JR e Sistema Penal

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Justiça Restaurativa e Sistema Penal:

contribuições abolicionistas para uma política criminal do encontro.

Daniel Achutti*

Resumo: o presente trabalho aponta para a fragmentação da criminologia crítica, e apresenta o abolicionismo
penal como uma das principais críticas ao sistema de justiça criminal. A justiça restaurativa, por sua vez, é
abordada como política criminal concreta, cujos subsídios abolicionistas oferecem suporte teórico importante
para a construção de um novo modelo de administração de conflitos.

Palavras-chave: criminologia – abolicionismo – justiça restaurativa.

Introdução.

Em 1976, Nils Christie estabeleceu importante posicionamento crítico em relação ao


sistema penal em conferência ministrada na inauguração do Centro de Criminologia da
Universidade de Sheffield, na Inglaterra. Publicada no ano seguinte sob o título Conflitos
como Propriedade (Christie, 1977), tornou-se referência acadêmica internacional, e pode-se
dizer ainda que, apesar dos mais de trinta anos desde a sua publicação, mantém-se um texto
atual, que continua merecedor de maior atenção por parte da criminologia brasileira.
Publicado em importante momento para a criminologia crítica, inúmeros outros
trabalhos e pesquisas foram iniciados a partir do conhecido artigo de Christie, focados na
busca de um novo modelo de justiça criminal que pudesse se preocupar menos com os
prejuízos estatais decorrentes de um delito e se voltar de forma mais efetiva às pessoas
envolvidas no conflito e aos danos a elas causados. O nome desse novo modelo de justiça
criminal viria a se consolidar como Justiça Restaurativa.
Ainda que tal discussão tenha se iniciado a partir do final dos anos 1970, pouco ou
quase nada se produziu a respeito no Brasil. Raras são as referências ao tema na maioria dos
trabalhos e manuais criminológicos à disposição do público brasileiro.
Importante salientar que não se trata, aqui, de buscar “alocar” a justiça restaurativa em
um ponto exato dentro do conteúdo programático de uma disciplina acadêmica jurídica ou
criminológica. Antes disso, procura-se verificar se a proposição de adoção de um modelo de
justiça restaurativa pode ser considerada vinculada às críticas abolicionistas e às suas
propostas de política criminal, e até que ponto é possível considerá-la distanciada da intenção
última desta corrente criminológica – a abolição do sistema penal.

*
Advogado Criminalista. Mestre e Doutorando em Ciências Criminais (PUCRS). Professor de Direito Penal no
Unilasalle. Conselheiro do Instituto de Criminologia e Alteridade (ICA). Membro da Comissão de Mediação e
Práticas Restaurativas da OAB/RS. Contato: dachutti@terra.com.br
1
Para tanto, será feita uma pequena revisão bibliográfica de importantes textos
abolicionistas, com a finalidade de apresentar a forma como foram construídas as suas críticas
ao sistema penal, para em seguida ser apresentada a justiça restaurativa, com suas principais
propostas e delineamentos. Ao final, buscaremos averiguar se é possível adotar a justiça
restaurativa como política criminal no Brasil, ainda que não visando à extinção completa do
sistema penal.

