Novecentos - Um Monólogo - Alessandro Baricco
Novecentos - Um Monólogo - Alessandro Baricco
Novecentos - Um Monólogo - Alessandro Baricco
(O ator sai de cena. Começa uma música dixie, muito alegre e bem idiota. O
ator torna a entrar em cena, vestido elegantemente de jazzman do navio a
vapor. Daí em diante, comporta-se como se a banda estivesse, fisicamente,
em cena)
Não creio que haja necessidade de lhes explicar como seja este navio, em
muitos sentidos, um navio extraordinário e definitivamente único. Sob o
comando do capitão Smith, conhecido claustrófobo e homem de grande
sabedoria (certamente notaram que ele vive num dos escaleres de salvação),
trabalha para vocês um staff praticamente único de profissionais
absolutamente fora do normal: Paul Siezinskj, timoneiro, ex-sacerdote
polonês, sensitivo, pranoterapeuta, infelizmente cego... Bill Joung, telegrafista,
grande jogador de xadrez, canhoto, gago... o médico de bordo, doutor
Klausermanspitzwegensdorfentag, se tiverem urgência de chamá-lo estão
fritos..., mas, especialmente:
Monsieur Pardin,
o chef,
diretamente proveniente de Paris, para onde entretanto voltou de repente,
depois de ter verificado pessoalmente o fato curioso de não haver cozinha
neste navio, como argutamente notou, entre outros, Monsieur Camembert,
cabine 12, que hoje se queixou de ter encontrado o lavabo cheio de maionese,
coisa estranha, porque habitualmente nos lavabos mantemos os frios, isso
devido à inexistência das cozinhas, ao que se atribui entre outras coisas a
ausência neste navio de um verdadeiro cozinheiro, o qual certamente era
Monsieur Pardin, que voltou de repente a Paris, de onde era diretamente
proveniente, na ilusão de encontrar aqui cozinhas que, entretanto, para
permanecer fiéis aos fatos, não existem e isto graças ao espirituoso
esquecimento do projetista deste navio, o insigne engenheiro Camilleri,
anoréxico de fama mundial, para quem peço o seu caloroso aplausooooo...
(Banda em primeiro plano)
Era, mesmo, o maior. Nós tocávamos música, ele era algo de diferente. Ele
tocava... Não existia aquela coisa, antes que ele a tocasse, okay?, não existia
em parte alguma. E quando ele se levantava do piano, não existia mais... e não
existia mais para sempre... Danny Boodmann T. D. Novecentos. A última vez
que o vi, estava sentado sobre uma bomba. É sério. Estava sentado sobre uma
carga de dinamite grande assim. Uma longa história... Ele dizia: “Você não
está verdadeiramente frito enquanto tiver de reserva uma boa história e alguém
para quem contá-la.” Ele tinha uma... boa história. Ele era a sua boa história.
Pensando bem, meio doida, mas bonita... E naquele dia, sentado sobre toda
aquela dinamite, presenteou-me com ela. Porque eu era o seu maior amigo,
eu... E afinal fiz bobagens, e se me virarem de cabeça para baixo, não sai mais
nada dos meus bolsos, até a trompa eu vendi, tudo, mas... aquela história,
não... aquela eu não perdi, está aqui ainda, límpida e inexplicável como só a
música era, quando, no meio do oceano, era tocada pelo piano mágico de
Danny Boodmann T. D. Lemon Novecentos.
Danny Boodmann ainda foi marinheiro por oito anos, dois meses e onze dias.
Depois, durante uma borrasca, em pleno oceano, levou com uma roldana
enlouquecida no meio da espinha dorsal. Demorou três dias para morrer.
Estava quebrado por dentro, não havia meios de remontá-lo. Novecentos era
um menino, então. Sentou-se ao lado da cama de Danny e dali não se moveu
mais. Tinha uma pilha de jornais velhos e por três dias, fazendo um esforço
bestial, leu para o velho Danny, que estava morrendo, todos os resultados de
corridas que encontrou. Mantinha as letras juntas, como Danny lhe ensinara,
com o dedo apertando o papel do jornal e os olhos sem se desviarem um
instante. Lia lentamente, mas lia. Assim, o velho Danny morreu na sexta
corrida de Chicago, vencida por Água Potável, com dois corpos sobre
Minestrone e cinco sobre Fondotinta Blu. O fato é que não conseguiu deixar
de rir daqueles nomes e, rindo, estourou. Enrolaram-no num telão e o
restituíram ao oceano. No telão, com uma tinta vermelha, o capitão escreveu:
Thanks Danny.
