Dom Pantero Volume2 - O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero Volume2 - O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero Volume2 - O Palhaço Tetrafônico
D P
om antero
no Palco dos Pecadores
Romance de
D P
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no Palco dos Pecadores
Livro II
Copyright © 2017 Ilumiara Ariano Suassuna
ISBN: 9788520932988
Posfácio
Ricardo Barberena 98 1
Airesiana Brasileira
em Lá‑Maior
Prelúdio
O
Rapsodo
Agonizante
O Rapsodo Agonizante
Epístola de Santo Antero Schabino, Apóstolo
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Epígrafe
“Um Poeta deve morrer, mas não sua Musa. Esteja eu vivo
ou morto, meu Canto continuará atingindo os outros. E nada pode
desaparecer deste Mundo no dia da minha Despedida final.”
Sérgio Paradjanov
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Dedicatória
Este Prelúdio é dedicado a Isabel de Andrade Lima Suas-
suna, Diogo Ardaillon Simões, Ester e Anaís Suassuna Simões;
e foi composto em memória de Maria das Neves Dantas Villar e
Joaquim Duarte Dantas.
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O Rapsodo Agonizante
no Camarim dos Presságios
Adágio Evocativo
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S ibila
Moda, Turismo & Lazer
Igarassu, 20 de Março de 2014
23 de Abril de 2016
Amigos:
E
screvo a Vocês como se celebrasse um ritual religioso no
Palco do Circo‑Teatro Savedra. Para isso, vesti a roupa
negra‑e‑vermelha que herdei do meu Tio, Padrinho e Mestre,
Antero Schabino. Pendurei ao pescoço o Colar‑com‑Medalhão e
sentei‑me na Cadeira que outrora pertenceu, no Colégio de Olinda,
a Antônio Vieyra: com uma tábua colocada de través sobre seus
braços, pode ela servir de trono ao Rei, de palco ao Poeta, de pica-
deiro ao Palhaço e de púlpito ao Profeta, garantindo‑me assim que
Dom Pantero do Espírito Santo, Encenador e Encorado‑polifônico
d’A Ilumiara, passa a integrar aquela Áurea‑Catena da qual seu
primeiro ocupante sem dúvida participava.
Para ser exato, porém, devo dizer que neste momento eu
me encontro num Gabinete, oculto entre as moradas da Casa do
Engenho Coral, situada na Ilumiara Cantapedra, em São Lourenço
da Mata. Nela, Guilherme Jaúna filialmente me acolhe de vez em
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dona Clarabela
A meu ver, essa interpretação sobre o bordado de Penélope
é machista, primária e mal‑urdida. A ela eu objeto em primeiro
lugar que a Rainha, largada por Ulisses e deixada só em Ítaca por
anos infindáveis, tinha todo o direito de procurar um novo ma-
rido (assim como fez Ana Emília Ribeiro ao ser abandonada por
Euclydes da Cunha).
Em segundo lugar, somente se atribui significado tão su-
perficial ao bordado de Penélope porque ela era Mulher. Na verda-
de, o que se empreendia com ele era uma Viagem‑decifratória, tão
importante e tão carregada de significado quanto a de Dante em
seu Poema ou a de Cervantes em sua Novela. Era a tentativa de en-
contrar o Castelo e nele penetrar, vencendo todas as dificuldades
para, afinal, em sua 7ª Morada, começar‑se a decifração do Enigma
anunciado pela Vulva feminina.
Era isso, então, o que Penélope procurava, ao bordar du-
rante o dia. E quando, à noite, desmanchava parte do trabalho, era
porque descobrira, no que tecera, algum erro de interpretação.
Somente assim, também, é que se pode entender o sentido
da grande Tapeçaria criada, aos poucos, por Eliza e suas filhas: era
ela a recriação, em pano, d’A Divina Viagem, a expressão plástica
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Dom Pantero
A Ilumiara é, portanto, uma Confissão‑heroica, uma
Odisseia embuçada nas teias de uma grande Tapeçaria, na qual se
representam, inclusive, cenas de luta e sangrentas emboscadas.
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Dom Pantero
Além disso, no processo por assim dizer “complicatório”
aqui adotado existe outra vantagem: com ele, a sagrada Rabeviola
que é a Língua Portuguesa vai aparecer nas Cartas como um ins-
trumento a mais de beleza na festa do Espetáculo. Principalmente
para quem sabe que Cervantes considerava o Português como a lín-
gua mais sonora e musical do Mundo: apta, portanto, a transformar
A Ilumiara num Palco, onde as Personas‑Dramáticas e Máscaras
‑Coregais poderão jogar, brincar, chorar e improvisar à vontade em
sua condição de Velhos, Pastoras, Capitães, Pícaros, Cantadores,
Quengos, Quengas e Palhaços que, diante do Público, sabem tanger,
com total liberdade, a genial Viorrabeca da nossa Língua.
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Dom Pantero
Para que Vocês bem entendam o que se passou no Circo
‑Teatro Savedra no dia 9 de Outubro de 2000, devo avançar alguns
traços biográficos de José Fausto Martins, o jovem Delegado de
Taperoá.
Fausto era de Campina Grande, mas durante algum tempo
morara em nossa Cidade, com o objetivo de obter graduação na
Universidade Popular Taperoaense (onde foi meu aluno, no Curso
de Letras). Desde muito moço, começara a se interessar pelo
problema da culpa e do crime nas ações humanas, recortando e
guardando as notícias que sobre isso eram publicadas nos Jornais.
Entrara na Polícia Civil; e, nesta condição, ainda em Campina
Grande, publicara um artigo intitulado Crime e Romance Policial.
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ouvira, mas que havia ressoado na noite escura, nas trevas e no frio,
no Riacho formado pelo úmido desgelo, enquanto o vento gemia.”
Dom Pantero
Mostrei ainda a Fausto que, além de trágico como Sófocles,
Dostoiévski às vezes era também cômico e humorístico como
Cervantes, o que se podia ver n’Os Demônios, principalmente por
meio daquele “dom quixote” comovente e grotesco que é Estêvão
Trofimovitch Verkovenski. Disse‑lhe que na cena em que Estêvão
foge de Casa — fuga na qual conduz ao peito aquela “novela de
cavalaria” que, para ele, era o Evangelho —, Dostoiévski profetica-
mente antevira e narrara a fuga e a morte de Tolstói, que (também
conduzindo o Evangelho numa mochila de Peregrino e morrendo
abandonado numa estação de trem) tentara, com essa morte
quixotesca, vencer a dilaceração que sempre o humilhara, entre o
ascetismo e a pobreza que pregava e a vida de grão‑senhor que o
cercava em Iasnaia‑Poliana.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Marcelo Rebelo
“A Matriz de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de
Taperoá, local sagrado que só devia ser ambiente de paz e harmo‑
nia, serviu ontem de cenário a um crime brutal e bárbaro: Patrícia
Alves dos Santos, menina de apenas 12 anos e que encantava a todos
por sua beleza e mansidão, foi covardemente estuprada e morta na
Sacristia daquela Igreja.
“A monstruosidade aconteceu por volta das 18 horas; e o
Vigário, Padre Manuel, foi acusado pelos familiares de Patrícia de,
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Albano Cervonegro
Ladra o Cão, a Serpente, o Cego feio, a Fera cega, esse terrível
Cão. Ele instila o Veneno, e seu ladrido de sangue, medo, pus e dana‑
ção, tenta manchar as pedras do meu Reino, com seu rosnar de fogo
e maldição.
Dom Pantero
Tal foi o crime que abalou nossa pacata e pequena Cidade,
no dia em que se completavam 103 anos da destruição do Arraial
de Canudos; na semana que assinalava os 30 anos da morte de meu
irmão Mauro e os 70 da de meu Tio, João Sotero, e de meu Pai, João
Canuto; e às vésperas da abertura do Simpósio que eu planejara
com tanto cuidado. E quem, dele, primeiro me deu notícia foi um
Escultor, Severino de Oliveira Barros, que usava o nome‑artístico
de Biu Santeiro. Era filho do velho Sacristão, Marcos Tebano, e,
como nós, fazia parte do Movimento Armorial. Infelizmente, ele já
começara a ser dominado pela bebida, que depois viria quase a
incapacitá‑lo para o exercício de sua Arte.
Eu era tocado pela beleza das pequenas Esculturas que ele
fazia em Pedra‑calcária e entre as quais comecei a escolher algu-
mas que ele reproduzia em ponto maior e em Granito — o que só
era possível nos momentos em que a embriaguez não lhe tornava
as mãos trêmulas demais.
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Biu Santeiro
“O senhor já soube do que aconteceu? Aquilo foi a Besta
Fouva, a Besta Ladradora, manchando e matando a inocência! Não
fui eu: porque eu bebo, mas não sou nem ladrão, nem tarado, nem
assassino, nem maconheiro!”
Dom Pantero
Ao dizer isso, jogou‑se ao chão e, esticado, sustendo‑se
apenas nas mãos e nas pontas dos pés, por 3 vezes tocou com a
testa o pó da terra — “uma vez pelo Pai, uma pelo Filho e outra pelo
Espírito Santo”, como me explicou.
Depois, ergueu‑se com dificuldade, cruzou o Jardim e veio
para o Terraço, postando‑se junto a mim, de chapéu na mão, como
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
era seu hábito; e, quando falou de novo, foi tão perto que, por seu
hálito, deu para sentir que ele bebera, muito e há pouco tempo:
Biu Santeiro
“Eu me joguei no chão porque, para mim, é São Francisco no
Céu e o senhor na Terra! A sombra do Ser: quem descobre o Segredo
que há na Imensidade? Eu não me esqueço de Deus um só momento,
porque a Vida eterna mora em mim.
“O Povo, por aí, vive querendo me levar na graça porque eu
bebo. Mas eu tiro essas coisas de letra; e até escrevi sobre isso um
Poema lindo, que dediquei ao senhor e que é assim: — Por desprezo,
tornei‑me Mascate de Anedotas. Vergasta, sumária régia;
ordinária, presumida desdita do Arlequim. Imbecil! Por que
tão sutil? Pobre coração‑de‑pedra, sem risos, esférico, qual
um Guizo.”
Dom Pantero
Eu estava espantado porque, apesar de conhecer o modo
de falar do Escultor, naquele dia ele estava ainda mais confuso e
complicado do que habitualmente. O Poema fora composto contra
“o coração‑de‑pedra” de um intelectual da rua, um homem metido
a engraçado e que vivia zombando de Biu Santeiro, sem descon-
fiar de que era por desprezo e por convicção de sua qualidade de
Artista que o Escultor consentia em ser visto apenas como “um
Mascate de Anedotas”.
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Biu Santeiro
“As folhas secas da sedução. Desceu a Cortina e não vi mais
nada — lá, onde o Viço nasce, onde cresce a solidão e sonha a Garça:
o resto, o Som reúne. Sigo a linha das Conchas. O Sol, as estrelas, a
Lua, a escuridão. Reais, Espelhos! Fundem‑se as Pedras, rotas: beco
sem saída é o endereço das Musas.”
Dom Pantero
O verso “onde cresce a solidão e sonha a Garça” eu já conhe-
cia: reaparecera ali, mas pertencia a outro poema de “Tupan Sete”;
fora usando tal verso como Mote que meu irmão Adriel compu-
sera o Soneto que o tornara suspeito aos Órgãos de Segurança do
Regime Militar; ao contrário do que julgáramos, tinham descon-
fiado de que, no Soneto, “lá” era o Sertão, colocado mais a salvo,
e “aqui” era o Recife, inçado de Espiões e à mercê de torturas e
assassinatos.
Mas, na noite daquele 5 de Outubro de 2000, Biu Santeiro
continuou:
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Biu Santeiro
“É como lhe digo, foi a Besta. O Anjo não é perigo, mas a Besta
acaba com qualquer um: acaba com o senhor, quanto mais com Biu
Santeiro! Está ouvindo esses latidos? É ela, na sacristia da Igreja!
Estou ficando mouco e doido! O Povo diz por aí que é por causa da
bebida. Mas não é não, são esses latidos; e eu só vou me livrar deles
no dia em que fizer, na Pedra, a escultura da Besta.”
Dom Pantero
Ao ouvir estas palavras, confesso que estremeci, mesmo
sem saber ainda por que Biu Santeiro estava tão aterrorizado.
Estremeci porque, quando estudávamos no Colégio, nosso Tio,
Antero Schabino, nos levara a tomar conhecimento da Besta Fouva,
da Besta Ladradora que aparece n’A Demanda do Santo Graal.
Entretanto, naquela noite, sem fazer qualquer transição
entre o que dissera e o que ia acrescentar, Biu Santeiro, assim que
falou na esperança de exorcizar a Besta por meio da Escultura, er-
gueu em minha direção uma velha Revista‑de‑Modas, perdida no
meio dos papéis que trazia: estava aberta numa página onde havia
algumas Moças que se tinham deixado fotografar quase nuas, para
fazer propaganda de roupas de dormir.
Biu Santeiro, que fora abandonado pela Mulher, tinha se
deixado possuir por um certo sentimento de hostilidade contra
todas as Mulheres. Apesar disso, tinha uma espécie de obsessão
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Biu Santeiro
“O senhor está vendo? As que estão sérias olham pra gente
desse jeito porque querem dar! E as que estão rindo, estão mangan‑
do do sangue de Cristo na cruz!
“Outro dia, ouvi o Padre Manuel dizer que no Evangelho está
escrito: ‘Toda carne verá a salvação de Deus.’ Depois da Missa, fui
falar com ele. Perguntei se até a carne dos Pecadores — como eu e as
Mulheres das revistas — ia também, um dia, ver ‘a salvação de Deus’.
Padre Manuel disse que a misericórdia de Deus é tão grande que, se eu
e elas nos arrependêssemos, iríamos ver ‘a salvação de Deus’.
“Por mim, não entendo: e os que se arrependem e pecam
de novo, como eu? A única esperança que tenho é porque sei: por
maiores que sejam meus pecados, nunca hei de ver a cólera do
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Dom Pantero
Então, tirou do bolso um velho recorte de jornal, amassado,
amarelecido pelo Tempo; e leu para mim o texto que aí vai:
O Grão‑Duque
Reflexão religiosa, insana e metafísica em Dó‑Menor
Biu Santeiro
“Declaro, na mais mística de todas as misérias, que as refe‑
rências feitas ao Todo‑Poderoso em meu nome se incluem entre as
inúmeras calúnias verdes que os antigos apelidavam Navios.
“As rubras distorções sinceras, que um dia me habitaram,
agora se tornam cada vez mais persistentes e me desdizem de todo e
qualquer ideário de felicidade.
“A força dos Padres reside na tortura da consciência, por
desterros voluntários, em que se notam formigas de todas as Nações,
em conspiradoras Viagens.
“Entretanto, não me é possível despertar a cólera do Grão
‑Duque imerso em sua Cinza branca — tão alto e tão tímido, que
ninguém (e nenhum Cavalo) será capaz de destroná‑lo.”
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Dom Pantero
Biu Santeiro ia, talvez, continuar. Mas foi nesse momento
que Bruno Alves dos Santos e Natércio Santana chegaram à minha
Casa para comunicar‑me a morte de Patrícia. Chorando muito, os
dois me contaram o fato estarrecedor que acabara de acontecer, es-
clarecendo que não se sabia ainda quem era o assassino. Algumas
pessoas suspeitavam de Valter, por sua perturbação e por ter sido
o primeiro a encontrar o corpo de Patrícia. Mas eles defendiam o
Eletricista, afirmando que não se devia incriminar ninguém com
base em suposições tão inconsistentes como aquelas.
Ao tomar conhecimento de tudo, lembrei‑me imediata-
mente do terrível choque que sentira ao ver, no Recife, um pobre
adolescente atropelado. Teria uns 16 anos e, segundo se falava
no local, pouco antes estava felicíssimo por ter recebido, de um
Tio menos pobre do que o Pai, uma bicicleta que lhe permitiria,
afinal, assumir um modesto emprego de Entregador. Aquela era a
primeira ocasião em que ia à rua nela: saíra e, a dois quarteirões
de sua casa, fora atropelado por um Carro em disparada. Eu tivera
a pouca sorte de passar logo depois no local do acidente e meu
coração se confrangeu ante a juventude do morto e a pobreza de
suas roupas. Sentia‑me dominado por uma pesada sensação de
culpa por ter tido o direito de viver tanto, em comparação com ele;
mas sobretudo pelas diferenças de classe que dele nos separavam
— ele, de um lado, e, do outro, eu e o dono do Carro que o matara
(um “filho de rico” imbecil, que se sentia no direito de andar às
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Auro Schabino
Existia dentro de mim uma pergunta que me atormentava
em todos os momentos de minha vida: será que o sonho de Profetas
como São João Batista e Trótski estaria sempre condenado a,
primeiro, brutalizar‑se, e depois anemizar‑se, aviltar‑se e por fim
desaparecer? Seria sempre tragado pelos que acham natural a exis‑
tência desse mundo de baixeza e fraude em que Damas e Senhores
bem alimentados e pretensamente elegantes olham com naturali‑
dade, quando não com desprezo, para aqueles “Animais” que eram
“os Miseráveis”, como os chamava Victor Hugo? Estes, por seu lado,
em ocasionais explosões de revolta contra a feiura‑e‑vulgaridade
capitalista, às vezes estraçalhavam os ricos e seus cúmplices; e até
se despedaçavam entre si, brutalizados pela cólera, pela demência
e pela embriaguez a que se entregavam para fugir ao sofrimento, à
injustiça e ao desespero.
Adriel Soares
E mais: do ponto de vista social e político, para lutar contra
a injustiça, teríamos que, forçosamente, nos aliar a guilhotinadores,
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Dom Pantero
O corpo e a Bicicleta estavam contorcidos e machucados
pelo impacto do Carro em disparada. E o que mais me chocava
eram os pés do morto, descalços, sujos, pálidos, tortos, iluminados
pelo Sol poente e pousados sobre o chão de cimento, num imenso
e irreparável abandono.
Mas, ali, pelo menos era de um “acidente” que se tratava,
e os superficiais podiam inventar, para ele, alguma explicação
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Dom Pantero
Camus tinha escrito que “o único problema filosófico real‑
mente sério era o do Suicídio”. Mas estava enganado: o Suicídio era
apenas uma das faces do problema maior — o do Mal, da morte
e do sofrimento humano, que Leandro Gomes de Barros tão ma-
gistralmente formulara com suas perguntas. Aquela era a questão
central de todas as Religiões, de todas as Filosofias. Era a pergunta
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Era mais ainda, a meu ver: o problema não era só político
e social. Enquanto houvesse aquelas outras perguntas, ainda mais
terríveis, sobre o significado da Vida, sobre o mistério da Morte,
do mal e do sofrimento humano, Livros em que elas fossem pelo
menos recolocadas a uma nova luz teriam um papel a representar
no Espetáculo doloroso e grotesco, cômico e trágico, da existên-
cia humana; e, com o choro dilacerado a envolver tudo isso, de
uma parte; com o “galope do Sonho” e o “Riso a cavalo” abrindo,
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Dístico
Variação sobre o Tema d’O Cavaleiro e a Morte
Albano Cervonegro
Sob o sol deste Pasto‑Incendiado, montado para sempre num
Cavalo que a Morte lhe arreou, vê‑se, aqui, quem, na vida, bravo,
ardente e indeciso sonhou.
Pelas cordas‑de‑prata da Viola, os cantares‑de‑sangue e o
doido riso de seu Povo cantou. Foi dono da palavra de seu Tempo,
Cavaleiro da gesta‑sertaneja, Vaqueiro e caçador.
Se morreu moço e em sangue, teve tempo de governar seus
pastos e rebanhos, e a feiosa Velhice jamais o degradou.
Glória, portanto, à Morte e a suas garras, pois, ao sagrá‑lo
assim, da vida ao meio, do Desprezo o salvou: poupou‑lhe a Cinza
triste, a decadência, gravou sua grandeza em Pedra, a fogo, e assim
a conservou.
Dom Pantero
Naquela noite, diante dos Murais, rezei ao Cristo, a Nossa
Senhora, a Santo Inácio e às 3 Santas de minha especial devoção.
Pedi que intercedessem junto a Deus pelos famintos, injustiçados e
sofredores do Mundo inteiro — especialmente pelos da Iarandara
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Na noite da morte de Patrícia, depois de repetir com a ima-
gem do Mosaico o beijo piedoso do personagem de Dumas, pedi ao
Pai uma fé que se sobrepusesse a qualquer dúvida; ao Filho, uma
esperança para além de qualquer desespero; e ao Espírito Santo,
um amor que, de coração limpo, me colocasse acima de qualquer
ira, cólera ou ideia de vingança. Pedi a Santa Madalena que obti-
vesse do Cristo o perdão dos meus pecados, das minhas faltas, das
minhas omissões e contradições. A Santa Teresa e Santo Inácio,
Escritores, que interviessem junto a Deus para que o Simpósio
tivesse êxito; e, acabado ele, que A Ilumiara fosse escrita a partir
de seus Anais, numa forma à altura daquilo que meu Povo merecia,
que meu Pai sonhara e que meu Tio Antero exigira de mim em seu
leito de morte. A Santa Rita de Cássia pedi que intercedesse por
mim, por Eliza, por seus filhos, genros, noras e netos — isto é, por
aqueles que, depois da morte de Adriel, eu adotara como minha
Família. Rezei por nossos vivos e nossos mortos — bisavós, avós,
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Albano Cervonegro
Votaste o sangue à Terra, com seus Frutos, e ele, teu Coração
ferido e só, se ressente do Lume dissipado, cujo canto te chama à
Cal e ao Pó. Ao som mortal, rebrilha o Lampadário, na passagem do
Sono para o Sol.
Dom Pantero
Em nenhum momento da minha vida deixava eu de ter
aguda consciência da loucura do Mundo, tão incerto; da falta de
sentido e firmeza de seus alicerces; e do pesadelo da Vida escura
— torvelinho enigmático e torto, dentro do qual, sem nos consul-
tarem, cada um de nós era um dia arremessado:
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Mas, de outra parte, garantidos pela Coroada, nós — im-
pelidos pelas águas do Córrego, pelas imagens em claro‑escuro da
Lanterna, pela Cadência musical, dançarina e teatral do Espetáculo,
pelos reflexos do Espelho e pela rabeca da Sabedoria — em-
preenderíamos nossa tentativa de conferir significado e brilho ao
torvo espetáculo do Mundo; e o Simpósio era o caminho indica-
do para nos retirar da condição de Espectros errantes e cegos, a
debater‑nos por entre os pelos da Fera insana do Universo, para,
transformado o Palco também em trincheira, nos dar ocasião de
entrar na luta em favor dos injustiçados com as únicas armas de
que dispúnhamos: assegurado pela proteção da Misericordiosa, eu
tinha esperança de retificar “os desconcertos do Mundo”, nem que
fosse apenas naquele Castelo‑de‑Sombras que era o Circo‑de‑Cine
do Teatro Savedra.
Isto me dava a confiança de permanecer animoso, pelo
menos enquanto durasse o Espetáculo. Onde, no Mundo, no Brasil,
em nosso Povo e nos outros, houvesse algo de luminoso e belo, eu
o acentuaria. O que existisse de feio, monstruoso ou sombrio, seria
transfigurado pela luz do Espelho, de modo a ser salvo pela “luz
que dançasse sobre a harmonia dos contrários”. E até onde nada
existisse, eu me sentia no direito de inventar uma realidade que
repovoasse a aridez monótona e sem brilho do Mundo — o que
faria de modo a que também ela fosse mergulhada no esplendo-
roso claro‑escuro do Palco. No final das contas, comparados ao
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Dom Pantero
De certa maneira, eu poderia concordar com Mathias Aires
quanto ao resto. Mas acabarem na memória dos Homens até as ca-
dências da Prosa e as harmonias do Verso com as quais A Ilumiara
seria composta? Desfazer‑se em pó até mesmo o granito do Marco
e das outras Esculturas implantadas na Pedra do Reino em home-
nagem ao Aleijadinho?
Nunca! Que ele encaminhasse noutra direção sua voz agou-
renta, carregada de chamas e trevas barrocas; porque, de minha
parte, eu tinha consciência de que, comigo, estava acontecendo
algo parecido com aquilo que sucedera ao grande Poeta popular
Leandro Gomes de Barros (o mesmo que se atrevera a interrogar
Deus daquela maneira):
Dom Pantero
Lembrava‑me do dia em que Altino, Auro, Adriel e eu, con-
frangidos, nos tínhamos visto diante da Fortaleza de Pau Amarelo,
profundamente estragada pelo tempo e pelos vândalos que, igno-
rando seu significado para o Brasil, para a América Latina e para
a Rainha do Meio‑Dia, tinham permitido que ela chegasse a tal
estado e até contribuído para isso.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Altino Sotero
Aqui, neste Forte de Pau Amarelo, eu sonho o Brasil em seu
sangue de Brasa. Reforço o alicerce de pedra da Casa e, ao sol do
Sertão, este Azul desmantelo. Que eu canto o Paudarco, o paudarco
amarelo, velando as entradas da Serra e do Mar. E a minha Viola se
põe a esturrar, ferida no sangue do Povo que é pobre, que é grande,
que é raça, que é Onça, que é nobre, cantando Galope na beira do Mar.
Adriel Soares
Eu moldo o Sertão em teu sol, Litoral, e o verde da Mata flo‑
rada do Engenho é outro dos Reinos que forjo e que tenho, bebendo,
do Mar, estes verdes e o Sal. Eu sopro meu Fogo na trompa de Cal
e imito os estralos do Vento a queimar. No som dos Canhões vejo o
Bronze sagrar os Fortes de pedra da Guerra Holandesa e a Negra
‑e‑Vermelha da Nau Portuguesa, cantando Galope na beira do Mar.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Auro Schabino
Porque, no Sertão, as 3 Onças sinadas — a Negra, a Vermelha
e a Branca‑da‑Moura — cruzaram seus sangues‑de‑ferro, em tesou‑
ra, parindo, no Sol, a Fiel, a Pintada. Castanha‑da‑parda, vermelha
e malhada, seu pelo é dos ouros da Rosa lunar. Nos olhos acesos, a
Brasa solar. E eu, sangue do Sol de uma Onça abrasada, celebro esta
Raça castanha e sagrada, cantando Galope na beira do Mar.
Dom Pantero
No Galope, meus irmãos tinham escrito Paudarco assim,
numa letra diferente, porque, além de ser uma Árvore, Paudarco
era o nome do Engenho onde nascera Augusto dos Anjos. E Adriel
fizera questão de compor a segunda estrofe porque, ao casar‑se
com sua amada Eliza, o Engenho Coral tornara‑se, além do Sertão,
um outro dos seus “Reinos”; para todos nós, o Forte de Pau Amarelo
era um local‑sagrado de resistência contra os inimigos da Rainha
do Meio‑Dia (coisa que eu também esperava em Deus fossem o
Simpósio e A Ilumiara).
De fato, no Circo, com o “Riso a cavalo” e o “galope do
Sonho”, com a energia e o fulgor daquela estranha alegria de
origem obscura que me possuía ao entrar no Palco — e que
era ainda mais surpreendente no Velho em que me transfor-
mara —, era com as danças, as falas, as músicas e as projeções
da minha Lanterna que eu mais uma vez encenaria o Espetácu
lo, retomando, no Pasto‑Incendiado do Circo‑Teatro Savedra, a
Grande‑Marcha‑de‑Coluna‑Aventurosa que Antônio Conselheiro,
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Foi na manhã de 9 de Outubro de 2000 que, no Circo‑Teatro
Savedra da Universidade Popular Taperoaense — Unipopt —, se
instalou o Simpósio Quaterna, base e fundamento destas Cartas
‑Espetaculosas.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Das bandas da Cadeia‑Nova chegava até eles o eco dos
latidos de um Cachorro que, acompanhado pelos uivos de uma
Cainçalha ensandecida, parecia ter se escondido entre os muros do
Cemitério‑Velho para nos ameaçar a todos. Era, de novo, como se,
sob o comando da Besta Fouva, os Cães possessos de Lautréamont
se tivessem soltado para nos acometer, contaminando‑nos ao ins-
tilar em nosso sangue a peçonha funesta de seu Ladrido agoniento:
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Descendo dos ônibus ao som de tais latidos, os participantes
do Simpósio admiraram os 7 Prédios que, naquele ano, ainda com-
punham o conjunto da Universidade Popular Taperoaense, com as
fachadas recobertas por Mosaicos cujo autor era Guilherme Jaúna.
Espantaram‑se, sobretudo, com a Torre‑Central, onde ficava o
Circo‑Teatro Savedra, porque ali, pendurados em cordas, estavam
os Atores e Bailarinos do Grupo Arraial: pareciam Espantalhos,
fantasmas ou enforcados que, pelo impulso do vento e dos calca-
nhares empurrados na parede, dançassem um simulacro da pobre
tragédia do Homem.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Todas as paredes internas eram recobertas por Murais
semelhantes aos da fachada. Mas não feitos em mosaico: eram
pintados em Pedras lisas e chatas, encravadas na alvenaria; assim
mostravam logo o que eram — Variações de formas rupestres pe-
tropintadas ou insculpidas nos Lajedos da hoje também destruída
Ilumiara Jaúna; e tinham sido recriadas para ali pelos irmãos de
Guilherme — Alexandre e Manuel Savedra Jaúna.
Por outro lado, como Castelo que foi, a Unipopt era uma
Variação da Catedral profeticamente levantada por Santo Antônio
Conselheiro no Arraial de Canudos; Igreja que, naquele nosso
Velho Testamento que é Os Sertões, Euclydes da Cunha genial-
mente reconstruiu em forma literária, se bem que jamais tenha
avaliado a importância real da pessoa, dos atos e das palavras do
Profeta, nem compreendido o verdadeiro significado daquilo que
ele próprio estava dizendo:
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
A Igreja de Canudos
Primeira Pedra‑Angular do Castelo do Povo Brasileiro
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Como se pode ver pelas Estilogravuras que vão sendo
incluídas nesta Carta, no Castelo‑de‑Rua que era a Unipopt, pro-
curáramos — Quaderna primeiro, e eu depois — fundir a Catedral
de Canudos, descrita por Euclydes da Cunha, com a Viagem e os
Castelos pintados pelo grande Artista‑popular brasileiro e es-
quizofrênico que foi Carlos Pertuis (escolhido para figurar aqui
porque o Livro que meu Tio, Mestre e Padrinho, Aribál Saldanha,
pretendia escrever quando morreu tinha por título A Divina
Viagem).
E vejam o que é o gênio, nobres Cavaleiros e belas Damas:
Euclydes da Cunha nunca entendeu a beleza da Catedral de
Canudos. Formado pelo Brasil oficial, jamais percebeu que aquilo
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
que julgava feio era apenas uma categoria brutal e nova de Beleza
(aliás muito parecida com a do estranho Livro que, depois de vê‑la,
brotou de seu sangue iluminoso, profético, alucinado e sombrio).
Além disso, perturbado por ela, não notou que a Igreja de
Canudos nada tinha de gótica: era, sim, aparentada com as români‑
cas; não havia, lá, ogiva nenhuma, pois todos os seus portais eram
arredondados em cima; e até aquela “forma dúbia de Catedral e
Fortaleza” era a mesma que se encontra em Igrejas românicas
ibéricas, como, entre outras, a Sé Velha de Coimbra e a de Lisboa.
No entanto, quaisquer que sejam os “erros” de Os Sertões
— e assim como acontece com as esculturas em pedra d’O
Aleijadinho —, as obras “corretas” dos outros empalidecem diante
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Como Vocês podem avaliar, o Dáimone que possuía Antônio
Conselheiro em Canudos era muito parecido com o de Euclydes da
Cunha e com aquele que nos incendeia a imaginação e o sangue,
quando, ao reencetar, a cada vez, a leitura de Os Sertões, repetimos
sua Viagem, percorrendo seus Tabuleiros e serranias e tomando
parte em seus combates e emboscadas, arrebatados pela mesma
paixão do Profeta que narrou a saga do Conselheiro e que, em sua
cegueira de gênio, via em tudo aquilo apenas a possessão “da pró‑
pria desordem do espírito delirante”.
Albano Cervonegro
Salva‑se, assim, o Sol de todo o Reino, no pajeú‑de‑pedra
do Sertão. Gemem os Catolés, estralam Balas, passa, ferido, El‑Rei
Sebastião, “suja de sangue e pó a real fronte”, mas vivo noutro Rei
— meu Capitão.
Dom Pantero
Foi àquele Castelo que os participantes do Simpósio chega-
ram na manhã de 9 de Outubro de 2000, sendo então conduzidos
através do Labirinto enigmático, metafísico e profético da Unipopt.
Falo assim porque, tanto em sua feição interior e espiritual quanto
na estrutura exterior e arquitetônica, cada um dos 7 Casarões da
nossa Universidade naquele tempo ainda era uma Morada.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Albano Cervonegro
À noite, a estranha luz sobre a Cidade, mas, de dia, o Sertão
— Grial vermelho. Vaga, em busca do Gral, minh’alma errante, pro‑
curando acertar o Desacerto. Tento, em vão, penetrar neste Castelo,
e o sono do Jaguar late no Espelho.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Então, vencida a noite‑escura do Corredor — mas sem que
ninguém tivesse sequer vislumbrado o Pássaro —, os participantes
do Simpósio seguiram pelo caminho inverso até a 7ª Morada. De tal
modo, percorrendo o Castelo‑de‑Rua que era a Unipopt, estavam
realizando uma espécie de paráfrase das Incursões que, a pé e por
ásperos caminhos, eu empreendia ao Castelo‑de‑Serra d’A Ilumiara.
Outra coisa: diferentemente do que acontecia com o
Corredor da noite‑escura, cada uma das 7 Moradas (além de tor-
nada cheirosa por uma infusão que Quaderna me ensinara a fazer
com as entrecascas de algumas Árvores‑aromáticas) tinha sua
própria música‑de‑ambiente; e os convidados iam‑nas ouvindo
enquanto caminhavam. Todas eram do repertório musical brasi-
leiro; e, recriadas por Antonio Madureira, soavam no Castelo para
lembrar, com Novalis, que “a essência da Arquitetura é a Música
imobilizada”.