1. Da criminologia crítica aos discursos críticos contemporâneos.

Após um longo período de domínio do paradigma criminológico positivista e de


utilização massiva das escolas de criminologia como fornecedoras privilegiadas de mão-de-
obra especializada para o Estado (final do século XIX à segunda metade do século XX), a
ruptura cultural dos anos 1960 nos Estados Unidos proporcionou a emergência de novas
formas de percepção sobre o fenômeno criminal. Apesar das diferenças que carregavam entre
si, a partir do início dos anos 1970 tais pensamentos “foram agrupados sob a denominação de
‘criminologia crítica’, ‘nova criminologia’, ‘criminologia radical’ ou também ‘criminologia
marxista’.” Por “criminologia crítica” passaram a ser conhecidas “várias posições distintas,
que iam desde o interacionismo até o materialismo, e que se assemelhavam mais naquilo que
criticavam do que naquilo que propunham.” (Anitua, 2008, p. 657)
O livro A Nova Criminologia: para uma teoria social do desvio (1973), de Ian Taylor,
Paul Walton e Jock Young foi especialmente importante para o desenvolvimento dessa nova
forma de pensar a questão criminal. A obra apresentou um balanço crítico dos pensamentos
criminológicos até o ano de sua publicação, numa clara tentativa de se desvincular do que se
considerava como “criminologia oficial” àquela época. (DeKeseredy, 2011, p. 16)
A proposta dos autores era construir uma nova criminologia – radical, crítica e
materialista – que deveria se comprometer “com a abolição das desigualdades de riquezas e
de poder a partir de uma perspectiva marxista, à qual se propunham completar com a
percepção do delito como uma conseqüência da estrutura social na qual acontece,”
visualizando “as origens estruturais e superestruturais do desvio, assim como as reações mais
imediatas das instâncias oficiais e do público.” (Anitua, 2008, p. 666)
Para Larrauri e Moliné (2001, p. 226), a criminologia crítica pode ser dividida em duas
fases: a primeira, denominada de nova criminologia marxista, que se caracterizaria pela forte
ênfase na economia para explicar a delinqüência e o Direito penal, e a segunda, resultado da
revisão dos próprios criminólogos críticos, denominada criminologia crítica propriamente

2
dita, em que se soma à economia o contexto sociológico, político e cultural na explicação da
delinqüência e do Direito Penal.
Porém, pelas palavras de Anitua (2008, p. 687), “quando parecia que o terreno já
estava pronto para redigir uma agenda alternativa à criminologia tradicional, começou-se a
perceber que a criminologia crítica estava em crise.” Os desdobramentos das propostas
oriundas da criminologia crítica expõem a divisão em que estavam envolvidos os
criminólogos críticos – face às diversas orientações e propostas que sustentavam.
Segundo van Swaaningen (1999, p. 15), na Europa a criminologia crítica se tornou
uma vítima de seu próprio sucesso: muitos dos temas abordados por acadêmicos críticos nos
anos 1960 e 1970 tiveram respaldo legislativo nas duas décadas seguintes, fazendo com que
parte do projeto crítico passasse a integrar o discurso e a política oficial do Estado.
É possível dizer, além disso, que tal crise estava inserida dentro de uma crise maior,
que abrangia grupos e indivíduos no final do século XX, que diante de uma quantidade nunca
antes possível de informações tornavam-se cada vez mais conscientes da dificuldade de
mudar as coisas ou fazer algo como se planeja (Anitua, 2008, p. 684). Nesse contexto, a
criminologia crítica apresentou diferentes respostas à questão penal, cujas distintas bases
epistemológicas naturalmente proporcionariam diferentes propostas.
Em um primeiro momento, três distintas correntes podem ser apontadas como as mais
importantes dentro da criminologia crítica: o abolicionismo penal, o realismo de esquerda e o
garantismo penal. No entanto, a partir de então, tal divisão foi ampliada, de forma que em um
único artigo seria impossível analisar todas as novas divisões. Apenas a título de exemplo,
vale citar a criminologia feminista, a criminologia cultural, a criminologia pós-moderna, a
peacemaking criminology,1 a convict criminology,2 dentre outras. (DeKeseredy e Perry, 2006;
Lilly, Cullen e Ball, 2007; DeKeseredy, 2011).
Dentro da proposta deste trabalho, apenas alguns textos abolicionistas serão
analisados, a fim de possibilitar a posterior análise de seus conteúdos e seus reflexos na
estruturação da justiça restaurativa.

2. O Abolicionismo Penal: crítica e extinção do sistema penal.

O abolicionismo penal – corrente teórica cuja própria denominação indica as suas


pretensões – tem seu foco voltado para a construção de uma crítica capaz de deslegitimar de
forma radical o sistema carcerário e a sua lógica punitiva. (Anitua, 2008, p. 697)

1
“Criminologia pacificadora”, em tradução livre.
2
“Criminologia do apenado”, em tradução livre.
3
Serão utilizados três trabalhos de autores fundamentais do abolicionismo, que
delineiam as críticas do sistema formal de justiça criminal e expõem as principais pretensões
do movimento: “As Políticas da Abolição” (The Politics of Abolition – 1974), de Thomas
Mathiesen; “Conflitos como Propriedade” (Conflicts as Property – 1977), de Nils Christie; e
“Criminologia Crítica e o Conceito de Delito” (Critical Criminology and the Concept of
Crime – 1986), de Louk Hulsman. Vários outros artigos e livros poderiam ser citados, mas
estes três são suficientes para as pretensões do presente trabalho.

