A Metodologia Do Espelho de Oxum Na Psicologia

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DOI 10.31418/2177-2770.2023.v16.c.1.

p54-101 | ISSN 2177-2770


Licenciado sob uma Licença Creative Commons

A FUNDAÇÃO DA PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO PELO


FAZER DE UMA CIENTISTA NEGRA: VIRGÍNIA LEONE
BICUDO
Regina Suama Ngola Marques1
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Santo Antônio de Jesus, BA, Brasil.

Resumo: Qual a participação de Virgínia Bicudo, cientista negra, na fundação da


ciência e profissão psicologia? Como compreender os meandros da colaboração das
mulheres negras no pensamento epistêmico em psicologia? Elas são visíveis no
mapeamento do campo? Como podemos observar as realidades que se apresentam no
sentido de memória da psicologia brasileira e autoras importantes da área? Este ensaio é
fruto da conferência apresentada em abril de 2023, no grupo Oralidades e Kitembo do
Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia da Universidade Federal Fluminense
em reunião do Grupo de Trabalho Psicologia e Relações Raciais. O acolhimento
recebido sugeriu a publicação no dossiê deste periódico.
Palavras chaves: Psicologia; Memória; Epistemologia Negra; Mulheres Negras

THE FOUNDATION OF PSYCHOLOGY AS A SCIENCE AND PROFESSION


THROUGH THE WORK OF A BLACK SCIENTIST: VIRGÍNIA LEONE
BICUDO

Abstract: What was the role of Virgínia Bicudo, a black scientist, in founding the
science and profession of psychology? How can we understand the intricacies of the
collaboration of black women in epistemic thinking in psychology? Are they visible in
the mapping of the field? How can we observe the realities that present themselves in
the sense of the memory of Brazilian psychology and important female authors in the
field? This essay is the result of a conference presented in April 2023 at the Oralities
and Kitembo group of the Master's and Doctoral Programs at the Fluminense Federal

1
Psicóloga, Psicanalista, Pós doutora pelo IMAF/EHESS – Instituto dos Mundos Africanos da Escola de
Altos Estudos em Ciências Sociais/Paris-França, Supervisora clínica em psicanálise e relações étnicas e
raciais na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Docente permanente do Mestrado em Relações
Étnicas e Contemporaneidade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Líder do Grupo de
Pesquisa NEPPINS/CNPQ, Centro de Ciências da Saúde. Mam’etu no Nzo Lemba Tateamoxicongo-
Tumba Junssara. Email: regina@ufrb.edu.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3720-0922

Revista da ABPN • v. 16, Edição Especial / Setembro • 2023


University at a meeting of the Psychology and Racial Relations Working Group. The
reception it received suggested that it be published in the dossier of this journal.
Key words: Psychology; Memory; Black Epistemology; Black Women, Virginia
Bicudo

LA FUNDACIÓN DE LA PROFESIÓN DE PSICÓLOGO A TRAVÉS DE LA


OBRA DE UNA CIENTÍFICA NEGRA: VIRGÍNIA LEONE BICUDO
Resumen: ¿Qué papel desempeñó Virginia Bicudo, una científica negra, en la
fundación de la ciencia y la profesión de la psicología? ¿Cómo podemos entender los
entresijos de la colaboración de las mujeres negras en el pensamiento epistémico de la
psicología? ¿Son visibles en la cartografía del campo? ¿Cómo podemos observar las
realidades que se presentan en el sentido de la memoria de la psicología brasileña y de
autoras importantes en el campo? Este ensayo es el resultado de una conferencia
presentada en abril de 2023 en el grupo Oralidades y Kitembo del Programa de Maestría
y Doctorado de la Universidad Federal Fluminense, en una reunión del Grupo de
Trabajo Psicología y Relaciones Raciales. La acogida que tuvo sugirió su publicación
en el dossier de esta revista.
Palabras clave: Psicología; Memoria; Epistemología Negra; Mujeres Negras; Virgínia
Bicudo

LA FUNDACIÓN DE LA PSICOLOGÍA COMO CIENCIA Y PROFESIÓN A


TRAVÉS DE LA OBRA DE UNA CIENTÍFICA NEGRA: VIRGÍNIA LEONE
BICUDO
Résumé: Quel rôle Virginia Bicudo, une scientifique noire, a-t-elle joué dans la
fondation de la science et de la profession de psychologue ? Comment pouvons-nous
comprendre les subtilités de la collaboration des femmes noires dans la pensée
épistémique en psychologie ? Sont-elles visibles dans la cartographie du domaine ?
Comment pouvons-nous observer les réalités qui se présentent dans le sens de la
mémoire de la psychologie brésilienne et des auteurs féminins importants dans le
domaine ? Cet essai est le résultat d'une conférence présentée en avril 2023 au groupe
Oralities et Kitembo du Programme de Master et de Doctorat de l'Université Fédérale
Fluminense lors d'une réunion du Groupe de Travail Psychologie et Relations Raciales.
L'accueil qui lui a été réservé a suggéré sa publication dans le dossier de cette revue.
Mots clés : Psychologie ; Mémoire ; Épistémologie Noire ; Femmes Noires; Virgínia
Bicudo.

INTRODUÇÃO

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A psicologia opera como um campo do conhecimento destituído da presença de
cientistas negras. Seria real isto?

As produções de pesquisadores da psicologia a partir deste século, observam que


mulheres negras foram importantes pensadoras para o avanço no campo psicológico no
Brasil.

Considero a mais importante delas a pensadora negra Virgínia Leone Bicudo.

Nesta comunicação, falarei de Virgínia como cientista e personalidade negra


responsável por galgar a ciência psicológica em patamares de exercício profissional.

Ela foi capaz de dar à ciência psicológica o estatuto de profissão. No entanto


podemos perguntar: Porquê seu apagamento foi feito? Quais as implicações disso para a
ciência psicológica?

Observando as produções de novos cientistas da psicologia, notadamente do


campo da psicologia e relações raciais, é visível uma gama crescente de inscrições
importantes para o campo nos últimos anos.

As palavras de Neusa Souza reservam um ensinamento importante sobre como


organizou-se para ser quem foi. Para ser quem era. Ela disse: Uma das formas de
exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo (SOUZA, 1982).

No mesmo sentido, estudos da psicologia em relações raciais indicam a


necessidade de organizar a condição humana a partir do ato criativo.

Os autores dos campos epistêmicos da psicologia e também da psicologia e


relações étnicas -raciais em geral partiram de suas experiências para aprofundar temas
de interesse científico.

Freud, segundo Peter Gay (2000), formulou suas teorias a partir dos enredos de
sua condição cultural e familiar.

Neste sentido o ato criativo, a produção intelectual passaria necessariamente


pela condição de entender-se como sujeito de si mesmo.

Capaz de emancipar-se das amarras individuais e coletivas.

Criar a si mesmo. O primeiro ato criativo da condição humana é a capacidade


de criar a si mesmo. Para criar o mundo e agir autonomamente sobre ele, é

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preciso primeiro criar a si mesmo. Haver-se consigo e com sua realidade.
Nascer em um território específico e em uma localidade é estar sustentado
inevitavelmente por estas condições (OLIVEIRA, 2017, p.27)

Neste sentido, dialogaremos sobre como se tornou possível a construção da


ciência profissão psicologia a partir do legado de uma de suas representantes mais
ilustres: Virginia Leone Bicudo.

Ela nasceu em 1910 e faleceu em 2003 e era filha de um casal interracial em São
Paulo, Teófilo Bicudo – nascido pela lei do ventre livre, filho de uma escrava alforriada
(avó de Virgínia). E sua mãe, Joana Leone, era brasileira filha de imigrantes italianos
(OLIVEIRA, 2019)

Não aprofundaremos os dados biográficos sobre Virgínia Leone Bicudo. Mas


ressaltaremos as inscrições que tornam possível observar como o percurso de uma
pensadora negra possibilitou o desenvolvimento de um campo do conhecimento que se
inscreve como a psicologia que temos hoje em dia no Brasil.

