Teologia Bíblica Ou Teologia Sistemática - D A Carson
Teologia Bíblica Ou Teologia Sistemática - D A Carson
Teologia Bíblica Ou Teologia Sistemática - D A Carson
ou Teologia
Sistemática?
Unidade e diversidade
no Novo Testamento
Donald A. Carson
tradução
Carlos Osvaldo Pinto
CIE
VIDA NOVA
Sumário
Prefácio ..................................................................... 7
3. Crítica .......................................................... 29
Conclusão ............................................................. 85
Prefácio
Julho de 2001
BÍBLI('A ()
VE0LOGLA U TEOLOGIA SISTEMA 1-1( A? I>ErIUI(,,Ao im (~uts rÃO
É importante apreender as proporções deste dilema desembaraçá-las. Meu objetivo mais modesto é focalizar um
moderno. Em seu centro se acham várias pressuposições fir- número de obras representativas, primeiro descrevendo-as e
memente entrelaçadas: depois criticando-as, para finalmente oferecer algumas refle-
xões úteis ao estudante que esteja convencido de que os docu-
1. O Novo Testamento está cheio de contradições; mentos do NT são nada menos que a Palavra de Deus e que,
2. o NT abarca muitas perspectivas teológicas diferentes no entanto, não possa deixar de, por amor à integridade, lutar
que não podem ser organizadas num sistema único; com sua diversidade substancial. Por conveniência, eu me
3. sua diversidade não é apenas lingüística, mas conceituai; limitarei, principalmente, ao NT, embora uma análise semelhante
4. é constituído de documentos escritos dentro de um pudesse ser estendida para a Bíblia como um todo. Não tratarei
intervalo de tempo de tal modo prolongado que de- diretamente da questão de se um Deus transcendente e pessoal
senvolvimentos significativos tornaram obsoletas as pode usar as línguas de homens finitos,' ou lidar com
posições teológicas dos documentos mais antigos. desenvolvimentos hermenêuticos atuais que exigem uma
dicotomia entre o propósito do autor e a compreensão do leitor.'
A conclusão a derivar-se deste leque de proposições é Tais questões, embora relacionadas a esta investigação, são
que uma teologia sistemática do NT é impossível, e muito suficientemente complexas para merecer estudo separado.
mais impossível uma teologia que abranja ambos os Testa - Podemos começar com proveito pelo livro extremamente
mentos. Nesse sentido, não se pode falar legitimamente de influente de Walter Bauer, Orthodoxy and Heresy in Earliest
"teologia do NT" mas apenas de "teologias do NT". A pri - Christianity ("Ortodoxia e Heresia no Cristianismo Mais
meira categoria, "teologia do NT", pode ser considerada uma Primitivo"). 4 A questão que Bauer propõe a si mesmo é se a
designação apropriada para a disciplina de estudar tal teologia igreja desde cedo abraçou um conjunto de doutrinas que a
na medida em que ela pode ser encontrada no NT, mas não capacitava a rejeitar falsas crenças, ou se a distinção entre
para uma suposta estrutura unificada de fé teísta. Como resul- ortodoxia e heresia é um fenômeno bem mais recente. Meto-
tado, não é muito surpreendente que das dez principais dologicamente, Bauer abandona a evidência do NT, por ser
teologias do NT publicadas entre 1967 e 1976, não haja ela muito contestada, e conduz seus leitores em um sobrevôo
concordância entre quaisquer dois dos autores quanto a natu- alucinante ao cristianismo do segundo século. Ele conclui
reza, escopo, propósito ou método da disciplina.' que, desde o princípio, as igrejas, assim chamadas hereges e
Não é meu propósito discorrer aqui sobre o surgimento ortodoxas existiram lado a lado, estando as últimas na iiiii),,t 1;1;
destas tendências. Suas raízes aprofundam-se na história até as razões pelas quais os grupos "ortodoxos" evenm ilim- nic
o período do Iluminismo; meu conhecimento de seu cresci - venceram têm menosavercomumaincoml)atibilidmi
mento é suficiente apenas para assegurar-me de que não possuo gica percebida pela igreja do que coni o ( I i i(- I I 11
i 111111.
conhecimento suficientemente detalhado da história para mar de política. A implicação de i udu , C 1 1 111 1111 111— 11
11 3 1
11 2 1
TE O L O G IA B ÍB L IC A 0 1 ; T EO L O G IA S IS TEM Á TIC A ? D EF IN IÇ Ã O D A ( ? L TS ' F A O
cristianismo do primeiro século não era diferente: crenças pro- composta";10 em algum nível tal disjunção é indubitavelmente
fundamente diferentes e até mesmo mutuamente exclusivas falsa. Outro autor nos afirma que "o NT é o repositório de
eram toleradas sem constrangimento. muitos kérygmas, não de apenas um"," enquanto que um ter-
Esta reconstrução da história mais antiga da Igreja é ceiro diz que há muitas contradições nas Escrituras porque
muito popular entre os estudiosos contemporâneos do NT. elas constituem "um auxílio no estabelecimento de cronologia e
Exerceu enorme influência sobre Bultmann e seus discípulos, mas no discernimento de fontes e do desenvolvimento das
em graus diferentes o seu impacto se fez sentir em círculos muito tradições, sendo assim um auxílio na reconstrução histórica
mais amplos. No apêndice à edição de 1964 do livro de Bauer, em geral"."
G. Strecker levou o argumento mais adiante e concluiu que o Esta reconstrução crítica da história da igreja primitiva,
cristianismo judaico do primeiro século não era apenas diferente, associada com outros desenvolvimentos que igualmente depre-
mas, por padrões "ortodoxos" mais recentes, herético.' Um ponto ciam a veracidade do Novo Testamento, gerou inumeráveis
de vista semelhante é defendido no livro recente de Elaine Pagel, obras que exploram a natureza da teologia do NT. A perda de
onde se argumenta que as opções teológicas dos primeiros dois confiança na unidade do NT estende-se amplamente para
séculos, finalmente condenadas como heresias, não haviam sido trás," mas os resultados estão bem presentes conosco. Os
tão levianamente consideradas em sua própria época e deveriam, estudiosos hoje perguntam se a teologia do NT é possível, 14
portanto, ser novamente exploradas como opções para nossos dias criam critérios esotéricos, restritos e extra -bíblicos para
.6 E. P. Sanders pressupõe que à certa altura as divisões entre o determinar o que incluir em tal teologia,` ou, no caso de
"herético" e o "ortodoxo" começaram a surgir, mas que esta teólogos católicos romanos, apelam francamente à autoridade da
"mudança na conscientização da comunidade cristã" não igreja católica como a única saída para o dilema. 16
ocorreu até o segundo ou terceiro século.' Stephen S. Smalley A solução proposta por Gabler para a crise epistemo -
examina o evangelho e as epístolas de João e conclui que lógica do pós-Iluminismo, isto é, distinguir com nitidez entre
mesmo ali existe grande diversidade, a tal ponto que este teologia sistemática e teologia bíblica, dando à última o 'tatus
conjunto de documentos "mal pode ser considerado de disciplina histórica," falhou em grande medida. O
conscientemente ortodoxo ou herético; não é uma coisa nem movimento da teologia bíblica teve o seu momento de glória
outra".8 entre 1930 e 1960, aproximadamente, mas o seu declímo J Á
Em resumo, a obra de Bauer estabeleceu uma nova orto- foi registrado." Mesmo aqueles que insistem choros a i11c111 c
doxia crítica quanto a este assunto, e estudos recentes costu- que o obituário é prematuro19 não oferecem soluço( , -
mam seguir sua orientação.' De tal perspectiva, não é difícil pois, na realidade, ao movimento sempre f`ali(m im id.id, 1 , b
excluir a possibilidade de uma teologia sistemática baseada foi útil para encorajar estudos específicos em •1 '. 1i11 W.1,
nos documentos do NT. Um autor nos diz que "a Bíblia não é das Escrituras, mas foi em grande m(-did., m, 1p.I., .1. f,111 ti
um escrito unificado, mas uma obra literária de natureza u m c o n s e n s o q u a n t o ao ( l u - (Icv( -ii.i ., i 1 ,i• li, wj- 1.
1 14 1 1 F M A ) W A RíBLIcA o I -i - Louw],N OEF IN IÇÁO DA QU ESFÃO 1 151
Seus defensores não podiam sequer concordar que "teologia" Não se deve pensar que vozes positivas não se tenham
era um termo apropriado, já que isso implica num sistema feito ouvir. Ronald A. Ward insiste no fato de que o NT
coerente, pelo menos dentro de cada corpo literário. apresenta um plano unificado de salvação." A teologia do
A doença é profunda. Estudiosos da Bíblia mais sensíveis NT escrita por Ladd teve uma ampla circulaç ão,21 mas apesar de
chegaram a reconhecer que a falta de confiança na unidade tratar admiravelmente a vastíssima literatura disponível e
do NT compreende um método arbitrário de escolha no que habilmente delinear os temas principais em cada obra que faz
tange à pregação; e freqüentemente é a pregação que revela parte do NT, Ladd sequer tenta apresentar a prometida
nossa teologia mais profunda. Ernst Kãsemann advoga um unificação 'dos resultados de sua teologia. A resenha dos
"cânon dentro do cânon 11,20 mas não há possibilidade de esta- problemas relativos à teologia do NT empreendida por Hasel é
belecer critérios amplamente apoiados para delinear tal "mini_ extraordinariamente úti1,27 mas quando se trata de delinear a
cânon". Com todo seu radicalismo, Kãsemann mostra~ se unidade do NT ele é surpreendentemente hesitante .21 O
perturbado pela falta de controles e comenta, em outro lugar, centro do NT, diz ele, é simplesmente o próprio Jesus .21 Esta
numa frase freqüentemente citada: "A maior virtude do histo- declaração é bem verdadeira, mas sequer chega a atacar o
riador e o começo de toda hermenêutica significativa é, para problema à nossa frente. R. P. Martin, num artigo recente,
mim, a prática do ouvir, que começa simplesmente ao se analisa o campo e escolhe usar "Paulo e seus discípulos" como a
permitir que o que é historicamente estranho mantenha sua pedra de esquina (com tal rótulo ele consegue incluir toda a obra
validade sem considerar o estupro como a forma básica de paulina, embora negue autoria paulina a alguma das
relacionamento" .21 O problema é que Kãsemann continua a epístolas atribuídas a Paulo);` quando se pergunta em que
praticar estupro, se não como a forma básica, pelo menos base Paulo foi selecionado, a resposta é: "Paulo se agiganta
como uma forma primordial de relacionamento. Mesmo um sobre o terreno da comunidade apostólica – no que podemos
crítico razoavelmente conservador como Peter Stuhlmacher depreender dos documentos preservados – como o grande
quer estar aberto "à possibilidade de transcendência" e a todo defensor da iniciativa divina na salvação"." O tema a buscar é
método e toda verdade, mas não pode se forçar a aceitar tudo que reconciliação, "encontrado principalmente em Paulo, mas
o NT diz porque este inclui (segundo ele) numerosas abrangendo todos os estágios da trajetória que corre desde o
co ntrad ições – co mo aquela entr e P aulo e T iago ." O cristianismo pré-paulino, passando pelo apóstolo e chegamio a
resultado final de tais hesitações é uma subjetividade profun- seus discípulos no período pós-paulino"." Não se podc
damente perturbadora, uma subjetividade que entre alguns deixar de imaginar em que base tais escolhas foram 1c11.1..
