Livro Ciências Básicas Da Dependência Quimica
Livro Ciências Básicas Da Dependência Quimica
Livro Ciências Básicas Da Dependência Quimica
CIÊNCIAS BÁSICAS DA
DEPENDÊNCIA QUÍMICA
PONTOS-CHAVE
Estudos
química.
em neurociências são fundamentais para a compreensão da neurobiologia da dependência
Atualmente, os avanços científicos na área da dependência ção e da composição tecidual do cérebro, permitindo uma
química permitem dizer que, assim como a ação do uso pro- avaliação de alterações estruturais funcionais, moleculares e
longado de substâncias com potencial de abuso no cérebro, bioquímicas relacionadas ao uso de substâncias. Este capítulo
aspectos sociais, culturais, educacionais e comportamen- tem como objetivo apresentar noções gerais das bases neuro-
tais têm papel central no desenvolvimento da síndrome de biológicas dos comportamentos de dependência e as princi-
dependência. As bases neurobiológicas da dependência quí- pais técnicas de neuroimagem utilizadas no estudo das alte-
mica têm recebido crescente atenção em inúmeras pesquisas, rações produzidas pelo uso de substâncias.
uma vez que um melhor entendimento dos mecanismos ce-
rebrais ligados ao comportamento de dependência tem per-
mitido a busca de tratamentos medicamentosos mais eficazes NEUROBIOLOGIA DO USO DE SUBSTÂNCIAS
para o comportamento repetitivo de busca pela substância,
assim como para a síndrome de abstinência.1 O estudo da neurobiologia do uso de substâncias tem como
Um dos motivos que têm impedido o desenvolvimento objetivo primário compreender os mecanismos genéticos e
de tratamentos farmacológicos efetivos para a maioria dos epigenéticos, além dos mecanismos celulares e moleculares,
quadros de dependência reside na pouca compreensão das envolvidos na dependência de substâncias. Esses mecanis-
alterações bioquímicas que as substâncias promovem no cé- mos podem mediar a transição entre o padrão de uso cha-
rebro humano, assim como da relação entre essas alterações mado “recreacional” e um padrão caracterizado por perda de
cerebrais e as alterações comportamentais presentes na sín- controle, comportamento de busca apesar de evidentes pre-
drome de dependência. Nesse contexto, o sistema dopami- juízos em diferentes esferas, “fissura” e recaídas frequentes, ti-
nérgico, sobretudo as vias dopaminérgicas envolvidas nos picamente descritos nos quadros de dependência. Diferentes
circuitos motores, límbicos e cognitivos dos núcleos da base, fontes de evidência têm sugerido que tal transição pode en-
tem-se apresentado como potencialmente envolvido em me- volver a reprogramação de circuitos neuronais que proces-
canismos que desempenhariam um papel central nas síndro- sam a motivação, os comportamentos de recompensa, a me-
mes de dependência e abstinência.2 mória, o condicionamento, a habituação, o funcionamento
O desenvolvimento de sofisticadas técnicas de neuroima- executivo e o controle inibitório, bem como a reatividade ao
gem tornou possível o estudo in vivo da anatomia, da fun- estresse. Assim, essa transição é fortemente influenciada por
fatores genéticos, de neurodesenvolvimento e ambientais, co- vras, o uso repetido dessas substâncias ativa os mesmos sis-
mo também suas respectivas interações, as quais irão deter- temas cerebrais de motivação que costumam ser ativados por
minar o curso e a gravidade da dependência.3 comportamentos essenciais, como os relacionados a alimen-
Esses circuitos neuronais compreendem: tação, sexualidade e fuga de situações ameaçadoras. O cére-
bro passa a funcionar como se essas substâncias e seus estí-
a. o chamado sistema de recompensa cerebral, localizado no mulos associados fossem biologicamente necessários. Com a
nucleus accumbens exposição repetida, a associação torna-se cada vez mais forte,
b. a região envolvida com a motivação, localizada no cór- desencadeando uma maior resposta comportamental e neu-
tex orbitofrontal roquímica, conhecida como sensibilização de estímulo.7
c. o circuito responsável pela memória e pela aprendizagem, A estimulação do sistema de recompensa produz sensa-
localizado na amígdala e no hipocampo ção de bem-estar e euforia, aumentando o desejo de repetir
d. controle e planejamento, localizados no córtex pré-fron- tais sensações. Por isso, esse sistema parece desempenhar um
tal e no giro do cíngulo anterior papel central no desenvolvimento da dependência. Sabe-se,
hoje, que alterações no sistema dopaminérgico podem cau-
Esses quatro circuitos recebem inervação direta dos neu- sar mudanças ocasionais ou permanentes no sistema de re-
rônios dopaminérgicos, mas são também ligados um ao ou- compensa após o uso de qualquer quantidade de substâncias.