Além disso, nesta observação, refletiremos de modo indireto e de certo modo


vago, sobre o papel dos pesquisadores em psicologia e relações étnico raciais.

Como eles tem realizado seus estudos e apontamentos de pesquisa. São capazes
de favorecer a consolidação de nomes importantes no campo ou figuram como
produtores de conhecimento que realizam a clássica hegemonia do poder presente no
campo da produção do conhecimento?

Após discutirmos por caminhos que mesclam as considerações sobre o percurso


da cientista negra Virgínia Leone Bicudo e as inscrições da psicologia, seus produtores
e as relações de poder, procuramos finalizar em reflexões que apontam para o
compromisso dos pesquisadores atuais para com aqueles que fundaram um campo de
discussão.

No caso de Virgínia, ela abre um campo de discussão em relações raciais no


Brasil. Embora ela estivesse vinculada ao Projeto Unesco, na década de 50, ela foi a
primeira a desenvolver uma pesquisa sobre a temática da subjetividade e as relações
raciais, racismo e preconceito.

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Ela foi mulher. Era uma mulher negra e seu ambiente social era eminentemente
branco e hegemonicamente masculino.

Em termos mundiais Virginia é importante; pois ela escreverá no Brasil a


primeira pesquisa sobre relações raciais. E este pioneirismo vem de uma cientista
mulher e negra. Seu pensamento crítico sobre o escravismo e colonialismo é anterior a
Frantz Fanon. Ela formaliza sua pesquisa em 1945, enquanto Fanon escreve somente
em 1952. Diaspóricos, eles são contemporâneos, mas Virgínia é sete anos anterior aos
escritos de Fanon.

Porque faz sentido dizer que Virgínia é globalmente importante? Porque o


Brasil desde 1900 no centro do mundo, em Londres na Europa, acompanha a
apresentação dos estudos no início do século passado sobre escravismo, raça e ciência
no I Congresso Internacional das Raças (MAIO; SANTOS, 2006). O Brasil será, o foco
do mundo, porque concentrou o maior número de escravizados e posteriormente, com
os estudos culturais e os eflúvios da Semana de Arte Moderna em São Paulo, 1922, o
Brasil consolidará sua visibilidade internacional culminando com os financiamentos do
Projeto Unesco no qual Virgínia será convidada a participar.

Fanon estava na Europa, e as perspectivas europeias no final dos anos quarenta


rejeitou os escritos acadêmicos de Fanon. Virgínia, brasileira antenada no mundo que o
Brasil inspirava, cunhou primeiramente as considerações subjetivas e emocionais das
relações racializadas entre brancos e negros, ex-escravizados e população branca na
cidade de São Paulo. Sua pesquisa foi reconhecida formalmente, embora retirada do
conjunto produtivo dos cientistas (brancos e homens) do Projeto Unesco, na sua
segunda publicação organizada por Florestan Fernandes (GOMES, 2017).

Neste itinerário, mesclamos sentidos psicológicos de outros produtores de


ciência. Construído em primeira pessoa, o texto mistura as ocorrências da vida de
Virgínia Leone Bicudo com imbricações da atualidade em psicologia. Buscando
visibilizar as redes que tecem o protagonismo das mulheres negras nas ciências
psicológicas.

Ao final do texto procuramos entender qual é o papel dos pesquisadores jovens


na atualidade, refletindo sobre as realidades de fazer ciência em psicologia e relações
raciais.

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CAMINHOS PERCORRIDOS

Escolher pensar sobre Virgínia é conversar sobre passagens, trânsitos e


deslocamentos.

Haveria sinais mais emblemáticos para nós, povos da diáspora, que estes
devaneios aos ventos.

Tudo é e pode ser profano, insólito e pouco provável quando se trata de


legitimar nossos corpos no espaço e nos lugares do mundo.

O insólito nos assalta e nos transformamos em fantasmas.

Seja porque nos assassinam na negação de nossos feitos na história e aniquilam


a memória de nossas construções civilizatórios; seja porque o epistemicídio coincide
também com a fratura calculada de nossos corpos materializados até o escarnio total de
nossa carne.

Sangramos porque nossos corpos não são visíveis sem atrocidades. São
martirizados sem piedade, porque subsistem a lógica sistêmica do sustento de tantos
outros corpos que sugam o trabalho e o labor de nossa existência que se perpetua nos
fios do sangue derramado que se unem em todos os lamentos deste e de outros planos
visíveis e invisíveis como a presença constante do sagrado em todas as coisas.

Nestes cantos nos confins dos mundos, de todos os mundos, nós permanecemos
e ecoamos. Mesmo quando parecemos mudos, cantamos.

Memória.

Ela persiste no silêncio do fazer de nossas almas que se encarnam


incansavelmente por nossas mãos que trabalham. Elas sempre trabalham, ainda que
silenciosamente. Vorazmente ou com lentidão.

Nossas mãos e corpos não param.

A nós não é permitido o parar. O estagnar.

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É sina de África Diáspora andar. Marchamos. Transformamos, Deslocamos e
organizamos as redenções das correntes que aprisionaram nossos antepassados e
também nos aprisionam.

Porém o trabalho não é único, individualizado. Nós, que somos ou pertencemos


à Diáspora precisamos entoar o canto. Nós cantamos. Não o fazemos sozinhos. As
canções são eternas e como a magia dos mantras dos feiticeiros elas tem um propósito.

Elas transgridem a violência imposta à vida. À barbárie.

Ela transgride a violência do silencio opressor e conivente.

Ela transborda de vida, de prazer e de desejo. Sendo o motor edificante de


nossos processos civilizatórios na contribuição com as necessidades humanas do mundo
dos seres que habitam o planeta.

Desde sempre, nossos corpos violados e mortos são grãos. Sementes que
fecundam a terra.

Desde sempre, desde quando foram lançados nas profundezas do mar sagrado
porque não conseguiram chegar até o continente denominado América pelos europeus,
mas reconhecido com Abyala entre as civilizações e povos originários destas terras que
hoje pisamos.

Tornou-se também nossa Casa.

Viemos de todos os lugares. Estamos em todos os lugares.

Meu deslocamento, assim como o de todos nós, é fronteiriço. Vim da terra de


Neusa Santos Souza, nascida em Cachoeira, no Recôncavo da Bahia.

Na cidade urbana, de grande desenvolvimento e visibilidade, Neusa foi acolhida.


Edificou sua esfera, seu patrimônio, seu legado civilizatório (2020, OLIVEIRA).

O Rio de Janeiro, Terra que se tornou de Neusa da Bahia, eu venho cantar a


memória de uma grande e velha amiga de todas nós. Ela é negra, mulher e cientista
como Neusa, das questões subjetivas do povo preto, do território diáspora.

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Venho do Recôncavo da Bahia, mas antes, venho em minha origem carnal, de
São Paulo, da capital, da terra Mãe Solo de Virgínia Leone Bicudo. Ela que foi solteira,
mãe e pai de muitos filhos. Da psicologia brasileira.

Virgínia construiu, como todo corpo da diáspora negra faz e constrói. Nós
construímos, como Neusa, eu reverencio Virgínia, como uma das mães fundadoras da
ciência profissão psicologia (2022, OLIVEIRA).

Porquê?

O percurso de Virgínia, de Dona Virgínia como diz a Professora negra Janaína


Damaceno Gomes (2021) da USP, com Kabengele Munanga, agora na UERJ, em sua
brilhante tese sobre os segredos desta psicanalista negra e pioneira no estudo sobre
relações étnico raciais e produções subjetivas, portanto psicologia, é factível de uma
senhora, mulher e jovem negra da diáspora que ancorou as bases da psicologia
brasileira.

