Camilla Marques de Oliveira
Camilla Marques de Oliveira
Camilla Marques de Oliveira
COGEAE – PUC/SP
2019
CAMILLA MARQUES DE OLIVEIRA
SÃO PAULO
2019
Dedicada a todas as mulheres como as de Atenas, que não tinham gosto ou
vontade. Não tinham sonhos, só tinham presságios. Que quando fustigadas não
choravam, se ajoelhavam e pediam mais duras penas. As jovens viúvas marcadas e
as gestantes abandonadas. Para as mulheres como as de Atenas, que geravam
filhos e que viveram para seus maridos, que quando voltavam para casa sedentos,
queriam arrancar violentos, carícias plenas.
(Inspirado em Mulheres de Atenas, Chico Buarque)
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos os meus ancestrais, que antes de mim vieram, que abriram
caminho através de suas vivências para que eu pudesse estar aqui.
Ao meu pai Jurandir Candido de Oliveira, que me ensinou a ser forte e lutar,
ajudando a ter asas para alcançar meus sonhos e objetivos.
A minha mãe Neuza Marques de Oliveira, que com a sua inteligência sempre me
estimulou a questionar, incansável, nunca deixou de me apoiar.
Agradeço aos meus familiares, que sempre fizeram parte da minha vida e com muito
amor, sempre me apoiaram.
As minhas amigas mulheres: Barbara Helt, Suelen Ribeiro, Tatiane Machado,
Adriana Gomes, que me apoiaram e seguraram a minha mão durante esse percurso,
dividindo cada insight e vivenciando comigo cada etapa de pesquisa.
Agradeço a professora orientadora Renata Udler Cromberg, que com muita leveza
conduziu todo o processo de construção da monografia, e sempre de maneira
construtiva me apoiou.
Ao meu gato Leon e a minha gata Madona, fiéis companheiros nos dias e noites de
escritas e leituras, que vez ou outra, com seus miados, me recordavam de parar e
relaxar um pouco.
Agradeço a cada um que, como o mais simples gesto ou palavra de apoio, fez parte
desse percurso.
COMPLEXO DE ÉDIPO: A FEMINILIDADE E SEUS DESTINOS
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................... 6
6 CONCLUSÃO.......................................................................................................................................30
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................................................33
INTRODUÇÃO
7
1 VÍNCULO MATERNO: O INÍCIO DE TUDO
Além do investimento das figuras parentais, Freud explica em seu texto sobre
o narcisismo que, durante as primeiras fases da vida do bebê, ele possui todo
investimento libidinal em seu próprio corpo, nomeado narcisismo primário.
O termo “narcisismo” vem da descrição clínica e foi escolhido por P.
Näcke, em 1899, para designar a conduta em que o indivíduo trata o
próprio corpo como se este fosse o de um objeto sexual, isto é, olha-
o, toca nele e o acaricia com prazer sexual, até atingir plena
satisfação mediante esses atos. (Freud, 1914/2010, p. 14).
Por estar em uma posição passiva, recorrendo a Lacan, o bebê ocupa o lugar
de falo da mãe, porque a mãe toma o bebê como seu objeto, e por ser objeto da
mãe, a criança ocupa o lugar da passividade, daquele que satisfaz o desejo do
outro, nesse caso, o desejo da mãe.
Existe sempre na mãe, ao lado da criança, a exigência do falo, que a
criança simboliza ou realiza mais ou menos. Já a criança, que tem
sua relação com a mãe, não sabe nada disso. (Lacan, 1956-57/1995,
p. 56)
9
Freud caracteriza como pré-genitais “às organizações da vida sexual em que
as zonas genitais ainda não assumiram seu papel preponderante” (1905/2016, p.
108). Na fase pré-edípica, as crianças possuem atividade auto-erótica: no menino
através do pênis, e na menina através do clitóris. Também nessa fase, não existe
diferenciação entre masculino e feminino do ponto de vista genital.
