ANPOLL
ANPOLL
ANPOLL
Esta tese visa formular e defender o conceito montação como processo discursivo que
funciona como mecanismo de reconhecimento de si em um corpo outro. Este processo passa
pela transformação gradual da imagem de si, e, concomitantemente, pela filiação do sujeito
a uma posição discursiva dissidente. Essa posição é sustentada, no caso da drag, objeto de
minha reflexão teórica, por um semblante específico. Desse arranjo participa, ainda, um
anteparo material, um espelho: reflexo que torna tangível a imagem do novo corpo em vista.
Utilizo o termo anteparo por considerar que o olhar é do campo do real, e que o artista
precisa, por conta da ação violenta desse olhar, criar anteparos que o guardem e protejam do
encontro com o traumático; nesse sentido, a arte atua na domesticação do olhar e o espelho
confere forma à figura que atuará como escudo diante daquele que vê. É em direção ao
espelho que o sujeito lança um olhar e, de volta, é olhado por esse outro corpo em produção,
materialização de uma posição que diz de um exercício artístico, mas também de um desejo
e de uma filiação a uma rede de sentidos. Deparado com esse outro contorno, o performer
passa, então, a significar no interior de outra posição de sujeito consubstanciada ao corpo
modificado, montado. A maquiagem drag contorna o semblante da posição enviada (como
nomeio essa posição dissidente), imagem montada por um sujeito performer. Esse sujeito
não consegue acessar sem resistência os sentidos advindos da formação discursiva via
posição enviada, por conta da restrição cultural e ideológica que incide sobre a
corporificação de determinados signos femininos, que representam direção diversa da
masculinista, termo que refere a posição dominante da formação discursiva em que se
assentam sentidos ligados à masculinidade e à virilidade. É por intermédio da drag que o
sujeito consegue resistir à coerção da norma imposta pela formação ideológica e disseminada
pela formação cultural, rompendo com a imagem masculina sustentada por uma formação
imaginária específica. O sujeito cria um semblante para a posição enviada, contra-
identificada com a posição masculinista. Essa posição dissidente da formação masculinista
envia sentidos do masculino em direção ao feminino, apesar de nunca completamente
revestir uma formação antagônica, feminista, por exemplo; a drag se inscreve num espaço
de entremeio, de tensão, próprio à arte. A posição enviada, assim, é autorizada a dizer e a
representar signos relacionados à formação imaginária que veicula o protótipo imagético do
feminino (mas não se superidentifica com ela). Montar-se, nesses termos, significa resistir,
desobedecer à determinação de um padrão imposto culturalmente e, assim, agir conforme
os princípios de uma posição que não concorda com a reprodução de sentidos masculinistas,
fundados sobre a ideia da violência e do desrespeito contra a mulher e qualquer outro ser
que a ela seja empático. A drag provoca, critica e propõe reflexões sobre a reprodução desses
padrões sustentados pelo discurso.
This doctoral dissertation aims to formulate and defend the montage (the act of put you in
drag) as a discursive process that works as a mechanism for recognizing oneself in another
body. This process involves the gradual transformation of the self-image, and the subject's
affiliation to a discursive position, supported, in the case of drag, the object of my reflection,
by a specific semblance. This countenance, sort of material shield, foresees a mirror: a
reflection that envisions the image of the new body. I use the term shield because I consider
that the look belongs to the field of the real. The artist needs, due to the violent action of
that look, to create shields that guard and protect him from the encounter with the
traumatic; in this sense, art acts in the domestication of the look and the mirror shapes the
figure that will act as a shield in front of the one who sees. It is towards the mirror that the
subject casts a look and is looked at by this other body, the materialization of a position.
Faced with this other contour, the performer then begins to signify within another subject
position embodied. The make-up outlines the semblance of the position, an image
assembled by a subject affiliated with a dissident position. This performer cannot access
without resistance the meanings arising from the discursive formation. This speaks about
the cultural and ideological restriction that suppress the embodiment of female signs by the
men, who is linked to masculinity and virility. It is through drag that the subject manages
to resist the coercion of the norm imposed by ideological formation and disseminated by
cultural formation, breaking with the male image supported by a specific imaginary
formation. The subject creates a semblance for the new position, counter-identified with
the masculinist position. This dissident position of the masculinist formation sends the
meanings associated with the masculine formation towards the feminine, despite never
completely covering an antagonistic formation, feminist; drag is part of an in-between
space, space of tension, typical of contemporary art. This position, therefore, is authorized
to say and to represent signs related to the imaginary formation that conveys the imagistic
prototype of the feminine (but does not overidentify with it). Drag means resisting,
disobeying the determination of a culturally imposed standard and acting according to the
principles of a position that does not agree with the reproduction of masculinist, which
convey the idea of violence and disrespect against women. Drag provokes, criticizes, and
proposes discussions about the reproduction of these standards supported by masculinist
discourse.
Todas as ilustrações desta tese foram desenvolvidas pelo autor, utilizando-se de DALL.E 2,
uma inteligência artificial que opera com geração de imagens a partir de comandos de texto.
APOIO DE FINANCIAMENTO CAPES
direções ........................................................................................................................................................................ 9
1. Logo de início, um adendo .................................................................................................................................... 10
2. Sobre o objeto ........................................................................................................................................................ 14
3. O tique e o trauma ................................................................................................................................................. 18
4. Problemas laterais .................................................................................................................................................. 25
5. O corpo que a gente não vê ................................................................................................................................... 36
lógicas / paradoxos ................................................................................................................................................. 46
1. Este tópico inteiro é uma mentira ........................................................................................................................ 47
2. Paradoxos................................................................................................................................................................ 49
3. Inconsistências ....................................................................................................................................................... 60
4. Incompletude ......................................................................................................................................................... 67
5. Ambiguidade e cultura .......................................................................................................................................... 71
performar + narrar + acontecer .......................................................................................................................... 84
1. Sobre a performance .............................................................................................................................................. 86
2. Narrativas ............................................................................................................................................................... 91
3. Memórias ................................................................................................................................................................ 93
4. Imagens ................................................................................................................................................................... 96
5. Performance em tela fria ....................................................................................................................................... 97
6. Atualidade e ruptura ............................................................................................................................................ 105
7. Necessidade e contingência................................................................................................................................. 106
8. Causa e efeito ....................................................................................................................................................... 108
9. Transições .............................................................................................................................................................110
amazonas ................................................................................................................................................................. 125
1. Uma amazona de barba ....................................................................................................................................... 126
2. O espelho .............................................................................................................................................................. 130
3. O acontecimental ................................................................................................................................................. 137
4. Outras imagens ..................................................................................................................................................... 141
5. É de espelho, um semblante ................................................................................................................................ 145
6. (60.284.640).......................................................................................................................................................... 152
referências .............................................................................................................................................................. 164
incisos legais ........................................................................................................................................................... 177
direções
10
Michel Pêcheux, ainda na AAD-69, definiu o discurso como efeito de sentidos entre
interlocutores. Essa é a formulação base. A partir daí algumas outras noções foram
particularizadas, ou, como diria Orlandi em Análise de discurso, ciência e atualidade, de 2013, a
teoria propiciou o surgimento de teorizações a partir de suas análises. São pequenos
movimentos de agitação numa determinada direção, poucos deslizes; ainda assim, é seguro
dizer que o discurso, como efeito, é disperso, fugidio, inconstante, o espaço que se abre entre
uma causa e uma consequência, uma promessa de acontecimentos incipientes. Pensei
bastante sobre essa dispersão nos últimos tempos, a rede de materialidades em relação de
afetação que o analista mapeia para poder referenciar um sentido possível por meio da sua
leitura. A tentativa de cercear, de encadear logicamente, engessar o discurso num molde
homogêneo se alia a outra tarefa não menos compulsória e fracassada: a de uniformizar o
sujeito que enuncia esse discurso. Um trabalho que trate da caracterização do sujeito e que
não leve em consideração o desmantelamento da forma e da fôrma não está atento ao
movimento inconstante que permite a formulação acontecimental do discurso. A estrutura
não comparece como dado, mas como fato – ela particulariza e confere sentido à observação
do analista no momento da análise, não antes disso.
tese é um compósito de outras tantas texturas, formas, tipos e cores não convencionais. Um
texto que dança com as palavras e com os conceitos que põe em uso. Na Semiótica, Oriana
Maria Duarte Araújo, em Plus ultra: o corpo no limite da comunicação, de 2012, a trajetória
de atleta se mistura com a constituição de Oriana como autora, que utiliza de relatos e
memórias para dar ao próprio corpo o status de objeto. Finalmente, na Literatura, O mundo
desdobrável, de Carola Saavedra (2021), me fez pensar em como é possível que as marcações
do autor ao longo do texto não sejam necessariamente lineares ou óbvias, aparecem
sobrepostas ao texto ficcional, põem em suspenso a ideia de narração de eventos concretos
ou imaginários, borram a linha suposta entre essas instâncias. A teoria do discurso opera
com incoerências, falhas e faltas o tempo inteiro – é por meio desses falhamentos que
desmantelamos a obviedade, deslinearizamos os materiais escritos e investigamos o processo
e o funcionamento dos sentidos no discurso. A partir dessas constatações, não diria que se
mostrou imperioso devolver meu texto ao campo da dispersão, mas, tão somente, assumir
que o contorno conferido era uma frustação antecipada, o cumprimento de uma formalidade
que poderia ser questionada.
Este texto precisou ser repensado uma dezena de vezes. Seguia um caminho que aqui
e ali conferia maior rebeldia à forma clássica, mas ainda não arriscava desmanchar o arranjo
capitular. Num primeiro momento, resolvi fazer um documentário para montagem de um
arquivo. Depois disso, entreguei uma introdução da tese em lugar de projeto. Também fiz
uma capa ilustrada para acompanhar o trabalho antes mesmo de terminar o primeiro
capítulo. Juntei fotos, ouvi canções, gravei entrevistas, escrevi diários de produção. Estava
desde sempre me debatendo com a escrita linear de um revisor de textos formado em
morfossintaxe e com o fato de que a inquietude do discurso me punha em dispersão e deriva;
meu objeto de pesquisa, que desafia a lógica clássica, não cabe numa estrutura historicamente
formulada para formatar trabalhos acadêmicos, deixá-los todos com a mesma cara,
silenciando os sujeitos que ousam usar da primeira pessoa ou relatar algo subjetivo num
trabalho essencialmente pessoal. Diriam Villalobos, Andrade e Maffeis, em Aquilo que a dobra
guarda, de 2021, que a escrita de uma tese em estilo clássico opera mais como um “regime
autoritário interno do que de um exercício criativo fértil”. Segundo as autoras, é preciso
12
“questionar a ideia de que a pausa, a quietude, o não saber, o não fazer e a fratura são estados
que impedem a criação”, a intenção é a de “assumir que se cria também (e intrinsecamente)
em estado de repouso e ausência de controle” (VILLALOBOS; ANDRADE; MAFFEIS, 2021,
p. 73).
Que falta de tato tratar de discurso, da arte performática e do sujeito que a opera sem
considerar tecer um trabalho incômodo. Por essa razão, e porque falo sobre drag queens,
apresento a vocês uma tese montada. Montação é um termo que circula no universo drag e
que diz respeito ao ato de pôr roupa, peruca e maquiagem para então significar como
performer. A passagem do indivíduo ao sujeito drag é mediada por essa montação, um
processo discursivo que esta tese visa defender. Uma tese montada, assim, junta peças que
seriam consideradas estranhas entre si para compor um produto que se opõe à designação
projetada sobre ela – de qualquer tipo. Parte-se de um equívoco primordial, este entre o que
se vê e o que se é, mas, mais do que isso, assume-se o equívoco como pedra angular de toda
construção. Meu objetivo é o de pôr o espectador em suspenso e fazer, desse modo, jus à
contingência que é própria ao discurso e ao sujeito drag. Nesta tese, assim, converso. Faço
incisos, conto histórias, discuto pontos teóricos, transcrevo entrevistas, apresento vídeos,
elenco algumas citações aqui e ali, retomo textos antigos, enfim, tento me aproximar, tanto
quanto possível, da dinâmica fluida que pretendo observar.
09 de abril de 2022
13
Adro
Lembro que no começo da pandemia queria falar sobre tempo: como ele, de alguma
forma, foi cooptado pela lógica do capital e naquele momento de excesso comparecia como
falta. Se se trabalha fora, estamos sem tempo; em casa, na abundância de tempo que a peste
possibilitou a quem pôde cumprir afastamento social, afogamos o tempo no tédio e
perdemos, assim, a habilidade de operacionalizar, de trabalhar como antes. Nunca fui tão
improdutivo como na pandemia, por mais que tivesse tempo à disposição. A tese foi ficando
imiscuída no meio de traumas antigos e em construção, abafada pela desculpa do mau uso
do tempo na reclusão. A vontade de escrever só aparecia de relance, até se ausentar por
completo. Demorou bastante para organizar outro ritmo de produção e leitura, e mesmo
agora, com o pretenso final do período de cuidado, não consigo me colocar no mesmo lugar
de antes. “Tese”, isso que se lê no rótulo de outra caixa empilhada para a mudança do sujeito
que escreve.
14
2. Sobre o objeto
Comecei a me interessar pela questão drag há pelo menos dez anos, época em que
um programa chamado RuPaul’s Drag Race começou a passar na MTV Brasil. Nesse meio
tempo, terminei a graduação, o mestrado, comecei a trabalhar como revisor, depois como
professor. Já era 2018 quando, meio insatisfeito com o lugar profissionalmente estagnado,
resolvi tentar o doutorado na UFRGS e tive a ideia de encarar essa questão, que me
acompanhava há tanto tempo, como objeto teórico. Eu ouvia Pabllo Vittar, Glória Groove,
Kaya Conky, Potyguara Bardo e outras artistas drag queens de alguma projeção nacional,
apostando que a questão renderia uma discussão interessante sobre a constituição de um
sujeito complexo, deparado com essa possibilidade constante de vir a ser outro de si. Mais:
com a promessa de vazão de uma identidade possivelmente interditada em outros espaços,
mas capaz de resistir e se transformar ali, revestida pela linguagem que torna o fazer artístico.
torno de três pontos: o corpo, a arte e o discurso. Os sujeitos presentes no vídeo são artistas
drag queens que gentilmente nos ajudam a compreender as vicissitudes dessa expressão
artística, e a observar o discurso que lhes possibilita o sentido. Disto resulta que este estudo
se volta sobre a leitura dessa materialidade, o documentário Vrá!, disponível sob licença
gratuita e pública no YouTube, em dois endereços, o capítulo um1 e o capítulo dois2 do
documentário. Para fins legais, sigo, então, a determinação estabelecida pelo Ofício Circular
nº 17 de 2022 do CONEP/SECNS/MS, que orienta sobre a Resolução CNS n.º 510, de 7 de
abril de 2016, regulamentando os “projetos que utilizam metodologias características das
Ciências Humanas e Sociais e que estão dispensados de submissão ao Sistema CEP/Conep”
(CONEP; SECNS; MS, 2022, p. 1). Trata-se, assim, de uma pesquisa que não necessita ser
registrada nem avaliada pelo Sistema CEP/Conep, pois se utiliza da leitura de informações
de acesso público, nos termos da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 20113.
O primeiro episódio do vídeo levou o nome de Lady Vina, drag caxiense sediada em
Porto Alegre, que acredita que a emoção e movimento são os pilares de sua expressão
performática. Apesar da opção pelo narrador em off, a investigação conduzida na entrevista
com Lady está longe de progredir como monólogo. Sua voz está em diálogo constante com
outros ditos e reverbera, principalmente, na arquitetura das discussões sobre o descompasso
entre a consciência da divisão e o retorno inconsciente que unifica ela ao eu, como se percebe
em: “A Lady é bem corporal. Se movimenta muito no palco, e é uma das coisas que eu mais
gosto em mim... Nela... Em nós. Usar a movimentação, fazer a movimentação falar alguma
coisa para o público. Além da boca, além do rosto. É uma coisa que eu gosto bastante de ver
em outras e de ver em mim também”.
1
Disponível em: https://youtu.be/jtc6xRsPgAs. Acesso em jan. 2023.
2
Disponível em: https://youtu.be/d24dfwkaM9o. Acesso em jan. 2023.
3
Como acesso público entende-se, segundo o Ofício Circular nº 17 (2022), ao mencionar a Resolução CNS n.º
510, de 2016, artigo 2.º, VI, “dados que podem ser utilizados na produção de pesquisa e na transmissão de
conhecimento e que se encontram disponíveis sem restrição ao acesso dos pesquisadores e dos cidadãos em
geral, não estando sujeitos a limitações relacionadas à privacidade, à segurança ou ao controle de acesso. Essas
informações podem estar processadas, ou não, e contidas em qualquer meio, suporte e formato produzido ou
gerido por órgãos públicos ou privados” (CONEP; SECNS; MS, 2022, p. 2).