estudiosos do NT apresenta uma estrutura francamente Nenhuma defesa exegética ou teológica é olí-ict 1,Li P,,1 (pis não
ateísta." No frigir dos ovos, o único tipo de autoridade de escolher um tema totalmente distinto'
que o NT pode desfrutar em tal clima é uma espécie de Este capítulo tem por objetivo d(-11n(-m -i — 111
Definições de trabalho
À luz de tais ambigüidades, alguns têm defendido a suas conexões lógicas (não apenas histór1icas), dando pleno
idéia de que o termo "teologia bíblica" deveria ser usado para reconhecimento à história da doutrina, ao clima intelectual e
se referir a qualquer teologia que busque ser fiel à Bíblia e às categorias e indagações contemporâneas, tendo sua base de
relacionar honesta e corretamente as partes umas às outras autoridade final nas Escrituras, propriamente interpretadas.
usando categorias biffilicas.' Em contraste, "teologia sistemática" Teologia sistemática lida com a Bíblia como um produto pronto.
emerge do estudo das Escrituras quando estruturas filosóficas a Estas definições não evitam superposição: a teologia
elas estranhas são empregadas' ou, em outra posição, bíblica precisa ser sistemática, mesmo que focalize o lugar e
quando a teologia bíblica pura é aplicada a uma cultura o significado históricos de um segmento específico da Bíblia;
posterior, com seus problemas e suas questões.' Alguns e a teologia sistemática, se depender de exegese honesta, deve
preferem eliminar por completo a categoria "teologia forçosamente depender de considerações históricas. As distin-
sistemática" e usar "teologia bíblica" como referência a todos ções que estabeleci são suficientemente claras e não são novi-
os itens acima, exceto a teologia que incorpora categorias dade." Warfield oferece uma analogia que, a despeito de seus
filosóficas alheias, pois a consideram ilegítima.' Outros limites, vale a pena repetir:
sentem-se à vontade com "teologia sistemática", mas gos -
tariam de substituir "teologia bíblica" por "história da reve - 0 trabalho imeditado da exegese pode ser comparado ao
lação especial" ou expressão semelhante.' trabalho de um oficial de recrutamento: da massa de cida -
dãos, ele seleciona os homens que vão constituir o exército. A
Meu uso pessoal destes rótulos pode ser definido breve- teologia blíblica organiza tais homens em companhias, regi -
mente. Primeiramente, embora "teologia" possa se relacionar a mentos e batalhões, dispostos em ordem de marcha e equipa~
todo o escopo dos estudos religiosos,' eu o uso mais restritamente dos para o serviço.
como referência ao estudo do que as Escrituras dizem. Isto inclui
exegese e crítica histórica, a análise dos requisitos do método e A teologia sistemática combina tais companhias e regi-
da epistemologia, bem como a apresentação dos dados bíblicos mentos, formando um exército — um todo único e singular
de forma ordenada. Excluo, portanto, apologética e ética, determinado por seu próprio princípio abrangente. Tal exército
exceto na medida em que tais tópicos sejam tratados nas também é formado por homens, os mesmos recrutados pela
Escrituras.' Por "teologia bíblica', entendo aquele ramo da exegese, mas não é composto deles como indivíduos, mas em
teologia cuja preocupação é estudar cada segmento das seu relacionamento devido aos outros homens de suas com-
Escrituras individualmente, especialmente quanto ao seu lugar na panhias e regimentos e batalhões. A símile está longe de ser
história da revelação progressiva de Deus. A ênfase de tal estudo perfeita, mas pode ilustrar as relações mútuas das discip1111AS
recai sobre a história e o segmento específico. Por "teologia e, além disso, sugerir o elemento histórico que estã
sistemática", entendo aquele ramo da teologia que visa teologia bíblica e o elemento de sistematização
elaborar o todo e as partes da Escritura,' demonstrando que é inseparável da teologia sistemáti(-:i.''
1
1 24 1 1 L ' U M ( IC I A 1 1, 1 W I CA O U 1 E 0 L M . i A S I ' , T E M Ã 1 W A ? D I S I N I Ç O F S D E I S AB M A I 0 1 25 1
Sem sombra de dúvida, a símile é fraca em vários pontos. Uma vez aceita a coerência interna de cada segmento, é
Todos os recrutas são absorvidos pelo exército e este, no que teoricamente possível desenvolver uma teologia bíblica para
diz respeito ao material humano, nada mais é que a soma de cada segmento e ainda assim deixar de encontrar o consenso
seus recrutas. Em contraste, nem todo pedaço de material necessário a uma teologia sistemática. Se, contudo, uma
exegético acaba na teologia sistemática; no entanto, como teologia sistemática for possível, a própria teologia bíblica
veremos, teologia sistemática pode ser, a certa altura, mais do assume uma nova dignidade, pois uma conseqüên cia da
que a soma dos dados exegéticos. Várias outras distinções me teologia sistemática seria a certeza de que os segmentos
vêm à mente, mas se a analogia, como qualquer outra, tem os constituintes são coerentes, desde que corretamente organizados
seus limites, serve também para esclarecer a distinção entre na estrutura histórica da teologia bíblica.
teologia bíblica e teologia sistemática. Se as definições e relacionamentos que esbocei perma-
Segue-se, portanto, que questões relativas à unidade e necerem de pé, segue-se que a legitimidade de buscar uma
diversidade do NT afetam tanto a teologia bíblica quanto a teologia sistemática depende da unidade do NT. A ampla
teologia sistemática. Por exemplo, se for argumentado que diversidade existente não pode, portanto, envolver contradição
um autor ou livro é incoerente devido a alguma omissão, redação lógica ou histórica. Por outro lado, se a diversidade do NT é
posterior, incorporação de fontes incompatíveis, ou qualquer tão dramática quanto freqüentemente se alega, deveríamos
coisa semelhante, é impossível desenvolver uma teologia bíblica imediatamente abandonar a busca de uma teologia sistemática, e
daquele segmento das Escrituras. No máximo, pode-se aqueles que escrevem teologia deveriam dizer-nos por que
praticar a disciplina de teologia bíblica e demonstrar assim que critérios escolhem incluir este ou aquele dito e fazer este ou
aquele segmento apresenta teologias bíblicas divergentes. aquele julgamento de valores.
Semelhantemente, a possibilidade de se desenvolver uma
teologia sistemática depende de se determinar que nenhum
dos livros do NT é incoerente (seja tal coerência demonstrada
em categorias lógicas, históricas, funcionais ou quaisquer
outras). Se houver uma incoerência intransponível, então a
disciplina "teologia sistemática" pode permanecer, mas nenhuma
teologia sistemática como produto final será possível. O
sistematizador estaria livre para escolher quais elementos entre
os dados bíblicos ele preferisse. O sistema resultante não seria,
cm sentido básico, ditado pelas Escrituras, mas seria moldado
por considerações externas, e os dados bíblicos seriam pouco
mais que blocos desconexos de construção.
Capítulo 3
Crítica
I
1 32 1 1 , 1 0 1 - MI JA oi t i I s, 1 r , \ I Á CRI T I CA 1 33 1
1
mutuamente incompatíveis e que não se percebia a existência divina, da sabedoria e do poder criativos de Deus jamais tor-
de uma tensão fundamental entre ortodoxia e heterodoxia. A nados realidade na história; que o cristão é aceito por Deus e
característica unificadora básica, segundo Dunn, é o reco- capacitado a amar a Deus e ao seu próximo por aquela mes-
nhecimento comum da unidade entre Jesus, o homem, e Jesus, ma graça que agora reconhecemos ter o caráter daquele mesmo
Jesus. Esta convicção (expressa nestas palavras ou em termos
o exaltado. Dunn tende a alardear esta percepção como se
alternativos) parece ser o mínimo irredutível sem o qual o
fosse um achado sensacional, uma descoberta gloriosa; o valor "cristianismo" perde qualquer definição distinta e se torna
desta confissão minimalista, todavia, é consideravelmente numa panela vazia em que qualquer pessoa pode colocar o
mitigado por sua observação de que o modo de tal unidade sentido que melhor desejar. Exigir, todavia, alguma elabora-
entre Jesus, o homem, e Jesus, o exaltado, é bastante disputado ção específica de tal convicção como se fosse uma norma, in-
e incerto. sistir que alguma afirmação posterior ou uma forma particular
das palavras também seja fundamental, significaria ir além
A questão crucial que procede de tudo isso diz respeito
daquele unificante cânon dentro do cânon, erigir um cânon
ao cânon. Que autoridade podem exercer os documentos do sobre uma ou duas linhas dentro do NT e não mais sobre o
NT se a reconstrução de Dunn estiver correta? Dunn nega amplo consenso dos escritos do NT como um todo. Fazer isso
que os escritos do NT sejam "canônicos por terem sido mais traria divisão em vez de unidade. Significaria traçar a circun-
inspirados que outros escritos cristãos mais recentes".11A ferência da diversidade aceitável muito mais apertada do que
evidência, argumenta, demonstra, isto sim, que as primeiras autorizam os escritos canônicos."
