A Metodologia Do Espelho de Oxum Na Psicologia
A Metodologia Do Espelho de Oxum Na Psicologia
A Metodologia Do Espelho de Oxum Na Psicologia
Abstract: What was the role of Virgínia Bicudo, a black scientist, in founding the
science and profession of psychology? How can we understand the intricacies of the
collaboration of black women in epistemic thinking in psychology? Are they visible in
the mapping of the field? How can we observe the realities that present themselves in
the sense of the memory of Brazilian psychology and important female authors in the
field? This essay is the result of a conference presented in April 2023 at the Oralities
and Kitembo group of the Master's and Doctoral Programs at the Fluminense Federal
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Psicóloga, Psicanalista, Pós doutora pelo IMAF/EHESS – Instituto dos Mundos Africanos da Escola de
Altos Estudos em Ciências Sociais/Paris-França, Supervisora clínica em psicanálise e relações étnicas e
raciais na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Docente permanente do Mestrado em Relações
Étnicas e Contemporaneidade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Líder do Grupo de
Pesquisa NEPPINS/CNPQ, Centro de Ciências da Saúde. Mam’etu no Nzo Lemba Tateamoxicongo-
Tumba Junssara. Email: regina@ufrb.edu.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3720-0922
INTRODUÇÃO
Freud, segundo Peter Gay (2000), formulou suas teorias a partir dos enredos de
sua condição cultural e familiar.
Ela nasceu em 1910 e faleceu em 2003 e era filha de um casal interracial em São
Paulo, Teófilo Bicudo – nascido pela lei do ventre livre, filho de uma escrava alforriada
(avó de Virgínia). E sua mãe, Joana Leone, era brasileira filha de imigrantes italianos
(OLIVEIRA, 2019)
Como eles tem realizado seus estudos e apontamentos de pesquisa. São capazes
de favorecer a consolidação de nomes importantes no campo ou figuram como
produtores de conhecimento que realizam a clássica hegemonia do poder presente no
campo da produção do conhecimento?
Haveria sinais mais emblemáticos para nós, povos da diáspora, que estes
devaneios aos ventos.
Sangramos porque nossos corpos não são visíveis sem atrocidades. São
martirizados sem piedade, porque subsistem a lógica sistêmica do sustento de tantos
outros corpos que sugam o trabalho e o labor de nossa existência que se perpetua nos
fios do sangue derramado que se unem em todos os lamentos deste e de outros planos
visíveis e invisíveis como a presença constante do sagrado em todas as coisas.
Nestes cantos nos confins dos mundos, de todos os mundos, nós permanecemos
e ecoamos. Mesmo quando parecemos mudos, cantamos.
Memória.
Desde sempre, nossos corpos violados e mortos são grãos. Sementes que
fecundam a terra.
Desde sempre, desde quando foram lançados nas profundezas do mar sagrado
porque não conseguiram chegar até o continente denominado América pelos europeus,
mas reconhecido com Abyala entre as civilizações e povos originários destas terras que
hoje pisamos.
Virgínia construiu, como todo corpo da diáspora negra faz e constrói. Nós
construímos, como Neusa, eu reverencio Virgínia, como uma das mães fundadoras da
ciência profissão psicologia (2022, OLIVEIRA).
Porquê?
Pode parecer ultrapassado trazer Virgínia quando alguns poucos falam dela com
propriedade.
Estou falando de Virgínia pelas lentes dos escritos não só da antropóloga negra
Doutora Janaína Damaceno Gomes, mas também a partir do livro do psicólogo branco
Dr. Jorge Luís Ferreira Abraão que compilou um escrito pioneiro sobre a contribuição
de Virgínia para a construção histórica da psicologia no Brasil e personagem de
expressão para a memória histórica da cultura brasileira (ABRÃO, 2010).
O decurso temporal observa que os fazeres pelo corpo - mãos que tecem - de
Virgínia em sua atuação pelos territórios da São Paulo dos anos quarenta, exercendo o
cuidado em saúde mental com crianças e orientação de mães e famílias, foram
emblemáticos para preparar o nascimento de uma ciência psicológica como profissão no
Brasil.
Ela não só marca o território paulista brasileiro em sua marcha – mulher negra –
mas ela transcende o território paulista e brasileiro, na medida em que busca saídas – ela
é encurralada por homens brancos, elitizados, médicos, quando é hostilizada no seu
fazer cuidar da saúde mental destes seres. Pessoas que a criticavam porque ela exercia o
cuidado em saúde mental sem o diploma de médica. Embora aceita como psicanalista
(primeira psicanalista didática) e apoiada por Durval Marcondes, ela foi rejeitada como
profissional da saúde mental pelo conjunto hegemônico dos profissionais médicos de
seu tempo e contexto – homens e brancos. “Acusada de charlatã, ela não fica cativa e
submissa. Ela se levanta, rompe com a ordem vigente e vai para Londres, aprimorar
seus conhecimentos” (GOMES, 2013).