2.1. Ideias gerais – Hulsman, Mathiesen e Christie.

De forma resumida, o abolicionismo defende a ideia de que o castigo não é o meio


mais adequado para reagir diante de um delito, e por melhor que possam ser, eventuais
reformas no sistema criminal não surtirão efeito, pois o próprio sistema está equivocado ao
estabelecer que com uma resposta punitiva (pena de prisão) o “problema” do delito estará
solucionado.
No âmago da sua argumentação, o abolicionismo – através principalmente de Hulsman
– propõe-se a desconstruir a definição de delito: o delito não seria o objeto, mas o produto de
uma política criminal que pretende justificar o exercício do poder punitivo, e não possuiria
realidade ontológica. De acordo com o autor, a partir de então seria possível reorganizar o
debate da criminologia e da política criminal, e tal postura apontaria para a abolição da justiça
penal, uma vez que “o delito como realidade ontológica” seria a pedra fundamental deste tipo
de justiça. (1986, p. 67)
Pelas palavras de Anitua (2008, p. 698),
Hulsman queria indicar que se a comunidade aborda os eventos criminalizados e os
trata como problemas sociais, isso permitiria ampliar o leque de respostas possíveis,
não se limitando à resposta punitiva, que, ao longo da história, não somente não
resolveu nada, como também criou problemas.

Uma das maneiras para concretizar a desconstrução da categoria delito e viabilizar a