comunidades cristãs funcionavam, com efeito, cada uma com
Confesso que não reconheço muito do evangelho cris-
seu próprio "cânon dentro de cânon", e que, portanto, o que o
tão neste resumo. Ao invés de perceber verdades complemen-
NT faz é estabelecer a validade da diversidade. "Afirmar o
tares nas várias partes do cânon, Dunn se contenta em buscar o
cânon do NT", diz Dunn, "é afirmar a diversidade do cristia-
mínimo denominador comum. O resultado é um "evangelho" que
nismo"." O NT pode também estabelecer os limites de uma
não faz menção do pecado, não ressalta a encarnação ou a
diversidade legítima, mas o que Dunn quer fazer, por admissão
expiação, que apresenta Jesus primordialmente como um
própria, é servir como um intermediário entre o liberalismo
"paradigma" em vez de Salvador (por que não ambos?) e que
e o conservadorismo, desafiando ambos os lados a reconhecer
não tem a apoiá-lo outra autoridade senão o que pode ser res-
a legitimidade do outro. Com este fim em vista, ele tenta
gatado da reconstrução histórica feita por Dunn. Tudo isso 111
formular a mensagem cristã essencial, irredutível:
leva a imaginar por que sua reconstrução deveria ser roiside rada
O cristianismo começa com, e em última análise depende de, mais digna de respeito do que a de qualquer outrorui I
uma convicção de que em Jesus ainda temos um paradigma cuja predisposição fosse descartar a maior parte (Li 1 , 1
para a relação entre o homem e Deus e a relação do homem Isto não significa que o livro de Dunn a icidi.i ( 1 1 1 . 1 1 4 1 1 1 ,
com o homem; que na vida de Jesus, na sua morte e vida além característica louvável. Dunn exibe uma im el-iv(1 mil,iiiiiI,
,
da morte, vemos a mais clara e plena materialização da graça de erudição, conhecimento sólido da 1 1 1 v 1 . 1 1 1 1 1 • 1 . ( ,k 1.1.
1 34 1 TE O L O G IA B í B L IC A O U TEO L O G I A S IS TEM Á TIC A ? CRí FICA 1 35 1
uma clareza admirável e rara felicidade de expressão. Infe- eliminando assim parte substancial da evidência. O kérygma
lizmente, porém, o manejo de material que impressiona o de Jesus, segundo os evangelhos sinóticos, é depois resumido
leitor por sua amplitude é simultaneamente uma compreensão em várias afirmações. Em primeiro lugar, Jesus proclamou o
desfigurante que, como disse o mais arguto dos críticos de reino iminente de Deus, mas estava enganado, pois suas
Dunn, "resulta ao mesmo tempo em indigestão e em gene- expectativas não se materializaram. Em segundo lugar, Jesus
ralizações aparentemente arrogantes e tratamentos unila- exigiu arrependimento e fé (em Deus, não em Si mesmo)
terais". 14 Para citar apenas um de dezenas de exemplos, Dunn "em face do poder de Deus e de Suas reivindicações escato-
conclui, depois de uma discussão de apenas três páginas, que lógicas"." Em terceiro lugar, Jesus ofereceu perdão e partici-
Jesus não era, em seu próprio ensino, o objeto da fé — uma pação no banquete messiânico da era por vir, e edificou sobre
conclusão a que ele chega por ignorar deliberadamente a maior isto o corolário ético do amor.
parte da evidência contida nos evangelhos e por descartar o Tenho certeza de que a ortodoxia crítica ficará satisfeita,
restante como anacrônico. mas o desplante é assombroso mesmo assim. Dunn não discute
Muitos dos que resenharam criticamente o livro de Dunn aqui as parábolas, com sua ênfase evidente na graça (e.g., servos
destacam não apenas os pontos fortes, mas também suas convocados em horas diferentes) e seu quadro de uma demora
fraquezas cíclicas," e estas não precisam ser repetidas aqui. antes da Parousia (e.g., trigo e joio). Ele se cala com respeito
O que pode ser mais útil neste ensaio é focalizar brevemente à ceia do Senhor e sua postura futurística em relação à morte
um capítulo, como amostra do argumento de Dunn, e oferecer de Cristo e à continuidade da recordação dessa morte pela
algumas sugestões como possíveis avenidas de refutação. O comunidade (antes da Parousia: "até que eu venha"!); com
escopo desta breve seção não permite oferecer detalhes respeito a pronunciamentos específicos cheios de rico signi-
rigorosos, mas a forma da confrontação pode ser delineada ficado (e.g., Mc 10.45, o chamado pronunciamento do resgate);
com precisão. com respeito à aceitação de adoração; à absoluta falta de
No segundo capítulo, intitulado "kérygma ou kérygmata?" consciência de pecado combinada com a disposição e a capa-
Dunn tenta demonstrar a diversidade de kèrygmata no NT. O cidade de perdoar pecados; às referências específicas à Sua
método que Dunn adota é "fazer uma vista aérea das mais igreja em Mateus; às dúzias de passagens em que se presume
importantes proclamações do evangelho no NT, concen- a continuação da comunidade e muito mais. Dunn trata de
trando-se em coletar os traços característicos de cada kérygma" alguns desses temas em outras partes, mas não os trata como
(Será que tal fraseologia já não prejulga a questão?), "ao invés se tivessem qualquer referência a uma compreensão do
de tentar um tratamento plenamente equilibrado do todo"." kérygma de Jesus. Eliminando assim boa parte da evidêncIA
Dunn começa com a proclamação de Jesus. Ele exclui a como anacrônica e dividindo as seções dos evangelhos ,111()
evidência do quarto evangelho, porque este não usa as palavras ticos em categorias mutuamente exclusivas, 1)111111 1
i<qpóaaw, Kqpúy[la, EuayyExí~opal ou E:UC(Yy~XI0V,17 sua conclusão minimalista. Além disso, não explorai
1 36 1 TEOLOGIA BÍBLICA OU TEOLOGIA SISTEMÁTICA? (SíTICA 1 37 1
de Jesus na história da salvação, nem as conseqüências que tal E será verdade que Lucas não apresenta uma teologia
exploração possa ter na maneira pela qual Jesus se expressou. da morte de Cristo? Dunn reconhece os lugares em que se faz
Dunn prossegue, então, considerando o kérygma de Atos. referência à morte de Jesus, mas sempre encontra outra expli-
Afirmativamente, diz Dunn, o kérygma de Atos proclama a cação para tal fato. Mesmo Atos 20.28 é rejeitado, "porque
ressurreição de Jesus e a necessidade de uma resposta marcada permanece mais que um pouco obscuro e mistificante" .20 O
por arrependimento e fé em Jesus, com as promessas de perdão, tratamento deste assunto por W. J. Larkin, que dá alguma
salvação e do Espírito. Negativamente, Atos é caracterizado indicação da teologia da expiação pressuposta em Lucas-Atos
pela ausência de qualquer teologia da morte de Jesus e da é altamente preferível .2' E se Larkin e outros estiverem certos,
tensão entre cumprimento e consumação ("ausência absoluta", então Atos 20.28 pode ser inserido no texto casualmente e
diz Dunn)19 e por uma cristologia "subordinacionista". Dunn sem comentário precisamente porque era um artigo de fé
insiste em que o estímulo à fé em Jesus ao invés de em Deus comumente aceito. Dunn repetidamente nos adverte contra
já é um desvio da pregação de Jesus. Como vimos, porém, ele impingirmos todo o pensamento de Gálatas e Romanos a
já havia eliminado a evidência relevante ao assunt o nos passagens de Atos (e.g., 5.30 e 10.39), e sua advertência é
evangelhos. É verdade que há mais ênfase na fé em Jesus em válida. Força de tal modo sua proposta, que acaba por adotar
Atos que nos evangelhos, mas isto se deve amplamente à nova uma postura metodo- logicamente indefensável. Será que é
perspectiva trazida pela cruz, pela ressurreição e pela exaltação sempre necessário dizer-se tudo sobre doutrina? Será que o
de Jesus; a posição na história da salvação era então mais silêncio ou a ausência de ênfase significam ignorância ou desa-
avançada, e já se tornara mais claro quem Jesus de fato era. cordo? Do ponto de vista de uma metodologia histórica digna
Na verdade, Atos revela uma compreensão crescente das impli- de crédito, não se poderia argumentar que referências alusivas a
cações da morte e ressurreição de Jesus, implicações progressi- uma doutrina explicitamente exposta em outra obra pressupõem
vamente desenvolvidas por meio da pregação inicial, do tal doutrina com a mesma facilidade que supostamente
ministério de Estêvão, da admissão dos samaritanos e dos negariam tal doutrina? Será que Lucas focaliza mais aten -
gentios, uma conscientização crescente em relação ao AT e tamente a ressurreição do que a expiação precisamente porque
assim por diante; mas Dunn, a esta altura, ignora tais pers - está tão interessado no tema do testemunho e no papel que
pectivas importantíssimas na história da salvação. O Espírito é este desempenhou na pregação inicial? (Os apóstolos podiam
prometido ao crente, ele afirma, mas não considera como testemunhar da morte de Cristo e do Cristo ressurreto, mas
este dom bendito é derramado em Pentecostes como um clímax não, no sentido mais profundo, da expiação de Cristo.) Não
da promessa, e como pelo menos manifestações posteriores haverá significado no fato de que o Lucas que escreveu Atos
têm a ver com a validação da recém-conversa comunidade também escreveu Lucas 21.28; 24.21 ?22 Será que este fato
perante a Igreja-mãe em Jerusalém. Como pode alguém tratar não provoca suspeitas de que pelo menos parte do relativo
legitimamente do kérygma de Atos sem considerar tais tópicos? silêncio quanto à expiação em Atos não procede de ignorância
1 38 1 TEOLOG IA BíBL ICA OU TEOLOG IA SIS F EMÁ1 ICA? CRÍTICA 1 39 1
Reflexões positivas
1. Primeiramente, é importante reconhecer que virtualmente que conflita abruptamente com seu próprio sistema, isto
qualquer pessoa que não seja um ateu adota algum tipo de evocará uma reação negativa, mesmo se tal estrutura for apre-
teologia sistemática. sentada por meio de imagens.