tro por meio de projeções diretas ou indiretas, principal- Tais alterações estão relacionadas ao comportamento impul-
mente glutamatérgicas. Embora sejam identificadas regiões sivo, que resulta em uma busca repetida de sensações pra-
específicas do cérebro associadas com cada circuito, é possí- zerosas de maior intensidade relacionadas ao uso da subs-
vel observar que outras regiões do cérebro também estão en- tância.8 A evitação dos sintomas relacionados à síndrome de
volvidas nesses circuitos (p. ex., o tálamo e a ínsula), que uma abstinência e o craving (fissura) também explicam o compor-
região pode participar de mais de um circuito (p. ex., o giro tamento repetido de busca. Essas alterações podem perma-
do cíngulo, participando tanto do controle quanto da motiva- necer por meses após a interrupção do consumo. Elas tam-
ção) e que outras regiões cerebrais (p. ex., o cerebelo) e outros bém podem inibir o efeito euforizante associado ao uso da
circuitos (p. ex., circuitos da emoção e da atenção) também substância, quando o indivíduo deixa de sentir o prazer de
são suscetíveis em relação ao uso de substâncias.4 outrora, mas continua impelido a buscá-la, uma vez que hou-
Grande parte das substâncias atua aumentando o tônus de ve uma “adaptação funcional” de circuitos neuronais à pre-
neurotransmissão monoaminérgica (dopamina, norepinefrina sença desta (fenômeno de tolerância).9
e serotonina), sobretudo por meio do bloqueio da recaptação
desses neurotransmissores. Além disso, ácido gama-amino-
butírico (GABA), peptídeos opioides, acetilcolina, endocana- OUTROS NEUROTRANSMISSORES
binoides e glutamato também parecem desempenhar um im- RELACIONADOS AO USO DE SUBSTÂNCIAS
portante papel no processo inicial de dependência.
A serotonina é um neurotransmissor que está envolvido na
mediação de mecanismos neurobiológicos relacionados à
O SISTEMA DE RECOMPENSA motivação e à resposta ao uso de substâncias. As substâncias
interagem com a transmissão serotonérgica no cérebro de di-
As conexões do sistema de recompensa envolvem a substân-
cia negra e a área tegmental ventral, onde os corpos celulares
que produzem dopamina estão localizados. Esses corpos ce-
lulares projetam-se para o estriado, que inclui a área conhe-
cida como o centro de recompensa, o nucleus accumbens, que
faz parte do sistema límbico. Todas as substâncias, direta ou
indiretamente, aumentam os níveis de dopamina no nucleus
accumbens,5 como ilustra a Figura 1.1.6
O sistema dopaminérgico é o principal alvo molecular na
investigação de alterações neurobiológicas associadas ao uso
de substâncias, sobretudo por desempenhar um papel central Córtex
pré-frontal
no sistema de recompensa cerebral. A dopamina tem papel
Nucleus
fundamental em relação às respostas condicionadas. Segun- accumbens Área
do Bear e colaboradores,7 o sistema dopaminérgico meso- tegmentar
corticolímbico tem importante papel na motivação de com- ventral
portamentos, como, por exemplo, o ato de alimentar-se e a
Figura 1.1 Circuito de recompensa cerebral.
