JR e Sistema Penal
JR e Sistema Penal
JR e Sistema Penal
Daniel Achutti*
Resumo: o presente trabalho aponta para a fragmentação da criminologia crítica, e apresenta o abolicionismo
penal como uma das principais críticas ao sistema de justiça criminal. A justiça restaurativa, por sua vez, é
abordada como política criminal concreta, cujos subsídios abolicionistas oferecem suporte teórico importante
para a construção de um novo modelo de administração de conflitos.
Introdução.
*
Advogado Criminalista. Mestre e Doutorando em Ciências Criminais (PUCRS). Professor de Direito Penal no
Unilasalle. Conselheiro do Instituto de Criminologia e Alteridade (ICA). Membro da Comissão de Mediação e
Práticas Restaurativas da OAB/RS. Contato: dachutti@terra.com.br
1
Para tanto, será feita uma pequena revisão bibliográfica de importantes textos
abolicionistas, com a finalidade de apresentar a forma como foram construídas as suas críticas
ao sistema penal, para em seguida ser apresentada a justiça restaurativa, com suas principais
propostas e delineamentos. Ao final, buscaremos averiguar se é possível adotar a justiça
restaurativa como política criminal no Brasil, ainda que não visando à extinção completa do
sistema penal.
2
dita, em que se soma à economia o contexto sociológico, político e cultural na explicação da
delinqüência e do Direito Penal.
Porém, pelas palavras de Anitua (2008, p. 687), “quando parecia que o terreno já
estava pronto para redigir uma agenda alternativa à criminologia tradicional, começou-se a
perceber que a criminologia crítica estava em crise.” Os desdobramentos das propostas
oriundas da criminologia crítica expõem a divisão em que estavam envolvidos os
criminólogos críticos – face às diversas orientações e propostas que sustentavam.
Segundo van Swaaningen (1999, p. 15), na Europa a criminologia crítica se tornou
uma vítima de seu próprio sucesso: muitos dos temas abordados por acadêmicos críticos nos
anos 1960 e 1970 tiveram respaldo legislativo nas duas décadas seguintes, fazendo com que
parte do projeto crítico passasse a integrar o discurso e a política oficial do Estado.
É possível dizer, além disso, que tal crise estava inserida dentro de uma crise maior,
que abrangia grupos e indivíduos no final do século XX, que diante de uma quantidade nunca
antes possível de informações tornavam-se cada vez mais conscientes da dificuldade de
mudar as coisas ou fazer algo como se planeja (Anitua, 2008, p. 684). Nesse contexto, a
criminologia crítica apresentou diferentes respostas à questão penal, cujas distintas bases
epistemológicas naturalmente proporcionariam diferentes propostas.
Em um primeiro momento, três distintas correntes podem ser apontadas como as mais
importantes dentro da criminologia crítica: o abolicionismo penal, o realismo de esquerda e o
garantismo penal. No entanto, a partir de então, tal divisão foi ampliada, de forma que em um
único artigo seria impossível analisar todas as novas divisões. Apenas a título de exemplo,
vale citar a criminologia feminista, a criminologia cultural, a criminologia pós-moderna, a
peacemaking criminology,1 a convict criminology,2 dentre outras. (DeKeseredy e Perry, 2006;
Lilly, Cullen e Ball, 2007; DeKeseredy, 2011).
Dentro da proposta deste trabalho, apenas alguns textos abolicionistas serão
analisados, a fim de possibilitar a posterior análise de seus conteúdos e seus reflexos na
estruturação da justiça restaurativa.
1
“Criminologia pacificadora”, em tradução livre.
2
“Criminologia do apenado”, em tradução livre.
3
Serão utilizados três trabalhos de autores fundamentais do abolicionismo, que
delineiam as críticas do sistema formal de justiça criminal e expõem as principais pretensões
do movimento: “As Políticas da Abolição” (The Politics of Abolition – 1974), de Thomas
Mathiesen; “Conflitos como Propriedade” (Conflicts as Property – 1977), de Nils Christie; e
“Criminologia Crítica e o Conceito de Delito” (Critical Criminology and the Concept of
Crime – 1986), de Louk Hulsman. Vários outros artigos e livros poderiam ser citados, mas
estes três são suficientes para as pretensões do presente trabalho.
Talvez o conceito mais citado de justiça restaurativa seja o de Tony Marshall, que a
define como “um processo através do qual todas as partes envolvidas em uma ofensa
particular se reúnem para resolver coletivamente como lidar com a conseqüência da ofensa e
as suas implicações para o futuro.” (1996, p. 37).
Na justiça restaurativa, (a) a vítima poderá participar dos debates envolvendo o
conflito; (b) o procedimento poderá não resultar em prisão para o acusado, mesmo que ele
venha a admitir que praticou o delito e provas robustas corroborem a confissão; (c) há a
possibilidade de realização de um acordo entre as partes; e (d) os atores jurídicos
especializados deixarão de ser os protagonistas, abrindo espaço para um enfrentamento
interdisciplinar do conflito; dentre outras características.