Entre muitas mulheres negras importantes no campo das construções


civilizatórias da humanidade, falarei de Virgínia.

Ela é a nossa escolhida estrela para hoje.

Pode parecer ultrapassado trazer Virgínia quando alguns poucos falam dela com
propriedade.

Mas é importante centralizá-la na ordem da história de seu corpo negro que


marchando tenazmente construiu como a Rainha Nzinga, a perpetuação de seu reino: a
ciência e profissão da psicóloga. Sim, ela é conhecida como psicanalista (OLIVEIRA,
2019). Assim como Neusa. Assim como Lélia Gonzáles, que embora formada em
História e Geografia, compilou em sua obra a importância da abordagem afetiva e
emocional do contexto de produção de subjetividade do negro brasileiro (OLIVEIRA,
2019). Nos movimentos sociais negros no interior da produção acadêmica da
universidade brasileira. Lélia foi pioneira, como Virgínia, a trazer esta narrativa
civilizatória reflexiva no contexto da academia brasileira sobre aspectos psíquicos e
subjetivos da população negra. Estamos falando de Virgínia, mas ela se enreda com
outras mulheres negras que tecem rendas na academia.

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O canto feiticeiro, africano e indígena, destas mulheres, Virgínia Bicudo, Lélia
Gonzalez e Neusa Santos Souza, reafirma o legado fundamental da cosmologia
das civilizações negra e indígena: amor ao sagrado feminino e materno;
reverência ao ancestral; o valor incondicional da vida em comunidade; a
integragão cosmológica da comunicação entre a vida e a morte (princípio negro
africano); e a existência harmônica e respeitosa com a “mãe natureza”
(principio civilizacional indígena) (OLIVEIRA, 2019, p.202).

Neste cerne, a psicologia é fundada com a contribuição consistente de Virgínia


no contexto paulista. Porque, antes mesmo da psicologia se tornar uma profissão com
formação específica no universo acadêmico, Virgínia ensinava as bases dos processos
psicológicos a partir de uma leitura psicanalítica no contexto da Universidade de São
Paulo. Ela foi a mulher que deu à luz a psicologia no Brasil na medida em que atuou
nas escolas a partir da aliança com a saúde. Ela foi a Mamãe Oxum, a Yabá dos
pequeninos, que antes de falarem precisam permanecer no ninho. Ela foi a mamãezinha
da profissão psicologia que estava por assim se criar. Ela acolheu sua pequena, deu a
Luz com muito brilho, e alçou o cuidado generoso como mãos que embalam carinho.

Como sanitarista – visitadora sanitária – ela orientou pais, professoras, observou


as relações das famílias com o contexto social em termos de saúde mental, interessando-
se pela psicanálise para aprimorar seu trabalho. Neste período, ela também realizava
palestras em rádios no programa Excelsior e escrevia colunas informativas sobre saúde
mental, crianças e orientação às mães e famílias (GOMES, 2013).

Estou falando de Virgínia pelas lentes dos escritos não só da antropóloga negra
Doutora Janaína Damaceno Gomes, mas também a partir do livro do psicólogo branco
Dr. Jorge Luís Ferreira Abraão que compilou um escrito pioneiro sobre a contribuição
de Virgínia para a construção histórica da psicologia no Brasil e personagem de
expressão para a memória histórica da cultura brasileira (ABRÃO, 2010).

No mesmo sentido, acrescento as narrativas destes dois estudiosos sobre a vida


de Virgínia Bicudo, as minhas releituras do que compreendo do cenário da psicologia
no estado de São Paulo na atuação com crianças e escola.

Minhas considerações partem das vivências como psicoterapeuta formada em


três anos no curso teórico prático no INEF – Instituto de Estudos e Orientação da
Família, o qual mantinha estreita ligação com psicanalistas da Sociedade Brasileira de

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Psicanálise de São Paulo (instituição que Virgínia ajudou a fundar e a consolidar) por
vários anos, incluindo os anos de minha formação entre 1994 a 1997 e atuação durante
a luta antimanicomial brasileira para o surgimento e implantação da Lei da Reforma
Psiquiátrica no Brasil nos anos de 1996 a 2001 no hospital Psiquiátrico do Juquery Dr.
Franco da Rocha e para a implantação do primeiro CAPS do Brasil na Rua Itapeva em
São Paulo.

O decurso temporal observa que os fazeres pelo corpo - mãos que tecem - de
Virgínia em sua atuação pelos territórios da São Paulo dos anos quarenta, exercendo o
cuidado em saúde mental com crianças e orientação de mães e famílias, foram
emblemáticos para preparar o nascimento de uma ciência psicológica como profissão no
Brasil.

Ela não só marca o território paulista brasileiro em sua marcha – mulher negra –
mas ela transcende o território paulista e brasileiro, na medida em que busca saídas – ela
é encurralada por homens brancos, elitizados, médicos, quando é hostilizada no seu
fazer cuidar da saúde mental destes seres. Pessoas que a criticavam porque ela exercia o
cuidado em saúde mental sem o diploma de médica. Embora aceita como psicanalista
(primeira psicanalista didática) e apoiada por Durval Marcondes, ela foi rejeitada como
profissional da saúde mental pelo conjunto hegemônico dos profissionais médicos de
seu tempo e contexto – homens e brancos. “Acusada de charlatã, ela não fica cativa e
submissa. Ela se levanta, rompe com a ordem vigente e vai para Londres, aprimorar
seus conhecimentos” (GOMES, 2013).

O bordado de suas mãos e o percurso de seu conhecimento – marchas de


mulheres negras – plantam as sementes preciosas para o surgimento e fundação da
psicologia como profissão. Como Oxum, ela traz no ventre semente. A Luz em sua
cabeça. Preciosa cabeça. Ori.

Observo o itinerário de Virgínia e seus assentamentos da psicologia como


profissão não só pela dimensão da formação em psicanálise e as referências no conjunto
dos psicanalistas que pertencem a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo que
transitam pelo INEF – Instituto de Estudos e Orientação da Família, e analistas com os
quais realizei análise e supervisões clínicas, mas também pelos trabalhos de pesquisa
com crianças negras, família e sociedade, juventude negra, periferia e acesso a saúde

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mental no mestrado e doutorado. Incluindo a isso a saúde mental da população negra e
da diáspora africana no pós-doutorado. Os materiais de pesquisa (entrevistas e
observações etnográficas e plantões de atendimento psicológico em favelas paulistas –
Icaraí – e no Instituto Minkoviska em Paris) do doutorado e pós-doutorado realizaram-
se com populações negras do contexto brasileiro e francês. Nestes estudos, observamos
como os corpos negros se encontram, produzem epistemes e como Virgínia em seu
tempo de marcha, produziu as inscrições para fundar a profissão psicologia. Nos
identificamos com Virgínia. Com sua marcha, como as Yabás, que produzem ações com
muita fertilidade e brilho.

As mulheres negras se vinculam por suas redes eternas de pactos em favor da


vida. E nesta marcha, encontro Virgínia não por que a procurei. Mas porque
simplesmente mulheres negras se encontram. É a canção, a voz serena e os ventos das
Yabás que nos afastam e nos aproximam. Para que possamos cumprir como o legado
que nos cabe que é favorecer os processos civilizatórios da humanidade. Entregar os
bebês ao mundo, somente depois de estarem férteis o suficiente para caminhar e falar
sozinhos sob os domínios não mais de Oxum, mas de Yemanjá. A mãe do
discernimento, da psicologia, e de todas as cabeças sempre zelando pela Paz, seu
esposo, Oxalá.

Nesta narrativa, peço licença para observar que as composições epistêmicas da


população negra na ciência brasileira, caminham por passos dos fazeres dos nossos pés
e das nossas mãos – corpos epistêmicos.

Virgínia Bicudo, atuou como visitadora psiquiátrica da Seção de Higiene Mental


Escolar desde a fundação deste serviço de assistência a crianças com problemas de
aprendizagem (ABRÃO, 2010).