16
construto de linguagem; nesse entorno, interessa analisar as marcas pelas quais o indivíduo
se põe como sujeito na língua, que podem ser, por exemplo, o pronome eu, um nome
próprio, a opção por uma elipse etc. Na enunciação, dirá Fiorin, n’A pessoa desdobrada, de
1995, todo espaço e todo tempo se organizam a partir da centralidade do sujeito, sendo essa
categoria essencial para a constituição do discurso4. No quadro figurativo desse processo de
enunciação, existe um locutor (eu) que postula e supõe um alocutário (tu), com quem reveza
o direito de dizer, de forma que eu e tu são as duas pessoas da enunciação, construídas pela
reversibilidade dos papéis de sujeito. No caso de Lady, não se utiliza explicitamente o tu,
mas, sim, o “ela” e, logo em seguida, o “nós”. Esse tipo de articulação refere um tipo de
mecanismo linguístico denominado debreagem, que consiste, “num primeiro momento, em
disjungir do sujeito, do espaço e do tempo da enunciação e em projetar no enunciado um
não eu, um não aqui e um não agora” (FIORIN, 1995, p. 27). Nesse sentido, o ela, diferente
do tu com quem se troca os turnos de fala, funciona como objeto, uma não-pessoa. Dizer
ela, nesse caso, é deixar de dizer eu, e, assim, fazer do outro mero objeto do eu.
4
Ressalte-se que a noção de discurso mobilizada por Fiorin é distinta daquela formulada por Pêcheux,
complexificada por Orlandi e movimentada pela tradição brasileira de Análise de Discurso (ou Análise
materialista de discurso, como se costuma dizer). De um lado, tem-se a passagem de um estado de possibilidade
de língua a atualização de um agora, inserção do homem no mundo por meio da linguagem. De outro, opera-
se com os efeitos de sentido entre interlocutores, materializados em um construto linguístico sustentado por
uma intricada série de processos ideológicos e inconscientes, operacionalizados por um sujeito sócio-
historicamente determinado.
17
uma imagem de outro-de-si que toma as vezes do espaço reservado para o eu e fala por ele.
Mais do que isso, ela é autorizada a dizer aquilo que o eu é interditado de falar: seja por
interferência da lei da cultura, das restrições inconscientemente designadas ou do
acondicionamento ideológico numa dada direção. A ressalva que o próprio sujeito faz a esse
lugar que ele determinou como sendo autorizado dizer, ou seja, o ímpeto de ele próprio
assumir o dito e a posição-sujeito que ele representa no discurso, é revelada pela utilização
do nós, a tentativa de reintegração da posição dissidente no fio do discurso do sujeito que diz
eu.
Em outro trecho do vídeo, Lady fala sobre como a drag transformou seu corpo, e
menciona o fato de ter raspado as sobrancelhas, para que a parte delas que precisa ser colada
fosse menor. Esse processo de colagem e cobertura é necessário na maquiagem drag porque
apaga as demarcações naturais do rosto, e permite criar um novo côncavo. É possível criar
mais espaço para sombra, aumentar ou diminuir os olhos, redesenhar as sobrancelhas,
diminuir a testa, enfim, fabricar outra estrutura facial a ser desenhada neste quadro agora
em branco. Sobre a raspagem, Lady diz “Foi bem lento esse processo também, na real. Que
no verão, no verão passado fez muito calor, e minha sobrancelha vinha até aqui. Eu tenho
uma sobrancelha bem grossa. Escura também. E nunca foi um problema pra mim no
inverno, mas daí no verão eu percebi: não tá rolando isso aqui. Tá saindo no meio do show,
tudo descola, na hora de maquiar é ruim também... E daí, tá. Que eu que vou fazer? Deixei.
Daí um dia quando eu fui me barbear tirei um pouquinho aqui, o excesso que tinha do lado,
e aí eu acabei tirando um pouco. No outro mês tirei mais um pouco, e mais um pouco, e
quando eu vi estava na metade. E eu não fui perceber isso na hora que eu tirei. Eu só fui
depois, quando eu vi uma foto de três, quatro meses atrás, em que minha sobrancelha tava
inteira. Eu tô com metade da sobrancelha. Meu Deus. E eu só ri. Para mim não... Para mim
pessoalmente não foi uma coisa que afetou. Mas aí de novo já vem alteração do corpo, né?
Como que a drag acabou alterando o meu corpo”.
Fiquei pensando na foto e no espelho como superfícies que permitem perceber esse
outro transformado em outro-eu, e que também confere contorno à imagem. No Seminário
XI, de 1964, Lacan ([1964] 1984) utiliza a metáfora da lata de sardinha boiando na água que
18
permite ao navegante olhar5 e, ao mesmo tempo, se perceber olhado pelo reflexo que se
forma no fundo do ponto luminoso dessa lata. O outro está no olho e o eu está no outro. O
figurado figurando talvez seja o que define com maior precisão o exercício de percepção
desse eu que olha e é olhado de volta. Os desarranjos e rearranjos marcados pelo jogo entre
mim e ela, o meu corpo e o dela, e como ela afeta o eu e expande sua cena, são primordiais
para o desenvolvimento de uma leitura que situa no sujeito a negação de uma posição
discursiva que parece se dividir em duas, mas que remonta a mesma posição-sujeito. Daí a
necessidade de aproximação entre o sujeito da Psicanálise e o do discurso, já que nesse jogo
a imagem transformada de si parece ser aquilo que interpela o sujeito. Convoca-o ao espaço
de ação desta posição outra, autorizada a ser e a mostrar isto que o controle social não
concede ao corpo doutrinado do cotidiano, que é vigiado por normas alinhadas às práticas
materiais dos aparelhos ideológicos de Estado. O discurso em sua manifestação simbólica
nos permite observar o câmbio entre o eu e o outro, e, ao mesmo tempo, analisar como as
representações imaginárias dessas funções dialogam com a esfera do político ao se inscrever
na história.
3. O tique e o trauma
Em O retorno do Real, de 2017, Hal Foster discute como, no final da década de 1960,
os críticos de arte dividiam os vanguardistas existentes entre realistas ou ilusionistas, isto é,
preocupados na apresentação ou na representação dos objetos do mundo em sua relação com
o fazer artístico. Em oposição a esse sistema binário, Foster observa, principalmente nas
obras de Andy Warhol, uma espécie de modalização do sistema, o realismo traumático,
corrente que não opera necessariamente com a apresentação fidedigna do objeto no mundo,
mas com a representação e reprodução traumática de um sujeito que comparece por
intermédio de artifícios como a repetição, registro relacionado ao campo do real lacaniano.
Nessa linha interpretativa, obras como Shot Sage Blue Marilyn, de 1964, não operam
5
A noção de olhar é sistematizada em outro momento deste texto, em conjunção à ideia de semblante, no
tópico É de espelho, um semblante.
19
unicamente com a repetição de uma mesma figura com o propósito de esvaziar o sentido,
torná-lo automático, técnico e reprodutível em massa como afirma o próprio autor, mas,
sim, apontam para a forma como uma cena realista – o retrato de Marilyn Monroe – encobre
a fixação do objeto na melancolia, integrando o trauma – o suicídio Marilyn – numa cadeia
simbólica. Mais do que a fixação do trauma denunciada pela repetição, essa série termina
por produzir outro efeito traumático, um ligado à evasão e outro relacionado à abertura para
o trauma que se denuncia a partir de um olhar mais atento para a produção da obra de arte.
Lacan ([1964] 1984) chama de tiquê esse retorno traumático com o real que resiste ao
simbólico, em oposição ao automatôn, a repetição do reprimido como sintoma. O tiquê pode
despontar num objeto artístico sob a forma da repetição, mas também por intermédio de
um punctum6 específico, a representação simbólica de um objeto estranho que é denunciado
por uma imagem alheia à cena, como a caveira retorcida (anamórfica) retratada por Hans
Holbein em Os Embaixadores, de 15337.
6
O termo punctum foi mobilizado por Barthes em A câmara clara, de 1980, e pode ser entendido, grosso modo,
como o ponto (no caso de Barthes, na fotografia) que se impõe ao espectador, que demanda seu interesse.
7
O exemplo é discursivizado por Luciene Jung de Campos em Imagens à deriva: interlocuções entre a Arte, a
Psicanálise e a Análise do Discurso, de 2010.
20
Figura 2 Hans Holbein, o jovem. Os Embaixadores, 1533. 207 cm × 209.5 cm. Pintura. Óleo sobre tela. National Gallery, Londres.
Disponível em https://bit.ly/374buiF. Acesso em abr. 2022.
21
8
Disponível em https://bit.ly/3vTom3v. Acesso em abr. 2022.
22
No começo de sua fala, Lady explica que “o nome vem de uma poodle que a gente
tinha que chamava Lady, e desde que ela faleceu eu queria muito que meu nome tivesse Lady
nele, aquela coisa, um cachorrinho, uma coisa que a gente gosta bastante e que a gente quer
continuar com esse amor em outras áreas, enfim. E daí num dia com meus amigos veio o
Lady Vina. Acaba sendo um trocadilho também, eu gosto muito de trocadilhos,
ambiguidades”. O nome de Lady, assim, encobre e produz o real traumático da morte da
cadelinha, “é como esses lampejos: parecem acidentais, mas também parecem repetitivos,
automáticos” (FOSTER, 2017, p. 130). O mesmo pode ser dito sobre Ruth Venceremos, drag
que vai comandar a assessoria de diversidade na Secretaria de Comunicação Social do
governo Lula9. Na ambiguidade instaurada entre vencer e vem ser, Ruth denuncia a
possibilidade de, agora, estar habilitada a existir – o que prediz a condição anterior de não
existência, de derrota –; o nome carrega consigo a história dos fracassos, mas, também, a
possibilidade de vencer em comunhão que se torna possível no novo governo.
9
Disponível em: https://bit.ly/3jIuIRi. Acesso em fev. 2023.
23
O autor inconfessável
4. Problemas laterais
10
Disponível em: https://bit.ly/323zQSr. Acesso em fev. 2022.
11
Disponível em: https://bit.ly/2XfS6ck. Acesso em fev. 2022.
12
Cf. SANTOS, Joseylson F.; VELOSO, Maria do Socorro F. Espelho, espelho meu: uma leitura do feminino
midiático através do corpo drag, 2010.
26
linguagem sobre a performance drag tenham se ocupado de uma faceta difusa e em caráter
particular, por vezes confundindo performance (artística, p. ex.) e performatividade (relativa
à atividade identitária filiada ao gênero). De minha parte, espero, se tiver êxito em
demonstrar o papel da arte na performance drag queen, poder esclarecer a forma pela qual
ocorre a constituição desses sujeitos e o discurso ao qual eles se filiam para poder significar.
Na jornada que se inicia, o primeiro problema com o qual nos deparamos ao abordar
a questão drag queen, é precisamente o seu caráter indeterminado, ao qual me referi
anteriormente. Acredito ser essa indeterminação um dos produtos do processo que leva à
designação opaca de trouble. Esse termo em inglês desvela mais duas possibilidades de
sentido, ou outros dois problemas laterais que o atravessam: o que traduzi como encrenca,
rebeldia, e o que tomei como dificuldade, repressão. Quanto ao primeiro entrave, as condições
de investigação que conferem à temática drag certa indeterminação estão ligadas à
proximidade destes sujeitos com aqueles que ocupam posições discursivas marcadas pela
expressão de gênero, a exemplo das travestis e das transexuais. Talvez não seja demais
assinalar que a memória social construída em torno desses sujeitos, afetada pela matriz de
sentido heteronormativa, os tomou como equivalentes e os pôs em cadeia parafrástica com
gays, desviados, transformistas, crossdressers, cdzinhas, t-gatas e bonecas13. Apesar de
aparentemente condensados pelo rótulo do travestismo e da performatividade, cada um
destes termos designa uma expressão diferente, mais ou menos relativa ao gênero, à
sexualidade e ao fazer artístico. Ademais, elucidamos que não se descarta a possibilidade da
junção ou do câmbio irrestrito entre estas alcunhas poder funcionar como forma de ofensa,
já que elas remetem a posições sociais e discursivas radicalmente opostas.
13
“transformista” era um dos termos utilizados para se referir aos homens que se vestiam como mulher durante
as décadas de 1930 até 1970. Funcionou como um guarda-chuva para designar outras especificidades do mesmo
fenômeno, a exemplo dos crossdressers, pessoas que se vestem com roupas marcadamente do sexo oposto sem,
necessariamente, encaminhar uma performance de tipo artístico ou conotar atividade sexual. “Desviado” é
outro termo guarda-chuva, desta vez para referir homens gays, montados ou não de drag, “transformados” ou
não no sexo oposto. “Cdzinha” é uma derivação de crossdresser (cd), mas comparece, normalmente, associado a
jovens que se utilizam dessa expressão para cunho sexual, predominantemente em ambiente virtual, como
camgirls; “boneca” pode aparecer como um termo análogo a cdzinha, ou, diferente disso, como sinônimo de
“drag queen”. “T-gata” surge para designar todas as pessoas cuja transição de gênero é traço característico de
sua expressão, pode abarcar travestis, trans, pessoas não-binárias e outros mais.
27
14
É provável que não devamos excluir a possibilidade de composição de uma análise discursiva que trate dos
dizeres sobre a performatividade de gênero a partir do sujeito do discurso. Preciso destacar, entretanto, que da
maneira como encaro esta problemática hoje, não vejo como a construção geral de uma categoria de sujeito
performático de gênero possa passar ao largo de uma discussão sobre o indivíduo, já que a pretensão seria
observar, ao longo do tempo, as repetidas performances de um sujeito referentes ao modo de ser do indivíduo.
15
Do cineasta Luchino Visconti (1969).
28
Para Rita von Hunty, em entrevista concedida ao Mamilos Podcast, em 2019, por mais
tempo do que se possa calcular, desde o surgimento da Tragédia Grega no século 5 a.C., a
arte drag respondia aos conflitos sociais enfrentados por determinada comunidade. Na
Grécia Antiga, apesar da impossibilidade de as mulheres atuarem nas festividades didáticas
e moralizantes do teatro, era necessário retratá-las, e não haveria outra forma de fazê-lo
senão pela caracterização feminina de atores masculinos. É curioso pensar que apesar de
aparentemente corroborar com as regras determinadas pelo establishment, performar como
mulher, isto é, re-apresentá-la durante as tragédias, denunciava que algo naquela estrutura
falhava, precisava ser dito de qualquer modo, ainda que sob o arremedo da representação. A
causa desse desvio não estava no teatro, mas fora dele, na sociedade que o arranjava. O
esforço para manter a relevância e a participação política da mulher à margem dos meios
institucionais, pela representação masculina de características femininas, é implodido pela
própria arte drag. Esta, ao produzir um efeito de estranhamento (ostranenie), suspende a
automatização do sentido, faz com que suspeitemos da forma e obriga que voltemos atenção
para o conteúdo.
não estaria, assim, a serviço do belo e do bom gosto, como o predizia Kant (Cf. CAMPOS;
NECKEL, 2016), mas em função da libertação da percepção do automatismo.
O mesmo ato de rebeldia da drag contra as regras estabelecidas socialmente pode ser
percebido em diferentes momentos da história dessa arte no contexto da civilização
ocidental. Depois do período da Tragédia e durante toda a Idade Média, não existem
registros históricos suficientes para tratar de uma tradição ligada à arte drag. Daremos,
então, um salto histórico para o século XVI. Para Hunty (2019), no período elisabetano,
principalmente entre 1585 e 1592, época de maior expressão da produção shakespeariana, o
termo drag começa a circular como acrônimo de dressed resembling as a girl16. Mais uma vez,
o teatro necessitou utilizar-se da drag para dar voz ao feminino, e, de novo, a rebeldia
intrínseca a este ato emaranhou-se por entre as normas e fez furo na estrutura. Inspirados
nos atores, alguns homens ousaram vestir-se com roupas femininas fora do espaço do teatro,
fazendo com que a polícia europeia conduzisse investigações criminais contra o que seria
considerado atentado ao pudor ao longo dos séculos XVIII e XIX. Mais tarde, na década de
1920, drag é lida como parte do espetáculo freak e integra as atrações circenses17. Devido à
proximidade com a forma de apresentação estética dos palhaços, também maquiados e por
vezes vestidos de mulher, as queens começam a incorporar a dança e a dublagem nas suas
apresentações, de maneira a singularizar as performances que conduziam.
Em 1930 e 1940 sob a denominação geral do estilo Pansy Craze, ocorre uma
aproximação mais explícita entre a arte drag e a cultura gay, que se apropria dessa expressão
artística e a inclui no itinerário dos shows realizados em casas noturnas. Com a criminalização
da homossexualidade em 1950, drag passa a ser associada a grupos marginais e à prostituição.
A memória sobre essa arte é atualizada de maneira significativa em meados de 1960, quando
um grupo liderado por mulheres trans e drag queens se coloca na linha de frente dos
movimentos organizados em torno da constituição dos direitos dos homossexuais. A
culminância das revoltas ocorridas durante esse período corresponde ao acontecimento
16
“Vestido parecendo uma garota” (tradução minha).
17
Do inglês “freakshow”. O termo é utilizado para se referir ao circo das aberrações, inspirado no teatro
itinerante dos monstros, formato de espetáculo europeu em voga no século XVIII (Cf. Courtine, 2013).
