Co (Rpo) Memoração
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Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, 25(3), 597-618, set. 2022
http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2022v25n3p597.6
Co(rpo)memoração*1:
fixação e regressão a traços de memória
deixados no corpo
In-body memory: from fixation and
regression to memory traces left in the body
*1 Neologismo sugerido por Marco Antonio Coutinho Jorge que associa corps
(corpo) e mémorer (rememorar), na dissertação de Mestrado em Psicanálise, de Madeira,
M. O. M. Reflexões Psicanalíticas sobre o Fenômeno Psicossomático. Orientador Marco
Antonio Coutinho Jorge. Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro – UERJ, Rio de Janeiro, abril de 2019. Pesquisa em continuidade no doutorado
da autora (PGPSA-UERJ).
*2 Corpo Freudiano Escola de Psicanálise – Núcleo de Brasília (Brasília, DF, Brasil).
*3 Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, RJ, Brasil).
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Introdução
1
O real é uma categoria estabelecida por Jacques Lacan. É um registro que só pode ser
entendido em relação aos registros do simbólico e do imaginário. O real é definido como o que
escapa ao simbólico, não pode ser falado ou escrito, trata-se do impossível. Marco Antonio
Coutinho Jorge (2010) explora esse tema em “Os dois polos da fantasia”. In Fundamentos da
Psicanálise de Freud a Lacan, Vol: 2: a clínica da fantasia.
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ARTIGOS
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pesadelo vivido pela escritora e ativista Eve Ensler (2014) em seu livro De
pronto mi cuerpo: una memoria.2 A metodologia utilizada neste artigo foi o
estudo teórico-clínico, relato da história clínica que pode funcionar, até certo
ponto, como substituto da entrevista do sujeito, como Freud sustenta em
abordagem semelhante no ensaio sobre a Gradiva (1907/1979a), estudo da
obra literária de Wilhelm Jensen, e no caso Schreber (1911/1980), sendo este
último a análise do relato da história clínica do autor em obra literária. Cabe
ressaltar que esta é apenas uma leitura possível e impõe-se como fundamental,
na abordagem psicanalítica, que o considerado traumático seja analisado na
singularidade de suas manifestações clínicas, em cada caso, a posteriori e a
partir das operações que podem convocar o sujeito.
O exílio do corpo
2
Título no original: In the body of the world: a memoir.
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Segundo Eve Ensler, sua atitude passiva diante do que lhe acontecia
era como uma espécie de sonolência: um estado narcótico autoinduzido
por um perigo extremo, uma espécie de divisão (escisión) da consciência,
um abandono parcial do mundo ou a semiconsciência em outro mundo.
Sonolência que, segundo sua narrativa, é uma paralisia que se produz quando
estamos presos entre duas escolhas morais extremas, “lealdade ou vergonha,
mudar ou morrer” (pp. 25-26).
Sergio Laia e Heloisa Caldas (2016) argumentam que pode haver um
deslizamento do segredo do recalque para o silêncio concernente ao real:
mesmo que a pessoa violentada admita sua parcela de responsabilidade, por
se manter na situação potencialmente produtora de violência, ela, em muitos
casos, não consegue exprimir em palavras a pulsão de morte que a imobiliza,
impedindo que evite ou abandone a relação violenta.
Ensler repetia algo pouco apropriado à adaptação vital, reproduzia
um discurso no qual se achava presa à sua família. É o que se denomina de
supereu, uma das instâncias do aparelho psíquico, cujo papel é assimilável ao
de um juiz ou de um censor relativamente ao Eu. Nesse sentido, a consciência
moral, a auto-observação e as formações de ideais são funções próprias do
supereu. Como definem Laplanche e Pontalis (2001), por ser o herdeiro do 603
complexo de Édipo, o supereu é constituído pela “interiorização das exigên-
cias e das interdições parentais” (pp. 497-498). O sujeito é condenado a
ser um dos elos do discurso familiar, até que se aproprie dele. Como Lacan
(1953-54/2009) afirma: “é uma forma circular de uma fala, que está justo no
limite do sentido e não sentido, que é a problemática” (p. 127).