adoção de outros mecanismos de controle social seria a adoção de um novo vocabulário para
abordar a questão criminal e as engrenagens oficiais: a linguagem delimita o sistema e
mascara a realidade, de forma a (a) excluir qualquer tentativa de utilização de mecanismos
diversos aos oficialmente existentes; e (b) de definir os conflitos não a partir do ponto de vista
dos envolvidos, mas a partir da prévia estruturação legal desses conflitos, tidos oficialmente
como delitos.
Tais definições, uma vez que realizadas anteriormente à ocorrência do conflito, não
permitem a construção coletiva acerca da situação e de suas circunstâncias: a única leitura
4
possível é a leitura jurídico-penal. Em um contexto de organização formal em que a própria
definição preliminar do caso (geralmente, realizada pela polícia e pelo Ministério Público)
não está à disposição das partes, as conseqüências do julgamento, naturalmente, também não
serão colocadas em discussão. (Hulsman, 1986, p. 77-78)
Para Hulsman, a estruturação legal de conflitos como delitos pouco ou nada poderia
coincidir com a visão do problema que teriam as partes diretamente envolvidas: “Na justiça
penal geralmente se decide de acordo com uma realidade que existe apenas dentro do sistema,
e raramente encontra a sua contrapartida no mundo exterior.” (1986, p. 77)
Conseqüentemente, Hulsman propõe uma mudança significativa de linguagem, uma
vez que o crime não possui existência ontológica e, portanto, não necessariamente deve ser
chamado dessa forma. A proposta do autor remonta à expressão “situações problemáticas”, e
a pretensão era reduzir ou anular a estigmatização oriunda do sistema penal e devolver a
resolução do conflito às partes (1997, p. 101 e 96). Tal mudança teria o poder de romper o
binômio crime-castigo e oferecer uma gama infindável de possibilidades para encerrar e
resolver a situação sem precisar recorrer à tradicional pena de prisão.
Suas críticas ao sistema penal, como se sabe, não estavam isoladas: Thomas
Mathiesen, no seu livro As Políticas da Abolição, apresentava três propostas principais para a
efetivação do abolicionismo penal. Em primeiro lugar, a abolição das prisões era considerada
como um objetivo de uma política criminal radical. Tal proposta foi reafirmada em 1986, em
artigo de mesmo nome no qual o autor revisou o trabalho original e, constatando a expansão
considerável do uso da prisão no mundo ocidental, reiterou que o objetivo apresentado vinte e
dois anos antes se encontrava revigorado: quanto mais as pessoas são colocadas atrás das
grades, mais importante ainda se tornou o mencionado objetivo. (1986, p. 84)
Em segundo lugar, era necessário ter cuidado com as conhecidas “alternativas” à
prisão, uma vez que isso poderia facilmente implicar na criação de estruturas prisionais
semelhantes, com funções igualmente muito parecidas. (1986, p. 81) Diante de tal situação,
Mathiesen propôs a sua conhecida “política do inacabado” (unfinished policies), que preza
pela constante atenção dos abolicionistas para jamais deixar de lutar pela abolição da prisão
ou, pelo menos, para questionar todas as formas de alternativas que pudessem ser propostas
oficialmente à prisão. Dessa forma, a “luta abolicionista” não tem fim aparente, e é necessário
estar sempre pronto para confrontar toda proposta possível de ampliação da malha prisional.
Por fim, propunha o autor que, para a realização do objetivo principal, era necessária
“uma estratégia muito bem trabalhada, e acima de tudo uma análise da relação entre as
reformas de curto prazo e a abolição a longo prazo.” Em relação às reformas de curto prazo, o
adequado seria adotar uma postura “negativa”, no sentido de sempre se posicionar
5
contrariamente a qualquer proposta que pudesse incrementar ou aumentar o sistema prisional.
(1986, p. 82)
Nils Christie, por sua vez, no clássico Conflitos como Propriedade, igualmente faz
uma severa crítica ao sistema penal, mas estabelece o centro da discussão na apropriação
estatal dos conflitos. Diante da constatação de que aqueles que lidam com os conflitos são
pessoas alheias às partes (juízes, promotores e advogados), Christie opõe ao modelo
tradicional de justiça criminal uma outra forma de trabalhar os conflitos, de estrutura
descentralizada e cujos atores principais não seriam terceiras pessoas – ou profissionais da
administração de conflitos – mas as próprias partes (direta ou indiretamente) envolvidas no
conflito. Elas mesmas deveriam, de forma a buscar reparar o dano causado à vítima, buscar as
soluções possíveis para os conflitos em que estiverem envolvidas.
Segundo o autor, os conflitos foram furtados das partes e entregues ao Estado, para
que este pudesse determinar a responsabilidade e a punição ao ofensor. Os conflitos deveriam,
segundo Christie, ser vistos como valiosos, que não poderiam ser desperdiçados e mal
utilizados, uma vez que o potencial maior dos conflitos reside justamente em oportunizar aos
cidadãos a administração de seus próprios problemas. Conseqüentemente, é fácil notar que os
cidadãos adquirem uma maior autonomia em relação ao poder estatal, e a forma profissional
de lidar com os conflitos abre espaço para um enfrentamento não massivo e particular da
situação.
A importância do artigo de Christie, para além da contundente crítica que estabelece
ao sistema de justiça criminal, remonta de forma especial ao retorno da vítima na participação
da resolução de seu caso. Conforme o autor, as vítimas precisam compreender a situação, mas
a justiça criminal as trata como “uma não-pessoa em uma peça de Kafka”. (1977, p. 8)
A seguir, o autor coloca que o modelo de justiça em questão deve possuir como foco
não o ofensor, mas a vítima e as necessidades que surgiram com o conflito. Além disso, o
sistema idealizado por Christie seria constituído por tribunais comunitários (neighbourhood
courts), de forma a estarem mais próximos aos valores da comunidade em que estiverem
inseridos. O procedimento se constituiria em quatro etapas consecutivas: na primeira, seria
averiguada a plausibilidade da acusação, a fim de evitar que terceiras pessoas possam ser
responsabilizadas pelos atos de outros e que os direitos do acusado sejam violados; a segunda
envolveria a elaboração de um relatório completo das necessidades da vítima, a ser formulado
por ela própria, considerando o dano que lhe foi causado e as formas como ele pode ser
restaurado ou minimizado; na terceira, seria realizada uma análise pelos tribunais
comunitários acerca de uma possível punição ao ofensor, independentemente do que ocorrera
a etapa anterior; por fim, uma discussão sobre a situação pessoal e social do ofensor seria
6
realizada pelos mesmos participantes das etapas anteriores, com a finalidade de averiguar as
suas eventuais necessidades. Através destas etapas, estes tribunais locais “representariam uma
mistura de elementos de tribunais civis e penais, mas com uma forte ênfase nos aspectos
civis”. (1977, p. 11)
Juntas, as argumentações dos três mais conhecidos autores do abolicionismo penal
fornecem forte material crítico para avançar a discussão sobre o papel da justiça criminal
contemporânea, assim como para questionar aquilo que, há pouco tempo atrás, parecia
inquestionável: o direito e o processo penal fornecem ferramentas realmente suficientes para a
administração dos conflitos criminais? O afastamento das partes é algo realmente desejado ou
confunde-se com a necessidade de legitimação do sistema penal?