Na criança do sexo feminino, a zona erógena diretriz está localizada
no clitóris; é homóloga, portanto, à zona genital masculina da glande.
(Freud, 1905/2016, p. 140).
10
O texto Além do Princípio do Prazer, que contém a história do for-da, não
trata somente da posição passiva-ativa, utilizado aqui para embasar esse contexto.
É importante considerar que ele trata de uma revolução na teoria psicanalítica, na
qual Freud insere a ideia de pulsão de vida e pulsão de morte.
Na primeira teoria das pulsões sexuais (1905/2016), Freud enuncia que as
pulsões básicas são a pulsão de auto-conservação e a pulsão sexual. Já na
segunda teoria das pulsões, a partir desse texto publicado em 1920, as pulsões
básicas são a pulsão de vida e a pulsão de morte. O texto contribui para
compreendermos que a meta do psiquismo é se manter com o mínimo de excitação
possível. Pulsão essa que se igualada a zero, é caracterizada como morte. A pulsão
de vida é o que causa a excitação do psiquismo. Um trauma, por exemplo, se
caracteriza pela invasão de uma grande excitação que desmonta
momentaneamente o psiquismo, pois ele não estava preparado para ela. Sendo
assim, podemos afirmar que o objetivo do psiquismo é obter prazer e evitar o
desprazer.
A pulsão de vida é relacionada a enlaçamento com outro, com a sexualidade
e a atividade. Já a pulsão de morte é relacionada a um nível mínimo de estímulo,
onde seu máximo seria alcançar a morte e o desenlace.
Freud ainda lança uma questão, já em 1924/2011, sobre o princípio do prazer,
pois quando afirmamos que o objetivo do psiquismo é evitar o desprazer, se torna
necessário explicar o masoquismo.
Pois, se o princípio do prazer domina os processos psíquicos de
forma tal que o primeiro objetivo destes é evitar o desprazer e
conseguir prazer, o masoquismo tornou-se algo incompreensível.
(Freud, 1924/2011, p. 185).
11
O masoquismo feminino é assim determinado devido à posição feminina que
é encontrada nos dois gêneros: no homem e na mulher, isto é, é uma possibilidade
imanente do ser humano. (Laplanche, 2001, p. 275).
Como Freud caracteriza que no “masoquismo existe o desejo de ser tratado
como uma criança pequena, que é desamparada, dependente e especificamente
malcomportada” (Freud, 1924/2011, p. 189), podemos associar essa condição do
masoquista a posição passiva ocupada pelo bebê, que ainda é dependente dos
tratos maternos. A partir dessa constatação, é feita referência de que no
masoquismo ocupamos uma posição feminina, ou seja, passiva, posição na qual o
bebê ainda é dependente da mãe.
Casos em que as fantasias masoquistas sofreram elaboração
particularmente rica, é fácil perceber que elas põem o indivíduo numa
situação caracteristicamente feminina, isto é, significam ser castrado,
ser possuído ou dar à luz. (Freud, 1924/2011, p. 189).
12
Freud fala aqui de uma pulsão de destrutividade que, independente, faz uma
deflexão para o externo, o masoquismo se transformando em sadismo, num primeiro
vínculo com a pulsão de vida.
Podemos considerar que no masoquismo, quando há uma elevação da
excitação psíquica, o alívio pode ser encontrado através da submissão como, por
exemplo, apanhar e sofrer. Causar uma redução dessa tensão torna a satisfação
pulsional possível.
Quando Freud afirma que no masoquismo e na submissão nós temos uma
posição feminina, ele não está se referindo a mulher, e sim a passividade que é
correlacionada ao feminino. Para que o sujeito busque essa satisfação pulsional
encontrada na passividade, ele precisa utilizar-se de muita atividade.
Um sujeito, quando busca uma satisfação passiva, se utiliza da atividade para
se colocar como objeto de desejo do outro. É a mesma analogia do masoquismo
que, através da atividade, busca a submissão, porém em intensidades diferentes.