compulsão pelo consumo de substâncias. Em outras pala- Fonte: Silva.6
ferentes maneiras. A exposição ao álcool, aguda ou crônica, feita pelos neurotransmissores opioides endógenos, como as
por exemplo, altera vários aspectos das funções sinápticas do endorfinas e as encefalinas. Existem três tipos de receptores
sistema serotonérgico. Os níveis plasmáticos e urinários dos opioides: mµ, sigma e kappa. Os receptores mµ são os mais
metabólitos de serotonina aumentam após exposição aguda, significativos na ação analgésica.16
indicando um incremento do tônus desse sistema. Substân-
cias como a cocaína e as anfetaminas afetam a neurotrans-
missão serotonérgica e noradrenérgica. Além disso, lesões ACHADOS DE NEUROIMAGEM
neurotóxicas seletivas dos neurônios serotonérgicos facili- E USO DE SUBSTÂNCIAS
tam a autoadministração de cocaína em modelos animais.10
Os neurônios estriatais, que recebem inervações dopa- T������� � �����������
minérgicas, são também inervados por vias glutamatérgicas
provenientes do córtex pré-frontal, do hipocampo e da amíg- As técnicas de neuroimagem funcional e estrutural têm-se
dala. Devido ao papel da amígdala e do hipocampo na apren- mostrado promissoras na investigação de eventuais prejuí-
dizagem e na memória, é provável que as vias glutamatérgicas zos no funcionamento cerebral decorrentes do uso regular de
ligadas a essas estruturas também influenciem o comporta- substâncias. Entretanto, na prática clínica, o uso da neuroi-
mento de autoadministração de substâncias.11 magem tem indicação restrita, relacionada sobretudo à ex-
O GABA consiste no principal neurotransmissor inibitó- clusão de etiologias não psiquiátricas em casos de alterações
rio do sistema nervoso central (SNC), mediando as ações ini- de comportamento do paciente. No campo da pesquisa, no-
bidoras dos interneurônios locais no cérebro, podendo me- vas técnicas têm permitido a investigação de aspectos funcio-
diar a inibição pré-sináptica na medula espinal. Ele também nais e anatômicos in vivo e se apresentado como instrumen-
atua no córtex cerebral e entre o núcleo caudado e a subs- tos potencialmente úteis no estudo dos efeitos neurotóxicos
tância negra. Estudos pré-clínicos demonstraram que neurô- relacionados ao uso de substâncias.
nios GABAérgicos modulam o sistema dopaminérgico e os Com o desenvolvimento dessas modernas tecnologias
efeitos recompensadores da cocaína. Além disso, a exposição de imagem e uma variedade de radiotraçadores, é possível
crônica à cocaína pode afetar o funcionamento do sistema visualizar e quantificar muitos aspectos da farmacocinética
GABA. Indivíduos dependentes dessa substância podem ter e farmacodinâmica das substâncias diretamente no cérebro
aumento de receptores GABAA. Tais mudanças nas respos- humano, além de relacionar esses parâmetros às proprieda-
tas do GABA podem estar associadas à diminuição dos ní- des tóxicas dessas substâncias.17 Existem cinco técnicas prin-
veis de GABA no cérebro em dependentes de cocaína. Am- cipais de neuroimagem, cada uma com aplicações e objetivos
bos os receptores, GABAA e GABAB, são também possíveis próprios, as quais se encontram descritas de forma resumida
alvos para o tratamento medicamentoso da dependência de no Quadro 1.1.18
cocaína.12 Ademais, os mecanismos GABAérgicos no núcleo A imagem de ressonância magnética estrutural permite
central da amígdala podem participar das ações de reforço a análise do volume e da forma de várias regiões do cérebro.
agudo do álcool.13 Pode indicar, também, a presença de alterações no tecido ce-
O SNC também tem neurotransmissores (canabinoi- rebral.
des endógenos) cujas moléculas são semelhantes à molécu- A técnica de ressonância magnética funcional produz ma-
la de THC (∆9-tetra-hidrocanabinol), todos derivados do áci- pas dos níveis de atividade celular em uma determinada região
do aracdônico. Até hoje, três canabinoides endógenos foram do cérebro. Estudos comparando diferentes grupos (p. ex., gru-
identificados: a anandamida (N-aracdonil-etanolamina), o po de usuários de substâncias versus indivíduos saudáveis) po-
2-aracdonilglicerol e o 2-aracdonilgliceril éter. A anandami- dem revelar diferenças em padrões de atividade cerebral quan-
da é a mais conhecida e estudada, sendo 4 a 20 vezes menos do da execução de determinada tarefa cognitiva.