Naquele dia, as que se ouviram foram as seguintes:
Na 1ª Morada, Canindé Lune, música indígena e lunar
que, juntamente com os baixos‑relevos, esculturas, cantos, mitos,
danças e petropinturas da Ilumiara, representava os milênios e
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Entretanto, com toda aquela pobreza, no Castelo‑de‑Rua
da Unipopt a Morada mais importante era a 7ª. Primeiro porque,
como já disse, ali se encontrava o Circo‑Teatro Savedra, o Cine de
danças, falações, cantares e projeções no qual se encenavam as
Aulas e Narrativas‑Espetaculosas indispensáveis à estrutura d’A
Ilumiara.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Na entrada para a Plateia, viam‑se dois Vitrais. O do lado do
Sol representava Santo Antônio Conselheiro, o Profeta do Arraial
de Canudos. O do lado da Lua, Santa Maria Vilanova, a bela Mulher
que, segundo o General Dantas Barreto, desempenhava ao lado do
nosso santo Conselheiro o papel de Liza Reis junto a mim, o de
Beatriz para Dante e o de Dulcineia para Dom Quixote.
Dom Pantero
Os outros grupos tinham sido fundados, na Unipopt,
por Dom Pedro Dinis Quaderna, para que dessem apoio a seu
Movimento Cabaçal (que, fundido ao Grial, o de Tio Antero, e
ao Arraial, de Auro, tinha dado origem ao Movimento Armorial,
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Devo lembrar que, no Simpósio, tentaríamos fundir Poesia,
Canto, Música, Teatro e Dança, na linha dos Espetáculos‑Populares
brasileiros. E, para isso, pesando a escolha das peças‑musicais
que poderiam dar suporte à fusão, leváramos em conta uma certa
“Polifonia escordata e inversa”, criada por Constâncio Porta no
século XVI e que iria ter até uma repercussão literária no processo
de redação destas Cartas‑Espetaculosas.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Apresentando uma Variação sobre esse tema de José de
Alencar, escrevia o outro Mestre nosso:
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Bronco como meu Mestre erradamente o considerasse,
era ele a imagem mais apta a figurar “em pedra, a fogo”, a “Rocha
viva da Raça brasileira”. E, em nosso caso, deflagrava uma pai‑
xão tanto mais poderosa porquanto para nós, Savedras, nosso
Pai, João Canuto, era a maior, mais bela e mais forte encarnação
daquele “Rei e Cavaleiro” que, no Sertão, vestindo a Armadura de
couro dos Vaqueiros, terminara por enfrentar a Moça Caetana,
imortalizando‑se por ter ido corajosamente a seu encontro: “A
morte em sangue sagra a vida inteira” (como, aliás, também prova-
ra o Príncipe, Mauro Jaúna).
Era por isso que, no Simpósio, surgiriam temas que apa-
reciam, desapareciam e reapareciam depois: aproveitando o fato
de que, reunindo mais uma vez a Música à Literatura, existem
as chamadas “frases musicais”, eu pretendia que, n’A Ilumiara,
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Eu sempre me orgulhara muito da participação daqueles
Bailarinos no Movimento Armorial e nos Espetáculos do Circo
‑Teatro Savedra: porque, sendo eles integrantes pobres do povo
do Brasil real, eram uma demonstração concreta da capacidade de
resistência do nosso Povo que, oprimido por circunstâncias terrí-
veis, a elas se sobrepõe por meio da Arte, enfrentando o infortúnio
pela Beleza, e a feiura do Mundo pela Dança.
Além disso, a presença deles, ali no Palco, representava
outra vitória do amor pela Arte, porque Bruno era Tio e irmão‑de
‑criação de Patrícia, Menina que fora estuprada e morta em nossa
Matriz no dia 5 (fato que quase nos levara a cancelar o Simpósio).
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Inez Viana
Para começar a sessão, achamos que o ponto de partida
mais adequado seria um texto extraído da Dissertação com a qual
Dona Clarabela Noronha de Britto Moraes, aqui presente, obteve
seu grau de Mestra em Teoria Literária. Intitula‑se PROMETEU E O
ABUTRE — Uma Xênia Intertextual entre a Prosa de Roberto
Alvim Corrêa e a Poesia de Albano Cervonegro.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Maria Lopes
Por outro lado, recordo aos presentes: todos os comunica-
dos lidos aqui devem ter por assunto a obra dos Savedras, uma
vez que este Simpósio é uma espécie de fusão, aprofundamento e
ampliação dos famosos Seminários de Schabinologia, criados por
Antero Schabino, especialmente para estudo de sua própria obra.
Dona Clarabela
Finalmente solicitamos que as intervenções, além de bre-
ves, se atenham ao mais absoluto rigor crítico. Somente assim este
Conclave deixa de ser uma reunião comum, de Terceiro Mundo, e
torna‑se uma de Primeiro — isto é, um Convivium, um Colloquiu,
um Sympósion!
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Prometeu e o Abutre
Jornada Poética e Entremeio Semiespetaculoso
em dois Quadros
Parmênides Savedra
“O Ser não é gerado, é imperecível: sua estrutura é firme,
inabalável. Divindade amorosa, pulsa, nele, o fogo da Paixão, o
Amor selvagem. À luz da Lua e dessa Estrela errante, qualquer outro
caminho é inaceitável.”
Coro
“Figuraste o ser que tentou suprimir o inelutável. Mais
amigo do Homem, qual o sonhavas, do que dos Deuses, criaste um
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Coro
“Desta fedra‑mítica, Madrasta incestuosa que nos fascina,
qual o segredo?
Coro
“O mar humano! Revelar a flora venenosa, cuja cor é visível
em nossos olhos: Deus em nós, recalcado na espessura negra.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Coro
“Sob o vento das idades, treme e agoniza, muito lenta-
mente, a sombria Humanidade: criaturas já ofegantes mas ainda
cobiçosas ou cheias de luxúria no que têm de mais significativo.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Coro
“Pelo tempo, pelas paixões, até que ponto roído?
Coro
“Sim, por que a Vida‑imortal seria mais impensável do que
o Mundo‑absurdo?
Coro
“Não precisamos saber o nome de Deus para sermos reli-
giosos: basta possuir o senso da perfeição e da responsabilidade;
e é o que carregamos no mais íntimo que decide o nosso destino.”
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Heráclito Schabino
“Canta a Estrela que a Morte não existe, pois o Ser é também
a negação: o Ser, que funde em si a Terra e o Fogo, a Ventania e as
chuvas do Verão! Ninguém pode afirmar que o Ser não é; mas nele
já começa a Pulsação.”
Adriana Victor
“O deus da Beleza, filho do Feio e filho da Harmonia, filho
do Belo e filho da Loucura! A meu lado, o velho Rapsodo, com seus
dias contados. Todo criador é filho e pai de uma terra sua, move‑se
num Reino pessoal, insubstituível.
Coro
“Eis o que dissemos àquele, tentando consolá‑lo de sua
morte próxima:
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Adriana Victor
“Um Poeta é perigoso por tudo quanto ameaça em nós, não
de morte, mas justamente de vida. Quanto a mim, sempre precisei
do mundo visível para ir ao invisível: encontro no Palco, num Mundo
acordado, aquela atmosfera de realidade mais real do Sonho.
Coro
“É o Poeta que nos liberta da Morte e de todos os pesos.
Adriana Victor
“O Cômico não costuma adular ninguém, e, de todos os ob‑
servadores do ‘Eu‑odiável’, nem sempre é o menos impiedoso.
Coro
“O Trágico é um lavrador que nos lavra e nos revira, para
que, dentro, apodreçam luxúria, preguiça, cólera, cobiça.
Adriana Victor
“No Mundo deles — Palco ou Prelo, Teatro ou Livro — reina
a ilusão; mas reina para nos encontrarmos com nós mesmos, numa
consciência angustiada cuja expressão se torna poética e estabelece
nosso parentesco com Personagens míticos, históricos ou imaginários.
Coro
“Participamos daquilo que reprovamos. O rumor marinho da
Sala, o lustre, a Cortina de veludo enfim levantada sobre um mundo
invadido pelos emissários dos Magos.
Adriana Victor
“Seres monstruosos, por serem quase divinos, como Abraão,
Sara e Agar. Reveladores, e por isso castigados, como Prometeu.
Coro
“Pactários, como Fausto e Cipriano. Parricidas e matricidas,
como Édipo, Electra e Orestes. Fratricidas, como Etéocles, Caim e
Polinices. Suicidas, como Nero, Judas e Cleópatra. Sedutores vulga‑
res, ou violadores incestuosos, como Amnon.
Adriana Victor
“Será que éramos tais Monstros? Será que somos tais
Monstros?
Coro
“Sim, um pouco, ajudando as Musas a nascerem dentro de
nós estes inesperados visitantes dos nossos sonhos. A frase terrível,
segredada por Jocasta, esposa e mãe, com uma voz estrangulada:
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Adriana Victor
“ ‘Infortunado! Possas tu nunca saber quem és!’
Coro
“A ressonância do fatídico aviso: ‘Neste mundo de culpabili‑
dade lúcida, o Dia escurece as coisas, a Noite as esclarece’.
Adriana Victor
“O mistério da Vida no que tem de mais denso: uma relação
entre o que pensamos saber e aquilo que admitimos não saber; entre a
consciência de nossa curta duração e o abismo que a cerca; entre
a Vida e a Morte.
Coro
“A grandeza da Arte desperta no Homem algo de invicto e
vivo; toda Poesia é enigma e oráculo; abeira perigos desconhecidos;
é somente uma pulsação, mas serve para medir o Mundo.
Adriana Victor
“O mais puro Poeta dispõe de sortilégios, como a Beleza, e é
escravo desta Beleza, como de um vício.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Coro
“Graças aos pesquisadores da Sombra, o domínio do que é
claro vai se estendendo cada vez mais, e o archote aceso por Gregos
e Judeus mantém sua realidade através do Tempo.
Adriana Victor
“Tudo isto dissemos ao enfermo e envelhecido Aedo, cujo
olhar revelava, a um tempo, inquietação e resignação. Quando moço,
era um criador de ritmos, um decifrador de sonhos, um revelador
de mitos. Movia‑se à beira dos abismos, sua Arte coincidia com a
Vida. Tudo, nele, surgia da paixão secreta, da zona tenaz do ser:
zona obscura e sombria, mas, por estranho que possa parecer, pura.
Coro
“Havia, nele, algo de incorrupto, que exigia e feria. Tinha a
virtude do fogo e do diamante. Avivava o mais inalienável, reno-
vando as manhãs da primeira idade que nele ainda não de todo
escurecera.
Adriana Victor
“Mas não nos iludíamos: a Morte anunciava‑se, fosse em
túmulos humildes com grama e plantas que não custam caro, fosse
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Coro
“Na verdade, que falar a uma pessoa que vai morrer?
Somente um herói pode dizer àquele que morre: ‘Seja intrépido!’ E
só uma pessoa de Deus pode lhe falar de Deus: nada humilha mais
do que ser orgulhoso.”
Dom Pantero
Agora, porém, nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra
do Reino, devemos contar‑lhes que, cerca de uma hora antes do
início do Simpósio Quaterna, o Anjo‑Abrasador começara a esvoa-
çar sobre o Santuário de Congonhas, em Minas, a fim de abençoar
as figuras dos 12 Profetas, ali esculpidas em pedra por Antônio
Francisco Lisboa, O Aleijadinho.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Era sob essa Nuvem que o Anjo esvoaçava por cima do
Santuário, onde se dirigiu primeiro para a Escultura em que o
Aleijadinho representara o Profeta Isaías.
Olhando‑o, o Abrasador lembrava‑se do grave erro de in-
terpretação cometido pelos que apontam no grande Artista que o
esculpiu “defeitos e erros de anatomia”. Cegos e extraviados, não
viam que tais “erros” é que davam àquelas Esculturas uma força
diante da qual as “corretas” empalideciam. O Aleijadinho podia até
ter desejado seguir modelos europeus acadêmicos e “bem feitos”.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Conforme se vê por aí, Mathias Aires afeiçoava‑se até mes-
mo àquela Arte nascida da Sombra, daquela região habitada pelo
Mal e pela Morte; pela Onça Caetana, pelo Encourado e pela Besta
Fouva (a qual, dentro e fora de nós, a cada instante nos faz estreme-
cer o sangue, ao som de seus ladridos e ao estralo de seus cascos).
Daniel Schabino
“Ao contemplar minhas Visões noturnas, vi um outro Animal
— o do Quarto Império. Era terrível, espantoso, cruel e extrema‑
mente forte. Com enormes dentes de ferro, comia, triturava e depois
calcava aos pés tudo o que restava. Pior do que os 3 outros que o
tinham precedido, o quarto Animal possuía 10 grandes Chifres e
uma boca que proferia palavras arrogantes. Partia para devorar
o Mundo inteiro, para calcá‑lo sob seus pés e esmagá‑lo, gritando
graves insultos contra o Altíssimo.
“E eu ainda olhava tudo aquilo quando notei, vindo sobre as
nuvens do Céu, um como Filho de Homem (Aquele que fora gerado
pelo Gavião nas entranhas da Pomba da Sabedoria). A Ele, sob as bên‑
çãos de Deus e de sua Mãe, era outorgado o Império, com a honra e o
Reino. Seu domínio jamais passará e seu Reino jamais será destruído.”
Dom Pantero
Depois de ouvir tais palavras, o Anjo voou sobre Oseias,
Jonas, Naúm, Joel, Abdias, Habacuc e finalmente Amós, que repetiu
para ele suas advertências contra os ricos, opressores e poderosos;
naquele dia, porém, especialmente dirigidas aos que insistem em
vender o Brasil, traindo seu grande Povo e, por isso, afastando para
um futuro ainda mais longínquo o advento do Quinto Império:
Amós de Savedra
“Oráculo de Deus, Nosso Senhor: Não sabem agir com reti‑
dão aqueles que amontoam opressão e rapinagem em seus Palácios,
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Assim que Amós terminou de falar, vi que, concluídas
suas bênçãos sobre Congonhas, o Abrasador começara a trocar o
Sertão mineiro pelo nordestino, em rumo paralelo ao do Rio São
Francisco. Seu voo era extremamente rápido, de maneira que em
poucos instantes chegava ele à Via‑Sacra de Monte Santo, perto do
local em que, a 5 de Outubro de 1897, o Exército brasileiro (infe-
lizmente persuadido, naquela época, por Intelectuais positivistas
e Empresários capitalistas) destruiu o Império do Belo Monte de
Canudos, Arraial pré‑socialista e messiânico, liderado pelo maior
dos nossos Profetas, Santo Antônio Conselheiro.
Auro Schabino
A Via‑Sacra de Monte Santo também teria entusiasmado
Mathias Aires, caso ele a tivesse conhecido. Euclydes da Cunha
(Profeta do nosso Velho Testamento e artista da mesma linhagem
d’O Aleijadinho) assim a recriou naquela outra Obra‑de‑gênio
“tosca, brilhante, impolida e forte” que é Os Sertões:
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
M onte Santo
Castelo, literariamente recriado a partir de outro,
arquitetônico, erguido pelo Povo brasileiro.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Ao me ver, pela primeira vez, diante da Obra que é Monte
Santo, vi‑me obrigado a confessar que a Imagem literária criada
por Euclydes da Cunha é mais bela do que a real. Ainda assim, devo
dizer‑lhes que, como A Ilumiara, aquela Via‑Sacra é um Castelo;
uma Catedral; uma Fortaleza que, dentro de si, contém um Palco
de pedra e uma Estrada, decisiva para os Andarilhos que temera-
riamente se arriscam a percorrer suas 7 Moradas (ou Vias).
Adriel Soares
Mas vamos continuar, com Euclydes da Cunha, a leitura de
seu próprio “Monumento prodigioso”, de sua apocalíptica Revelação:
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Naquela manhã de 9 de Outubro de 2000, a Moça Caetana
aparecera primeiro como a sinistra e bela Divindade descrita no
Soneto composto, com tema de Deborah Brennand, a partir dos
sonhos obscuros de meu irmão Altino Sotero. Naquele Soneto
estava presente o “sagrado terror” que de nós se apossa diante da
terrível Divindade que é a Morte.
Posteriormente Auro e Adriel compuseram outro Soneto
que, n’O Pasto Incendiado, se seguia ao primeiro, sendo que,
desta vez, o terror gradativamente se transformava em aceitação e
até em celebração da Morte, integrada na paixão da Vida, que nos
movia a todos:
Albano Cervonegro
Eu vi a Morte, a Moça Caetana, com o Manto negro, rubro
e amarelo. Vi‑lhe o inocente olhar, puro e perverso, e os dentes de
coral da Desumana.
Eu vi o Estrago, o bote, o ardor cruel, os peitos fascinantes e
esquisitos. Na mão direita, a Cobra‑cascavel, e, na esquerda, a Coral,
rubi maldito.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
A divindade brasileira da Morte aparece como fêmea aos
Homens, e como macho às Mulheres. Macho, é O Moço Caetano,
cujo nome vem de Kai‑Thano, isto é, E‑eu‑morri. Fêmea, é A Moça
Caetana, cujo corpo é moreno, pois ela é uma divindade de ori-
gem cariri. Seus peitos, porém, são alvos, com aréolas e bicos de
um rosado mais vivo do que os de qualquer outra Mulher, nascida
ou por nascer no Mundo.
594 594
Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
É então que ele é fulminado aos estremeços obscenos da
Morte: Caetana bebe‑lhe o sangue, e é o sangue dos assassinados
que robustece seus peitos, tornando‑os firmes, belos e rosados
daquela maneira.
Agora, ainda deitada, ela olha esses peitos, e, mais embaixo,
a bela Concha bivalve e vermelha, entrecerrada na relva noturna
do Púbis selvagem (“Sol de pelos, onírico Diadema”, nas palavras
daquele outro grande Poeta paraibano que é Luiz Correia). Com os
dedos da mão direita, apalpou, num ritual, primeiro um peito, de-
pois o outro, e colocou a mão esquerda espalmada sobre a Vulva,
para selar o Concriz negro‑e‑vermelho do Sexo.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Composta assim a estranha Fera, havia nela algo de belo,
fascinador e reluzente, mas também de sinistro e infame. No flanco
direito da Onça, ficou‑lhe cravado pelo corpo o Gavião vermelho
Caintura, a ave‑de‑rapina da fome, da sede, da miséria, da doença
e do Tempo. No flanco esquerdo, Malermato, o Gavião negro da
nudez, do sofrimento, do infortúnio, do acaso, da má‑sorte e da Fata-
lidade. Entre os dois, o Carcará branco, negro e castanho que se
chama Sombrifogo e é a ave‑de‑rapina do assassinato, da chacina e
do suicídio.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Por cima de todos os lajedos da Ilumiara esvoaçou a Morte
naquela manhã de 9 de Outubro de 2000. E, concluída a primei-
ra parte do voo, dirigiu‑se ao Recife, segundo vértice do Reino.
Demorou sobre a Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos
Militares, por causa do Painel pintado sobre madeira e que ali
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Então, a Morte passou a voar sobre o Colégio e a Sé de
Olinda, lembrando‑se de que lá, no dia 15 de Agosto de 1594, nosso
primeiro antepassado brasileiro, Alexandre Schabino de Savedra,
respondera a um Processo perante Heytor Furtado de Mendoça,
“Visitador do Santo Ofício às Partes do Estado do Brasil”.
Depois, em Igarassu, visitou o Engenho Chabino e o
Convento de Santo Antônio, com sua Igreja. Em São Lourenço
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
A Moça Caetana sabia que na Serra do Reino estava sendo
erguido um Santuário para assinalar, plasticamente, a ponta nor-
destina do eixo que liga o Sertão nordestino ao mineiro. E sabia
que, se ficasse pronta, A Ilumiara seria a expressão literária da-
quela ponta, a terceira do “Triângulo místico, solar e mítico” que
aparecia no Livro Luz & Trevas, dedicado por sua autora, Maureen
Bisilliat, a meu irmão Auro.
Quer dizer: fossem, ou não, concluídos aqueles dois
Castelos — o escultórico e arquitetônico da Serra do Reino, e o
literário d’A Ilumiara —, a Moça Caetana tudo faria para destruir
as partes já prontas de cada um deles, pois sabia que ambos eram
tentativas de, pela Arte, celebrar a Vida e a imortalidade.
Por isso, pretendia se demorar ainda sobre a Ilumiara
Pedra do Reino. Mas aí avistou o Anjo Abrasador que, de Monte
Santo, vinha chegando para Belmonte, lugar que ele amava muito,
porque seu nome lhe recordava o do Império do Belo Monte de
Canudos.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
aos olhos inocentes e sem mercê das Crianças; aos olhos aguçados
e culposos dos Profetas; aos olhos perturbados dos Ébrios, dos
Mágicos, dos Loucos, dos Palhaços e daqueles Reis que, bebendo
o Vinho da Pedra do Reino, são possuídos pelo dom da Poesia
divina, daimoníaca, escumejante, epiléptica e alucinatória.
Dom Pantero
O que Vocês bem podem comprovar, no Poema que aí vai
e que, também composto com base nos sonhos dementes do nos-
so irmão Altino, foi incluído por Auro e Adriel no Livro O Pasto
Incendiado, por eles publicado sob o pseudônimo de Albano
Cervonegro: fato que lhes valeu a alcunha de Os Xifópagos, colocada
por nossos mesquinhos adversários recifenses, que procuravam,
ou ignorá‑los, ou então ridicularizá‑los por meio de caricaturas.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
A Onça
Martelo‑Gabinete no qual aparece
o Jaguar como insígnia da Morte
Albano Cervonegro
Eis a Flecha cruel que despedaça a carne dos Cabritos e
Cordeiros. Eis o Bicho sagrado, o velho Medo, no sangue mal‑cravado
dos meus erros. A Besta coroada, a Fera doida, o veneno do Sono e
do Desterro.
O vermelho Clarão e o verde Escuro; o Mundo — ouro e enxo‑
fre malfadado. Possesso da Serpente, asas de Arcanjo, olhos cegos no
Sol incendiado. Que maldade se encerra na Beleza? Que sangrento,
no Molde iluminado?
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Pois bem: naquela manhã de 9 de Outubro de 2000, en-
quanto o Anjo‑Abrasador e a Onça Caetana esvoaçavam sobre o
Reino do Sete‑Estrelo do Escorpião do Nordeste, na última Casa
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Ora, se tais perigos corria uma pessoa de Deus, como Santo
Inácio — uma pessoa que entendia “tanto de coisas espirituais
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Em tal Cidade haveria um Circo, com todos os meus amados
mortos ressuscitados; e, mais, Reis, Palhaços, Mágicos, Músicos
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Albano Cervonegro
Sobre o chão, as muralhas do Castelo, e, em torno, o Sol —
o Sol, o Fogo e a Estrada. Dali me espreitam Faces perigosas, uma
sombria, a outra iluminada. E a minha sombra se projeta, inteira,
entre o chão do Cachorro e o sol da Taça.
Dom Pantero
Uma vez no interior daquela Torre pobre, circular e bruta,
aproximei‑me da pesada tampa de madeira que havia no chão,
fechada por corrente e cadeado. Abri‑a e, depois de fechá‑la sobre
minha cabeça, desci os 13 degraus da Escada, chegando ao chão
do Túnel secreto pelo qual, sem conhecimento de ninguém, cos-
tumava ir para meu Camarim: este e a Torre faziam parte daquele
Castelo a que me referi como sendo “inconfessável e davídico”; e o
Túnel que os ligava, escavado pelas profundezas, era parecido com
aquele pelo qual Edmundo Dantès ia encontrar o perigoso Abade
Faria — o mesmo que, como fez o Demônio com Fausto e São
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Os assassinos do Cavaleiro tinham olhado para o Espelho
pela parte do aço, vendo nela a face monstruosa e feroz da
imagem. Mas, graças a Deus, havia outro modo de olhá‑lo; um
modo que Vocês vão conhecer agora pelas vozes de Dom Paribo
Sallemas, Joaquim Simão, João Grilo, Chicó, Gregório, Galdino,
Dom Pancrácio Cavalcanti e Dom Porfírio de Albuquerque. Alguns
destes eram Palhaços, Mágicos e Malabaristas e era assim que se
apresentariam no Circo‑Teatro Savedra. Mas por enquanto apa-
recem aqui apenas musicalmente e colocados a serviço de Albano
Cervonegro:
A Cantiga de Jesuíno
Canção Frígia (de Guerra e Morte
mas também de Esperança)
Joaquim Simão
Meus Senhores que aqui estão, vou cantar meu Desatino: a
canção do Cangaceiro que se chamou Jesuíno; seu Bacamarte de
prata e o luar do seu destino.
João Grilo
Num Gibão pardo e vermelho, um Punhal no cinturão, bem
montado num Cavalo, cujo nome é Zelação, Jesuíno virou logo —
“ay, ay, ay meu Deus” — Rei do povo do Sertão.
Chicó
Ver a Terra, era seu sonho — nobre terra do Sertão —, per‑
tencendo a todo mundo pelo sol‑da‑partição; e é por isso que ele
canta, de Bacamarte na mão:
Joaquim Simão
Mas os ricos se juntaram com o governo da Nação: botaram
‑lhe uma Emboscada, e ele morre à traição. Mas o Povo não o esque‑
ce: sonha com ele o Sertão.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Aliás, Manuel Savedra Jaúna e Dantinhas incluíram esta Canção
(tocada, cantada e dançada pelo Circo da Onça Malhada numa Aula
‑Espetaculosa) como parte integrante d’A Ilumiara.
Adriel Soares
Foi em 1967 que eu e Auro compusemos a Cantiga de
Jesuíno, musicada naquele mesmo ano por Lourenço da Fonseca
Barbosa — Capiba. E sempre entendemos o Espelho, aí, como uma
imagem da nossa Arte — do romance de Auro, do meu Teatro e da
Poesia que compúnhamos a partir dos sonhos de Altino; Poesia
que, a nosso ver, era a raiz, o tronco e a seiva de tudo o que escrevía-
mos (assim como das imagens que minha Mulher, Eliza, gravava na
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Auro Schabino
Para nós, a Arte era o Espelho por meio do qual procurá-
vamos devolver à realidade a imagem recriada daquilo que nela
víamos. Imagem às vezes deformada, obscura, cruel e enigmática,
por refletir “as danações da Vida, as injustiças e os desconcertos
do Mundo”, como dizia nosso Tio, Antero Schabino, a partir de
palavras de Camões; mas imagem que, noutros momentos, podia
parecer luminosa e bela, por fazer brilhar, de noite, a prata da Lua
e das Estrelas, e, de dia, a chama e o fulgor do Sol.
Adriel Soares
Por isso, era pelo Espelho que nós cantávamos, tocávamos e
dançávamos, nisto seguindo o exemplo do nosso Povo que, apesar
de todos os sofrimentos e injustiças que suporta, também canta,
e brinca, e dança, e toca, na esperança de que, um dia, a Terra intei-
ra se ilumine ao sol de Deus.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Foi assim, também, que, ao assumir a Unipopt e o Circo
‑Teatro Savedra, o Espelho e a Lanterna tinham me proporcionado
as iluminações que, em certos momentos — e como relâmpagos
na escuridão do Enigma —, chegavam a cicatrizar e transfigurar,
no Palco, as chagas de feiura e maldade do Mundo. Isto sem que
o Espetáculo perdesse seu caráter também de denúncia: porque
se era, por um lado, contraponto da festa e da beleza da Vida,
por outro revelava sua face injusta, sombria e dilacerada, nele
marcando‑se a cara fria e indiferente dos cruéis com o ferrete dos
mais duros estigmas.
Era por isso que, naquela manhã de 9 de Outubro de 2000,
já sentado defronte do Espelho, eu me sentia, ao mesmo tempo,
ansioso e exaltado, consciente como estava de que, logo mais, iria
encarnar no Palco a figura de Dom Pantero, com a garra que o
Personagem exigia e com a raça característica do Povo brasileiro
(garra e raça que levavam o índio‑fulniô Garrincha e a negra Daiane
dos Santos a atuar em seus respectivos Palcos como se estivessem
dançando a serviço de Deus e para alegria do Mundo).
A Cortina só se abriria daí a momentos; por enquanto, vi-
brava somente, no interior do Teatro, aquela atmosfera que prece-
de sua abertura; aquela tensão que, como Encenador, eu conhecia
demais e era tanto mais fascinadora porquanto, também afetados
por ela, Músicos, Atores e Dançarinos circulavam pelo Palco e nos
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Como numa Tragédia esquiliana ou numa Comédia plau-
tina, o Coro iria ajudar‑me nos cantares e nas falas que, no meu
Depoimento, fossem mais espetaculosas do que meramente refle-
xivas ou explanatórias.
Quanto a nossas roupas, eu me vestiria, ou de roupa clara,
para ser Antero Savedra, ou de preto‑e‑vermelho, para ser Dom
Pantero. Os Atores que encarnariam os outros, vestir‑se‑iam como
eles, na vida real: Auro iria de mescla azul, traje sobre o qual,
em homenagem a Antônio Conselheiro e Antônio José da Silva,
O Judeu, todo ano, nos dias 5 e 18 de Outubro, ele usava a Túnica
‑sambenitada imposta aos Profetas assassinados pela Inquisição;
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Eram estas as preocupações que me vinham ao espírito,
enquanto, no Camarim, dava os derradeiros toques em minha
pintura‑de‑cara, destinada a marcar minha condição de Chefe
‑dos‑Comediantes, de Velho‑e‑Mestre das Personas‑Dramáticas e
Máscaras‑Coregais que tomavam parte no Espetáculo. Estremecia
ante a responsabilidade de entrar no Palco para submeter‑me ao
Julgamento. Mas também começava a ser empolgado pela convic-
ção de que, nele, iria mais uma vez identificar‑me com meu Povo,
na jubilosa alegria de um Espetáculo musical, poético, teatral
e dançarino, ainda que encenado na pobreza, por sobre a dor, o
sofrimento, o sangue e o choro.
Por isso, a cada momento com mais intensidade, eu ia sen-
do mergulhado num estado de espírito em que se mesclavam uma
exaltação ansiosa e a fascinante apreensão que precede a entrada
de um grande Ator em qualquer palco do Mundo.
Aliás, Ator que, no Camarim, começava a ser definitiva-
mente afetado pela encantação do Espelho. Na verdade, quem era,
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Altino Sotero
Aspas do Cervo negro erguidas para o alto; asas e cascos do
Cavalo castanho, cujas Patas dianteiras erguem‑se no ar, enquanto
as traseiras firmam‑se no chão, entre chamas de fogo que também
nos impelem para o alto e para o Sol.
Dom Pantero
Na idade em que me encontro, num momento em que ou-
tro qualquer já andaria cabisbaixo ante o triste limiar e os umbrais
carrascosos da Morte, eu, preocupado mas animoso, cada vez que
compunha na cara o disfarce da Máscara, ficava me sentindo como
um Toureiro, pronto a entrar num combate, arriscado mas espeta-
culoso e belo.
Era assim que eu me sentia agora, ao se aproximar o momen-
to de entrar no Palco. Recordava como fora longa e dura a minha
vida e como se transformara a partir do meu encontro com a Trupe
do Cavalo Castanho, de Dom Pancrácio Cavalcanti e Dom Porfírio
de Albuquerque, e com o Circo da Onça Malhada, de Quaderna.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Auro Schabino
Quem me canta, na voz rouca do Rei, a imagem sagrada da
Rainha?
Adriel Soares
Quem me canta, na luz e ao sol do Reino, a juventude e a
graça da Princesa?
Dom Pantero
Mas, para que se entenda com mais clareza o estado de
espírito em que me encontrava, devo contar ainda que depois
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Eu sempre zombara do romantismo descabelado des-
tes Versos. Até que, poucos dias depois da morte de Mauro, fui
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
obrigado a dar uma Aula que marcara há tempo, o que fiz fingindo
não ver a cada instante o peito apunhalado do meu irmão, que se
matara, pondo fim a um sofrimento que o acompanhara desde
menino, num martírio a nossos olhos miseráveis incompatível
com a bondade e a misericórdia de Deus. Esta Visão passara a me
aparecer até no Teatro, nos momentos em que eu ria e mais fazia
rir. E eu sabia que dali a pouco, no Palco, iria me fingir de forte
e sarcástico perante os ataques dos nossos adversários, mas que,
na verdade, tais ataques me atingiriam profundamente; porque a
crueldade maligna deles talvez fosse mais lúcida do que a visão be-
nevolente de pessoas como Carlos de Souza Lima, Rosette Fonseca
dos Santos, Maria Lopes, Aderbal Freire Filho, Gabriel Ferro, Mário
Martins etc., todos eles com os olhos perturbados pela simpatia
amiga que tinham por mim.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Era assim que, pelo Humorístico, eu esperava fazer o públi-
co perdoar a altura e a obscuridade de meus interlocutores mais
próximos, Altino, Auro e Adriel.
No Palco, por trás da Cortina fechada, Figurantes de todos
os tipos aguardavam minha chegada para ajudar‑me no que fosse
necessário. Nas Coxias, os Músicos afinavam os instrumentos e,
tocando pequenos trechos, repassavam a Abertura e as outras
toadas, solfas e cantigas que animariam o Espetáculo. Por trás da
forma e do timbre de cada instrumento, o que soava eram “a Viola,
a Rabeca, o Sol sangrento, a Lua‑flauta e os cardos do meu choro”;
e o som do que tocavam chegava até o Camarim, com sua carga
lídica, lunar e melancólica, por um lado, jônica, solar e galopada
por outro.
Eu acabara de pintar‑me. E, já com o Medalhão ao peito,
chegara o momento de beber o Vinho que Quaderna me legara
e que me aguardava sobre um Consolo, numa Salva de prata.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Imediatamente, um calor estimulante e ardente começou a
circular dentro de mim. E, deflagrada talvez pela encantação mu-
sical das Toadas que ensaiavam, começou também a efetivar‑se a
transfiguração de Antero Mariano Savedra Jaúna em Dom Pantero.
Entretanto, o vácuo dilacerador causado pela perda e pela
ausência de Liza não se preenchia, nem mesmo depois de beber
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
O problema era mais grave ainda porque, Velho, eu con-
tinuava a ser aquele mesmo Menino que, lendo O Guarani pela
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Para fugir a tal desespero (e como acontecia, também, no
campo da Política), o único caminho a meu alcance era o da Arte,
em nosso caso colocada nos termos da “Polifonia escordata e in‑
versa” de Constâncio Porta; e foi por este caminho que enveredei,
no Palco. Nele, tentava, às vezes, fundir duas ou três das jovens
Brincantes que participavam do Espetáculo numa Figura só, que
evocasse Liza. Quando me encontrava em cena com elas, aqui e ali
o milagre acontecia, e, graças ao Espelho, no embalo encantatório
das Artes envolvidas no Espetáculo, eu conseguia recuperar pelo
menos a imagem do Amor que perdera.