Virgínia formou-se professora no elitizado Colégio Caetano de Campos, na


Praça da República em São Paulo, atual Secretaria de Estado da Educação entre os anos
de 1926 e 1931, formou-se professora e em 1932, ingressou no Instituto de Higiene,
com finalidade de fazer o curso de Educadora Sanitária. Um curso de nível médio com
duração de um ano destinado a promover a difusão de ideias relativas à saúde pública
cuja finalidade era habilitar as professoras primárias a atuarem diretamente com os pais

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e alunos matriculados nas escolas primárias para a transmissão de princípios e valores
relativos a uma educação em saúde física e mental saudável (ABRAÃO, 2010).

Nesta lógica, narro as assertivas que nos instam a observar o deslocamento dos
corpos negros, das mulheres negras que escrevem, trabalham e fazem o bem viver de
toda gente. Preocupadas, como negras, mulheres e mães, com o bem estar de seus filhos
e os filhos da civilização humana.

No ofício de Virgínia, não por acaso, ela teve acesso como professora ao
advento e princípios da Escola Nova (ABRAÃO, 2010), que surgiu a partir das ideias
de Anísio Teixeira, baiano de Caetité, que após estudar em Salvador e posteriormente
no Rio de Janeiro, construiu um modelo de educação onde a democracia fosse
imperativa. Foi secretário de Educação na Bahia, criou a Escola Parque, que foi um
centro de educação e cultura na Bahia que unia educação formal com aulas de música,
arte, teatro, marcenaria e inúmeras atividades.

O relato abaixo denota isto:

Eu fui o único dos meus irmãos a fazer escola parque. Porque eu era o mais
novo. Então, mesmo sendo difícil para meus pais, foi possível. Porque os outros
já podiam ajudar no sustento da casa. E eu fui poupado. Pude estudar. Isto fez
toda diferença na minha vida. Um outro mundo se apresentou pra mim. As aulas
de artes, a biblioteca, os livros. Era algo inimaginável pra mim. Acho que isso
foi a condição que me permitiu traduzir este mudo (Hildebrando Cerqueira, 65,
homem negro, Soteropolitano, naturalizado francês, em 12/06/2016)
Nomes de grande projeção nacional e internacional como os baianos Gil e
Caetano também sofreram influência destas formações escolares no contexto da Bahia

Virgínia havia frequentado as aulas no Caetano de Campos, local onde as ideias


de Anísio Teixeira, eram discutidas.

Anísio Teixeira era um nordestino, baiano. Ele foi um intelectual conhecido


mundialmente por sua atuação na UNESCO e a ele o contexto acadêmico brasileiro
deve a criação da CAPES (BIBLIOTECA VIRTUAL, 2023).

E no mesmo sentido, Juliano Moreira, era um médico baiano de Salvador, que


foi preceptor de grandes nomes da psiquiatria brasileira com o Dr. Franco da Rocha
(OLIVEIRA, 2022) que mais tarde viria a influenciar grandemente Durval Marcondes
desde o início de sua vida acadêmica na Faculdade de Medicina de São Paulo e
interessou-se pela psicanálise (ABRAÃO, 2010).

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Ao encontrar Bilú, uma mulher negra de 68 anos de idade, chegando em minha
sala de atendimento psicológico na II Colônia Psiquiátrica do Hospital do Juquery –
Hospital Dr. Franco da Rocha, eu não sabia que conheceria os passos e percursos de
Virgínia. Não sabia, porque ao observar Bilu, sua fala e seus medos, suas vinculações
com a instituição psiquiátrica me fez perceber o meu entorno. Porque Bilu? Porque uma
menina de 12 anos teria sido encarcerada em um hospício. Porque tantas iguais, com
prontuários imensos e sem registro de familiares como a negra Bilu.

No meu primeiro campo de trabalho – o hospital psiquiátrico – eu senti


necessidade de apoio epistêmico. Porque tantas meninas mulheres negras adoecidas no
hospital psiquiátrico. E então, com o tempo eu conheceria Virgínia. A luz de Dona
Virgínia.

Nesta busca por epistemologias, além de dedicadas leituras e formação em


psicanálise me embrenhei pela fazenda do hospital psiquiátrico. Observando os grandes
jardins as construções em estilo alemão e inglês. No ano de 1994 eu era uma jovem
garota psicóloga. Aflita em cumprir com uma ação que trouxesse conforto para as
pessoas. Mas como? Eu não sabia que ali, onde eu aportava, as pessoas e o lugar me
trariam os conhecimentos sobre a psicanálise e a psiquiatria de Juliano Moreira.

Moreira, homem negro, pai da psiquiatria no Brasil, conterrâneo de Neusa


Santos Souza, mulher negra, médica psiquiatra e psicanalista, foi quem deu as primeiras
lições e leituras de psicanálise ao Dr. Francisco Franco da Rocha, mestre do médico
Durval Marcondes (OLIVEIRA, 2022). Este, Durval Marcondes, foi de grande
importância na formação e trocas de fundação da psicologia e psicanálise no estado de
São Paulo e no Brasil com o apoio e contribuições da Dra. Virgínia Eugênio Bicudo.
Ela foi a mulher, a mulher solo, que entre os homens, sintetizou os ensinamentos de
Anísio Teixeira, a partir da formação do curso normal da “escola nova” e o curso de
Educadora Sanitária.

Virgínia operou o chão das escolas. Orientou pais, alunos e professores,


trabalhou como visitadora sanitária, inscreveu-se para aprender psicanálise com o aceite
de Durval Marcondes que começava a organizar na cidade de São Paulo, atividades de
estudos psicanalíticos (ABRAÃO, 2010).

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A aproximação de Virgínia de Durval Marcondes deu-se por interesse de
Virgínia, que no curso Normal teve acesso ao curso de Psicologia e Pedagogia.

Observe-se que o ensino de Psicologia existia enquanto disciplina de


conhecimento vinculado a educação de crianças. A prática educativa. E na época,
década de 20, não existia formalmente o curso de psicologia. A profissão de psicóloga
no Brasil.

O ensino da disciplina psicologia era transmitido como vinculado a prática


pedagógica e educativa na escola normal. E também na Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras da USP (ABRÃO, 2010).

A psicanálise foi primeiramente difundida no Brasil por Juliano Moreira, desde


sua formação médica no início do século 20, e atuação como professor na Faculdade de
Medicina na Bahia, juntamente com Raimundo Nina Rodrigues, seu opositor que em
1900, no mesmo ano em que Freud lança o livro de fundação da psicanálise - A
interpretação dos sonhos – defende a tese de que negros e africanos são inferiores
intelectualmente. E que o Brasil estaria fadado ao fracasso social, cultural e econômico
em função da presença deste elemento étnico (OLIVIERA, 2022).

Juliano Moreira, negro, em oposição a Nina Rodrigues, branco, em 1900, será


bravamente ator de inúmeros feitos inovadores na psiquiatria: antes mesmo de Basaglia,
ele retira as grades do hospital psiquiátrico, estabelece o regime de clínicas médicas e
laboratórios dentro do hospital – o qual antes era apenas asilo de pessoas gravemente
adoecidas, promove a abertura do hospital para pessoas com quadros de adoecimento
físico, com anomalias diversas, inicia a formação de enfermeiras, pois antes de Juliano
Moreira, o médico negro, não havia uma formação específica para as pessoas que
ajudavam no cuidado com os doentes, e nesse princípio eram as mulheres negras, as ex-
escravizadas, que faziam este trabalho – o cuidado com os doentes (OLIVEIIRA, 2022).

