Romina Gomes. Apresentação Defesa de Doutorado
Romina Gomes. Apresentação Defesa de Doutorado
Romina Gomes. Apresentação Defesa de Doutorado
O presente trabalho teve início a partir de questões surgidas em minha prática clínica com loucos
infratores realizada no Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário – PAI-PJ, do
Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O público acompanhado por esse programa é objeto de
uma sanção penal específica, denominada medida de segurança, aplicada ao louco que
cometeu um ato caracterizado como injusto penal, pois esse ato não pode ser tomado como um
crime. De acordo com nosso direito penal vigente, para que haja crime são necessários três
elementos: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Mas, nos ilícitos cometidos por loucos, há
a exclusão da culpabilidade, o que impede de considerá-los imputáveis e, portanto, responsáveis
pelo ato. A sanção penal será então baseada na periculosidade presumida e se dirigirá não ao
ato cometido, mas à virtualidade da ação, visando o controle do que o sujeito pode vir a fazer no
futuro. A medida de segurança implica a necessidade de um tratamento compulsório por tempo
indeterminado e o processo criminal somente poderá ser extinto com a realização de uma
avaliação pericial.
A invenção do exame permitiu à psiquiatria oferecer uma resposta à pergunta sobre quem é o
criminoso, nos crimes cometidos por loucos. Com a síntese empreendida por Lombroso, a partir
das ideias de Pinel e seus discípulos, e a criação da Escola Criminal Positiva, a ideia de uma
periculosidade intrínseca ao louco foi difundida. De acordo com essa perspectiva determinista,
mecanismos de controle foram criados, visando à defesa social e à precaução contra os riscos
envolvidos na convivência com a loucura. A presunção de periculosidade, que implica atribuir ao
louco infrator um risco virtual de cometer novas infrações penais, fez surgir a ideia de um
dispositivo de controle específico, o manicômio judiciário.
A avaliação do louco infrator, desde suas origens, aponta certo embaraço do judiciário frente a
esse saber, o que conduzia frequentemente a buscar a intervenção de muitos especialistas,
como aconteceu nos casos de Henriette Cornier, Pierre Rivière, Custódio Alves Serrão, Febrônio
Índio do Brasil, e como acontece frequentemente nas avaliações realizadas nos dias atuais. No
início da prática de avaliação do louco infrator, a intervenção de vários especialistas visava
assegurar o lugar do perito junto ao aparelho judiciário. Não importava tanto o que o próprio
sujeito tinha a dizer, pois cabia ao especialista apontar se havia ou não patologia, indicando o
tratamento adequado, que sempre coincidia com a internação no asilo. Esse dado intrigante que
podemos recolher das avaliações desde os seus primórdios mostra, em última instância, a face
de ficção das ideias e conceitos envolvidos nesse modo de apreensão da loucura.
A abertura às probabilidades que se deu com o surgimento do saber estatístico aplicado aos
fenômenos aleatórios estabeleceu as condições que tornaram possível a aplicação do normal ao
homem e sua conduta. A transmissão do discurso do perigo realizada pelos peritos é, assim,
atualizada pela propagação da estatística que foi condição para o surgimento dos sistemas de
classificação dos transtornos mentais – DSM e CID –, e as escalas de avaliação de riscos, além
de um refinamento dos modos de controle como a recomendação do uso de psicotrópicos como
medida de precaução contra o perigo. As ideias do astrônomo belga Quételet foram
determinantes para a abertura dessa possibilidade, por favorecerem a transposição da
mensuração utilizada na abordagem dos fenômenos físicos para a dimensão dos atributos e
condutas do homem. Ao aplicar a curva de Gauss à medição dos atributos humanos, esse autor
concebeu a possibilidade de mensurar quaisquer características humanas, a partir do
esvaziamento de suas qualidades possibilitado pela invenção do homem médio. O homem
tornou-se, assim, contável e comparável, o que permitiu a constituição de saberes que
buscavam extrair um padrão de suas condutas, para controlá-las. Com essa possibilidade aberta
por Quételet e a teoria das correlações estatísticas estabelecida por Francis Galton, tornou-se
possível a criação de um novo modo de exercer o controle. Essa teoria possibilitou a dominação
do acaso, ao estabelecer que a variação das características transmitidas geneticamente
obedecia à lei de desvios da curva de Gauss, o que permitiu não somente explicar os fenômenos
mas também predizer o futuro para controlá-lo.