Mas, para o Simpósio, onde esperava apresentar o
Espetáculo supremo da minha vida, tínhamos tomado providências
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Assim, com mais coragem, comecei a palmilhar o chão
do Corredor, perturbado pelo medo do Palco, mas bafejado por
aquela sombra do carinho feminino que, irreal e quimérico como
fosse, pelo menos nunca me faltava nos momentos cruciais do
Espetáculo. Na realidade, minha vida continuava tão erma e solitá-
ria como sempre fora desde que Liza me rejeitara naquele terrível
Dom Pantero
Assim, este Castelo‑de‑Cartas é o mesmo Grande‑Teatro
‑de‑Pedra que, englobando a Tapeçaria d’A Divina Viagem, o
Santuário da Pedra do Reino, a música do Quarteto Romançal e a
Dança do Grupo Grial, sempre sonhei levantar à altura da Obra dei-
xada por Altino, Auro e Adriel. Aqui, A Ilumiara, “derradeiro suor de
uma Alma obscura, prestes a cair no abismo” — como disse Machado
de Assis —, transforma‑se num pedregoso e alcantilado lugar‑fera,
alapardado como um Jaguar em sua Furna. É o local‑sagrado que
“o Deus desconhecido” começou a construir e que várias gerações
de Povos rebelados continuaram, raspando e acrescentando por
sobre o Original divino “seus Palimpsestos ultrajantes” (para usar a
expressão do imortal Euclydes da Cunha). É, finalmente, a grande
Catedral brasileira que, como um novo Evangelho‑de‑Pedra e com
sua fachada recoberta de Mosaicos, exteriormente correspondia
àquela Fortaleza, àquele Templo de bruta beleza que Santo Antônio
Conselheiro levantara no Arraial de Canudos; e, interiormente, é
expressão da alma de um velho Mestre‑de‑Obras cujo sonho era
empreender a Viagem, decifrar o Roteiro e encontrar o Castelo que
um dia, enfrentado o Enigma, lhe abriria a Porta, vendo‑se ele, en-
tão, no próprio centro interior de suas Moradas imortais.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Aí, naquela manhã de 9 de Outubro de 2000, usando a
Aguilhada como um bastão‑de‑cego, Iluminada, Lucinda, Luziara
e eu iniciamos nossa caminhada para o Palco — elas graciosas e
leves em sua juventude, eu com o andar já meio tardo dos Velhos.
Pelo simples fato de ter disfarçado a cara com a pintura,
ela se transformara numa Máscara; e o Castelo‑de‑Rua, formado
pelo conjunto de Casa, Torre, Túnel e Teatro, já se identificava mais
uma vez com o sagrado Castelo‑de‑Serra da Ilumiara. No topo
do seu Lajedo mais alto, no cimo da mais elevada Torre do seu
Anfiteatro, drapejava, num Mastro, a Bandeira do Jaguar Malhado:
batida pelo sopro do Mar e pela ventania do Sertão, estalava em
frente ao Estandarte do Cavalo Pardo — o Potro alado e castanho
que, erguendo as patas dianteiras no salto para o Sol, mantinha as
de trás entre chamas de fogo que o impeliam a se alçar do chão.
Ladeada pelos dois e perenizada em óleo‑sagrado ardia
“a Candeia imortal que tudo alumia”: ali se guardava, dia e noite,
o culto do Jaguar‑Malhado.
Quando a invocávamos, ao culto comparecia, da parte dos
Quadernas, a raça de Reis escusos que dominara a Pedra do Reino
— Personas de condição principal mas cujas Coroas pingavam
sangue. A saber:
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Acompanhado por Lucinda e Luziara, saí do Camarim, com
a imagem da Graciosa a guiar nós três pela mão de Iluminada.
Soava por todo o Teatro a Música, ora épica e acerada, ora lírica e
suave, das Violas, dos Pífaros, das Flautas, das Rabecas, Tambores
e Marimbaus. Fora, nos 4 cantos do Mundo, 4 Dragos‑de‑Serpente
ameaçavam o Jaguar, o Cervo, o Touro e o Cavalo. Planando no alto
Céu azul‑esbraseado, 2 Pássaros divinos — a Pomba e o Gavião:
garantiam, por acaso, que a Noite feminina e a Lua compassiva
iriam afinal predominar sobre o Dia cruel e o Sol ensangrentado?
Era impossível responder. E, de qualquer maneira, não tí-
nhamos como voltar: estávamos, já, quase no Palco; e, nas Coxias,
encontramos os Atores, Mímicos e Dançarinos que, sob o comando
de Romero de Souza Lima, se tinham prontificado a ajudar‑nos,
representando os Personagens, Artistas e Escritores convocados
a figurar no Simpósio. Em primeiro lugar, os vivos. Mas também
aqueles que, mesmo tendo morrido, iriam ser chamados a res-
suscitar no Palco, indispensáveis, como eram, ao desenrolar do
Espetáculo e ao entendimento da Ação.
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Dom Pantero
Altino Paribo
Auro Pancrácio
Adriel Porfírio
Microfone Cátedra
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Enquanto assim eu verificava se tudo estava em ordem,
Madureira me avistou. A meu sinal de concordância, ergueu grave-
mente os dois braços, com a Batuta numa das mãos, e um pesado
silêncio calou o Teatro.
Nosso Mestre, Tio Antero, gostava muito da famosa
Overtura em Ré, composta no século XVIII por José Maurício
Nunes Garcia. Por isso, eu combinara com Madureira: a Música que
assinalaria minha entrada no Palco não deveria ser uma Abertura
comum, mas sim uma Overtura, parecida com aquela e composta
na linha da Entrada de Scaramouche de O Burguês Gentilhomem,
de Lully‑Molière.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Doxologia
Albano Cervonegro
Agora, só me resta ir para a Igreja. Subo a ladeira. A Porta.
A escura Nave. Com o Livro aos ombros, vou como uma Ave de papel
pretoebranco que esvoeja. Vazio, o Nicho, em ouro, ali flameja. Subo
ao Altar. No vão, perto da grade, deposito a futura Raridade. Vou ao
Padre. Recebo a minha Tença. E, em meio da geral indiferença,
abandono — mais uma! — esta Cidade.
Pois é assim: meu Circo pela Estrada. Dois Emblemas lhe ser‑
vem de Estandarte: no Sertão, o Arraial do Bacamarte; na Cidade, a
Favela‑Consagrada. Dentro do Circo, a Vida, Onça Malhada, ao luzir,
no Teatro, o pelo belo, transforma‑se num Sonho — Palco e Prelo. E
é ao som deste Canto, na garganta, que a cortina do Circo se levanta,
para mostrar meu Povo e seu Castelo.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
E, com estes Versos, compostos em Martelo‑Agalopado —
uma Estrofe criada pelos Cantadores brasileiros —, aqui se despede
de Vocês, nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino,
este que é, ao mesmo tempo, seu Soberano e seu companheiro de
cavalgadas e Cavalaria,
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Repente
O
B ufão
A pocalíptico
O Bufão Apocalíptico
Epístola de Santo Antero Schabino, Apóstolo
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Epígrafes
“O Rei é senhor e escravo de seu Reino. É o Pai encerrado em
um espaço geográfico (ou literário), e representa simbolicamente
a alma nacional, na qual todos se refletem como se estivessem
diante de um Espelho, e representando ele, portanto, aos olhos de
seu Povo, o aspecto tangível da imortalidade e da Eternidade.”
Eguimar Simões Vogado
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Dedicatória
Este Repente é dedicado a Mariana de Andrade Lima
Suassuna, Guilherme Queiroz Monteiro da Fonte, Maria Isabel,
Rafael, Gabriel e Daniel Suassuna da Fonte. Foi composto em
memória de Adálida Suassuna Barretto e Chateaubriand Maia de
Arruda Barretto.
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O Bufão Apocalíptico
no Claro ‑ Escuro do Palco
Alegro Jocoso
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S ibila
Moda, Turismo & Lazer
Igarassu, 23 de Março de 2014
23 de Abril de 2016
Amigos:
E
u concebera o Simpósio Quaterna como uma grande Aula
‑Espetaculosa. Desde que, para realizá‑la, pudesse contar
com a música de Antonio Madureira; as câmeras de Marcus
Vilar, Douglas Machado e Claudio Brito; com os cenários e figu-
rinos de Manuel Savedra Jaúna; com as fotografias de Alexandre
Nóbrega, Geyson Magno e Dantinhas; com os dançarinos de Maria
Paula Costa Rego; e com os atores de Romero de Souza Lima
— desde que contasse com tudo isso eu mesmo participaria do
Espetáculo como Ator‑principal, Encenador, Depoente, enfim, com
o título que fora o de Tirso de Molina — O Definidor‑Geral (sua
decisiva e subterrânea Eminência‑Parda).
Mas, além disso, uma das minhas expectativas era que o
Simpósio nos permitisse mostrar, no Palco, a imagem verdadeira,
profunda e bela “do Brasil‑que‑há‑de‑vir”, a respeito do qual, escre-
vendo sobre o Romance d’A Pedra do Reino de meu irmão Auro,
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Ao mesmo tempo que Iluminada, a Graciosa ocultara‑se, a
fim de, novamente encoberta, possibilitar que o Espetáculo assu-
misse também seu caráter de Demanda: se a Taça reaparecesse em
algum de seus volteios e episódios, seria, com certeza, por inter-
cessão da sagrada Figura que ela representava; por seu intermédio
é que A Misericordiosa iria aparecer no Palco como A Coroada, a
Musa oposta à Moça Caetana; a Padroeira superior e tutelar do
Simpósio, que, graças a Ela, poderia ser encarado como celebração
da Beleza e da Vida (e não, apesar de tudo, da Feiura e da Morte):
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Reino solar, Reino pedregoso, Reino sagrado, Reino glorioso!
Reino sonhado, que o Mal, o Feio e a Morte querem degradar e cobrir
de vergonha, aos ais do Apocalipse!
Eu, Jaguar‑do‑Deserto, esconjuro, cego, a cinza fatal que cer-
ca o Reino! Eu, Cervonegro‑do‑Sol, denuncio, cego, a injustiça que
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Mas aleluia, glória e hosana ao sol dos Encobertos e à lua
da Coroada!
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Amor, sagrado Amor, oh Rosa do meu sangue, Rosa do meu
desejo, oh meu Sextante e Vela!
Têm, para mim, Visões de um outro Mundo, as Noites perigo‑
sas e queimadas, quando a Lua aparece mais vermelha.
De dia, ao olhar para o Céu azul‑esbraseado, vejo brilhar ao
Sol, à luz do Olhar divino, um Reino de muralhas, Castelos e bandei‑
ras, de Estandartes ao vento e de estrelas na Esfera.
Mas, por outro lado, têm, para mim, Visões de um outro
Mundo, as Noites luminosas, azuladas, quando a Lua aparece mais
bonita — e o Espetáculo que agora se inicia é também uma espécie
de Soneta‑Noturna; de Sonata para Violino e Piano; de Concerto
‑Lunar (ou ao‑Luar), composto para Rabeviola e Orquestra.
Começo, portanto, com o Soneto O Profeta, incluído por
Albano Cervonegro n’O Pasto Incendiado.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
O Profeta
Abertura sob Pele de Carneiro
Albano Cervonegro
Falso Profeta, insone, extraviado, vivo, Cego, a sondar o
Indecifrável. E, jaguar da Sibila inescrutável, meu sangue canta a
rota deste Fado.
Eu, forçado a ascender, eu, mutilado, busco a Estrela, que
chama, inapelável. E a pulsação do Ser, Fera indomável, arde ao sol
do meu Pasto incendiado.
Dom Pantero
Acabando de cantar o Soneto, voltei ao Púlpito e, como
Velho‑e‑Mestre, bebi o terceiro cálice de Vinho, fato que defini-
tivamente consumou a transfiguração da minha pessoa comum
e apagada em Dom Pantero do Espírito Santo, Imperador da
Pedra do Reino.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Senhoras e senhores participantes do Simpósio Quaterna!
O título do único Livro deixado pelo grande Augusto dos Anjos é
Eu. Aqui, apesar da natureza épica do Diálogo, em minha condição
de Ator e Encenador, o Personagem principal também é Eu; ou sou
Eu; ou somos Eu — não sei nem como diga!
Uma coisa, porém, é certa: como Encenador das Conferências
Quase‑Literárias de meu Tio, Padrinho e Mestre, Antero Schabino
(assim como dos Espetáculos que meus irmãos Afra e Adriel cria-
vam), é seguindo processo semelhante ao deles que, aqui, penso
levar meu Depoimento adiante. Com isso, o que pretendo é fazer
uma espécie de Relato que dê alguma ordem e algum brilho ao
conjunto, algum sentido e alguma beleza à minha vida — a este
amontoado de gestos, atos e palavras que, no comum, é contradi-
tório, às vezes angustioso, quase sempre fosco e feio.
“A Vida é um Sonho”, disse um Poeta espanhol e que, como
todo grande Homem, provavelmente era meio despilotado do
juízo.
Pois se a Vida é um Sonho, cuide‑se de fazer aqui deste
Pesadelo triste, feio e sem graça, uma Festa; uma Dança que, como
nos Circos e nos Espetáculos populares brasileiros, tenha seus
mantos e golas recobertos de vidrilhos e lantejoulas; alegre e en-
solarada aqui; noturna e acolhedora ali; terrível e sangrenta acolá;
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Albano Cervonegro
Aqui, mora a Coral negra e vermelha, a Serpente assassina do
Rebanho. Mas o Cantar sagrado do meu Sangue, aponta para o Sol
de um céu estranho, e ao Gavião em cujo olhar reluzem o Leopardo
e a Estrela‑do‑Castanho.
Dom Pantero
Em princípio, sim; mas somente em princípio! O que me
inclina a concordar é que li, certa vez, num Jornal, uma observação
maldosa sobre os Escritores brasileiros: dizia‑se ali que todos eles
são muito mais brilhantes nas Entrevistas que concedem do que
em seus Romances, Poemas ou Peças‑de‑Teatro, “provavelmente
porque, no caso das Entrevistas, as palavras são escritas por outras
pessoas”.
Ora, comparando‑me com meus irmãos Auro e Adriel,
meu Tio, Padrinho e Mestre, Antero Schabino, sempre me descon-
siderava. Dizia que, como Escritor, nunca eu poderia igualar‑me
a eles, motivo pelo qual não me permitia colaborar na versão
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
literária d’A Onça Malhada, que seria sua Obra definitiva e final —
A Divina Viagem; levando em conta que minha letra era mais
legível e eu era o Encenador dos espetáculos montados no Teatro
Antônio Conselheiro, da Ilha de Deus, reservava‑me apenas as ta-
refas menores de copista de seus Ensaios e organizador de suas
famosas Conferências Quase‑Literárias.
Assim, caso este Simpósio venha a assumir o espírito e a for-
ma dialogal da Entrevista, poderá também sanar minhas deficiên-
cias de Escritor por meio de minhas habilidades de Encenador,
propiciando‑me a oportunidade não só de igualar‑me a meus
irmãos mas até de ultrapassá‑los, uma vez que nenhum deles se
lembrou de realizar suas obras em forma de Entrevista.
No entanto, faço outra avaliação que me leva a hesitar
sobre o pedido: é que, nas Entrevistas, além das falsidades e
loucuras que nos atribuem — na maioria dos casos colocando‑as
entre aspas, como se as tivéssemos dito —, só nos fazem pergun-
tas óbvias, estapafúrdias, inconvenientes ou repetitivas (o que nos
força a dar, também, respostas repetitivas, óbvias, inconvenientes
e estapafúrdias).
Então, vamos ver que rumo vai tomar a conversa.
O Simpósio foi o caminho que encontrei para transformar em tea-
tro, música, dança, cinema e vídeo o Ensaio A Onça Malhada, de
meu Tio Antero Schabino, o romance de Auro, as peças de Adriel,
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Mas nem todos são savedristas! Um savedrista é um
schabinólogo que, além de conhecer e admirar, sem qualquer res-
trição, todas as obras deixadas por Schabinos, Savedras e Jaúnas,
concorda com tudo o que eles diziam e faziam. Se manifestar uma
discordância — uma só, e insignificante como seja! — é demitido
imediatamente de seu honroso cargo e passa a integrar o detestá-
vel rebanho dos equivocados.
Notem que eu já dei uma demonstração incomum de tole-
rância ao admitir que participem do Simpósio pessoas da mais di-
versa procedência. Não digo nem Portugueses, Espanhóis, Galegos,
Sicilianos, Bascos, Catalães, Corsos, Gregos ou Provençais que, em
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Antero Schabino
“No curso da História é frequente a aparição de dois Impérios
antagônicos — um de Direita, como Roma, outro de Esquerda, como
Cartago. Hoje, o Império de‑direita é liderado pelos Estados Unidos.
O de‑esquerda é a Iarandara, a Rainha do Meio‑Dia, integrada pelos
Povos pobres da Terra; Povos insulados e marginais, pertencentes
que somos à Raça bruna, malhada e parda‑escura do Mundo; Povos
que, dentro de sua pobreza e de seu abandono, têm, contudo, na sua
imaginação, na sua arte, na sua festa, uma energia, um impulso,
uma alegria, uma beleza que os ricos não mais possuem.”
Dom Pantero
Como se pode entender por estas palavras, escritas por meu
Tio e Mestre Antero Schabino em seu Diálogo d’A Onça Malhada
e a Ilha Brasil, eu só permiti que a notável Maria McBride compa-
recesse ao Simpósio porque ela, apesar do sobrenome arrevesado,
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Eleuda de Carvalho
Bem, Mestre, posso lhe garantir: pelo menos no que se
refere a nós, todos os seus Entrevistadores estão animados pelos
sentimentos mais amistosos do Mundo em relação aos Savedras!
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Maria Lopes
Além disso, Mestre, conversando ontem com Luzia a res-
peito de Goethe e do Simpósio, disse‑lhe eu que li, outro dia, uma
notícia que me deixou impressionada: um Encenador alemão vai
montar o Fausto inteiro, num Espetáculo que terá 17 horas de
duração!
Dom Pantero
Discordo, tanto do nome quanto das justificativas apresen-
tadas para ele! Em primeiro lugar, quem lhe disse que eu quero me
aproximar “dos intelectuais do Primeiro Mundo”?
Depois, não posso admitir que o título de “deus da
Literatura” seja atribuído por Tubeuf a Goethe, e não a Aribál
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Socorro Torquato
Mestre, e se, por acaso, misturando‑se aos 7 dons do
Espírito Santo, os 7 pecados‑capitais também vierem a aparecer
por aqui, para bafejar o Simpósio?
Dom Pantero
Não haverá qualquer problema, porque A Divina Viagem
foi imaginada por meu Tio e Mestre em dois grandes planos —
O Espelho dos Encobertos e O Palco dos Pecadores. Assim, aqui
no Simpósio, o Espelho refletirá a luz dos 7 Dons, e o Palco a som-
bra dos 7 Pecados. Não sei se Vocês já repararam, mas os grandes
personagens de Teatro são, todos, grandes Pecadores: a tal ponto
que, se, um dia, acabar o Pecado (conforme nos foi prometido por
São Paulo), acabará também o Teatro.
Então, Luzia, como bem se pode deduzir por minhas
palavras, não existe a menor possibilidade de eu aceitar o título
de Goethianas Brasileiras, que Você sugeriu para as sessões do
Simpósio.
Dona Clarabela
Muito bem, a sugestão de Luzia não foi aceita! Assim, tomo
a liberdade de lembrar que a Tese com a qual obtive meu grau de
Doutora em Filosofia intitula‑se HEGEL — Palavra Fundadora,
Visão Dialética e Poiesis do Filosofema. E sugiro que as sessões do
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Como todos puderam ver, nem mesmo Hegel escapou ao
imobilismo da tríade, profeticamente anunciada por Frei Joaquim
de Flora mas que o Filósofo alemão não teve gênio suficiente para
ultrapassar.
Por isso, Clarabela, recuso também o nome de Hegelianas
Brasileiras, que Você sugeriu para as sessões do Simpósio.
Nelly Carvalho
E na obra de seu Tio, Mestre, existe alguma ideia que nos
afaste dos erros de Comte, Hegel e Marx?
Dom Pantero
É claro que sim! Aribál Saldanha chegou à solução daquele
problema numa espécie de revelação, de iluminação. No começo
de tudo, o Ser é afirmado diante da anátese inicial. Daí em diante,
caminha ele por um processo dialético, que não se baseia numa
Tríade, mas sim numa Quaterna.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Auro Schabino
É por isso que, no caso de Deus, Trindade significa, de fato,
Unidade‑na‑Multiplicidade. A Santíssima Trindade, una, tem 4, 5,
6, 12 ou mais Pessoas, conforme o ângulo pelo qual, como cegos,
tentemos vislumbrar sua Santa Face.
Adriel Soares
É também por isso que nos opomos a qualquer visão imo-
bilista do Ser‑de‑Deus; acho que o nome mais inapropriado e feio
que já se pensou em dar a Ele foi o imaginado por Aristóteles —
Primeiro Motor Imóvel. Que coisa horrorosa! Deus é uma Pulsação e
é, sobretudo, a Fonte sagrada, pura, misteriosa e bela de toda e
qualquer pulsação. Quando penso n’Ele, vejo o Pai como tese,
Lúcifer como a orgulhosa tentativa de antítese que pretendeu ser,
e o Filho como contrátese. O Espírito Santo — cuja Face feminina
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Sendo assim, Clarabela, vou aproveitar as sugestões de
Vocês no sentido de dar nome às sessões do Simpósio. Mas vou
fazer isso, em primeiro lugar, buscando um nome que aluda à sua
natureza musical; e, em segundo lugar, procurando prestar uma
homenagem ao grande Filósofo brasileiro Mathias Aires, que
publicou sua obra principal em 1752, e cuja visão‑de‑mundo,
antecipando‑se à de Kant e à de Hegel, lhe dá o direito de integrar
uma Quaterna constituída por Parmênides, Tese, Heráclito, antíte‑
se, Anaximandro, contrátese, e Mathias Aires, síntese:
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Aribál Saldanha
Mathias Aires, portanto, constatava a realidade do Ser.
Mas também a do Vir‑a‑Ser, que resulta da porção de Nada dia-
leticamente introduzida na enigmática natureza do Ser. E era por
causa disso que às vezes lhe queimava o sangue uma contida mas
desesperada ponderação, composta em Dó‑Sustenido Maior e que
parecia soprada a ele pelo hálito‑de‑fogo daquele grave Pensador
que foi Heráclito:
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dona Clarabela
A meu ver, esse aforismo constitui o próprio núcleo da
Weltanschauung airesiana.
Dom Pantero
Talvez seja mesmo, se bem que eu não veja necessidade
de se usar uma palavra tão horrorosa quanto Weltanschauung
em relação a um Escritor da raça e da garra de Mathias Aires;
principalmente no curso deste Simpósio, no qual procuramos
fundir o sonho de justiça do Futuro com o prazer libertário do
Presente, fundamentado na fruição da ardente alegria brasileira
do Espetáculo e da Festa.
Mas vamos deixar isso de lado, porque há pouco, Clarabela,
Você acabou me dando o nome que estávamos procurando para
batizar as sessões do Simpósio. Airesiana lembra Arlesiana, e,
consequentemente, Arles, a Provença, a Música e, através de Van
Gogh, a Pintura.
Ora, quando terminar o Simpósio e eu, cumprindo a reco-
mendação de meu Mestre, começar a reconstituir A Divina Viagem
a partir de seus Anais, a Obra será um Marco; um Circo; um Castelo
construído ao galope e ao embalo épico da Arquitetura, da Pintura
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Mestre Vitalino
“Eu criava pela Cadência, tirando tudo do meu juízo. Fazia o
que via, mas também o que nunca tinha visto: criava pela Cadência.”
Dom Pantero
Por isso, deixando de lado as sugestões que Vocês me apre-
sentaram, vou chamar de Airesianas Brasileiras as Cartas que, de-
pois de encerrado o Simpósio, darão origem ao Castelo‑Epistolar
que será A Divina Viagem.
Sônia Prieto
Mas, Mestre, se o senhor esperar pelo fim do Simpósio,
A Divina Viagem vai demorar muito a sair! Seus inimigos já an-
dam murmurando pelas esquinas que o senhor jamais concluirá o
Livro que seu Tio lhe encomendou. O senhor não se preocupa com
isso, não?
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Eu? Pelo contrário! Por mim, mesmo que o Simpósio se
conclua antes, só entre 8 de Março de 2014 e 23 de Abril de 2016
é que começarei a publicar as Cartas planejadas por Tio Antero e
que deverão configurar o Romance que ele me mandou fazer como
se fosse uma verdadeira Missão, a mim confiada em seu leito de
morte. Pensei, inclusive, em adiar este Simpósio, inaugurando‑o
somente em 19 de Janeiro de 2005!
Elizabeth Marinheiro
Por que exatamente nesta data, Mestre?
Dom Pantero
Primeiro, porque foi em 19 de Janeiro de 1886 que nasceu
o Cavaleiro. Depois, porque em 19 de Janeiro de 2005 estarão se
completando 400 anos da publicação do Dom Quixote, uma das
obras‑padroeiras deste Simpósio, e eu queria, com esta gloriosa
Festa, prestar também a minha homenagem a Cervantes.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Minhas pesquisas foram mais rigorosas do que as suas,
meu caro Ivan! Estude mais o assunto e verá que, na verdade, a
primeira parte do Dom Quixote foi publicada no dia 19 de Janeiro
de 1605. E veja que coincidência curiosa: no século seguinte, o
grande Dramaturgo brasileiro Antônio José da Silva, O Judeu (ou-
tro Patrono do nosso Simpósio), encenou, com Atores e Bonecos,
no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, sua Vida do Grande Dom
Quixote de la Mancha, o que, segundo vagamente se informa,
aconteceu “em Outubro de 1773”.
Como Você, fiz pesquisas sobre o assunto e descobri que
a extraordinária Peça do nosso compatriota subiu ao Palco pela
primeira vez em 9 de Outubro de 1773 — o que representou outro
motivo para abrirmos hoje o Simpósio Quaterna, pois a vida do
Cavaleiro durou apenas 44 anos, de 19 de Janeiro de 1886 a 9 de
Outubro de 1930.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Senhor Diego Maynar Bostezo, não me espantam suas ex-
pressões nem a hostilidade que elas encerram, porque o senhor
é, aqui, uma espécie de Corifeu e líder do Coro dos Equivocados
(assim como Ascenso Café desempenha o mesmo papel em rela-
ção ao Coro dos Ressentidos).
Mas, para credibilidade deste Simpósio e de seu principal
Depoente, quero garantir, principalmente “aos participantes de
fora”: o que vem de baixo não me atinge! Nossos adversários são
de uma incompetência fora‑do‑comum, nem a insultar‑nos acer-
tam! Ao chamar‑me de Mariano Beato — e a meu Tio (e Mestre)
de Antero Megalo e Antero Mitoma — não se lembram de que,
como disse Oscar Wilde, “a caricatura é o tributo com o qual mais
comumente a mediocridade costuma homenagear o gênio”; o que
digo, evidentemente, pensando em Tio Antero e em meus 3 irmãos
que eram Escritores — Altino, Adriel e Auro; não em mim, Artista
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Cego Oliveira
“Quando moço, eu era bom demais. Hoje estou velho e vou
ficando meio distraído das coisas. Já esqueci muitos versos, mas
ainda toco e canto nas Romarias.
“Acredito na vida do outro Mundo, mas ninguém sabe como
ela é.
“Uma vez, na hora de esbarrar o Toque, cantei uma Despedida
tão bonita que uma Mulher disse: ‘Faz pena um Homem desse ter
que morrer um dia.’
“Mas eu não tenho medo da Morte: minha Rabeca é tocada
conforme o tom da Sabedoria.”
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Confesso, então: ao resolver levar este Simpósio adiante,
um de meus sonhos era (e é) ver no final dele pelo menos uma
das Mulheres que estão na Plateia fazer declaração parecida, se-
não para Antero Savedra, pelo menos para Dom Pantero; porque,
como a do Cego, minha Rabeca também é tocada conforme o tom
da Sofia, da Misericordiosa, da Coroada, da Sabedoria.
Albano Cervonegro
Gestos de amor, de sangue e de ouro puro, perdidos nesta
riba da Vertente. Caminhos, gerações, ecos e vozes, deitados pela
terra seca e ardente. O Esverdeado e a Pedra consagrada; o Jaguar
e a peçonha da Serpente.
Dom Pantero
Juntas, as palavras de Albano, do Cego e de Altino configu-
ram o enigma do Mundo, da Vida e da Morte; e, ao mesmo tempo,
mostram que, em nosso caso, aquilo que Diego Maynar Bostezo
chama de mentira é, na verdade, “a rabeca da Sabedoria”; uma Arte
estreitamente ligada ao papel que a Misericordiosa desempenha
Lígia Vassalo
Mestre, perdoe‑me, mas esta digressão vai um tanto longa
e desejo fazer‑lhe uma pergunta mais objetiva. Não sei se o senhor
chegou a ver isso; mas recentemente, a propósito da chegada do
século XXI, foi feita uma consulta a vários intelectuais para se
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
De modo nenhum! Prefiro Cervantes, e Dostoiévski era
da mesma opinião que eu! Mas quero deixar claro: qualquer um
dos dois que seja o preferido, este é mais um motivo para eu só
publicar minhas Cartas de 2014 em diante, já no Terceiro Milênio
e portanto a salvo de qualquer comparação com as obras daqueles
dois Escritores.
Astier Basílio
Mestre, Gilberto Freyre declarou uma vez que, ao concluir
Casa Grande & Senzala, dissera a si mesmo: “O homem que escre‑
veu este Livro, ou é um idiota ou é um gênio.” E acrescentou que só
depois percebeu a verdadeira dimensão da Obra, passando então
703 703
Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Não, absolutamente não! Gilberto Freyre falou assim ape-
nas por modéstia! Quanto a mim, não tenho dúvida alguma sobre
as dimensões da Obra que será A Divina Viagem e sobre o gênio
de seu Autor, que (preciso lembrar de novo) não sou eu: é, sim,
meu Tio, Mestre e Padrinho, Antero Schabino, coadjuvado por
Altino, Auro, Adriel e Eliza de Andrade.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
E é por isso que quando eu for escrever as Epístolas que vão
construir A Ilumiara pretendo fazê‑las entre 8 de Março de 2014 e
23 de Abril de 2016 — data que marquei para a minha morte.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Catarina Sant’anna
Mestre, eu não penso assim: mas há quem diga que
Personagens como o Fabiano, de Vidas Secas, ou o Severino, de
Morte e Vida Severina, em seu mutismo, sua secura e sua so-
briedade, são muito mais verdadeiros, como expressões “do Povo
pobre do Brasil real”, do que “os loquazes e irresponsáveis falastrões
que aparecem nas peças de Adriel Soares e no Romance d’A Pedra
do Reino de Auro Schabino”.
Não estou de acordo com essa opinião nem sou nenhuma
equivocada — tanto assim que já escrevi sobre a obra dos Savedras
um Ensaio intitulado O Riso a Cavalo e o Galope do Sonho. Mas
gostaria de saber o que o senhor tem a dizer sobre aquela opinião
dos ressentidos.
Dom Pantero
Fabiano e Severino não são sertanejos “mais verdadeiros”,
são apenas mais parecidos com aqueles Sertanejos pelos quais os
grandes Escritores que os criaram se interessavam (por serem,
como eles, “secos, tristes, sóbrios e despojados”). Mas, no meio desse
mesmo “Povo pobre do Brasil real”, existem — no Sertão, na Mata,
no Litoral, na Cidade — pessoas tão “verdadeiras” quanto Fabiano
e Severino mas muito diferentes deles. São Capitães‑de‑Cavalo
‑Marinho, como Antônio Pereira; Velhos‑de‑Pastoril, como Faceta;
Rabequeiros, como O Cego Oliveira; Mamulengueiros, como Chico
Daniel; ou Mestres‑de‑Maracatu‑Rural como Manuel Salustiano.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Cláudia Leitão
Mestre, juntamente com Rosette Fonseca, estou pensando
em realizar, em Campina Grande, um Simpósio semelhante a este.
De modo que venho pedir‑lhe para nos adiantar alguma coisa so-
bre a linha e os objetivos do Simpósio Quaterna, pois achamos, eu
e ela, que isso poderia ser útil para a estrutura do nosso.
Dom Pantero
Aliás, tudo isto só se tornou possível depois do meu
encontro com Dom Pancrácio e Dom Porfírio, em Ingá, e com
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Gustavo Paso
Mestre, perdoe minha ignorância, mas nunca ouvi falar
nesse Prêmio ao qual Dom Paribo Sallemas acaba de se referir. De
onde vem ele e qual seu verdadeiro significado?
Dom Pantero
Meu caro Gustavo, não fale assim de um Prêmio literário
que, para os verdadeiros Críticos do mundo inteiro, é hoje con-
siderado mais honroso do que o Nobel! Seu nome, pelas letras
X, E e R, que o iniciam, alude a Dom Garci Ferrandes Xerena de
Cordobal, o grande Poeta galego do século XIV; A, S e S, referem‑se
a Machado de Assis; U, N, H e A, a Euclydes da Cunha; C, A, M
e O, a Camões; e, finalmente, V, A, N, T, E e S, a Cervantes. Note,
então: dois grandes Brasileiros, um Português, um Galego e um
Espanhol; o que torna o Prêmio ainda mais significativo, porque
a Cultura brasileira, a portuguesa, a galega e a espanhola são as
melhores e mais importantes do Mundo!
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Você está redondamente enganado, meu caro! Explico: co-
mo “pessoa civil” estou sinceramente convencido de que sou um
homem comum, modesto e cheio de limitações. Acontece que, ago-
ra, não é Antero Savedra e muito menos Mariano Jaúna quem está
aqui no Palco, não. É Dom Pantero — e para ele eu sou forçado a
exigir o tratamento de Mestre.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Senhoras e senhores participantes do Simpósio, essa é
uma versão maldosa dos nossos equivocados adversários; e Diego
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Não, infelizmente não! Eu o tinha, anotado, mas perdi‑o na
cheia que, em 1975, inundou o Recife e na qual perdi livros e pa-
péis preciosos. Nossa Casa recifense fica à beira do Rio Capibaribe
e foi inteiramente alagada pela enchente.