A profissão das enfermeiras – profissão do cuidado em saúde - começou com as


mulheres negras – as Yabás - e com Juliano Moreira no Brasil. Juliano, também foi um
protagonista fundamental como mentor e articulador da primeira legislação para
promover um benefício financeiro aos pacientes – pessoas – gravemente adoecidas
mentalmente (ODA, 2011)

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Ora, se estamos elegendo Virgínia Leone Bicudo para observar a fundação da
profissão de psicologia por uma mulher negra, porque estamos nos referindo a todos
estes nomes masculinos como o médico negro baiano Juliano Moreira, Dr. Franco da
Rocha, Durval Marcondes e o nordestino baiano Anísio Teixeira, criador da CAPES?

Simplesmente porque foi Virgínia, a única mulher que adentrou este time de
gigantes no contexto da ciência médica, da educação e da saúde no Brasil para realizar
uma psicologia implicada com as classes populares, no princípio democrático da
inspiração da Escola Nova que ela bebeu na fonte do seu curso Normal no Caetano de
Campos. Igualmente, em seu percurso de sanitarista, também inspiração do contexto
histórico da urbanização da cidade de São Paulo, o desenvolvimento do campo da saúde
e do acesso a uma orientação para a prevenção e o cuidado com a saúde de crianças
através da orientação de pais e professores, Virgínia vai se interessar pela psicanálise,
como foi inaugurada por Juliano Moreira no Brasil, quando foi preceptor de muitos
importantes médicos psiquiatras como Dr. Francisco Franco da Rocha que será
inspiração para o amigo da Dra. Virginia, o médico Durval Marcondes.

Virginia e Juliano estão ligados em suas andanças de ser diáspora. Em suas


marchas civilizatórias. Corpos negros que fazem. Esquecidos pelas memórias dos
tempos, que falam de Franco da Rocha como o inaugurador da psicanálise no Brasil. No
entanto, seu mestre, Juliano Moreira, viajou o mundo e trouxe os ensinamentos de seu
contemporâneo Sigmund Freud, para seus alunos novatos como Franco da Rocha.

Nesta sina negra, diaspórica dos corpos circulares que não morrem mesmo
quando são enterrados, o que um corpo negro não realiza, outros corpos negros da
diáspora realizarão. É a sina. Seja ausente na memória ou não. Em nosso caso hoje,
tentamos restituir a memória. De Virgínia. Cativa e oprimida que é na negação de seu
nome e glória nos seus feitos para e pela psicologia.

Simples assim: Na diáspora negra, na verdadeira diáspora, não existe a


unilateralidade. Ou o individualismo eurocêntrico e egoísta do indivíduo sábio e genial
exclusivo como o maestro da orquestra que é a referência única da expressão sonora de
todos os instrumentos.

Ao contrário. A composição se faz no coletivo da festa. No suor do corpo que


canta, compõe e dança. Faz a festa. A canção que entoa, dança. O instrumento que toca,

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não é passivo ou obediente ao único maestro. Ela é o improviso que vira técnica como o
samba, o soul, o blues, o rock, o jazz, o hip hop, a bossa nova. A voz da diáspora na
ação de seus corpos é o canto de uma música, de várias músicas que se organiza na
participação total de todas as vozes e instrumentos coletivamente. Se a orquestra
obedece ao maestro, a música negra diáspora que marcha, ela rompe com a hierarquia
exclusivista e verticalizada. Ela ecoa no plano do ritmo compartilhado na composição
dos arranjos que não emanam um maestro, mas a versatilidade dos artistas para
promover o ritmo da música que mesmo quando é lamento e dor, é também arte e,
portanto, festa. Civilização que rompe submetendo a barbárie.

Assim são os feitos da diáspora negra. O corpo fala. A marcha se engaja. Há o


processo criativo diante da narrativa musical, os arranjos são compostos em várias
mãos, a improvisação não é o descompromisso com a técnica e a irresponsabilidade
com as regras. Mas é ao contrário a observação fidedigna de que todos os corpos são
responsáveis pela narrativa musical. Todos devem tocar e compor uma melodia inédita
onde apenas se saberá a audição quando ela for tocada em múltiplos corpos, em coro de
vozes, em múltiplas mãos.

O que estou dizendo é que do território da Bahia vem Juliano, que inspira, por
Franco da Rocha, Durval, de onde vem, pela diáspora negra, Virgínia. E Neusa também
bebe na fonte de Juliano, seu conterrâneo baiano.

Parece que o fio que circunda o ciclo da vida encontra seu próprio começo.

Na busca por implicar-se socialmente nos seus feitos com as pessoas, Virginia
buscará em 1936 o curso superior de Ciências Sociais na Escola Livre de Sociologia e
Política. Ela mantém a inspiração dos princípios da escola novista, na mesma inclinação
das ideias iluministas que pensa o desenvolvimento da sociedade a partir dos princípios
de desenvolvimento da ciência e acesso à educação formal.

Neste período 1936, Virgínia fará contato, com a psicanálise, a partir da


disciplina de Psicologia Social (Abrão, 2010), no curso de graduação em Ciências
Sociais na Escola Livre de Sociologia e Política.

Após sua graduação ela começará o interesse pela psicanálise, procura Durval
Marcondes e inicia sua análise com a primeira psicanalista no Brasil a alemã Adelheid
Lucy Koch, formada pelo instituto de Berlim (ABRÃO). Não é por acaso: a mulher

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negra Virgínia será sua primeira paciente. Será em verdade a primeira analista didata.
Foram efetivamente as mulheres negra e branca que fundaram a psicologia e a
psicanálise no Brasil2.

A amizade profissional de Virgínia com Durval resultará em um convite para


que esta participe como professora de um curso de especialização em psicanálise na
Faculdade de Filosofia Ciências e letras da USP.

Antes de embarcar para Londres, Virgínia terá uma participação neste curso e
colabora com o fortalecimento para que fosse criado no quadro da Faculdade de
Filosofia da USP o curso de Psicologia em 1955. Ela também será professora na Escola
de Sociologia e Política durante seu processo formativo em psicanálise e pesquisadora
das relações étnico raciais em São Paulo.

Importante ressaltar que o período de formação em Psicanálise, dá-se em


paralelo a formação em pesquisadora do importante Projeto Unesco. Legado que coloca
abaixo o mito da democracia racial brasileira. Homens todos. Brancos, também todos.
Negra e feminina, apenas a jovem menina, moça, singela, Virgínia.

Virgínia é uma mulher operária, filha de uma classe operária, que trabalha, que
necessita ganhar o seu sustento. Filha de um homem negro, nascido da lei do ventre
livre.

Virgínia será indomável. Embora dócil, não será resignada.

Ela estuda e se aprimora, ao mesmo tempo que trabalha. E como mãe, de seus
irmãos e mãe, ela sozinha, assume o sustento, de todos. Abraça coletivamente a
necessidade do outro, ganha e divide o pão. Ela tem de berço os valores dos africanos da
diáspora.

Seu movimento de buscar competência profissional e conhecimento está


intimamente ligado a força produtiva de seu trabalho para sustentar a si e a sua família.
Após a morte do pai, Virginia tornou-se o arrimo da família.

2
Sob este aspecto consideramos que a análise didata de Virginia Bicudo produziu profissionais capazes
de exercer a psicanálise nos moldes recomendados pela IPA, na medida em que uma expressão
importante no Brasil – Adelheid Koch – realizou as aproximações com a IPA para que a primeira
instituição formal de exercício psicanalítico no Brasil, a SBPS – Sociedade Brasileira de Psicanálise de São
Paulo – pudesse nascer a partir da formalização de seu credenciamento. Bicudo e Koch. Yabás. Mulheres
da criação.

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Assim sendo, estas palavras podem parecer pouco inusitadas e banais na vida de
uma pessoa. Virgínia era uma pessoa comum. Uma mulher do povo. Que adentrou o
campo da elite do pensamento e fez, com suas próprias mãos a operacionalização do
pensamento. Ela atendeu as crianças nas escolas e no consultório como visitadora
sanitária. Orientou pais. Professoras. Acolheu como Oxum as necessidades das crianças.
Mas também muito cuidou e se aprimorou a cuidar da cabeça de todos os que a
procuravam. Como Iemanjá, a mãe rainha de todas as cabeças, ela sustentou a sanidade
e bem estar emocional de muitos.