Há pessoas que, a julgar por suas reações ao trauma, parecem passar por
uma reversão da pulsão de autopreservação. Em outras palavras, elas parecem
buscar a autodestruição. Como presumiu Freud (1920/2006b), há nelas uma
vasta desfusão das pulsões de vida e de morte, em consequência das quais
foram liberadas quantidades excessivas de destruição voltadas para o interior.
O Eu se apresenta enfraquecido, sua atividade é inibida por severas proibições
do supereu, está danificado em sua atividade de autoproteção, dilacerado por
anseios contraditórios, por conflitos não resolvidos e por dúvidas não esclare-
cidas, como indica o testemunho da autora.
Conflitos encenados desde o complexo de Édipo, drama que se entende
pela paixão da criança pelo sexo oposto, a paixão da filha pelo pai, do filho
pela mãe, que se agrega ao desejo de morte da figura parental do mesmo sexo.
No drama de Ensler, o pai representa aquele que subverte a lei da proibição do
incesto, mãe e filha se configuram rivais. Por conseguinte, sentem uma pela
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“Expressão que não apenas enfatiza o que pode haver de simétrico e de complementar nas
perversões sádica e masoquista, como também designa um par de opostos fundamental, quer na
evolução, quer nas manifestações da vida pulsional (Laplanche & Pontalis, 2001, p. 466).
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conflito subjacente, qual foi o seu conflito? Terá sido amar seu pai e sua mãe
e trair sua mãe quando seu pai a violentou, inclusive querendo seu próprio
pai inteiramente para si? Estaria seu conflito no fato de ter escutado os relatos
mais horrorosos do mundo sobre violências infligidas aos corpos de mulheres
e de ter sido incapaz de acabar com isso apesar de todos os esforços? Por
que o câncer no útero? Existe o câncer da violação? Quantas mulheres com
câncer na vagina, nos ovários e no útero foram violentadas, golpeadas e
traumatizadas?
Sob esse aspecto, embora saibamos ser o sintoma uma formação do
inconsciente com estrutura de linguagem, a dúvida permanece em relação a
alguns fenômenos somáticos que causam problemas tanto aos médicos quanto
aos psicanalistas. A medicina distingue esses fenômenos das doenças com
que lida habitualmente em razão da ausência de uma causalidade orgânica.
Sabemos que essa dúvida também paira no campo da psicossomática.
Nesse campo tem havido grandes transformações, uma vez que a
pesquisa passou à abordagem holística dos problemas de saúde e abandonou
a teoria sobre a causação psicológica da doença. Muitas contribuições
foram dadas e as oriundas da psicanálise foram importantíssimas, apesar de
não haver referência à psicossomática na obra de Freud. Suas elaborações, 607
entretanto, são essenciais principalmente no que tange à abordagem desses
fenômenos “silenciosos” sob os pontos de vista: tópico, quanto à localização
nas instâncias Isso-Eu-Supereu; dinâmico, quanto ao conflito pulsional;
econômico, no que diz respeito à distribuição do investimento libidinal.
Para citar apenas algumas dessas contribuições, mencionamos Georg
Groddeck (1921/2008) para quem a doença é manifestação do Isso e a função
da psicanálise reside em, por meio da elaboração da resistência e da trans-
ferência, levar o Isso a substituir a linguagem da doença pela da saúde, por
intermédio do desrecalcamento de determinadas vivências.
Utilizando-se da perspectiva metapsicológica, Paul-Laurent Assoun
(1996), nomeou o FPS de sinto(soma)tico ou sintoma somático, diferencian-
do-o do sintoma analítico expresso na linguagem. Segundo essa perspectiva, o
sintoma somático implicaria a queda das estratégias significantes, na desfusão
entre pulsão de vida e pulsão de morte, assim como na alteração do funciona-
mento das instâncias Isso-Eu-Supereu.