Assim, de repente Novecentos ficou órfão pela segunda vez. Tinha oito
anos e já tinha ido para a frente e para trás, da Europa à América, umas
cinquenta vezes. O oceano era a sua casa. E quanto à terra — bem, nunca tinha
posto os pés nela. Tinha-a visto dos portos, lógico. Mas descido, nunca. O fato
é que Danny tinha medo que o levassem embora, com alguma história de
documentos, de vistos e coisas desse tipo. Assim, Novecentos permanecia a
bordo, sempre, e depois a qualquer momento partia novamente. Para ser exato,
Novecentos sequer existia para o mundo: não havia cidade, paróquia, hospital,
cadeia, equipe de beisebol que tivesse escrito em qualquer lugar o seu nome.
Não tinha pátria, não tinha data de nascimento, não tinha família. Tinha oito
anos: mas oficialmente nunca havia nascido.
“Essa história não poderá continuar por muito tempo”, diziam de vez em
quando a Danny. “Além de tudo, também é contra a lei.” Mas Danny tinha uma
resposta, e não fazia uma ruga: “No cu, a lei”, dizia. Não que se pudesse
discutir grande coisa, com aquela tirada.
Quando chegaram a Southampton, no fim da viagem em que Danny morreu,
o capitão decidiu que era hora de terminar com aquele espetáculo. Chamou as
autoridades portuárias e mandou que seu substituto fosse pegar Novecentos.
Bem, não o encontrou mais. Procuraram-no por todo o navio, durante dois
dias. Nada. Tinha desaparecido. Ninguém engolia aquela história, porque
afinal, ali no Virginian estavam habituados àquele menininho e ninguém
ousava dizê-lo, mas... não é preciso muito para se atirar da amurada e...
depois, o mar faz o que quer, e... Assim, tinham a morte no coração quando,
vinte e dois dias depois, partiram para o Rio de janeiro, sem que Novecentos
tivesse voltado ou que se tivesse sabido alguma coisa dele. Serpentinas,
sirenes e fogos de artifício, na partida, como em todas as vezes, mas era
diferente, aquela vez, estavam quase perdendo Novecentos, e era para sempre,
alguma coisa lhes esmaecia o sorriso, a todos, e os corroía por dentro.
Na segunda noite de viagem, quando já não se viam nem as luzes da costa
irlandesa, Barry, o contramestre, entrou como louco na cabine do comandante,
acordando-o e dizendo que devia a todo custo vir ver. O comandante
blasfemou, mas foi.
Salão de baile da primeira classe.
Luzes apagadas.
Gente de pijama, de pé, à entrada. Passageiros fora das cabines.
E depois marinheiros, e três inteiramente negros saídos da casa de
máquinas, e também Truman, o telegrafista.
Todos em silêncio, olhando.
Novecentos.
Estava sentado na banqueta do piano, com as pernas penduradas, que
sequer tocavam o chão.
E,
por Deus,
estava tocando.
(Começa em áudio uma música para piano, bem simples, lenta, sedutora)
Tocava não sei que diabo de música, mas pequena e... linda. Não havia
truque, era ele mesmo que tocava, as suas mãos, com aquele toque, Deus sabe
como. E era preciso sentir o que ele transmitia. Havia uma senhora, de roupão
rosa e estranhos grampos nos cabelos, cheia de dinheiro... para explicar
melhor: a mulher americana de um agente de seguros... bem, tinha lágrimas
assim que lhe desciam pelo creme da noite, olhava e chorava, não parava
mais. Quando deu com o comandante ao seu lado, fervendo pela surpresa, ele,
literalmente fervendo, quando o viu ao seu lado, levantou o nariz, a ricaça,
digo, levantou o nariz e, indicando o piano, disse-lhe:
— Como se chama?
— Novecentos.
— Não a canção, o garoto.
— Novecentos.
— Igual à canção?
