto. Mas, à parte as questões linguageiras, há,
sim, a presença sutil de um olhar, certa forma de traduzir o mundo, as ideias e os sentimentos
que são literários e poéticos em alguns momentos e em outros não. Há, sim, a percepção da
ausência de algo que seja literário ou poético em um objeto no qual ambos eram esperados ou
desejados. Há a mescla desses elementos sutis com as coisas do mundo verídico, austero,
analítico, crítico, científico, etc. Como fruidores da arte literária, já sabemos de longa data que,
quaisquer que sejam os meios que mobiliza para consegui-lo, ela busca sempre validar a dor
que não sentimos vivida por seres ficcionais, distantes e ausentes; promover a partilha da
experiência humana, seja ela negativa ou positiva, vertendo-a de particular em universal;
perenizar no tempo e no espaço das obras as sensações efêmeras, como um afago materno, um
aroma, um sabor e um lugar que desapareceram para sempre da face tangível deste mundo.
Não há, mesmo, como responder cabalmente às duas questões anteriores. Temos, como
leitores, a percepção de que a criação literária está fazendo experiências consistentes com
formas e temas que nunca foram exatamente os seus. Tem demonstrado, assim, uma vocação
expansiva. Incorpora, inclusive, iconografias e elementos de outras linguagens artísticas e de
outras semióticas, como no passado já assimilou a montagem ressignificada pelo teatro e pelo
cinema. Percebem-se essas transformações no ar e nas páginas, um novo Zeitgeist talvez, mas
não há, ainda, no conjunto da produção literária atual, um volume de obras que o comprove
naquele nível que a crítica literária exige para admitir esse movimento como tendência e não
mais como casos isolados.
Não gostaríamos de finalizar sem antes fazer menção a um sentimento especial que
sempre habitou nossa relação com a obra ficcional de Modesto Carone. Fomos, como leitores,
tocados pela força incomum que tem essa obra de dizer acerca de um tempo aquilo que a
História não diz – não porque não queira, ou não possa, mas porque não é próprio dela se deter
nos pormenores, nas margens, nas minúsculas falhas das vidas comuns. É difícil depreender de
muitos dos seus contos o grito denunciador da condição inumana que a ditadura civil-militar
impôs à sociedade brasileira, mas, quando conseguimos, nos damos conta de que aqueles textos
130
Poucas vezes o Brasil do século XX terá sido revelado de forma tão próxima da
experiência dos que o vivenciaram como nas páginas de Resumo de Ana. E, curiosamente, e
também compreensivelmente, para revelar as entranhas desse tempo foi preciso uma voz
distanciada que emudecesse as demais, de maneira que, no silêncio, o que escapou ao registro
da História fosse captado pela sensibilidade do leitor.
É instigante pensar que a ficção de Carone, na busca para comunicar o seu sentido, não
acertou o passo nem com a literatura nem com a História ou outro campo do saber, mas criou
o seu próprio movimento. Algo original, sem dúvida, na justa medida do intelectual e do artista
multifacetado que o concebeu.
***
131
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
ADORNO, T. W. O ensaio como forma. In: ______. Notas de literatura I. Tradução Jorge
de Almeida. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2012. (Coleção Espírito crítico). p. 15-
45.
ARÊAS, V. A idéia e a forma: a ficção de Modesto Carone. Novos Estudos Cebrap, n. 49, p.
119-139, nov. 1997. Disponível em: http://novosestudos.uol.com.br/produto/edicao-49/
Acesso em: 9 jun. 2015.
ARISTÓTELES. Poética. Tradução Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966. (Biblioteca
dos séculos).
AUSTER, P. Claro enigma. [Entrevista cedida a Maurício Meireles]. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 11 maio 2019. Ilustrada, p. C1.
BAL, M. Conceptos viajeros en las humanidades: una guía de viaje. Tradução Yaiza
Hernández Velásquez. Murcia, Espanha: CENDEAC, 2009. (Coleção Ad Litteram)
132
BAPTISTA NETO, I. Não ficção é realidade? Folha de S. Paulo, São Paulo, n. 33.072, 20
out. 2019. Ilustríssima, Perspectivas da literatura, p. 2.
BORGES, J.L. Ficções. Tradução Carlos Nejar. São Paulo: Abril Cultural, 1972. (Os imortais
da literatura universal, 50)
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Tradução Ivo
Barroso. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
CANDIDO, A. A nova narrativa. In: ______. A educação pela noite. 5. ed. Rio de Janeiro:
Ouro sobre Azul, 2006. p. 241-260.
133
______. Recensão crítica ao livro, sem título. In: CARONE, M. As marcas do real. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979. (Coleção Literatura e teoria literária, v. 34). Orelhas do volume.
______. As marcas do real. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. (Coleção Literatura e teoria
literária, v. 34).
______. Metáfora e montagem: estudo sobre a poesia de Georg Trakl. São Paulo:
Perspectiva, 1974. (Coleção Debates, 102).