potente que o THC, além de apresentar uma meia-vida far- A técnica de ressonância magnética por espectroscopia
macológica menor.14 Estudos com animais têm demonstra- permite a quantificação da composição tecidual de determi-
do que o THC e a anandamida aumentam a concentração de nada região do cérebro. Para “ser visível” em uma imagem, o
dopamina no estriado e no sistema mesolímbico. O THC au- elemento químico deve responder de uma única maneira à
menta a concentração de dopamina nas vias nigroestriatais, estimulação por um campo magnético e deve estar presen-
por meio da inibição da recaptação de dopamina pelo trans- te em uma concentração significativa na região examinada.
portador dopaminérgico e da facilitação da liberação de do- A base da neuroimagem molecular são os radiotraçado-
pamina.15 res, ligantes marcados com isótopos radioativos que permi-
O sistema opioide, além das estruturas já mencionadas, tem a quantificação in vivo de neurotransmissores, transpor-
inclui áreas como o núcleo arqueado, a amígdala, o locus ce- tadores e receptores do SNC. Diversos radiotraçadores têm
ruleus e a área cinzenta periaqueductal dorsal. Os recepto- sido desenvolvidos e utilizados em técnicas de neuroimagem
res opioides são importantes na regulação normal da sensa- molecular de tomografia por emissão de pósitrons (PET) e
ção da dor e do processamento emocional. Sua modulação é tomografia por emissão de fóton único (SPECT). Ambas as
QUADRO 1.1
Técnicas de neuroimagem usadas em pesquisas sobre dependência de substâncias
técnicas podem detectar moléculas cerebrais com boa sensi- no metabolismo e na reorganização de circuitos sinápticos
bilidade. Porém, a técnica de PET apresenta melhor resolu- como consequência dos processos de tolerância e abstinên-
ção espacial e maior sensibilidade na detecção dessas subs- cia. Conforme já explicitado, as substâncias com potencial de
tâncias quando comparada à SPECT, mas ainda é um exame dependência provocam adaptações e alterações bioquímicas
de alto custo.19 Atualmente, os estudos sobre substâncias uti- nos sistemas dopaminérgico, serotonérgico e noradrenérgi-
lizando PET e SPECT têm apresentado um avanço conside- co, entre outros. Também podem induzir alterações na vas-
rável em razão da crescente disponibilidade de uma varie- cularização cerebral, como vasoconstrição, hemorragia suba-
dade de radiotraçadores, os quais apresentam especificidade racnoide e isquemia cerebral.21
por diferentes componentes celulares relacionados a dopami- No que se refere à segunda questão, as áreas frontais têm
na cerebral e outros sistemas de neurotransmissão. sido mais consistentemente descritas como as mais afetadas
pelo uso de substâncias, em especial o córtex pré-frontal. Es-
te estabelece conexões recíprocas com quase todo o encéfalo:
COMO E ONDE AS SUBSTÂNCIAS com todas as áreas corticais; com os gânglios da base e o cere-
AGEM NO CÉREBRO? belo (envolvidos em vários aspectos do controle motor e dos
movimentos); com o núcleo talâmico dorsomedial (principal
Para entender por que o uso de substâncias pode gerar alte- estação de integração neural com o tálamo); com o hipocam-
rações comportamentais, é necessário responder a duas ques- po (relacionado às funções de memória); com a amígdala (re-
tões primárias: lacionada às emoções); com o hipotálamo (responsável pe-
lo controle das funções homeostáticas vitais); e com o tronco
1. “como”, ou por meio de quais mecanismos encefálico (responsável pela ativação e estimulação).