Era aquele gênero de conversa que um comandante de navio não pode
sustentar por mais do que um instante. Principalmente quando acaba de
descobrir que um menino que acreditava morto não só estava vivo como, nesse
meio tempo, tinha aprendido a tocar piano. Deixou a ricaça plantada ali onde
estava, com as suas lágrimas e tudo o mais, e atravessou o salão com passos
firmes: calças de pijama e paletó da farda desabotoado. Só parou quando
chegou ao piano. Quis dizer muitas coisas, naquele momento, entre outras
“onde diabos aprendeste isso?” ou ainda “onde diabos estavas escondido?”
Mas, como tantos homens habituados a viver fardados, tinha acabado de
pensar, também, na sua farda. Assim, o que disse foi:
— Novecentos, tudo isso é absolutamente contra o regulamento.
Novecentos parou de tocar. Era um garotinho de poucas palavras e de
grande capacidade de aprendizado. Olhou o comandante com doçura e disse:
— No cu, o regulamento.
(Começa uma música para solo de piano. É uma espécie de dança, valsa,
suave e doce. O marchingegno começou a balançar e a levar o ator girando
pela cena. À medida que o ator vai seguindo com a história, o movimento se
faz mais amplo, até tocar os bastidores)
Ora, ninguém é obrigado a acreditar, e eu, para ser preciso, não acreditaria
nunca, se me contassem, mas a verdade dos fatos é que o piano começou a
deslizar sobre o assoalho do salão de baile, e nós atrás dele, com Novecentos,
que tocava e não tirava os olhos das teclas, parecia em outro lugar, e o piano
acompanhava as ondas ia e voltava, e rodava sobre si mesmo, apontava direto
para a vidraça e quando chegava a um fio de cabelo dela parava e desligava
docemente para trás, digo, parecia que o mar o embalava, e nos embalava, e
eu não entendia porcaria nenhuma, e Novecentos tocava, não parava um
instante, e estava claro, não tocava simplesmente, ele o guiava, aquele piano,
entende? com as teclas, com as notas, não sei, ele o guiava para onde queria,
era absurdo mas era assim. E enquanto volteávamos entre as mesas, roçando
luminárias e poltronas, entendi, naquele momento, o que estávamos fazendo,
aquilo que, na verdade, estávamos fazendo; era dançar com o oceano, nós e
ele, bailarinos loucos, e perfeitos, premidos por uma valsa agitada, sobre o
dourado parquet das notas. Oh, yes!
— Oh, Cristo...
e sai por uma coxia lateral, batendo contra alguma coisa. Ouve-se um
grande estrondo, como se tivesse acabado de destruir uma vidraça, a mesa
de um bar, um salão, alguma coisa. Um grande cassino. Um instante de
pausa e de silêncio. Então, pela mesma coxia de que saiu, o ator volta,
novamente)
Por quê?
Foi no verão, no verão de 1931, que Jelly Roll Morton subiu ao Virginian.
Todo de branco, até o chapéu. E um diamante assim, no dedo.
Ele era um que quando dava os concertos escrevia nos manifestos: “Esta
noite Jelly Morton, o inventor do jazz.” Não escrevia assim só para dizer:
estava mesmo convencido disso: o inventor do jazz. Tocava piano. Sempre
sentado a três quartos e com duas mãos que eram borboletas. Ligeiríssimas.
Começara nos bordéis, em Nova Orleans, e aprendera ali a tocar as teclas e
acariciar as notas: faziam amor, no andar de cima, e não queriam tumulto.
Queriam uma música que escorregasse para trás das cortinas e para baixo das
camas, sem perturbar. Ele fazia aquela música ali. E naquilo, verdadeiramente,
era o melhor.
Alguém, em algum lugar, um dia, falou-lhe de Novecentos. Devem ter-lhe
dito qualquer coisa do tipo: aquele é maior. O maior pianista do mundo. Pode
parecer absurdo, mas é uma coisa que podia acontecer. Nunca tinha tocado
uma só nota fora do Virginian, Novecentos, no entanto, era um personagem
célebre, do seu modo, naqueles tempos, uma pequena lenda. Aqueles que
desciam do navio falavam sobre uma música estranha e um pianista que
parecia ter quatro mãos, tantas notas fazia. Corriam histórias curiosas, também
verdadeiras, às vezes, como aquela do senador americano Wilson que tinha
feito toda a viagem na terceira classe, porque era ali que Novecentos tocava,
quando não tocava as notas normais, mas as suas, que não eram normais.