31
18
Acrônimo de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queers, intersexo, assexuais,
pansexuais e outro mais.
19
O Teatro de Revista de maneira geral, e figuras como Dercy Gonçalves, Rogéria, Jane Di Castro, Divina
Valéria, Eloína dos Leopardos, Brigitte de Búzios, Camille K., Fujika de Halliday e Marquesa, em particular.
Ainda que sob o recorte de apenas oito artistas e em um local específico, o Teatro Rival no Rio de Janeiro, o
documentário Divinas Divas, de Leandra Leal (2017), ilustra a maneira como a arte drag acontecia no Brasil dos
anos 1950. A obra retoma a discussão sobre termos como travesti/transformista e explora a relação dessas
performers com questões relativas ao gênero e à transexualidade.
32
A breve investigação sobre as revoltas que marcaram a temática drag queen fez nosso
interesse dirigir-se muito exclusivamente para a sua constituição histórica. Bem mais
peculiar é outra constatação: a de que estes dois pontos de inflexão são uma e a mesma coisa.
A história da arte drag é a história sobre as revoltas que ela conduziu e os sentidos que
subverteu nesse processo. Não podemos nos queixar sobre o fato da remontagem efetuada
aqui só poder achar uma expressão lacunar, de grandes supressões e saltos históricos. A
partir de nossa compreensão, esta é a história de uma forma artística galgada nas bordas das
belas artes, nos papéis secundários, por grupos minoritários e no meio underground. À
margem, a história dos oprimidos se inscreve por pontos que abrem índices de resistência
ao sentido em dominância, este da hegemonia que os procura sobrescrever. Quando
menciono a rebeldia como problema lateral não me refiro ao papel contravertido do sujeito
drag queen, mas à força da resistência histórica pasteurizadora que buscou apagá-lo, silenciá-
lo e encarcerá-lo em espaços marginais.
Mas não podemos, em nome da simplificação, nos esquecer do impacto social que a
drag consegue alcançar, apesar da ação da homogeneização. Isto fica claro em episódios
pontuais como Stonewall, mas também se evidencia na entrada das queens no cinema, no
teatro, na música, na dança e nos programas de televisão. Logo, a maneira como a arte drag
responde à uniformização imposta pela memória normativa se baseia na incorporação de
expressões artísticas, de gênero e de sexualidade vindas das camadas mais diversas, que
historicamente lhe foram outorgadas. Daí podermos afirmar que a drag, por vezes, alude à
mulher pela forma como a representa em performance, mas também, por extensão, aos
palhaços, às travestis, aos atores, cantores, manifestantes, à história e à política.
Além disso, creio que a questão subjacente à incorporação venha a ser aquilo que, do
centro, afeta os três campos laterais. Para expressar isso de modo mais simples, a
incorporação diz respeito à coisa sobre a qual incide a indistinção, a instância que opera com
a rebeldia, e aquilo que responde à repressão. Trata-se de um único ponto de tropeço a partir
20
Na situação que estamos considerando, o termo diz respeito (a) ao movimento de tomar para suas
designações dos grupos minoritários historicamente outorgados à arte drag, integrando-os à sua dinâmica
própria; (b) pôr o corpo em ação – in-corpo-ação; (c) tomar forma pelo corpo (a arte, o sujeito, a posição).
34
do qual se pode fazer obstáculo à história e à língua: o sujeito. O sujeito drag queen é, assim,
o núcleo ausente da problemática tripartida que aqui se descreve. Este que toma forma pelo
corpo e o põe em ação na performance, também é aquele que em reação às tentativas
continuadas de exclusão, concatena as próprias afecções com a dos corpos a ele externos. A
hidra cujo corte não mata, mas faz sempre despontar um novo membro. Nos entornos da
categoria de sujeito orbitam as noções basilares deste estudo, cujo mote foi sendo anunciado
nos parágrafos anteriores, ainda que muito timidamente. Resumidamente, nossos interesses
teóricos neste texto se voltam sobre a arte da performance drag, o corpo que a executa e o sujeito do
discurso que a significa. Cada um desses tópicos, entretanto, concentra em si uma série de
questões passíveis de deslocamentos e inversões, articuladas em torno de algumas
delimitações iniciais, que nos farão avançar a discussão. A primeira delas é de natureza lógica
e diz respeito ao paradoxo do corpo cuja unidade é submetida a uma divisão que não cansa
de insurgir.
Em benefício de uma terminologia possível para “o corpo como objeto paradoxal”, parte
deste estudo investiga a maneira como o paradoxo foi concebido, enfatizando o tratamento
a ele conferido em diferentes períodos da história do pensamento científico. O percurso que
trilhamos identifica duas grandes epistemes, esquematicamente organizadas por uma
dinâmica que se efetua entre o núcleo e as bordas. No centro, a primeira corrente
epistemológica, a das disciplinas logicamente estabilizadas, encontra respaldo na lógica
aristotélica. Voltada para o tratamento uniforme e estável dos objetos científicos, esta
vertente reserva aos paradoxos e às contradições que lhe são próprias a periferia do sistema
estruturado de conceitos e de noções teóricas. Em resposta a esta última, o desenvolvimento
em paralelo da segunda episteme utiliza uma lógica paraconsistente, galgada nas bordas dos
campos estáveis, e que opera diretamente com os diferentes tipos de contradição. É no
interior do campo do discurso, que desde sua fundação atuou sobre as inconsistências
lógicas21, que surge a designação de objeto paradoxal, formalmente tratada por Pêcheux em
21
Notadamente, sobre a desorganização dos universos formais logicamente estabilizados (na Linguística).
35
Ao ser perguntada sobre sua relação com o corpo, Lady diz “defina corpo”. Aqui nós
temos que abarcar um âmbito muito maior, já que durante sua argumentação ela dividiu “o
corpo físico” daquele “corpo que a gente não vê”. Aí está o que Pêcheux menciona ser uma divisão
entre o caráter regional e de classe. Se um tal objeto permite esse tipo de arranjo entre físico
e espiritual, público e privado, psíquico e somático, individual e social, ele comporta em si a
potência de um paradoxo. O processo paradoxal é muito frequente em Análise de Discurso,
já que é comum tratá-lo sob o título das formas que assume a contradição. Esse é o caso, por
exemplo, de duas formações discursivas contrárias estarem filiadas a uma mesma formação
ideológica. Serem contraditórias entre si e paradoxalmente referirem ao mesmo conjunto
de dizeres, como a formação discursiva católica e a evangélica estarem filiadas à formação
ideológica cristã. Além desses casos clássicos em que a contradição ocorre de maneira mais
simples, também devemos considerar as ocasiões em que há uma negação (o corpo não é
evidente. “Defina de qual corpo se trata”), um investimento sobre a ambiguidade (o corpo é
físico e também espiritual) e a alocação de uma incompletude (este corpo a gente não vê/este
corpo está em outro plano) num movimento simultâneo.
Simplificadamente poderia se dizer que nos deparamos neste exemplo com o corpo
enquanto objeto contraditório. Diria que sim e não, já que existem diferentes formas de
incidência da contradição sobre um mesmo objeto. Atentaria ainda para o fato de que apesar
de aparentemente designar um mesmo ato contraditório, existem termos específicos para
37
22
A formulação original diz que “dentro da dimensão do equívoco, a aproximação mais efetiva se dá com o
fenômeno da ambiguidade, considerada como caso-limite” (LEANDRO FERREIRA, 1994, p. 154).
38
outro, relembrando, assim, a sua constituição. “A performance mostra, assim, que o sujeito
só pode aparecer de forma efêmera, fugaz, como efeito de um ato que se dá entre o eu e o
outro” (RIVERA, 2018, p. 24). Daí a possibilidade de assumir o sujeito drag no espaço
intervalar, esse vão que se abre entre eu e ela. De forma bastante particular, na filiação mesma
à rede de sentidos que sustenta esse sujeito, a posição ocupada pela drag opera no limbo23, a
partir do entremeio, num espaço de desidentificação com a formação masculinista e, ainda
assim, sem atar-se de maneira superidentificada à formação feminista que nos serve de
contraposto à FD masculinista. Trata-se, como venho afirmando, de uma posição enviada:
lançada, mas não pousada ou assentada.
23
O termo me foi oferecido por Evandra Grigoletto durante a defesa da tese e se ata perfeitamente à definição
intervalar que procuro adjetivar, a começar pela sua definição formal: trata-se de um substantivo masculino, este
que designa o exterior de algo; uma margem, borda, rebordo. Margem que se desenha em torno de si para
poder significar de outro lugar, e, além disso, borda que traceja os limites da FD masculinista e da FD feminista.
Em sentido possível, o limbo é o estado do que se encontra esquecido, negligenciado, indefinido, negligenciado
– remissão ao que de feminino foi cultural e ideologicamente reprimido no desenvolvimento da posição
masculinista. Ainda sobre a definição desse substantivo, nos deparamos com uma condição de dúvida, de
indecisão e incerteza – de não-formatação, de filiação operacionalizada por uma não-filiação, rebeldia, negação.
39
parte de falar, talvez... De ter que lidar com o improvável. Com alguém falar alguma coisa
pra ti e tu ter que ser rápida pra devolver. E tu quer ser engraçada, tu quer falar sério, que é
que... São coisas que a gente vai vendo enquanto tá falando... Aí! fico assim... Como usar
isso, já que é a coisa que eu mais me sinto confortável com meu corpo: é a movimentação e
tudo mais; como usar isso pra falar com a plateia? É uma coisa muito difícil plateia”.
Para Lady, esse público, “também acaba sentindo de alguma forma isso”, e ao fazê-lo,
“eles me devolvem esse sentimento”. Essa dinâmica da troca entre artista e público, eu e outro,
parece orientar qualquer prática performática. Quando utilizo do termo público ao longo do
texto, não pretendo reduzir a agência daquele que vê a performance – o ato performático
compreende uma interação contínua entre performer e audiência –. Durante a performance
24
Tradução minha do original “greetings, displays of emotion, family scenes, professional roles, and so on –
through to play, sports, theater, dance, ceremonies, rites, and performances of great magnitude”.
41
o artista retira o espectador da posição daquele que assiste e o transforma naquele que anseia,
que aguarda, esse expectador permanece na expectativa pelo próximo passo, se encontra em
situação de alerta e de tensão. É controlando a tensão que circunda o ato artístico que o
sujeito realiza a performance, a manutenção da tensão entre artista e público se alia ao
tensionamento das regras dessa performance. Esta é uma arte fundada no espaço de entremeio
que revela tanto a conjunção entre uma e outra forma quanto o espaço vazio que existe entre
elas. Existem diferentes processos artísticos que a performance põe em relação no ato de sua
realização – a dublagem utilizada na performance drag, por exemplo, compreende elementos
da música e do teatro, mas também é possível articular videoperformance com canto, dança,
poesia, pintura etc. Aprofundo essa discussão em outro momento deste texto, no tópico
Performance em tela fria. Por ora, é interessante observar que esse espaço de contato dinâmico
proporcionado pela performance não permite que haja recepção no sentido mais clássico do
termo – a relação estabelecida é de afetação, troca, participação contínua, tensão, mescla.
No Rio de Janeiro, a performance de Miz Cracker25 não foi bem recebida pelo
público, que não teve correspondido o grito por “ele não”. Alheia às manifestações que
ocorriam no Brasil durante aquele período, a drag nova-iorquina passou a ser lembrada por
esse silêncio, que terminou por apagar a memória da dublagem que havia realizado
momentos antes do interdito. A ferida aberta no corpo social democrático brasileiro durante
25
Disponível em: bit.ly/31JOVYc. Acesso em jan. 2021.
43
A relação entre artista, obra, público e Outro é remodelada a cada nova apresentação
ou reprodução, play ou rec. Na performance, afirma Rivera (2018, p. 24), trata-se justamente
de dar-se a ver ao Outro, “nesse apelo além do espelho, há uma tentativa um tanto superficial,
a bem dizer, de ‘co-memorar’ (relembrar) o próprio surgimento do sujeito, em sua
dependência e demanda em relação a um Outro”. Assim, ao invés de traçar distinção fixa
entre a performance gravada e aquela que efetivamente se deu em espaço e tempo situados,
penso ser mais produtivo tratar de um vir-a-ser que se construirá simultaneamente à
elaboração da performance, oferecida ao Outro. Trata-se de uma “produção de
conhecimentos, sob a forma de discursos, que se elabora a partir de, ou simultaneamente à
produção artística”, como afirma Iclea Cattani, em Arte Contemporânea: O lugar da pesquisa,
de 2002 (CATTANI, 2002, p. 42). Esse método de abordagem da performance opera com a
compreensão fornecida pela arte contemporânea, que permite visualizar uma produção
marcada pelo acaso, oferecida simultaneamente como discurso e como promessa. Desse
modo, não reduzimos a performance a rótulos, formas e regras fixas. A intenção é a de dar
margem à atualização e circulação, ao surgimento do novo, do diferente.
1983. Na performance, o encontro instaura uma cena que engloba artista, público, espaço e
tempo. Nesses termos, o documentário funciona como registro de um ato formado no/pelo
encontro. Enquanto arquivo, esse registro de vídeo guarda relação com um acontecimento26,
no nosso caso, um acontecimento artístico-performático em torno de uma questão histórica
– a fortificação da arte drag em tempos de repressão, que não responde senão à posição do
sujeito no discurso. Acredito que é assim que o documentário deva ser lido: primeiro como
obra, depois como estudo. Das materialidades selecionadas, isto é, as sequências que do vídeo
foram recortadas, montou-se um corpus de falas e performances a serem ouvidas neste texto,
primeiro como análise, depois como homenagem à rebeldia em um altissonante VRÁ!
26
A formulação é de Eni Orlandi, em Documentário: acontecimento discursivo, memória e interpretação, texto
publicado em 2011.
46
lógicas / paradoxos
47
De partida, consideremos que o título desta seção seja interpretado seguindo uma
concepção proposicional binária básica: o que se afirma pode ser verdadeiro ou falso. No
primeiro cenário, se a sentença é verdadeira, todo o conteúdo deste tópico é mentira,
incluindo o título da seção, e, se é mentira o que este título nos diz, então ele é falso. Por
outro lado, se, de início, tomarmos o título como sendo mentiroso, ele efetivamente cumpre
o que prediz, logo, nos impõe uma verdade. Esse tipo de formulação em que não se é possível
designar um caráter comprovadamente falso ou verídico sem o auxílio de uma
particularização referencial, veicula um paradoxo. Ao longo da história do pensamento
humano, alguns paradoxos foram tomados de base para reflexões acerca do funcionamento
dos contrários. O paradoxo do mentiroso, por exemplo, sobre o qual nos detivemos
brevemente nesta exposição, foi alvo de inúmeras elaborações e revisões conceituais, como
a de Pierce, que o classificou como insubordinado ao princípio lógico do terceiro excluído,
sendo, portanto, inconsistente.
a separação entre o mundo real e o das aparências, e reduz a dialética a um modo específico
do conhecer, distinto da lógica, que constitui um método, instrumento próprio do conhecer.
Além do terceiro excluído, segundo Marilena Chauí (2000), existem outros dois
princípios elementares do campo da lógica aristotélica. O primeiro deles, o de identidade,
opera na manutenção de um caráter de identificação, de forma que um ser seja sempre
idêntico a si mesmo. Correlato do primeiro, o segundo princípio é forjado com base na não-
contradição, de maneira a impedir que um ser seja e não seja idêntico a si mesmo, num
mesmo tempo e na mesma relação. Juntos, esses três princípios regem o silogismo, uma
forma específica de formatação e encadeamento de proposições. Tais unidades expressam na
linguagem as operações de raciocínio articuladas por meio de juízos. O modo de organização
dos silogismos é pautado em inferências e deduções, dois métodos de raciocínio que se
apoiam na síntese de premissas verdadeiras para chegar a conclusões também verdadeiras.
Se nos voltarmos para as restrições que esse resumo do complexo sistema de estruturação da
lógica aristotélica nos apresenta, encontraremos um estado de coisas que é flagrante e que
sempre foi reconhecido. É de esperar que essas classes não se voltem sobre a contradição, ou
mesmo que reconheçam sua existência para depois tratá-la como trivial. Em qualquer um
dos cenários descritos, as proposições dialéticas não participam do eixo central do raciocínio
lógico, que prevê ações desde sempre sustentadas pela assunção de uma verdade e pela
afirmação de suas premissas.
uniformização, porém, não cessava de irromper no interior das estruturas, primeiro sob o
título de paradoxo, e depois sob a ideia de infinito. Em reconhecimento dessas questões, após
o fundamento da análise aristotélica, outras correntes da lógica, como a paraconsistente,
passaram a discutir conceitos que, por vezes, colocavam-se às bordas do impossível.