O que isto significa é que não convém a ninguém zombar
Isso não equivale a dizer que toda teologia sistemática da teologia sistemática ou minimizar sua importância, pois o
é boa, útil, equilibrada, sábia ou bíblica; nada afirma além próprio zombador inevitavelmente abraça algum tipo próprio
do fato de que a maioria das pessoas adota algum tipo de de teologia sistemática. Uma discussão relevante, portanto, não
teologia sistemática. questiona a legitimidade da teologia sistemática per se, mas o
Consideremos, por exemplo, o indivíduo que afirma não conjunto de dados no qual ela se baseia, os métodos usados
crer que a Bíblia seja a Palavra de Deus; que crê que ela está para sua construção, os princípios que determinam a exclusão
cheia de erros e contradições e que muitos de seus ensinos de determinada informação, a linguagem e a propriedade com
são, na melhor das hipóteses, obsoletos. Se ele não for um que é usada, e a coerência, persuasão e precisão dos resultados.
ateu, apesar da premissa acima, acredita em algo sobre Deus Considere-se, primeiramente, o conjunto de dados. Que
(ou deuses, mas por conveniência vamos supor que essa pessoa proposições sobre Deus — Sua natureza, Suas características,
é monoteísta). Em sua mente, ele adota um conjunto de crenças funções, relações — admitimos em nosso sistema? Onde as
que crê serem coerentes. Mesmo um dialético pensa que suas encontramos? Quais proposições iremos excluir? Como é que
crenças são, em última análise, reconciliáveis. as verificamos? Que lugar tem a revelação no fornecimento
Pode até ser que algumas das crenças de tal indivíduo de dados? A revelação é meramente pessoal, meramente propo-
não sejam coerentes com outros componentes de seus sistema sicional, ou é ao mesmo tempo pessoal e proposicional? Se é
de fé. Ninguém, todavia, adotará conscientemente tais incoe- meramente pessoal, quão próximas da realidade se acham as
rências lógicas, exceto talvez no sentido de que as mantenha descrições humanas dessa revelação pessoal?
temporariamente em tensão enquanto procura examiná-las e Não estou sugerindo que todos pensam sua teologia pessoal
selecioná-las. Ele pode manter um sistema central de crenças fazendo a si mesmos tais perguntas, e sim que estas perguntas
sobre as quais tem poucas dúvidas e um círculo mais amplo espreitam, incógnitas, por trás de toda teologia sistemática. É
de crenças quanto às quais está menos seguro, mas, exceto no, por isso que tratamentos sofisticados como os de Hodge, Litton
caso de ser louco, buscará o máximo de coerência lógica. Isso e Henry, por exemplo, devotam considerável atenção a ques-
é fato mesmo quando ele passa de uma cultura em que as tões introdutórias de metodologia.3
pessoas preferem pensar em imagens a utilizar proposições Se tais reflexões são válidas, então um J. D. G. D1111111
abstratas, pois é universal a percepção de que por trás das por exemplo, tem sua própria teologia sistemática. Ele :alinhe
imagens existem as realidades, por mais vagamente percebi- isso pelo fato de ter tentado determinar o cerne comum ao,
das que sejam. Se alguém apresenta uma estrutura de teologia livros do Novo Testamento. Ele pode crer em (minis (o111 >
1 4 6 1 TEOLOGIA BÍBLICA OU TEOLOGIA S I S T E M Á T I C A ? REFLEXÕES POSITIVAS 1 4 % 1
1
contidas no Novo Testamento e adotá-las no cerne comum A obra de Dunn, pelo menos em parte, é uma tentativa
que reconstituiu, mas não pode adotar tudo o que o Novo Testa- de justificar seu conjunto de dados extremamente limitado.
mento tem a dizer, porque está convencido de que o conteúdo Infelizmente, é precisamente neste ponto que seu livro é
total de dados do Novo Testamento é incoerente e não pode ser muito fraco. Dunn adota muitos shibboleths críticos atuais,
uniformizado histórica ou logicamente. A despeito disso, Dunn. mas não toma tempo para sujeitá-los a um escrutínio rigo-
tem sua própria teologia sistemática. A questão crucial na roso, ou mesmo para considerar se sua abordagem do cânon,
tentativa feita por Durm de escrever teologia cristã é a base em seus testes literários, suas reconstruções históricas, e sua
que seleciona seus dados. Por que algumas verdades do Novo omissão em não lidar com as opções alternativas oferecidas
Testamento e não outras, tornam-se centrais para ele? Em que até mesmo por aqueles que usam ferramentas idênticas, não
base são rejeitadas algumas crenças cristãs tradicionais? acabe por excluir, inadvertidamente, dados de toda espécie
O que estou querendo demonstrar é que não é a validade que deveriam ser admitidos.
da teologia sistemática enquanto disciplina que é colocada
em questão, mas a validade das ferramentas críticas do teólogo. 2. 0 conjunto de dados a ser colocado perante os teólogos
A teologia sistemática cristã não pode ser feita sem referência sistemáticos é toda a Bíblia, os sessenta e seis livros
à Bíblia, mas que papel deveria a Bíblia desempenhar? E será canônicos, e a validade dessa escolha depende da adoção de
que toda ela deveria ter um papel? quatro posições.
O conjunto de dados da teologia sistemática não é a
única consideração. A teologia sistemática, para ser coerente A primeira posição é que toda a Escritura é fidedigna, e isto
com sua cultura contemporânea, deve ser escrita em linguagem pressupõe, é claro, que a Escritura é verdadeira. Se deter-
contemporânea e deve usar pelo menos alguns paradigmas minadas partes não são fidedignas, então não deveriam ser
dessa cultura (ou oferecer razões inteligentes para rejeitá-los). usadas como dados para a teologia sistemática.
Por mais finito e pecaminoso que seja um ser humano, certa- O que é digno de objeção na abordagem de Dunn não é
mente haverá alguma diversidade entre as teologias dos vários tanto que ele detecte erros aqui, e ali, mas que, exceto por um
sistematizadores. Nada, porém, é tão importante quanto a base denominador comum minimalista, ele está pronto a batizar
adotada para seus dados, pois esta é uma questão de autoridade como cristãs algumas estruturas de pensamento que, sob sua
e legitimação, não de hermenêutica. Segue-se que qualquer ótica, são mutuamente contraditórias. Isto preserva, argumenta
pessoa que deseja defender esta ou aquela sistematização de ele, a validade de teologias diversas. Qual delas, porém, (se
teologia deve a seus seguidores uma explicação tão límpida houver alguma) é verdadeira — isto é, corresponde à realidade
quanto possível do que ele irá ou não irá admitir em seu histórica e espiritual? Qual delas é (se houver alguma)
sistema. Ele pode, é claro, ir ainda mais longe e justificar seu fidedigna? Se forem mutuamente contraditórias em qualquer
conjunto de dados, mas tem de, no mínimo, identificá-la. ponto, não mais que uma delas, e talvez nenhuma delas, será
48 TEOLOGIA BÍBLICA OU TEOLOGIA S I S T E M Á T I C A ? REFLEXOES POSITIVAS 149 1
verdadeira. Defender a validade da diversidade em cristologia, contida. A "lógica interior da revelação divina", à qual alguns
por exemplo, pode ser útil se as várias cristologias forem têm apelado como substituta, soa muito piedosa, mas ou signi-
mutuamente complementares; se, porém, elas forem mutua - fica que as relações entre verdades divinamente reveladas na
mente contraditórias, uma defesa da diversidade se reduz a Escritura devem ser estabelecidas pelas Escrituras (e em tal
uma defesa de diversos erros e da falta de fidedignidade. caso parece-me difícil perceber como isso seja oposto à lógica)
Esta primeira posição, de que toda a Escritura é fide - ou é um modo de apelar para uma forma irracional de fideísmo.
digna, pode ser competentemente defendida em bases amplas; Responder citando Isaías 55.8-9 não vai conduzir a
o autotestemunho das Escrituras, a abordagem do próprio nada: "Porque os meus pensamentos não são os vossos
Cristo em relação às Escrituras, a notável confiabilidade pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos,
demonstrada pela Bíblia onde ela é historicamente verifi - diz o SENHOR, porque assim como os céus são mais altos do
cável, e assim por diante. Algumas dessas bases são discutidas que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que
em outros capítulos deste livro. Minha preocupação, no os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do
momento, é simplesmente apresentar de forma breve posições que os vossos pensamentos". O contexto deixa claro que as
sobre as quais uma teologia sistemática das Escrituras categorias não dizem respeito a sistemas lógicos em compe-
canônicas deve ser baseada, e, implicitamente, demonstrar tição ou coisa parecida; pelo contrário, são essencialmente
como teologias sistemáticas opostas precisam esclarecer suas morais. O versículo anterior exorta: "Deixe o perverso o
próprias abordagens. seu caminho, o iníquo os seus pensamentos" (55.7). Os pen-
A segunda posição pressuposta pela minha abordagem samentos do homem devem ser trazidos à conformidade com
da teologia sistemática é que as leis básicas da lógica — tais os pensamentos de Deus, não abandonando a lógica, e sim
como a lei da não-contradição e a lei do termo médio excluído por meio do arrependimento.
— não são invenções de Aristóteles ou formulações de algum De igual modo, desfiar os usos bíblicos de paradoxos,
outro sábio, mas descobertas ligadas à natureza da realidade e hipérboles, parábolas e outras formas e recursos literários não
da comunicação. Elas nada mais fazem que afirmar que certos constitui objeção real a esta proposição. Nenhuma dessas
relacionamentos existirão se a comunicação for possível e coisas ameaça sequer levemente a lógica, antes nos alertam
coerente, e se qualquer verdade puder ser conhecida. Se para como a lógica deve ser usada.
alguém negar isso, eu lhe respondo que o verdadeiro signi - A lógica pode produzir uma resposta falsa se, por exem-
ficado de sua negação é o oposto do que ela diz; e em tal plo, as premissas estiverem erradas, ou se considerarmos dados
situação não poderei ser logicamente (se me for perdoado o que são insuficientes, ou se um paradoxo não for reconhecido
uso da palavra) refutado. O substrato de qualquer comunicação, como tal. Essas falhas, porém, não ameaçam a lógica em si,
seja entre dois indivíduos ou duas eras, é simples lógica, seja tanto quanto conclusões errôneas baseadas em premissas mal
qual for o gênero literário em que a comunicação esteja construídas. Jogar as Escrituras contra a lógica é simplesmente
1so TEOLOGIA BÍBLICA OU TEOLOGIA SISTEMÁTICA? RFFL F.XõES POSI VIVAS 1 51 1
incoerente. Rogers e McKim distorcem tremendamente o Em resumo, Calvino argumenta que Satanás seleciona seus
pensamento de Calvino sobre este assunto, quando afirmam: dados tendenciosamente na construção de seus argumentos.