O bebê quando vem ao mundo tem todo seu investimento libidinal em seu
próprio narcisismo, e possui um vínculo tenaz com a figura materna. O jogo passivo-
ativo vai dando direcionamento a libido à medida que é investida nos objetos
externos. A libido direcionada à passividade (feminina) e atividade (masculina) dão a
tonalidade de como se distribui a libido no psiquismo. O jogo atividade passividade
no bebê dá forma e destino às futuras relações que estabelecerá.
O vínculo materno, no início da vida do bebe, tão tenaz, gradativamente se
afrouxa, como iremos desenvolver mais à frente.
13
2 COMPLEXO DE ÉDIPO: A ENTRADA DO PAI
14
Para que o complexo de Édipo no menino tenha seu êxito, se faz necessário
falar sobre a angústia de castração que toma o menino quando este começa a ter
medo de perder o seu genital, aquele que lhe proporciona prazer através da
masturbação infantil. Não é logo após as ameaças de castração que ele abre mão
dessa posição de desejar a mãe, e sim quando constata que na menina não existe o
pênis, quando percebe que algo está errado porque ali, em seu entendimento, algo
falta, e não enxerga como algo anatomicamente determinado.
Mais cedo ou mais tarde a criança, que tanto orgulho tem da posse
de um pênis, tem uma visão da região genital de uma menina e não
pode deixar de convencer-se da ausência de um pênis numa criatura
assim semelhante a ela própria. Com isso, a perda de seu próprio
pênis fica imaginável e a ameaça de castração ganha seu efeito
adiado. (Freud, 1924/2011, p. 207).
A partir dessa constatação ele pode perceber que essa ameaça pode sim se
tornar realidade, e pode perder o seu órgão.
Quando o interesse da criança (do sexo masculino) se volta para os
seus órgãos genitais, ela revela o fato manipulando-os
freqüentemente, e então descobre que os adultos não aprovam esse
comportamento. (Freud, 1924/2011, p. 206).
15
o complexo de Édipo do menino sucumbe ao complexo de castração, o da menina é
introduzido pelo complexo de castração”. (1925, p. 296)
A pergunta que resta é: como se desenvolve o complexo de Édipo feminino?
Como ele se resolve? Como a mulher redireciona o seu amor para o pai?
Abandonando o amor pela sua mãe? Essas são questões que desafiam até mesmo
Freud que, em toda sua genialidade, buscou explicações de como esse
deslizamento de libido era efetuado.
Há muito tempo compreendemos que o desenvolvimento da
sexualidade feminina é complicado pelo fato de a menina ter a tarefa
de abandonar o que originalmente constituiu sua principal zona
genital – o clitóris – em favor de outra, nova, a vagina. Agora, no
entanto, parece-nos que existe uma segunda alteração da mesma
espécie, que não é menos característica e importante para o
desenvolvimento da mulher: a troca de seu objeto original – a mãe –
pelo pai. (Freud, 1931/2010, p. 372).
Freud afirma que a menina não dissolve o complexo de Édipo, e sim adentra
nele quando acredita ter perdido seu falo. “A menina aceita a castração como um
fato consumado, ao passo que o menino teme a possibilidade de sua consumação”.
(Freud, 1925/2011, p. 212). Afirma que a menina não entende que anatomicamente
ela é diferente do menino, pois em seu psíquico ela associa que algo lhe falta, que
algo lhe foi retirado. Logo “começa a partilhar o menosprezo do homem por um sexo
reduzido”. (Freud, 1924/2011, p.292).
A menina não sai ilesa dessa diferença constatada (Freud, 1925/2011, p.
212). Ela quer ter um falo, porém não pode devido às imposições biológicas,
desenvolvendo o que chama de inveja do pênis, “nascida da descoberta da
diferença anatômica entre os sexos” (Laplanche, 2001, p. 251). Uma ferida narcísica
se instala, causando um sentimento de inferioridade em relação às figuras
masculinas.