Nesse campo, uma série de investigações se abre a nossa frente, cujos resultados não
podem deixar de ser decisivos para a construção analítica do que proponho: o corpo como
objeto paradoxal. Assim tomado, esse objeto rompe com a lei da não-contradição da lógica
clássica, atacando, por vezes simultaneamente, os três princípios fundamentais que
enumerei anteriormente. Primeiro, pela possibilidade de não coincidir consigo mesmo,
segundo por ser um e não o ser ao mesmo tempo e sob as mesmas condições, e, por fim, por
poder encontrar-se em estado de sobreposição, em condições de um terceiro elemento
integrado. Tais particularidades podem ser demonstradas, em maior escala, pela discussão
transdisciplinar do corpo tomado como objeto, sua invenção como categoria teórica27 e, em
um plano mais específico, pelos diferentes casos de distorção da imagem que o sujeito faz de
seu corpo. Se, ao transformar a imagem unitária que tenho de meu corpo por meio de
intervenções estéticas e artísticas como aquelas proporcionadas pela maquiagem drag,
produzo outro desse corpo, a que instâncias subjetivas esse duplo se atrela, e qual o discurso
a que se filia? Imagino que um esforço teórico para tentar responder a questões desse tipo
não seria vão e que, pelo menos em parte, faria jus à formulação incipiente de Pêcheux acerca
da complexidade dos objetos paradoxais. É sobre a apresentação dessa discussão que gostaria
de me voltar a partir deste ponto.
2. Paradoxos
27
Cf. Corbin ; Courtine ; Vigarello (2017).
50
na história, tomando como base o capitalismo e as revoluções contrárias a ele. Dos pontos
levantados, três são essenciais para a compreensão do panorama tracejado por Pêcheux, que
nos servirá de base durante o desenvolvimento da categoria teórica do corpo aqui
pretendida. No primeiro dos pontos destacados, (1), o filósofo defende que a gênese dos
movimentos anti-capitalistas não se deu em relação direta com um centro capitalista
estruturado, mas com a periferia desse sistema. Esta afirmação acarreta uma segunda, (2),
cuja tese consiste na elaboração de dois aspectos da cisão entre o centro e suas bordas. O
primeiro aspecto decorre da base desse sistema, que se desenvolve “de baixo para cima”,
organicamente, por intermédio da exploração da “divisão do trabalho assalariado dos meios
de produção” (PÊCHEUX, 2012, p. 108). O segundo aspecto, relativo aos entornos desta base,
prediz que os arredores foram constituídos de cima para baixo, pelo exercício de domínio
para além da economia, mecanismo assegurado pelos aparelhos ideológicos de Estado. O
terceiro dos postulados que gostaria de destacar, de número (3)28, se refere à forma como (1)
e (2) se articulam no nível das formas discursivas, e impõe que, para compreender a conexão
aí encetada, seja suspensa a reflexão pautada nas parcialidades históricas dessas categorias.
28
No original de Pêcheux (2012), o de número (9).
51
para indicar que um ataque guiado ao centro passaria por contratempos estratégicos
complexos, não fosse o fato de que o muro e os fortes são efeitos, e não existem delimitados
por fronteiras fixas. Por isso Pêcheux situou a necessidade de uma luta de deslocamento
ideológico, que transferiria a atenção da oposição da estruturação dos falsos campos feudo-
absolutistas e seus correlatos (classes, interesses e posições prévias), em direção à
reprodução/transformação das relações de classe, espaço em que ocorre a dominação e
exploração ideológicas. A singularidade dessas lutas de deslocamento, diz Pêcheux, insiste
na repreensão de objetos paradoxais, representados “sob o nome de Povo, direito, trabalho,
gênero, vida, ciência, natureza, paz, liberdade...” (2012, p. 115). Tais objetos constituem
aqueles sobre os quais operam (1) e (2), no jogo que travam entre si, identificando-se com
eles e, ao mesmo tempo, voltando-se contra os mesmos, em relações de força móveis e em
mudanças confusas, que originam oposições e instabilidades múltiplas. Daí, por exemplo,
guerras serem travadas em defesa da paz, e haver a possibilidade de o direito sofrer
modulações que excluam a dignidade e os direitos de determinados grupos de indivíduos.
Essa faceta do objeto paradoxal que implica na possibilidade de que uma mesma
palavra seja passível de remeter a mais de um sentido, coaduna-se a outra, também
formulada por Pêcheux, que explica o fato de a mesma sentença receber significados
distintos, ainda que esteja formulada pelos mesmos signos linguísticos. Tal fenômeno é
explanado em Língua, linguagens, discurso (2011) e em Semântica e Discurso (2014), de forma
análoga, a partir da afirmação de que o sentido não existe em si, mas é determinado pelas
posições ideológicas “que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras,
expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas)” (PÊCHEUX, 2014, p. 146). A
isto equivale dizer que o sentido das sentenças muda segundo a posição sustentada pelo
sujeito do discurso que as enuncia, “ao passar de uma formação discursiva para outra”
(PÊCHEUX, 2011, p. 73). Essa proposição acarreta o reconhecimento da conexão entre a
constituição do sentido e do sujeito, e sintetiza um sistema complexo que comporta a
interpelação do indivíduo em sujeito de um discurso pelo viés do assujeitamento.
Decorre desse processo a identificação do sujeito, via posição, com uma parcela dos
saberes assentados em uma dada formação discursiva, que representa, no discurso, uma
53
Estou bem alerta para o fato de que essa comparação que acabei de estabelecer ocorre
no limite de uma falácia de causa. Quase que afirmando que o mesmo efeito (de que o sentido
pode vir a ser outro), ainda que oriundo de diferentes processos, decorre de uma mesma
causalidade. Um cenário não deve ser tomado pelo outro: de um lado, temos a assunção de
uma posição do sujeito no discurso pela identificação com um conjunto de enunciados que
circulam numa formação discursiva, e, de outro, o objeto paradoxal como ponto de inflexão
entre tais e tais enunciados. O conceito limite entre as duas situações é o de enunciado, e
teremos de reservar para ele um momento nesta exposição se quisermos evitar alguns
sofismas.
no atendimento à segunda das quatro propriedades que delimitam a função enunciativa 29,
exatamente a mesma propriedade que permitiu a Courtine desenvolver a noção de posição
sujeito, mais tarde aprofundada por Indursky30. A premissa central é de que o enunciado
mantém com um sujeito uma relação determinada, e a inferência necessária nesse caso é a
de que essa determinação corresponde à interpelação do indivíduo em sujeito do discurso.
Falando mais precisamente, o panorama tracejado por Courtine consiste numa releitura
discursiva do conceito de enunciado encontrado na Arqueologia do saber de Foucault31, e esse
deslocamento teórico agencia duas grandes transformações.
A primeira delas age sobre o espaço reservado ao sujeito do enunciado, a função vazia
foucaultiana, que segundo Courtine não deveria ser preenchida por um indivíduo, mas pela
forma sujeito de uma formação discursiva. Daí alocarmos todo o sistema de posicionamento
do sujeito no campo do enunciado, já que ele implica a filiação a uma formação discursiva
por intermédio da identificação com a forma sujeito do discurso. Já a segunda transformação
mencionada, operacionaliza o discurso como objeto e prediz dois modos para sua existência
no interior das formações discursivas. Tais modos estão organizados em níveis hierárquicos
definidos como o a) nível de um sistema de formação dos enunciados, e b) nível de uma
sequência discursiva concreta. É com base nesta segunda transformação que realizamos a
aproximação entre o objeto paradoxal e o nível formulação, já que o domínio da formulação
conjuga dois modos de existência do objeto distintos, mas paradoxalmente dependentes.
Durante sua tese, Courtine tratou de demonstrar que não existe uma unificação geral
entre o nível do enunciado e o da formulação, ainda que um interfira na ação do outro.
Nesses termos, a sequência discursiva “deve ser apreendida enquanto objeto tomado num
processo discursivo de reprodução/transformação dos enunciados no interior de uma dada
FD” (COURTINE, 2009, p. 84). Essa concepção parece ficar mais clara ao se assumir que
diferentes sequências discursivas podem veicular um mesmo enunciado. Assim sendo, o
29
Para Courtine (2014), o enunciado é definido a partir de quatro propriedades que delimitam sua função de
existência, ou “função enunciativa”. São eles: “o enunciado está ligado a um referencial; o enunciado mantém
com o sujeito uma relação determinada; o enunciado tem um domínio associado (uma área); o enunciado
apresenta uma existência material, distinta daquela da enunciação” (COURTINE, 2014, p. 86).
30
Cf. Unicidade, desdobramento, fragmentação, de Freda Indursky (2008).
31
Cf. A arqueologia do saber, de Michel Foucault (2008).
55
enunciado estabelece tanto uma relação horizontal com outras formulações no plano do
intradiscurso, quanto uma relação vertical com formulações determináveis em outra
sequência no interdiscurso. O vínculo entre horizontalidade e verticalidade no plano da
formulação é descrito por meio de uma relação mutual em o que o enunciado se descobre,
existindo entre elas. A similaridade dessa ligação corresponde à similaridade da dinâmica
entre o interdiscurso e o intradiscurso tratada por Pêcheux em Semântica e Discurso.
Ora, como já podemos supor, e conforme constataremos mais adiante, a falácia que
incorria da equiparação entre a posição e o objeto não é, em absoluto, supérflua, levando em
consideração que há entre eles um segundo ponto em comum, desta vez estrutural, que não
se resume ao efeito de deriva do sentido. Esse segundo ponto é o mesmo de sua cisão (o
enunciado), que parece unir os dois conceitos, apesar de operar separações entre eles. A
contradição alocada nessa construção decorre, por um lado, da divergência entre o nível da
formulação e o nível do enunciado, cuidadosamente apontada por Courtine; e, por outro
lado, da interdependência entre esses dois níveis, demonstrada na incidência do enunciado,
que é (e não é) da ordem do interdiscurso, sobre a formulação das sequências discursivas, no
plano do intradiscurso. A descrição aqui feita corresponde a associações exageradas, mas
poderia valer, em medida menor, para outros conjuntos essencialmente opostos, mas que
mantém entre si alguma relação de dependência. Quem sabe para todos eles. Mais até: talvez
seja precisamente o fator paradoxal que permita a tensa relação e operacionalização entre
conceitos como interdiscurso e intradiscurso, Ideologia e Inconsciente, sistemático e
assistemático, e língua e linguagem. Afinal chegamos a perceber o ponto que quero destacar
desta exposição: pelo papel conferido às diferentes formas de contradição, desde o seu
fundamento até a (re)organização dos postulados, a Análise de Discurso não segue uma
lógica clássica isenta de contradição, mas paraconsistente.
certeza é que a estrutura lógica do campo da AD funciona em paralelo com a lógica clássica,
admitindo conceitos que não poderiam ser explorados em circuitos consistentes, por serem
essencialmente contraditórios, como o paradoxo, por exemplo. Sem negar preceitos
instituidores e, mais do que isso, funcionando sobre e a partir deles, a AD delimitou seu
arcabouço teórico-metodológico no interior de disciplinas notadamente lógico-clássicas,
propondo descentralizações e deslocamentos que visavam comportar noções suplantadas
por estas mesmas áreas. Este foi o caso, na (1) Linguística, da ressignificação do conceito de
língua pelo viés da falha; no (2) Materialismo Histórico, de um tratamento materialista de
princípios em parte idealistas; e, na (3) Psicanálise, de uma investigação da categoria de
sujeito que leva em consideração sua interpelação pela Ideologia.
O primeiro tempo derroga a lei da não-contradição que, de maneira geral, prediz que
de duas proposições contrárias, sendo uma a negação da outra, uma delas é necessariamente
falsa. Este é o tempo da separação das retas, precisamente a distância que permite que haja a
existência compassada de uma lógica paraconsistente (b), análoga à linha da lógica clássica
57
A reflexão aí encetada logo nos diz que existem momentos de concordância entre as
linhas clássica e paradoxal, sobretudo no que diz respeito à conservação dos princípios da
não-trivialidade e de explosão. Mas não se pode falar de equivalência absoluta entre elas, já
que para a escola aristotélica contradição = trivialidade, enquanto que para a lógica dos
sistemas formais inconsistentes essa equivalência é falsa. Nesse sentido, o objetivo da lógica
paraconsistente é o de “edificar sistemas lógicos capazes de servirem de base para teorias
inconsistentes, mas não triviais” (FORBES; DA COSTA, 1987, p. 6). A partir da maneira
como se coloca a questão da conservação dos princípios, podemos inferir as seguintes
proposições, investigadas mais adiante:
De minha parte, sobre essa tensa relação entre formal e material, considero haver aí
contrários mutualmente afetados, ou, como o diria Pêcheux “essas duas formas ideológicas
em aparência contraditórias, se articulam, na realidade, uma sobre a outra por uma secreta
necessidade” (PÊCHEUX, 2014, p. 89). Por ora, basta nos atermos ao fato de que o problema
central aqui colocado, o tratamento do objeto paradoxal em AD, não poderia ser discutido
desconsiderando a área do conhecimento humano cuja especificidade é precisamente lidar
com o paradoxo. Como se percebe, o caminho que percorri partindo de Aristóteles
objetivava criar condições para o entendimento do paradoxo, ou, mais precisamente,
conferir a ele um tratamento atento à contradição. Somente a partir daí pude inserir a
questão dos objetos paradoxais e expor, ainda que brevemente, o funcionamento paradoxal
não somente dos objetos, mas de determinados conceitos no interior da Análise de Discurso
(para não dizer de suas bases).
3. Inconsistências
O que afirmo pode ser percebido pelo efeito de evidência (produção da ordem da
ideologia) que aí se enceta (é óbvio que a luta de classes ocorre entre classes sociais), o que
corresponde, no plano da língua, ao implícito articulado sob a forma de um pré-construído
(luta de classes é isto e não aquilo), advindo do interdiscurso, sintagmatizado no
intradiscurso, e cristalizado pela ação da memória discursiva (um enlace entre a memória
mítica, a memória inscrita nas práticas sociais e a memória construída pelo historiador,
61
segundo Pêcheux32). Tem-se, ainda, que na formação discursiva que veicula o enunciado já
formulado “luta de classes”, o interdiscurso dissimula sua existência (como efeito de si no
plano do intradiscurso), e a própria FD disfarça sua ação por intermédio do esquecimento
n° 1 (eu sou a fonte do dito). Dessas colocações, e retornando ao ponto que havia pretendido
destacar, podemos dizer, então, que sentido, interdiscurso e formação discursiva são
conceitos inconsistentes baseados numa contradição consistente em suas premissas, logo,
inconsistentes, mas não triviais.
É certo que a língua tomada como estrutura não é de fato regida pela lógica. Pelo
menos, não por esta lógica tradicional a que se referia frege, que não operava com as
contradições às quais a linguagem se presta e que faz incidir no sistema da língua. A
dificuldade aí encontrada é a mesma a que Pêcheux se refere ao discutir o ponto cego do
materialismo de Frege33, que faz menção ao indício de irrealidade, ilogicismo ou ficção, que
32
Cf. Papel da memória, de Pierre Achard (1999).
33
Ainda que não fosse o foco de suas apresentações, e que tenham palestrado em dias diferentes, a questão da
relação entre Frege e Pêcheux retornou de alguma forma nas falas inspiradoras das professoras doutoras
Mónica Zoppi-Fontana e Lucília Maria Abrahão e Sousa, durante o IV Seminário Internacional (SINEL) e V
Seminário Nacional em Estudos da Linguagem (SNEL), realizado em junho de 2019 em Cascavel, no Paraná.
62
haveria nas sentenças linguísticas políticas, que pelo seu caráter de interpretação difusa “as
torna questões de apreciação individual” (PÊCHEUX, 2014, p. 110). O progresso dessa
questão nos leva a perceber que Pêcheux situa dois problemas do pensamento de Frege
concatenados a um mesmo cerne. Primeiro, a dificuldade em se tratar de um caráter lógico
da língua quando (a) o referente não é universal, o que, no exemplo de Frege, remete a
sentenças como “a vontade do povo”. Tais sentenças podem significar diferentemente a
partir das modalizações entre as partes, sendo, portanto, fontes de erros que precisariam ser
eliminadas da Ciência. O segundo dos problemas apontados diz respeito à solução empirista
do caso do enunciado político, conferida pelo salvo-conduto da (b) apreciação individual.
Considerando que o primeiro eixo de inconsistências não triviais que apontei nesta
exposição foi da ordem de uma contingência determinada do sentido, a análise do último
Esta menção se pretende a um agradecimento indireto e meio torto, que não deixa de se estender ao professor
Alexandre Sebastião Ferrari Soares e à Maria Cristina Leandro Ferreira.
63
exemplo preparou-nos para descobrir que, a partir da crítica que Pêcheux tece a Frege, se
segue um segundo eixo de inconsistências, ainda relativo ao sentido, mas desta vez da ordem
do jogo político-ideológico. Acrescentarei, complementando essa constatação, que foi o
funcionamento paradoxal da ideologia (ora evidenciando, ora dissimulando, e ora os dois
movimentos ao mesmo tempo) que serviu de substrato à [ab] e às suas contradições internas.
O mero apontamento, ou mesmo o tratamento puramente empírico do complexo dialético
intricado na política e na ideologia (e expresso na língua) não é suficiente para expandir ou
reformular o método empregado pelos sistemas consistentes como a linguística formal e a
lógica clássica.