Rogers e McKim estão errados quando afirmam que Calvino
Calvino, conhecia o valor da lógica como uma das ciência hu- rejeitou "qualquer interpretação que aplicasse lógica à provi-
manas... Mas a lei da não-contradição, que a dialética ensina- dência divina e depois concluísse que Deus não nos ama em
va, não tinha, para Calvino, precedência sobre os ensinos das
vista de nosso sofrimento".' Pelo contrário, a coerência da
Escrituras. O poder da verdade em persuadir-nos mediante a
fé era de maior valor para Calvino, com todo seu contexto resposta de Calvino depende inteiramente da lógica que ele
humanista. Ele comentou, por exemplo, sobre Mateus 27.43, mesmo aplica ao referido problema, usando uma seleção mais
"Confiou em Deus; pois venha livrá-lo agora...", e condenou ampla de dados. Não há a menor sugestão, quer em seus
como "lógica de Satanás" qualquer interpretação que apli- comentários, quer nas Institutas, de que Calvino jamais tivesse
casse lógica à providência de Deus e assim concluísse que considerado a lógica algo que pudesse, por si só, "afastar os
Deus não nos ama porque nós sofremos. Calvino aceitou que homens da fé na verdade das Escrituras" e que tivesse, portanto,
Deus nos dera a lógica junto com a física, a matemática e
que ser "categoricamente rejeitada".' O problema real é que
outras disciplinas terrenas "para que pudéssemos ser ajuda-
dos... pelo trabalho e serviço dos incrédulos". Se, entretanto, a Rogers e McKim caracteristicamente lêem a evidência histó-
lógica fosse usada para desviar os homens da fé na verdade rica com os óculos de sua própria reconstrução da história e,
das Escrituras, então deveria ser categoricamente rejeitada.' por isso, tratam a história de maneira anacrônica.'
Estas duas posições conduzem-nos a uma terceira. Se as
Rogers e McKim usam a expressão "lógica de Satanás" Escrituras são fidedignas e as leis básicas da lógica não são
como a sugerir que Calvino a apresentasse como algo que invenções de valor duvidoso, mas descobertas dos relaciona-
estava sob o domínio de Satanás. Na verdade, Calvino afirma mentos básicos que tornam possíveis a comunicação coerente
que Satanás tenta levar-nos ao desespero com "esta lógica", e o conhecimento da verdade, então, para que a teologia siste-
ou seja, com este "argumento lógico", a saber, que já que Deus mática seja baseada na Bíblia, é necessário que os documentos
cuida da segurança de Seu povo, tem-se a impressão de que que constituem a Bíblia versem sobre o mesmo tópico geral.
Ele não ama aqueles de quem não cuida. Calvino chama esse Por exemplo, uma análise escrita sobre o inglês do século
embuste satânico de "esta lógica", porque é apresentado sob a XVI e um texto sobre o comportamento quântico de partículas
forma de um argumento lógico, mas depois afirma que o sub-atômicas podem ser ambos igualmente fidedignos, mas
argumento de Satanás é falso, não porque a lógica tenha de ser seria extremamente difícil elaborar uma síntese coerente de
subordinada às Escrituras, mas porque as premissas são tais obras literárias. Seguindo tal raciocínio, uma teologia
inadequadas. O amor de Deus não pode ser reduzido ao sistemática baseada na Bíblia requer que os livros bíblicos
instante presente, diz Calvino, e Deus pode demonstrar Seu este j am suficiente próximos em seu tema para oferecerem
amor com o passar do tempo. Além do mais, Deus freqüen- alguma coerência a quem deles se utiliza.
temente usa a adversidade para treinar Seu povo na obediência.
1 52 1 TEOLOGIA BÍBLICA OU TEOLOGIA SISTEMÁTICA? REFLEXOES POSITIVAS 1 53 1
É importante observar claramente os limites desta sistemática contemporânea. Que o controle da teologia seja
posição. Não estou afirmando que a Bíblia é um quebra-cabeça feito nesta linha de pensamento é função natural do caráter
com cinco mil peças, todas elas presentes, de modo que com revelatório da Bíblia." Se isto não ocorrer, o tipo de teologia
tempo e esforço mental o quadro possa ser totalmente mon- sistemática aqui advogado é impossível e a tentativa de
tado. Estou antes sugerindo que a Bíblia assemelha-se a um produzi-la deveria ser imediatamente abandonada.
quebra-cabeça que nos oferece cinco mil peças e a garantia Em resumo, estou preocupado em demonstrar as posi-
de que todas as peças fazem parte do mesmo quadro, embora ções implicitamente adotadas quando um conservador afirma
noventa e cinco mil peças (os números e sua relação não são que o conjunto de dados apropriados para teólogos sistemá -
importantes para minha analogia) estejam faltando. A maior ticos é a Bíblia, os sessenta e seis livros canônicos, bem como
parte das peças oferecidas, insistem as instruções, ajustam-se em oferecer alguns comentários sobre a racionalidade de tais
umas às outras muito bem; há, todavia, alguns buracos, as posições. De agora em diante, ao usar a expressão "teologia
extremidades têm vários pedaços clamando por serem com- sistemática", estarei me referindo apenas à teologia sistemática
pletados, e alguns agrupamentos de peças que parecem perma- baseada no cânon, a não ser que expressamente indique o con-
necer isolados do quadro maior. Apesar disso, a certeza de trário. É neste sentido mais restrito que o subtítulo deste artigo
que as peças fazem parte de um mesmo todo nos ajuda, porque deve ser entendido: "A Possibilidade da Teologia Sistemática".
torna possível elaborar a teologia sistemática, embora ela Meu foco a partir daqui será o Novo Testamento em
j amais vá ficar completa até recebermos mais peças do Fabri- lugar do cânon completo, sem qualquer outra razão exceto
cante. Enquanto isso, alguns dos sistematizadores que acre- o fato de que a imensidão dos problemas e da literatura exigem
ditam que todas as peças são parte do mesmo todo não têm que eu reduza um pouco meu campo de investigação. Ainda
muito jeito para montar quebra-cabeças, e às vezes forçam não discuti as questões substanciais concernentes à diversidade
peças onde elas não cabem. O quadro fica um pouco distorcido, dos documentos neotestamentários. Comparar a teologia
mas permanece basicamente reconhecível. sistemática a um quebra-cabeça levanta uma série de questões
Finalmente, embora a boa teologia sistemática deva ser metodológicas, às quais devemos agora voltar nossa atenção.
formulada na linguagem do presente e deva interagir com
questões contemporâneas' e oferecer respostas às mesmas, 3. O progresso da revelação deve ser tratado com toda serie-
ela deve ser controlada pelos dados bíblicos. "Um bom nú - dade, mas o apelo à revelação progressiva para excluir
mero de teologias supostamente bíblicas em nossos dias está componentes inconvenientes ao longo do trajeto dessa mesma
de tal modo contaminado com pensamento contemporâneo revelação é um recurso ilegítimo.
de base personalista, existencialista ou historicista que sua
base bíblica mostra-se sob forte suspeita", comenta um crí- O termo "revelação progressiva" é escorregadio.
tico,' e sua observação é ainda mais válida para a teologia Cunhado, a princípio, em círculos liberais para descrever uma
1 54 1 TEOLOGIA BílU ICA 01; TEOLOGIA SISTEMÁTICA? REFLEXÕES POSITIVAS 1 55 1
abordagem evolutiva à compreensão da Bíblia," foi subse- Dos vários modelos usados para descrever esse desenvol-
qüentemente adotado por círculos conservadores e recebeu vimento, o modelo orgânico (o de uma semente
outro significado, aquele que desejo adotar. Por "revelação transformando-se em planta) oferece sem dúvida a melhor
progressiva" quero dar a entender que Deus progressivamente analogia.` Estamos lidando com o crescimento de um único
revelou-Se em acontecimentos e nas Escrituras, culminando espécime, não a transmutação em novas espécies. Segue-se que
tais eventos com a morte-ressurreição-exaltação de Jesus a teologia sistemática é possível, da mesma maneira em que é
Cristo, e culminando as Escrituras com o fechamento do possível a descrição botânica de uma árvore. O fato de que há
cânon. O resultado é que os caminhos e propósitos de Deus crescimento e desenvolvimento na verdade revelada dentro do
foram progressivamente cumpridos não apenas nos eventos cânon exige não a abolição da teologia sistemática, mas um
redentivos, mas também na explanação registrada nas Es- tratamento que seja sensível à natureza do objeto sob estudo.
crituras. A revelação anterior prepara o caminho para a poste- Mesmo assim, há certas características da diversidade
rior; a posterior leva a revelação adiante e, de alguma forma, do Novo Testamento que precisam ser levadas em conta. Assim
explica a anterior. como certas partes da semente não são assimiladas pela planta
A passagem canônica mais dramática é a passagem do que ela produz, também certas partes da antiga aliança sob a
Antigo para o Novo Testamento.12 Apesar disso, mesmo dentro qual Jesus viveu não foram continuadas sob a nova aliança
do Novo, a quantidade de desenvolvimento é impressionante. que Ele inaugurou (e. g. Mc 7.19; boa parte do livro de He-
Cronologicamente, o Novo Testamento cobre menos de um breus). Nenhuma teologia sistemática pode escapar de tais
século, mas, partindo do judaísmo e do massacre das crianças considerações históricas. Na medida em que é preocupação
ordenado por Herodes, o Grande, passa pelo ministério de do sistematizador sintetizar em termos contemporâneos a ver-
João Batista, pelo ministério público de Jesus (caracterizado dade das Escrituras, cabe a ele resumir não apenas o que Deus
por Sua submissão pessoal à Lei do Antigo Testamento exigiu no passado, mas especialmente o que Ele exige no
[embora ele freqüentemente rompesse com a tradição] e por um presente. Neste sentido, ele deve tomar extremo cuidado em
sem-número de ensinos e ditos que só puderam ser adequa- descobrir como exatamente a revelação anterior relaciona-se
damente compreendidos depois de Sua morte e ressurreição)," com seu cumprimento futuro e aplica-se a ele e a seus
pela igreja primitiva em Jerusalém, pela autoconsciência contemporâneos.15
gradativa da Igreja, que reconheceu a obsolescência do Templo Uma segunda característica da diversidade do Novo
e, por causa do dom do Espírito, a admissão dos gentios Testamento está no fato de que mesmo depois da era do Espírito
crentes numa fraternidade comum com o Salvador e Deus começar, em Pentecostes, foi necessário algum tempo para
que lhes era comum, pela rápida evangelização do Mediter - que suas implicações plenas fossem entendidas (como o próprio
râneo e pelo abismo crescente que cada vez mais separava o J esus sugerira q ue aco nteceria; c f. Jo 1 6 .1 2 -1 5)." O
judaísmo do cristianismo. significado da descida do Espírito Santo sobre Cornélio e
1 56 1 TEOLOGIA BÍBLICA OU TEOLOGIA SISTEMÁTICA? REFLEXõES POSITIVAS
sua casa (At 10-11), tanto para Pedro quanto para Lucas, é desenvolver convicções bastante estáveis. Todos os escritos
que os fenômenos carismáticos que acompanharam tal batismo canônicos de Paulo originaram-se num período de quinze
validavam a realidade da salvação dos gentios perante a igreja anos, depois que ele já se havia tornado um mestre experiente,
em Jerusalém. Isso, porém, não evitou que a crise da circunci- e o período não é longo o bastante para elaborar grandes
são precipitasse o Concílio de Jerusalém (At 15). Na opinião mudanças teológicas.