Aprimorou a compreensão do psiquismo humano através da busca pelo


aperfeiçoamento psicanalítico ao mesmo tempo em que desenvolvia sua pesquisa sobre
atitudes raciais entre pretos e mulatos em são Paulo, nos anos quarenta.

Observamos que seu trabalho funda a psicologia. Ajuda a fundar. Porque ela faz
a síntese do trabalho clínico de não médicos para uma escuta do sofrimento psíquico.
Ela realiza o trabalho. Ela encarna a psicologia porque realiza-a através da formação
pelo campo educativo – Educação da Escola Normal – e pela psicanálise.

Criativamente, como é a vigorosa música negra que surge das vozes das
mulheres negras, nos navios negreiros, como Christiane Taubira, mulher negra francesa,
ex-ministra da justiça na França, Virgínia fez o que Durval não pode fazer porque era
médico. Ela cunhou a psicologia brasileira. Introduziu uma disciplina prática, a
profissão da psicóloga, em seu fazer através da síntese promoção e prevenção à saúde
física e mental em diálogo com a educação. Educação em saúde. Como também será
constituída a formação para o profissional do SUS e do SUAS. Uma abordagem social e
territorial.

Assim sempre fez Virgínia: saúde mental e questões sociais.

O papel prevalente do ensino de psicologia no curso de filosofia com Virgínia


ganha uma competência social ainda mais pragmática. Ela congrega a capacidade de
realizar um ofício curativo, psicoterapêutico, de uma psicanálise implicada com as
questões sociais de seu tempo. Não só na estrutura do contexto brasileiro, mas na
estrutura do contexto mundial na acepção daquilo que constituiu sua participação no
projeto Unesco.

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Na mesma perspectiva, repetimos: ela sai do país, quando é violentamente
agredida pelos homens brancos da medicina psiquiátrica.

Homens não sabem ser mulher. Homens não são Mulheres.

Diante de uma mulher negra, diaspórica Virgínia, homens brancos e poderosos


médicos a desdenham e a maltratam.

Como corpo de diáspora, ela não fica resignada. Ela levanta, reage. Ela vai em
busca do alargamento de fronteiras quando observa as restrições que seu pioneirismo
engajado com a sociedade através de seu pragmatismo incômodo diante das elites
médicas despeitadas e pouco afetas a criatividade diante da vida e da superação de
obstáculos a que os povos da diáspora e as mulheres negras estão acostumadas a
enfrentar e a vencer. A fazer e a cumprir o destino de suas prévias determinações
ancestrais.

Então, eu sei que não disse nada de extraordinário. Mas é preciso dizer o que
não se diz nunca: são as mulheres negras que fazem coisas importantes para a
humanidade. Virgínia não estava sozinha no enfrentamento da construção de uma
profissão chamada psicologia. Lygia Amaral também.

Mas foi Virgínia a protagonista que empreendeu a prática da psicanálise na


SBPSP, foi Virgínia que empreendeu a visitação sanitária para com o estudo das
ciências sociais observar as questões sociais do racismo e os impactos na psique das
pessoas negras e brancas de seu tempo. Como observa sua pesquisa finalizada em 1945,
que a permitiu participar de um grupo seleto de grande envergadura de pesquisa sobre a
sociedade brasileira e sua estrutura racista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Virgínia não só foi psicanalista. Ela foi psicóloga, agiu pensando em uma
psicologia, psicoterapia, a partir de princípios democráticos, sociais, republicanos e de
acesso a saúde e educação como as inspirações da escola nova de Anísio Teixeira.

A psicologia que infelizmente ainda estudamos – prevalentemente - é a que


elege homens e mulheres brancos e em geral pertencentes a contexto diferentes da
realidade brasileira. Sem o engajamento que brevemente esboçamos através da vida de

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Virgínia e os seus feitos de cientista mulher negra da psicologia, não é possível perceber
o valor e importância desta cientista negra para a fundação da profissão das psicólogas
no Brasil.

Ela fez com suas mãos de cientista mulher negra, o alicerce da ciência
psicológica. Junto com seus colaboradores e amigos. Ela teceu as lindas rendas da
psicologia brasileira que funda a reforma psiquiátrica no Brasil a partir do SUS, em
2001, com a presença dos Centros de Atenção Psicossocial a partir da Reforma
Psiquiátrica.

Obviamente, o protagonismo de Virgínia, como aquela que pioneiramente


marcha para promover o desenvolvimento para todos – como é a lide das mulheres
negras – é muito anterior a promulgação da constituição de 1988 que origina o SUS e o
SUAS. No entanto, é por um modelo social, fortemente calcado nas discussões sociais
de uma dialética marxista, presente nos estudos sobre o negro no Brasil durante o
Projeto Unesco, do qual Virgínia faz parte, que o modelo de atenção à saúde no Brasil
será formulado na constituição cidadã de 1988.

Neste sentido, o caminho do pensamento clínico, das amarras sociais, dos


enredos econômicos, as dimensões familiares, as estratégias de cuidado pela escuta e
orientação de mães, crianças, professoras e adultos, na clínica psicanalítica, é o sentido
da marcha, da música, da voz e dos bordados – rendas e tramas difíceis – de Virgínia.

Ela tece este enredo. Não o faz sozinha. Nunca se faz sozinha. Mulheres negras
na vida e na ciência, nunca são sozinhas. Não há solidão de mulheres negras. Talvez
torpor pelos frutos de tantas marchas serem apagados os traços de nossas pistas e
pegadas de caminhos abertos para tantos; tantos que se esquecem (?) da venturosa mão
acolhedora das mulheres negras.

Este relato de conjugação entre sentidos psíquicos – corpo e pensamentos,


memórias de Dona Virgínia, no qual meus passos de psicanalista, pesquisadora da
psicologia, participante da luta antimanicomial fortalece os movimentos políticos
sociais para a eclosão da legislação da Reforma Psiquiátrica no Brasil.

Durante os anos de trabalho no Hospital Psiquiátrico do Juquery – Dr. Franco da


Rocha, nos Lares Abrigados e na Segunda Colônia Psiquiátrica Feminina, na escola de

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educação infantil, na clínica psicológica e no campo de pesquisa científica e como
Professora.

Com a ajuda de muitas mulheres e homens, negras, negros e brancas e brancos,


além dos indígenas em minhas passagens como professora no Paraná e tantos outros foi
possível articular estes saberes profissionais da psicologia com o fazer técnico científico
da academia – universidade – de 1994 aos dias atuais. Esta trajetória – espaço, tempo
vivido, memória, permitem observar a marcha das mulheres negras – rendas e bordados
– que fortalecem, inscrevem a fundação da ciência psicológica no Brasil.

A ciência psicológica somente em 2017 realiza a formalização de um


instrumento técnico de consideração para o trabalho do psicólogo nas relações raciais.
Este instrumento, embora traga alusões e agradecimentos a Neusa Santos Souza e
Virgínia Leone Bicudo, não resgata as autoras negras na academia - mulheres negras –
que sempre marcharam para demarcar a função social e política da psicologia. Os
passos de Virgínia não veem sozinhos. Ela evidentemente é uma grande iluminada que
funda e assenta os pilares, as pedras, de uma psicologia possível para o povo brasileiro.
Implicada socialmente a partir das necessidades de sua vivência de pessoa humana.
Mulheres negras são humanas! Pesquisadora de causas e interesses sociais como a
diferença, o racismo, atitudes raciais, gênero, mães, crianças, enfim.