Havia um piano, lá embaixo, e ele ia lá à tarde, ou tarde da noite. Primeiro
escutava: queria que as pessoas lhe cantassem as canções que sabiam, de vez
em quando alguém aparecia com um violão, ou uma sanfona, alguma coisa, e
começava a tocar, músicas que vinham quem sabe de onde... Novecentos
escutava. Depois, começava a roçar as teclas, enquanto eles tocavam ou
cantavam, alisava as teclas e pouco a pouco aquilo ia virando um soar
verdadeiro e, realmente, saíam do piano — vertical, preto — e eram sons do
outro mundo. Havia tudo, dentro: todas de uma vez, todas as músicas da Terra.
Era de se ficar pasmo. E pasmo, o senador Wilson, ficou escutando aquela
coisa e, à parte aquela história da terceira classe, ele, todo elegante, no meio
daquele fedor, porque era fedor mesmo, de verdade, à parte aquela história,
tiveram que fazê-lo descer do navio à força, na chegada, porque se dependesse
dele, estaria lá em cima, ouvindo o Novecentos por todo o resto dos fedidos
anos que ainda lhe restavam para viver. Verdade. Escreveram nos jornais, mas
era verdade, sério. Tinha sido assim mesmo.
Em suma, alguém foi a Jelly Morton e lhe disse: naquele navio tem um cara
que faz o que quer com o piano. E quando tem vontade, toca jazz, mas quando
não tem vontade toca alguma coisa que é como dez jazz juntos. Jelly Roll
Morton tinha um caráter duvidoso, todos sabiam disso. Disse: “Como pode
tocar bem alguém que não tem colhões nem para descer de um estúpido
navio?” E danou-se a rir como doido, ele, o inventor do jazz. Podia terminar
ali, só que alguém, àquela altura, disse: “Faz bem em rir, porque basta que
aquele se decida a descer que você volta a tocar nos bordéis, como Deus
existe, nos bordéis.” Jelly Roll parou de rir, sacou do bolso uma pequena
pistola com o cabo de madrepérola, apontou para a cabeça do fulano que tinha
falado e não disparou, mas disse: “Onde está essa porra de navio?”
O que ele tinha em mente era um duelo. Usava-se, então. Desafiavam-se
com golpes de demonstração de habilidade e no fim um vencia. Coisa de
músicos. Nada de sangue, mas uma boa porção de ódio, ódio verdadeiro, sob
a pele. Notas e álcool. Também podia durar a noite inteira. Era aquilo que
Jelly Roll tinha em mente, para acabar com essa história de pianista no oceano
e toda aquela balela. Para acabar com aquilo. O problema era que
Novecentos, para falar a verdade, nunca tocava nos portos, não queria tocar.
Já eram meio terra, os portos, e ele não ia. Ele tocava onde queria. E onde ele
queria era no meio do mar, quando a terra são apenas luzes distantes, ou uma
recordação, ou uma esperança. E assim foi feito. Jelly Roll Morton blasfemou
mil vezes, depois pagou do seu bolso a passagem de ida e volta para a Europa
e subiu ao Virginian, ele que nunca tinha posto o pé num navio que não
andasse de baixo para cima no Mississípi. “É a coisa mais idiota que já fiz na
minha vida”, disse, com algumas blasfêmias no meio, aos jornalistas que
vieram saudá-lo, no píer 14 do porto de Boston. Depois, fechou-se na cabine e
esperou que a terra se tornasse luzes distantes, e lembrança, e esperança.
Novecentos, ele, não é que se interessasse muito pela coisa. Nem estava
entendendo muito bem. Um duelo? E para quê? Mas estava curioso. Queria
sentir como diabos tocava o inventor do jazz. Não o dizia por brincadeira,
acreditava mesmo: que fosse realmente o inventor do jazz. Creio que tinha em
mente aprender alguma coisa. Alguma coisa nova. Era feito assim, ele. Meio
como o velho Danny: não tinha o sentimento da disputa, não o excitava nada
saber que vencia. Era o resto que o admirava. Todo o resto.