de Paulo, tanto Pedro quanto Barnabé, pelo menos numa Há pouca razão para duvidar que Paulo se via crescendo
ocasião, deixaram de viver à altura da compreensão que admi- em entendimento e maturidade (cf. 1Co 13.8-12; Fp 3.12-16).
tiam ter do evangelho (G12). Tais acontecimentos tendem a Não há, porém, a menor evidência de que Paulo se perce -
sustentar idéias de falibilidade humana e incoerência causadas besse abandonando alguma posição que tivesse mantido em
pelo pecado, não a idéia de que houvesse na igreja partidos qualquer de seus escritos.20 Continua a ser um princípio impor-
altamente diversos com tremendas diferenças doutrinárias. Não tante que interpretemos Paulo à luz de Paulo , 21 não apenas
é apenas no presente que as pessoas deixam de viver à altura por amor à teologia sistemática, mas por amor a com -
de suas melhores percepções espirituais ou recusam-se a ver preendermos Paulo.
as implicações das posições que professam. O que precisa ser evitado são as reconstruções simplistas
Pode haver desenvolvimento dentro dos escritos de um da história eclesiástica mais antiga, que manufaturam
mesmo autor? É preciso distinguir entre o desenvolvimento desenvolvimentos lineares por toda parte e depois colocam os
do assunto de um autor, que ele registra e interpreta (e. g. únicos dados fundamentais de que dispomos, os próprios
Lucas-Atos), e o desenvolvimento do pensamento do próprio documentos do Novo Testamento, numa camisa de força.
escritorY O melhor caso desta última situação é Paulo. A Fazem-se tentativas, por exemplo, de demonstrar como Paulo
maioria dos escritores modernos segue a linha de dois ensaios abandonou uma escatologia futurista em favor de uma escato-
influentes escritos por C. H. Dodd11 e afirma sem hesitar que logia realizada,22 a despeito do fato de que já foi repetidamente
podem delinear o desenvolvimento no pensamento de Paulo. demonstrado que ambos os elementos encontram -se na
Os mais cuidadosos, todavia, admitem que há formidáveis escatologia paulina desde o início .21 Ainda é comum argu-
barreiras a vencer caso se deseje alguma objetividade.` Sem mentar que Atos deve ser um livro recente porque Lucas exem-
entrar no mérito das questões de autenticidade, não é fácil plifica tão bem o Frühkatholizismus (catolicismo primitivo),
datar toda a correspondência paulina com certeza. M uitas embora já tenha sido convincentemente argumentado que
das diferentes ênfases das várias epístolas procedem de diversas Lucas-Atos retrata tanto o "catolicismo primitivo" quanto o
preocupações pastorais (um ponto ao qual voltarei). Além do 11entusiasmo" .21 A teologia, como a vida, é complexa. A
mais, é importante reconhecer que Paulo já tinha quinze anos maioria de nós já aprendeu a viver com a tensão entre o "já/
(ou mais) de sólida vida cristã ao escrever sua primeira epístola ainda não" que se acha nas páginas do Novo Testamento; por
reconhecidamente canônica, e esse tempo é suficiente para que, então, achamos tão difícil aceitar a tensão entre o
1 58 1 FE0LOGI íBLICA OU TEOLOGIA SISTEMÁTICA? REFLEXOES YOSi"I'D'AS 1 59 1
"catolicismo primitivo" e o "entusiasmo"? Se Atos for levado corpo após a ressurreição. Doutra forma, por que as marcas?
a sério, haverá ali ordem e disciplina, para não mencionar Onde teria ido parar o cadáver? Na medida em que a ressur-
presbíteros reconhecidos, desde os primeiros anos da igreja. reição de Jesus é as primícias da colheita, quão diferente da
O problema para o teólogo sistemático conservador já é ressurreição de Jesus pode ser a colheita? (2) Será que a
difícil o bastante quando ele se defronta com a diversidade do experiência na Ásia foi tão traumática assim? 2Coríntios 11
Novo Testamento, sem que ele tenha de enfrentar a reorga- deixa claro quantas vezes Paulo se defrontou com o sofrimento
nização dogmática da evidência literária segundo as linhas da e a morte. Seria provável, portanto, que mais uma experiência
ortodoxia crítica. Enquanto vários críticos acusam-no de provocasse tamanha mudança no pensamento de um teólogo
construir uma teologia sistemática rígida que o força a dis - maduro e experimentado? (3) Certamente a construção "não...
torcer sua exegese, ele pode ser perdoado se descobrir que os mas", , em 2Coríntios 5.1-10, é uma maneira semítica de
que o criticam estão reconstruindo a história da igreja e desen- expressar preferência fundamental, não uma antítese absoluta.
volvendo o que em outro lugar eu denominei de "histomática"," (4) Seria possível que os versículos cruciais, 2Coríntios 5.3-5,
distorcendo assim a exegese de maneira muito mais séria. tenham sido incluídos por Paulo para se proteger dos hereges
Mais difícil de avaliar é o tipo de desenvolvimento paulino em Corinto, que ele já confrontara em 1Coríntios 15, e que
proposto por Murray J. Harris em suas obras publicadas .26 ainda seriam capazes de pensar no versículo 2 em termos
Harris pensa que 2Coríntios 5.1-10 é um divisor de águas na imateriais? (5) Se aceitarmos que 2Coríntios 10-13 foi escrito
teologia paulina, refletindo uma mudança em seu pensamento depois de 2Coríntios 5, então há prova de que Paulo ainda
escatológico por causa de um incidente quase mortal na Ásia sustentava uma antropologia que podia conceber a existência
(cf. 2Co 1.8-11). Segundo Harris, Paulo não mais pensaria na humana à parte do corpo (2Co 12.1 -10), mesmo que não
ressurreição em termos de um fenômeno corporativo experi- fosse o modo definitivo de existência. (6) A evidência exegética
mentado por ocasião da Parousia por todos os crentes falecidos, em 2Coríntios 5.1-10 possibilita o ponto de vista de Harris,
mas em termos de uma transformação pessoal de cada crente mas de maneira alguma o exige. A posição adotada por Harris
na morte de modo a receber um "corpo espiritual" comparável defronta-se não apenas com os obstáculos acima, mas com
ao corpo de Cristo quando de Sua ressurreição. uma pergunta da perspectiva da teologia sistemática. O
Isto é obviamente muito diferente do que Paulo progresso da revelação tal como proposto por Harris envolve
expressou em 1Coríntios 15 e em 1Tessalonicenses 4. Com uma mudança de ponto de vista tão brutal que o ensino anterior
alguma hesitação, eu argumentaria que este é um exemplo de Paulo teria que ser visto como equivocado. O ensino anterior
inadmissível de "desenvolvimento doutrinário" nos escritos não teria simplesmente apontado para o futuro, ou servido
de Paulo. As considerações que influem nesta opinião são as como uma sombra que apontava prolepticamente para a rea-
seguintes: (1) O Novo Testamento pressupõe uma conti - lidade numa outra aliança, ou ainda constituído parte da ver-
nuidade real entre o corpo de Jesus antes da morte e Seu dade que viria a ser completada mais tarde; estaria equivocado.
1 60 1 TEOLOGIA BÍBLICA OU TEOLOGIA SIS I"EMÃ FICA? RE FLLXOES POSITIVAS 1 61 1
Por todas estas razões, eu reluto em aliar-me a Harris sem ter autor, dentro de um mesmo parágrafo, nem em dizer o que
muito mais apoio exegético .21 eles significam."
Tentei demonstrar como o teólogo sistemático deve estar Contudo, quando consideramos duas epístolas diferentes
ciente de questões que envolvem o progresso de revelação, e pelo mesmo autor, a situação é bem outra. Ainda sobrevive,
sugeri algumas coisas que podem servir como limites úteis. por exemplo, a tendência de jogar Gálatas contra 1Coríntios.