Além desse sentimento de inferioridade da inveja do pênis, também se
instala um afrouxamento na relação com a mãe, porque a menina a culpa e a
responsabiliza por não ter cuidado do seu pênis do qual, em sua fantasia, foi
castrada, e a deixou em condições precárias em relação aos meninos.
Falando de consequências psíquicas nos meninos e nas meninas antes da
entrada na latência, podemos afirmar que enquanto no menino a posição do
complexo de Édipo é abandonada por medo do complexo de castração, a menina
adentra nele e fica presa na falta, acreditando que perdeu o seu pênis.
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Toda construção amorosa do bebê é dada na fase pré-edípica. O amor
direcionado a mãe pelo menino permanece até entrar a interdição do pai; na menina
o amor pela mãe se transforma em ambivalência (o amor e o ódio pela mãe) onde
ela passa a ter ódio por acreditar ter sido negligenciada, e transfere esse amor para
o pai, ou seja, não é nada novo, é só o amor que mudou de objeto.
Freud afirma que, para menina, esse é um problema adicional que carrega na
sua constituição, pois precisa deslocar esse amor materno para o amor paterno. E
assim lança uma questão: como é feito esse caminho?
17
3 CASTRAÇÃO: O INÍCIO DO TRAJETO FEMININO
Descobrir que não tem um pênis e descobrir que sua mãe também é
desprovida de um, causa uma decepção na menina. O amor direcionado a mãe
18
tinha relação com a mãe fálica, e não com a mãe castrada. Todos esses
acontecimentos magoam e ferem a menina que, sem seu falo desejado, se sente
sem valor e inferiorizada.
A mãe, ao cumprir seu papel na educação, restringe ações, como a
masturbação, por exemplo, e falta na exclusividade com a menina, como quando
cuida de outros filhos ou se ocupa de outras tarefas. A somatória dessas situações
dá corpo às queixas em relação a mãe e validam a hostilidade que sentem. “Cada
interferência em sua liberdade provocará na criança como reação, a tendência
revolta e a agressividade”. (Freud, 1931/2010, p. 279).
Uma das consequências de toda essa decepção é o abandono da
masturbação clitoridiana, que abrirá mais tarde caminho a feminilidade, ou seja, a
um elemento mais passivo, já que a masturbação através do clitóris é caracterizada
pela atividade. Sendo assim, a masturbação clitoridiana é característica da menina
não castrada que está ligada a atividade anterior a fase da castração.
Encontrar a partir da puberdade o caminho que leva ao prazer vaginal é o
trajeto que leva à feminilidade e à posição passiva. A mulher, para chegar à posição
de passividade, exige dela muita atividade. Estar na posição passiva requer um
desejo, uma identificação, a busca de um objeto, ao qual ela pode se entregar.
É importante salientar que a fase genital faz parte do desenvolvimento sexual
do ser humano. Para que a mulher adentre a referida fase de maneira satisfatória é
importante que as fases anteriores (fases oral, anal, fálica) sejam abandonadas
como posições, para que a vagina seja descoberta como zona de prazer.
Com a mudança rumo a feminilidade, o clitóris deve ceder à vagina
sua sensibilidade e, com isso, sua importância, no todo ou em parte.
(Freud, 1933/2010, p. 271)
20
Uma saída escolhida pela mulher para contornar a castração se dá através do
casamento, geralmente escolhendo um homem a semelhança do pai, e carrega
consigo o desejo de ter um filho. Embora a mulher se case com alguém semelhante
ao pai, após adentrar o casamento revive a relação com a figura materna que
ocorreu na tenra idade, trazendo à tona os conflitos da época pré genital.
Muitas mulheres escolhem o marido conforme o modelo do pai, ou o
põem no lugar do pai, mas repetem com ele, no casamento, a má
relação com a mãe. Ele deveria herdar a relação com o pai; mas, na
realidade, herda aquela com a mãe. Não é difícil vermos aí um claro
caso de regressão. (Freud, 1931/2010, p. 380).