Outras concepções abordam o problema em torno da conversão somática
relacionada a conflitos das fases mais arcaicas do psiquismo. Dentre eles, que
são congruentes com essa concepção, estão Jean Guir (1988) e Christophe
Dejours (1991), que “concebem as conversões somáticas como depósitos
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Vozes do corpo
É nas fontes de Charles Darwin4 que Freud vai buscar a ideia de uma
significação que deve ser expressa, custe o que custar. Se não for possível
por meio da fala, que seja pelas “vozes do corpo”. Essa elaboração consta da
obra A expressão das emoções no homem e nos animais, última obra teórica
publicada por Darwin (1872/2000), em que ele desenvolve o princípio
segundo o qual os movimentos que ajudam a satisfazer algum desejo ou
aliviar algum desprazer serão repetidos, mesmo que sem utilidade, sempre que
tais sensações forem experimentadas.
Tendo esse princípio como paradigma, Freud (1986) afirmou a Fliess,
na “carta 52” (6.12.1896), que, longe do ataque histérico ser uma descarga, é
ação e, como tal, preserva todas as características das ações originais, sendo,
por conseguinte, um meio de obtenção de prazer. Freud acreditava que esses
sintomas eram como traços de memória deixados no corpo desde a expe-
riência original.
Para entendermos melhor do que se trata, cabe ressaltar uma curta
passagem do “Projeto para uma psicologia científica” (1895/1992a), no qual
salienta que o complexo de outrem, na experiência original de satisfação,
se separa em dois componentes: um, dando a impressão de uma estrutura
constante, se mantém reunido como uma coisa (objeto) do mundo e outro 609
compreendido como um trabalho mnêmico, isto é, pode ser direcionado como
um aviso do próprio corpo, tal como a mímica de representação.
Mesmo que a experiência original esteja totalmente inconsciente, o
corpo é testemunha tanto das experiências de satisfação como de desprazer,
sendo o corpo na histeria o paradigma de sintoma para a psicanálise. A
histérica mostra com seu corpo, da forma mais explícita, o que é um “corpo
erógeno” (Leclaire, 1992). Corpo seduzido que exibe a marca do desejo que
veio do Outro, desejo denegado sob a marca do recalque. Nesse sentido, algo
de irrepresentável volta no “dejeto” corporal sob a forma de ação repulsiva
que transborda no próprio corpo. Desse modo, vemos que o processo do afeto
histérico não fica limitado à sua função de descarga. Muito além disso ele
traduz uma atividade de simbolização substitutiva.
4
A importância do pensamento de Charles Darwin na obra de Freud é revelada no livro de
Lucille B. Ritvo A influência de Darwin sobre Freud: um conto de duas ciências (1992) que
enumera os seguintes elementos: sexualidade infantil, conflito, regressão, significado e função dos
sintomas, coexistência de opostos no inconsciente e a relação entre perversão e normalidade. Ritvo
salienta que Freud referiu-se a Darwin pelo menos vinte vezes em sua obra e sempre de forma
positiva, fato que demonstra o impacto de seu pensamento na obra do criador da psicanálise.
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O termo Infans em francês refere-se à criança que ainda não domina a linguagem.
6
Segundo Laplanche e Pontalis (2001), Freud, em “Além do princípio de prazer”, vai fazer
coincidir simetricamente pulsões do Eu e pulsões de morte. Quando leva às últimas consequências
a tese segundo a qual a pulsão tende, no fundo, a restabelecer o estado anorgânico, vê nas pulsões
de autoconservação — pulsões parciais destinadas a garantir no organismo o seu caminho para
a morte (p. 419).