No contexto de meu percurso, alcanço Virgínia no território de São Paulo. No


campo psicanalítico através de professores – supervisores clínicos e analistas – da
SBPSP no INEF/SP e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, passo pela
Escola Livre de Sociologia e Política, não como aluna, mas como curiosa de como este
pedaço de chão abrigou transformações políticas importantes a partir da produção de
conhecimento ali transmitida. Na medida em que trânsito, como Virgínia, entre as
ciências sociais e a psicanálise – psicologia. Encontro as vozes, os ecos e as luzes das
minhas anciãs, mulheres negras. Mães e Irmãs. Virgínia Negra, Yabá Iansã. Virgínia
Alento. Yabá Nanã.

Neste encontro atemporal da consciência de minha vida, meu encontro mais


fortuito, é também com as vozes de Bilu e Tereza – Terezinha. Pacientes psiquiátricas
crônicas internas psiquiátricas do Juquery. Elas me levam à psicanálise. Mas a cor, a
estética negra me mostra o que os livros de psicologia nunca me disseram: os corpos

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negros são prevalentes no adoecimento emocional, nas dificuldades de manutenção da
vida. O racismo atravessa as condições totais da vida das pessoas negras. E brancas
também. Porque a psicopatologia do branco brasileiro reside no sadismo ou na frieza da
existência de humanidade diante de corpos da diferença.

A saúde mental de brancos é também afetada com a frieza, a ironia, o desejo de


subalternidade dos que não se alinham a suas formas de vida e existência.

Encontro Virgínia na pesquisa, ela vai embora em 2003. Ano em que emancipo
meu apego ao Dr. Antonio da Costa Ciampa, que de quase bacharel em direito na
Universidade de São Paulo, se torna um ícone da psicologia social brasileira em
pesquisa sobre identidade. Defendo minha dissertação sobre crianças negras, saúde
mental e psicanálise na escola no mesmo ao em que Virgínia partia.

Encontro Virgínia na saída, e em São Paulo. Mas também na Bahia, com Prof.
Silvio Yassei, que informa durante a banca de meu ingresso na UFRB, em março de
2008, informou ser ele um dos organizadores do projeto Lares abrigados do Juquery;
medida prévia para se pensar a desinternação psiquiátrica em preparação à Reforma
Psiquiátrica de 2001 através da luta do movimento antimanicomial. Lares abrigados nos
quais trabalhei. E depois minhas alunas do Paraná, pra lá levei, para contar parte desta
historia de pretos, de gente preta, de alegrias, marchas e sobrevivências psíquicas.

Ao falar de Bilú e Terezinha, mulheres negras internas, e Flor de Lis, a mais


clarinha, e Maria Luíza, a branca alemã de olhos azuis, todas internas precocemente no
Hospital Psiquiátrico do Juquery em São Paulo, Dr. Franco da Rocha, reencontro a
Bahia. O contigente negro. Majoritária África, no Brasil. A alegria e o sofrimento.

No reencontro com a Bahia, a presença de Virgínia se liga fortemente à Neusa,


de Cachoeira do Recôncavo e a indígena negra mineira Lélia Gonzáles.

Mulheres negras se encontram. Sempre se encontram. Porque nunca estão


sozinhas. Elas tecem rendas e bordados. Elas edificam com linhas. Costuras difíceis em
tempos difíceis. Elas cantam. Pra ninar meninos pequenos e moças grandes.

Como Virgínia, elas voam, de São Paulo a Londres, de São Paulo a Paris, da
Bahia para o mundo. As águas do caboclo Itapiranga, e da Jurema se misturam às águas
do mundo. Da Bahia de Todos os Santos, os tambores do mundo ecoam.

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O projeto de universidade brasileira para a psicologia no Recôncavo da Bahia
inspira bons ventos. Podemos seguir Virgínia, Neusa, específicas da psicologia. Mas
podemos também observar Lélia e Beatriz: Nascimentos... as águas fazem surgir vidas.
Vida mental que evolui de dimensões e processos civilizatórios. O fato é que mulheres
negras se encontram e transformam seus tempos. Mesmo quando o improvável é certo,
elas se encontram e nos ensinam caminhos...rotas, destinos.

CONCLUSÃO
Cientistas negras no mundo existem. Sempre existiram. E favorecem o
discernimento tecnológico e da psicologia.

Virgínia foi pioneira no fazer e exercer a profissão de psicóloga no Brasil


vinculando toda sua experiencia de educadora sanitária, professora, cientista social
fundando um modo de escutar e de ser e fazer psicologia. Protagonista da ciência e da
profissão da psicóloga.

Tecer sobre teorias e produções em psicologia e relações étnicas e raciais é


trazer a presença de corpos negros femininos. Porque visualizamos Virgínia? Assim
como ela, na psicologia brasileira, somos muitas mulheres. Negras, jovens e meninas.

Não precisaremos expor nossos corpos em nossa intimidade sacralizada pelo


legado das Yabás negras. A academia perversa, rouba os méritos de nossas falas e
feitos.

Amaldiçoam nossos nomes, ensurdecem nossa voz. Inibem nossa presença.

Sim isto é triste; mas cabe a nós, povos civilizados da diáspora conduzir nosso
legado persistente. Superar a barbárie. Ensinar metodologias de amor e respeito. Ao
menos a civilização se opera. De modo vigoroso e consistente. Este é o trabalho da
diáspora: operar para melhores deslocamentos. Vida.

Não precisamos contar do íntimo de nossas dores. Todos os humanos sentem


dores. Não somos inerentes a isso.

É da vida a dor.

Virgínia foi rica materialmente e espiritualmente, feliz, moderna, alegre,


elegante, inteligente, sábia, bonita. Yabá Ewá.

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Escreveu e realizou como uma grande cientista que foi. Em seu tempo e para
além de seu tempo. Está Viva. Elegantemente Viva! Saluba Mamãe!

Prefiro copiar os sentidos de Virgínia a partir da narrativa de uma sobrinha dela:

No dia que ela recebeu o primeiro salário a família Bicudo era muito religiosa,
muito católica, ela passou na Igreja de São Bento e rezou muito, pedindo para
Deus orientá-la sobre o que ela deveria fazer da vida dali para frente, não era
isso que ela queria para a vida dela. Quando ela chegou em casa, tinha um
ajuntamento na porta e meu avô tinha morrido. Daí ela entendeu que Deus
estava respondendo que o que ela tinha que fazer na vida era orientar os irmãos
e cuidar da mãe. Só em 1939 que ela considerou sua missão cumprida
(ABRAÃO, 2010, p.42).
A diáspora negra no fazer da ciência psicológica precisa manter-se unida.
Alimentar seus irmãos. Preocupar-se com o sustento da irmandade e do bem estar da
prole. Assim como Virgínia. Não é fácil trilhar o caminho do epistemicídio e do
desprezo que os pensadores negros são reiteradamente submetidos.

Mas Virgínia, a Dona Virgínia, protegeu os seus irmãos assumindo a guarda do


pai.

A psicologia brasileira feita por mãos negras precisa manter-se firme. Unida na
irmandade que reiteradamente a academia branca faz questão de fragmentar e obliterar.
Virgínia agregava. Virgínia unia. Virginia era também a Paz de Oxalá.

Assim convido para que fiquemos com nossas caras pretas, nossas vozes negras,
realizando os fazeres e saberes de nossa ancestralidade negra na psicologia como uma
grandiosa irmandade unida. Continuando a fazer da vida uma canção sagrada, um hino.
Uma prece, para que nossa memória de Juliano a Virgínia seja sempre viva! Uma guerra
pela Paz: Guiã, Oxaguiã, Epa Babá!

É preciso ecoar, cantar e narrar os feitos de Virgínia. Nos últimos anos, tenho
feito ecos de Virgínia no Recôncavo, para estudantes brancos e negros, sobretudo
negros, trazendo as bases da psicologia negra do Brasil.