21
4 FEMININO: UMA RECONSTRUÇÃO
O trabalho adicional a que Freud se refere tem relação com o papel do clitóris
para a menina e do pênis para o menino na fase pré-genital. Para o menino é
simplesmente desenvolver a sexualidade através do órgão já descoberto desde a
infância. Agora para a menina é fazer a transferência do prazer encontrado no
clitóris para região da vagina, que na infância é um lugar ainda desconhecido.
A puberdade, que traz ao menino aquele grande avanço da libido,
caracteriza-se na menina por uma nova onda de repressão, que
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atingiu justamente a sexualidade clitoridiana. É uma parcela da vida
sexual masculina que aí sucumbe à repressão. (Freud, 1905/2016, p.
141)
A partir disso a mulher pode seguir alguns caminhos: buscar o pênis perdido
através da rivalidade, ou buscar um filho. Socialmente a mulher pode buscar o falo
perdido através, por exemplo, de cargos e compromissos empresariais assumidos.
Entretanto, se a mulher consegue percorrer a castração, ela adentra a
feminilidade, onde consegue, através da passividade, se colocar no lugar de objeto
de desejo, ou seja, ela passa a ter prazer no desejo de ser desejada. Como afirma
Freud, “sua necessidade não reside tanto em amar quanto em serem amadas, e o
homem que lhes agrada é o que preenche tal condição” (1914/2010, p. 34). Nesse
ínterim, ser mulher e adentrar a feminilidade requer sustentar o vazio oriundo da
aceitação da castração e gozar por ser desejada.
Podemos recorrer a mitologia para falar um pouco sobre a construção do
feminino, discorrendo a história de Urano, sua castração e o nascimento de Afrodite.
Urano, figura mítica que personifica o céu na mitologia grega,”símbolo de uma
proliferação criadora sem medida e sem diferenciação, que destrói, por sua própria
abundância, tudo que engendra” (Chevalier; Gheerbrant, 2012, p.921), odiava seus
filhos, e após o nascimento desses, os mantinha presos no interior de Gaia, mãe dos
filhos de Urano, que incentivou os filhos a se rebelarem contra o pai. Cronos, o mais
jovem, liderou a rebelião vencendo o pai. Após uma emboscada, cortou seus
testículos e os lançou ao mar. Da espuma que surgiu no mar, nasceu Afrodite.
Filha do sêmen de Urano (o céu) derramado no mar, após a
castração do Céu por seu filho Cronos (daí a lenda do nascimento de
Afrodite, que surge da espuma do mar). (Chevalier; Gheerbrant,
2012, p. 14)
23
mãe. Já na história de Urano, Cronos consegue derrotar o pai terrível, permitindo
que a mãe, Gaia, permaneça com seus filhos. Podemos especular que Afrodite
consegue realizar o desejo do feminino que é elaborar a castração e poder utilizar
da sua sedução para atrair objetos de desejo, sendo ela própria objeto de desejo.
Afrodite é a reconstrução de um processo de castração, onde a rivalidade
ativa pode ser substituída pela figura de Afrodite, que representa as duas facetas
que um feminino pode ter: um da sedução e da entrega aos desejos e o outro que
pode se assemelhar a perversidade pela manipulação que ocasiona através da
sedução. Afrodite carregava em si de maneira exponencial as facetas que podem
ser adquiridas através da apropriação do feminino.
Afrodite simboliza as forças irreprimíveis da fecundidade, não em
seus frutos, mas no desejo apaixonado que acende entre os vivos
[...] Ela faz perder a razão até mesmo de Zeus. (Chevalier;
Gheerbrant, 2012, p. 14)
24
5 UMA DISCUSSÃO SOBRE A MULHER, A FEMINILIDADE E SEUS DESTINOS
Para além do discurso da falta do pênis, Freud mostra que a mulher possui
um trabalho adicional e que muitas vezes não alcança o prazer que sua vagina pode
lhe proporcionar.
Até mesmo o conceito de atividade e passividade possui suas restrições.