Nesta lógica, narro as assertivas que nos instam a observar o deslocamento dos
corpos negros, das mulheres negras que escrevem, trabalham e fazem o bem viver de
toda gente. Preocupadas, como negras, mulheres e mães, com o bem estar de seus filhos
e os filhos da civilização humana.
No ofício de Virgínia, não por acaso, ela teve acesso como professora ao
advento e princípios da Escola Nova (ABRAÃO, 2010), que surgiu a partir das ideias
de Anísio Teixeira, baiano de Caetité, que após estudar em Salvador e posteriormente
no Rio de Janeiro, construiu um modelo de educação onde a democracia fosse
imperativa. Foi secretário de Educação na Bahia, criou a Escola Parque, que foi um
centro de educação e cultura na Bahia que unia educação formal com aulas de música,
arte, teatro, marcenaria e inúmeras atividades.
Eu fui o único dos meus irmãos a fazer escola parque. Porque eu era o mais
novo. Então, mesmo sendo difícil para meus pais, foi possível. Porque os outros
já podiam ajudar no sustento da casa. E eu fui poupado. Pude estudar. Isto fez
toda diferença na minha vida. Um outro mundo se apresentou pra mim. As aulas
de artes, a biblioteca, os livros. Era algo inimaginável pra mim. Acho que isso
foi a condição que me permitiu traduzir este mudo (Hildebrando Cerqueira, 65,
homem negro, Soteropolitano, naturalizado francês, em 12/06/2016)
Nomes de grande projeção nacional e internacional como os baianos Gil e
Caetano também sofreram influência destas formações escolares no contexto da Bahia
Simplesmente porque foi Virgínia, a única mulher que adentrou este time de
gigantes no contexto da ciência médica, da educação e da saúde no Brasil para realizar
uma psicologia implicada com as classes populares, no princípio democrático da
inspiração da Escola Nova que ela bebeu na fonte do seu curso Normal no Caetano de
Campos. Igualmente, em seu percurso de sanitarista, também inspiração do contexto
histórico da urbanização da cidade de São Paulo, o desenvolvimento do campo da saúde
e do acesso a uma orientação para a prevenção e o cuidado com a saúde de crianças
através da orientação de pais e professores, Virgínia vai se interessar pela psicanálise,
como foi inaugurada por Juliano Moreira no Brasil, quando foi preceptor de muitos
importantes médicos psiquiatras como Dr. Francisco Franco da Rocha que será
inspiração para o amigo da Dra. Virginia, o médico Durval Marcondes.
Nesta sina negra, diaspórica dos corpos circulares que não morrem mesmo
quando são enterrados, o que um corpo negro não realiza, outros corpos negros da
diáspora realizarão. É a sina. Seja ausente na memória ou não. Em nosso caso hoje,
tentamos restituir a memória. De Virgínia. Cativa e oprimida que é na negação de seu
nome e glória nos seus feitos para e pela psicologia.
O que estou dizendo é que do território da Bahia vem Juliano, que inspira, por
Franco da Rocha, Durval, de onde vem, pela diáspora negra, Virgínia. E Neusa também
bebe na fonte de Juliano, seu conterrâneo baiano.
Parece que o fio que circunda o ciclo da vida encontra seu próprio começo.
Na busca por implicar-se socialmente nos seus feitos com as pessoas, Virginia
buscará em 1936 o curso superior de Ciências Sociais na Escola Livre de Sociologia e
Política. Ela mantém a inspiração dos princípios da escola novista, na mesma inclinação
das ideias iluministas que pensa o desenvolvimento da sociedade a partir dos princípios
de desenvolvimento da ciência e acesso à educação formal.
Após sua graduação ela começará o interesse pela psicanálise, procura Durval
Marcondes e inicia sua análise com a primeira psicanalista no Brasil a alemã Adelheid
Lucy Koch, formada pelo instituto de Berlim (ABRÃO). Não é por acaso: a mulher
Antes de embarcar para Londres, Virgínia terá uma participação neste curso e
colabora com o fortalecimento para que fosse criado no quadro da Faculdade de
Filosofia da USP o curso de Psicologia em 1955. Ela também será professora na Escola
de Sociologia e Política durante seu processo formativo em psicanálise e pesquisadora
das relações étnico raciais em São Paulo.
Virgínia é uma mulher operária, filha de uma classe operária, que trabalha, que
necessita ganhar o seu sustento. Filha de um homem negro, nascido da lei do ventre
livre.