3. Do idealismo crítico ao realismo político-criminal: a justiça restaurativa como


proposta para administração de conflitos.

Em um primeiro momento, a argumentação abolicionista, apesar da sua intensa força


crítica, parece fadada a desaparecer naturalmente, dado o idealismo de suas principais
proposições. Entretanto, a relativização do conceito de delito (Hulsman), as posturas
negativas em termos de política criminal (Mathiesen) e a defesa de uma justiça mais
participativa e descentralizada (Christie) permitem entrever a possibilidade de uma política
criminal concreta, realista, cuja estrutura agora encontra respaldo no mencionado modelo de
justiça restaurativa. Como refere Ruggiero, “certamente há na postura abolicionista na
proposição de que a administração da justiça penal por um Estado centralizado deve ser
substituída por formas descentralizadas de regulação autônoma de delitos.” (2010, p. 1)
Ao passo que a crítica ao posicionamento abolicionista opta estrategicamente por, de
antemão, considerá-la “idealista demais”, é possível pensar justamente o contrário: que o
abolicionismo, ao invés de ser apenas um punhado de críticas ao sistema penal com uma
proposição utópica sobre o seu destino (abolição), é uma postura política, “uma forma de
abordagem, uma perspectiva, uma metodologia e, acima de tudo, uma forma de enxergar” a
evidente incompatibilidade entre a teoria e a prática do sistema de justiça criminal. (Ruggiero,
2010, p. 1)
Mas essa não é uma questão apenas de “recolocar os textos abolicionistas de volta às
estantes de referência das bibliotecas universitárias”, mas de “vincular o ‘radicalismo e o
utopismo’ abolicionistas com visões do crime e da lei incorporadas na tradição cultural
ocidental e suas opções concretas e razoáveis que se destinam a redução de dor”. (Ruggiero,
2010, p. 201)
7
Por esses motivos, e partindo do pressuposto de que por detrás das críticas
abolicionistas é possível estabelecer uma política criminal concreta, passa a ser importante
começar a pensar a respeito do mencionado modelo conhecido como justiça restaurativa.

3.1. Justiça Restaurativa: principais noções e propostas.

A justiça restaurativa surge a partir da década de 1970 como alternativa à falência


estrutural do modelo tradicional de sistema criminal, e trouxe consigo a promessa de uma
maneira mais construtiva de fazer justiça. Para alguns acadêmicos, representa também uma
maneira de se posicionar contrariamente ao punitivismo popular característico das políticas
criminais das últimas décadas nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha (Hoyle, 2010, p. 31), e
tem como desafio retrabalhar os dogmas da justiça criminal a partir de uma abordagem
voltada precipuamente para a vítima, e não para o ofensor.
Frontalmente associada, em seu início, ao movimento de descriminalização, Mylène
Jaccould refere que a justiça restaurativa deu

passagem ao desdobramento de numerosas experiências-piloto do sistema penal a


partir da metade dos anos setenta (fase experimental), experiências que se
institucionalizaram nos anos oitenta (fase de institucionalização) pela adoção de
medidas legislativas específicas. A partir dos anos noventa, a justiça restaurativa
conhece uma fase de expansão e se vê inserida em todas as etapas do processo penal.
(2005, p. 4)