Há uma aplicação relativamente comum de progresso da Em dois dos comentários mais recentes, os de Drane e
revelação que eu rejeito, aquele exemplificado por David Richardson,32 dá-se muito maior consideração aos problemas
Kelsey. 2 ' Ele procura delinear o desenvolvimento numa pastorais distintos enfrentados por Paulo nas duas regiões.
teologia refletida na Escritura (geralmente com base numa Mesmo assim, todavia, Drane em particular ainda se inclina,
ortodoxia crítica duvidosa) e depois usa os padrões assim elabo- em minha opinião, a ver mais mudança do que as evidências
rados, não a própria Escritura, como norma para a teologia. De permitem. Drane vê uma carta mais antiga aos gálatas denun-
fato, os eventos das Escrituras são inseparáveis de sua interpre- ciando tentativas de impor a observância da lei aos crentes
taç ão,29 e os "padrões" que Kelsey e outros detectam são de gentios. Infelizmente, Drane sugere, alguns dos convertidos
natureza tão subjetiva que é difícil imaginar como poderiam paulinos levaram essa idéia de liberdade longe demais, e na
adquirir caráter negativo e chegar a ser algo mais que simples permissiva cidade de Corinto acabaram por cair em licen -
paradigmas interessantes.10 O progresso da revelação deve ser ciosidade e imoralidade baseadas num antinomismo grosseiro.
tratado com toda seriedade, mas o apelo à revelação progressiva Isto, segundo Drane, levou Paulo a escrever 1Coríntios, que
para excluir elementos inconvenientes ao longo do trajeto dessa impõe muito mais regras do que o Paulo de Gálatas teria
mesma revelação é um recurso ilegítimo. contemplado. Na verdade, Paulo corria o risco de reagir exa-
geradamente. Mais tarde, porém, Paulo escreveu 2Coríntios
4. A diversidade no Novo Testamento muitas vezes reflete e Romanos, e achou o ponto de equilíbrio.
cuidados pastorais diferentes, sem quaisquer implicações de Tal análise pressupõe que Gálatas e 1Coríntios estão
uma estrutura doutrinaria diferente. em desequilíbrio e não podem ser vistas como obras que refli-
tam o pensamento maduro de Paulo. Do ponto de vista meto-
É fácil encontrar incoerências e contradições formais no dológico, fico curioso em saber como Drane sustentaria sua
Novo Testamento. "Levai as cargas uns dos outros", diz Paulo estrutura em oposição a uma que explicasse as diferenças em
aos gálatas, "e assim cumprireis a lei de Cristo" (G16.2). Isto termos dos problemas pastorais com que Paulo se defrontava.
não o impede de aconselhá-los, poucos versículos depois, a Isto não significa negar que a compreensão que Paulo tinha
que cada um leve seu próprio fardo (Gl 6.5). A maioria dos dos perigos tivesse crescido com a experiência; significa, isto
comentaristas não tem qualquer problema em explicar como sim, negar que Paulo iria retirar qualquer palavra de Gálatas
esses dois versículos poderiam ter vindo da pena de um mesmo ou 1Coríntios se tivesse de enfrentar os mesmos problemas
1 62 1 TEOLOGIA BÍBLICA 01) TEOLOGIA SISTEMÁTICA? REFLEXõES POSITIVAS 1 63 1
outra vez. Os indícios que Drane encontra para distinguir ou de Paulo para uma vasta gama de assuntos provavelmente
entre os dois paradigmas (e. g. ele argumenta que os coríntios irá receber um exame muito mais equilibrado ilibrado do que se forem
haviam lido a epístola aos gálatas) não me parecem inteira- usados os métodos reducionistas dos que jogam Jesus contra
mente convincentes. Jesus e Paulo contra Paulo.
Infelizmente, não há espaço para examinar esta questão A questão das circunstâncias diversas que originaram
em detalhes, mas é importante lembrar que, como um escritor os escritos do Novo Testamento torna-se ainda mais contro-
bem afirmou, as epístolas "são documentos ocasionais do pri- vertida quando um autor é comparado a outro — Paulo a
meiro século, escritos a partir do contexto dos que as rece- Tiago, por exemplo, ou João a Paulo. Nem toda a diversidade
beram"." E E Bruce delineou um bom número de tensões do Novo Testamento pode ser explicada por um apelo a cir-
nas cartas de Paulo" e, apesar de sua síntese não ser convincente cunstâncias diferentes; no entanto, uma quantidade sur -
em todos os casos, ele aborda a diversidade com uma boa preendente dessa variedade certamente é influenciada por tais
sensibilidade metodológica." considerações. Se a "fé de Abraão" é usada por Paulo para
Parte do problema, eu suspeito, é que Paulo, tal como ensinar que o homem é justificado pela graça por meio da fé,
Jesus antes dele, tem a tendência de absolutizar a linguagem e por Tiago para ensinar que a fé sem obras é morta, não se
usada em tratar do problema em curso. Uma vez aceito o fato segue, necessariamente, que os dois autores desconheciam cada
de que Mateus 6 e Lucas 18 contêm material aut y ntico, é um a obra do outro, ou que discordavam entre si." Nas áreas
intrigante notar que, na primeira passagem, Jesus parece defen- de escatologia e cristologia, C. F. D. Moule argumentou per-
der orações breves que evitam a pompa e a repetição, enquanto suasivamente que circunstâncias distintas provocaram muito
que na última ele conta uma parábola com o propósito expresso da diversidade do Novo Testamento." Sua obra, embora
demostrara seus discípulos "o dever de orar sempre e nunca amplamente citada, ainda é usada com muito pouca freqüência
esmorecer" (Lc 18.1). Formalmente, as duas estão em mútua e não recebe a seriedade que merece.` Nossa necessidade,
contradição. Em realidade, a passagem de Mateus dirige-se como disse E. E. Lemcio, até certo ponto em tom de brinca -
àquelas pessoas cujas orações são simples exibicionismo, ou deira, é o surgimento de uma nova sensibilidade a "Circums-
àquelas que pensam que por muito falar podem manipular a tantionsgeschichte".40
Deus. Em contraste, a passagem de Lucas dirige-se aos pecados Mesmo as fórmulas confessionais devem ser encaradas
dos duvidosos e apáticos. Não há contradição alguma, desde sob esta ótica. Em lCoríntios 12.3, Paulo pode afirmar que
que as circunstâncias às quais as passagens foram dirigidas "ninguém pode dizer: Senhor Jesus! senão pelo Espírito Santo".
sejam apropriadamente compreendidas. Jesus, pregador que Em 1João 4.2-3, João insiste: "... todo espírito que confessa
era, usava regularmente linguagem forte, antitética, para abordar que Jesus Cristo veio em carne [ou, como eu prefiro, 'que
cada ângulo de uma questão complexa." Um dos valores da Jesus é o Cristo vindo em carne'] é de Deus; e todo espírito
teologia sistemática, portanto, é que a abordagem de Jesus que não confessa a Jesus não procede de Deus". As duas
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REFLEXÕES POS1 1 VAS 1 65 1
confissões não são mutuamente exclusivas, nem refletem dois A alternativa é irônica. Os eruditos do Novo Testamento
grupos diferentes de crentes cujas declarações cristológicas são alertados, de todos os lados, contra tentarem encontrar uma
tenham se desenvolvido por caminhos bastante diferentes e teologia sistemática no Novo Testamento. Na verdade, o que
talvez mutuamente exclusivos. Antes, na situação de Corinto, esses críticos fazem é estabelecer um grande número de teolo-
onde havia reivindicações de diversos senhores, a fórmula pau- gias sistemáticas no Novo Testamento e depois jogá-las umas
lina era tanto necessária quanto suficiente. No contexto histórico contra as outras. Uma confissão é isolada do contexto histórico
de João, em que docetistas tentavam separar Jesus do Cristo, a que limita sua suficiência (mas não sua necessidade) em outros
fórmula joanina é tanto necessária quanto suficiente. A fórmula contextos e é incluída numa estrutura maior que é então lançada
paulina é inadequada para excluir os hereges na situação contra outra estrutura manufaturada. Parte desse processo
enfrentada por João, e a fórmula joanina é inadequada para depende de reconstruções históricas dúbias, algo que já abordei
excluir os hereges no contexto de Paulo. Ambas as fórmulas brevemente neste capítulo, mas parte dele gira em torno de
—e um grande número de outras — são necessárias; isto não uma abordagem irresponsável dos dados históricos, uma abor-
significa que qualquer delas seja suficiente em qualquer contexto dagem que, desprezando a teologia sistemática, se afadiga em
(a despeito do uso simplista da confissão "Jesus é Senhor" por sistematizar a diversidade que encontra em lugar de ser sensível
alguns elementos do Concílio Mundial de Igrejas!). à natureza mutuamente complementar dos documentos
W. L. Lane argumenta que tal diversidade (ele não usa o ocasionais que constituem o Novo Testamento .41
mesmo exemplo) reflete uma expressão teológica em trans-
formação baseada numa determinada estrutura confessional.` Há 5. A diversidade encontrada nos documentos do Novo Testa-
um sentido em que ele está certo, mesmo que eu não mento freqüentemente reflete os diferentes interesses Pessoai . s e
fique satisfeito com sua terminologia. É preciso, porém, ir estilos idiossincráticos de cada um dos autores.
além de tal observação e notar que nosso único acesso à suposta
estrutura confessional da igreja primitiva são os documentos Ninguém que tenha alguma sofisticação teológica argu-
do Novo Testamento. Devido a este fato, e também porque menta que a obra do Espírito Santo em inspirar as Escrituras
tais documentos são inspirados, não basta tentar recuperar a tenha imposto uma igualdade literária a todas as partes das
estrutura confessional primitiva e ignorar os exemplos especí- mesmas. João escreve e soa como João, Mateus como Mateus, e
ficos e diversos de tal estrutura. Antes, é precisamente neste assim por diante.
ponto que a teologia sistemática é necessária, não apenas para Os mesmos fenômenos apresentam-nos outra visão do
uma exposição adequada da fé cristã em termos contempo - problema da unidade e da diversidade. A linguagem, o estilo
râneos, mas também como a única ferramenta adequada para e os interesses de cada autor são, de certa maneira, idiossin-
tratara diversidade confessional de maneira responsável e assim cráticos; por isso, é preciso ser muito cuidadoso ao afirmar
esboçar a estrutura confessional .41 que tal escritor do Novo Testamento não crê nesta ou naquela
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doutrina simplesmente porque ele não a menciona ou enfatiza. autores diferentes do Novo Testamento podem focalizar
Isto é especialmente importante quando recordamos que aspectos diferentes da verdade a partir de perspectivas
estudiosos do Novo Testamento vêm dizendo há muito tempo diferentes, quer por razões apologéticas quer por razões
que os autores do Novo Testamento não escreveram com o pessoais, e tal diversidade deve ser levada em conta.
pensamento de fazer teologia sistemática. Será que tentaríamos Parte do dilema contemporâneo acha-se no fato de que
delinear toda a estrutura teológica de algum pensador religioso muitos estudiosos do Novo Testamento que deploram a
moderno com base apenas em duas ou três monografias moti- teologia sistemática estão ocupadíssimos superteologizando
vadas em parte por um interesse pessoal direcionado e, em (se me for permitido este barbarismo) o Novo Testamento.
parte, por alguma preocupação pastoral premente? Cada dito, cada epístola, cada pequeno pedaço de literatura,
A terminologia pode variar de autor para autor. Como é deve ter sido motivado por preocupações teológicas explícitas.
bem sabido, Mateus usa o verbo "chamar" para se referir a Tais preocupações (alega-se) sobrepujam considerações
um convite geral lançado aos perdidos, enquanto Paulo usa o históricas e interesses pessoais. Um autor do Novo Testa -
mesmo verbo para se referir a uma ação eficaz de Deus; a mento está sempre envolvido na refutação de algum oponente
despeito dessa mudança de teologia, não se segue que Paulo teológico. Poucos permitem a possibilidade de que uma das
negue que Deus convide os perdidos a virem a Ele, nem que razões pelas quais uma determinada perícope tenha sido
Mateus descreia da eleição. admitida no texto é o fato de que o autor a achou interessante.