Virgílio Maia
Mas não foi em 1970 que Você voltou aqui para Taperoá,
Mestre?
Dom Pantero
Não, 1970 foi apenas a data em que vim aqui pela primeira
vez depois da nossa mudança para o Recife. Minha volta definitiva
aconteceu depois; e, mesmo assim, eu vim só, na frente: meus
livros e papéis vieram posteriormente, após a morte misteriosa
de Adriel, meu irmão, quando assumi Eliza e seus Filhos como a
única Família que ainda tenho no Mundo — decisão que tomei
depois de meu encontro com Quaderna, Clarabela, o Doutor Pedro
Vandiwoyah e sua Mulher, Ashera Acken.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Guaraciaba Micheletti
Mestre, segundo afirmava Nietzsche, alguns dos maiores
títulos de glória, algumas das melhores e mais consagradoras defi-
nições que recebemos são as alcunhas pretensamente infamantes
que nossos inimigos nos colocam. Os apelidos postos em seu Tio
pelos adversários de Vocês tinham alguma coisa a ver com isso?
Dom Pantero
Tinham, tinham tudo a ver! Tanto assim que ele ficou
profundamente orgulhoso ao tomar conhecimento de que um in-
telectual do interior de Pernambuco, procurando caricaturar sua
pessoa e sua linguagem dialética, publicara, no jornal Vanguarda,
de Caruaru, um artigo no qual afirmava: “Dos nordestinos arcaicos e
nefastos ao Brasil já morreram Antônio Conselheiro, tese, Lampião,
antítese, e Padre Cícero, contrátese; de modo que agora, para eli‑
minar, de vez, a corja, só falta morrer a síntese de todos eles, Antero
Schabino.”
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Vernaide Wanderley
Mestre, não leve a mal minha estranheza; mas é verdade
que seu Tio ficou orgulhoso ao ler uma frase insultuosa como essa?
Dom Pantero
É claro que ficou, como eu também ficaria, se ela fosse
pronunciada a meu respeito! Sendo Antônio Conselheiro, Lampião
e Padre Cícero 3 grandes Mitos brasileiros — um Profeta, um
Guerreiro e um Santo —, são Personagens somente comparáveis
aos maiores da Literatura universal; e poderia haver, para nós,
companhia mais honrosa do que a deles?
Mário Guidarini
Mestre, Você não acha que, em vez de honrosa, a frase tinha
era alguma coisa a ver com aquelas alcunhas de Antero Mitoma e
Antero Megalo que davam a seu Tio no Recife?
Dom Pantero
É verdade, como eu disse há pouco, de passagem; os equi-
vocados chamavam meu Tio, Mestre e Padrinho por esses nomes,
afirmando que, “além de megalomaníaco”, ele era “um mentiroso,
um mitomaníaco”. Coitados, não percebiam que, ainda aqui, esta-
vam mais uma vez homenageando Antero Schabino e nele reco-
nhecendo as características de todo Poeta de gênio!
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Minha filha, tenha cuidado com suas perguntas para depois
não aparecer mal em folha impressa, caso eu venha, mesmo, a
concordar com a Entrevista que Vocês solicitaram! Primeiro, que-
ro lembrar que, se A Onça Malhada e O Desejado foram obras
escritas em prosa, meu Tio concebera A Divina Viagem como um
misto de Poema e Novela‑Épica, composto em verso e prosa ao
mesmo tempo. Para realizar a obra, ele já vinha se preparando cui-
dadosamente há bastante tempo: entre outras coisas, comprou um
Dicionário de Rimas e aprendeu a metrificar, com Auro e Adriel.
Infelizmente, antes de levar seu plano a cabo, deixou‑se
surpreender pela Morte. Mas quero deixar claro que ele tomava
aquelas providências apenas por precaução e para não oferecer
flanco desprotegido a nenhum ataque dos equivocados.
Falo assim porque, mesmo que só tivesse publicado aquelas
duas obras, não haveria nada de estranho em ser meu Tio consi-
derado um Poeta — e de gênio! Como falei há pouco respondendo
às injustas ponderações do equivocado Diego Maynar Bostezo,
chamavam meu Tio e Mestre de megalomaníaco, e ele respondia,
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Alto lá, a Entrevista ainda não está sendo concedida! Por
enquanto estou alinhando minhas palavras apenas numa espé-
cie de Aula‑Espetaculosa em ponto grande! Só concordarei em
transformá‑la numa Entrevista se notar que posso fazer desta
uma Narrativa, como A Odisseia ou O Asno de Ouro, e ao mesmo
tempo um Diálogo, como Fedro e O Banquete. E aviso logo: se vier
a ser concluída, A Divina Viagem será composta de várias partes
independentes; partes que podem ser lidas separadamente mas
que integram um conjunto de unidade perfeita, assim como, na
Santíssima Trindade, as diversas Pessoas são distintas mas unidas
em uma só Natureza.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
E quem lhe disse que a Entrevista é um gênero limitado e
menor? Dependendo de quem pergunte, de quem responda e de
quem transcreva, a Entrevista pode alcançar a maior qualidade
possível a uma obra literária! Não sei como não ocorreu ainda
a Vocês que A Divina Comédia, por exemplo, é uma espécie de
Diálogo neoplatônico no qual Dante, fazendo o papel de Platão —
isto é, o de jovem Discípulo —, entrevista Virgílio, que desempenha
o de Sócrates, o Mestre.
Tal fato eleva o Diálogo (e consequentemente a Entrevista)
à altura dos maiores gênios e gêneros literários; e Vocês, “jorna‑
listas e intelectuais pós‑modernos”, Vocês, que seriam os grandes
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Daniela de Lacerda
Naquelas palavras que pronunciou há pouco respondendo
a Diego Maynar, Mestre, existe um ponto que para mim não ficou
muito claro: o senhor acha, mesmo, que A Divina Comédia é um
Diálogo, semelhante aos de Platão?
Dom Pantero
Tenho plena certeza disso! Não é por acaso que o amor
de Dante por Beatriz é considerado como o protótipo da paixão
idealizada e platônica. Note que estou dizendo idealizada, e não
espiritualizada! Espiritualizada era a paixão que unia Santa Clara
a São Francisco de Assis, Santa Teresa a São João da Cruz, Santa
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Marieta Severo
E quando estiver pronta, Mestre, A Divina Viagem terá al-
guma coisa a ver com os Diálogos, de Platão, e A Divina Comédia,
de Dante?
Dom Pantero
Mas existe outra relação entre as duas obras: logo no pri-
meiro Canto de seu Poema, Dante — é verdade que sem muito
entender o que dizia — faz referência a um certo e misterioso
Veltro que, oposto à Loba, é uma espécie de anúncio incompleto,
vago e imperfeito d’O Encoberto (núcleo e obsessão da obra dos
Savedras). Fala Virgílio a seu jovem Discípulo:
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Com exceção dos equivocados, todos, aqui, devem ter en-
tendido que a Loba é uma recriação florentina da Esfinge edipiana
e grega. Mas Dante apenas balbucia aquilo que, n’A Divina Viagem,
aparecerá claro e iluminado. Inclusive, ele comete um erro em que
os Savedras — fiéis admiradores e paladinos das Mulheres — ja-
mais incorreriam: apresenta o Veltro, macho, como símbolo do
Bem, e a Loba, fêmea, como o do Mal. Qualquer um dos Savedras
desdobraria logo esses 2 em 4 — o Veltro e a Veltra, o Lobo e a
Loba.
Mas temos que desculpar Dante, porque, sendo apenas um
filho quase‑legítimo da Rainha do Meio‑Dia, jamais poderia ter
olhos capazes de enxergar O Encoberto e A Encoberta — aquelas
Figuras sacratíssimas sem cuja presença a obra dos Savedras não
poderia sequer ter sido imaginada.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
José Vidal
Mestre, não se ofenda com o que eu vou dizer, mas, para nós,
é estranho que o senhor coloque ao lado d’A Divina Comédia uma
obra que, como A Divina Viagem, nem sequer foi escrita ainda!
Dom Pantero
É uma questão de parentesco. Guardadas as devidas pro-
porções — e qualquer que seja a importância de cada uma dessas
obras quando consideradas separadamente —, elas se filiam à
mesma linhagem.
DOM PANTERO
Então vocês se limitem a transcrever o que eu disse com a
maior exatidão, sem avançar qualquer “esclarecimento” ou inter-
pretação nãoautorizada das minhas palavras.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Incomoda, sim: o título d’A Divina Viagem foi escolhido por
meu Tio, que, às vezes, era um tanto pretensioso. Por isso, estou
inclinado a mudá‑lo para outro que, na linha de Machado de Assis,
Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto, é bem mais simples,
seco, sóbrio e despojado — A Ilumiara. Note bem: não A Divina
Ilumiara; pura e simplesmente A Ilumiara. Como A Odisseia! Ou
como A Orestíada, que também é uma obra musical, dançarina
e teatral, “uma Tragédia composta segundo o espírito da Música”.
Mas penso também em colocar‑lhe o título de Dom Pantero (ou o
de Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores).
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Está aí, talvez, a maior mágica d’A Pedra do Reino: Auro Schabino
fez um Romance ‘circular’, de arena, envolvendo na mesma ação
personagens e leitores. Repetindo a comparação que fiz a princípio,
lembro que A Divina Comédia também é um Livro ‘circular’.
“O livro de Auro Schabino é um Romance com princípio,
meio e fim; que conta uma história ‘real’ e ‘fantástica’; em que, de
repente, surgem umas surpresas doidas; em que os homens não são
totalmente perfeitos; em que a Divindade de vez em quando dá seus
palpites; em que os amores ora são cândidos ora são lascivos; em
que se ri e em que se chora.
“Isto como tem acontecido desde o Teatro grego. É tal o en‑
trosamento de Auro Schabino com as fontes mais puras do popular
brasileiro que, criando dentro dele ou recriando sobre ele, inventando
ou reinventando, compõe uma Obra lírica e trágica ao mesmo tempo.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Não. Eu o tinha, mas perdi‑o também, na cheia de 1975.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
É que Cervantes é outro Poieta, outro Escritor de gênio que,
ao empreender sua Narrativa, faz com que o Cavaleiro da Triste
Figura, como um Ulisses ou um Eneias demente, desça àquele mis-
to de Selva‑selvagem e Hades‑ibérico que é a Cova de Montesinos.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Por mais que o fizesse, não delirou nem mentiu mais do
que Dante ao narrar sua incursão ao Inferno: o que mostra, mais
uma vez, que as mentiras e os delírios de meu Tio e Mestre eram
apenas provas de seu gênio (resultante da fusão do hemisfério
Rei, dantesco, com o hemisfério Palhaço, cervantino).
Além disso, o Dom Quixote é também um enorme Diálogo,
uma Divina Comédia que, sendo cavaleiresca como A Demanda
do Santo Graal ou Tirante, O Branco, é, ainda, picaresca e milé-
sica, como O Asno de Ouro (e é em homenagem a Apuleio que
talvez a primeira parte d’A Ilumiara venha a se chamar O Jumento
Sedutor). O casto Cavaleiro que é Dom Quixote é um Galaaz insano,
montado em Rocinante; ou um Dante‑envelhecido nunca montado
— a não ser alegoricamente, platonicamente — em sua Beatriz,
Dulcineia. Cervantes fez assim para que seu Dante‑Cavaleiro fosse
procurar Virgílio, o Mestre, e, ao invés dele, terminasse por en-
contrar aquela fusão de Lúcio‑apuleico e Lazarilho‑tormesino que
longamente o entrevista na pessoa de Sancho.
Martim Simões
Mestre, peço desculpas por aquilo que pode até parecer uma
impertinência minha; mas suas ideias são de tal modo “originais”
que eu gostaria que o senhor as esclarecesse mais detalhadamente.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Julgo notar um leve tom de ironia seu ao falar da “originali-
dade” de minhas ideias! Ou será que estou enganado?
Martim Simões
Completamente enganado, Mestre! Deus me livre! Queria
pedir apenas que o senhor fosse mais claro sobre esse parentesco
entre A Ilumiara e o Dom Quixote, assim como sobre a natureza mu-
sical da obra de Cervantes (já que A Ilumiara não está pronta ainda).
Dom Pantero
Vou começar pelo fim, porque não gostei de sua insistência
em acentuar que A Ilumiara não é, ainda, uma Obra acabada. Já
disse, há pouco, que, enquanto ela não se põe de pé, terá, para falar
por ela, o Romance d’A Pedra do Reino, de meu irmão Auro, que
morreu sem terminá‑lo. É como se a tradição de minha Família
fosse nunca fechar suas Obras, que, no entanto, receberam a
maior compreensão, quanto ao inacabamento, por parte daquele
extraordinário escritor que foi Gabriel Ferro. Ele assim falou do
romance de Auro no jornal O Monitor, de Garanhuns:
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Quanto à outra questão levantada por Martim Simões, volto
à observação que fiz quando disse que A Ilumiara há de ser a fusão
de uma Farsa com “uma Tragédia composta segundo o espírito da
Música”. Falei, também, na importância que tiveram as Variações
musicais para a concepção deste Simpósio — que, como todos já
puderam ver, é um Espetáculo musical, dançarino, literário, mími-
co, teatral e vídeo‑cinematográfico.
Pois bem: não sei se Vocês sabem que Pabst fez uma versão
cinematográfica do Dom Quixote; que Nureiev fez, dele, um Balé,
com música de Ludwig Minkus e inspirado na coreografia de Mário
Petipa; que Ricardo Strauss compôs as Fantásticas Variações Dom
Quixote, para Violino, Viola, Violoncelo e Orquestra; e Manuel de
Falla o Retábulo de Mestre Pedro, com um grande barítono espa-
nhol no papel de Dom Quixote.
Ora, sempre achei que, sendo o soprano das cordas, o
Violino é fêmea e deveria chamar‑se a Violina (e não o Violino).
Já a Viola, tenor, é macho, e deveria se chamar o Violo. O Violoncelo,
barítono, também é macho e deve permanecer com o nome que
sempre foi o seu.
Por isso, se um dia eu me resolver a encenar o Dom Quixote
brasileiro, vou fazer dele um misto de Ópera, Teatro, Mamulengo,
Balé e Cinema, usando as Variações de Ricardo Strauss como tri-
lha sonora e com Dulcineia falando pela voz da Violina; Sancho
pelo Violo; e Dom Quixote pelo Violoncelo.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Benedito Nunes
Meu caro Antero Savedra, por motivos parecidos com os de
Ivan Neves Pedrosa, também me julgo dispensado do tratamento
de Mestre exigido por Você para Dom Pantero. Por outro lado,
como Catarina Sant’Anna, não sou nenhum equivocado, e dediquei
um ensaio ao Romance d’A Pedra do Reino, de Auro Schabino —
ensaio no qual destacava o caráter mítico daquela obra. Mas, sobre
a relação desse Romance com o Dom Quixote, gostaria realmente
que Você fosse mais claro.
Dom Pantero
Quanto à dispensa do tratamento de Mestre, estou de acor-
do, se bem que esteja também com medo de que, de exceção em
exceção, a prática se generalize: com as que concedi a Você e a Ivan
são duas — e basta!
Agora, a respeito de seu outro pedido, na verdade só tratei
aqui mais detidamente das semelhanças entre A Divina Comédia
e o Romance dos Encobertos (que, aliás, se dividiria em 3 partes,
das quais Auro só publicou uma — A Pedra do Reino).
O Personagem principal da Trilogia era o Narrador,
Quaderna, que, na Guerra da Coluna, tentando se passar por
um novo Dom Sebastião, se apresenta sob o nome falso de Dom
Sebastião Pereira. Outros Personagens importantes eram João
Tinoque (pai de João Grilo) e Chico Furiba (pai de Chicó). Depois
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Márcio Rodrigo
Aqui peço licença a Maria McBride, não para contestá‑la,
mas para dizer que no próprio autor d’A Pedra do Reino havia
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Diana Moura
Acho curioso que Márcio Rodrigo fale assim, porque uma
vez fiz a dois professores de Literatura uma só e mesma pergunta
sobre Quaderna e Dom Quixote — e ambos responderam de um
modo que a meu ver lança luz sobre o assunto.
A pergunta nasceu do fato de que a história de um
Cavaleiro, utopicamente empenhado em mudar o Mundo para
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Agradeço, aos dois, suas palavras, assim como agradeço a
Diana Moura, lembrado que estou da bela matéria que, no Jornal de
Arcoverde, ela publicou sobre as litografias, porcelanas e escultu-
ras de Eliza de Andrade, minha mestra de Gravura; assim como de
outra sobre meu sobrinho e filho‑adotivo, Manuel Savedra Jaúna.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Como se vê por aí, esta Mulher admirável que é Odília Leal,
não somente considera meu irmão Auro Schabino “um gênio”, mas
concorda com o que aqui se vinha dizendo sobre as semelhanças
entre o Dom Quixote e o Romance d’A Pedra do Reino — o que,
sem dúvida, é um dos maiores elogios que a este se podem fazer.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Ascenso Café
Pois, a meu ver, o Comunicado feito por Odília Leal contém
uma crítica violentamente contrária ao romance de Auro Schabino
e é um desmentido frontal às palavras de Antero Savedra sobre as
supostas semelhanças entre A Pedra do Reino e o Dom Quixote —
obras que, segundo a própria Odília Leal, caminham em direções
opostas: na de Cervantes, Dom Quixote “aprende que não existe
futuro para o heroísmo e que ele próprio é um homem comum”; no
romance de Auro Schabino acontece o contrário com o ridículo
“Dom Pedro Dinis Quaderna, O Decifrador”. E eu gostaria de saber
o que é que o “iluminado” Antero Savedra tem a dizer sobre isso.
Dom Pantero
Aquilo que Você chama de “crítica violentamente contrá‑
ria” é um dos maiores elogios já feitos ao Romance d’A Pedra do
Reino. Primeiro, porque mostra que o livro de Auro não é uma imi-
tação rasteira da genial NoveladeCavalaria escrita por Cervantes.
Depois porque a diferença apontada por Odília Leal termina as-
sinalando o único pecado, a única mancha do Cavaleiro da Triste
Figura. Na minha opinião, a única derrota verdadeira sofrida por
Dom Quixote acontece quando, no fim do Romance imortal, ele
chega à conclusão de que seu generoso Sonho era uma quimera
grotesca, fantástica, ridícula, vã.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Mas mesmo que assim aconteça, isso não impede que nós,
como Sancho, admiremos e amemos o Cavaleiro; nem nos impede
de ver que Dom Quixote, por dentro e em alguns casos de sofri-
mento maior, tinha consciência de sua terrível sorte.
Na verdade, é profundamente simpática e tocante a avalia-
ção que faz Sancho sobre seu senhor:
Dom Pantero
E não posso ouvir sem profunda piedade a dolorosa após-
trofe em que Dom Quixote mostra como, mesmo enredado nas
teias da demência, enxerga a desventura de sua condição:
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Nisto o Romance d’A Pedra do Reino tem um parentesco
de linhagem com o Dom Quixote; e afasta‑se do imortal Romance
escrito por Cervantes porque, nele, Quaderna mantém aceso até o
fim, pela Arte, o fogo de seu Sonho.
E o que digo do Personagem pode‑se aplicar também a seu
criador: não importa que Auro Schabino (como nosso Pai e Adriel)
tenha sido assassinado pelos inimigos de seu generoso Sonho; do
tacanho e rasteiro ponto de vista dos ricos, dos poderosos e das
“pessoas sensatas”, o Cristo também morreu derrotado — o que
somente aconteceria, porém, se Ele se resignasse a abandonar sua
Missão, concordando em passar de “Alazon” a “Eiron”.
Consuelo Pondé
Mestre, uma vez ouvi Wellington Aguiar falar muito mal dos
Savedras. Além de ser contrário a “todas as ideias arcaicas, ultra‑
passadas e oligárquicas que os Savedras sustentam desde 1930”, ele
não perdoa o fato de que Vocês, ainda hoje, teimam em não aceitar
a mudança do nome da Cidade da Paraíba para João Pessoa.
Dom Pantero
Querida Consuelo, entre os Paraibanos ilustres, dou impor-
tância a Augusto dos Anjos por ter escrito o Eu; a José Américo de
Almeida, por A Bagaceira; e a José Lins do Rego por causa de Meus
Verdes Anos, Banguê, Fogo Morto, Pedra Bonita e Cangaceiros.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Salvar da cinza e das chamas algo de belo e imperecível
que nos afirmasse e consolasse diante do fogo, do mal, do feio
e do sofrimento. Quanto a mim, minha alma só arde quando, no
Palco, por meio do “Riso a cavalo” e do “galope do Sonho”, consigo
vencer a tristeza, as humilhações, o desordenado e as injustiças do
Mundo, armando‑me como Cavaleiro capaz de criar a Beleza e, ao
mesmo tempo, de lutar, com as armas de que disponho, em favor
dos desvalidos e infortunados desta Vida.
Niède Guidon
Mestre, não vou me pronunciar sobre as concordâncias,
ou discordâncias, que mantenho em relação a tudo o que Você
fala sobre a Arte rupestre. O que tenho a perguntar é mais grave,
porque a indagação questiona o próprio processo de criação do
Livro que Você pretende fazer com fundamento nos debates do
Dom Pantero
Não, não tenho! E, feliz de estar falando com a grande
Mulher que revelou para o Mundo a beleza e a importância des-
se inestimável patrimônio da Arte brasileira que é a Serra da
Capivara, digo‑lhe que não tenho medo, porque o tipo de encanta‑
ção que haverá n’A Ilumiara é diferente, mas não menos intenso,
do que o de Romances como Almas Mortas, Crime e Castigo ou
Os Demônios. Lembro a Você que, como Hamlet e Orestes, Auro —
principal responsável pelo que A Ilumiara terá de Romance — era
filho de um Rei assassinado; mas, ao assumir o papel profético
(e falhado) que foi o dele na Favela‑Consagrada da Ilha de Deus,
Auro se viu transformado numa espécie de Misantropo e “pal‑
matória do Mundo”, de convivência tão incômoda e desagradável
quanto o imortal personagem de Molière; ou quanto aquele outro
imortal Personagem que é o Antônio Conselheiro que aparece
n’Os Sertões — obra que lemos com encantação igual àquela que
experimentamos lendo A Orestíada, Quincas Borba ou Os Irmãos
Karamázov.
Lembro ainda que o Filósofo do romance de Machado de
Assis é também incômodo, inconveniente e insano; assim como
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
De tal modo (não sendo megalomaníaco e vaidoso como
Quaderna ou como meu Tio, Padrinho e Mestre, Antero Schabino),
sei que jamais alcançarei aquela forma de encantação que existe
na leitura de Scaramouche, d’Os Maias, d’O Guarani ou d’O Conde
de Monte Cristo. Mas “a suspensão do entendimento e o enleio dos
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Gabriela Martin
Mestre, quanto ao rigor ou não rigor científico de suas
opiniões sobre a Arte rupestre, faço minhas as palavras de Niède
Guidon. Mas meus temores sobre a sorte e a qualidade literária
da Obra a ser feita a partir deste Simpósio nascem de uma dúvida
ainda mais grave do que a dela. Gira sobre a Política, assunto que
de vez em quando aparece em sua fala e que, se o senhor não
tomar cuidado, vai manchar de forma irreparável a Obra que
seu Tio e Mestre lhe confiou em momento tão grave. A meu ver,
a Política, num Romance, pode destruir exatamente a “suspensão
do entendimento”, o “enleio dos sentidos” que, segundo Antônio
Vieyra, constitui o maior encanto da Arte. Não se esqueça daquilo
que Stendhal afirmou:
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Antes de mais nada, deixe‑me também prestar minhas
homenagens a essa outra grande Mulher que, além de revelar
ao Povo brasileiro o patrimônio da Arte rupestre do Seridó, foi
quem me colocou nas mãos o Diário manuscrito de meu Tio João
Soares Sotero Veiga Schabino de Savedra, o famoso Livro Negro
do Cotidiano; roubado pela Polícia em 1930, foi localizado por
Gabriela Martin, que assim contribuiu, de modo incomparável,
para os fundamentos gráficos e literários mais importantes entre
os que, um dia, possibilitarão a feitura d’A Ilumiara.
Dito isto, devo explicar que Auro tinha, em relação à Polí-
tica, as mesmas preocupações que Você revelou, Gabriela. Ia mais
longe, até: dizia que a atividade política só é necessária porque os
Seres‑humanos ainda estão a‑caminho e muito distantes daquele
Absoluto libertário e justo para o qual, segundo Hegel, nos dirigi-
mos.
Quanto às palavras de Stendhal, quero lembrar que elas
foram incluídas no texto de O Vermelho e o Negro, um dos
Romances mais decididamente políticos entre todos os que já
foram escritos — afirmação que se pode fazer, também, a respeito
de Os Demônios, de Dostoiévski.
Mas Stendhal tem razão quando afirma que, num Romance,
a Política pode ofender ou aborrecer mortalmente seus leitores:
é o que acontece, por exemplo, com os Marxistas em relação a
Dostoiévski, o único Escritor que se emparelha com Shakespeare
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Albano Cervonegro
Saturno esverdeado, Mangue turvo, o limiar da Morte, a
Flecha e o Dardo. O Medo. A verde treva da Serpente. O sofrimento
mudo e o Desbarato. N’água salobra e infecta dorme a Cobra. E o
Corvo azul persegue o Gato‑pardo.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Profundamente comovido, em nome de meu irmão Auro
agradeço as intervenções de Wilson Martins e Braulio Tavares.
Mas atrevo‑me a pedir aos dois que esperem A Ilumiara: acredito
que, depois de sua leitura, ambos vão ter que acrescentar alguma
coisa a suas brilhantes e generosas palavras; inclusive no que diz
respeito àquele “Gênio” que, segundo Wilson Martins, iria apare-
cer para destruir a parede contra a qual João Guimarães Rosa teria
encostado o Romance brasileiro.
Gerson Camarotti
Mestre, gostaria que o senhor nos falasse sobre as acusa-
ções que às vezes lhe são feitas de ser “um Dom Quixote arcaico”.
O que o senhor tem a dizer a respeito disso?
Dom Pantero
Não perca tempo com essa gente não, meu caro Gerson!
Esses “equivocados” são um bando de incompetentes, nem a
Dom Pantero
Acho, e quero felicitá‑lo pela agudeza de sua observação!
No entanto, com toda a simpatia que tenho pelos dois, devo dizer
‑lhe, primeiro, que no belo delírio, no sonho generoso de Dom
Sebastião, existe uma mancha, que marca todo o resto e que só
lhe perdoamos por sua coragem e por sua morte, pois “a Morte em
sangue sagra a vida inteira”. Essa mancha veio do fato de ele ter
atacado os Árabes e Negros‑muçulmanos, nossos irmãos (por se-
rem, como nós, filhos da Rainha do Meio‑Dia). De qualquer modo,
foi um Cavaleiro e não pode ser comparado aos covardes ingleses,
americanos ou franceses que, armados com artefatos poderosos,
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Paulo Vanzolini
E quanto a Dom Quixote? O que pensa a respeito dele?
Dom Pantero
Glosando palavras suas sobre Napoleão Bonaparte, quero
lhe dizer que, quando estou na Estrada e no Palco, “pondo a modéstia
de parte, é Dom Quixote e eu”; pois ambos sabemos: o que importa
é o Sonho, o delírio, a generosa loucura que nos impele para frente.
Talvez pelo fato de ser um Ator e Encenador (que em tal
condição tem levado seus Músicos, Cantores e Bailarinos por
muitas cidades do Sertão), ou talvez por causa do fascínio que “a
Estrada e o Palco” sempre exerceram sobre mim, no Dom Quixote
dois dos meus Episódios prediletos são aqueles em que Sancho e o
Cavaleiro encontram, numa Estrada, uma Trupe‑teatral ambulan-
te; e, numa Hospedaria, o Teatro‑de‑bonecos de Mestre Pedro, que,
num Palco improvisado, encena o Retábulo, depois genialmente
musicado por Manuel de Falla.
Levando em consideração esta importância que o Palco e
a Estrada têm para mim (mas também, com todo respeito, a dis-
cordância que sempre mantive em relação ao fim destinado por
Cervantes ao Cavaleiro da Triste Figura), assim eu ousaria refazer
o final do Dom Quixote:
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
lutasse, para levar até o fim a generosa e bela Empresa à qual dedi‑
cara toda a sua vida.
“Ali, ao amanhecer, Sancho, com seus preocupados parentes
e amigos, foi encontrá‑lo morto, montado, de Lança em punho, com
os primeiros raios do Sol a lhe iluminarem o rosto magro por ‘uma
estranha luz de devaneio’ — como chegou a dizer o Cura, afastando
‑se, por um instante, de seu tacanho bom senso habitual, o que so‑
mente fora possível graças à indômita coragem do Cavaleiro, fiel a
seu insano mas generoso Sonho até diante da Morte.”
Dom Pantero
Você não avalia a importância que para mim têm suas lumi-
nosas palavras, que agradeço de todo o coração, meu caro Aderbal!
765 765
Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Quanto ao Romance d’A Pedra do Reino, o que vou fazer
é considerá‑lo como uma Airesiana Brasileira em Fá‑Maior, uma
introdução ao Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores;
assim, fica ele incluído n’A Ilumiara (a qual, por sua vez, fundindo
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Maria Lopes
Mestre, já que Você entrou por aí, vou passar a palavra a
Salete Catão Grisi, que tem algo a dizer sobre o assunto.
767 767
Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Muito lhe agradeço por esse Comunicado, tão brilhante,
justo e compreensivo quanto sua própria Autora! Aliás, com o
assunto e “os dois grandes Escritores” que Você escolheu, Salete,
seria quase impossível o Comunicado não ser brilhante! E quero
até acrescentar, aqui, uma reflexão que acaba de me ocorrer ao
ouvi‑la. Muitas vezes já pensei em chamar o conjunto de Romances
que formam A Ilumiara (e dos quais os primeiros serão A Pedra
do Reino e O Jumento Sedutor) de Romance de Dom Mariano
no Espelho dos Encobertos; ou de Romance de Dom Pantero
no Palco dos Pecadores; ou, mais simplesmente, apenas de Dom
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
A rigor, a Cerimônia só deveria acontecer no final do
Simpósio, depois do veredicto do Corpo de Jurados que iria julgar
‑me. Mas, entre um momento e outro do Espetáculo daquela ma-
nhã, chegáramos à conclusão de que era melhor não arriscar: pois
quem nos garantia que, no final, a sentença dos Juízes seria favorá-
vel a mim? Era muito mais seguro realizar logo o ritual‑acadêmico
consagratório.
Assim, sentando‑me na solene Cadeira que, em Olinda,
fora ocupada por Antônio Vieyra, recebi o Pergaminho das mãos
de Carlos de Souza Lima, ao mesmo tempo que as 3 Mulheres me
punham a Gola aos ombros, a Coroa à cabeça e o Cetro nas mãos.
Ergui‑me então para que o Público inteiro me pudesse
ver como, agora, para sempre eu era. Sentia‑me indizivelmente
Corodos Equivocados
Antero Beato, mentiroso e doido! Doido e mentiroso!
Mentiroso e doido!
Dom Pantero
Mas equivocados e ressentidos tinham subestimado a
cautela e capacidade de previsão de Salete: imaginando que um
incidente como aquele poderia ocorrer, ela tomara providências
para neutralizá‑lo; e, sem que soubéssemos de nada, ensaiara,
com nossos partidários, uma contravaia que eu nunca esperara
me fosse dirigida. Gritavam eles, como contraponto aos insultos
dos Equivocados:
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Cerca de 15 minutos durou aquela “nova batalha do
Hernâni” (que marcava os 30 anos do Movimento Armorial, base
do Simpósio Quaterna e d’A Ilumiara que dele nasceria), com a
Plateia do Teatro dividida entre aplausos entusiásticos e vaias
estrepitosas.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Assim, encaminhei‑me para o Proscênio, de onde comecei
a jogar beijos e abraços para toda a Plateia, curvando‑me profun-
damente para agradecer a todos; não fazia qualquer distinção en-
tre admiradores e equivocados — os quais (como disse também a
Gazeta) “radicalizaram vaias e aplausos, num misto de indignação
e admiração que chegou perto das agressões físicas”.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
De todo coração, quero agradecer a Vocês a entusiástica
manifestação que acabo de receber. Na idade em que me encontro,
não é comum que um modesto Ator e Encenador como eu des-
perte tanta paixão (“contra ou a favor, pouco importa”). E ao ver
Vocês empenhados em tão magnífica batalha, vem‑me ao espírito
uma reflexão: entre os Artistas‑maiores que, pela grandeza e pelo
significado de suas Obras, assinalam o fim do Segundo Milênio e o
início do Terceiro, 3 já tinham recebido a consagração da Vaia —
Picasso, Stravinsky e Chaplin (em quem chegaram a jogar tomates
e frutos podres). Para completar a Quaterna, só faltava Eu, futuro
autor d’A Ilumiara — Obra na qual, pela primeira vez na história da
Literatura, serão fundidos elementos gráficos, como os de Picasso,
musicais, como os de Stravinsky, mímicos, circenses e cinemato-
gráficos, como os de Chaplin. A Vaia me fazia falta — e Vocês, ago-
ra, definitivamente colocaram em minha modesta cabeça o peso, a
honra e a responsabilidade desta Coroa, que é, ao mesmo tempo,
musical, pictórica, teatral, dançarina e literária; régia, poética,
palhaçal e profética, portanto. De todo coração, muito obrigado,
repito. Porque, do ponto de vista do personagem Dom Pantero e
da elevação de sua Máscara‑e‑Persona à condição de Poeta, aqui
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
De tal maneira, senhoras e senhores participantes do
Simpósio Quaterna, consagrado pelas vaias e pelos aplausos que
acabo de receber, tenho agora a certeza de que, para mim, a Arte é
uma forma corajosa de vencer o sofrimento, de enfrentar o enigma
e os desconcertos do Mundo; de que talvez minha salvação seja
obtida por meio de tudo aquilo que vivo sonhando e mostrando,
com “as flechas e relâmpagos da Prosa e da Poesia”; por meio deste
Teatro, cujo Personagem principal é um velho Palhaço, capaz de
conseguir a compaixão de Deus para todos os nossos companhei-
ros de caminhada terrestre.