Talvez o conceito mais citado de justiça restaurativa seja o de Tony Marshall, que a
define como “um processo através do qual todas as partes envolvidas em uma ofensa
particular se reúnem para resolver coletivamente como lidar com a conseqüência da ofensa e
as suas implicações para o futuro.” (1996, p. 37).
Na justiça restaurativa, (a) a vítima poderá participar dos debates envolvendo o
conflito; (b) o procedimento poderá não resultar em prisão para o acusado, mesmo que ele
venha a admitir que praticou o delito e provas robustas corroborem a confissão; (c) há a
possibilidade de realização de um acordo entre as partes; e (d) os atores jurídicos
especializados deixarão de ser os protagonistas, abrindo espaço para um enfrentamento
interdisciplinar do conflito; dentre outras características.
Vale o registro de André Gomma de Azevedo, para quem

a Justiça Restaurativa apresenta uma estrutura conceitual substancialmente distinta


da chamada Justiça Tradicional ou Justiça Retributiva. A Justiça Restaurativa
enfatiza a importância de se elevar o papel das vítimas e membros da comunidade ao
mesmo tempo em que os ofensores (réus, acusados, indiciados ou autores do fato)
são efetivamente responsabilizados perante as pessoas que foram vitimizadas,

8
restaurando as perdas materiais e morais das vítimas e providenciando uma gama de
oportunidades para diálogo, negociação e resolução de questões. (2005, p. 6)

Segundo Melo (2005, p. 7), os motivos que demonstram a emergência de um novo


paradigma a partir da Justiça Restaurativa para o enfrentamento dos conflitos criminais são:
primeiramente, ela oportuniza uma outra percepção da relação entre o indivíduo e a sociedade
“no que concerne ao poder: contra uma visão vertical na definição do que é justo, ela dá vazão
a um acertamento horizontal e pluralista daquilo que pode ser considerado justo pelos
envolvidos numa situação conflitiva”; em segundo lugar, salienta que a justiça restaurativa
foca “na singularidade daqueles que estão em relação e nos valores que a presidem, abrindo-
se, com isso, àquilo que leva ao conflito”; em terceiro lugar, se o foco está mais voltado para
a relação do que para a resposta punitiva estatal, o próprio conflito e a tensão relacional
adquirem outro estatuto, “não mais como aquilo que há de ser rechaçado, apagado,
aniquilado, mas sim como aquilo que há de ser trabalhado, laborado, potencializado naquilo
que pode ter de positivo, para além de uma expressão gauche, com contornos destrutivos”; em
quarto lugar, “contra um modelo centrado no acertamento de contas meramente com o
passado, a justiça restaurativa permite uma outra relação com o tempo, atenta também aos
termos em que hão de se acertar os envolvidos no presente à vista do porvir”; e, em quinto
lugar, “este modelo aponta para o rompimento dos limites colocados pelo direito liberal,
abrindo-nos, para além do interpessoal, a uma percepção social dos problemas colocados nas
situações conflitivas.”
Para Antoine Garapon (2001, pp. 253 e 251), a justiça restaurativa3 proporciona um
verdadeiro “deslocamento do centro de gravidade da justiça”, pois “atribui um rosto novo à
justiça: reconstruir a relação no que ela tem de mais concreto. Tem como vizinhos homens de
carne e osso, não a lei!” Com a quebra da centralidade da justiça criminal no acusado, a
vítima passa a ter papel fundamental neste novo cenário, de forma a intimar “o direito penal a
reorganizar-se”: “quando nos concentramos na vítima e já não no autor, a malvadez como
vontade má deixa de ser central, o que exerce uma influência considerável sobre o sentido da
pena. Esta já não pode pretender apontar uma intenção culpada.” (2001, pp. 255 e 257) Ainda
segundo Garapon,

3
Na tradução portuguesa, o termo justiça restaurativa foi traduzido como justiça reconstrutiva. Em inglês,
restorative justice. O autor prefere a tradução “reconstrutiva” à “restaurativa” em virtude da idéia de busca de
reconstrução de uma relação destruída, por um lado, e pelo espírito no qual ela deve fazer-se, por outro, no
sentido de originar-se da noção de “construtivo”. Ainda, salienta que o adjetivo “restauradora” traz consigo a
noção de “um retorno ao idêntico que (...) não está conforme a ambição desta forma de justiça.” (cf. nota n. 1, p.
250) Não desconhecemos essa diferença, mas, para não utilizar dois termos distintos, utilizaremos o termo mais
conhecido, qual seja, justiça restaurativa.
9
a vítima cessa o frente a frente secular entre o criminoso e o príncipe no qual ela
fazia figura de convidada e sobrepõe-lhe um outro entre ela e o criminoso. Ela
obriga assim a repensar a justiça como o local de articulação não entre dois (o
criminoso e o príncipe), mas três protagonistas. (2001, p. 262)