Podemos sim atribuir atividade e passividade na conduta sexual biológica, onde o
espermatozóide toma uma atividade para adentrar o óvulo que permanece passivo,
aguardando ser fecundado. Porém a mulher, em diversas situações da vida, atua de
maneira ativa. Exemplos são sua relação com o bebê nas primeiras fases de vida, e
até mesmo no mundo social, como no trabalho por exemplo.
Freud afirma que não podemos deixar de considerar que o meio social tem
uma grande influência em colocar a mulher em uma posição passiva. Como Freud
afirma, “quando se torna bela, produz-se na mulher uma auto-suficiência que para
ela compensa a pouca liberdade que a sociedade lhe impõe na escolha do objeto”
(1914, p. 34).
Já no texto Sobre a Sexualidade Feminina, Freud afirma que é necessário
admitir que algumas mulheres podem ficar na fase pré-edipica e na ligação afetuosa
da figura materna, sem jamais alcançar a figura feminina como meta.
A fase pré-edipica na mulher tem um papel bem mais significativo do que no
homem. É sabido que a mulher busca um modelo de marido similar ao modelo
paterno, porém durante o casamento sofrem uma regressão e repetem a má relação
que tiveram com a mãe. Poderíamos supor que a menina herdaria no casamento a
relação com pai, fruto do complexo de Édipo. Porém a menina herda a relação com
a mãe, produto da relação arcaica vivenciada na fase pré-edipica.
Se encontrar como mulher está além de buscar o falo através do marido e de
ter um filho, é deixar emergir os dois lados: O lado masculino ativo que pode ser
usado para trabalhar, para criar os filhos, se responsabilizar pelos cuidados de uma
casa ou até mesmo responsabilidade para cuidar de animais domésticos. E o lado
25
feminino que nutre, acolhe, deseja ser amada, se coloca como um falo, ou se
transforma em objeto de desejo para encontrar o seu prazer.
Entender que o pai não é um objeto possível, que ele desempenha outro
papel que não de um marido e não dará o filho desejado, a mulher pode acessar que
existem diversas possibilidades de se possuir um falo (inclusive na feminilidade elas
se tornam falo). Somente a possibilidade do filho com o pai é interditado. Isso não é
pouco, é muito a ser elaborado, porém, atualmente, a mulher tem muito mais
possibilidades de elaboração, de caminhos a seguir onde ela pode integrar
masculino e feminino, atividade e a passividade.
Outro passo é a mulher olhar a relação com a mãe, e entender que a
responsabilidade não é dela pela falta que a persegue. Essa falta é existencial e não
causada por alguém. É uma falta dada, biologicamente, pela ausência do pênis na
mulher e interpretada pela criança como castração.
Resumindo, para adentrar a feminilidade, a mulher deve elaborar sua história,
e se apropriar de que as funções, materna e paterna, possuem sua importância, que
é permitir que sejamos inseridos no mundo, e de zelar até o momento em que
podemos nos dar conta sozinhos. Responsabilizar os pais por aquilo que não se tem
ou não se é facilita a fixação na condição narcísica, localizada no período pré-
edipico. Como Freud explica sobre transpor o desejo infantil de possuir um pênis,
que “se transforma então no desejo de ter um homem”. (1917/2010, p. 256).
Quando partimos para as influências sociais que permeiam a construção do
feminino, podemos compreender que a cultura também possui seu papel no
psiquismo da mulher. Kehl explica que é a partir da “travessia edípica que nos
tornamos sexuadamente marcados pela identificação de padrões ideais
considerados próprios ao gênero” (2016, p. 11). Explica que para além das questões
sexuais, oriundas da pulsão, carregamos também as métricas que a sociedade e a
cultura são permeadas. “Somos marcados pela posição de cada um na ordem
familiar pelo que representamos no inconsciente de nossos pais e pelo que
herdamos de gerações passadas“(p. 12). Sendo assim nós não somos formados
somente pelas pulsões individuais, e sim por um conjunto de fatores que envolvem o
próprio psiquismo, e o campo social e familiar do qual estamos inseridos. “Aquilo
que atravessa o campo do Outro” (p. 12). Relembra que a primeira marca social que
recebemos, logo após o nascimento, é a da diferenciação sexual.