Ela estuda e se aprimora, ao mesmo tempo que trabalha. E como mãe, de seus
irmãos e mãe, ela sozinha, assume o sustento, de todos. Abraça coletivamente a
necessidade do outro, ganha e divide o pão. Ela tem de berço os valores dos africanos da
diáspora.
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Sob este aspecto consideramos que a análise didata de Virginia Bicudo produziu profissionais capazes
de exercer a psicanálise nos moldes recomendados pela IPA, na medida em que uma expressão
importante no Brasil – Adelheid Koch – realizou as aproximações com a IPA para que a primeira
instituição formal de exercício psicanalítico no Brasil, a SBPS – Sociedade Brasileira de Psicanálise de São
Paulo – pudesse nascer a partir da formalização de seu credenciamento. Bicudo e Koch. Yabás. Mulheres
da criação.
Observamos que seu trabalho funda a psicologia. Ajuda a fundar. Porque ela faz
a síntese do trabalho clínico de não médicos para uma escuta do sofrimento psíquico.
Ela realiza o trabalho. Ela encarna a psicologia porque realiza-a através da formação
pelo campo educativo – Educação da Escola Normal – e pela psicanálise.
Criativamente, como é a vigorosa música negra que surge das vozes das
mulheres negras, nos navios negreiros, como Christiane Taubira, mulher negra francesa,
ex-ministra da justiça na França, Virgínia fez o que Durval não pode fazer porque era
médico. Ela cunhou a psicologia brasileira. Introduziu uma disciplina prática, a
profissão da psicóloga, em seu fazer através da síntese promoção e prevenção à saúde
física e mental em diálogo com a educação. Educação em saúde. Como também será
constituída a formação para o profissional do SUS e do SUAS. Uma abordagem social e
territorial.
Como corpo de diáspora, ela não fica resignada. Ela levanta, reage. Ela vai em
busca do alargamento de fronteiras quando observa as restrições que seu pioneirismo
engajado com a sociedade através de seu pragmatismo incômodo diante das elites
médicas despeitadas e pouco afetas a criatividade diante da vida e da superação de
obstáculos a que os povos da diáspora e as mulheres negras estão acostumadas a
enfrentar e a vencer. A fazer e a cumprir o destino de suas prévias determinações
ancestrais.
Então, eu sei que não disse nada de extraordinário. Mas é preciso dizer o que
não se diz nunca: são as mulheres negras que fazem coisas importantes para a
humanidade. Virgínia não estava sozinha no enfrentamento da construção de uma
profissão chamada psicologia. Lygia Amaral também.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Virgínia não só foi psicanalista. Ela foi psicóloga, agiu pensando em uma
psicologia, psicoterapia, a partir de princípios democráticos, sociais, republicanos e de
acesso a saúde e educação como as inspirações da escola nova de Anísio Teixeira.
Ela fez com suas mãos de cientista mulher negra, o alicerce da ciência
psicológica. Junto com seus colaboradores e amigos. Ela teceu as lindas rendas da
psicologia brasileira que funda a reforma psiquiátrica no Brasil a partir do SUS, em
2001, com a presença dos Centros de Atenção Psicossocial a partir da Reforma
Psiquiátrica.
Ela tece este enredo. Não o faz sozinha. Nunca se faz sozinha. Mulheres negras
na vida e na ciência, nunca são sozinhas. Não há solidão de mulheres negras. Talvez
torpor pelos frutos de tantas marchas serem apagados os traços de nossas pistas e
pegadas de caminhos abertos para tantos; tantos que se esquecem (?) da venturosa mão
acolhedora das mulheres negras.
Encontro Virgínia na pesquisa, ela vai embora em 2003. Ano em que emancipo
meu apego ao Dr. Antonio da Costa Ciampa, que de quase bacharel em direito na
Universidade de São Paulo, se torna um ícone da psicologia social brasileira em
pesquisa sobre identidade. Defendo minha dissertação sobre crianças negras, saúde
mental e psicanálise na escola no mesmo ao em que Virgínia partia.
Encontro Virgínia na saída, e em São Paulo. Mas também na Bahia, com Prof.
Silvio Yassei, que informa durante a banca de meu ingresso na UFRB, em março de
2008, informou ser ele um dos organizadores do projeto Lares abrigados do Juquery;
medida prévia para se pensar a desinternação psiquiátrica em preparação à Reforma
Psiquiátrica de 2001 através da luta do movimento antimanicomial. Lares abrigados nos
quais trabalhei. E depois minhas alunas do Paraná, pra lá levei, para contar parte desta
historia de pretos, de gente preta, de alegrias, marchas e sobrevivências psíquicas.