Sim, porque acabo de descobrir: assim como sucedeu a
Cervantes, Shakespeare e Euclydes da Cunha em relação a Dom
Quixote, Hamlet e Antônio Conselheiro (as Figuras que eles criaram
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Sempre que relíamos tais palavras, Altino, Auro, Adriel
e eu ficávamos profundamente emocionados por sentir que um
chamado semelhante partia do Brasil para nós.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Lembro a todos, mais uma vez, as maravilhosas palavras
que Mário Martins escreveu sobre A Pedra do Reino, de meu
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Assim sendo, digo com franqueza aos que me vaiaram: não
posso entender onde Vocês conseguiram arranjar coragem para
apupar tão grandioso, belo e generoso Sonho!
Dom Pantero
De uma forma ou de outra, notei que agora, calado o tumul-
to, eu já tinha condições de empreender uma retirada à altura de
Dom Pantero. A um gesto meu, Bruno Alves dos Santos, Natércio
Santana, Pedro Salustiano e Jáflis Nascimento cruzaram de novo a
cena com o Cálice do Sangral às costas. E, atrás deles, eu — acom-
panhado por Iluminada, Lucinda e Luziara — deixei o Palco, sob o
silêncio que finalmente impusera a amigos e adversários.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Doxologia
Auro Schabino
Agora, só me resta ir para a Igreja. Subo a ladeira. A Porta.
A escura Nave. Com o Livro aos ombros, vou como uma Ave de papel
pretoebranco que esvoeja. Vazio, o Nicho, em ouro, ali flameja. Subo
ao Altar. No vão, perto da grade, deposito a futura Raridade. Vou
ao Padre. Recebo a minha Tença. E, em meio da geral indiferença,
abandono — mais uma! — esta Cidade.
Albano Cervonegro
O Circo: sua Estrada e o Sol de fogo. Ferido pela Faca, na
passagem, meu Coração suspira sua dor, entre os cardos e as pedras
da Pastagem. O galope do Sonho, o Riso doido: e late o Cão por trás
desta Viagem.
Pois é assim: meu Circo pela Estrada. Dois Emblemas lhe ser‑
vem de Estandarte: no Sertão, o Arraial do Bacamarte; na Cidade,
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
E, com estes Versos, compostos em Martelo‑Gabinete e
Martelo‑Agalopado — duas Estrofes criadas pelos Cantadores
brasileiros —, aqui se despede de Vocês, nobres Cavaleiros e
belas Damas da Pedra do Reino, este que é, ao mesmo tempo, seu
Soberano e seu companheiro de cavalgadas e Cavalaria,
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Tocata
O
Caprípede
Castanho
O Caprípede Castanho
Epístola de Santo Antero Schabino, Apóstolo
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Epígrafe
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Dedicatória
Esta Tocata é dedicada a Ana Rita Suassuna, Roberto
Wanderley, Lucas, Júlia e Inês Suassuna de Albuquerque Wanderley.
Foi composta em memória de Sérgio Bezerra da Silva
Suassuna.
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O Caprípede Castanho,
o Amor , o Sexo e a M orte
Adágio Sombrio
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S ibila
Moda, Turismo & Lazer
Igarassu, 26 de Março de 2014
23 de Abril de 2016
Amigos:
N
a tarde de 9 de Outubro de 2000, cumpridos os rituais
do Circo‑Teatro Savedra, abriu‑se a Cortina e Inez Viana
a mim se dirigiu, dizendo:
Inez Viana
Mestre, ontem, poucos momentos antes de se encerrar
o prazo para as inscrições, uma professora de Literatura pediu
para apresentar, ainda hoje, seu Comunicado sobre uma das
Iluminogravuras feitas pelo senhor e Eliza de Andrade para O
Pasto Incendiado.
A princípio julguei que não seria possível. Mas depois,
ouvindo‑a mais detidamente, achei tão interessante tudo o que
ela dizia no Comunicado que lhe prometi: se, na tarde de hoje,
eu encontrasse uma brecha, pediria licença ao senhor para que
ela o lesse.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Pode, sim.
Inez Viana
Peço, então, a Ângela Vaz Leão que venha ao microfone
para ler seu Comunicado.
“A Tigre Negra” :
Uma Iluminogravura de Antero Savedra
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
A Tigre Negra
ou
O Amor e o Tempo
(Com tema de Augusto dos Anjos)
Albano Cervonegro
Da Cabeleira negra, aleonada, Tocha escura que o Sol trans‑
forma em crina, o crespo Capacete se ilumina, em faiscar de Treva
agateada.
Gata negra, Pantera extraviada, abres ao Sol tua Romã feli‑
na. Ao Dardo em fogo, queima‑se a Colina, e há cascos e tropéis por
esta Estrada.
Bebo, na Taça, o aroma da Sombria! A vida foge, Amor, e a
Sombra‑tarda, ao fogo cresta a rosa da Paloma!
A Cega afia a sua Faca, afia, e chega o Sono, a Morte
‑Leoparda, Jaguar cruel para abrasar‑te as Pomas.
noire’ (uma chama tão negra) com que Racine define o amor inces‑
tuoso de Fedra.
“Como se isso não bastasse para descrever esse estado de
quase êxtase, aquelas ‘faíscas de Treva’ são ‘de Treva agateada’, o
que lembra o prazer da gata, talvez a mais fêmea de todas as fêmeas.
“Na segunda quadra, continua a metáfora da fêmea felina,
Gata negra, Pantera extraviada. Aliás, no português coloquial, as
palavras ‘gata’ e ‘pantera’ podem ambas significar a mulher atra‑
ente, sedutora. Continua ainda a imagem da mulher negra, presente
no título do Soneto e em vários sintagmas já citados.
“Essa mulher negra também é Tigre fêmea, Leoa, Gata,
Pantera, ser mutante e misterioso, cuja cabeleira se torna juba e
depois crina, fazendo‑a participar da natureza e dos equinos. A essa
fêmea o poeta se dirige para cantar‑lhe o ato de entrega total: ‘abres
ao Sol tua Romã felina.’ A sequência encadeada de metáforas já não
deixa dúvida: trata‑se da representação simbólica de um ato amoro‑
so, em que os elementos masculino e feminino se fundem em imagens
de grande beleza e ousadia. O Sol, um Dardo em fogo, é recebido pela
Romã felina, vulva que se abre, rubra e ávida. Ao fogo solar, queima
‑se a Colina, metáfora do ventre arredondado do corpo feminino.
803 803
Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
sombra tarda. Pressente o Poeta que a Vida foge e que, durante essa
fuga, uma Sombra‑tarda vai crestando, lenta, a rosa da Paloma,
flor, vulva, rosa, genitália, que antes fora evocada como uma Romã
aberta ao Dardo em fogo do Sol. O Tempo, no seu curso inapelável,
nada poupa: vai secando o corpo feminino, ao mesmo tempo que vai
transformando o morrer‑de‑amor em simples morrer.
“No primeiro verso do último terceto, o poeta vê a Morte
como uma Cega que afia a sua Faca, afia. O gesto se cumpre com
lentidão e persistência, inexorável, como sugere a repetição do ver‑
bo ‘afiar’.
“Mas, no verso seguinte, a Morte deixa de ser a Sombria,
a Cega, transformando‑se na Morte‑Leoparda, que avança meio
agachada, sorrateira, lentamente. E chega o Sono, o descanso que
liberta o homem da seca, da fome, da dor de viver.
“Completa‑se aí o ciclo das mutações. A Morte, a princípio
uma Sombra‑tarda, de contorno indefinido, foi tomando a forma de
uma Cega, a afiar, lenta, a sua faca. Ao chegar, porém, transforma
‑se na Morte Leoparda, que mata durante o amor: a dor de viver se
funde finalmente com a volúpia de morrer.
“O soneto de Albano Cervonegro se inscreve, assim, na longa
tradição do tema da Morte, caro a Augusto dos Anjos. Mas, se o tema
os aproxima, a maneira de tratá‑lo os separa. Enquanto em Augusto
dos Anjos a Morte se associa a cadáver, ossos, vermes, putrefação,
em Albano Cervonegro ela se confunde com um ato de amor. A Morte
80 6 Masculino ou Feminino 80 6
Livro II — O Palhaço Tetrafônico
807 807
Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Neste momento, Bruno Alves dos Santos, Natércio Santana,
Pedro Salustiano e Jáflis Nascimento cruzaram a cena com o Cálice
do Sangral aos ombros. E o novo Delegado de Taperoá aproveitou
o fato para dar outro rumo ao debate:
Dom Pantero
Claro que sim! Lembro‑me perfeitamente de Você e dos
artigos que escreveu sobre Sófocles, Dostoiévski e o Romance po-
licial — um deles a mim dedicado como forma de agradecer o em-
préstimo que eu lhe tinha feito dos romances do grande Escritor
russo.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Lembro‑me desse fato e ainda hoje guardo o Quadro que
Você me deu e que me tem sido muito útil, inclusive para ilustrar
minhas Aulas‑Espetaculosas.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Tendo sido meu aluno, Fausto, Você estaria perfeitamente
credenciado para falar aqui, mesmo que não estivesse à frente das
investigações. Pode fazer as perguntas que julgar necessárias.
Dom Pantero
Ouça‑o, antes, na voz do Ator que aqui faz o papel de Albano
Cervonegro.
811 811
Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
O Campo
Com Tema do Barroco Brasileiro
Albano Cervonegro
Um Sol de ouro, ondulante e sossegado, refletido nas Águas
que matiza. Alvas pedras. Amena e fresca brisa; um fino Capitel
transfigurado.
Os Montes. Claro céu alumiado. A água da Fonte, a Relva
da divisa. Colunas, no Frontal que o Musgo frisa, e o Campo que se
espraia, arredondado.
E o Pomar: seu odor, sua aspereza; e essa Romã fendida e
sumarenta, com seu Rubi vermelho e mal exposto.
E os Frutos esquisitos. E a Beleza — esta Onça‑amarela que
apascenta a maciez da Morte e de seu gosto.
Dom Pantero
Foi Auro. A ele incomodava muito a visão eurocentrista que
se tem da Beleza, incluindo‑se aí também a beleza feminina. Então
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
O Campo
Com Tema do Barroco Brasileiro
Albano Cervonegro
Um Sol‑negro, de escuros Encrespados, refletido nas Águas
que matiza. Alvas pedras. Amena e fresca brisa. Um fino Capitel
transfigurado.
Pardos Montes, no Chão encastoados. A Fonte. A crespa
Relva, na divisa. Colunas no Frontal que o Musgo frisa. O Vale que se
fende, aveludado.
E o Pomar; seu odor, sua aspereza; e essa Romã, fendida e
sumarenta, com o Topázio castanho, mal exposto.
E os Frutos odorantes. E a Beleza — esta Onça‑amarela que
apascenta a maciez da Morte e de seu gosto.
Dom Pantero
Auro, inclusive, pediu a Eliza de Andrade para fazer uma
Litogravura que representasse a beleza de Joana Falacho Daro,
uma jovem Negra aristocrática e delicada, pois não se conformava
com a ideia superficial que liga sempre o rosto das Negras a uma
certa grosseria.
Dom Pantero
É verdade.
Dom Pantero
Não. Dizia‑se isso, no Recife: que, apesar de sua castidade
— ou talvez por causa dela —, Auro tinha verdadeira obsessão
pelo corpo feminino e pela Gruta que é seu centro. Falava‑se que
era por isso que ele vivia cercado por Mulheres jovens: elas, pres-
sentindo seu desejo secreto, ficavam tentadas a desafiá‑lo.
A verdade é que Auro tinha disso tudo uma visão em que
se fundiam e se identificavam o erótico e o religioso. Mas, assim,
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
815 815
Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
O Amor e o Desejo
Com Tema de Augusto dos Anjos
Albano Cervonegro
Eis, afinal, a Rosa, a encruzilhada, onde pulsa, cantando,
o meu Desejo. Emerges a meu sangue malfazejo, Onça‑do‑Sonho,
Fronte coroada.
Ao garço olhar, à vista entrecerrada, um sorriso esboçado
mas sem pejo. Teu pescoço é um Cisne sertanejo; teus Peitos são
Estrelas desplumadas.
Embaixo, a Dália ruiva, aberta ao Dardo, a Fenda, Rosa
‑púrpura e Coroa. E brilha, ao fogo desta Chama parda, a Coroa
‑de‑Frade, a Rosa‑Cardo, “abandonada às Onças, às Leoas e ao Cio
escuso das Panteras magras”.
Dom Pantero
É, sim; e vou ter que voltar a este assunto depois, por causa
da importância que a noite daquele dia assumiu na vida de meu
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
irmão Auro. Elezier Xavier, Hermilo Borba Filho e Tio Antero ti-
nham ido buscar Camus no Grande Hotel porque queriam levá‑lo
ao Mercado de São José, lugar que consideravam adequado para
que ele entrasse em contato “com o Brasil não‑oficial”.
Quando chegaram à Praça do Mercado, dois Cantadores “de
voz milenar” (como disse Camus) estavam improvisando ao som
de uma Rabeca, tocada por Pedro Rufino, e uma Viola, tangida por
Marcos Tebano. Os dois cantavam “a‑desafio” e Tebano insultou o
outro:
Marcos Tebano
“Seu Rufino chegou no Aracati, e, encontrando um Caboclo,
numa Praça, conheceu que o Cabra era de raça, e lhe disse: ‘Meu
Negro, chegue aqui.’ Conversaram um pouquinho por ali, e, com
pouco, Rufino estava nu. Um Bicho parecido com Muçu, só entrando
e saindo do Bufante, não foi nada de mais interessante: era Pedro
Rufino dando o cu.”
Dom Pantero
Passando para o ritmo do Galope, Rufino revidou:
817 817
Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
mentindo quem assim disser. É muito fiel, e muito bem lhe quer, pois
só no senhor ela vive a pensar. É isto verdade, e eu posso jurar, pois
ontem, na Praia, quando eu a fudia, só isso gritava, só isso gemia,
rolando e gozando na beira do Mar.”
Dom Pantero
Parando imediatamente a Viola, Marcos Tebano, de má
‑cara, reclamou do companheiro os termos do Galope. Rufino
disse que também fora insultado; mas o outro replicou que não
falara da Mulher dele “porque isso está fora da Cantoria, mesmo na
hora do Desafio”.
Depois soubemos que, antes de casar‑se, Marcos Tebano
era adepto “do segredo da Mulher nova”, e vivia perseguindo
Mocinhas pelo Pátio do Mercado. Ele mesmo contara, um dia, a
Liêdo Maranhão de Souza:
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Mas, naquele primeiro dia, o desfecho do caso ocorreu
à noite e foi terrível: ao deitar‑se para dormir, Marcos não con-
seguia conciliar o sono, porque, como disse depois, na Delegacia
onde foi preso, “quando fechava os olhos, via a Mulher com Pedro
Rufino, os dois deitados gemendo e gozando, rolando e fudendo na
beira do Mar”.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Mas quero explicar a todos: depois que saiu da Prisão,
Marcos Tebano, ainda no Recife, mudou de vida. Casou‑se com
aquela que foi a Mãe irrepreensível de Biu Santeiro e, deixando de
lado até “o mistério da Mulher nova”, tornou‑se um Homem calmo,
muito diferente daquele sujeito meio insano, que chegou a matar a
Mulher (aliás, inocente) apenas por causa de um Galope que outro,
por brincadeira, improvisara num Desafio.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Espetáculos que vão ser montados aqui: então, para isso, chamou
um dos irmãos Souza Lima que colaboram com seu trabalho na
Unipopt, Romero.
Pois o que tenho a perguntar é o seguinte: é verdade que, no
primeiro semestre deste ano, quando os preparativos do Simpósio
já estavam em pleno curso, Romero de Souza Lima teve que viajar
para São Paulo?
Dom Pantero
É verdade, sim.
Dom Pantero
É verdade, também.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Foi mais do que isso, até: eu nunca tinha ouvido falar dele,
e foi por indicação de Ashera Acken — que o conhecia do Recife —
que mandei contratá‑lo.
Dom Pantero
Não, uma briga não! O que houve foi uma conversa, na qual
se revelaram concordâncias e discordâncias entre nós; mas tudo
num clima de cordialidade e respeito mútuo. Tanto assim, que ele
ficou aqui uns dois ou três meses, ensaiando os Atores da Trupe do
Cavalo Castanho e os Bailarinos do Grupo Arraial para A História
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Posso, sim! No dia em que conversamos pela primeira vez,
acho que ele já ouvira falar alguma coisa a meu respeito, porque —
revelando, aliás, um grande senso de lealdade — levou na mão dois
livros e uma revista, contendo textos por meio dos quais desejava
mostrar‑me o que pensava, a fim de que eu não o contratasse sem
ter exata noção da pessoa que ele era.
O primeiro daqueles Livros era A Origem da Tragédia, de
Nietzsche. Você deve se lembrar de que meu Tio, Mestre e Padrinho
Antero Schabino exaltava a visão‑de‑mundo dos Povos escuros da
Rainha do Meio‑Dia, visão esta baseada na embriaguez orgiástica
da Festa e oposta às abstrações cinzentas dos Pensadores germâ-
nicos e anglo‑saxões.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Auro Schabino
Nietzsche jamais reclamaria contra o fato de sermos Povos
musicais e dançarinos. Mesmo sendo, em seu País, um pensador
de Direita — e mesmo por entre os extravios de sua razão, que
o levaram ao ódio pelo Cristo e ao desprezo pelo “rebanho dos
fracos e dos pobres” —, foi ele quem anunciou ao Mundo a morte
do Racionalismo estreito e do Cientificismo dogmático de seu
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Quanto à monstruosidade e à morbidez de outros aspectos
do pensamento nietzschiano, devemos também perdoá‑los — nós
que, sendo compatriotas de Goya, sabemos há muito tempo que
“os sonhos da Razão produzem Monstros”.
Adriel Soares
O próprio Nietzsche, aliás, às vezes recuava, horrorizado,
diante dos Monstros que seu pensamento suscitava, em seu san-
gue e no dos outros; e, intimidado, procurava escapar deles por
meio de compromissos indignos de sua nobre honradez e de sua
luminosa inteligência.
Dom Pantero
Foi o que aconteceu, um dia, quando estava escrevendo o
livro que o jovem Encenador portava naquele dia e no qual, refle-
tindo sobre a origem da Tragédia segundo o espírito da Música,
afirmava que “a existência do Mundo não pode ser justificada senão
como fenômeno estético”. Acrescentou que assim falava expressan-
do um pensamento de Artista:
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Auro Schabino
Até aí, Nietzsche fala de acordo com sua visão geral do
Mundo; e é com fundamento naquela ideia de “um Deus artista”,
um Deus destituído de compaixão e indiferente ante o Bem e o
Mal, que ele parte para a aceitação (também no domínio da Moral,
da Ética e da Política) do espírito dionisíaco em que se fincam as
raízes da criação artística.
Adriel Soares
É então que fala no “abismo que separava os Gregos dioni‑
síacos dos Bárbaros dionisíacos”, incluindo entre estes últimos os
Romanos e os Babilônios. Diz que, comparadas com as gregas,
as Festas dionisíacas romanas ou babilônicas mostram a mesma
diferença que existe entre “um Sátiro barbudo e acanalhado e
Dionísio”. E acrescenta, sobre aqueles “Bárbaros dionisíacos tão
diferentes dos Gregos”:
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Um Dionisíaco qualquer, nosso contemporâneo e parecido
com “Asiáticos barbudos e Romanos acanalhados”, poderia, cheio
de razão, perguntar a Nietzsche:
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Auro Schabino
Quer dizer: no momento desse recuo, Nietzsche, apavorado
pelo rumo que suas ideias podiam tomar nas mentes e nas ações
de pessoas que não tinham nem seu caráter nem sua inteligência,
termina por se curvar diante da Família, da Moral e, consequen-
temente, de Deus — única Fonte possível de normas absolutas,
aptas a sustentar aquela Moral e aquela Família pelas quais comu-
mente ele manifestava tão orgulhoso desprezo. Seu acerto — seu
brilhante acerto! — foi pensar em Deus como num Artista. Seu
erro, triste e lamentável, foi julgá‑lo como um Artista amoral ou
mesmo antimoral (e não como fonte absoluta da Moral, como Ele
é, em decorrência de sua própria Natureza).
Adriel Soares
E temos que ser justos também com Hegel, que, apesar da-
quela infeliz profissão‑de‑fé racionalista, formulou a visão da Arte
como celebração capaz de espiritualizar o Real pela introdução,
nas coisas, da Beleza terrestre — chispa e fagulha da Beleza divina
e absoluta.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Em nossa época, por influência de Nietzsche, toda uma área
do pensamento ocidental passou a considerar o comportamento
humano como situado “para além do Bem e do Mal”. E parece que
Oscar Wilde e André Gide foram os principais responsáveis por se
ter passado a considerar a Arte como superior e alheia a qualquer
determinação moral.
Dom Pantero
Acho que sim, porque identificava o problema das relações
da Arte com a Moral apenas com o da presença, ou não, no Palco,
de cenas consideradas pelos outros como “eróticas” ou “obscenas”;
consequentemente, também incorria no erro de julgar que, ao di-
zermos nós “a partir de determinado momento, também a Arte tem
que levar a Moral em conta”, estaríamos defendendo uma Censura
proibitiva e mutilatória da obra de Arte — o que não é verdade e,
de nossa parte, seria uma contradição monstruosa e hipócrita.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
O que sempre sustentei, inclusive em minhas aulas, como
talvez Você se recorde: que, no momento da criação da obra, a Arte
nada tem a ver com a Moral; o Artista é livre para dizer o que qui-
ser e que for necessário à expressão de seu universo. Mas, na hora
de resolver a quem a obra pode alcançar, não se deve permitir, por
exemplo, que um Adolescente ou uma Criança entre em contato
com uma obra escrita por um grande Artista de personalidade
doentia e criminosa; obra que difundisse entre seus indefesos
jovens leitores ou espectadores a ideia de que o prazer sexual é
muito mais intenso (e, portanto, segundo os que assim pensam,
mais legítimo) quando obtido por meio da violação de Crianças
que, na hora, são estranguladas, como aconteceu com essa Menina,
Patrícia, estuprada e morta aqui.
Auro Schabino
Em nossa visão das coisas — e assim como acontece tam-
bém com o Feio —, o Mal é uma das faces da desordem do Mundo
e da Vida. Ambos são privações, são chagas do Ser — e o reconhe-
cimento de tal fato não importa em minimizar a importância da
poderosa presença do Mal e do Feio no universo da realidade e,
consequentemente, no da Arte.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Adriel Soares
As pessoas que julgam antiquada, e mesmo ridícula, qual-
quer referência à Moral, normalmente se envergonham de usar os
critérios de Bem e Mal em qualquer julgamento — no estético em
particular.
Dom Pantero
Na minha época de juventude, passei por uma fase em que
pensei ter me desvencilhado, como de um fardo que se joga fora,
da ideia de Deus e dos conceitos de Bem ou Mal. Até que, um dia,
lendo um daqueles Romances que lhe recomendei, de repente,
numa revelação, topei com uma frase de Ivan Karamázov, que
dizia: “Se Deus não existe, tudo é permitido.”
Ascenso Café
Você nunca leu Dostoiévski com atenção: Ivan Karamázov
jamais pronunciou tal frase. O que se diz na cena do encontro entre
Ivan Karamázov e o Monge Zóssima é que “se a imortalidade não
existe, tudo é permitido — até a antropofagia”.
Dom Pantero
Quem nunca leu Dostoiévski com atenção foi Você, que, por
outro lado, devia dar atenção a isto: se Deus não existe, qualquer
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Conversei. Ele perguntou que conclusão eu tirara da frase
de Ivan Karamázov, quando, sendo ainda muito jovem, ela saltara
diante de meus olhos pela primeira vez.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Albano Cervonegro
O Vento agita o Sono, duramente, sobre a Polpa inda viva e
já desfeita. É preciso vencer o Desespero, o seco Fruto e a garra da
Suspeita, nessa Tarde em que, dano da Memória, reluz o Candelabro
e o Sono espreita.
Dom Pantero
Naquele dia, ao ver as fotografias da bisneta de Jayme
Villoa, lembrei‑me imediatamente do Espetáculo que, em 1945,
nosso último ano no Colégio, Afra, Adriel e eu, sob a orientação de
Tio Antero, tínhamos organizado e exibido, no Auditório, com base
num Folheto‑de‑Cordel do grande Poeta‑popular João Martins de
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Eu, Afra e Adriel tínhamos lido um texto do Escritor pa-
raibano Alfredo Pessoa de Lima no qual ele afirmava: “Savedras
e Villoas são, respectivamente, versões brasileiras e barrocas dos
Montéquios e Capuletos.”
A frase nos deixara contentes porque simpatizávamos mui-
to mais com a família de Romeu do que com a de Julieta, fato que
também acontecia com João Martins de Athayde. Tanto assim era
que, no começo de seu Folheto, ao apresentar o cenário e os perso-
nagens daquela terrível e dolorosa história de Amor e Morte, dizia
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Lendo tais versos, nós ficávamos contentes de pertencer à
Família “honesta e humana” dos Savedras‑Montéquios, e não à “ti‑
rana” dos Villoas‑Capuletos, de cujo sangue ruim brotara, apenas
como exceção, a luminosa figura de Julieta.
Apesar de agradecidos a Alfredo Pessoa de Lima e João
Martins de Athayde, nós discordávamos deste último e, contra “o
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
O Padre, o M estre,
o Palhaço e o Pai
Marcelo Rebelo
“Recentemente, a cidade de Campina Grande foi abalada por
4 fatos que chocaram a sociedade local.
“Primeiro, foi um Padre, de 43 anos: ele confessou à Polícia
ter abusado de uma Menina que frequentava as aulas de Catecismo
dadas por ele, e que, depois delas, chegou a fazer a primeira comu‑
nhão.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
foi para a casa do Tio, a quem relatou os abusos que tinha sofrido
por parte do Pai.
“Agora, o terceiro caso: um Professor, acusado de abusar se‑
xualmente de duas de suas alunas está preso desde ontem. O registro
policial diz que ele passou a noite num Motel, com duas Meninas de
12 anos, o que foi descoberto e denunciado pela Mãe de uma delas.
“O Professor, de 39 anos, dá aulas no Colégio onde as Meninas
estudam, e começou a seduzi‑las com chicletes, bombons, dinheiro e
brinquedos. Também permitia que, sentadas em seu colo, elas diri‑
gissem o carro de sua propriedade.
“O Professor, que mora num quarto alugado numa casa, pas‑
sou a convidar as Meninas para almoçar, e, num Domingo, imaginou
um plano astucioso: telefonou para a casa das duas, fazendo‑se pas‑
sar pelo Pai de uma e de outra e pedindo permissão para que cada
uma das Meninas dormisse na casa da colega.
“Os pais acreditaram e permitiram. O Professor, então,
apanhou as duas para passarem a noite em sua casa. Mas, na ver‑
dade, levou‑as para o Motel, onde teria ficado nu e se masturbando,
enquanto as Meninas se despiam e se banhavam na sua frente. Foi
acusado de atentado violento ao pudor. E o Delegado disse que o
artigo 224 do Código Penal estabelece que menores de 14 anos ain‑
da não têm capacidade de se defender contra a malícia desses atos,
motivo pelo qual o Professor cometeu ‘violência presumida’ e pode
pegar pena de 6 a 10 anos de reclusão.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
O Hirco Inevitável
Variação hipolídica sobre o tema
de Beldade e o Monstro
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Lembro mais uma vez a todos que, aqui no Circo‑Teatro
Savedra, somente se permite a entrada de “adultos de sólida for‑
mação religiosa, moral, poética e filosófica”.
Mesmo assim — e nem que fosse pela presença, na Plateia,
do Padre Manuel — quero recordar que a cena descrita por Carlos
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Marcos foi recomendado a Quaderna em sua condição de
“competente, se bem que meio‑doido Mestre‑de‑Obras”; a recomen-
dação partiu de um dos discípulos prediletos de Auro — um rapaz
chamado Álvaro Cárdenas.
Mas quero lhe fazer duas ponderações, Fausto. A primeira é
que a idade avançada do velho Pedreiro e Cantador deveria afastar
dele qualquer suspeita num caso como o de Patrícia. A segunda é
que Marcos, hoje, é um Velho profundamente religioso, manso e
tranquilo, o que foi levado em conta pelo Padre, para escolhê‑lo
como Sacristão, e por mim, para mantê‑lo no posto de Porteiro da
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Pois, quanto a mim, o que eu gostaria, mesmo, era de saber
por que as suspeitas sobre o Eletricista foram descartadas. No
relato feito por ele ao Jornal sobre sua atuação no caso de Patrícia,
há um pormenor que me pareceu estranho: como chegou ele a per-
ceber que a porta da Igreja estava aberta? A nossa Matriz ergue‑se,
isolada, no alto de um pequeno Morro, e não é comum as pessoas
passarem por sua calçada a ponto de se notar que uma das portas
laterais está entreaberta.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
que dá para a Matriz, “para ver o Sol se pôr” — fato confirmado por
seus vizinhos. Foi assim que pôde tomar conhecimento de que,
naquela hora incomum, a porta da Igreja não estava fechada.
Dom Pantero
Fausto, Marcos Tebano é o Sacristão, e, nessa qualidade,
tem as chaves da Igreja. Seria mais lógico, então, que, cometido o
crime, ele fechasse a porta, para, assim, retardar o mais possível o
encontro do corpo de Patrícia.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Nesse momento, nobres Senhores e belas Damas da Pedra
do Reino, senti que uma sede estranha se apoderara de mim —
sede parecida com aquela que me assaltava, às vezes, na Estrada
de Matacavalos, em minhas incursões para a Ilumiara. E, notando
que no Cálice que permanecia sobre o Púlpito havia ainda um
pouco de Vinho, estendi a mão para ele a fim de bebê‑lo. Mas, sem
que soubesse o que me levava àquilo, de repente detive o gesto a
meio caminho, sem completá‑lo. Foi como dizia Alexandre Dumas:
Dom Pantero
Ao mesmo tempo em que isso me ocorria, os trabalhos do
Simpósio eram interrompidos de maneira inesperada: sem que
ninguém lhe tivesse dado maior atenção, Biu Santeiro achara jeito
de se meter na Plateia; e, apesar da surdez, ouvira alguma coisa de
tudo aquilo que falávamos sobre seu Pai.
Então, no momento em que José Fausto Martins acabava
de externar sua opinião sobre a possível frieza e astúcia assassina
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Biu Santeiro
“Poesia do Sol, sombra do Ser! Quem descobre a Vida? Dizei
‑me porque existe a Vida! Ah imortalidade, ah imensidade! Eu não
me esqueço de Vós na Terra um só segundo, pois a Vida‑eterna mora
em mim.
“Não foi meu Pai não, foi a Besta! Foi a Besta que matou a
Mulher dele, foi a Besta que matou a Menina e foi a Besta quem foi
dizer ao Delegado que foi meu Pai!
“Mas a gente tem quem puna por nós dois: Doutor Antero
Savedra! Com a visão soberana de um laço divino que ninguém pen‑
sou, assim, meu Deus, ele fala dos problemas que aparecem aqui, ali,
acolá, coisas que ninguém neste Mundo pensou. Ele é Poeta de fé em
todos os lugares do Brasil, e vai punir por meu Pai e por mim, porque
nós somos dois inocentes vagando pelo Mundo!”
Dom Pantero
Aí, nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do
Reino, William Costa e Carlos Tavares, com cuidado e atenção,
aproximaram‑se do Escultor e, procurando o mais possível mini-
mizar o incidente, retiraram‑no do Teatro.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Doxologia
Auro Schabino
Agora, só me resta ir para a Igreja. Subo a Ladeira. A Porta.
A escura Nave. Com o Livro aos ombros, vou como uma Ave de papel
pretoebranco que esvoeja. Vazio, o nicho em ouro ali flameja. Subo
ao Altar. No vão, perto da grade, deposito a futura Raridade. Vou
ao Padre. Recebo a minha Tença. E, em meio da geral indiferença,
abandono — mais uma! — esta Cidade.
Albano Cervonegro
Pois é assim: meu Circo pela Estrada. Dois Emblemas lhe ser‑
vem de Estandarte: no Sertão, o Arraial do Bacamarte; na Cidade, a
Favela‑Consagrada. Dentro do Circo, a Vida, Onça Malhada, ao luzir,
no Teatro, o pelo belo, transforma‑se num Sonho — Palco e Prelo.
E é ao som deste Canto, na garganta, que a cortina do Circo se levan‑
ta, para mostrar meu Povo e seu Castelo.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
E, com estes Versos, compostos em Martelo‑Agalopado —
uma Estrofe criada pelos Cantadores brasileiros —, aqui se despe-
de de Vocês, nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino,
este que é, ao mesmo tempo, seu Soberano e seu companheiro de
cavalgadas e Cavalaria,
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Fuga
A
Persona
do P oieta
A Persona do Poieta
Epístola de Santo Antero Schabino, Apóstolo
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Epígrafe
“Não tenho estilo para escrever. Não tenho nem para comer,
quanto mais para escrever! O Mundo, inteiriço, está dentro de mim.
Não vendo a ninguém a imagem das minhas tristezas. Quando eu
rio, todos riem comigo. E quando choro, choro sozinho.”
José Cavalcanti
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Dedicatória
Esta Fuga é dedicada a Carlos Newton de Souza Lima
Júnior, Sílvia Fernanda de Medeiros Maciel, Heitor e Beatriz Maciel
de Souza Lima.
Foi composta em memória de Joaquim de Andrade Lima
Suassuna (30.IX.1957 — 6.X.2010).
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A Persona do Poieta
e as Máscaras Coregais
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S ibila
Moda, Turismo & Lazer
Igarassu, 29 de Março de 2014
23 de Abril de 2016
Amigos:
N
a tarde de 9 de Outubro de 2000, depois do que contei
na Carta anterior, os trabalhos do Simpósio Quaterna
foram retomados por Letícia Lins, que falou:
Letícia Lins
Mestre, eu gostaria muito que o senhor desse algumas
indicações sobre as mais importantes Figuras que o auxiliam em
seu Depoimento. O senhor disse que, aqui, é como se estivéssemos
diante de uma Aula‑Espetaculosa, o que significa quase um espe-
táculo de Teatro.