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Somos ao longo da vida, classificados na estrutura social: homem e mulher,
negros e brancos, nativos e estrangeiros, e uma infindável categorização que nos
determina lugares imaginários determinados pelo que está fora do psiquismo. “O
sujeito é antes falado – pelo Outro” (Kehl, 2016, p. 24).
Freud (1933/2010) reconhece a influência social no psiquismo feminino, uma
construção cultural que determina o lugar que a mulher deve ocupar. Explica que
pode haver conseqüências oriundas de uma pressão que impede o comportamento,
pelo menos pouco mais espontâneo, e faz sucumbir a consequências psíquicas, que
podem levar ao sofrimento.
Temos que atentar para não subestimar a influência da organização
social que igualmente empurra a mulher para situações passivas.
A supressão da agressividade, prescrita constitucionalmente e
imposta socialmente a mulher favorece o desenvolvimento de fortes
impulsos masoquistas, que, como sabemos, tem êxito em ligar-se
eroticamente a inclinações destrutivas voltada para dentro. (Freud,
1933/2010, p. 268).
27
negra no imaginário social ainda carrega traços de serviçais que executam o
trabalho. Já é sabido através de pesquisas que as pessoas negras ocupam as
funções de trabalho menos remuneradas, marcas ainda do regime de escravidão,
que foi abolido a pouco mais de 100 anos no Brasil. Kon et al. (2017) explicam que
no século XIX, “ficam cada vez mais evidentes os avanços da burguesia europeia”
(p. 96). Interessante observar que Kehl (2016) e Kon et al. (2017) abordam o mesmo
tempo, século XIX, que ainda traz marcas de uma geração marcadamente
eurocêntrica, onde a mulher (branca) e o negro possuíam seus corpos dominados,
com lugares predeterminados a ocuparem: o lar e a senzala.
O tempo avançou e estamos no século XXI, porem as marcas para a
população negra ainda existem, embora mais camufladas, e a limitação de seu
espaço não se encontra mais no real, mas sim no imaginário. “Como marcador
social de diferença, “negro” pode até ser termo negativo, e também positivo, até
afetivo. Jamais neutro.” (Kon et al., 2017, p. 118).
Kon et al. (2017) explicam que o negro busca o corpo do branco como o ideal
de identificação, e isso traz diversas marcas em seu psiquismo. Sendo assim para a
mulher negra, por exemplo, existem trabalhos adicionais psíquicos além da
elaboração da castração tal qual foi colocada por Freud.
Penso sobre a relação que o negro pode vir a estabelecer com a
brancura fetiche tomando-a como referencial identitário, ideal
impossível que se tornará depositário de muita idealização e ódio.
(Kon et al., 2017, p. 244).
28
A dificuldade que enfrentaram e enfrentam para deixar de ser objetos
de uma produção de saberes de grande consistência imaginária, a
partir da qual se estabeleceu uma verdade sobre sua natureza (Kehl,
2016, p. 14)
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6 CONCLUSÃO
30
Embora exista um movimento social que visa o feminismo ou a busca do
feminino, ainda é possível observar conflitos nas mulheres relacionados a fase pré-
edípica e a castração oriunda do complexo de Édipo, além de sofrerem com a
estrutura socialmente determinada do lugar da mulher.
A mulher ainda precisa lidar com as fantasias impostas pelo machismo
estrutural na sociedade. Vivemos em tempos em que as mulheres podem sim ser
independentes e buscar o seu espaço, não precisando estar colada na figura de um
homem. Porém no imaginário social ainda se espera que a mulher desempenhe o
papel da mulher do lar, às vezes causando até um estranhamento ao olhar do outro
quando ela está presente em situações e espaços tipicamente masculinos, como
estádios de futebol ou líderes em empresas, por exemplo.