Nesse contexto de enfrentamento do crime, a abordagem do agir criminoso – aquele


atribuível apenas ao humano absolutamente racional, como uma ação intencionalmente
praticada – pode deixar de isolar os demais integrantes do cenário social do sujeito e, assim,
permitir que não se o responsabilize exclusivamente como culpado pelo crime. Não se
pretende desvincular uma ação de seu autor, mas apenas ampliar a abordagem, de forma a
tentar compreender o delito como algo maior e mais complexo do que apenas uma conduta
humana livre e consciente direcionada a determinado fim. Importante esclarecer que
tampouco se pretende punir seus familiares ou demais pessoas que convivem diariamente
com o ofensor.
Isso não significa que tudo será permitido, antes pelo contrário: a identificação de um
determinado contexto para a ocorrência de situações problemáticas complexifica a situação e
permite o abandono de modelo de atribuição de culpa que se quer puro e auto-suficiente, na
busca de outra maneira de pensar tais situações. E é nesse momento que se torna possível
questionar a tradicional diferenciação entre ilícito civil e ilícito penal: a percepção, desde
outros olhares, sobre o significado atribuído a determinadas condutas é, talvez, um dos pontos
centrais a ser ponderado. Como possível conseqüência de uma redução do sistema penal e da
ampliação da utilização de uma justiça restaurativa, em que o foco não é o enquadramento de
uma conduta em determinado tipo penal, mas no dano efetivamente causado, Ezzat Fattah é
taxativo: o foco principal de um sistema restaurativo será a reparação e a compensação do
dano, e afirma que “a distinção arbitrária entre cortes criminais e civis irá desaparecer e (...) as
fronteiras artificiais que foram erigidas ao longo dos anos entre cortes criminais e civis serão
removidas.” (2000, p. 42)
A superação das fronteiras artificiais entre as cortes cíveis e criminais, como refere
Fattah, somente poderão ocorrer caso haja um novo olhar sobre a própria classificação das
condutas danosas – de ilícitos penais para outro tipo de ilícito, precipuamente o civil. Tal
superação permitiria, se bem estruturada, constituir-se em um freio à rotulação do ofensor
como delinqüente; resultar em uma decisão menos danosa individual e socialmente
(diminuiria drasticamente as possibilidades de uma pessoa ser enviada à prisão); e, ainda,
desencadear, ao final, não mais em meras sentenças condenatórias como respostas ao crime,
mas em ações coletivas voltadas para a reparação do dano causado.

10
A Justiça Restaurativa pretende, como se percebe, apoiar-se “no princípio de uma
redefinição do crime. O crime não é mais concebido como uma violação contra o estado ou
como uma transgressão a uma norma jurídica, mas como um evento causador de prejuízos e
conseqüências” (Jaccould, 2005, p. 7), focando a atenção na possível solução do problema
através do diálogo entre as partes (direta ou indiretamente envolvidas: agressor, vítima,
amigos, parentes, pessoas importantes para as partes, etc.). A infração, então, deixa de ser um
mero tipo penal violado e passa a ser vista como advinda de um contexto bem mais amplo, de
origens complexas, e não de uma mera relação de causa e efeito.

4. Considerações Finais.

Segundo Jacques Derrida (2007, p. 30 e 44-45), “o direito não é a justiça. O direito é o


elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se
calcule o incalculável (...).” Ainda segundo o autor, “cada caso é um caso, cada decisão é
diferente e requer uma interpretação absolutamente única, que nenhuma regra existente ou
codificada pode nem deve absolutamente garantir. Pelo menos, se ela a garantir de modo
seguro, então o juiz é uma máquina de calcular (...).”
Para Garapon,

o importante não é tanto estabelecer os erros do passado quanto preparar o futuro,


isto é, permitir a cada um refazer ou continuar a sua vida. Estas duas leis preferem,
de seguida, o acordo à decisão imposta, sempre que possível. O juiz retira-se na
ponta dos pés de certos conflitos, concebendo de futuro a sua intervenção como
subsidiária. A intervenção do terceiro, dramatizada pelo processo, torna-se
secundária em relação a uma justiça do frente a frente. (2001, p. 261)