A leitura dos laudos de avaliação de cessação de periculosidade dos loucos infratores permitiu,
também, verificar que o tratamento, de acordo com a concepção dos peritos forenses, coincide
com um mecanismo de controle, ideia que já se encontrava presente na época do regime
disciplinar. Os laudos reafirmam a existência do perigo e do risco associado à presença de
sintomas psicóticos produtivos, ao uso de drogas e à psicopatia, bem como a necessidade de
seu controle. No caso do Instituto Raul Soares, os laudos reproduzem a ideia de uma gradação
do perigo, segundo as diferentes classes diagnósticas, e as classes que apontariam um perigo
mais elevado podem requerer a aplicação de escalas de avaliação de riscos.
As avaliações do manicômio judiciário, por sua vez, retratam uma resposta inteiramente
burocrática às exigências da legislação penal, e podem chegar a prescindir das falas dos
avaliados. O tratamento manicomial, de acordo com o olhar dos peritos, dispensa a dimensão
terapêutica e visa, sobretudo, a adaptação às normas, demonstrando o estabelecimento de uma
parceria com a vertente burocrática do discurso jurídico.
A leitura das avaliações periciais realizadas ao longo desta pesquisa permitiu verificar que o
saber veiculado por essa prática requer que os avaliados se reconheçam nos transtornos
diagnosticados pelos peritos e consintam com o tratamento indicado para cada transtorno. Essas
exigências podem mostrar-se, na realidade, inaplicáveis, na medida em que não é considerado o
aspecto real do sofrimento apresentado pelo sujeito, assim como as invenções singulares que
cada um pode constituir como defesa ao real.
A aplicação de escalas de avaliação de risco mostra como os enunciados podem ser
determinantes na conduta dos peritos que, ao ser orientada pela estatística e pelos desvios do
normal, assume um formato protocolar. Torna-se, assim, possível identificar um descrédito à
palavra, enquanto portadora da enunciação do sujeito, que acompanha a retirada da
responsabilidade dos psicóticos infratores, os quais são tomados como objetos a serem
controlados, pois os mecanismos de controle são dispositivos silenciadores que calam o sujeito e
não abrem lugar às suas respostas. A medicação torna-se, nesse sentido, um recurso de
controle que deve ser utilizado compulsoriamente, tendo em vista o diagnóstico, sobretudo nos
quadros considerados psicóticos.
De modo geral, o que podemos encontrar nos laudos periciais dos loucos infratores são
informações padronizadas que retratam uma coisificação do sujeito, silenciado pelos
procedimentos protocolares que dispensam suas invenções singulares. Lacan mostrou, nesse
sentido, que ao abordar o louco pela via de um discurso comandado por significantes e devido à
sua entrada na medicina geral submetida aos medicamentos, a psiquiatria abandonou a via
aberta pela relação do sujeito ao objeto voz e à função da fala. Se por um lado, isso permite aos
psiquiatras evitarem a angústia, por outro, chega-se a um impasse fundamental, pois a
burocracia dos protocolos e das avaliações deixa que o sofrimento mental singular a cada sujeito
reste sem tratamento.
Os casos apresentados na pesquisa mostram, em última instância, que cada sujeito resiste, ao
seu modo, à apreensão pelo discurso universal. Suas soluções singulares mostram o caminho
encontrado por cada um para tratar o insuportável. Sem a oferta da palavra e sem levar em
conta as possibilidades e limites de cada um, não é possível alcançar um tratamento que inclua
o real.
As contribuições de Lacan para as questões abertas pelo discurso da avaliação e pela clínica do
louco infrator foram percorridas, sobretudo a partir de suas formalizações sobre a abordagem do
louco pelo discurso psiquiátrico e as transformações da teoria ocorridas em torno das noções de
déficit e normalidade. Com a formalização da clínica empreendida por esse autor, tornou-se
possível vislumbrar, sobretudo a partir da noção de discurso, como o modo de conceber, de
pensar e de falar sobre o homem interfere em seu modo de ser e se apresentar no mundo, pois
o significante tem a potência de criação e pode fazer existir novas realidades. Os muros do
manicômio podem operar como contenção por serem discurso. Da mesma forma, os
medicamentos são discurso e faz-se necessário considerá-lo no âmbito do tratamento.
Lacan mostrou que a linguagem é um ordenamento normativo que transforma alíngua em saber.
A norma apareceu primeiro no âmbito da linguagem e orienta a busca de uma correspondência
biunívoca entre as palavras e as coisas. Mas cada ser falante utiliza uma língua própria que se
constitui a partir de aluviões dos mal-entendidos e criações que se acumulam ao longo do
tempo. Os elementos relacionados ao modo próprio a cada sujeito de lidar com a língua comum,
chamado por Lacan de alíngua, permitem recuperar sua orientação singular no real e oferecer
um tratamento ao insuportável. Alíngua incide sobre o corpo pela via do encontro contingente,
inesperado, sem correspondência a qualquer saber prévio. Esse encontro traumático designa um
ponto em que o saber falta e requer sempre uma invenção. Todo ser falante responde ao real
pela via de uma invenção.