A primeira coisa que queria mapear no início deste subtópico eram essas tais
inconsistências não triviais e de que maneira elas se comportavam em Análise de Discurso.
Em abordagem pedagógica, até aqui as dividi em dois eixos principais, o da contingência
determinada do sentido e o do campo político-ideológico. Não posso avançar, entretanto,
sem antes ressaltar que de alguma forma falei sobre a mesma coisa (a contradição) e, ao
mesmo tempo, disse duas coisas dessemelhantes. Não podemos pôr em dúvida que, em
ambos os eixos destacados, somos confrontados pelo mesmo processo contraditório, ao qual
podemos reconhecer devido a seus resultados idênticos. Estamos às voltas com esse processo
sem nome que parece articular noções distintas, desvelar-se pelas suas inconsistências, e
voltar a se encobrir pela designação que for cabida, habitando aquilo ou outra coisa: o
sentido, a ideologia, a política, o interdiscurso, o enunciado, a luta de classes. Esse nome do
fogo, o contraditório que destaco em diferentes movimentos no interior da Teoria do
Discurso, não acena senão para o que Lacan, no Seminário XXII, de 1974, designa como o
Real, o “estritamente impensável. Seria, ao menos, um ponto de partida. Faria um buraco no
negócio” (LACAN, 1974, p. 3).
65
34
O espaço entre aquilo que não existe e o que está prestes a existir.
66
O primeiro tempo, por outro lado, remonta o real do inconsciente, “a fenda pela qual o
enunciado que se articulava na intenção de dizer se desestabiliza” (CARVALHO, 2007, p. 2).
O espaço do lapso, buraco pelo qual se apresenta o real do inconsciente, continua a
denominar uma aporia inflamável e irrecuperável, e só consegue ser formalizado quando
preenchido pelos predicados em minúsculas de um discurso do inconsciente. Tendo
identificado a impossibilidade de referência objetiva a esse Real, Pêcheux, em 1980, durante
o Colóquio Materialidades discursivas, vai propor que há um real da língua, há um real da
história, e há um real do inconsciente, aos quais se coadunam a lalangue, a contradição e o real
em minúscula.
Essa tripla asserção permite seccionar áreas sobre as quais o Real incide, e tratar de
sua conjugação em planos menores, mas não menos inatingíveis. Soa estranho colocar lado
a lado registros que todos parecem unânimes em remeter ao impossível de ser registrado;
paralogicamente, porém, é justificável proceder assim. De modo algum Pêcheux pretendeu
encaixotar o Real em três vias possíveis e submetê-lo à coerção destes campos. Antes, o que
esse movimento teórico proporcionou, foi constatar que algo falha, repetidamente e à
revelia do sistema e do sujeito. As mancadas desveladas não serão senão vestígios de um
processo contínuo de falhamento cuja causa não pode estar no interior da estrutura em que
ocorre. Aí se encontra um ponto incontornável: nenhum sistema é completo e capaz de
compreender a totalidade de seus objetos utilizando de suas próprias ferramentas analíticas.
Essas primeiras renúncias já apontam para o processo de incorporação de conceitos de outras
áreas do conhecimento no campo do discurso. Exemplo disto é a postulação de Foucault
sobre formação discursiva, deslocada por Pêcheux e revisitada por Courtine, como vimos na
seção anterior. O projeto não é fazer com que a Teoria do Discurso se destine a ser uma
superestrutura que incorpora todos os conceitos das três bases de seu fundamento, num
processo paulatino de fagocitose teórica. Não é verdade que a AD dialoga com qualquer
noção, muito menos que os deslocamentos efetuados não compreendam uma rigorosa
revisão em constante diálogo com os fundamentos da teoria. O que é verdade, isto sim, é
que a possibilidade de discursivização de uma noção qualquer não pode ser descartada. Isso
porque a AD admite o fato que o discurso não se presta à limitação formal.
67
Sobretudo, é preciso dizer que são os objetos que mobilizam os conceitos, ou, mais
particularmente, é em face às limitações de um dado objeto que outras noções precisam ser
discutidas. É precisamente quando Paul Henry se depara com a incapacidade de um sistema
linguístico estar alheio ao social e ao psicológico que, em A ferramenta imperfeita (2013), situa
a problemática que “designaremos globalmente como sendo aquela da complementariedade
e que podemos resumir esquematicamente em uma frase: do humano, tudo aquilo que não
é de ordem do psicológico, é social e reciprocamente” (HENRY, 2013, p. 113). A noção de
complementariedade de Henry acena para esta incompletude comum a todos os sistemas e
estruturas, que não podem operar sem admitir as suas contradições internas, e sem buscar
saná-las em franco diálogo com o externo. Em tais condições é que podemos afirmar que a
observação primordial de Pêcheux durante o desenvolvimento dos três reais foi a de que
algo falta à língua, à história e ao sujeito, e que, de alguma forma, esse algo tropeça em seus
cadarços, emaranhados em um nó atado pelo discurso. A questão subjacente a qual adiei a
resposta é de que maneira essa exposição se relaciona ao corpo tomado como objeto
paradoxal. Grosso modo, pelo seu comportamento no campo discursivo, que ao faltar se
coloca para além do histórico, do linguístico, e do psicanalítico, buscando complementar-se
no artístico e no filosófico. Mas antes que nos disponhamos a solucionar o enigma da
maneira pelo qual o corpo busca se complementar e falha nesse processo, gostaria que
voltássemos atenção para a forma como ele falta, e como se apresentam as suas
incompletudes.
4. Incompletude
lugar, a proposição segundo a qual um dado sistema aritmético, se formal e consistente (isto
é, não-contraditório), indelevelmente possui resoluções aritméticas indecidíveis. Nesses
termos, um ponto de vista que prova uma contradição no interior de um arranjo, “pressupõe
apenas a existência de uma prova de consistência efetuada por meios finitos, e pode
concebivelmente haver provas finitas que não podem ser declaradas”35 (GÖDEL, [1931] 1992,
p. 71). O que significa dizer que a constatação de uma contradição não anula um sistema, tão
somente prediz a existência de um ponto que não pode ser declarado – ou formalmente
comprovado.
Decorre daí a segunda proposição que gostaria de comentar, a que postula não existir
meio computável de provar a consistência de uma teoria no interior dela própria. Assim, as
ferramentas para atestar a veracidade ou a falsidade de uma formulação não podem integrar
o mesmo sistema que está sendo verificado. Para utilizar o mesmo exemplo da primeira
proposição, uma contradição apontada, quando e se comprovada, não pode se valer da
mesma gramática interna ao conjunto. O referente que serve de base para essa comprovação
hipotética é, assim, externo ao sistema verificado.
Na prática, e para não alongar essa digressão matemática, o que Gödel nos permite
vislumbrar é uma fratura lógica que desmantela um determinado modo de pensar,
sedimentado desde a antiguidade helênica. Gödel afirmou que um conjunto dado pode
reconhecer as próprias contradições sem perder a configuração ou propriedade, e, além
disso, comprovou que as partes integrantes desse conjunto apontam para um ponto exterior
ao arranjo. Reconhecer a configuração da língua que comporta a falha em sua estrutura é, ao
mesmo tempo, a) admitir teoricamente que aquilo que se apresenta como exterior à língua
integra, em verdade, o sistema linguístico; e, b) abrir o campo de agência da língua para
intervenção de outras ordens, complementares à estrutura. Dessa forma, a ideia do Todo
fechado em si mesmo cede espaço à concepção materialista da integração dialética do
conjunto, o todo que opera sem deixar de reconhecer a existência de suas contradições
35
Tradução livre do seguinte trecho da obra de Gödel: “It must be expressly noted that Proposition XI (and the
corresponding results for M and A) represent no contradiction of the formalistic standpoint of Hilbert. For
this standpoint presupposes only the existence of a consistency proof effected by finite means, and there might
conceivably be finite proofs which cannot be stated in P (or in M or in A)” (GÖDEL, [1931] 1992, p. 71).
69
internas (ainda que elas sejam recobertas sempre e incessantemente pela ordem da ideologia,
que visa encobrir as disputas assimétricas que originam e atravessam a formação social).
70
O medo e as pausas
Ando criando espaços para que o fracasso floresça. Encaro essa tese como uma extensão
de mim mesmo e desejo que ela se estenda até depois da morte. Alongo processos, descumpro
prazos, evito confrontos. Enxergo o durante como a única possibilidade de ação ou status.
71
5. Ambiguidade e cultura
Diz-se, assim, que Pabllo apresenta grande “passabilidade”, termo que, de acordo com
Alexia Carpilovsky (2020), é utilizado para medir a capacidade de uma pessoa ser
considerada membro integrante de um grupo identitário que não o seu próprio. Isto
significa que Pabllo, apesar de ser um indivíduo que se identifica com o gênero masculino,
é capaz de “passar” como mulher quando performa como drag; ou, mais precisamente, o tipo
de drag que Pabllo reproduz se relaciona com a ideia de parecer uma mulher. Antes de
avançarmos, é necessário pontuar que a) existem outros tipos de drag que não visam replicar
aspectos femininos, e b) a passabilidade é uma questão de interesse para a comunidade trans
– ser mais ou menos passável pode significar estar mais ou menos propensa a ser vítima de
violência de gênero e outras formas de discriminação, já que quanto menos passável se é,
maior a possibilidade de despertar revolta por parte da população cisgênero. A ressalva que
aqui deve ser feita é que a expressão drag de Pabllo não se pretende a emular uma identidade
feminina como se o sujeito estivesse superposto à identidade de mulher, mas, tão somente,
reproduz signos dessa identidade como forma de provocar o efeito artístico de
estranhamento, que discuto em outro momento desta tese. Por ora, é importante levar em
conta que essa ambiguidade atrelada à passabilidade está marcada no corpo do performer
36
Disponível em https://bit.ly/3Crss5N. Acesso em mar. 2022.
75
que tenta mimetizar os signos sociais associados ao gênero feminino, de maneira que esse
corpo ambíguo se inscreve num espaço que é e não é feminino.
Como mencionei em momento anterior deste trabalho, o fazer artístico da drag foi
historicamente construído por homens vestidos de mulher durante o teatro elisabetano. A
herança desse estilo artístico pode ser percebida hoje em performances que se aproximam
da passabilidade, como aquelas conduzidas por Pabllo, por exemplo. O que é interessante de
ser observado é o processo pelo qual Pabllo constrói essa figura feminina. A pergunta que
questiona que tipo de signo social é mobilizado na tentativa de passar como mulher encobre
outra: o que torna um indivíduo mulher? Há de se considerar que a conjuntura social
capitalista expressa um ideal sobre os corpos dos sujeitos, ideal esse que reúne determinados
signos e exclui outros de sua matriz. Esses signos são culturais e, em última instância, estão
determinados pelo capital que coopta sujeitos para reproduzir as condições de produção que
asseguram a posição ideológica do grupo dominante. Exemplos desse mecanismo não são
difíceis de serem apontados: as cadeiras dos ônibus têm um padrão de tamanho fixado, a
maioria dos manequins de plástico apresenta um tamanho único, o mercado de roupas
compreende um limite de largura e altura, a arquitetura de grande parte dos edifícios de mais
de dois andares opera com escadas, a pele branca carrega privilégios que a pele preta e a
indígena não detêm etc. Assim, o corpo que se pretende ser (mulher ou homem) está
determinado a reproduzir o padrão imposto por uma formação cultural atrelada à formação
ideológica em dominância na conjuntura social capitalista.
Num cenário desse tipo, a cultura serviria como uma espécie de conceito planejado
para reconciliar essas dicotomias, aninhadas, em maior ou menor medida, às instâncias de
autodeterminação ou às de regulação normativa. Surge dessa tentativa de unificação o
caráter de dois gumes da cultura, que a coloca em constante posição de ambiguidade. Nesse
sentido, explicar, por exemplo, que algo é “cultural” significa encobrir muito facilmente a
dinâmica conflituosa que envolve o surgimento de determinado fato social. À primeira vista,
a complexa questão da liberdade feminina nas sociedades muçulmanas é frequentemente tida
como “fato cultural” apartado de uma problemática de cunho social, como se a cultura fosse
ela mesma um dado natural e não um substrato social. Assim, a exemplo do que opera a
77
Como afirma Aguimário Pimentel Silva, em A cultura como paradoxo, de 2021, esse
funcionamento paradoxal da cultura se conecta à ideia de objeto paradoxal desenvolvida por
Pêcheux, que discuti anteriormente. Podemos apontar a cultura como equivalente a isso que
Pêcheux se referia quando afirmou haver um duplo caráter (regional e de classe) no
funcionamento da ideologia no interior das formações ideológicas. Em Linguística e
marxismo, texto que integra o livro Encontros na análise de discurso, de 2019, Pêcheux alerta
para o fato de que “devemos pensar nas formações ideológicas como formações que remetem
a coisas diferentes, e, por outro lado, às mesmas coisas, mas combinadas” (PÊCHEUX, 2019,
p. 314). Assim, a cultura confere, ao mesmo tempo, identidade a um dado objeto no interior
de uma formação ideológica (seu caráter de classe), e possibilita às formações discursivas a
78
a cultura pode assimilar um saber fronteiriço, adaptando-o às regras internas que regem
aquele conjunto. Da perspectiva de quem chega, os saberes são transformados, assimilados;
do ponto de vista dos que já integram o sistema, essa incorporação serve para reforçar a
identidade do conjunto. Para usar outra das metáforas de Leandro-Ferreira, essa relação de
“dentro e fora” que ocorre no contato entre as culturas, serviu de base para a discussão da
cultura própria a um Estado-nação. A princípio, dirá Bauman, a ideia de identidade cultural
de uma nação estava ligada às suas fronteiras geográficas, mas foi ultrapassada pelo advento
da comunicação instantânea, impulsionado por ferramentas como a internet. A superação
da noção de cultura como sistema restrito e interno, permitiu pensá-la como uma estrutura
de escolhas, “uma matriz de permutações possíveis, finitas em número, mas incontáveis na
prática” (BAUMAN, 2012, p. 39), que não delimita um pertencer, mas supõe um identificar.
(...) não entender ou entender errado; não ‘escutar’ as ordens; não repetir
as litanias ou repeti-las de modo errôneo, falar quando se exige silêncio;
80
falar sua língua como uma língua estrangeira que se domina mal; mudar,
desviar, alterar o sentido das palavras e das frases; tomar os enunciados ao
pé da letra; deslocar as regras na sintaxe e desestruturar o léxico jogando
com as palavras (PÊCHEUX, 1990, p. 17).
Não me parece absurdo resumir essa lista de contravenções com apenas uma palavra:
desobedecer. No entanto, ao equiparar a resistência à desobediência é preciso tomar cuidado
com duas interpretações possíveis, mas bastante apressadas. A primeira, assumir que a
desobediência se encerra num âmbito individual; e a segunda, tomar o ato de desobedecer
como um correspondente direto da pura revolta ou da rebeldia. Desobedecer a algo implica,
necessariamente, uma resistência à obediência prestada a uma dada normativa. Uma norma,
por seu turno, pretende conservar um determinado estado de coisas, e, para tanto, supõe
uma punição para os possíveis casos de transgressão, as tentativas de alteração do sistema
como fora planejado. Desobedecer a uma norma significa deixar de concordar com esse
pretenso estado dado, arcar com a punição prevista e assumir, assim, uma posição contrária
à que se fora designado em primeiro lugar.
Gros (2018) destaca que durante o século XX, o ideal de homem ligado à obediência
era o de um ser socialmente funcional, que zelava pela manutenção das normas e do pacto
cultural; em outra ponta do mesmo paradigma, o desobediente estava conectado à selvageria,
ao animalesco, ao monstruoso, enfim. O caso utilizado para pensar a problemática dessa
apresentação da questão da obediência é o de Adolf Eichmann, um dos principais
organizadores do Holocausto. Em ocasião de seu julgamento, Eichmann argumentou que os
atos que havia cometido contra o povo judeu durante o regime fascista se justificavam pelo
seu cumprimento às ordens recebidas naquela ocasião. O objetivo de Gros é o de questionar
o limite da obediência, reflexão que o leva a afirmar que, nos casos das experiências
totalitárias, especialmente após o julgamento de Eichmann, instaurou-se uma inversão das
monstruosidades. Se antes a obediência era uma virtude, a partir daquele ponto, desobedecer
ao que fora imposto seria a única forma possível de permanecer fiel à própria humanidade.
Nesse sentido, a submissão daquele que obedece diz sempre sobre uma relação de
forças que, apesar de potente, é precária porque arbitrária, e, sobretudo, reversível. Gros
pontua, dessa forma, que a única obrigação moral suportável é a possibilidade de
desobediência, que se alia à tentativa de alteração das formas de obediência. O autor destaca
duas vias principais de apresentação da desobediência: de um lado, a ironia cética, que
consiste na demonstração formal e teórica do descontentamento com dada norma; e, de
outro, a provocação cínica, que aponta para uma demonstração pública, de orientação prática,
sobre uma tomada de posição contrária àquela estabelecida pela norma. Em ambos os casos,
82
37
Disponível em: https://glo.bo/3hl1liJ. Acesso em mar. 2022.