Ora, até recentemente, no programa dos Espetáculos,
costumava‑se apresentar uma lista de Personagens, com os nomes
dos Atores que os encarnavam. É o que peço, agora, em relação ao
Simpósio, pois isso facilitará muito o trabalho de cada um de nós,
na Entrevista.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Atendo, com satisfação, a seu pedido. Entre as Figuras
que comparecem aqui, Dom Paribo Sallemas, Dom Pancrácio
Cavalcanti e Dom Porfírio de Albuquerque formam o trio sob cujo
comando atuam Gregório Mateus de Sousa, Palhaço‑Obsceno, e
Galdino Bastião Soares, Palhaço‑Herege. E, para que Vocês tenham
logo uma opinião sobre eles, chamo os dois ao Microfone para que
recitem as Décimas que compuseram sobre o Mote “Forçado pelo
Destino, já fiz muita coisa errada”.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
João Grilo e Chicó eram filhos, respectivamente, de João
Tinoque e Chico Furiba, dois Sertanejos que, integrando a Coluna
Prestes, terminaram como seguidores de “Dom Sebastião Pereira
— O Príncipe do Cavalo Branco”. Mortos João Tinoque e Chico
Furiba, Chicó e João Grilo vieram dar com os costados em Taperoá,
onde se tornaram pajens de Quaderna e Figuras importantes do
seu famoso Circo da Onça Malhada.
Joaquim Simão da Silva, marido de Nevinha, é o Poeta‑de
‑Feira — o Cantador e Folhetista preguiçoso que durante certo
tempo foi amante de Dona Clarabela.
Ângela Lacerda
Mestre, acho que pelo fato de ser Mulher, eu gostaria que o
senhor falasse mais detidamente sobre Dona Clarabela.
Dom Pantero
Dona Clarabela Noronha de Britto Moraes — uma das
poucas que ainda continuam vivas entre as Máscaras‑Coregais
que compõem este Espetáculo — é 10 anos mais moça do que
eu. Seus pais foram Gustavo Moraes e Clara Swendson. Foi aluna
de meu tio Antero Schabino desde que, Menina, saiu de Taperoá
para o Recife, a fim de estudar no mesmo Colégio em que fôramos
alunos‑internos.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Ubiratan Brasil
Mestre, introduzida, já, Dona Clarabela, peço‑lhe que con-
tinue a relação dos demais integrantes do Espetáculo, com ênfase
sobre seus irmãos, que foram tão importantes para a formulação
deste Simpósio, e mais importantes serão ainda quando, mais tar-
de, o senhor for redigir A Ilumiara.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Pois não, vamos lá! Altino, Poeta, com suas visões obscuras,
era quem estava por trás de Albano Cervonegro, autor de O Pasto
Incendiado.
Adriel, Dramaturgo, era casado com Eliza de Andrade,
que hoje mora aqui, com os filhos; Eliza foi a Mestra que me en-
sinou a arte da Litografia, possibilitando‑me a criação de minhas
Estilogravuras, em pretoebranco, e depois a das Iluminogravuras,
coloridas. Por ser o autor do Auto d’A Misericordiosa, Adriel era
chamado, com desprezo, pelos equivocados da “Esquerda arejada”,
de O Jogral da Aparecida, ou O Palhaço da Coroada.
Auro, Prosador, foi quem escreveu o Romance d’A Pedra
do Reino, livro que iniciou entre ele e Tio Antero uma hostilidade
posteriormente transformada em aversão irreparável quando
ele se mudou de nossa Casa para a Favela‑Consagrada (ou Ilha
de Deus), onde ajudava as Missas celebradas pelo Padre Matias
Falacho Daro; fato que também lhe valeu os insultos dos sociólo-
gos, historiadores e cientistas‑políticos da “Esquerda arejada”, que
passaram a chamá‑lo de “O Profeta‑de‑Sacristia”.
Silvana Valença
E Aribál Saldanha? E Ademar Sallinas, Mestre?
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Quanto a estes, o assunto é mais delicado, porque todos
dois se ligam à complexa, terrível e fascinante figura de meu Tio,
Antero Schabino (motivo pelo qual procurei os 3 Atores mais pa-
recidos entre si para representá‑los, aqui no Simpósio).
A obra maior de Tio Antero foi o Diálogo d’A Onça Malhada
e a Ilha Brasil, livro em que, a exemplo do que aconteceu no Diálogo
das Grandezas do Brasil, conversavam dois Interlocutores prin-
cipais — no caso daquele, Aribál Saldanha e Ademar Sallinas. O
primeiro nome foi escolhido porque Aribál, variante de Aribaldo,
significa “o Chefe, o Condutor”; e também porque Aribál Saldanha
tem o mesmo número de letras que Antero Schabino.
N’A Onça Malhada, ensaio de interpretação do Brasil,
Tio Antero, como professor de Filosofia da Cultura, reunira suas
ideias estéticas sobre a Rainha do Meio‑Dia e o mito da Ilha Brasil.
Por isso, ao publicar o livro, assinou‑o com o nome de seu interlo-
cutor principal, Aribál Saldanha, que, para ele, era equivalente ao
Brandônio, de Ambrósio Fernandes Brandão (enquanto Ademar
Sallinas era o Alviano).
Já o “quase‑romance” O Desejado, que publicou depois, era
“uma obra mais literária e de ficção” — como dizia ele, afetando
uma certa superioridade desdenhosa sobre a Literatura. E, não
querendo assiná‑la com o mesmo pseudônimo usado “na mais
séria”, adotou o nome do outro Interlocutor, Ademar Sallinas, que
tinha o mesmo número de letras de Antero Schabino e Aribál
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Saldanha. Era também sob este nome que Tio Antero, tendo aos
ombros a gola que ganhara de Mestre Salustiano ao receber o títu-
lo de Guerreiro e Rei‑de‑Honra do Maracatu Piaba de Ouro, fazia
suas entradas triunfais na sala da nossa Casa recifense para fazer
suas Conferências Quase‑Literárias.
Dom Pantero
A ação nele contada situava‑se em Olinda, no fim do sécu-
lo XVI, e seu Narrador era Alexandre Schabino, um antepassado
nosso, que, amigo de Bento Teixeira, Frei Vicente do Salvador e
Ambrósio Fernandes Brandão, respondera a um Processo perante
o “Visitador do Santo Ofício às Partes do Brasil” Heytor Furtado
de Mendonça (ou Mendoça, forma espanholizada que o quase
‑inquisidor preferia, por ser partidário da Espanha e dos Filipes).
Mas Alexandre era apenas o Narrador: o Personagem
‑central do livro fora criado a partir de um Visionário que, depois
da morte de Dom Sebastião na batalha de Alcácer‑Quibir, tinha apa-
recido em Olinda, convencido de que era o jovem Rei de Portugal,
morto na África mas ressuscitado no Brasil por seu intermédio.
Esse Protagonista de O Desejado chamava‑se Dom
Sebastião Barretto. Era um Personagem trágico, cujo Antagonista,
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Jussara Salazar
Mestre, acho estranho que seu Tio não tenha incluído
Hamlet e Fausto na relação dos maiores personagens da Cultura
ocidental. Havia algum motivo especial para isso?
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
E devo acrescentar, ainda, que meu Tio, na busca de enqua-
drar em linhagens “os 3 maiores Escritores da época moderna”, cos-
tumava afirmar, assim mesmo, na terceira pessoa, que “se Homero
era o patrono de Tolstói, e Dante o de Dostoiévski, Cervantes era o
de Ademar Sallinas”.
Socorro Torquato
Mestre, satisfaça uma curiosidade minha: por que é que
todos os Savedras usavam nomes literários diferentes, como se
irmãos não fossem?
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Foi uma exigência — ou melhor, um conselho — que, como
em quase tudo que nos aconteceu no campo da Arte, partiu de
meu Tio, Mestre e Padrinho, Antero Schabino. Como acabo de
explicar, ele próprio usava 2 pseudônimos — Ademar Sallinas e
Aribál Saldanha. E como nossa Família tinha um nome enorme, ele
aconselhava Altino a usar o de Sotero, Adriel o de Soares, Auro o
de Schabino e eu o de Savedra, o que, segundo nos mostrou, “até
do ponto de vista prático”, seria melhor para marcar “as Personas
literárias” de cada um de nós.
Reinaldo Azevedo
Por falar nisso, Mestre: o senhor disse alguma coisa sobre
as Personas‑Dramáticas e Máscaras‑Coregais que aparecem com
mais frequência em seus Espetáculos. Mas não disse quase nada
sobre Dom Pantero. Como foi que nasceu e cresceu esta que me
parece a Figura principal deste Simpósio?
Dom Pantero
Bem, a Máscara‑e‑Persona de Dom Pantero, que eu incor-
poro, surgiu como necessidade das Aulas‑Espetaculosas. Como
já aconteceu diversas vezes com nossa Família, ela se originou
de uma dessas maldades que nossos equivocados e mesquinhos
adversários costumam arquitetar contra nós.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Fátima Batista
Chupacabra? Entende‑se o Dom Pantero! Mas por que
Chupacabra, Mestre?
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Dom Pantero
Entretanto, como é do conhecimento de algumas pessoas
que estão na Plateia, em 1949, no dia em que acompanhávamos
Albert Camus em suas incursões pelo Recife antigo, Auro, num
Bordel a que fomos, fizera um voto de castidade (e a ele se man-
teria fiel até morrer); de modo que as alunas apaixonadas por ele
terminavam decepcionadas, e as de temperamento mais sensível
chegavam mesmo ao desespero.
Dona Clarabela
Foi o que aconteceu com Joana Daro, irmã do Padre Matias.
Joana — a jovem, lunar e bela Negra que, por causa de Auro, termi-
nou seus dias de modo tão doloroso, cruel e dramático. Foi o que
aconteceu com “a loura e satúrnica” Daniela Rougane, a flautista
de corpo dourado de quem se dizia ter desempenhado um papel
fatal e obscuro nos acontecimentos que culminaram com a morte
de Joana. E foi o que aconteceu com Greta Navarro, “a Moça das
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Mas foi aí que Frederico Moraes, um intelectual de Assu, no
Rio Grande do Norte, publicou no jornal A Gazeta do Oeste, de
Mossoró, um artigo no qual afirmava que “todo verdadeiro Artista
ajuda a elaborar a imagem do País que é seu”. Falando, a seguir,
sobre o caso particular do Brasil, citava, como pertencentes ao
grupo dos que assim procediam, 4 Artistas — Heitor Villa‑Lobos,
João Guimarães Rosa, Gilvan Samico e Adriel Soares. Dizia que to-
dos eles “não se limitavam a transpor, para sua Arte, a criatividade
de base popular: acrescentavam a ela seu fabulário pessoal e sua
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Mas eu, caridoso como sou, até entendo que assim falas-
sem. Porque não tinham outra saída, coitados! Se assim não fizes-
sem seriam forçados a reconhecer que, se “o clã oligárquico, feudal
e arcaico dos Savedras” recriava em suas obras as Cantigas, os
Folhetos, as Gravuras, os Toques e os Espetáculos populares, era
somente para, como disse Marcelo Coelho na Gazeta do Cariry,
remeter todo aquele material de origem popular “a uma condição
trágica, enfática, pessoal, gritante e universal”.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Andrea Barbosa
Mestre, nenhum de nós está de acordo com as acusações
de fraude que costumam lhe fazer no Recife. Mas, de uma forma
ou de outra, a maioria dos que estão aqui trabalha em Jornais ou
em Universidades, de modo que temos de nos ater ao mais estrito
rigor crítico. Por isso pergunto: o senhor tem os recortes com os
artigos de Frederico Moraes e Marcelo Coelho? Pode nos dar os
dois, para que os citemos, com o local e a data da publicação?
Dom Pantero
Infelizmente não! Eu os tinha mas perdi‑os também, na
cheia de 1975!
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Continuaram e continuam! Vou‑lhe dar uma prova desse
fato: recentemente, tendo em vista os 500 anos da chegada dos
Portugueses ao Brasil, os jornais recifenses realizaram uma pes-
quisa destinada a escolher os 10 maiores escritores da Língua
Portuguesa em todos os tempos.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
A princípio fiquei indignado. Mas depois, refletindo me-
lhor, vi que, na lista, fora deixada uma brecha para se reparar a
clamorosa injustiça.
Em primeiro lugar, notei que nela se tinham arrolado en-
saístas, poetas, romancistas e dramaturgos; mas nenhum deles
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Mas havia, ainda, uma possibilidade de reação contra mais
aquele equívoco de nossos adversários — possibilidade essa que,
paradoxalmente, nos fora fornecida por um inimigo nosso, num
Artigo que publicou no Recife.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Quer dizer, nosso adversário, sem perceber o terrível erro
tático que cometia em sua guerra contra “o clã oligárquico da famí‑
lia Savedra”, terminara reconhecendo: pelo menos quando falava
em suas Conferências, Tio Antero despertava o interesse dos jovens,
que viam nele, ainda que degradada, “uma versão dos Palhaços que
os encantavam na infância”. E se até um inimigo despeitado como
aquele deixava escapar uma confissão de tal natureza era porque
não havia dúvida: pelo menos ao falar, Aribál Saldanha alcançava
uma qualidade que o distinguia entre os demais Escritores brasi-
leiros.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Principalmente da Gazeta do Cariry, cujos integrantes
sentiam orgulho porque Adriel era filho da terra, tendo nós mo-
rado em Taperoá durante a infância e quase toda a adolescência.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
É verdade que o diretor da Gazeta concluía discordando de
Adriel. Achava que, “para o bem ou para o mal, o futuro da nossa
Cultura parece estar na outra tradição, cosmopolita e litorânea,
permeável às influências estrangeiras e ao ecletismo moderno”.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Adriel Soares
Se, mesmo discordando de minhas ideias sobre a Cultura
brasileira, ele me compara a Tolstói em seu amor pelo Povo russo
e considera o Auto d’A Misericordiosa como “uma obra‑prima”, eu
aceito a troca. Quem tem um adversário como esse não precisa de
aliados!
Astier Basílio
Mestre, o senhor já confessou várias vezes que tinha ciú-
me literário de seus irmãos — principalmente de Auro e Adriel.
Elogios como esse que foi feito a Adriel contribuíam para agravar
tal ciúme?
Dom Pantero
Contribuíam, sim. Mas, por outro lado, ao ser Adriel com-
parado a Tolstói em seu amor pela Rússia, comecei a juntar isso
àquelas palavras que nosso inimigo dissera sobre meu Tio, Antero
Schabino; e a pensar que, no Palco, as obras dos Savedras pode-
riam ser representadas, dando‑se a elas um caráter celebrativo
e sagratório e mergulhando‑as, pela oralidade (fonte primordial
da Literatura), no impulso de uma encenação musical, dançarina
e teatral, parecida com aqueles Espetáculos que encenávamos
no Teatro Antônio Conselheiro, instalado por Auro e pelo Padre
Matias Daro num barracão da Favela Ilha de Deus.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Até ali eu acertara a conviver com esse fato de modo razoá-
vel. Mas, depois de um sonho tão grandioso como aquele que pas-
sara a me incendiar o sangue, ele começou a se tornar insuportável.
E eu estava a ponto de cair em desespero quando a Providência
Divina veio em meu socorro. Foi como se passa a contar.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Enquanto prosseguiam, de repente eu tive a intuição de
que poderia tirar partido de tudo aquilo para vencer os obstá-
culos e frustrações que me impediam de atuar bem, na Cátedra.
Dos Estudantes que ali estavam transformando os Savedras em
Personagens, Antonio Madureira estudava Violão e Viola‑Brasileira;
Aglaia Costa, Violino e Rabeca; Maria Paula Costa Rego, Dança;
Romero de Souza Lima, Teatro; e se concordassem em ajudar‑me,
dali por diante ninguém mais dormiria em minhas Aulas, nem que
fosse pela gritaria das falas, pelos passos de dança e pelo som dos
instrumentos musicais.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Foi assim que comecei a convidar Artistas para participa-
rem das Aulas, depois batizadas de Espetaculosas. Em tal compa-
nhia, até no Palco eu me animaria a aparecer, pois, com suas Artes,
eles sanariam minhas deficiências de Ator, criando em torno do
bisonho Professor que eu fora até ali aquela aura‑de‑encantação
que cercava Adriel nas apresentações dos nossos Espetáculos.
Agora, à oralidade teatral das novas Aulas, esta aura acrescentaria
a beleza musical e dançarina da Festa, presente nos Espetáculos
populares brasileiros e que eu, sozinho, era incapaz de alcançar.
Cida Sepúlveda
E o senhor partiu logo para o confronto com Adriel Soares,
Mestre? Teve coragem de iniciar logo as Aulas‑Espetaculosas, mes-
mo sabendo que elas não iriam escapar ao cotejo com as aparições
de Adriel no Palco?
Dom Pantero
Eu? Deus me livre! Somente depois que Aribál Saldanha,
Altino, Auro e Adriel morreram foi que me atrevi a começá‑las;
em minha qualidade de sobrinho e irmão, passei a me considerar
como herdeiro natural deles.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Tem, sim! Às vezes eu me visto de branco, como Adriel; às
vezes de cáqui, como Quaderna; outras vezes de mescla azul, como
Auro; ou de calça azul e camisa branca, como Altino.
Neste primeiro dia do Simpósio, como se trata de uma
Overtura solene, vim de preto‑e‑vermelho, como Tio Antero,
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Maureen Bisilliat
Mestre, eu admirava muito a pessoa e a obra de Auro
Schabino, cujo Romance d’A Pedra do Reino me levou a incluí‑lo,
como terceiro vértice, no Triângulo literário, místico, telúrico, tre-
voso e iluminado do Sertão — Euclydes da Cunha, João Guimarães
Rosa e Auro Schabino. Mas aqui, agora, talvez por causa da Arte
que pratico, gostaria que Você adiantasse alguma coisa sobre as
imagens que passaram a ilustrar as Aulas‑Espetaculosas e, conse-
quentemente, o Simpósio.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
É com o maior prazer que respondo a essa grande Artista,
cuja câmera iluminada nos serviu de guia, a mim e a Fernando
Carvalho, para algumas cenas do Espetáculo intitulado O Amor de
Rosa e Francisco nos Labirintos da Sorte.
E já que falei nisso, acrescento que Fernando Carvalho e
Miguel de Alencar marcaram muito minha vida e a forma deste
Simpósio, ambos por terem usado obras de meus irmãos em pro-
gramas da TV Ilumiara. Miguel foi autor do Espetáculo A Coroada,
feito com base no Auto d’A Misericordiosa, de Adriel. Fernando
realizou outro, Ao Sol da Pedra do Reino, fundamentado no
Romance d’A Pedra do Reino, de meu irmão Auro Schabino: do
ponto de vista da ligação da Arte com minha vida, este me tocou
profundamente por causa da cena em que Heliana passa mel nos
seios. Já falei, aqui, do papel que as jovens Atrizes e Bailarinas que
tomam parte em minhas Aulas‑Espetaculosas a partir de certo
tempo começaram a desempenhar na minha vida, triste e solitária
desde aquele terrível dia em que, no Horto de Dois Irmãos, soube,
pela própria Liza Reis, que ela me rejeitava para sempre, por ter
dado seu amor a outro.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Ascenso Café
“E seus adversários tinham razão. É conhecido seu orgulho
ao declarar que nunca saiu de casa, ou seja, da ‘pátria’, resistindo
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Eu não conheci João Cabral pessoalmente, mas ele era mui-
to amigo do meu irmão Auro, que certa vez foi procurado por um
admirador da sensibilidade “pétrea, despojada e austera” de João
Cabral de Melo Neto e Graciliano Ramos. O homem era, também,
candidato a escritor e, em suas tentativas literárias, procurava imi-
tar “o verbo descarnado” dos autores de Vidas Secas e A Educação
pela Pedra. Segundo disse a meu irmão, viera para adverti‑lo:
Auro não escrevia com a áspera e angulosa concisão de Graciliano
Ramos e João Cabral de Melo Neto, motivo pelo qual “jamais ex‑
pressaria o Brasil por um Sertão árido e verdadeiro como o deles”.
Pacientemente, Auro alinhou alguns argumentos para
responder‑lhe. Disse que, como escritor e como pessoa, tinha “a
cara que sua vida lhe marcara e jamais poderia trocá‑la por outra
para assemelhar‑se a quem quer que fosse”. Afirmou que Graciliano
Ramos e João Cabral de Melo Neto eram ásperos e concisos por-
que, em ambos os casos, aquela era a linguagem que convinha à
expressão do universo deles. Acrescentou que, apesar de muito
admirá‑los, ele, Auro, era muito diferente dos dois e jamais pode-
ria escrever da mesma maneira: Graciliano e João Cabral perten-
ciam à linhagem clássica, despojada e sóbria de Machado de Assis,
e ele, à barroca, romântica e retórica de Euclydes da Cunha. Disse
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Auro Schabino
Eu jamais poderia me entender com pessoas que têm esse
gosto, porque, para levantar o Castelo com que sonho, preciso de
uma linguagem que tenha exatamente tudo aquilo que eles consi-
deram como defeito; isto é, sonho com uma ficção e uma linguagem
largadamente entregues “ao excesso, ao desbragado e ao supérfluo
linguístico”. A Pedra está presente em tudo o que escrevo; mas, no
meu caso, ela vive cercada pelo sangue e pela festa, por causa do
sangrento mas fecundo Riacho que banha as pedras da Ilumiara.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
E volto à pergunta de Maureen Bisilliat, cuja Câmera — como
a de Walter e Fernando Carvalho — também pertence à linhagem
barroca de El Greco, Antônio José da Silva, Antônio Vieyra, Goya e
Gregório de Mattos. Volto a ela explicando que Vera Ferraz, depois
de assistir a uma daquelas Aulas‑Espetaculosas que eu começara a
dar, convidou‑me para fazer, na TV Ilumiara, um programa sema-
nal intitulado O Canto da Casa Sonhosa — programa que, aliás,
estamos exibindo aos poucos, aqui no Simpósio, pelas projeções
da Lanterna Mago‑Iconoscópica que herdei de Quaderna.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
De tal modo, minha Trupe Ambulante de Teatro, meu
Cine‑de‑Circo, minha particular e diferente Divina Viagem, foi aos
poucos se configurando, sem que eu me visse obrigado a sair da
tranquila e maravilhosa Casa que tanto amo e à qual me mantenho
fiel, mesmo incorrendo, por isso, no desapreço dos “pródigos, con‑
cisos e descarnados viajantes do Mundo”.
O melhor, porém, foi que, como acabo de lembrar, o pessoal
da TV Ilumiara resolveu fazer dois Seriados, um a partir do Auto
d’A Misericordiosa, de Adriel, dirigido por Miguel de Alencar, o
outro fundamentado no Romance d’A Pedra do Reino, de Auro
— este último dirigido por Fernando Carvalho. E, depois da exibi-
ção, ganhei de presente as fitas de vídeo dos dois Espetáculos.
Instalei então, no meu Camarim deste Circo‑Teatro Savedra,
um aparelho de som e uma televisão. E às vezes, para inspirar‑me
antes de entrar no Palco, costumo tirar o som da televisão para
ver as cenas de um e de outro ao som de músicas diversas, o que
transforma as fitas num misto de Ópera, Balé e Cinema‑mudo.
Logo passei a comprar fitas de vídeo que exibiam
Espetáculos circenses e com as quais passei a fazer o mesmo, nun-
ca me esquecendo do deslumbramento que experimentei ao ver
uma delas ao som da música de Antonio Madureira No Reino da
Ave dos Três Punhais.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Jeanine Brandão
Mestre, Paulo Coelho declarou, outro dia, que daqui a 50
anos será reconhecido como “um clássico”. Por outro lado, soube
que o senhor recomendou aos organizadores do Simpósio que
esta sessão só durasse um dia. E o que lhe pergunto é isto: tendo
em vista as clássicas unidades de ação, tempo e lugar, sua preo-
cupação de terminar os trabalhos antes que o dia acabe revelaria,
por acaso, preocupação semelhante à de Paulo Coelho — no seu
caso em relação à Obra “clássica” que seu Tio lhe encomendou?
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Almanaque Viajoso
Diálogo d’A Onça Malhada e a Ilha Brasil.
Contendo ideias, enigmas, relatos de Viagens reais ou
imaginárias, lembranças, informações, comentários,
reflexões e a narração de casos acontecidos ou in‑
ventados, escritos por Antero Schabino, e reunidos,
em prosa e verso, num Livro Negro do Cotidiano, por
seu afilhado, sobrinho e discípulo Antero Savedra —
Bacharel em Filosofia, Doutor em História e Licenciado
em Artes.
Dom Pantero
Fiquei tentado a aceitar porque tudo aquilo era um reforço
considerável para o que, além de Romance, de Poesia e Teatro,
A Divina Viagem deveria ter de Ensaio. Otávio prometia‑me ain-
da que, caso eu aceitasse o convite, a Sibila publicaria, depois, as
Epístolas que Tio Antero planejara para a feitura da Obra (o que
era uma tentação para um Autor que, como todos os Savedras,
tinha uma enorme dificuldade de encontrar Editor que corresse o
risco de publicá‑lo).
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Lembrei‑me então de que Eliza de Andrade fizera algumas
experiências com os obscuros poemas de meu irmão Altino —
poemas que ela copiava a mão num papel em que, antes, imprimira
uma de suas Litogravuras.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
O primeiro trabalho que intentei como exercício em meus
diversos cursos foi uma gravura feita a ponta‑de‑metal — uma
Estilogravura, portanto. Era um meio‑termo entre o quadro de
Pedro Américo e a versão caricatural que Angelo Agostini fizera
dele. E como eu desejava que as Estilogravuras e Iluminogravuras,
a exemplo das Iluminuras ibéricas, fundissem texto e ilustração,
coloquei naquela um título que era também uma recriação “ilu‑
miarizada” das ironias dirigidas contra nosso Parente por seu
despeitado, invejoso e equivocado inimigo. Assim:
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Mas tudo isso foi depois e fica para melhor ser explicado
depois. Importante, agora, é dizer: nosso Tio e Mestre costumava
mostrar‑nos que o papel desempenhado por Pedro Américo e
Angelo Agostini no que se referia às Artes Plásticas era equivalen-
te, para nós, ao de José de Alencar, Euclydes da Cunha, Machado de
Assis e Lima Barreto, na Literatura. Mostrava como, abrindo ca-
minho para Os Sertões, o autor de Lucíola, neste último Romance,
descrevia alguns contingentes da população brasileira diante da
Capela barroca de Nossa Senhora do Outeiro da Glória, no Rio
de Janeiro:
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
E, para que comparássemos os dois Escritores, Tio Antero
mandava que relêssemos aquele texto em que Euclydes da Cunha
descreve os mais variados tipos que, aos poucos, iam caldeando o
Povo brasileiro — tipos que ele apresentava reunidos em volta da
Igreja de Canudos, assim como Alencar os mostrara em torno da
Igreja da Glória:
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Mas logo meu Tio chamava nossa atenção para outro fato:
diferentemente daquilo que acontecia com Euclydes da Cunha,
em José de Alencar a visão austera e masculina dos Vaqueiros
(Centauros sertanejos) era complementada pela das Mulheres
urbanas, verdadeiras Centauras‑fêmeas, diante das quais éramos
empolgados por uma paixão que nos atingia com grande inten-
sidade. Era o caso de Lúcia, bela Mulher que, por causa de seu
sangue centáurico, se dilacerava em duas Personas opostas — a
da Moça casta e pura que se chamava Maria da Glória e era devota
de Nossa Senhora, e a de Lucíola, a Cortesã sensual que, fundida à
outra, compunha a Face bifronte e fascinadora do Emblema femi-
nino — resumo do enigma do Mundo.
Esse Emblema começava a se configurar logo na primeira
vez em que Paulo, Moço do interior como nós, avistava a Romaria
a voltear em torno da Ermida, com aqueles tipos tão diversificados
de Caboclos índios, Negros africanos, Árabes, Judeus e Ibéricos
que, desde o século XVI, tinham começado a formar o Povo brasi-
leiro. E Paulo, de longe, primeiro tinha conhecido a face humana,
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Entretanto, poucos dias depois do primeiro encontro, in-
formado, por um amigo, de que a Menina se chamava Lúcia e era
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Como se vê por aí, os Romances urbanos de José de Alencar
estavam na origem, não só dos de Machado de Assis, mas na dos de
Aluízio Azevedo. A diferença era que este não se limitava a mostrar
o Sexo nas alcovas ricas, porém sim, mais brutal, nas populares.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Adriel Soares
Entretanto, a cena que Aluízio Azevedo descrevia depois —
e que acontecia como consequência desta primeira — causava em
nós uma impressão ainda mais forte.
Auro Schabino
Primeiro porque, por alusão, mostrava como era podero-
sa, para os Homens, até a simples imagem, ou evocação, daquela
Gruta, Fenda e Rosa que mesmo a Mulher mais despida de atrati-
vos possuía entre as coxas — “Sol de pelos, onírico Diadema”, como
a cantara Luiz Correia. Depois porque ali, já agora na antevisão
do Sexo como Paraíso desabrochado diante da Natureza, aparecia
‑nos, pela primeira vez tratado como o Mito e másculo deus que
era, aquele sagrado Sol‑brasileiro, desde muito cedo tão impor-
tante em nossa vida. Cantava o autor d’O Cortiço:
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Então, ontem à noite, preocupado com o Depoimento que
iria dar aqui no Simpósio — e também, é claro, com o que deveria
falar sobre o papel que tais leituras desempenharam em minha
vida —, não consegui dormir nem por um instante. Fiquei um bom
tempo andando pelo meu Quarto, rezando e, como Santo Inácio,
“velando minhas Armas”, isto é, passando e repassando na cabeça
tudo o que iria dizer aqui no dia de hoje.
Depois, fui para o Quintal, postando‑me junto à Torre que o
remata, encostada ao Muro exterior da Casa.
Lá, por um bom quarto‑de‑hora, fiquei a contemplar o Pé
‑de‑Figo, as Romãs e o Cajueiro. E, de repente, comecei a notar que
não era somente o Jardim: com as reformas e restaurações, por
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Socorro Raposo
Mestre, Você poderia adiantar alguma coisa sobre a paixão
que o ligou a ela?
Dom Pantero
Para responder‑lhe, tenho que voltar àquele momento
em que, ontem à noite, insone, fiquei a errar pelo Jardim e pelo
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Noturno
Primeira tentativa falhada de Poema‑lírico
Antero Savedra
Têm, para mim, Visões de um outro Mundo, as Noites lumino‑
sas, azuladas, quando a Lua aparece mais bonita. São idos Sonhos,
nossas mágoas santas, são Fantasmas antigos, carinhosos, que,
neste Mundo vivo e mais ardente, consumam tudo o que desejo aqui.
Coro
Será que mais alguém os vê e escuta?
Antero Savedra
Sinto o roçar de suas Asas puras, e ouço velhas Canções en‑
cantatórias que tento, em vão, de mim desapossar.
Coro
Diluídos na branca luz da Lua, a quem dirigem seus etéreos
Cantos?
Antero Savedra
Pressinto um vaporoso esvoejar: passaram‑me por cima da
cabeça, e, como um Halo puro te envolveram. Eis‑te de branco, como
no Retrato, a Ventania me agitando em torno o perfume que sai de
teus Cabelos.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Coro
Mas não: o Halo estranho inda te envolve. O Vento franja as
águas dos dois Rios, e continua a ronda, à luz da Lua.
Antero Savedra
E, se és, agora e sempre, a minha Vida, oh meu Amor, por que
te ligo à Morte?
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Vamos por partes. Quanto à primeira pergunta, devo dizer
‑lhe que, acima de si, nas fronteiras de Deus, cada Ser‑humano
possui seus Abrasadores — Anjos, Guerreiros, Mártires e Santos
—, modelos sagrados sem os quais se acomodaria numa vida
marcada pela mornidão, pelo vício, pelo crime, pelo pecado e pela
covardia. Quanto a mim, tive a sorte — ou a desgraça, ou a sina,
não sei! — de ter o meu Herói em casa, como uma Brasa ardente
colocada desde muito cedo sobre a minha cabeça, uma Asa‑negra
de fogo com cinco ardentes Rosas de ouro a me chamarem para o
Alto. É que eu sabia, com meu sangue, que, entre o lerdo Gado que
somos nós, entre o tardo Rebanho humano, e o luminoso Gavião
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Carla Seixas
A que se deveram tais dificuldades, Mestre?
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
É que, como acontece normalmente com as personalidades
acima do comum, a convivência com meu Tio não era fácil. Por
exemplo: causando em mim uma insuportável sensação de ciúme,
ele dava a meus irmãos Auro e Adriel uma preferência literária
que eu achava absurda, inaceitável. Para Vocês terem uma ideia:
nos dias decisivos e terrivelmente dolorosos que passei a viver
depois que perdi Liza, quando finalmente consegui compor aque-
le exorcismo que era o Noturno, trêmulo e ansioso fui levá‑lo a
meu Tio, para que o avaliasse. Já então ele pensava em escrever A
Divina Viagem, uma “recriação literária e artística” de seu Diálogo
d’A Onça Malhada e a Ilha Brasil; e, para acréscimo de meu ci-
úme e de minha frustração, convidara somente Auro, Adriel e Eliza
para ajudá‑lo “na grande e honrosa tarefa”. A mim, além do traba-
lho menor de organizador de suas Conferências Quase‑Literárias
que já me confiava, reservava agora apenas a função de Copista
d’A Divina Viagem: sua letra era péssima, quase ilegível; e, “para
facilitar o trabalho futuro de Programadores‑visuais e Artistas
‑gráficos”, ele me obrigara a praticar a Caligrafia vertical, para os
textos comuns, e a inclinada, para os que desejava destacar.
Vera Ferraz
Mestre, Você pode nos dizer alguma coisa sobre essas
Conferências Quase‑Literárias, que a meu ver desempenharam
papel importante na concepção de suas Aulas‑Espetaculosas?
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Respondo com a maior satisfação. As Conferências Quase
‑Literárias eram umas Aulas que Tio Antero costumava dar na
sala de visitas da nossa Casa recifense “para um mínimo de 3 e um
máximo de 12 pessoas”; porque, como acrescentava, “para além daí
era, já, a multidão”, coisa que lhe causava “verdadeira e profunda
repugnância”. Diziam, porém, os adversários dos Savedras, que
“tais afetações aristocráticas de Antero Megalo” resultavam pura
e simplesmente da inveja que meu Tio sentia por causa do suces-
so que outros Escritores pernambucanos — “como, por exemplo,
Gilberto Freyre” — obtinham em suas aparições públicas.
Esse era, pois, o homem de quem eu sonhava agora obter a
mesma honra de colaborar na criação d’A Divina Viagem. Esperava
consegui‑la por meio do Noturno, pois ficara acabrunhado com a
rejeição dele, que era meu Tio, como dos outros, mas era também
meu Padrinho; e, apesar disso, só mostrava admiração por Auro e
Adriel.