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dos raios ultravioletas. Buracos em nossa memória devido aos traumas. São
buracos que destroem a integridade do ser. Buracos que determinarão toda
vida posterior de uma mulher. “Buraco que se formou quando meu pai me
invadiu e me desorientei. O buraco que se formou quando a membrana social
foi rasgada pelo incesto” (p. 45).
Como Freud afirmou, em “Introdução ao narcisismo” (1914/2004a), as
afecções dolorosas exercem uma forte influência na distribuição da libido.
Além disso, podem mobilizar uma camada de investimento narcísico sobre o
órgão afetado e, utilizando-se dessa energia de “superinvestimento”, capturar
e ligar o excesso de excitação. O ódio dá lugar à força agregadora do amor,
uma nova ação psíquica se inicia no processo de adoecimento de Eve Ensler:
amigos, colegas, irmã, mãe, filho (que adotara aos 5 anos), neta, todos inves-
tindo em sua cura — ganhos secundários da doença.
Além da equipe de médicos e enfermeiros, Ensler contou com a colabo-
ração do que ela nomeou de uma “cirurgiã psíquica”, que associava os frag-
mentos de sensações corporais a traços de memória. Essa profissional, com
base nas manifestações clínicas de Ensler, disse não entender como ela não
havia adoecido antes, com toda a crueldade a que seu pai a havia submetido.
Ambas associaram o surgimento do câncer aos maus-tratos. Sua análise 613
desdobrou-se no entendimento de que a quimioterapia, antes de ser um enve-
nenamento do próprio corpo, deveria ser aceita como um “guerreiro empático
que chega para resgatar sua inocência matando o autor do crime que se meteu
dentro de ti” (Ensler, 2014, p. 92).
Ensler entra no que podemos chamar de um processo de elaboração.
Ao longo de vários meses de tratamento, toda a distância se apaga. Eve entra
em conexão com o que indica ser o simbolismo inconsciente: a Terra como
símbolo do ventre e das entranhas da mulher, o pênis como arma que as
dilacera. Une sua própria enfermidade à devastação da Terra, sua força vital
à resistência da humanidade e se sente gratamente unida ao corpo do mundo.
Ela interpreta o tratamento quimioterápico contra o câncer como
uma “limpeza”, “um exorcismo” de uma versão original, para que pudesse
começar a ver que essa, talvez, não fosse a sua história. Precisava construir
outra, num processo que liga o amor ao desejo de saber. Ensler transforma
a expressão de seu trauma — o imundo — na matéria viva a partir da qual
escreveu peças de teatro Monólogo da vagina, Alvo necessário e O bom
corpo. É também autora dos livros Inseguro finalmente, Uma memória
política e Eu sou uma criatura emocional. Quase dez anos após seu trata-
mento, curada, Ensler é considerada uma escritora de êxito internacional. É
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Resumos
616 (In-body memory: from fixation and regression to memory traces left in the
body)
This paper discusses trauma as an in-body memory based on ramifications
that are manifested as “acts” in the body, and which replace psychic elaborations.
In thispsychoanalytic perspective, repetition is manifested as fixation to a joissance
“beyond” and as regression as a kind of memory that avoids the new and looks to
traces of past memory left in the body. To this end, the nightmare lived and narrated
by activist Eve Ensler in her book In the body of the world: A memoir (2014), will be
used as reference. Ensler speaks of the deeply intimate and painful relationship she
has with her body and how it changed throughout her life, after spending time with
women victims of sexual violence.
Key words: Psychoanalysis, clinical manifestations, body, memory
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traces de mémoire laissées sur le corps. À cette fin, le cauchemar vécu et raconté par
l’activiste Eve Ensler dans son livre Dans le corps du monde: une mémoire (2014),
sera utilisé comme référence. Ensler y parle du rapport profondément intime et
douloureux qu’elle entretient avec son corps et de la façon dont elle a évolué au cours
de sa vie, après avoir vécu avec des femmes victimes des violences sexuelles.
Mots clés: Psychanalyse, manifestations cliniques, corps, mémoire
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