38
A referência é à invasão da sede dos três poderes, em Brasília, por criminosos e golpistas alinhados ao discurso
bolsonarista. Os atos aconteceram em 8/1/2023. Disponível em: http://glo.bo/3YPB4NJ. Acesso em jan. 2023.
39
Disponível em: https://bit.ly/3h8venr. Acesso em mar. 2022.
40
Sobre a diferenciação entre a ética e a moral que circundam essa questão, Cf. LEANDRO-FERREIRA;
COSTA (2021).
83
Mapear esses mecanismos pelos quais a cultura se inscreve nas práticas discursivas,
nos permite indicar caminhos possíveis para a sua compreensão no quadro dos objetos
discursivos. Como instância que reúne em torno de si termos antagônicos relacionados a um
mesmo fenômeno social, a cultura funciona como o próprio caráter ambíguo, regional e de
classe, que tensiona os sentidos conferidos a um determinado objeto paradoxal, em
conjunção com a formação ideológica e as formações imaginárias e discursivas. Resistir a
esse processo de homogeneização cultural significa, necessariamente, desobedecer a um
dado conjunto de normas estabelecidas socialmente e assumir uma posição crítica no
discurso. Essa posição pode muito bem ser aplicada ao sujeito que, apesar de já ter assegurado
o lugar social atrelado à dominação masculina, faz concessões a respeito desse lugar e
desobedece às normativas impostas, transgredindo, assim, o acordo silencioso que prediz
que “homem não age como mulher”. A expressão drag, em grande parte, afronta uma norma
e põe em suspenso um lugar social para, a partir daí, assumir uma posição crítica, que
questiona o funcionamento do processo de constituição desse lugar e do sujeito que o ocupa.
O que se faz é, antes de qualquer coisa, pôr em tensão, por intermédio da ambiguidade
materializada no corpo do sujeito performer, as relações sociais que operam as formações
culturais. Para tratar mais especificamente desse corpo posto em lugar paradoxal e ambíguo,
trato, no próximo capítulo desta tese, do corpo em diferentes áreas em que é estudado. O
objetivo é pontuar, nesta exposição, como a Análise de Discurso desterritorializa os
conceitos advindos de outras áreas do conhecimento, operando teorizações em prol de um
tratamento discursivo dos objetos complexos com os quais se depara.
84
“Sempre fui uma pessoa meio introvertida... Pra mim. Eu não falava muito. E desde
que eu vim pra Porto Alegre eu vi que tinha que mudar alguma coisa aí. Tava na faculdade
eu quase com uma mentalidade de fundamental, assim... E a drag me mudou isso muito. Não
é uma pressão, mas ela te exige que tu olhe pra pessoa e converse com ela.. Porque a pessoa
tá esperando uma coisa maior de ti, tu é uma drag queen”.
Lady Vina
86
1. Sobre a performance
Nessa obra, Chomsky passa a tratar deste acontecimento verbal como ato
comunicativo concreto desempenhado por um indivíduo e orientado por um conjunto de
competências linguísticas. Assim referida, a performance corresponde a um tipo particular
de prática que está atrelada ao comportamento verbal dos indivíduos e que é regida por
condutas espaço-temporais e competências fisiopsíquicas que incidem sobre um corpo vivo,
agente em situações comunicativas concretas. Esse uso mais específico do termo
performance como epicentro de uma ação e de uma prática comunicativa também é tratado
por Austin em Howto do things with words, de 1962, para quem o estudo das performative
sentences (dos performativos) permitiu pensar nas condições de expressão e de percepção de
um ato comunicativo tomado como tal; e, além disso, reintroduzir na Linguística a questão
41
Não se trata, como havia mencionado em outro momento deste texto, de presença físico-empírica, mas,
sim, da relação entre as imagens do performer e do público – de sua presença e ausência.
87
do referente. Assim, Austin termina por reestruturar, como afirma Shoshana Felman, em
The Scandal of the Speaking Body (2003), o status que o referente adquire no ato de fala; nesses
termos, aquilo a que se refere não é exatamente um objeto externo à linguagem, a linguagem
“makes it self part of what it refers to”42 (FELMAN, 2003, p. 51). Depois de 1970, a partir do
entrecruzamento de áreas como Linguística, História, Antropologia, Arte e Estudos
Culturais, à guisa dos trabalhos conduzidos por Richard Schechner (Performance Theory,
[1977] 2004), surge um campo de conhecimentos fronteiriço, os Estudos da Performance,
voltado para a compreensão da prática performática, desde a tragédia grega até a moderna
observação da vida ritualizada.
42
Em tradução livre, “torna-se parte daquilo a que ela se refere”.
88
maior ou menor clareza. Ela as faz ‘passar ao ato’, fora de toda consideração pelo tempo”
(ZUMTHOR, 2018, p. 35).
Os estudos dos anos subsequentes, do começo de 1990 aos 2000, serão marcados pela
centralidade do corpo no ato performático. Em Performance como linguagem ([1989] 2002),
Renato Cohen discute a performance como experimentação artística conduzida pelo corpo
do performer, que brinca com o tempo-espaço, modulando a linguagem em favor do
alongamento da percepção e do estranhamento do espectador, que passa a compor o ato
performático. Numa direção similar a de Cohen, mas acentuando o lugar da performance
em meio às demais artes da presença, como o bodyart e o happening, Jorge Glusberg, n’A arte
da performance ([2009] 2013), considera o ato performático como momento capaz de
conjugar outras expressões e formas artísticas, que se atam ao corpo do artista. O performer
assume, então, a posição de agente de transformação das práticas de arte, direcionando
questionamentos ao corpo e ao espaço. Na Filosofia Política, especialmente em Corpos em
aliança e a política das ruas (2018a) e Problemas de gênero (2018b), Judith Butler reflete sobre a
performance na condição de prática social continuada, a performatividade. Trata-se de uma
atividade social e regulada que permite visualizar uma série de componentes subjetivos
relativos ao corpo do sujeito, como a identidade de gênero e a posição política, por exemplo.
constituintes implica assumir o risco de lidar com o retorno de um real denegado que
insistente e inconscientemente cobra seu espaço de inscrição na estrutura regular do sentido.
Como processo, o espaço é movente; ou, melhor dizendo, o movimento situa e limita
um espaço, processo que ocorre por intermédio de uma prática de linguagem que é
determinada sócio-histórica e ideologicamente. Em relação de proximidade com as noções-
base da performance, o movimento é entendido como prática e o corpo do sujeito como
91
presença que realiza essa ação. Do mesmo modo, é possível visualizar na troca um movimento
do performer dirigido ao público e, de volta, do público em direção ao artista. Também o
acontecimento pode ser lido como oriundo de um movimento de sentidos que, em maior ou
menor escala, causa uma agitação, alargamento ou ruptura numa dada estrutura. Por fim, se
tomadas as considerações de Paul Ricoeur no primeiro tomo de Tempo e narrativa (1994), a
noção de presente pode ser substituída pela de passagem, marca do movimento de transição
que caracteriza o tempo, noção em si tão fugidia que só se torna acessível à experiência
humana por meio da inscrição de uma narrativa.
2. Narrativas
3. Memórias
Nesse espaço, por onde se observa aquilo que separa a causa de suas consequências,
se inscreve o acontecimento; ou melhor, este é o lugar em que os eventos ganham a espessura
semântica de acontecimento por meio da narrativa conduzida pelo sujeito do discurso. A
impossibilidade de se contar esse tipo de experiência traumática de outra forma que não a
narrativa de si, é reflexo da maneira como o exercício histórico de exclusão e de
silenciamento das narrativas dissidentes opera. A matriz histórica américo-euro-centrada
conferiu lugar de privilégio aos artefatos e aos documentos oficiais de um grupo específico
de indivíduos, a classe dominante, ignorando os relatos dos grupos minoritários e dos
sobreviventes dos povos dizimados, subscritos sob o crivo da não-cientificidade, do excesso
de subjetividade no tratamento dos dados ou da não-representatividade.
da vitória, do que a história da própria guerra. Por outro lado, quando Klávida Krókhina diz
que “era melhor ter sido ferida nas pernas ou nos braços, que doesse o corpo. Porque a alma...
dói muito”, nos testemunhos sobre a guerra reunidos por Svetlana Aleksiévitch, em A guerra
não tem rosto de mulher (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 60), a leitura é radicalmente diferente. De
uma forma precisa, quando organizada como testemunho, por exemplo, a prática da
narração do evento histórico pelo sujeito é capaz de, por meio da linguagem, modalizar um
acontecimento, situando a concretude de um espaço e de um tempo determinados. No dizer
de Klávida, o efeito do front sobre seu corpo parece exceder a guerra, extrapolar a causa
histórica desse evento; neste caso, a ruptura que marca o acontecimento não se dá num
ponto histórico preciso e externo ao sujeito, mas, sim, entre o sujeito de antes e o sujeito do
pós-guerra. O testemunho atualiza a estrutura subjetiva quando narrado, marca o
acontecimento de um sujeito que acontece como consequência de um evento dado e
representa agora a descontinuidade com uma cadeia perdida. O sujeito pós-traumático, dirá
Slavoj Žižek em Acontecimento: uma viagem filosófica através de um conceito, de 2017, fadado a
repetir o conteúdo do trauma, não revive a coisa em si, mas a própria afirmação de que o
trauma existiu como causação, “o que se repete aqui não é um conteúdo antigo, mas o
próprio gesto de revogar todo conteúdo substancial” (ŽIŽEK, 2017, p. 93).
43
Apelido conferido por sua mãe a Arthur Fleck, sujeito que depois passa a identificar-se como Coringa.
95
causa ou da essência, observar a maneira como se dão as relações entre essas narrativas e os
seus efeitos.
Assim, a causa do acontecimento não pode ser sustentada apenas pelo conjunto das
determinantes sociais, nem pela simples modulação dos efeitos que a sucedem. A causa existe
na medida exata em que se faz presente para um sujeito, ainda que sob o viés de sua negação.
Ela não nos interessa como tal, um ato originário aceito como verdadeiro, mas como uma
narrativa ficcional, uma cena mítica, ou um passado perdido de algum evento/sujeito. O
acontecimento aparece como um efeito que excede a causa, precisamente porque seu espaço
de ação é aquele que separa o efeito da causa, indagando a eficácia dessas instâncias como
pontos determinados numa cadeia.
96
4. Imagens
De maneira similar ao testemunho, que procura significar o encontro com o real por
meio do relato, o funcionamento das expressões artísticas leva em consideração a
transformação (sublimação) dessa mesma experiência em objeto artístico; em ambos os
casos, o objeto formado pela narrativa do sujeito expõe a violenta e frágil condição da vida
humana. Em Da criação ex-nihilo, Lacan (2008) alude o processo de sublimação como
operação significante que alça um objeto a uma coisa, “a elevação, repentina, da caixa de
fósforos a uma dignidade que ela não tinha de modo algum anteriormente. Mas, é claro, é
uma coisa que nem por isso é, de modo algum, a Coisa” (LACAN, 2008, p. 144). Assim, o
objeto oferecido pela performance é elevado à categoria de obra, é tanto belo quanto terrível.
Ele tenta expandir na vida a potência de surgimento do próprio sujeito, que é, como afirma
Tania Rivera, em Estética e descentramento do sujeito, de 2017, “descentrado e efêmero, ex-
cêntrico e fugaz” (RIVERA, 2017, p. 69).
É essa imagem que o expectador faz de si como dono do olhar que é rasgada num ato
performático. Corte de duplo efeito: de um lado, provocar no público a estranheza da forma,
97
fazer com que ele se perceba olhado; de outro lado, proporcionar ao sujeito performer a
possibilidade de suscitar o real, retomando sua própria constituição subjetiva e revelando,
fora de si, o que de mais íntimo o habita. A forma como essas imagens especulares integram
o arranjo entre performer e público está condicionada por duas determinantes. Primeiro,
pelo processo que põe em contato suas posições, referido por Pêcheux pelo “termo discurso, que
implica que não se trata necessariamente de uma transmissão de informação entre A e B,
mas, de modo mais geral, de um ‘efeito de sentidos’ entre os pontos A e B” (PÊCHEUX,
[1969] 1990, p. 82). Segundo, pelas condições em que ocorre a produção do discurso, que
englobam, em larga escala, os elementos do processo discursivo – os aspectos materiais
envolvidos na enunciação; a realidade sócio-histórica em que se situam os sujeitos, e as
formações sociais, ideológicas, culturais, imaginárias e discursivas a que estão submetidos.
“coquetel anti-facista”, uma espécie de bebida “seca-barriga”, “exterminadora de tudo que não
presta”, que provoca um “piriri”.
Icleia Borsa Cattani, em Arte Contemporânea: O lugar da pesquisa, de 2002, vai afirmar
que existe, atualmente, “o recurso cada vez mais frequente às novas mídias e à tecnologia de
ponta, que está construindo uma nova visualidade, não só na arte, mas no social como um
todo” (CATTANI, 2002, p. 41). Esta investida, por mais tecnológica que seja, é igualmente
marcada por “revivals, releituras, recursos diversos ao passado, autorreferências, que
marcam sobretudo o que se convenciona chamar de pós-modernidade na arte” (CATTANI,
2002, p. 41). A reunião dessas vertentes expande os limites do conceito de arte, rompe com
eles, inaugura outro pensamento visual de linguagem própria, que nos permite pensar a
99
desenvolvido na tensão entre essas formas. Sobre isso falou Hannah Gadsby no aclamado
Nanette, de 2018, o que o artista faz é controlar a tensão da plateia, o cerne da performance
é a manutenção desse estado de tensão. O mesmo pode ser dito sobre a Análise de Discurso,
caracterizada como uma disciplina de entremeio, que, como afirmou Eni Orlandi, em Análise
de discurso, ciência e atualidade, de 2013, não se deixa adjetivar por uma ou outra área de
contato – linguística, psicanálise, materialismo histórico. A análise materialista de discurso
atua no espaço contraditório que há entre suas áreas de base, na tensão específica a cada
problema que se impõe a partir do contato da ideologia com o inconsciente e a língua.
Assim, a incorporação, a que fiz referência anteriormente, aponta para o ato mesmo
de pôr o corpo em ação e em conjunto. O –in latino, presente nessa composição, pode
indicar, segundo Evanildo Bechara, na Moderna gramática portuguesa, de 2009, que alguma
coisa se transforma, muda de estado, como em “incinerar (‘reduzir a cinzas’), inflamável (‘que
se transforma em chama’, ‘que se transforma em fogo’) etc.” (BECHARA, 2009, p. 305).
Nesses termos, a incorporação na performance drag funciona como a) um processo de
transformação, de tensionamento do que fora assentado, borramento de fronteiras de outras
formas artísticas que caracteriza um trabalho mutável e particular; e, também, como b) uma
ação de descentralização e transformação do corpo do sujeito performer (nesse processo),
que ata a si próprio as cordas estiradas pelo público – este é o corpo do nó, meu e dela, do
paradoxo de ser e não ser ao mesmo tempo.
É no próprio corpo que Lo Litta sente os efeitos de seu coquetel, e é sobre a imagem
de um público com corpo próprio que está fundamentada a assunção de “seca-barriga” como
termo comum (o outro tem uma barriga, esta barriga incha etc.). O que sustenta a
possibilidade de significação de “seca-barriga” é o conjunto de determinantes ideológicas
que, também de forma estética, orienta uma imagem de corpo ideal. A busca pelo atendimento
ao padrão imposto por essa imagem ideal condiciona o sujeito a submeter o corpo a
transformações proporcionadas por dietas, restrições alimentares, esforços físicos variados,
enfim, às mudanças condicionadas pelos padrões de beleza e “o domínio destas ideologias
que se entranham cada vez mais na carne dos homens e das mulheres (...) vide lipos, botox,
drenagens, bioplastics e demais coisas do gênero” (LEANDRO-FERREIRA, 2013, p. 81). A
fórmula mágica de um “seca-barriga” facilitaria, assim, o reconhecimento do sujeito como
pertencente a um dado grupo, aceito pelo padrão-estético em dominância.
102
O laxante, por sua vez, integra uma série parafrástica que mobiliza a memória de
ocasiões como o pronunciamento de Bolsonaro sugerindo “fazer cocô dia sim e dia não”
como solução da crise ambiental (cf. G1, 2019), e a cirurgia para a retirada de sua “bolsa de
colostomia” (cf. EL PAÍS, 2019). Esse tipo de paráfrase que ocorre na performance de Lo
Litta entre eventos escatológicos, Bolsonaro, os bolsominions, e o posicionamento fascista
se justifica pela ação associativa de uma memória tecida por narrativas sobre a polarização
acentuada da sociedade brasileira. Outro ponto relevante, mais sutil nesse caso, é o ato de Lo
Litta expelir o “fascismo” do próprio corpo. Tanto o eu quanto esse outro, inimigo
heteróclito condensado pelo imaginário, partilham de um mesmo corpo social, afetado pela
mesma série de narrativas doentes. O princípio segundo o qual o corpo humano é um
coletivo de outros corpos em afecção mútua, deriva dos postulados de Spinoza, na Ética, de
1677, em que se afirma que o “corpo humano compõe-se de muitos indivíduos (de natureza
diferente), cada um dos quais é também altamente composto”; em complemento, “os
44
Alusão aos minions, seguidores do antagonista Gru, da série de filmes animados Meu Malvado Favorito,
dirigidos por de Pierre Coffin. O primeiro filme foi lançado em 2010. A série rendeu a produção de Meu
Malvado Favorito 2, em 2013, e Meu Malvado Favorito 3, em 2017; além do spin-off Minions, de 2015, e sua
continuação, Minions 2: A origem de Gru, de 2022.