2. “onde”, em que áreas específicas as substâncias agem, oca- Constituído por uma dezena de áreas citoarquitetônicas
sionando prejuízos no funcionamento cerebral diferentes, o córtex pré-frontal é dividido em três grandes re-
giões funcionais:22
Em relação à primeira questão, várias evidências têm
mostrado que o uso de substâncias pode produzir prejuízos 1. a região ventromedial, envolvida com o planejamento de
neuropsicológicos e comportamentais por meio de diversos ações e o raciocínio e com a tomada de decisão e o ajuste
mecanismos de ação. Primeiro, podem ocasionar alterações social do comportamento
neuroestruturais, como diminuição no volume, redução na 2. a região dorsolateral, envolvida com a memória operacio-
porcentagem de substância cinzenta, alargamento do espaço nal, a atenção seletiva, a formação de conceitos e a flexi-
pericortical e dos ventrículos laterais, diminuição do tama- bilidade cognitiva
nho dos neurônios e necrose ou atrofia cerebral.20 Além dis- 3. a região do cíngulo anterior, envolvida no processamento
so, o uso dessas substâncias pode produzir efeitos deletérios emocional e na afetividade
Lesões nas áreas corticais pré-frontais podem ocasionar al- de dopamina (DAT), medida indireta da atividade do siste-
terações de comportamento e a desorganização de processos ma dopaminérgico. Nesses estudos, foram utilizados in vivo
cognitivos, conhecidos como síndromes disexecutivas.23 Dé- os radiotraçadores para PET [11C]WIN 35428 e [11C]d-treo-
ficits no controle, na regulação e na integração de atividades -metilfenidato. Essas perdas de DAT em usuários de metan-
cognitivas predominam em pacientes com lesões dorsolaterais. fetamina podem estar associadas a redução da atividade mo-
O córtex pré-frontal dorsolateral tem função de processamen- tora e prejuízos na aprendizagem.4
to da informação on-line, ou seja, tem a memória operacio- Em um estudo envolvendo o uso crônico de opioides, em
nal a serviço de várias funções cognitivas. Esses processos são que foi utilizado o marcador de fluxo sanguíneo para SPECT
mediados por múltiplos circuitos neurais das áreas sensoriais, 99mTc-hexametazina (HMPAO), também foram observadas
motoras e límbicas, as quais estão envolvidas no processamen- anormalidades na perfusão cerebral no córtex orbitofrontal.31
to da atenção, da memória, da motricidade e possivelmente de Bolla e colaboradores,32 utilizando PET (H 15O), compararam
dimensões afetivas do comportamento.24 Lesões na região do 13 usuários de cocaína a 13 controles em relação à ativação
cíngulo anterior ou lesões subcorticais que envolvam vias co- do cíngulo anterior e do córtex pré-frontal dorsolateral duran-
nectando o córtex e os centros de integração afetiva no diencé- te a execução do teste de Stroop, medida relacionada ao con-
falo afetam o comportamento social e emocional por diminuir trole inibitório. Esse teste tem o nome de seu idealizador, o
ou anular a capacidade motivacional para atividades sociais e norte-americano John Ridley Stroop, sendo considerado um
o interesse sexual, assim como necessidades básicas como ali- teste-padrão na avaliação neuropsicológica. Um dos modelos
mentação e ingestão de água.25 O córtex pré-frontal ventrome- do teste consiste na apresentação, ao paciente avaliado, de um
dial desempenha um importante papel no controle de impul- cartão com retângulos de cores variadas, como preto, azul, ver-
sos e na regulação e manutenção do comportamento. Danos de, por exemplo, nos quais, no entanto, estão escritos nomes
nessa região ocasionam aumento da impulsividade e desinibi- de outras cores. A tarefa do paciente é dizer, o mais rápido que
ção, aspectos associados a transtornos comportamentais como puder, as cores que vê no retângulo, e não as cores que estão
agressividade e promiscuidade. Além disso, ocorre uma inter- escritas neles. Houve uma correlação negativa entre a quanti-
rupção na capacidade de antever as consequências futuras dos dade de cocaína usada por semana e a ativação dessas regiões
atos praticados, o que gera um prejuízo na capacidade de to- cerebrais, as quais estão intimamente ligadas ao funcionamen-
mada de decisão.26 to executivo. A existência de prejuízos nessas áreas influencia
De acordo com o Manual diagnóstico e estatístico de trans- a maneira como o indivíduo lida com as propriedades de re-
tornos mentais (DSM-5),27 dos 11 critérios para transtornos por forço da substância, assim como a deficiência no controle dos
uso de substâncias, os sintomas centrais na síndrome de depen- mecanismos de respostas e a qualidade de tomada de decisões.