Mas Tio Antero foi cortante e brutal em sua recusa. Depois
que acabou de ler meu Poema disse‑me secamente:
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Aribál Saldanha
A vaga que havia, entre nós, para Poeta, já foi ocupada por
Auro e Adriel (se bem que eu não goste dos Poemas individuais
e líricos que os dois às vezes escrevem). A meu ver, nosso País e
nosso Povo exigem o épico e o coletivo, não havendo, aqui, lugar
para a Lírica.
Ora, seu “poema” é muito inferior, mesmo aos piores versos
líricos de seus irmãos. É manchado por um sentimentalismo ridi-
culamente melancólico e vago, que Você contraiu com os Poetas
românticos ingleses e que nada tem a ver com o Brasil!
Dom Pantero
Eu, intimidado e inseguro, tentei, no entanto, levantar uma
objeção àquele duro julgamento. Disse:
Antero Savedra
Minha admiração por Tennyson, Keats e Shelley vem do
senhor mesmo, meu Tio! É resultado de sua influência, porque em
nossa Casa recifense havia versos daqueles 3 Poetas incrustados
nas paredes do Jardim, e todos em traduções suas!
Ademar Sallinas
Não concordo com sua observação! Fiz aquelas “traduções”
não por iniciativa minha, e sim a pedido de seu Pai, que gostava
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
De repente, ele percebeu que estava se afastando dos mo-
dos de um Tio e Padrinho tratar seu Afilhado. E procurou amenizar
o tom de suas observações:
Aribál Saldanha
Não leve a mal a rudeza com que emito minha opinião, faço
isto para seu bem! Minha obrigação de Tio e Mestre é adverti‑lo,
para que Você não perca tempo num caminho equivocado.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Meu Tio pronunciou aquelas duras sentenças e deu‑me as
costas, deixando‑me arrasado.
Consegui, porém, recuperar‑me aos poucos do choque
que ele me causara, e comecei a sonhar com outra porta para me
aproximar dele e de sua Obra. Já que falhara como Poeta, pensei
em escrever um Romance, cujo fundamento seriam os capítulos
que, n’A Onça Malhada, falavam sobre Dom Sebastião Barretto,
O Encoberto da Serra da Copaóba.
Cautelosamente, fiz primeiro um esboço do Romance. Era
um projeto contendo uma sinopse de cada capítulo e que, depois
de pronto, levei também à apreciação daquele implacável Mestre,
tutor‑intelectual de todos nós.
Mas a reação de Tio Antero foi ainda mais dura que da pri-
meira vez. Disse ele:
Ademar Sallinas
Sua tentativa de prosa é pior do que o “poema”! O assunto
que escolheu é ótimo (e não poderia ser de outra forma, porque
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Meu Tio falou assim, mas não me deixou logo, como da
outra vez. Não concordando com a tímida proposta que lhe fiz de
refazer o esboço para submetê‑lo a nova apreciação, apossou‑se
do meu manuscrito, que levou consigo, dizendo que iria ver se era
possível “consertar o Monstro” (o qual, em caso positivo, me seria
devolvido).
Passou um bom tempo sem me falar do assunto. E, quando
voltou a fazê‑lo, foi para me fazer uma revelação, para mim fulmi-
nante: ele cortara aqui, acrescentara ali, reescrevera acolá, enfim,
refizera o esboço como bem quisera; e depois, “animando‑se” —
conforme explicou —, terminara por pilhar‑me, roubando minha
ideia para escrever seu “quase‑romance” O Desejado.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Eduardo Dimitrov
E qual foi a reação da Crítica ao “quase‑romance” de seu
Tio, Mestre?
Dom Pantero
Nos dias que antecederam sua publicação — como sempre
paga pelo próprio Autor — Tio Antero estava como um Menino em
véspera de férias, pois esperava um grande êxito. Mas foi uma de-
cepção: os sociólogos, críticos e cientistas‑políticos da “Esquerda
arejada” recifense atacaram duramente o livro, chamando seu
Autor de “irresponsável e alienado”. Reclamavam contra o fato de
não se poder jamais chamar O Desejado de “uma outra Bíblia dos
miseráveis”, como, por exemplo, “se podia dizer de Vidas Secas”.
Mostravam o contraste que existia entre “um Bobo alegre, um
Histrião palavroso e retórico”, como meu Tio, e “um Mestre sóbrio,
um clássico, como Machado de Assis”, ou “um Escritor sério, despo‑
jado e pungente, como Graciliano Ramos”.
Rachel Bertol
Antero Schabino respondeu às críticas, Mestre?
Dom Pantero
Meu Tio, a princípio, afetou desdém e manteve diante delas
um silêncio que considerou “soberano e cheio de olímpico despre‑
zo”. Na verdade, não respondeu logo porque os grandes Jornais
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Mànya Millen
Aliás, Mestre, este subtítulo de quase‑romance também foi
motivo de polêmicas e controvérsias no Recife, não é verdade?
Dom Pantero
É verdade. Em sua dupla condição de Escritor e Professor,
meu Tio concebera seu livro como uma Novela épica, histórica,
mas também como um Ensaio estético e artístico que comportava
uma reflexão sobre a Cultura brasileira. Por isso é que, sob o título
de O Desejado, colocara o subtítulo de Um Quase‑Romance. E
um Crítico maldoso, que, por conta própria, colocara na cabeça a
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Um Histrião
Pequena biografia de um mitomaníaco vaidoso
Gilberto Francis
“O pouco interesse que hoje cerca as obras e as ideias de
Antero Schabino surge quando ele pronuncia suas Conferências
Quase‑Literárias. Aí, seus dotes de Histrião vaidoso e megaloma‑
níaco levam os mais jovens a confundi‑lo com os Palhaços que os
encantavam na infância.
“Falo assim porque, em seus Ensaios, e agora, com O
Desejado, sob os cognomes de Aribál Saldanha e Ademar Sallinas,
o referido Antero Schabino conseguiu a façanha de, juntando‑se a
Rubem Braga, Miguel Arraes e Oscar Niemeyer, entrar no privilegia‑
do grupo dos maiores chatos do Brasil.
“Por isso, sugiro que, em seu mais recente livro, o subtítulo
seja trocado para ‘quase‑nada’.”
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
Foi enorme a gargalhada que reboou pelas esquinas e ro-
das literárias do Recife. E, apesar da pilhagem que sofrera, quem
ficou arrasado fui eu, que me considerava coautor do Livro, mesmo
tendo meu Tio omitido qualquer referência ao fato de que a ideia
inicial do “quase‑romance” lhe fora sugerida por mim.
Mas Tio Antero era realmente um homem superior, que
sempre teve a maior habilidade para reverter as maldades daque-
le tipo em favor de si. Ele esperou que a tempestade amainasse, e,
lá um dia, publicou 4 Artigos, n’O Mossoroense, do Rio Grande do
Norte. No primeiro, mostrava que a Odisseia — por conter, além
da trama épica, um ensaio sobre a formação da Grécia e de sua
Cultura — era um quase‑romance. No segundo, apresentou tese
semelhante sobre A Divina Comédia. No terceiro, fez o mesmo com
o Dom Quixote. E coroou sua magistral análise com o quarto arti-
go, no qual mostrava que, com o seu, aqueles três quase‑romances
formavam “uma Quaterna dialética, na qual a Odisseia era a tese,
A Divina Comédia a antítese, o Dom Quixote a contrátese, e
O Desejado a síntese genial daquelas 3 Obras”, precursoras da sua.
Leonardo Guelman
Mestre, pretendo apresentar, no Simpósio, um Comunicado
sobre a sátira que, no Romance d’A Pedra do Reino, de Auro
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Para falar a verdade, meu sonho era que o Governo, perce-
bendo a importância literária, política, plástica e religiosa que A
Ilumiara tem (para o Mundo, para a Iarandara em geral e para o
Brasil em particular), me desse condições de colocar, na Estrada
que liga Taperoá a Belmonte, Belmonte ao Recife, e o Recife de
novo a Taperoá, milhares de Lajedos semelhantes ao tríptico que
é As Tábuas da Lei. Em tais Lajedos seriam insculpidos todos os
sinais e todas as letras que venho reunindo aqui, de modo a que os
eventuais leitores da Obra só pudessem tomar conhecimento dela
transformando‑se em Peregrinos que, pela Estrada, realizassem, a
pé e por etapas, a Viagem, parando defronte de cada Lajedo para
ver e ler, rezando, o que cada um continha. Por trás de cada Lajedo
seria colocada uma grande Iluminogravura feita em Mosaico por
Guilherme Jaúna, de modo a transformar realmente A Ilumiara no
Evangelho de Pedra que eu sempre imaginara.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Inez Viana
Mestre, Rosette Fonseca dos Santos preparou também um
Comunicado que deseja ler agora; com muita alegria, passo‑lhe
a palavra.
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Nivaldo Mulatinho
Mestre, antes de mais nada quero lhe dizer que, comigo,
o senhor pode ficar inteiramente seguro e tranquilo porque não
vim para cá com o propósito de fazer a ninguém qualquer crítica
desfavorável. Pelo contrário: sendo, além de schabinólogo, um
savedrista convicto, trouxe comigo um intelectual do Rio Grande
do Norte, Carlos Werneck, que vai apresentar aos participantes
do Simpósio um Comunicado que preparou a partir de um Artigo
publicado pel’O Mossoroense de 18 de Novembro de 1971:
Carlos Werneck
“O Romance d’A Pedra do Reino, de Auro Schabino, é
um livro novo, fascinante, disparatado e poderoso. Muitos episódios
que relata são verdadeiros. Mas o Autor mistura‑os com os de sua
exclusiva criação, a ponto de recriar a história do Brasil e invadir a
do próprio Mundo, com sua Mitologia particular.
“Mas, antes de falar do Livro, parece‑me importante falar do
Autor, Auro Schabino. Quando começou o Movimento militar de 3 e
4 de Outubro de 1930, o Prefeito de Assunção, João Canuto Schabino
de Savedra Jaúna, já tinha tomado partido contra ele. E foi assassi‑
nado no dia 9. Auro Schabino, seu filho, estava com 7 anos de idade.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Meio escondido em meu Púlpito eu ouvia estas palavras
como se a mim mesmo — e não a Auro — elas fossem dirigidas.
E, muito comovido, ficara pensando em como tudo aquilo era
importante para mim: no meio da tristeza e solidão que cerca-
vam minha vida, só contavam, na verdade, aqueles momentos
iluminados em que conseguia compor no Palco a figura de Dom
Pantero — o Personagem central das nossas Aulas‑Espetaculosas;
porque naquela minha vida árida, erma e solitária, o Palco (ou o
Picadeiro‑circense que, em meu caso, o configurava) passara a
ser a Fonte do Cavalo Castanho que me possibilitava colocar‑me
à mesma altura do romance de Auro, da poesia de Altino e dos
espetáculos teatrais, dançarinos e musicais de Afra e Adriel; isto é,
no Palco tinham começado a brotar e correr para mim as mesmas
águas, sangrentas mas fecundas, do Riacho do Elo — águas que,
para meus irmãos, significavam o mesmo que a Cadência, para o
Mestre Vitalino; a Rabeca da Sabedoria, para o Cego Oliveira;
o Sonho da Casa, para Gabriel Joaquim dos Santos; o Córrego, para
Nô Caboclo; e as iluminosas projeções do Cine da Natureza
para Luiz de Lira.
E, mesmo correndo o risco de me tornar repetitivo, atrevo
‑me a recordar a bela declaração do Cego:
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Cego Oliveira
“Quando moço, eu era bom demais. Hoje, estou Velho e vou
ficando meio distraído das coisas. Já esqueci muitos versos, mas
ainda toco e canto nas Romarias.
“Deus é todo‑poderoso e é quem manda no destino de todos
nós. Acredito na vida do outro Mundo, mas ninguém sabe como ela é.
“Uma vez, na hora de esbarrar o Toque, cantei uma Despedida
tão bonita que uma Mulher disse: ‘Faz pena um Homem desse ter
que morrer um dia.’
“Mas eu não tenho medo da Morte: minha Rabeca é tocada
conforme o tom da Sabedoria.”
Dom Pantero
O Auto d’A Misericordiosa e Romeu e Julieta eram Peças
‑de‑juventude; o Romance d’A Pedra do Reino e Hamlet, Obras
‑de‑maturidade; e eu esperava em Deus que A Ilumiara fosse,
como Dom Quixote, uma Obra típica da velhice de seu Autor.
Ao dizer isso, devo confessar outro fato que passou a me
acontecer desde que completei 70 anos. Até então eu era um Velho
animoso e bem‑humorado, que só pensava no futuro, iluminado
que me sentia pela Obra projetada há tempo e cuja derradeira pos-
sibilidade de ser feita estaria configurada no Simpósio Quaterna.
Mas agora chegava à conclusão de que meu tempo se esgotava e eu
não conseguia levantar a Obra que sonhava. Por outro lado, Vocês não
podem ter ideia do sofrimento que me empolgava ao me ver
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
o rosto para ele, que esmagava seus lábios com um beijo, clara
representação do êxtase final a que ambos tinham chegado.
Assim, naquela tarde de 9 de Outubro de 2000, eu combi-
nara com os organizadores do Simpósio: logo que Carlos Werneck
acabasse de falar, deveríamos apresentar um pequeno número
de Dança, ao som da adaptação que Antonio Madureira fizera,
para Flauta, Violão, Violino e Violoncelo, da Serenata incluída por
Stravinsky na Suíte Italiana (por ele composta sobre temas de
Pergolese).
Aos Músicos — Madureira, Sergio Ferraz, Sebastian Poch
e Eltony Nascimento — vieram se juntar os Bailarinos: o pri-
meiro par era formado por Luziara, Contra ‑Mestra do Cordão
‑Encarnado, e Bruno Alves dos Santos, misto de Mateus, Arlequim
e Palhaço Sabido; o segundo, por Lucinda, Mestra do Cordão
‑Azul, e Natércio Santana — Bastião, Pierrô e Palhaço Besta.
Esses quatro Bailarinos postaram‑se de lado, formando
uma espécie de Guarda‑de‑Honra para o terceiro par, composto
por mim e por Maria Iluminada. Ela representaria o Sexo‑feminino,
na plena posse de sua graça, beleza e juventude: desse modo seria,
para mim, a figuração de Liza Reis — único, puro e perdido Amor
de minha vida.
Quanto a mim, quase não me movia, pois a idade avançada
impedia‑me de agir de outra maneira: apesar de Dom Pantero,
eu continuava a ser aquele mesmo Velho que encarnava no Palco
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
que, vestidas pela Arte, pareciam tão para além da Culpa nas pala-
vras de Tio Antero e de Quaderna. Eu sempre afirmara: aquilo que
realmente distingue o Ser‑humano dos outros Animais não era a
Razão, mas sim o senso do Bem e do Mal — e era daí que vinham
nossa grandeza e nossa miséria. Ninguém podia acusar um Ca-
valo de ser um criminoso perverso. Mas, em troca, nenhum Cavalo
podia chegar a ser um São Francisco ou Santo Inácio, a escrever
A Divina Comédia ou o Dom Quixote.
De modo semelhante, a sexualidade dos Animais era sem-
pre inocente. No Homem, podia ser elevada à espiritualidade de
Santa Teresa. Mas em pessoas comuns, o Sexo — a princípio versão
menor do êxtase sagrado — podia começar por carícias e sonhos
poéticos e terminar na realidade brutal do Pecado e do Crime.
Naquele dia, tudo isso ficou, de repente, claro para mim:
porque, enquanto, no Palco, nós nos despedíamos do Público, o
Delegado, José Fausto Martins, entrara, por trás, no Teatro e dera
voz de prisão ao nosso Bailarino, Natércio Santana — Paspalho,
O Palhaço Besta: segundo se apurara, fora ele o estuprador e
assassino de Patrícia; e todas as palavras que Fausto dissera so-
bre o velho pai de Biu Santeiro tinham tido como objetivo apenas
tranquilizar o criminoso sobre a presença do Delegado no Teatro,
evitando‑se, assim, sua fuga.
Quando entrei, Natércio acabara de confessar o crime; e,
chorando, ajoelhado aos pés de seu amigo e parceiro Bruno —
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Natércio Santana
Acredite, Bruno, pelo amor de Deus acredite: eu não queria
matar Patrícia! Foi ela quem me chamou para a Sacristia, dizendo
que queria me mostrar uns sinaizinhos que tinha na barriga. Vi os
sinais, comecei a acariciá‑los e juro a Você que, no começo, queria
somente ficar nesses carinhos.
Mas, de repente, comecei a ficar excitado e fui adiante. Ela
ficou assustada e pediu que eu parasse. Tentou fugir. Foi aí que
segurei Patrícia por trás, pelo pescoço, e fiz força até ela cair.
Daí em diante, fiquei cego, não sei mais nada, não me lem-
bro mais de nada! Só depois de tudo foi que vi que a pobrezinha
estava morta. Me perdoe, pelo amor de Deus e de Nossa Senhora!
Dom Pantero
Bruno retirou as mãos com que tapava o rosto para não ver
o assassino e, olhando de lado, com lágrimas também lhe correndo
pelas faces, falou com voz surda e carregada:
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
José Fausto Martins aproximou‑se de Natércio e pegou‑o
pelo braço para levá‑lo preso. Ele não fez qualquer resistência.
Mas, detendo‑se ainda um pouco antes de sair, voltou‑se para o
Padre Manuel, que, consternado, via tudo aquilo; disse:
Natércio Santana
Padre Manuel, preciso de um favor seu: vá procurar aquele
Padre pecador de Campina Grande e peça a ele que venha falar
comigo na Cadeia, porque só a um Padre como ele é que terei co-
ragem de me confessar!
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Padre Manuel
Acho que ele está suspenso de ordens, Natércio, e só pode
confessar alguém que esteja em situação extrema; como um ago-
nizante, por exemplo.
Natércio Santana
Agonizantes somos todos nós! Uma vez ouvi o senhor dizer,
na Igreja, que existe uma “comunhão dos santos” e que é dela que
nos valemos, nos momentos ruins, para compensar nossos erros.
Pois existe também uma “comunhão dos pecadores”. Todos
os que estão aqui participaram do meu crime! Todos nós vivemos
esta “comunhão dos pecadores”, e é em nome dela que lhe fiz esse
pedido, o senhor possa atendê‑lo ou não!
Dom Pantero
José Fausto Martins saiu com Natércio. Eu, com o coração
pesado, depois de abraçar Bruno demoradamente, chorando com
ele, consegui afinal desprender‑me; e, acompanhado por meu
Cortejo feminino, que chorava comigo, segui para o Camarim.
Chegando à porta dele, agradeci a Iluminada, Lucinda e
Luziara. Despedi‑me das 3 e, sentando‑me em frente ao Espelho,
comecei a refletir sobre o que acontecera. Via, mais uma vez, que
somente assumindo a máscara‑e‑persona de Dom Pantero é
que eu podia enfrentar a Fera sangrenta, culposa e insana do
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Na expectativa de ser executado, era portanto esse desgosto
— e não o medo da Morte — que atormentava o grande sonhador
Quaresma. E ali, no Camarim, eu, parecido com ele (mas menos
corajoso, menos digno e menos puro), comecei a murmurar a pre-
ce que de vez em quando me vinha aos lábios e ao coração: “Meu
Deus, no momento em que me aproximo da Morte, não leve em conta
as omissões, as fraquezas e os feios pecados deste seu filho, mas sim o
amor que consagro à sua Mãe. E, pela intercessão da Medianeira de
todas as Graças, receba em seus braços a minha alma, para que, um
dia, também meu corpo, purificado, ressuscite para a Vida eterna; o
que lhe peço em nome de seu Filho, o Cristo, na unidade do Espírito
Santo, por todos os séculos dos séculos. Amém.”
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Dom Pantero
E apressei‑me a restaurar a Máscara, porque sabia: ao
contrário de mim, Dom Pantero era imortal; e só com sua roupa
e seu Medalhão é que eu poderia concluir o Simpósio. Se manti-
vesse sua Máscara, mesmo que a Onça‑da‑Morte me armasse uma
Emboscada, me encontraria no Palco, na Estrada — montado em
meu Cavalo Graciano e pronto para enfrentar “os desconcertos, as
feiuras e as injustiças do Mundo”. Como afinal acontecera a Dom
Quixote: não o de Cervantes, é claro, mas aquele cujo fim eu forjara
com base em Dom Pantero.
Então, abrindo a porta, chamei Felipe Santiago, a quem
pedi: dali por diante, além do Banheiro que já havia, ele deveria
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Doxologia
Auro Schabino
Agora, só me resta ir para a Igreja. Subo a Ladeira. A Porta.
A escura Nave. Com o Livro aos ombros, vou como uma Ave de papel
preto e branco que esvoeja. Vazio, o Nicho, em ouro, ali chameja.
Subo ao Altar. No vão, perto da grade, deposito a futura Raridade.
Vou ao Padre. Recebo a minha Tença. E, em meio da geral indiferen‑
ça, abandono — mais uma! — esta Cidade.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
Uma vez, quando eu era bem menino, um Escorpião picou
meu calcanhar. Talvez por causa disso, “têm, para mim, Visões de
um outro Mundo, as Noites luminosas, azuladas, quando a Lua apa‑
rece mais bonita”.
Mas é verdadeira, também, a face reversa da Medalha:
“Têm, para mim, Visões de um outro Mundo, as Noites perigosas e
queimadas, quando a Lua aparece mais vermelha.”
Também talvez seja por causa disso que às vezes acordo
no meio da noite com o coração a ponto de me saltar do peito:
acabara de sonhar com um áspero e desolado Tabuleiro onde, por
entre Pedras e Cactos espinhosos, fosforesciam os olhos amarelos
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Ariano Suassuna Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Albano Cervonegro
Pois é assim: meu Circo pela Estrada. Dois Emblemas lhe ser‑
vem de Estandarte: no Sertão, o Arraial do Bacamarte; na Cidade, a
Favela‑Consagrada. Dentro do Circo, a Vida, Onça Malhada, ao luzir,
no Teatro, o pelo belo, transforma‑se num Sonho — Palco e Prelo. E
é ao som deste Canto, na garganta, que a cortina do Circo se levanta,
para mostrar meu Povo e seu Castelo.
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Livro II — O Palhaço Tetrafônico
Dom Pantero
E, com estes Versos, compostos em Martelo‑Agalopado,
aqui se despede de Vocês, nobres Cavaleiros e belas Damas da
Pedra do Reino, este que é seu Soberano e seu companheiro de
cavalgadas e Cavalaria,
Recife, 7. X. 1945
12. X. 2013
Dia de Nossa Senhora Aparecida,
Padroeira do Brasil
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Posfácio
Ricardo Barberena
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Reino presentificado por duas enormes Pedras onde pingos pratea-
dos brilham ao Sol. Como Esfinges a serem decifradas, as Pedras
traziam consigo o mistério de uma metamorfose visceral: o fraco
tornava‑se forte, o real tornava‑se fantástico, a memória tornava‑se
lenda. Assim, era preciso que ouvíssemos aquele pedregoso Discurso,
que brotava da tênue separação entre a anedota tragicômica e
o lamento da desesperança lírica. Os enigmas do Reino estavam
camuflados nas Pedras que resistiam ao Tempo, simbolizando a
força de uma Cultura que, formada pelo sangue dos seus Heróis,
Profetas e Santos, permanecia renovada no Espetáculo encenado
por Dom Pantero. E foi por isso que, como um Quixote sertanejo, ali
em Arcoverde ele hipnotizou uma Plateia de quase 2.000 pessoas,
com a sua técnica de encantação que remonta aos primórdios da
expressão literária — a Arte oral de narrar histórias.
“Pois bem: terminada a Aula, Antero Savedra, com uma
amabilidade que não pode ser traduzida em palavras, convidou‑me
para ir a seu Camarim, onde eu — e mais duas ou três pessoas — ti‑
vemos um encontro que se prolongaria por quase duas horas. Com a
força lírica da contação de estórias, Savedra novamente encantou a
todos nós. Num momento de supremo magicismo, recitou o Poema
Infância, de Paulo Mendes Campos; e depois o Soneto, de igual tí‑
tulo, publicado no Livro O Pasto Incendiado, e que transcrevo a
seguir (pois nele se fala sobre o que, menino, ele sentiu ao ter o Pai
assassinado):
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INFÂNCIA
Com tema de Maximiano Campos
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evidencia um sopro de esperança para todos nós; é possível ainda
perceber a magnitude da humildade numa sociedade‑espetáculo.
Deparamo‑nos com o verdadeiro e libertário exercício da alteri‑
dade. Desabrigando‑se de possíveis guaridas da cultura letrada,
Savedra desvela uma infinita humanidade ao buscar destituir‑se de
vestígios de uma centricidade das belas‑letras. Sua sublime simpli‑
cidade torna‑se um impactante rebelo contra a espetacularização
de pseudocelebridades massificadas. Enquanto Imperador da Pedra
do Reino, o imortal Dom Pantero reinventa uma poeticidade que faz
brotar do Sertão‑osso a intersubjetividade do conversar e do ouvir
o Outro.
“Incansável com sua Trupe, Antero Savedra já proferiu mais
de 200 aulas pelo interior do Nordeste. Nesses privilegiados fóruns de
discussão, navega pelas idiossincrasias da identidade cultural bra‑
sileira. Cabe ressaltar que o Movimento Armorial tem possibilitado
uma reflexão mítico‑simbólica no tocante à migrância de imaginá‑
rios plurais: a heráldica medieval, brasões ibéricos, estandartes de
maracatu, bandeiras de futebol. O legado de Savedra permite que
façamos uma discussão sobre uma nacionalidade fragmentada
que se apresenta imaginada a cada reinvenção de uma tradição
inacabada. Essa cosmovisão estética acaba por metamorfosear uma
simples mirada regionalista num memorial popular sob a égide da
decifração dos narrares nacionais. A Epopeia savedriana, tecida em
palavras‑magma, produz constelações de um viver na Pedra. Se as
rochas contam a história da Terra, a escritura‑fabulação de Savedra
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narra uma territorialidade nacional encarnada no cordel, no Teatro,
no folhetim, nas Iluminogravuras, na falação sem dono.
“Há, ainda, uma questão fundamental que não podemos
perder de vista: a poética de Savedra. Segundo ele próprio, toda
a sua Obra descende diretamente de sua condição de Poeta. É na
sua capacidade de encantamento dos mitos do Reino do Sertão que
repousa uma matéria imaginante capaz de inserir na historiografia
literária uma potencialidade lírica popular: do Auto nordestino às
mitificações mediterrâneas. E é justamente aí que reside a poética
savedriana. Ao rechaçar os estereótipos da identidade nacional, o
nosso Imperador da Pedra‑do‑Sonho reconstitui uma estética quixo‑
tesca, movida pelo mar de estórias da cultura brasileira. Fascinado
pelo Circo, Savedra confessa que se considera um Palhaço frustrado.
Se o mundo circense pode ter perdido muito, por outro lado o mundo
literário ganhou um escritor que carrega no olhar a ternura de um
Palhaço chapliniano.”
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Cronologia de
Ariano Suassuna
1927
Nascimento de Ariano Vilar Suassuna, a 16 de junho, na ci-
dade da Paraíba (atual João Pessoa), capital do Estado da Paraíba.
Oitavo dos nove filhos do casal João Urbano Suassuna e Rita de
Cássia Vilar Suassuna, Ariano nasce no Palácio do Governo, pois
seu pai exercia, à época, o cargo de Presidente da Paraíba, o que
equivale ao atual cargo de Governador.
1928
A 22 de outubro, terminado o seu mandato, João Suassuna
passa o cargo de presidente a João Pessoa. A família Suassuna
volta a seu lugar de origem, o sertão da Paraíba, indo residir na
fazenda Acauhan, pertencente a João Suassuna e localizada no
atual município de Aparecida.
1929
Iniciam-se, na Paraíba, as dissensões políticas que antece-
dem a Revolução de 30.
1930
Começa a luta armada, na Paraíba. O coronel José Pereira
Lima, líder político do município de Princesa e aliado de João
Suassuna, declara a independência do seu município, que passa a
se chamar Território Livre de Princesa, resistindo às investidas das
tropas de João Pessoa. A 26 de julho, o presidente João Pessoa, que
se encontrava no Recife, é assassinado por João Dantas. Entre os
dias 3 e 4, rebenta a Revolução de 30, na Paraíba. A 6 de outubro,
987 987
João Dantas é assassinado na Casa de Detenção do Recife. A 9 de
outubro, João Suassuna, então deputado federal, que viajara ao
Rio de Janeiro para defender-se, junto à Câmara dos Deputados, da
injusta acusação de cúmplice no assassinato de João Pessoa, é por
sua vez assassinado, aos 44 anos de idade, na Rua do Riachuelo,
por um pistoleiro de aluguel, a mando da família Pessoa.
1933
D. Rita, agora chefe da família Suassuna, muda-se para
Taperoá, sertão da Paraíba, ficando sob a proteção dos seus irmãos.
1934-1937
Em Taperoá, Ariano Suassuna estuda as primeiras letras,
primeiro em casa, depois na escola, com os professores Emídio
Diniz e Alice Dias. Assiste, pela primeira vez na vida, a um desafio
de viola, uma peleja travada entre os cantadores Antônio Marinho
e Antônio Marinheiro. Numa feira, assiste também, pela primeira
vez, a uma peça de mamulengo, o tradicional teatro de bonecos do
Nordeste. Dona Rita, em dificuldades financeiras, vende a fazenda
Acauhan, para custear a educação dos filhos.
1938-1942
Ariano Suassuna faz o curso ginasial no Colégio Americano
Batista, no Recife, em regime de internato, passando os períodos
de férias escolares em Taperoá. Seus primeiros mestres de litera-
tura são de Taperoá: os tios Manuel Dantas Vilar, “meio ateu, repu-
blicano e anticlerical”, e Joaquim Duarte Dantas, “monarquista e
católico”. O primeiro lhe indica leituras de Eça de Queiroz, Guerra
Junqueiro e Euclydes da Cunha; o segundo, a leitura de Dom
988 988
Sebastião, de Antero de Figueiredo. Muitos dos livros que lê são
encontrados na biblioteca deixada por João Suassuna, que foi um
grande leitor. Em 1942, a família Suassuna fixa-se no Recife. A 30
de novembro de 1942, Ariano discursa como Orador da Turma na
solenidade de encerramento do curso ginasial.
1943
Estuda no Ginásio Pernambucano (Colégio Estadual de
Pernambuco), no Recife. Torna-se amigo, no colégio, de Carlos
Alberto de Buarque Borges, que o inicia em música erudita e em
pintura.
1945
Estuda no Colégio Oswaldo Cruz, no Recife, tornando-se
amigo do pintor Francisco Brennand, seu colega de turma. A 7 de
outubro, inicia-se na vida literária, com a publicação do poema
“Noturno”, no Jornal do Commercio, do Recife.
1946
Ingressa na tradicional Faculdade de Direito do Recife. Na
Faculdade, junta-se ao grupo que, liderado por Hermilo Borba
Filho, retoma, sob nova inspiração teórica, o Teatro do Estudante
de Pernambuco (TEP). Torna-se amigo do poeta e tradutor José
Laurenio de Melo. Organiza, com o apoio do Diretório Acadêmico
de Direito, uma apresentação de cantadores, levada ao palco do
Teatro Santa Isabel, no Recife, a 26 de setembro. Dá início à publi-
cação dos seus primeiros poemas ligados ao romanceiro popular
nordestino, em periódicos acadêmicos e suplementos de jornais
do Recife.
989 989
1947
Baseando-se no romanceiro popular nordestino, escreve a
sua primeira peça de teatro, Uma Mulher Vestida de Sol. A peça,
que não é encenada, recebe, no ano seguinte, o Prêmio Nicolau
Carlos Magno.
1948
Escreve a peça Cantam as Harpas de Sião, montada no mes-
mo ano, pelo TEP, com direção de Hermilo Borba Filho e cenário
e figurinos de Aloisio Magalhães. A peça estreia a 18 de setembro,
durante a inauguração da “Barraca”, palco erguido no Parque Treze
de Maio, no Recife, sob inspiração do trabalho de García Lorca. O
primeiro ato de Uma Mulher Vestida de Sol é publicado na revista
Estudantes, do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito.
1949
A 6 de março, conclui a peça Os Homens de Barro, iniciada
no ano anterior.
1950
Escreve a peça Auto de João da Cruz, com a qual recebe
o Prêmio Martins Pena. Forma-se em Direito, pela Faculdade de
Direito da Universidade do Recife (atual Universidade Federal de
Pernambuco). Adoece de tuberculose, indo para Taperoá, à procu-
ra de bom clima para se tratar.
1951
Em Taperoá, para receber sua noiva Zélia e alguns fami-
liares seus, que o foram visitar, escreve seu primeiro trabalho
ligado ao cômico, uma peça para mamulengo, intitulada Torturas
990 990
de um Coração ou Em Boca Fechada não Entra Mosquito, peça por
ele mesmo montada, com acompanhamento musical do “terno de
pífanos” de Manuel Campina. Converte-se ao catolicismo. É publi-
cado, pela Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, do Rio
de Janeiro, É de Tororó – Maracatu, primeiro volume da Coleção
Danças Pernambucanas, contendo o seu ensaio “Notas sobre a
música de Capiba”.
1952
De volta ao Recife, trabalha como advogado no escritório
do jurista Murilo Guimarães. Escreve a peça O Arco Desolado, com
a qual participa de concurso organizado pela Comissão do IV
Centenário da Cidade de São Paulo.
1953
Escreve O Castigo da Soberba, entremez baseado num
folheto da literatura de cordel. Assina coluna literária no jornal
Folha da Manhã, do Recife.
1954
Escreve O Rico Avarento, entremez baseado numa peça
tradicional do mamulengo nordestino. Ministra curso de teatro no
Colégio Estadual de Pernambuco, dirigindo os estudantes numa
montagem de Antígona, de Sófocles, que ele mesmo traduziu, e
cuja estreia se dá a 9 de novembro, no Teatro Santa Isabel, com
cenário e roupagens de Aloisio Magalhães. Participa do grupo
de artistas, escritores e intelectuais que funda O Gráfico Amador
(1954-1961), importante movimento de artes gráficas sediado no
Recife.