Vale o registro de André Gomma de Azevedo, para quem
8
restaurando as perdas materiais e morais das vítimas e providenciando uma gama de
oportunidades para diálogo, negociação e resolução de questões. (2005, p. 6)
3
Na tradução portuguesa, o termo justiça restaurativa foi traduzido como justiça reconstrutiva. Em inglês,
restorative justice. O autor prefere a tradução “reconstrutiva” à “restaurativa” em virtude da idéia de busca de
reconstrução de uma relação destruída, por um lado, e pelo espírito no qual ela deve fazer-se, por outro, no
sentido de originar-se da noção de “construtivo”. Ainda, salienta que o adjetivo “restauradora” traz consigo a
noção de “um retorno ao idêntico que (...) não está conforme a ambição desta forma de justiça.” (cf. nota n. 1, p.
250) Não desconhecemos essa diferença, mas, para não utilizar dois termos distintos, utilizaremos o termo mais
conhecido, qual seja, justiça restaurativa.
9
a vítima cessa o frente a frente secular entre o criminoso e o príncipe no qual ela
fazia figura de convidada e sobrepõe-lhe um outro entre ela e o criminoso. Ela
obriga assim a repensar a justiça como o local de articulação não entre dois (o
criminoso e o príncipe), mas três protagonistas. (2001, p. 262)
10
A Justiça Restaurativa pretende, como se percebe, apoiar-se “no princípio de uma
redefinição do crime. O crime não é mais concebido como uma violação contra o estado ou
como uma transgressão a uma norma jurídica, mas como um evento causador de prejuízos e
conseqüências” (Jaccould, 2005, p. 7), focando a atenção na possível solução do problema
através do diálogo entre as partes (direta ou indiretamente envolvidas: agressor, vítima,
amigos, parentes, pessoas importantes para as partes, etc.). A infração, então, deixa de ser um
mero tipo penal violado e passa a ser vista como advinda de um contexto bem mais amplo, de
origens complexas, e não de uma mera relação de causa e efeito.
4. Considerações Finais.
Referências.
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos Pensamentos Criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
4
Conferir SOUZA, 2004.
12
AZEVEDO, André Gomma. O Componente Mediação Vítima-Ofensor na Justiça Restaurativa: uma breve
apresentação de uma inovação epistemológica na autocomposição penal. In: BASTOS, Márcio Thomaz;
LOPES, Carlos; e RENAULT, Sérgio Rabello Tamm (orgs.). Justiça Restaurativa: coletânea de artigos.
Brasília: MJ e PNUD, 2005.
CHRISTIE, Nils. Conflicts as Property. In: The British Journal of Criminology, vol. 17, n. 1, 1977.
DEKESEREDY, Walter S. Contemporary Critical Criminology. Londres e Nova York: Routledge, 2011.
DEKESEREDY, Walter S.; PERRY, Barbara (orgs.). Advancing Critical Criminology: theory and application.
Oxford: Lexington Books, 2006.
DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
FATTAH, E. Victimology: past, present and future. In: Criminologie, vol. 33, n. 1, 2000.
GARAPON, Antoine; GROS, Frédéric; PECH, Thierry. Punir em Democracia. E a justiça será. Lisboa: Piaget,
2001.
HOYLE, Carolyn; CUNNEEN, Chris. Debating Restorative Justice. Oxford e Portland: Hart Publishing, 2010.
HULSMAN, Louk. Critical Criminology and the Concepto of Crime. In: Contemporary Crises (atualmente,
Crime, Law and Social Change), vol. 10, n. 1. Amsterdam: Elsevier, 1986.
HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas: o sistema penal em questão. 2. ed. Niterói:
Luam, 1997.
LARRAURI, Elena; MOLINÉ, José Cid. Teorías Criminológicas. Explicación y prevención de la delincuencia.
Barcelona: Bosch, 2001.
LILLY, James Robert; CULLEN, Francis; BALL, Richard. Criminological Theory: context and consequences.
Londres: SAGE, 2007.
MARSHALL, Tony. The Evolution of Restorative Justice in Britain. In: European Journal on Criminal Policy
Research, vol. 4, n. 4. Heidelberg: Springer, 1996.
MATHIESEN, Thomas. The Politics of Abolition. In: Contemporary Crises (atualmente, Crime, Law and
Social Change), vol. 10, n. 1. Amsterdam: Elsevier, 1986.
MELO, Eduardo Rezende. Justiça Restaurativa e seus Desafios Histórico-Culturais. Um ensaio crítico sobre os
fundamentos ético-filosóficos da justiça restaurativa em contraposição à justiça retributiva. In: BASTOS,
Márcio Thomaz; LOPES, Carlos; e RENAULT, Sérgio Rabello Tamm (orgs.). Justiça Restaurativa: coletânea
de artigos. Brasília: MJ e PNUD, 2005.
RUGGIERO, Vincenzo. Penal Abolitionism: a celebration. Oxford: Oxford University Press, 2010.
SOUZA, Ricardo Timm de. Ética como Fundamento. Uma introdução à ética contemporânea. São Leopoldo:
Nova Harmonia, 2004.
TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; e YOUNG, Jock. The New Criminology: for a social theory of deviance.
Londres: Routledge and Kegan Paul, 1973.
VAN SWAANINGEN, René. Reclaiming Critical Criminology: social justice and the European tradition. In:
Theoretical Criminology, vol. 3, n. 1. Londres: SAGE, 1999.
WALGRAVE, Lode. Restorative Justice, Self-interest and Responsible Citizenship. Cullompton (Reino Unido) e
Portland (EUA): Willan Publishing, 2008.
13