Às 21:37 h do segundo dia de navegação, com o Virginian andando a vinte
nós na rota para a Europa, Jelly Roll Morton se apresentou no salão de baile
da primeira classe, elegantíssimo, de preto. Todos sabiam muito bem o que
fazer. Os dançarinos pararam, nós, da banda, pousamos os instrumentos, o
barman serviu um uísque, as pessoas se amontoaram. Jelly Roll tomou o
uísque, aproximou-se do piano e olhou Novecentos nos olhos. Não disse nada,
mas o que se ouviu no ar foi “levanta daí”.
Novecentos levantou-se.
— O senhor é aquele que inventou o jazz, certo?
— Isso. E você é aquele que só toca se tem o oceano embaixo do cu,
certo?
— Isso.
Estavam apresentados. Jelly Roll acendeu um cigarro, equilibrou-o na
beirada do piano, sentou-se e começou a tocar. Ragtime. Mas parecia uma
coisa nunca ouvida antes. Não tocava, deslizava. Era como uma roupa de
baixo de seda que escorregava pelo corpo de uma mulher, e o fazia dançando.
Todos os bordéis da América estavam naquela música, mas aqueles bordéis de
luxo, aqueles onde até a recepcionista da chapelaria é bonita. Jelly Roll
terminou bordando umas notas invisíveis, altas, altas, lá no fim do teclado,
como uma pequena cascata de pérolas sobre um piso de mármore. O cigarro
estava sempre lá, na beirada do piano: meio consumido, mas a cinza ainda
estava toda ali. Você diria que ela não queria cair para não fazer barulho. Jelly
Roll pegou o cigarro entre os dedos, tinha mãos que eram borboletas, eu disse,
pegou o cigarro e a cinza continuava lá, não queria saber de cair, talvez fosse
até um truque, não sei, o certo é que não caía. Levantou-se, o inventor do jazz,
aproximou-se de Novecentos, chegou-lhe o cigarro perto do nariz, ele e toda a
sua bela cinza arrumada, e disse:
— Sua vez, marinheiro.
Novecentos sorriu. Estava se divertindo. Sério. Sentou-se ao piano e fez a
coisa mais estúpida que podia fazer. Tocou Torna indietro paparino, uma
canção de uma idiotice infinita, uma coisa para crianças, ouviu-a de um
emigrante, anos atrás, desde então não lhe saiu mais da cabeça, agradava-lhe,
na verdade, não sei o que é que ele achava nela, mas lhe agradava, achava-a
comovente, coisa de louco. Lógico, não era aquilo que se poderia chamar de
uma demonstração de habilidade. Querendo, até eu saberia tocá-la. Ele tocou-
a brincando um pouco com os baixos, aumentando alguma coisa, juntando dois
ou três dos seus adejos, mas em suma era uma idiotice e uma idiotice ficou.
Jelly Roll tinha a cara de alguém de quem tinham roubado o presente de Natal.
Fulminou Novecentos com dois olhos de lobo e voltou a sentar ao piano.
Soltou um blues que tinha feito chorar até um maquinista alemão, parecia que
todo o algodão de todos os negros do mundo estivesse ali e ele o recolhesse,
com aquelas notas. Uma coisa de deixar a alma ali. Todo mundo ficou em pé:
levantavam o nariz e aplaudiam. Jelly Roll não fez o mais leve aceno de
reverência, nada; parecia que já estava ficando de saco cheio daquela história
toda.
Era a vez de Novecentos, novamente. Já começou mal, porque sentou-se ao
piano com duas lágrimas assim nos olhos, por causa do blues, estava
comovido e isso se pode até entender. O verdadeiro absurdo foi que: com toda
a música que tinha na cabeça e nas mãos, o que lhe dá na telha de tocar? O
blues que tinha acabado de ouvir. “Era tão bonito”, me disse depois, no dia
seguinte, para se justificar, imagine. Não tinha mesmo a menor ideia do que
fosse um duelo, não tinha a menor ideia. Tocou aquele blues. A maior parte, na
sua cabeça tinha-se transformado em uma série de acordes, lentíssimos, um
depois do outro, em procissão, uma chatice mortífera. Ele tocava tudo
enroscado sobre o teclado, gozava cada um daqueles acordes, estranhos, coisa
dissonante, ele gozava, mesmo. Os outros, menos. Quando terminou
começaram até alguns assobios.
Foi nesse ponto que Jelly Roll Morton perdeu definitivamente a paciência.