Brice Martin comparou Mateus e Paulo com respeito É com um suspiro de alívio que lemos o provocante artigo
ao relacionamento entre Cristo e a Lei. 44 Sua conclusão prin- de Morna Hooker: "Were There False Teachers in
cipal é que Mateus e Paulo utilizam dois conjuntos de cate - Colossae?"."
gorias bastante diferentes e que, portanto, representam Não desejo argumentar que os escritores do Novo Tes-
perspectivas não-contraditórias, não-complementares, mas tamento estejam apenas raramente refutando idéias erradas
compatíveis. Sua exegese nem sempre é convincente e ele ou que a inclusão desta ou daquela lista de material deva ser
subestima a importância de outras considerações (como o papel creditada apenas a preferências idiossincráticas. Quero, isto
da história da salvação). Pior ainda, é difícil ver exatamente o sim, apontar que a rica diversidade do Novo Testamento
que "não complementares, mas compatíveis" significa. Se ambos —diversidade em gênero, estilo, confissão, talvez liturgia, até
estão lidando com o mesmo Deus e os relacionamentos de mesmo conteúdo e foco 46 — não deve ser interpretada apenas
homens com Deus, suas perspectivas devem ser, de alguma nas categorias de formulações teológicas antitéticas. A evidência
forma, complementares. Martin impôs categorias filosóficas clama contra isso. Quando, porém, tal evidência é levada em
estranhas ao material que estudou. No entanto, depois de conta, é difícil ver por que uma unidade profunda subjacente
despido de sua linguagem antitética e atenuado por outras seja impossível, ou mesmo improvável.
considerações, seu argumento ainda demonstra uma idéia:
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6. Com base nessas reflexões deve-se insistir que não hd qual- os crentes podem ler sua obra como parte do cânon completo
quer desgraça intrínseca na harmonização teológica, que é do Novo Testamento.` Não se trata de apelar para um sensus
da essência da teologia sist~tica. plenior, pelo menos no sentido tradicional do termo. É, isto
sim, um reconhecimento de que quanto mais pedaços do
De fato, alguém poderia argumentar que há uma desgraça quebra-cabeça estiverem disponíveis, mais os pedaços isolados
implícita em evitar tal tentativa. Será que as pressuposições e os pequenos grupos de peças aparecerão em relacionamentos
da ortodoxia crítica são assim inabaláveis? Havia mais comuni- não percebidos antes.
cação no mundo antigo do que às vezes reconhecemos, e muito Qual, então, é o lugar apropriado para a analogia fadei, a
mais concordância básica entre os apóstolos e escritores a "analogia da fé"? Podemos salvaguardar nossa exegese de um
eles ligados do que freqüentemente se admite. O conceito uso indevido da teologia sistemática? A resposta, receio, é:
moderno de comunidades praticamente fechadas de maneira "Não inteiramente." Seria conveniente se pudéssemos operar
hermética, cada uma fazendo sua própria teologia e retocando exclusivamente na direção do seguinte diagrama:
suas tradições em esplêndido isolamento, e produzindo algum
documento neotestamentário de muitos autores, é um exagero
consumado; e, na medida em que tal idéia tiver um quê de Exegese o Teologia Bíblica o [Teologia Histórica] "Teologia Sistemática
Não! Existe um caminho melhor, que pode ser diagra- sendo feito a cada estágio do processo, para não confundir as
mado da seguinte forma: linhas de controle.
Se alguém objetar que isto significa dar um lugar excessi-
vamente significativo para a teologia sistemática, eu insisto
em que, em certo sentido, meu oponente mais radical está
fazendo a mesma coisa, e talvez com menos auto-crítica do
Exegese o* Teologia Bíblica o [Teologia Histórica] 0 Teologia Sistemática que eu, pois adotou seu próprio tipo de "teologia sistemática"
ao adotar várias idéias de como o Novo Testamento pode ou
não se constituir e ajustar. Muitas vezes, de fato, tal crítico
será particularmente vulnerável à sua própria estrutura de
Isto quer dizer que há linhas de retroalimentação (e mais
pensamento, precisamente porque não acredita que ela o
linhas que avançam, na verdade). É absurdo negar que a
influencia prejudicialmente. Meu modelo é válido apenas se
teologia sistemática do indivíduo afete sua exegese. A linha
a Escritura for fidedigna, mas por muitas razões eu acredito
do controle final, todavia, não é a que parte em linha reta da
que ela o é. Minha preocupação, portanto, é legitimar a
exegese em direção à teologia sistemática passando pelas teo-
harmonização implícita na teologia sistemática e demonstrar
logias bíblica e histórica. A autoridade definitiva é a Escritura
que tal harmonização, utilizada apropriadamente, enriquece
e apenas a Escritura. Por esta razão, a exegese, embora afetada
a interpretação bíblica sem a distorcer.
pela teologia sistemática, não deve ser por ela algemada. Packer
Há um ou dois perigos específicos que devem ser men-
tem razão quando afirma:
cionados quanto a apelos à analogia fidei. À parte da questão
A máxima de que exegese e interpretação bíblica servem o da linha última de controle, é preciso tomar cuidado para não
propósito de uma teologia sistemática adequada é verdadeira, usar a analogia fidei de modo anacrônico. Isto não significa
mas se o exegeta parar aí apenas metade da história terá sido que para cada texto revelatório se deveria desenvolver apenas
contada. A outra metade, a verdade complementar que é a uma analogia fidei baseada somente em revelação anterior"
única capaz de afastar a idéia incorreta e prejudicial de que (embora tal método tenha sua própria utilidade em analisar
uma certa ortodoxia racional é tudo o que importa, é que a certos problemas), pois isto significaria que nenhuma revelação
principal razão para se buscar uma teologia sistemática ade- realmente nova jamais seria admitida. Significa, simplesmente,
quada é a busca de uma interpretação bíblica melhor e mais
que a analogia fidei deveria ser usada cuidadosamente como
profunda."
um limite externo e como uma consideração final," e não
Mesmo assim, é importante, primeiro, reconhecer que o como um recurso determinativo.
controle final se acha na Bíblia e apenas na Bíblia, e, em segundo Um segundo procedimento ilícito é aquele exeniplificad()
lugar, estar pessoalmente consciente de que tipo de apelo está por P. K. Jewett em seu livro Man asMaleandR,male.` Qi;ind()
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Jewett faz seu apelo à analogia fidei, fica claro que ele está pronunciamentos sobre os detalhes da linguagem."" Este
operando com um "cânon dentro do cânon". Ele isola (pelo conselho é sábio não apenas para a exegese, mas também
menos para sua própria satisfação) os ensinos centrais das para a teologia sistemática.
Escrituras sobre seu assunto e, nessa base, exclui o argumento Dois ou três exemplos rápidos darão força a esta reflexão.
de Paulo em 1Timóteo 2.11-15, argumentando que não é É tão ilícito concluir que as mulheres têm direito a serem
coerente com a analogia fidei que ele construiu sobre seu cânon ordenadas presbíteras pelo fato de terem sido as últimas a
limitado. Este é, sem dúvida, um modo inusitado de apelar à deixar a cena da cruz e as primeiras a chegar à cena da ressur-
analogia fidei, um modo que é metodologicamente indistin- reição, quanto é concluir que, pelo fato de os doze apóstolos
guível da abordagem de Ernst Kãsemann ou de qualquer outro terem sido homens, mulheres não têm direito de ser ordenadas
autor que escolha operar com um cânon restrito .14 Se Jewett presbíteras. Ou ainda, embora o Novo Testamento afirme que
deseja seguir tal linha de argumento, isso é escolha pessoal Jesus Cristo é simultaneamente Deus e homem e que Deus
dele; é ilícito, porém, aspergi-lo com o argumento da analogia não pode ser tentado, não é uma conclusão necessária que
fidei, que tradicionalmente presume que o cânon (inteiro) é Jesus Cristo não poderia ser tentado.
seu conjunto de dados. Na verdade, uma das vantagens de Há duas razões pelas quais nós devemos ser extraor-
trabalhar com teologia sistemática é que, se corretamente dinariamente reticentes em sair do exemplo das Escrituras
executada, ela elimina o tipo de teologia arbitrária que sele - em tais assuntos. Primeiramente, atribuir certas funções a
ciona a evidência e permite ao teólogo dizer o que quiser. A várias verdades ou eventos na Escritura, mesmo que a Escritura
teologia sistemática, quando cuidadosamente aplicada, pode não faça uso das mesmas verdades e eventos para elaborar tais
ajudar-nos a assegurar que ainda podemos ouvira Palavra de funções, pode nos envolver numa seleção preconceituosa dos
Deus, não simples respostas pré-selecionadas a perguntas cuida- dados que constituem nossa fonte de informação. Podemos
dosamente limitadas. deixar de observar como certas verdades funcionam em nível
Em resumo, com cuidado, não é vergonha praticar pastoral, ou podemos inadvertidamente tirar uma conclusão
harmonização teológica, que é da essência da teologia sis - que contradiga algum dos dados fundamentais.
temática, mas há vários perigos a serem evitados. Em segundo lugar, há o fato de que várias crenças cristãs
básicas envolvem grandes áreas do desconhecido. Vejam-se,
7. Teólogos sistemáticos deveriam ser cuidadosos em observar como exemplos, a Encarnação, a Trindade ou a relação entre
como diferentes verdades e argumentos funcionam nas a soberania de Deus e a responsabilidade do homem. Em
Escrituras, e deveriam ser cautelosos com respeito a cada uma dessas áreas é possível demonstrar que não há neces-
abandonarem estas funções enifavor de outras. sariamente uma contradição lógica; não me parece possível,
no momento, oferecer uma explicação completa de como esses
"Ao considerar passagens aparentemente divergentes, é fundamentos da fé mostram-se coerentes. Estamos 11(lin(lo
importante investigar o propósito da linguagem antes de emitir com o supra-racional" (mas certamente não cone Ii-nicioná]
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