Como Virgínia, elas voam, de São Paulo a Londres, de São Paulo a Paris, da
Bahia para o mundo. As águas do caboclo Itapiranga, e da Jurema se misturam às águas
do mundo. Da Bahia de Todos os Santos, os tambores do mundo ecoam.
CONCLUSÃO
Cientistas negras no mundo existem. Sempre existiram. E favorecem o
discernimento tecnológico e da psicologia.
Sim isto é triste; mas cabe a nós, povos civilizados da diáspora conduzir nosso
legado persistente. Superar a barbárie. Ensinar metodologias de amor e respeito. Ao
menos a civilização se opera. De modo vigoroso e consistente. Este é o trabalho da
diáspora: operar para melhores deslocamentos. Vida.
É da vida a dor.
No dia que ela recebeu o primeiro salário a família Bicudo era muito religiosa,
muito católica, ela passou na Igreja de São Bento e rezou muito, pedindo para
Deus orientá-la sobre o que ela deveria fazer da vida dali para frente, não era
isso que ela queria para a vida dela. Quando ela chegou em casa, tinha um
ajuntamento na porta e meu avô tinha morrido. Daí ela entendeu que Deus
estava respondendo que o que ela tinha que fazer na vida era orientar os irmãos
e cuidar da mãe. Só em 1939 que ela considerou sua missão cumprida
(ABRAÃO, 2010, p.42).
A diáspora negra no fazer da ciência psicológica precisa manter-se unida.
Alimentar seus irmãos. Preocupar-se com o sustento da irmandade e do bem estar da
prole. Assim como Virgínia. Não é fácil trilhar o caminho do epistemicídio e do
desprezo que os pensadores negros são reiteradamente submetidos.
A psicologia brasileira feita por mãos negras precisa manter-se firme. Unida na
irmandade que reiteradamente a academia branca faz questão de fragmentar e obliterar.
Virgínia agregava. Virgínia unia. Virginia era também a Paz de Oxalá.
Assim convido para que fiquemos com nossas caras pretas, nossas vozes negras,
realizando os fazeres e saberes de nossa ancestralidade negra na psicologia como uma
grandiosa irmandade unida. Continuando a fazer da vida uma canção sagrada, um hino.
Uma prece, para que nossa memória de Juliano a Virgínia seja sempre viva! Uma guerra
pela Paz: Guiã, Oxaguiã, Epa Babá!
É preciso ecoar, cantar e narrar os feitos de Virgínia. Nos últimos anos, tenho
feito ecos de Virgínia no Recôncavo, para estudantes brancos e negros, sobretudo
negros, trazendo as bases da psicologia negra do Brasil.
Precisamos falar como Virgínia. Fazer a ciência entoar. Nossas vidas não são
menos dignas. Mas hoje, na academia, precisamos ultrapassar as dores e criar políticas,
realizar a crítica, sustentar a história e a memória. Demarcando a presença de
apagamentos antigos. Se apagarem nossos corpos e vozes, nada há para se temer por
isso.
Se nos calarem, como assim um dia fizeram com Virgínia, outras falarão por
nós.
Outros e outras ecoaram por nós. Basta que tenhamos deixado pistas. Veredas,
rotas de fugas, caminhos.
Como Gomes (2013) nos alerta e questiona: o trabalho acadêmico é eivado pela
conquista de hegemonia e poder. É importante observar por quais caminhos são
operados mecanismos de esquecimentos e recuperação de trajetórias intelectuais: Quem
deve ser deixado na memória da disciplina?
Como cientista negra subverter a ordem do poder hegemônico. Nada fácil operar
em outra lógica.
A branquitude não fará isso por nós. É o veredicto: Façamos. Façamos nós.
No texto de Janaína Damaceno Gomes (2013, p.146) ela informa uma das
soluções propostas por Virgínia na dimensão psíquica, afetiva e emocional passível de
ser desenvolvido na clínica, no trabalho institucional e atendimento psicossocial em
psicologia e relações étnico raciais:
O Amor das Yabás, é a unidade representada pela família extensa, que precisa se
unir, também na academia, com disciplina, rigor e compromisso para salvaguardar
nossos conhecimentos reiteradamente ameaçados de apropriação ou apagados.
Axé à Yabá que protegeu e salvaguardou Virgínia. Por Janaína, Axé as Yabás,
que pela pedagogia do amor, nos deixa pistas, rastros de caminhos, para que nossa
ancestralidade nunca termine. Se reinicie e encontre braços que nos aninhe, no colo de
Oxum, Sábia Mãezinha, que nos ensina a amar: ekodidé,
- Osetwá!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAÃO. Jorge Luís Ferreira. Virgínia Bicudo: a trajetória de uma psicanalista brasileira. Arte
e Ciência Editora: São Paulo, 2010.
Recebido em 18/08/2023
Aprovado em 18/09/ 2023