Mais do que ir ao piano, saltou-lhe em cima. Dele para ele mesmo, mas de
modo a que todos entendessem muito bem, sibilou poucas palavras, muito
claras.
— E então, vai tomar no cu, seu colhão.
Aí desandou a tocar. Mas tocar não é bem a palavra. Um prestidigitador.
Um acrobata. Tudo aquilo que se pode fazer com um teclado de 88 teclas, ele
fez. A uma velocidade assustadora. Sem errar uma nota, sem mover um
músculo do rosto. Nem era música: eram gestos de prestidigitação, era magia
bonita e boa.
— Era uma maravilha, nem santo! Uma maravilha.
As pessoas enlouqueceram. Gritavam e aplaudiam, eu nunca tinha visto
uma coisa assim. Era um cassino que parecia réveillon. Naquela loucura,
encontrei-me diante de Novecentos: tinha a cara mais desiludida do mundo. E
também um pouco estúpida. Olhou-me e disse:
— Mas esse é completamente bobo...
Não lhe respondi. Não tinha nada para responder. Ele se inclinou para mim
e disse:
— Me dá um cigarro, vai...
Eu estava tão pasmo que dei. Quero dizer, Novecentos não fumava. Nunca
tinha fumado, antes. Pegou o cigarro, deu meia-volta e foi sentar-se ao piano.
Deu uma olhada pela sala, dando a entender que estava sentado ali e que
talvez quisesse tocar. Escaparam ainda algumas batidas fortes e risadas,
alguns assobios, as pessoas fazem assim, são más com os que perdem.
Novecentos esperou, paciente, que houvesse um pouco de silêncio em volta.
Depois, lançou um olhar a Jelly Roll, que estava ali, em pé, no bar, bebendo
uma taça de champanhe, e disse, baixo:
— Você pediu, pianista de merda.
Aí, apoiou o meu cigarro na beira do piano.
Apagado.
E começou.
Assim.
O público absorve tudo sem respirar. Tudo em apneia. Com os olhos
pregados no piano e a boca aberta, como perfeitos imbecis. Permaneceram
assim, em silêncio, completamente estarrecidos, mesmo depois daquela
mortífera descarga final de acordes que parecia ter cem mãos, parecia que o
piano iria estourar de um momento para outro. Naquela situação esdrúxula,
Novecentos levantou-se, pegou o meu cigarro, deslocou-se um pouco para a
frente, além do teclado, e aproximou-o das cordas do piano.
Ligeiro chiado.
Tirou o cigarro dali e estava aceso.
Juro.
Bem aceso.
Novecentos segurou-o como se fosse uma pequena vela. Não fumava, ele,
nem mesmo sabia mantê-lo entre os dedos. Deu alguns passos e chegou diante
de Jelly Roll Morton. Estendeu-lhe o cigarro.
— Fume-o você. Eu não sou bom nisso.
Foi aí que as pessoas acordaram do encantamento. Veio junto uma
apoteose de gritos e aplausos e o cassino, não sei, nunca se viu uma coisa
assim, todos berravam, todos queriam tocar Novecentos, uma zona geral, não
se entendia mais nada. Mas eu o vi, lá no meio, Jelly Roll Morton, fumar
nervosamente aquele maldito cigarro, procurando a cara que devia fazer, e
sem encontrá-la, sem saber direito sequer para onde olhar, a certo ponto a sua
mão de borboleta começou a tremer, tremia mesmo, e eu a vi, e não esquecerei
nunca, tremia tanto que a certa altura a cinza do cigarro soltou-se e caiu,
primeiro na sua bela roupa preta, e depois rolando, até o seu sapato direito,
sapato de verniz preto, brilhante, aquela cinza como um borrifo branco, ele
olhou para ela, me lembro muito bem, olhou o sapato, o verniz e a cinza e
entendeu o que era para entender, entendeu, girou sobre si mesmo e,
caminhando devagar, passo a passo, tão devagar que a cinza não se moveu
dali, atravessou o salão e desapareceu, com os seus sapatos de verniz preto, e
sobre um deles estava a cinza branca e ele a levava embora, e ali estava
escrito que alguém tinha vencido, e não era ele.