991 991
1955
A 24 de maio, estreia a sua tradução da peça A Panela, de
Plauto, montada pelo Teatro do Colégio Estadual de Pernambuco,
ainda sob sua direção, com cenário e roupagens de Aloisio
Magalhães. Escreve a peça Auto da Compadecida. Publica o poema
Ode, em edição de O Gráfico Amador, do Recife.
1956
Estreia, em abril, no núcleo do SESI de Santo Amaro, no
Recife, nova montagem de A Panela, de Plauto, sob sua direção,
agora encenada por um grupo de operários. A 14 de maio, dia do
aniversário do Colégio Estadual de Pernambuco, o grupo de tea-
tro do Colégio apresenta, sob sua direção, a peça em ato único O
Processo do Cristo Negro, que escreve num só dia, e que é, nas suas
palavras, “uma espécie de ‘facilitação’ do terceiro ato do Auto da
Compadecida”. É convidado para ensinar Estética na Universidade
do Recife (atual Universidade Federal de Pernambuco) e abando-
na definitivamente a advocacia. Escreve o seu primeiro romance,
A História do Amor de Fernando e Isaura, que permanecerá iné-
dito até 1994. A 11 de setembro, o Auto da Compadecida estreia
no Teatro Santa Isabel, em montagem do Teatro Adolescente do
Recife, sob a direção de Clênio Wanderley e cenário de Aloisio
Magalhães. A partir de 12 de setembro, a convite de Mauro Mota,
passa a assinar coluna sobre teatro no Diário de Pernambuco.
1957
Casa-se, a 19 de janeiro, dia do aniversário de nascimento
do seu pai, com a artista plástica Zélia de Andrade Lima. Viaja para
o Rio de Janeiro, em lua de mel, e assiste à consagradora apresen-
tação do Auto da Compadecida no Primeiro Festival de Amadores
992 992
Nacionais, promovido pela Fundação Brasileira de Teatro e reali-
zado no mês de janeiro, no Teatro Dulcina. A peça é apresentada
no dia 25, pelo mesmo Teatro Adolescente do Recife, dirigido por
Clênio Wanderley, e é logo considerada pela melhor crítica do país
uma obra-prima, recebendo a Medalha de Ouro do Festival. De 10
de junho a 26 de julho, escreve a peça O Casamento Suspeitoso. A
27 de julho, estreia, pelo Teatro Amador Sesiano de Pernambuco,
sob sua direção, a peça As Trapaças de Escapim, de Molière, que ele
próprio traduziu, com figurino assinado por sua irmã, Germana
Suassuna, e cenário de Juvêncio Lopes. A 30 de setembro, nasce
seu primeiro filho, Joaquim. Em outubro, o Auto da Compadecida é
publicado pela editora Agir. De 7 a 18 de novembro, escreve a peça
O Santo e a Porca.
1958
A 6 de janeiro, no Teatro Bela Vista, em São Paulo, estreia a
peça O Casamento Suspeitoso, em montagem da Companhia Nydia
Licia/Sérgio Cardoso, sob direção de Hermilo Borba Filho. Entre
janeiro e março, reescreve a sua primeira peça, Uma Mulher Vestida
de Sol. A peça O Santo e a Porca estreia no Teatro Dulcina, no Rio,
a 5 de março, em montagem da companhia Teatro Cacilda Becker,
sob direção de Ziembinski. De 12 a 13 de maio, reescreve a peça
Cantam as Harpas de Sião, mudando seu título para O Desertor
de Princesa. Em junho, encerra sua coluna teatral no Diário de
Pernambuco. A 21 de julho, no Teatro Santa Isabel, no Recife, é
apresentada uma montagem do Auto de João da Cruz, pelo Teatro
do Estudante da Paraíba, sob a direção de Clênio Wanderley, no
âmbito do I Festival Nacional de Teatros de Estudantes. A 4 de
outubro, nasce sua filha Maria das Neves.
993 993
1959
Escreve a peça A Pena e a Lei, a partir do entremez Torturas
de um Coração, de 1951. Funda, com Hermilo Borba Filho, o Teatro
Popular do Nordeste (TPN). O Auto da Compadecida é publicado na
Polônia, na revista Dialog, em tradução de Witold Wojciechowski e
Danuta Zmij (Historia o Milosiernej czyli Testament Psa).
1960
A Pena e a Lei estreia a 2 de fevereiro, no Teatro do Parque,
no Recife, em montagem do TPN, sob direção de Hermilo Borba
Filho. A 4 de outubro, nasce seu filho Manuel. Escreve a peça
Farsa da Boa Preguiça. Forma-se em Filosofia, pela Universidade
Católica de Pernambuco. O Auto da Compadecida é publicado em
Portugal, na Coleção Teatro no Bolso, impresso na Editora Gráfica
Portuguesa, de Lisboa, sem referência ao ano da edição.
1961
A Farsa da Boa Preguiça estreia a 24 de janeiro, no Teatro de
Arena do Recife, em montagem do TPN, sob a direção de Hermilo
Borba Filho, com cenários e figurinos de Francisco Brennand.
A peça O Casamento Suspeitoso é publicada pela Editora Igarassu,
do Recife. Escreve A Caseira e a Catarina, peça em um ato.
1962
A 25 de novembro, nasce sua filha Isabel. Publica, na re-
vista DECA, do Departamento de Extensão Cultural e Artística da
Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco, no 5, a primeira
parte da Coletânea da Poesia Popular Nordestina: Romances do
Ciclo Heroico.
994 994
1963
Publica, na revista DECA, no 6, a segunda parte da Coletânea
da Poesia Popular Nordestina: Romances do Ciclo Heroico. O Auto
da Compadecida é publicado nos Estados Unidos, pela Editora da
Universidade da Califórnia, em tradução de Dillwyn F. Ratcliff (The
Rogues’ Trial).
1964
Publica, na revista DECA, no 7, a terceira e última parte
da Coletânea da Poesia Popular Nordestina: Romances do Ciclo
Heroico. As peças Uma Mulher Vestida de Sol e O Santo e a Porca
são publicadas pela Imprensa Universitária da Universidade do
Recife. A 21 de junho, nasce sua filha Mariana. A 23 de dezembro,
deixa o Teatro Popular do Nordeste (TPN).
1965
O Auto da Compadecida é publicado na Holanda, pela
fundação Ons Leekenspel, de Bussum, em tradução de J. J. van
den Besselaar (Het Testament van de Hond), e na Espanha, pelas
Edições Alfil, de Madrid, em tradução de José María Pemán (Auto
de la Compadecida).
1966
A peça O Santo e a Porca é publicada na Argentina, pelas
edições Losange, de Buenos Aires, em tradução de Ana María M.
de Piacentino (El Santo y la Chancha), junto com a peça Lisbela
e o Prisioneiro, de Osman Lins, em tradução de Montserrat Mira
(Lisbela y el Prisionero). De 7 a 30 de março, escreve o romance
O Sedutor do Sertão ou O Grande Golpe da Mulher e da Malvada,
995 995
inicialmente pensado como roteiro de cinema. A 10 de junho, nas-
ce sua filha Ana Rita.
1967
Recebe, da Assembleia Legislativa do Estado de Per-
nambuco, o título de Cidadão de Pernambuco. Por indicação
de Rachel de Queiroz, torna-se membro fundador do Conselho
Federal de Cultura.
1968
Torna-se membro fundador do Conselho Estadual de Cul-
tura de Pernambuco.
1969
O reitor Murilo Guimarães o nomeia diretor do Depar-
tamento de Extensão Cultural (DEC) da Universidade Federal de
Pernambuco. Inicia, no DEC, os trabalhos que irão abrir caminho
para o lançamento, no ano seguinte, do Movimento Armorial.
Estreia o filme A Compadecida, do diretor George Jonas, primeira
versão cinematográfica da peça Auto da Compadecida.
1970
Recebe, a 3 de outubro, da Câmara Municipal de Taperoá,
Paraíba, o diploma de Cidadão Taperoaense. A 9 de outubro, data
do aniversário da morte de João Suassuna, conclui o Romance d’A
Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, que começara
a escrever a 19 de julho de 1958, no dia do aniversário de sua es-
posa Zélia. Com o concerto Três Séculos de Música Nordestina – do
Barroco ao Armorial e uma exposição de artes plásticas, é lançado
oficialmente, a 18 de outubro, na Igreja de São Pedro dos Clérigos,
996 996
no Recife, o Movimento Armorial, por ele idealizado para procurar
uma arte erudita brasileira a partir da cultura popular. O Auto da
Compadecida é publicado na França, pela Editora Gallimard, em
tradução de Michel Simon-Brésil (Le Jeu de la Miséricordieuse ou
Le Testament du Chien).
1971
A peça A Pena e a Lei é lançada, em junho, pela Editora Agir.
Em agosto, é publicado, pela Editora José Olympio, o Romance d’A
Pedra do Reino. Para o exemplar do editor, escreve a seguinte de-
dicatória: “Mestre José Olympio: A única coisa que posso lhe dizer
neste momento é que a edição deste livro por você era um sonho
meu. Estou, então, não é alegre, não: é profundamente orgulhoso.
Com o afetuoso abraço de Ariano. Rio, 1. IX. 71”.
1972
Funda o Quinteto Armorial. O Romance d’A Pedra do Reino
recebe o Prêmio Nacional de Ficção, do Instituto Nacional do Livro
– INL/MEC. Deixa o Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco.
Estreia, no Jornal da Semana, do Recife, na edição de 17 a 23 de
dezembro, uma página literária semanal, intitulada “Almanaque
Armorial do Nordeste”.
1973
Desliga-se do Conselho Federal de Cultura.
1974
A Editora José Olympio publica três de suas peças: em janei-
ro, em volume único, O Santo e a Porca e O Casamento Suspeitoso;
em maio, a Farsa da Boa Preguiça, ambos os volumes com estampas
997 997
de Zélia Suassuna. Encerra a publicação do “Almanaque Armorial
do Nordeste” no Jornal da Semana, na edição de 2 a 8 de junho. A
Editora universitária da Universidade Federal de Pernambuco pu-
blica O Movimento Armorial, contendo a base teórica do Movimento
lançado em 1970. É publicado, pelas Edições Guariba, do Recife, o
álbum Ferros do Cariri: Uma Heráldica Sertaneja. A 1o de outubro,
é dispensado, a pedido, da direção do DEC/UFPE. Em dezembro,
a Editora José Olympio publica, em convênio com o INL/MEC, a
Seleta em Prosa e Verso de Ariano Suassuna, com estudo, comen-
tários e notas de Silviano Santiago e estampas de Zélia Suassuna,
livro que será lançado no início do ano seguinte.
1975
Publica Iniciação à Estética, pela Editora da Universidade
Federal de Pernambuco. A convite do prefeito Antônio Farias, as-
sume o cargo de secretário de educação e cultura do Recife. A 15
de novembro, dá início à publicação de “Ao Sol da Onça Caetana”,
primeiro livro da História d’O Rei Degolado nas Caatingas do
Sertão, em folhetim semanal no Diário de Pernambuco. A 18 de
dezembro, com a estreia, no Teatro Santa Isabel, da Orquestra
Romançal Brasileira, por ele fundada, encerra-se a primeira fase
do Movimento Armorial, chamada de “Experimental”, iniciando-se
a segunda, a fase “Romançal”.
1976
A 25 de abril, conclui os folhetins do primeiro livro de O Rei
Degolado, iniciando, a 2 de maio, a publicação do segundo, intitu-
lado “As Infâncias de Quaderna”, no mesmo Diário de Pernambuco.
A 18 de junho, estreia, no Teatro Santa Isabel, o Balé Armorial do
998 998
Nordeste, por ele idealizado, com direção e coreografia de Flávia
Barros. É inaugurada, a 26 de agosto, no Recife, no Casarão João
Alfredo, a exposição Os Dez Anos de Casa Caiada no Mundo do
Armorial, com tapetes criados a partir dos desenhos que reali-
zou para ilustrar o Romance d’A Pedra do Reino e a História d’O
Rei Degolado. A exposição segue para o Rio, sendo inaugurada no
Museu Nacional de Belas Artes, a 16 de dezembro. A 30 de dezem-
bro, defende, na Universidade Federal de Pernambuco, sua tese
de livre-docência, intitulada A Onça Castanha e a Ilha Brasil: uma
Reflexão sobre a Cultura Brasileira, com a qual recebe diploma de
doutor em História.
1977
Publicação, em março, pela Editora José Olympio, do pri-
meiro livro da História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão,
intitulado “Ao Sol da Onça Caetana”. A 19 de junho, conclui a publi-
cação dos folhetins de “As Infâncias de Quaderna”. A 26 de junho,
com o artigo “A confissão desesperada”, passa a assinar coluna
opinativa aos domingos, no mesmo Diário de Pernambuco.
1978
A 31 de maio, é exonerado, a pedido, do cargo de secretário
de educação e cultura do Recife.
1979
O Romance d’A Pedra do Reino é publicado na Alemanha,
edição de Hobbit Presse/Klett-Cotta, de Stuttgart, em tradução de
Georg Rudolf Lind (Der Stein des Reiches).
999 999
1980
Lança o álbum de iluminogravuras Dez Sonetos com Mote
Alheio.
1981
Publica, no Diário de Pernambuco, a 9 de agosto, o célebre
artigo “Despedida”, encerrando a sua colaboração dominical com o
jornal e comunicando o seu afastamento da vida literária. Deixa de
dar entrevistas e de participar de eventos culturais, limitando-se
à sua atividade docente na Universidade Federal de Pernambuco.
1985
Lança o álbum de iluminogravuras Sonetos de Albano
Cervonegro.
1986
O Auto da Compadecida é publicado pela Editora Diá, de
St. Gallen/Wuppertal, em tradução alemã de Willy Keller (Das
Testament des Hundes oder Das Spiel von Unserer Lieben Frau der
Mitleidvollen).
1987
Estreia o filme Os Trapalhões no Auto da Compadecida,
baseado em sua obra e dirigido por Roberto Farias. A 16 de junho,
para comemorar seu aniversário de 60 anos, intelectuais, artistas
populares e admiradores em geral promovem uma grande festa
em frente à sua residência, na rua do Chacon, no bairro de Casa
Forte, no Recife. Também por ocasião do seu aniversário, a Editora
10 0 0 10 0 0
da UFPE lança a plaquete Suassuna e o Movimento Armorial, de
George Browne Rêgo e Jarbas Maciel. Volta a escrever para teatro,
com a peça As Conchambranças de Quaderna.
1988
Em setembro, a peça As Conchambranças de Quaderna
estreia no Teatro Valdemar de Oliveira, no Recife, em montagem
da Cooperarteatro, com direção de Lúcio Lombardi e cenários e
figurinos de Romero de Andrade Lima.
1989
É publicada, pela Editora Record, do Rio de Janeiro, sua
tradução do livro The Revolution that Never Was (A Revolução
que Nunca Houve), do escritor norte-americano Joseph A. Page.
Aposenta-se do cargo de professor da Universidade Federal de
Pernambuco, onde lecionou Estética, História da Arte, Cultura
Brasileira, Teoria do Teatro e disciplinas afins.
1990
A 26 de abril, morre sua mãe, D. Rita Suassuna, aos 94 anos.
A 9 de agosto, toma posse na Academia Brasileira de Letras (cadei-
ra no 32). Filia-se, pela primeira vez na vida, a um partido político,
o Partido Socialista Brasileiro (PSB).
1991
A 26 de outubro, é publicada, na Folha de S.Paulo, uma ex-
tensa entrevista concedida a Marilene Felinto e Alcino Leite Neto,
anunciando a escritura de um novo romance.
10 01 10 01
1992
O Auto da Compadecida é publicado na Itália, pela Guaraldi/
Nuova Compagnia Editrice, em tradução de Laura Lotti.
1993
É realizada, em São José do Belmonte, Pernambuco, por
jovens do município, a I Cavalgada à Pedra do Reino. A Editora
Francisco Alves, do Rio de Janeiro, lança o livro O Sertão Medieval:
Origens Europeias do Teatro de Ariano Suassuna, de Ligia Vassallo.
A 1o de dezembro, toma posse na Academia Pernambucana de
Letras (cadeira no 18).
1994
A 12 de julho, a Rede Globo de Televisão exibe o especial
Uma Mulher Vestida de Sol, baseado na sua primeira peça de teatro
e dirigido por Luiz Fernando Carvalho. A Editora Bagaço, do Recife,
publica o seu primeiro romance, A História do Amor de Fernando
e Isaura, cujo lançamento ocorre a 7 de outubro. A Editora da
Universidade Federal da Paraíba publica a Aula Magna, transcri-
ção da conferência que proferiu na instituição a 16 de novembro
de 1992.
1995
A convite do governador Miguel Arraes, assume, a 1o de
janeiro, a Secretaria de Cultura de Pernambuco. A 28 de maio,
participa, em São José do Belmonte, da III Cavalgada à Pedra do
Reino, agora organizada pela Associação Cultural Pedra do Reino,
que lhe confere o título de Cavaleiro da Pedra do Reino. Em junho,
apresenta o Projeto Cultural Pernambuco-Brasil, por ele elabora-
do para nortear as ações da Secretaria de Cultura, entre as quais se
10 02 10 02
inclui a apresentação de “aulas-espetáculo” contendo explicações
“sobre a cultura brasileira popular e erudita, com exibição de
números de música e dança ou de imagens ligadas à arquitetu-
ra, à escultura, à pintura etc.” A 30 de novembro, a Universidade
Federal de Pernambuco concede-lhe o título de Professor Emérito.
A 5 de dezembro, a Rede Globo de Televisão apresenta o especial
A Farsa da Boa Preguiça, baseado em sua peça, com direção de
Luiz Fernando Carvalho e cenários assinados por seu filho, Manuel
Dantas Suassuna.
1996
Escreve A História do Amor de Romeu e Julieta, peça em um
ato, a partir de um folheto de cordel. Com Antonio Madureira, que
liderara o Quinteto Armorial, funda o Quarteto Romançal, ligado à
Secretaria de Cultura de Pernambuco. A 26 de setembro, realiza,
no Teatro do Parque, no Recife, a “Grande Cantoria Louro do Pajeú”,
aula-espetáculo em que apresenta repentistas, em comemoração
ao cinquentenário da cantoria por ele organizada em 1946, en-
quanto estudante de Direito. A 14 de novembro, estreia, no Teatro
da Universidade Federal de Pernambuco, a peça A História do Amor
de Romeu e Julieta, montagem da Trupe Romançal de Teatro, sob
a direção de Romero de Andrade Lima, com cenários de Manuel
Dantas Suassuna e figurinos de Luciana Buarque.
1997
A 19 de janeiro, o suplemento “Mais!”, da Folha de S.Paulo,
publica o texto da peça A História do Amor de Romeu e Julieta,
ilustrado com gravuras de J. Borges. A 15 de junho, um domingo,
o Jornal do Commercio, do Recife, publica caderno especial em
homenagem aos seus 70 anos. A 26 de agosto, é inaugurado, no
10 03 10 03
Recife, o Teatro Arraial, fruto do seu trabalho na Secretaria de
Cultura, e cujo nome homenageia o arraial de Canudos. A 20 de no-
vembro, estreia, no Teatro do Parque, do Recife, A Pedra do Reino,
uma adaptação teatral do seu romance, realizada por Romero de
Andrade Lima, que também assina a direção, com cenários
de Manuel Dantas Suassuna. A 16 de dezembro, o artista plástico
Guilherme da Fonte inaugura, na Academia Pernambucana de
Letras, a exposição Mosaicos Armoriais, com trabalhos em granito
e mármore, realizados a partir dos seus desenhos. O Ministério da
Cultura lança o vídeo Aula-Espetáculo, com direção e roteiro de
Vladimir Carvalho, contendo um registro condensado da aula-es-
petáculo que apresentou a convite do Ministério, na Universidade
de Brasília.
1998
Concebe e escreve o roteiro do espetáculo de dança A
Demanda do Graal Dançado, que estreia a 19 de março, no Teatro
Arraial, com coreografia de Maria Paula Rêgo e direção de arte e
cenografia de Manuel Dantas Suassuna. Elabora o roteiro musical
para o espetáculo de dança Pernambuco – do Barroco ao Armorial,
cuja estreia ocorre a 22 de maio, no Teatro Arraial, com direção
geral de Marisa Queiroga, coreografias de Heloísa Duque e cená-
rios e figurinos de Manuel Dantas Suassuna. A 9 de setembro, é
lançado, no Recife, o CD A Poesia Viva de Ariano Suassuna, em que
declama seus poemas sob fundo musical de Antonio Madureira. O
Romance d’A Pedra do Reino é publicado na França, pelas edições
Métailié, de Paris, em tradução de Idelette Muzart Fonseca dos
Santos (La Pierre du Royaume). É editado, em Portugal, pela Aríon
Publicações, de Lisboa, o seu ensaio Olavo Bilac e Fernando Pessoa:
uma presença brasileira em Mensagem?, originalmente publicado
10 04 10 04
na revista Estudos Universitários, da UFPE, em 1966. A 31 de de-
zembro, com o fim do governo de Miguel Arraes, deixa a Secretaria
de Cultura de Pernambuco.
1999
De 5 a 8 de janeiro, a Rede Globo de Televisão exibe os qua-
tro capítulos da minissérie O Auto da Compadecida, adaptação de
sua peça realizada por Guel Arraes, Adriana Falcão e João Falcão,
com direção de Guel Arraes. A 2 de fevereiro, estreia coluna sema-
nal, às terças-feiras, no jornal Folha de S.Paulo, na seção “Opinião”.
A 19 de março, estreia, no programa NE-TV:1a Edição, da Rede
Globo, o quadro “O Canto de Ariano”, apresentado semanalmente,
às sextas-feiras. Ainda em março, estreia coluna mensal na revista
Bravo!, na seção “Ensaio!”. A Editora da UFPE publica uma antolo-
gia de seus poemas organizada por Carlos Newton Júnior. O Auto
da Compadecida é publicado em bretão, na cidade de Brest, França,
em tradução de Remi Derrien. A Editora da Unicamp lança o livro
Em Demanda da Poética Popular: Ariano Suassuna e o Movimento
Armorial, de Idelette Muzart Fonseca dos Santos.
2000
A 27 de abril, recebe, em Natal, o título de Doutor Honoris
Causa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em junho,
encerra sua colaboração com a revista Bravo!. A 4 de julho, encerra
a coluna que vinha escrevendo na Folha de S.Paulo, às terças, para
estrear a 10 de julho, em novo formato e no mesmo jornal, às se-
gundas, uma outra coluna, que chama de “Almanaque Armorial”. É
inaugurada, a 25 de agosto, na unidade do SESC de Casa Amarela,
no Recife, a exposição Iluminogravuras, com exemplares dos dois
álbuns lançados na década de 1980. A 15 de setembro, estreia, nos
10 05 10 05
cinemas, O Auto da Compadecida, dirigido por Guel Arraes, filme
montado a partir da minissérie exibida no ano anterior. Toma
posse, a 9 de outubro, na Academia Paraibana de Letras (cadeira
no 35). É lançada, pela Editora A União, de João Pessoa, a plaquete
Ariano Suassuna, escrita pelo jornalista José Nunes para a série
histórica “Paraíba: Nomes do Século”. A 6 de dezembro, é lança-
do, no Recife, no Forte das Cinco Pontas, o número 10 da coleção
Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles,
dedicado à sua obra. A 26 de dezembro, é exibido, na Rede Globo,
o especial O Santo e a Porca, baseado em sua peça, com roteiro de
Adriana Falcão e direção de Maurício Farias.
2001
A 26 de março, encerra a publicação do “Almanaque
Armorial” na Folha de S.Paulo. A 31 de outubro, recebe, no Rio,
título de Doutor Honoris Causa, concedido pela Universidade
Estadual do Rio de Janeiro.
2002
É homenageado no carnaval do Rio de Janeiro pela escola
de samba Império Serrano, que desfila na Sapucaí com o enredo
Aclamação e Coroação do Imperador da Pedra do Reino Ariano
Suassuna. A 15 de maio, recebe, em Aracaju, título de Doutor
Honoris Causa, concedido pela Universidade Federal de Sergipe.
A 16 de junho, por ocasião do seu aniversário de 75 anos, o jornal
A União, da Paraíba, dedica-lhe um caderno especial, editado pelo
jornalista William Costa. A 29 de junho, em João Pessoa, recebe títu-
lo de Doutor Honoris Causa, concedido pela Universidade Federal
da Paraíba. A 10 de agosto, recebe, em Salvador, o Prêmio Nacional
Jorge Amado de Literatura e Arte. A Editora Palas Athena, de São
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Paulo, publica o livro O Cabreiro Tresmalhado: Ariano Suassuna e
a Universalidade da Cultura, de Maria Aparecida Lopes Nogueira.
2003
Em maio, reescreve a peça Os Homens de Barro, cuja pri-
meira versão havia sido concluída em 1949. A 29 de setembro,
recebe, em Mossoró, título de Doutor Honoris Causa concedido
pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. A 25 de
novembro, na sede da Academia Brasileira de Letras, no Rio, é
lançado o documentário em longa-metragem O Sertãomundo de
Suassuna, do cineasta Douglas Machado.
2005
A Editora Agir lança edição especial do Auto da Compa-
decida, em comemoração aos 50 anos da peça. A edição é ilustrada
por Manuel Dantas Suassuna e contém textos críticos de Braulio
Tavares, Carlos Newton Júnior e Raimundo Carrero. A 31 de julho,
o jornal O Povo, de Fortaleza, lança caderno especial sobre a sua
obra, editado pela jornalista Eleuda de Carvalho, antecipando as
comemorações dos seus 60 anos de vida literária, completados a
7 de outubro. A 25 de agosto, recebe, em Passo Fundo (RS), título
de Doutor Honoris Causa, concedido pela Universidade de Passo
Fundo. A 25 de novembro, recebe, no Recife, título de Doutor
Honoris Causa, concedido pela Universidade Federal Rural de
Pernambuco. A Editora 7 Letras, do Rio de Janeiro, lança Teatro
e Comicidades: Estudos sobre Ariano Suassuna e Outros Ensaios,
de vários autores, com organização de Beti Rabetti. O fotógrafo
Gustavo Moura lança o livro Do Reino Encantado, com fotografias
inspiradas no sertão suassuniano.
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2006
A 14 de março, ministra aula-espetáculo de abertura do
ano acadêmico, na Academia Brasileira de Letras, e participa, logo
em seguida, na Galeria Manuel Bandeira, da abertura da exposi-
ção Do Reino Encantado: Iluminogravuras de Ariano Suassuna e
fotografias de Gustavo Moura, sob a curadoria de Alexei Bueno.
A 13 de maio, é apresentado o último programa do quadro “O
Canto de Ariano”. A 25 de maio, recebe, na Câmara Municipal de
São Paulo, o título de Cidadão Paulistano. Estreia em São Paulo, a
20 de julho, no Teatro Anchieta, do SESC, o espetáculo A Pedra do
Reino, adaptação para teatro do Romance d’A Pedra do Reino e da
História d’O Rei Degolado, realizada e dirigida por Antunes Filho.
A 21 de agosto, antecipando as comemorações dos seus 80 anos,
a Universidade Federal de Pernambuco inaugura o Núcleo Ariano
Suassuna de Estudos Brasileiros (NASEB).
2007
A convite do governador Eduardo Campos, assume, a 1o
de janeiro, a Secretaria Especial de Cultura de Pernambuco. A 19 de
janeiro, comemora, com Zélia, filhos e netos, as suas Bodas de Ouro.
A 23 de abril, por ocasião da abertura do 11o Cine PE, no Centro
de Convenções de Pernambuco, é exibido o documentário em lon-
ga-metragem O Senhor do Castelo, do cineasta Marcus Vilar, sobre
sua vida e obra. Recebe, em Salvador, na Assembleia Legislativa,
a 10 de maio, o título de Cidadão Baiano. Por ocasião do seu 80o
aniversário, recebe uma série de homenagens. Em João Pessoa,
é homenageado durante o 3o CINEPORT (Festival de Cinema de
Países de Língua Portuguesa), de 4 a 13 de maio, com uma exposi-
ção de fotografias de Gustavo Moura. No Rio de Janeiro, realiza-se,
entre os dias 10 e 17 de junho, sob a coordenação artística da atriz
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Inez Viana, o projeto Ariano Suassuna 80, promovido pela Sarau
Agência de Cultura Brasileira, com apoio da Rede Globo. O pro-
jeto é iniciado com uma aula-espetáculo no Theatro Municipal e
segue com uma “Semana Armorial”, com extensa programação de
palestras, mesas-redondas, exposições, apresentações musicais,
exibição de filmes etc. De 12 a 16 de junho, a Rede Globo exibe
a minissérie A Pedra do Reino, em 5 capítulos, adaptação do seu
romance realizada por Luiz Fernando Carvalho, Luís Alberto de
Abreu e Braulio Tavares, com direção de Luiz Fernando Carvalho.
A 14 de junho, é lançado, no município de Floriano, durante
uma “Semana de Arte Armorial” promovida pelo Centro Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí, o documentário em
média-metragem Ariano Suassuna: Cabra de Coração e Arte ou O
Cavaleiro da Alegre Figura, do cineasta Claudio Brito. A 12 de ju-
lho, a Academia Brasileira de Letras promove uma mesa-redonda
em sua homenagem, no Salão Nobre do Petit Trianon, com Moacyr
Scliar, José Almino de Alencar e Carlos Newton Júnior, seguida
da abertura da exposição Ariano Suassuna, uma fotobiografia, na
Galeria Manuel Bandeira. De 18 a 30 de setembro, realiza-se, em
São Paulo, o projeto Ariano Suassuna 80 anos: o local e o universal,
também iniciado com aula-espetáculo do autor e com uma extensa
programação de palestras, exposições, mostra de filmes etc. De 29
a 30 de outubro, realiza-se, na Universidade Paris X – Nanterre,
França, o Colóquio Ariano Suassuna 80 anos, com conferências
e mesas-redondas sobre a sua obra. Ainda no âmbito das come-
morações dos seus 80 anos, são lançados três livros sobre a sua
vida e a sua obra: ABC de Ariano Suassuna, de Braulio Tavares,
pela Editora José Olympio; Ariano Suassuna: Um Perfil Biográfico,
de Adriana Victor e Juliana Lins, pela Editora Jorge Zahar; Ode a
Ariano Suassuna, organizado por Maria Aparecida Lopes Nogueira,
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contendo ensaios e depoimentos de vários autores, pela Editora
da UFPE. A 25 de setembro, recebe, na Câmara Municipal de Natal,
título de Cidadão Natalense. Em dezembro, a Editora Paulistana,
de São Paulo, lança Discurso e Memória em Ariano Suassuna, com
textos de vários autores e organização de Guaraciaba Micheletti.
2008
É homenageado no carnaval de São Paulo pela escola de
samba Mancha Verde. A 20 de agosto, é lançado, no Rio de Janeiro,
pela Editora José Olympio, o Almanaque Armorial, coletânea de
seus ensaios organizada por Carlos Newton Júnior.
2009
A 21 de setembro, é lançado, em João Pessoa, o documen-
tário em média-metragem Ariano: Impressões, do cineasta Claudio
Brito.
2010
A 10 de junho, recebe, em Fortaleza, título de Doutor
Honoris Causa, concedido pela Universidade Federal do Ceará. A
24 de agosto, em Maceió, recebe o título de Doutor Honoris Causa,
concedido pela Universidade Federal de Alagoas. A 6 de outubro,
no Recife, morre seu filho mais velho, Joaquim, aos 53 anos. A 31 de
dezembro, deixa a Secretaria Especial de Cultura de Pernambuco.
2011
A Editora José Olympio publica sua peça Os Homens
de Barro. O artista plástico Alexandre Nóbrega lança o livro
O Decifrador, ensaio fotográfico realizado a partir das suas viagens
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para ministrar aulas-espetáculo em diversas cidades do país. A 13
de agosto, na fazenda Carnaúba, em Taperoá, sob a coordenação
artística de seu filho, Manuel Dantas Suassuna, dá início à execu-
ção da “Ilumiara Jaúna”, conjunto escultórico em baixo-relevo que
será descrito no Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores.
2013
A 17 de abril, o cineasta Claudio Brito lança mais um docu-
mentário sobre a sua obra, o longa-metragem Ariano: Suassunas.
Começa a apresentar problemas de saúde. A 21 de agosto, é inter-
nado, no Hospital Português, no Recife, devido a um infarto. A 4 de
setembro, recebe alta do hospital, para continuar tratamento de
recuperação em casa.
2014
É homenageado no carnaval do Recife pelo bloco O Galo da
Madrugada, comparecendo ao desfile. A 18 de julho, ministra, em
Garanhuns, Pernambuco, no âmbito do Festival de Inverno, aquela
que seria a sua última aula-espetáculo. A 21 de julho é internado,
no Hospital Português do Recife, vítima de acidente vascular ce-
rebral hemorrágico, morrendo a 23 de julho, de parada cardíaca.
É sepultado, no dia 24, no cemitério Morada da Paz, em Paulista,
município da Região Metropolitana do Recife. Deixa, inédito, entre
outras obras, o Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores. É
homenageado na 10a Festa Literária Internacional de Pernambuco
(FLIPORTO), que acontece de 13 a 16 de novembro, em Olinda. A
19 de dezembro, o Tribunal de Contas do Estado da Paraíba inau-
gura, em João Pessoa, o Centro Cultural Ariano Suassuna, edifício
projetado pelo arquiteto Expedito Arruda, contendo auditório,
salão de exposições, biblioteca etc.
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2015
A revista literária Hoblicua dedica número especial em
sua homenagem. A 4 de outubro, realiza-se em Taperoá, Paraíba,
no âmbito do IV Festival Internacional de Folclore e Artes do
Cariri, mesa-redonda em comemoração aos 60 anos do Auto da
Compadecida, com participação do ator Matheus Nachtergaele,
do artista plástico Manuel Dantas Suassuna e do escritor Carlos
Newton Júnior.
2016
O condomínio de herdeiros de Ariano Suassuna assina con-
trato para edição de toda a sua obra com a Editora Nova Fronteira,
do Rio de Janeiro.
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Direção editorial
Daniele Cajueiro
Editora responsável
Janaína Senna
Produção editorial
Adriana Torres
André Marinho
Pesquisa iconográfica
Mariana Suassuna
Ester Suassuna Simões
Revisão
Luíza Côrtes, Roberto Jannarelli, Suelen Lopes
Olga de Mello, Frederico Hartje
Direção de arte
Manuel Dantas Suassuna