Precisamos falar como Virgínia. Fazer a ciência entoar. Nossas vidas não são
menos dignas. Mas hoje, na academia, precisamos ultrapassar as dores e criar políticas,
realizar a crítica, sustentar a história e a memória. Demarcando a presença de
apagamentos antigos. Se apagarem nossos corpos e vozes, nada há para se temer por
isso.

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Não precisamos narrar o sangrar de nossas dores. Elas os brancos curiosamente
na academia, com fins ‘científicos’ querem escutar. Eles sempre têm o antídoto – eles
perscrutam nossa servidão. Fiquemos atentos a isso. Muitos não são nossos inimigos.
Mas a ancestralidade branca do ocidente tratou nossos avós assim. Cuidemos.

Se nos calarem, como assim um dia fizeram com Virgínia, outras falarão por
nós.

Outros e outras ecoaram por nós. Basta que tenhamos deixado pistas. Veredas,
rotas de fugas, caminhos.

Nossos corpos desaparecerão. Mas é só isso.

A diáspora não é única e exclusivista. Ela é coletiva. Plural, criativa.

Como Gomes (2013) nos alerta e questiona: o trabalho acadêmico é eivado pela
conquista de hegemonia e poder. É importante observar por quais caminhos são
operados mecanismos de esquecimentos e recuperação de trajetórias intelectuais: Quem
deve ser deixado na memória da disciplina?

Da psicologia brasileira, hoje, que o enredo negro de Virgínia prevaleça


enquanto ações e epistemes para a humanidade. Cumprindo o significado de ser
diáspora. Negritando sua presença na psicologia, garantindo a visibilidade destas
cientistas negras nos currículos.

Como cientista negra subverter a ordem do poder hegemônico. Nada fácil operar
em outra lógica.

O psicólogo compromissado com uma psicologia negra, indígena, não


hegemonicamente branca, precisa ser capaz de esvair-se de si para registrar o anúncio e
aprofundamentos de quem foi obliterado antes.

Os estudos de Virgínia e das mulheres negras da psicologia – Neusa Santos


Souza, devem ser, precisam ser negritadas pela ciência psicológica. Izildinha Batista
Nogueira ainda está aqui. Merece nosso olhar atento e atenção distinta.

Assim Virgínia fez. Quando trouxe as vozes e emoções de pessoas negras em


seus escritos. As queixas, as vozes, os medos. Ela não falou de si. Falou de seus
entrevistados. Deu voz aos marginalizados. Conferindo escuta, reflexão e busca de

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soluções para a promoção da cidadania e igualdade, através de compreensão sobre
saúde, racismo e psicologia. Não apenas interessada em espetáculo. Como parece querer
e se importar em fazer a academia devota de uma psicologia não implicada com as
epistemologias de combate do racismo, que superficialmente, sem cuidados, faz leituras
aleatórias das produções negras sem um exercício metodológico do campo da psicologia
e relações étnico raciais.

Poderia um professor universitário com mestrado e doutorado em psicologia do


trabalho ou avaliação psicológica fazer leituras aprofundadas sobre psicologia e relações
raciais? Caberia desprezar os estudos de pesquisa em psicologia e relações raciais em
dissertações e teses sobre o campo sem procurar abrir componentes curriculares
obrigatórios que se dediquem seriamente a questão no sentido formativo?

Por outro lado, pode um professor pesquisador na universidade sem uma


dissertação e tese em neurociência ou trajetória formativa próxima ao campo, com
formação em psicologia social, se atrever a fazer pesquisa e seminários em
neurociências? É admissível isto?

Mulheres negras, na academia da psicologia, devem citar e reverenciar Virgínias


e aprimorar teses memoriais de nossas ancestrais.

Esvaziar-se de si para registrar quem foi obliterado e apagado antes de nós.


Manter as pistas. As rotas de fugas. Os espelhos vivos.

Em termos explícitos: referenciar Virgínia. documentar Neusa. Citar Beatriz.


Argumentar com Lélia e escutar os conselhos de Nogueira Baptista. Promover aulas de
fundação de cientistas negras da psicologia. É a nossa obrigação.

Esvaziar-se de si para assentar os esquecidos. Produzir a memória. A saúde. O


aparelho mental. Liberar nossos antepassados do esquecimento.

A branquitude não fará isso por nós. É o veredicto: Façamos. Façamos nós.

Nosso assentamento é na linha do resgate.

No texto de Janaína Damaceno Gomes (2013, p.146) ela informa uma das
soluções propostas por Virgínia na dimensão psíquica, afetiva e emocional passível de
ser desenvolvido na clínica, no trabalho institucional e atendimento psicossocial em
psicologia e relações étnico raciais:

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[...] Concluímos que um dos meios mais indicados para o melhor
estabelecimento das relações raciais consiste em ajudar a criança a estabelecer
os laços afetivos com os pais e irmão com base no amor, ou, em outras palavras,
ajudar a criança a desenvolver a capacidade de amar e a usar a sua agressividade
em sentido construtivo (Bicudo, 1955, p. 295)

Façamos nós, pesquisadores negros da psicologia e relações raciais a implicação


do amor a nossos pais, irmãs, irmãos. Fortalecendo os laços afetivos com nossa
ancestralidade a partir de epistemologias negras. Reconhecendo-as.

Virgínia Leone Bicudo, a cientista negra, chamada aqui Mãe da Psicologia


Brasileira, é como as Yabás. Ensinam o exercício pelo amor. Capaz de superar os
infortúnios lançados nos caminhos da diáspora negra.

As Yabás sabem e nos ensinam, como Virgínia: o amor é a unidade da diáspora.


É a resistência que sobreviveu a travessia pela Kalunga Grande.

O Amor das Yabás, é a unidade representada pela família extensa, que precisa se
unir, também na academia, com disciplina, rigor e compromisso para salvaguardar
nossos conhecimentos reiteradamente ameaçados de apropriação ou apagados.

Na academia hegemonicamente branca e eurocêntrica ou estadunidense, a


unidade de pesquisadores negros e não negros das relações étnico raciais precisa ser
verídica. O exclusivismo deve ser aplacado.

Axé à Yabá que protegeu e salvaguardou Virgínia. Por Janaína, Axé as Yabás,
que pela pedagogia do amor, nos deixa pistas, rastros de caminhos, para que nossa
ancestralidade nunca termine. Se reinicie e encontre braços que nos aninhe, no colo de
Oxum, Sábia Mãezinha, que nos ensina a amar: ekodidé,

- Osetwá!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAÃO. Jorge Luís Ferreira. Virgínia Bicudo: a trajetória de uma psicanalista brasileira. Arte
e Ciência Editora: São Paulo, 2010.

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BIBLIOTECA VIRTUAL: A escola parque da Bahia – Experiência pedagógica pioneira no
Brasil – obra de projeção internacional, disponível em
http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/livro11/pagina33.htm; acesso em 23 de julho de 2023.
GOMES, Janaína Damaceno. Os Segredos de Virgínia: Estudo de Atitudes Raciais em São
Paulo (1945-1955), Tese de Doutorado em Antropologia, FFLCH USP, USP, 2013.
GOMES, Janaína Damasceno. Conferência Virtual no Curso de Psicologia (UFRB), em
13/08/2021, com base na pesquisa: Os segredos de Virgínia: Estudos de Atitudes Raciais em
São Paulo (1945-1955). Tese (Doutorado) – Departamento de Antropologia – Universidade de
São Paulo. 2013.
MAIO, Chor. SANTOS, Ricardo. Raça, Ciência e Sociedade. Fiocruz: Rio de Janeiro, 2006.
ODA, Ana Maria Galdini Raimundo Juliano Moreira e a (sua) história da assistência aos alienados
no Brasil. Revista Latino Americana de Psicopatologia Fundamental, Dez (4), vol. 11, 2014, Acesso
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Recebido em 18/08/2023
Aprovado em 18/09/ 2023

Revista da ABPN • v. 16, Edição Especial / Setembro • 2023

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