dência de substâncias são a exposição compulsiva à substância e É interessante observar que o uso repetido de cocaína po-
o desejo intenso de usá-la apesar das consequências desse com- de levar a um processo de neuroadaptação da função dopa-
portamento em curto ou longo prazo. Nesse sentido, o processo minérgica e de outros sistemas.33 Um exemplo ocorre com a
de dependência parece ser mediado por anormalidades estru- suprarregulação dos transportadores de dopamina, que re-
turais e funcionais nos circuitos que são modulados pela do- torna aos níveis normais após alguns meses de abstinência.
pamina, incluindo o córtex pré-frontal. Diferentes evidências Essas neuroadaptações podem vir a interferir com a conecti-
corroboram essa hipótese. Estudos de neuroimagem estrutu- vidade funcional de diversas regiões do cérebro, sabidamente
ral utilizando imagens de ressonância magnética, por exemplo, moduladas pela dopamina, acarretando diminuição na sen-
identificaram diferenças na concentração de substância cinzen- sibilidade de recompensa, aumento na reatividade ao estresse
ta frontal em usuários de cocaína quando comparados a não e disfunção executiva e cognitiva.
usuários.28 Outro estudo, que examinou usuários de crack e É também provável que as diferentes substâncias tenham
de crack associado a álcool abstinentes há seis semanas, verifi- uma ação distinta em relação às áreas frontais descritas. Em
cou uma redução do volume do córtex pré-frontal nesse grupo, um estudo conduzido por Verdejo-Garcia e colaboradores34
quando comparado ao grupo de não usuários.29 com usuários de diferentes substâncias, abstinentes por no
Estudos com o radiotraçador para PET [F18] fluorodeoxi- mínimo duas semanas, foi utilizada como medida uma escala
glicose (FDG), que mede o metabolismo de glicose cerebral, de comportamento relacionada aos sistemas frontais (Fron-
mostraram uma diminuição na atividade do córtex orbito- tal Systems Behavior Scale), a qual avalia apatia, disfunção
frontal em dependentes químicos, incluindo aqui os depen- executiva e controle de impulsos, aspectos ligados respectiva-
dentes de álcool, cocaína, crack e maconha. Especificamente mente ao cíngulo anterior, ao córtex pré-frontal dorsolateral
nos usuários de cocaína, metanfetamina e álcool, essa redu- e ao córtex pré-frontal ventromedial. Os achados mostraram
ção parece estar associada à diminuição da disponibilidade que o uso pesado de maconha está associado de modo con-
de receptores de dopamina (D2) na região do estriado.30 Es- sistente a apatia e disfunção executiva, situação semelhante à
tudos de neuroimagem que investigaram os efeitos do uso observada em usuários de álcool e heroína. Em contraste, o
crônico de metanfetamina sobre o sistema dopaminérgi- uso pesado de cocaína parece estar mais associado a proble-
co também verificaram perda significativa no transportador mas relacionados ao controle dos impulsos (ver Fig. 1.2).
2
2
0 0
z = 20 z = 41 z = 34
C D
6
4
2
2
0 0
x=6 x=2
Figura 1.2 (A) Regiões do cérebro mostrando ativação significativamente menor nos dependentes de cocaína, em comparação a
controles, com o paradigma de Stroop. Córtex pré-frontal lateral (CPFL) à direita (x = 38, y = 34, z = 20), e, à esquerda, córtex cingulado
anterior (CCA) (x = -6, y = 18, z = 41). (B) Regiões do cérebro mostrando maior ativação em usuários de cocaína do que em controles,
no CCA à direita (x = 10, y = 11, z = 34). (C) CCA caudal, mostrando menor ativação nos dependentes de cocaína do que nos controles
(x = 6, y = 18, z = 41) durante a execução da tarefa de Stroop. (D) Ativação do CCA rostral (x = 2, y = 33, z = 8), em que a ativação foi
negativamente correlacionada ao número de gramas de cocaína usado por semana (r = -0,88).
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