103
A personagem de Jodie Foster n’O Silêncio dos Inocentes (1991), Clarice Starling, uma
aspirante a detetive do FBI, é designada para interrogar o aprisionado Dr. Hannibal Lecter
(Anthony Hopkins), e quem sabe assim conseguir a ajuda dele para traçar o perfil de um
potencial serial killer. A ideia é a de que, por meio da análise do comportamento das
motivações de Hannibal, seja possível delimitar o estereótipo de um criminoso compulsivo
e com isso precisar quais os possíveis suspeitos dos recentes assassinatos cometidos contra
mulheres no estado da Virgínia. Na prisão, em ocasião da entrevista, Clarice indaga
Hannibal sobre os motivos que o levaram a ser um assassino em primeiro lugar. Quais
seriam as determinantes externas que corromperiam um indivíduo, esse ponto específico
em que algo de muito preciso em Lecter se estilhaça num trauma, tornando o renomado
psiquiatra em um canibal, “o que te aconteceu que fez com que você gostasse disso?”. O que
Hannibal responde, “nada aconteceu comigo, Starling, eu aconteci”, desvela pra nós uma
série de coisas que nos são flagrantes e que dizem respeito ao funcionamento do
acontecimento no interior dos processos históricos e sua vinculação às operações realizadas
pelo sujeito do discurso. A pergunta formulada por Starling, por outro lado, conjuga duas
tendências das correntes filiadas aos Estudos da Linguagem: a de tratar do acontecimento
tentando recuperar o momento da ruptura; e a de examinar os efeitos do acontecimento na
ordem dos processos de subjetivação, pensando nas atualizações operacionalizadas pelo
sujeito numa rede determinada de sentidos. Mas o que se pode dizer que acontece no espaço
entre esse antes causal pretensamente traumático e o efeito de atualidade percebido em um
depois?
45
Do original “nothing happened to me, Officer Starling. I happened. You can't reduce me to a set of
influences”, resposta de Lecter à pergunta “what happened to you that made you like this?”. Os trechos são
provenientes da adaptação cinematográfica da obra The Silence of the Lambs, de Thomas Harris (1988); o longa-
metragem foi dirigido por Jonathan Demme e distribuído em 1991 pela Orion Pictures.
105
6. Atualidade e ruptura
A oposição entre esses níveis de agência também poderia ser traduzida em termos de
interpelação (forma-sujeito) e de identificação (posição-sujeito).
dos dizeres de um sujeito, lastreados numa estrutura que comporta e possibilita atualizações
constantes que põem em movimento uma dada rede de memória. A analogia tracejada pela
autora encontra eco tanto no par “estrutura-acontecimento”, discutido por Pêcheux n’O
Discurso: estrutura ou acontecimento, de 1983, quanto no contato determinado entre o eixo do
interdiscurso e o do intradiscurso no plano do enunciado, tal como o formulou Courtine
n’Análise do Discurso Político: O discurso comunista endereçado aos cristãos, de 1981. De toda sorte,
a designação de acontecimento aqui continua a ser circunscrito pelo “ponto de encontro de
uma atualidade e uma memória” (PÊCHEUX, [1983] 2008, p. 17), incidência constante de
algo do interdiscurso no intradiscurso que garante a atualização do dizer. Sem afastar-se
deste marco, mas operando nele um giro teórico, Dela-Silva suspende o tempo da ruptura e
ressalta o caráter de atualidade proporcionado pelo contato entre dizeres histórica e
ideologicamente determinados no fio do discurso do sujeito. Por dessemelhantes que
possam parecer essas designações, um tópico comum entre elas as torna passíveis de síntese.
Em Indursky, um encontro produzindo uma agitação ou uma ruptura; em Dela-Silva, um
encontro produzindo atualizações na estrutura; nos dois casos, uma dessimetria entre uma
ordem necessária e outra contingente, ocasionada pelo encontro, em que se percebe, num
tropeço, um evento dado circunscrito sob o efeito do inédito.
7. Necessidade e contingência
O exemplo utilizado pela autora para se referir à “pega” parte da relação entre a chuva
de átomos e o clinamen de Epicuro, em que as trajetórias paralelas dos átomos são alteradas
por um desvio mínimo, clinamen, que faz com que haja colisão entre as partículas. Um
encontro fortuito que só continua a produzir efeitos se durar tempo suficiente para tanto,
“isto é, para que dê liga, que haja ‘pega’, para que um mundo venha a existir” (ZOPPI-
FONTANA, 2017, p. 182). O tipo de construção com a que nos deparamos aqui poderia ser
definida então como um suposto estado harmônico de coisas que é perturbado pela
incidência absolutamente contingente de uma força indeterminada; tal encontro produz
uma alteração na cadeia outrora estabilizada. Essa desorganização primeira pode vir a se
tornar a referência a qual uma nova organização estrutural aponta como causa de si. A ideia
de que haveria uma ordenação anterior à perturbação é assim uma ilusão retroativa
ocasionada pela pretensa estabilidade do sistema necessário, já que essa linha de raciocínio
facilmente nos leva a inferência de que qualquer harmonia partiu, em algum momento, de
um desarranjo. Nesses termos, por exemplo, haveria um nada antes do Big Bang, quando a
ação de uma força sem nome sobre o vazio tornou possível nomear como explosão o
acontecimento que inaugura a existência da ordenação do universo como tal. Não existe algo
senão pela ação desse boom – pensar que há uma estrutura anterior a um acontecimento é
um efeito que tende a apagar que a estrutura necessária só existe em razão do próprio
encontro.
108
8. Causa e efeito
Poderíamos afirmar então que Hannibal não situa a causa de si num clinamen, em
qualquer acontecimento singular, mas no próprio ato de construção subjetiva que lhe
permite dizer eu existo, sendo ele explosão de si mesmo. Hannibal, de alguma forma, coloca
a si próprio como efeito de uma contingência, ponto de dissimetria que revela a incidência
de uma força externa à ordenação, sem a qual ela mesma não existiria. Afinal, a maioria da
população não vira canibal, mesmo que tenha sido submetida a condições análogas as que
teve Hannibal. Ele mesmo seria isso que excede a regra da repetição em um sistema
harmônico. Em face dessa modulação no dizer do sujeito gênese de si, em que lugar estaria
o acontecimento? Na causa que se pressupõe estar na ruptura? Na produção discursiva desse
sujeito? Ou na própria suspensão da ideia de causa, a assunção de que a contingência só
comporta efeitos porque se funda sobre um vazio? Em outros termos, o assassino é um
somatório de causas a ele externas, o fruto da incidência de uma ordem social doente (puro
produto determinado pelo meio), ou, de outro lado, deparamo-nos com o complexo sujeito
do cogito?
participam de um mesmo processo complexo que não elimina de seu escopo a produção
acontecimental de si operada pelo sujeito.
A partir desse ponto, outra entrada teórica possível nesse tema é tratada por Žižek,
que passa a discutir o sujeito do cogito de Descartes como acontecimento no campo da
filosofia. Para o autor, os postulados de Descartes, e também os de Platão e de Hegel, figuram
como ponto de ruptura com a tradição filosófica que os antecedera. Assim, com o advento
do cartesianismo, o cogito passa a ser um marco incontornável para os que fizeram filosofia
depois de Descartes; destinados a negá-lo ou a corroborar com ele, não era possível passar
impune pelo Discurso do Método. Apesar de sua aproximação com conceitos próprios ao
iluminismo, Žižek é enfático ao dizer que devemos ter cuidado para não perder de vista a
forma como a ideia de cogito “rompe com a predominante tradição iluminista que pode ser
definida no reverso da própria metáfora do sujeito” (ŽIŽEK, 2017, p. 90). De modo que, para
ele, o sujeito não é a luz do logos que incide sob a matéria bruta e impenetrável, mas o lugar
por onde se pode observar sua retração frente à negação absoluta. Afirmar que algo existe
“porque pensa”, implica assumir que antes da inserção do sujeito naquilo que se compreende
por razão, não haveria nada que a razão pudesse compreender, mas, sim, uma cena
radicalmente real e traumática, um mítico grau zero cujo pano de fundo serviria de analogia
para a entrada do sujeito no simbólico, consequência imediata da contemplação da existência
por intermédio da palavra.
É sob a determinação dessa passagem de um estado para sempre perdido a outro com
o qual ele não guarda continuidade, um trauma originário, que se pode falar de um evento
traumático que naquele encontra eco; seja este o nascimento do próprio sujeito, por
exemplo. Depois do choque, dirá Žižek, “surge literalmente um novo sujeito” (ŽIŽEK, 2017,
p. 92), daí Hannibal admitir não ter relação com o sujeito que ele era antes do trauma vivido,
qualquer que ele tenha sido. Nada aconteceu a este novo Hannibal, ele mesmo aconteceu
como consequência de um evento dado e representa agora a descontinuidade com uma
cadeia perdida. O sujeito pós-traumático, fadado a repetir o conteúdo do trauma, não revive
a coisa em si, mas a própria afirmação de que o trauma existiu como causação, “o que se
repete aqui não é um conteúdo antigo, mas o próprio gesto de revogar todo conteúdo
110
substancial” (ŽIŽEK, 2017, p. 93). Assim, a causa do acontecimento não pode ser sustentada
apenas pelo conjunto das determinantes sociais, nem pela simples modulação dos efeitos que
a sucedem. A causa existe na medida exata em que se faz presente para um sujeito, ainda que
sob o viés de sua negação. Ela não nos interessa como tal, um ato originário aceito como
verdadeiro, mas como uma narrativa ficcional, uma cena mítica, ou um passado perdido de
algum evento/sujeito.
Aí estaria uma das causas pelas quais a sequência de Hannibal, A Origem do Mal –
Hannibal Rising, de 2007, dirigida por Peter Webber, ter se tornado um fracasso de bilheteria
e de público. O filme fornece uma causa precisa, a explicação psicossociológica para o
comportamento canibal de Lecter, que estaria baseado nos traumas que quando jovem ele
vivera (como o assassinato da irmã mais nova, a perda dos pais, o contexto da guerra na
Lituânia etc.). Na tentativa de cercear a causa, sentencia-se o acontecimento a figurar como
consequência imediata de uma série de infortúnios, transfigurando seu caráter
desestruturador para um ponto demonstrável de contradição absorvido numa cadeia. Tal
movimento de incorporação estaria em diálogo com o que Zoppi-Fontana (2017) aponta
como absorção do real da história (a contradição da contingência necessária) no impossível
que designa o real da língua (uma série de pontos de impossível sobre os quais se funda uma
dada estrutura).
9. Transições
Neste tópico volto o olhar para a performance trans, com destaques à produção
artística que circunda “Diaba” (2019), da artista mineira Urias46. Em favor de um tratamento
46
Notadamente, a letra de uma canção, uma performance gravada a partir de show no SESC Rio Preto
(25/08/19), e um videoclipe, recuperados de http://bit.ly/2kpzrsr, de http://bit.ly/2lVUROh e de
http://bit.ly/30ubz6E, respectivamente (acessos em abril de 2022).
111
discursivo dessa manifestação artística, parto das considerações de Jorge Glusberg em A arte
da performance (2013) e as ponho em contato com as derivas de sentido que circundam o ato
performático que me proponho analisar. O objetivo central dessa investida põe em questão
a denominação da performance como um objeto transitório, de desestabilização das relações
entre dentro e fora, show e gravação, eu e outro, performer, público e obra, que pode ser
percebido na arte contemporânea.
47
Sendo a linearização sintagmática o processo pelo qual isso da ordem vertical (do interdiscurso) passa a ser
simbolizado (no intradiscurso), posto na língua e articulado em forma de palavra, gesto, imagem...
112
Dias de Música, realizado no Sesc Rio Preto durante o show Thiago Pethit convida Urias
(2019); e o videoclipe de Diaba (2019). Porque a circulação é a noção que mais explicitamente
permite visualizar a atualização do dizer (em meio digital), proponho pensar essas diferentes
formulações em circulação como objeto transitório, de vez que o encontro sob o qual foram
firmados (artista-público) é remodelado a cada novo comentário postado no YouTube
(artista-público-usuário). A discussão sobre a performance conduzida por Urias enquanto
pessoa trans se apoia na necessidade, já apontada por Anderson Lins Rodrigues em
Subjetividades em trama, corpos em transe, de 2021, de atuar “na contramão dessas ideias
combalidas”, invertendo, assim, “a lógica da determinação discursivo-ideológica”, de modo
a passar a interrogar e trabalhar com “os trajetos de identificação dos sujeitos com o gênero,
sejam eles trans ou cisgêneros, de modo a não apagar a complexidade dos processos de
inscrição dos sujeitos nos sentidos e nas práticas ditas femininas, masculinas”
(RODRIGUES, 2021, p. 38-39).
48
Mas com dominante. Sendo a matriz de sentido o que ocupa o epicentro da formação discursiva e a forma-
sujeito aquilo que regula o que pode e deve ser dito no interior daquela formação. Note-se, ainda, que uma
dada formação discursiva é determinada pela influência direta da formação ideológica a que corresponde. No
conjunto intricado das formações discursivas se observa de maneira mais direta a ação das formações
ideológicas e da formação social, gestadas pela conjuntura social que as sobredetermina.
113
poderemos observar durante a análise do tópico Diaba. Supõe-se que os materiais que
constituam um arquivo carreguem a marca de um efeito de unidade, uma certa
independência, ainda que remetam uns aos outros ou estejam filiados por tema/sentido.
Cabe ao analista a tarefa de relacioná-los no ato analítico pela identificação dessa matriz. O
objeto com o qual me deparo nesta leitura não alude outra forma via interdiscurso, mas
retoma e prossegue com um sentido específico no fio do dizer.
49
A cadeia de repetições sob a qual se firma e pela qual transita pode ser transformada ou rompida a depender
da ação da força externa exercida sob o corpo e de seu limite de resistência.
114
Da esquerda para a direita, Urias, no videoclipe de Diaba (2019); Nicolas Poussin, The Birth of Venus (1635/1636); Kylie Minogue
em All The Lovers (2010); Urias, em performance no Sesc Rio Preto (2019); Fritz Zuber-Buhler, Birth of Venus (1877); Shiva as the
Lord of Dance (950/1000); Peter Paul Rubens, The Feast of Venus (1636/1637).
Por repetição, poderíamos associar a cena do bar a outras mais em que ocorre a
representação de uma deusa que se põe de pé com os braços semiarqueados, enquanto os que
a rodeiam entram em frenesi. Na pintura, as várias obras que aludem a essa cena comumente
referenciam o nascimento Vênus, como The Birth of Venus, de Nicolas Poussin (1635/1636),
Birth of Venus, de Fritz Zuber-Buhler (1877), Nascita di Venere, de Botticelli (1483), La
Naissance de Vénus, de Bouguereau (1879), Anadyomene Venus, de Apelles, enfim. Outra
representação possível é a de Peter Paul Rubens, em The Feast of Venus (1636/1637), que
retrata as celebrações à deusa sem referência explícita ao momento de seu nascimento, de
maneira similar ao que ocorre no videoclipe All The Lovers, de Kylie Minogue (2010), em que
a cantora homenageia Aphrodite, deusa equivalente à Vênus romana no panteão grego. Em
116
todas as versões desta cena, dois índices são postos em cadeia parafrástica – o delírio coletivo
e a centralidade da figura divina de Vênus. O videoclipe de Diaba recupera essa memória ao
repetir certas formas específicas, referenciando marcas próprias à estrutura da pintura, p.
ex., o que deflagra a metalinguagem da performance de que trata Glusberg.
Bom, mas até aí algo não vai bem. Primeiro, podemos argumentar que nas
referências mencionadas, a imagem colocada é de uma deusa e não de um demônio (Diaba),
e que, por consequência disso, o frenesi na pintura não remonta um ato agressivo, como no
tópico, mas iminentemente amoroso, angelical até. Segundo, de outra maneira ainda,
poderíamos dizer que toda essa volta analítica parece excessivamente comparativista e que
não se sustenta em suas premissas pelo fato primordial de que videoclipe não é performance.