A mofada pré-determinação via códigos do que é considerado crime e a antecipada


definição da pena de prisão como resposta estatal majoritária à conduta delituosa diluir-se-iam
aos poucos, dando espaço, tempo e lugar às partes para que decidam o que fazer sobre o seu
caso, impedindo que “terceiros” tomem os seus lugares e as suas dores e digam, a partir de
seus locais de vida – evidentemente outros – o que deve ser feito em relação ao episódio.
A análise abolicionista ressalta, conforme Ruggiero (2010, p. 203-4), que a definição
“do que constitui crime, a intervenção da lei e a aplicação de penas ocorrem em cenários
institucionais distantes das situações abordadas.” Com a devolução do conflito às partes,
rompe-se com condutas a priori proibidas para repensá-las apenas a partir da interpretação
dos envolvidos no episódio, de forma a se permitir uma participação ativa dos envolvidos e
suas variáveis subjetivas que, na justiça penal tradicional, não encontram espaço de
valorização. Ainda segundo o autor (2010, p. 205), outro fator que distingue o abolicionismo
11
das demais correntes críticas é justamente a ênfase na participação e na autonomia das partes
na resolução de seus problemas, exatamente como propõem os teóricos da justiça restaurativa.
Não se pretende, com isto, a abolição imediata da justiça penal, mas, quiçá, a sua
significativa redução. A justiça restaurativa, justamente por não ser um produto pronto e
acabado, ainda não tem condições de ter uma pretensão puramente abolicionista, mas nada
impede que seja utilizada com a finalidade de redução da atuação do sistema penal e de toda a
dor que este proporciona às partes. Além disso, pode se constituir em importante ferramenta
para a estruturação de um sistema de justiça criminal que propicie a instauração, entre os
envolvidos, de um verdadeiro encontro.4
Concordamos com Garapon, para quem a justiça restaurativa não se funda nem
exclusivamente no ato delitivo (violação da lei – modelo retributivo), nem na pessoa do autor
visando a sua educação (modelo reabilitativo),

mas no evento do seu encontro, gerador em si mesmo de créditos e débitos novos.


O encontro não se reduz ao acto, que é o evento visto do agente, tal como não
se confunde com o sofrimento, a sua vivência pelo paciente da acção, ou com a
transgressão que lhe é a qualificação abstracta. Nenhuma dessas abordagens lhe
esgota totalmente o sentido.
Com a sua parte de sorte, de imprevisto, de transcendência, com o acidente, a
catástrofe, o encontro transcende a intenção de quem lhe tomou a iniciativa. Tal
como as suas conseqüências para a vítima ultrapassam a unidade do tempo, de lugar
e de acção na qual se queria contudo encerrá-la. Um encontro transborda sempre
sobre si mesmo: é tão imprevisível para a vítima quanto, em certa medida, o é para o
autor. A injustiça nasce aí, nesse mal-entendido da vida, nesta diferença entre a
acção desejada e o drama calhado em sorte, entre duas versões do vivido que não
podem conciliar-se. A justiça saberá encontrar equivalências satisfatórias para saldar
esta conta que o acaso estabeleceu? (2001, p. 269)

Invariavelmente, refere Garapon (2001, p. 313), a ideia central da justiça restaurativa


está na pretensão de atribuir aos principais interessados – vítima, autor e grupo social
diretamente afetado pelo delito – os recursos suficientes para reagir à infração. Já que não é
mais possível “pretender saber a priori melhor que os próprios interessados o que é bom para
eles”, melhor então “despertar as suas competências particulares, adormecidas pelo
paternalismo das instituições.” (2001, p. 318)
O que se quer, portanto, é oportunizar que se construa “uma resposta inteligente ao
pluralismo moral próprio de toda a sociedade democrática” (Garapon, 2001, p. 313), ou seja,
que esse novo modelo de justiça criminal permita pensar a questão para além do anacrônico
modelo causal do crime-castigo.

Referências.
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Conferir SOUZA, 2004.
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