______. Por trás dos vidros. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
______. Resumo de Ana. Novos Estudos Cebrap, n. 25, p. 215-232, out. 1989. Disponível
em: http://novosestudos.uol.com.br/produto/edicao-25/ Acesso em: 9. jun. 2015.
______. Sempre vai haver curiosidade intelectual neste mundo, o dia que não houver, eu
me retiro. [entrevista transcrita]. Entrevistadora: Daisy Perelmutter. 12 jul. 2007b. Disponível
em:
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/Depoimento_Modesto_Carone_1254953118.p
df. Acesso em: 16 maio 2018.
COLONNA, B. Dizionario etimológico della língua italiana: l’origine delle nostre parole.
Roma: Newton & Compton, 2004.
134
DELAS, D.; FILLIOLET, J. Lingüística e poética. Tradução Carlos Felipe Moisés. São
Paulo: Cultrix: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975.
HARDMAN, F. F. Pai, filho: caligrafias do afeto. Revista USP, n. 23, p. 92-101, 30 nov.
1994. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/27000. Acesso em: 29
fev. 2016.
KAFKA, F. A ponte. In: TCHEKHOV, A. et al. Para gostar de ler: contos universais.
Tradução (do conto) Betty M. Kunz. São Paulo: Ática, 1998. (v. 11). p. 82.
136
MAGALHÃES JÚNIOR, R. A arte do conto: sua história, seus gêneros, sua técnica, seus
mestres. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1972.
MELO NETO, J. C. de. Rios sem discurso. In: ______. Poesia completa. Rio de Janeiro:
Academia Brasileira de Letras, 2014. p. 461. (Biblioteca da Academia).
MONTAIGNE, M. de. Ensaios. Tradução Sérgio Milliet. São Paulo: Ed. 34, 2016.
PAES, J. P. Retratos do anonimato. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 ago. 1998. Mais!
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs02089807.htm. Acesso em: 22 ago.
2016.
PIGLIA, R. Teses sobre o conto; Novas teses sobre o conto. In: ______. Formas breves.
Tradução José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 87-
114.
PLATÃO. A república (ou Sobre a justiça, diálogo político). Tradução Ana Lia Amaral de
Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
137
______ A partilha do sensível: estética e política. Tradução Mônica Costa Netto. 2. ed. São
Paulo: EXO experimental; Ed. 34, 2009.
______. O desmedido momento. Serrote, São Paulo, n. 28, p. 76-97, mar. 2018b.
______. O efeito de realidade e a política da ficção. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.
86, p. 75-90, mar. 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/nec/n86/n86a04.pdf. Acesso
em: 9 jun. 2015.
______. Políticas da escrita. Tradução Raquel Ramalhete et al. 2. ed São Paulo: Ed. 34,
2017. (Coleção Trans).
REZENDE, M. V. Vida de cão. [Depoimento a Walter Porto]. Folha de S. Paulo, São Paulo,
5 maio 2019. Ilustríssima, p. 2.
SCHREYER, L. Educação das energias artísticas. Der Sturm, Berlim, out. 1923. Tradução
Zé Pedro Antunes.
SOUZA, E. M. de. Saberes narrativos. Scripta, Belo Horizonte, v. 7, n. 14, p. 55-56, 1. Sem.
2004. Disponível em: periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/12542/9846.
Acesso em: 20 out. 2017.
STAROBINSKI, J. É possível definir o ensaio? In: ______. PIRES, P. R. (org.) Doze ensaios
sobre o ensaio: antologia serrote. Tradução André Telles, Alexandre Barbosa de Souza et al.
São Paulo: IMS, 2018. p. 12-26.
SZONDI, P. Teoria do drama moderno (1880-1950). Tradução Luiz Sérgio Rêpa. São
Paulo: Cosac & Naify, 2001.
TACCA, O. Las voces de la novela. 3. ed. Madrid: Gredos, 2000. (Biblioteca románica
hispánica. II. Estudios y ensayos, 194).
TARKOVSKI, A. Les temps scellé. Paris: Cahiers du cinema, 1989. (Coleção Cinéma
Atelier). p. 58.
______. Os gêneros do discurso. Tradução Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Ed. Unesp, 2018.
VARELA, D. Estação Carandiru. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
WALDMAN, B. A superfície limpa da forma. Folha de S. Paulo, São Paulo, 10 out. 1998.
Jornal de resenhas. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/resenha/rs10109804.htm.
Acesso em: 22 ago. 2016.
Capa do romance Resumo de Ana. Reproduz uma foto em P&B, tom sépia, nomeada
“Equilibrista alemão”, e tomada em 1953, em Sorocaba, por João Carone, pai do escritor.
141
142
Capa de Résumé d’Ana (Éditions Chandeigne, 2005), tradução francesa, feita por Michel
Riaudel, autor de um ensaio que trata de três romances brasileiros recentes, dentro os quais
Resumo de Ana. Foto: São Paulo, anos 20.
143
144