Jelly Roll Morton passou o resto da viagem fechado na cabine. Ao
chegarem a Southampton, desceu do Virginian. No dia seguinte, partiu para a
América. Num outro navio, porém. Não queria mais saber daquilo, de
Novecentos e todo o resto. Queria voltar e basta.
Da ponte da terceira classe, apoiado na amurada, Novecentos o viu descer,
com a sua bela roupa branca e todas as malas, bonitas, de couro claro. E me
lembro que disse apenas:
— E no cu, o jazz também.
(Começa uma música tipo velha balada. O ator desaparece no escuro, para
reaparecer nas roupas de Novecentos, no alto de uma escada do navio a
vapor. Casaco de camelo, chapéu, uma grande mala. Está ali, de pé, no
vento, imóvel, olhando diante de si. Olha Nova York. Depois desce o
primeiro degrau, o segundo, o terceiro. A música se interrompe bruscamente
e Novecentos para. O ator tira o chapéu e volta-se para o público)
O que foi que ele viu, daquele maldito terceiro degrau, não quis me dizer.
Naquele dia e durante as duas viagens que fizemos depois, Novecentos
permaneceu meio estranho, falava menos do que de costume e parecia muito
ocupado com alguma tarefa pessoal. Nós não fazíamos perguntas. Ele fingia
que nada acontecia. Via-se que não estava mesmo tudo normal, mas ainda
assim não ousavam lhe perguntar nada. Ficou assim alguns meses. Então um
dia Novecentos entrou na minha cabine e lentamente mas de uma vez só, sem
parar, me disse:
— Obrigado pelo casaco, eu estava por conta de Deus, foi um pecado,
poderia ter feito um figurão, mas agora vai tudo muito melhor, já passou, você
não deve pensar que eu esteja infeliz: não o serei nunca mais.
Quanto a mim, não estava sequer certo de que ele tivesse ficado infeliz.
Não era uma daquelas pessoas de quem você se pergunta se está ou não feliz.
Ele era Novecentos, e basta. Não lhe ocorria pensar que ele tivesse alguma
coisa a ver com a felicidade, ou com a dor. Parecia além de tudo, parecia
intocável. Ele e a sua música: o resto não contava.
“Você não deve pensar que eu esteja infeliz: nunca estarei.” Deixou-me
seco, aquela frase. Tinha a cara de quem não estava brincando, quando a disse.
Alguém que sabia muito bem aonde ia. E que chegaria lá. Era como quando se
sentava ao piano e desandava a tocar, não havia dúvidas nas suas mãos e as
teclas pareciam esperar sempre por aquelas notas, que pareciam estar ali para
elas e só para elas. Parecia que as inventava ali, para ali: mas em alguma
parte, na sua cabeça, aquelas notas sempre estiveram escritas.
Agora eu sei que naquele dia Novecentos tinha decidido sentar diante das
teclas brancas e pretas da sua vida e começar a tocar uma música absurda e
genial, complicada mas bonita, a maior de todas. E que naquela música teria
bailado aquilo que lhe restava dos seus anos. E que nunca mais seria infeliz.
(Volta, vai em direção aos bastidores, para um passo antes de sair, vira-se
de novo para o público: seus olhos estão brilhantes)
Lógico... sabe que música, porém... com aquelas mãos, duas, direitas... só
se houver um piano...
(Fica sério novamente)
É dinamite, aquilo que você tem embaixo do cu, irmão. Levanta daí e vai
embora. Acabou. Desta vez acabou mesmo.
(Sai)
FIM
Título original
NOVECENTO
Un monologo
preparação de originais
MÔNICA MARTINS FIGUEIREDO
CIP-Brasil. Catalogação na fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
CDD: 853
99-1517 CDU: 850-3
Italiano de Turim, Alessandro Baricco nasceu em 1958 e esteve no Brasil em 1999, quando a Rocco
lançou seu primeiro romance Mundos de vidro. Originalmente publicado como Castelli di rabbia,
foi laureado com o prêmio de seleção Campiello e anos depois com o prêmio Médicis Étranger. Seu
segundo romance Oceano Mare, saudado como proeza literária, obteve ao ser lançado o prêmio
Viareggio. O romance Seda, no Brasil publicado pela Rocco, foi lançado em um teatro em Roma,
com uma leitura pública assistida por mais de trezentas pessoas.
Digitalização e revisão
Virgínia Vendramini