Hoje em dia a mulher não precisa mais se relacionar com alguém da qual ela
depende, mas sim pode escolher se relacionar com quem ela quer, ou até mesmo
escolher não se relacionar. Porém ainda existe um preço por não se adequar ao
status quo social, e sofrer julgamentos e discriminações.
Ainda existe no imaginário social um lugar determinado e esperado que a
mulher ocupe, inclusive um lugar que muitas mulheres ainda se identificam. E a
mulher vem aos poucos transpondo e avançando sobre lugares e situações das
quais foram interditadas ao longo dos tempos.
Podemos aqui retomar a história de Amy Winehouse, que embora tenha
conseguido um reconhecimento social mundial através do seu trabalho, sucumbiu ao
ter um relacionamento finalizado. Muitas mulheres ainda buscam ser alguém e ter
um papel social reconhecido através de um homem. Vale salientar que nada impede
de que a mulher possa desejar ter um bom casamento, talvez o que se faz
necessário, é ressignificar o que é um bom casamento. Não associar um bom
casamento ao desposar com um homem que estabeleça um lugar social e que
sustente um papel para a mulher, e sim se relacionar com alguém que seja possível
trocar experiências de uma maneira saudável e não limitadora, e que cada um possa
dar lugar ao seu eu individual e a sua alteridade.
Aos poucos a mulher vai descolando da figura da mulher do lar e busca
legitimação em outros papéis. Porém ainda é um desafio a mulher ocupar certos
espaços sem ser discriminada ou ter o seu corpo objetificado, sem desejá-lo.
31
A mulher vive um momento que lhe traz conflitos entre: utilizar da passividade
e do lugar do acolhimento da sua feminilidade, e buscar a sua colocação no mundo
social para além da estrutura patriarcal determinada, na qual está inserida.
Ainda é um desafio para a mulher articular as posições passivas, que dão
lugar ao feminino; e as ativas, que dão lugar ao masculino. A mulher ocupava a
passividade submissa quando no papel da mulher do lar. Seu lugar ativo era restrito
ao lar e aos filhos. As possibilidades têm expandido para além de seu lar, e elas têm
desempenhado papeis ativos em outros espaços. Esses novos espaços de atuação
da mulher têm permitido desempenhar outras atividades, porém ainda não é fácil
equilibrar todas as demandas que vem adquirindo ao longo dos tempos. A mulher
tem acumulado novas demandas à medida que adentra e conquista novos espaços.
Não podemos deixar de citar que as transformações que ocorrem com a
mulher afetam os homens também. Algumas vezes eles terão que dividir espaços
outrora somente masculinos, ou precisam administrar a ausência da mulher, estejam
eles no lugar de filhos, de maridos ou até mesmo de pais. Com a expansão dos
lugares possíveis da mulher, os homens não conseguirão ficar somente ocupados
em suas rotinas e vivências, também precisarão se readaptar. Alguns, mais
desconstruídos, enxergam de maneira mais amena a nova formatação da mulher.
Outros resistem e buscam sustentar a imagem da mulher burguesa, onde cada
figura, de acordo com a construção do imaginário social, deve ocupar um tipo de
espaço: a mulher do lar, a mulher promíscua, a mulher serviçal, a mãe.
A medida que a mulher busca uma nova formatação, a sociedade é
empurrada a se ressignificar, pois por mais que a mulher ocupasse um lugar de
submissão, o papel da figura materna é modificado e ressignificado, e os novos
filhos e filhas vivenciam uma nova dinâmica social, que irá de encontro ao
desenvolvimento do psiquismo.
Como já explicitado, é importante desconstruir a naturalização do papel da
mulher dentro do imaginário da família burguesa. Mas com essa mudança de
estrutura, será inevitável advir uma alteração na estrutura social, qual a sociedade
como um todo irá vivenciar, e os analistas poderão constatar em seus divãs.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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– Obras Completas Volume 06, São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
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