Não posso negar nenhum dos dois pontos, mas preciso fazer algumas observações a respeito
da maneira como estamos olhando para esta forma que venho chamando de objeto
transitório. É certo que dentre as imagens que justapus, duas não condizem com o
movimento parafrástico da cena divina: em uma delas, Urias performa ao vivo no Sesc Rio
Preto (2019), e na outra, vemos uma estátua de um dos três grandes deuses do hinduísmo,
Shiva, como Nataraja (Shiva as the Lord of Dance, 950 a. C./1000 a. C.). Diferente de
Aphrodite/Vênus, Shiva não está diretamente associado ao amor, mas à destruição e à
reconstrução. Também não se pode dizer que seja necessariamente homem ou mulher, como
Vênus. Na forma representada, Nataraja, Shiva dança rodopiando os braços em torno de um
arco de fogo, com uma serpente enrolada na mão, enquanto uma das pernas esmaga a cabeça
de um demônio, associado à ignorância dos homens. A dança encenada pode tanto destinar-
se à criação, quanto à destruição de um estado de coisas já fatigadas no mundo.
assumir a forma de uma cobra, Satanás leva Eva à danação ao fazê-la cair em tentação. Em
um segundo momento, o tempo presente é atualizado pelo caminhar de Urias, que já ao fim
do sibilo se apresenta na primeira pessoa do presente do indicativo, “muito prazer, eu sou o
oitavo pecado capital”. Com a cena em cores, anda agora ao lado de um cão negro em coleira,
replicando a imagem de Cérbero, guardião das portas do inferno. O percurso desse demônio
que domou o guardião e o pôs a passeio no mundo dos homens, compreende, assim, um
estado inicial sem forma, em tela preta, do qual só se recupera o som e a memória da cobra,
seguido de um novo ato em que se nomeia o ser (o pecado), ação que supõe a anterioridade
de ter sido outro (serpente) e de ser chamada por vários nomes antes disso, “me chamaram
de suja, louca e sem moral”.
Depois disso, uma pausa. O vídeo corta e a cena do bar sobre a qual nos detivemos
rapidamente é introduzida, em diálogo com o que de divino habita essa figura decalcada
como profana. Urias caminha até o bar e se apoia no balcão, momento em que lentamente
move os braços em semicírculo enquanto as mãos apontam para cima (direita) e para baixo
(esquerda). É importante destacar aqui que a fúria e a paixão que essa figura central suscita
não dialogam senão com a dança cósmica de Shiva, ao destruir a ignorância num arquear de
mãos que reprimem os homens (abaixo) e apontam para sua liberação (acima). Na narrativa
que se constrói, a fúria responde à devastação de um estado ignóbil, ao medo de ter
desestruturado o mundo estabilizado em que se vive. Por sua vez, a paixão reflete o desejo
de libertação, exaltação que se alcança por intermédio da expurga dos males e demências que
assolam aquele povo.
Passada essa cena, outro corte anuncia uma dança de expressão mais violenta. Ainda
sob a égide da centralidade dessa figura em cena, Urias está rodeada por pessoas que se
colocam num plano inferior ao dela, com pés e mãos sobre o chão e o rosto virado para
baixo. No final do videoclipe, ela veste um full body catsuit (uma espécie de macacão rente ao
corpo) vermelho com estampa de pele de cobra. Esse estado encarnado marca a passagem do
sobrenatural ao somático, que agora em corpo caminha livremente entre os homens. Em
nova pele, Urias encara a câmera principal enquanto o fim do take anuncia a ficha técnica
daquela produção. A partir daqui chegamos à última volta da serpente, o tempo futuro, que
118
A canção de Urias celebra o ato junto ao público, que eufórico grita “deusa” e “rainha”
aos seus pés. Além disso, no YouTube, são postados comentários como “Rainha demais” e
“Thiago Pethit estava magnífico, cheio de humildade, e de força. Fez uma bela parceria com Urias”,
invertendo o foco e o sujeito da ação, já que era Urias quem fazia uma parceria/participação
num show de Thiago, e não o contrário (o que pode ser percebido desde o nome do
espetáculo: Thiago Pethit convida Urias). Aqui, o que se configura como comentário e que
parece meramente reproduzir ou replicar informações que o tópico impôs como evidentes
por anterioridade (primeiro há o vídeo, depois o show, e em seguida o comentário), fala
sobre isso que deixou de ser dito, a rede silenciosa de dizeres que sedimenta a base
subterrânea do sentido. O comentário carrega a potência de um acontecimento (no sentido
de que pode vir a romper com uma dada cadeia de sentidos), além de, na estrutura do tópico
de Diaba, ser a prática linguageira que atualiza o dizer, formulando sequências a partir de
formas pré-construídas específicas. “Rainha”, como forma adjetivada, qualifica o ser do
sujeito validando-o como feminino. O termo circula em formulações que estabeleçam
contato com a matriz de sentido das formações que dinamizam dizeres LGBTQIAP+, já que
esse tratamento é comumente utilizado pelas multidões sexopolíticas em referência a artistas
de destaque na cultura. As diferentes rainhas nomeadas por esse dizer recuperado do
interdiscurso via memória, não protagonizam uma espécie de neo-monarquismo, mas
questionam a forma como os regimes de orientação capitalista operam as segregações,
119
“Deusa”, por seu turno, corrobora com a dualidade divina presente (mas não
diretamente anunciada) na tópica de Diaba. Nessa intricada série de referências remontadas
a partir do vídeo, integram a leitura desse objeto em transição os dizeres de um público que,
no encontro (off-line e on-line) entre o sujeito performer e seus interlocutores, fornecem
chaves interpretativas para compreensão do processo de produção do discurso trans,
sustentando por uma performance que utiliza elementos da arte drag, como a montação – a
atribuição de elementos de uma identidade contrária que funciona para melhor
compreensão da posição ocupada pelo sujeito performer. A profusão desse discurso
acompanha a trajetória de um sujeito deixado à margem pela norma, que para significar
precisa resistir ao efeito homogeneizador das diferenças, próprio à forma-sujeito de direito,
rompendo com as estruturas arranjadas parar excluí-lo. Trata-se, como aponta Anderson
Rodrigues (2021, p. 39), de “uma categoria de subjetivação e/ou uma categoria de
identificação no gênero”, esta categoria não constitui um sujeito uno, “coletivo,
numericamente demarcável e absolutamente idêntico, mas um lugar”, lugar este que é
marcado pela transformação e passagem, “como localização de um corpo, espaço ocupado,
lugar da ação humana ou um dispositivo simbólico como um vetor material ético-político
dentro da luta contra a hegemonia”.
Juan Esteban Restrepo, de 9 anos, ao definir o verbete “diabo” na Casa das estrelas de
Javier Naranjo, diz ser o demônio uma “pessoa que não existe para as pessoas” (2018, p. 46).
Como “não-existente”, o sujeito trans é diariamente apagado, excluído, agredido e morto.
Ao assumir a designação de diaba, marcar o gênero do demônio pelo artigo feminino, esse
sujeito é capaz de transfigurar-se, marcando pela linguagem as transições e transposições da
carne. O ato de encarnar, em si, recupera a memória do que não existe com corpo até que se
produza uma forma material que o abrigue. O discurso e o sujeito trans, assim, reivindicam
o direito ao corpo e à apresentação dele pela língua, realizando, eles mesmos, o milagre
primeiro da gestação de um corpo e da criação de uma vida. Entre deus e o diabo, o próprio
120
de Diaba é o de ser, ao mesmo tempo, um ser demoníaco e divino, que devasta e cura, mata
e gera, existe e não-existe, mostra e esconde, enfim, que no ato de existir toma a linguagem
de assalto e inverte a direção do poder por meio do equívoco.
Notadamente, essa exposição do sujeito transexual como o mal a ser erradicado (um
demônio) encontra seu duplo na conjuntura social em que esse sujeito é produzido. A forma-
sujeito de direito da formação social a que corresponde essa conjuntura, isto é, a instância
ideológica que regula o que pode e deve ser dito pelo sujeito, o que ele deve ser para pertencer
à sociedade, organiza meios institucionalizados de invisibilizar, excluir e exterminar aqueles
que se coloquem à margem de um determinado padrão ético e estético fabricado pela
ideologia dominante (Sua lei me tornou ilegal). No imaginário que circunda a posição
hegemônica, as marcações sociais que recaem sobre a figura em dominância remontam
traços específicos do ser – cristão, branco, heterossexual, cisgênero, homem, viril – de forma
que as posições a ela dissidentes são amalgamadas num todo outro a ser marginalizado,
121
evitado, ou, no mínimo, sobrepujado quando em relação ao dominante. Decorre daí que é
na tentativa de replicar esta forma-sujeito que o indivíduo, ao inserir-se como sujeito na
linguagem, reproduz as características dominantes que o discurso da hegemonia fez parecer
serem as únicas possíveis. E isso por intermédio do efeito ideológico fundamental, o da
evidência, trabalho de tornar natural e unificado o que é cultural e disperso.
a quem não conhece sua história, a memória da navalha escondida debaixo da língua ou em
pequenas tranças nos cabelos é retomada em Diaba como símbolo desse sujeito resistente
(Navalha debaixo da língua / Tô pronta pra briga), cuja condição de existência não depende da
replicação das normas instituídas pela forma-sujeito dominante (Sua permissão, nunca fez
diferença).
50
“Our God’s gonna come down and rapture his people and take them up in the sky / Somebody's gonna have to tell the
truth and I'm gonna tell it! / You gotta know the truth, cause the truth'll set you free”. Em tradução livre: “Nosso deus
descerá e arrebatará sua gente, levando-a para o céu / Alguém precisa falar a verdade para eles, e eu a direi /
Vocês precisam saber a verdade, porque a verdade os tornará livres”. Os excertos são paráfrases de passagens
da Bíblia, a exemplo de “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará!” (Jó, 8:32), e “Pois, dada a ordem, com
a voz do arcanjo e o ressoar da trombeta de Deus, o próprio Senhor descerá dos céus, e os mortos em Cristo
ressuscitarão primeiro. Logo em seguida, nós, os que estivermos vivos sobre a terra, seremos arrebatados como
eles nas nuvens, para o encontro com o Senhor nos ares. E, assim, estaremos com Cristo para sempre!” (1
Tessalonicenses, 4:16-17).
123
à arte drag, que não deixa de estar afetada histórica e ideologicamente. Trata-se, assim, de
um processo subjetivo identitário que para ocorrer precisa falsear ou emular um ponto
contrário em relação à identificação do sujeito – seja pela montagem de outro gênero, ou,
no caso de Urias, de outro papel (o de diabo) contraposto ao que se filia (o de deusa). A
elaboração de Glusberg a respeito dessa questão nos leva a afirmar que o corpo em
performance, revestido de linguagem, não corresponde nem ao exclusivamente empírico,
biológico, nem ao detidamente psíquico, individual, já que essa arte “não trabalha com o
corpo e sim com o discurso do corpo” (GLUSBERG, 2013, p. 56).
Da maneira como se coloca no tópico de Diaba, acrescentaria ainda que o dizer sobre
o corpo orienta o processo de produção do discurso da pessoa trans, sempre em oposição de
contraste ao corpo regido pela matriz de sentido cis. Nesse sentido, é possível afirmar que o
controle exercido sobre o corpo normatizado da forma-sujeito de direito da conjuntura
social capitalista produz também o corpo trans, que necessita resistir a uma certa torrente
de sentidos que emanam dessa forma para daí poder filiar-se a outra, mais fluída, dissociada
de fatores estritamente biológicos, como o sexo, e de construção binária, como o par
masculino/feminino. Por não aparecer como evidência, construto já-lá da ação ideológica,
o corpo trans é por excelência um dos espaços em que mais fortemente a construção do
corpo pela linguagem é percebida. Reivindica para si o espaço historicamente a ele designado
pelo ato performático freak e o submete a um novo regime artístico e político, cujo centro é
o discurso sobre o próprio de seu corpo. A atualização dessa memória em passagem aponta
para o movimento de transição do ser falado, mudo e submetido a um dizer sobre, para o
sujeito que fala e se diz trans.
125
amazonas
126
G. Amazone é a segunda drag com quem gravo entrevista em vídeo. Nos conhecemos
em 2014 quando eu ainda morava em Recife. Ao longo dos anos vi crescer e amadurecer uma
artista de senso estético e inteligência performática absurdos, alguém que se agarrou à ideia
de constituir-se sujeito em conjunção com a sua drag; hoje, performer e personagem são
uma e a mesma coisa. Num primeiro momento, entretanto, Amazone estava apartada da
figura masculina. Apresentava-se meio tímida e emulando, tanto quanto possível, a
impressão de uma figura cultural e tradicionalmente feminina – o longo vestido, nenhum
pelo no corpo, os saltos altos, grandes turbantes e pulseiras. Essa drag, ainda jovem, passa
por um ponto de clivagem muito particular – fora dos palcos, o sujeito performer tem
foliculite, e decide, em virtude da manutenção da própria saúde, manter os pelos (incluindo
a barba) como elemento constituinte da personagem drag. O termo personagem que utilizo
aqui é posto pela própria Amazone, como, por exemplo, quando afirma que a drag é “uma
personificação feminina”, e que surgiu de uma demanda criativa situada, centrada num
artista masculino que interpreta ou cria uma figura feminina: “quando eu aceitei o convite
pra festa foi que fui parar para sentar e tentar criar um personagem”.
De minha parte, não vejo ganho teórico em definir a drag como uma personagem,
conceito advindo dos estudos literários mas que é empregado em diversas outras teorias e
referindo objetos distintos. Do ponto de vista da Análise de Discurso, desde a possibilidade
encetada por Freda Indursky em Unicidade, desdobramento, fragmentação: a trajetória da noção
de sujeito em Análise do Discurso, de 2008, a fragmentação da forma sujeito permite que uma
miríade de posições se entrelace para constituir, ainda que temporariamente (ou sob a égide
de um recorte muito específico) um centro estruturante, alguma matriz de sentidos que
possa servir de pedra de toque para uma análise que se debruce sobre o sujeito do discurso.
Descrever um sujeito é um exercício que compreende perseguir os rastros deixados pelos
sentidos que o atravessam; estabelecer um momento, evento ou acontecimento no qual ele
se inscreve por intermédio de tomadas de posição observáveis em construtos de linguagem
materializados na língua. A ideia de que existe um monolito central que responde por sujeito
127
Como mencionei em outro momento deste texto, montação não é um termo novo
nas comunidades de drag queens ou kings52. A origem da palavra no contexto em que é
Salvos os casos em que por meio da arte drag os sujeitos se entendem como pessoas transsexuais.
51
52
Trata-se da forma de arte que centraliza formas de representação da figura masculina. Geralmente é realizado
por pessoas que se identificam o gênero feminino.
128
empregada é incerta, mas a hipótese mais aceita é a de que seria necessário montar num salto
para completar o processo de produção da drag. De toda sorte, revisito a palavra agora para
operar com ela o que Orlandi (2013) se refere como teorização, uma discursivização específica
que integra um tratamento destinado a conferir uma roupagem discursiva a um significante
ou conceito advindo de outro campo de pesquisa ou atuação. É o que acontece com o
conceito de formação discursiva de Foucault, por exemplo, reapropriado por Pêcheux e
posto em funcionamento na ordem do discurso. Montação se refere ao processo de
constituição de uma drag queen pelo sujeito performer – a maquiagem que utiliza, as roupas
que veste, o novo corpo que fabrica.
Depois de montada, a drag, que serve como totem, símbolo da força que amalgama
os sentidos de resistência à posição dominante da formação masculinista, permite ao sujeito
performer assumir a posição dissidente que comentei há pouco. Pensei em chamar essa
formação de “viril” ou da “virilidade”, a exemplo de Courtine ao se referir a um ideal de
homem centrado num ser e parecer específicos (cf. História da virilidade). Entretanto,
acredito que essa marcação levasse o assentamento de sentidos que viso classificar para outro
lugar, mais associado ao sexo, à performance masculina no ato sexual. Como estamos falando
de uma posição assumida em relação a uma designação de gênero, aludir ao sexo poderia
remeter à descrição biológica de gênero, o que procuro evitar. “Masculino”, por si só, não
descreve com exatidão essa posição que determina ser “macho”; “machista” incorre num
problema parecido. Além disso, é possível ser machista e ser mulher, por exemplo. Penso
que o adjetivo “masculinista” resolve a questão por remeter ao masculino, mas deixar
marcado que essa é uma atribuição conferida, qualificada, alcançada, mantida com certa
virilidade e certa violência – principalmente quando em relação ao gênero feminino. De
outro lado, posição dissidente poderíamos muito bem denominar de enviada53,
representativa da formação discursiva que envia o sujeito a este espaço de questionamento
da ordem masculina, e que o faz por meio de um processo que envaidece e “enviadesce” o
corpo em ato durante a performance drag.
53
A referência é à canção Enviadescer de Linn da Quebrada, faixa do álbum Pajubá, de 2017.
129
quando Amazone começou a criar corpo, ter nome, algumas características e aí eu já consegui
ver, enxergar uma forma bem peculiar de fazer a minha drag”).
2. O espelho
separadas, o que poderíamos afirmar sobre a conjunção entre a imagem feminina e a barba
que Amazone sustenta. A montagem é, desse modo, um processo que expõe as contradições
e paradoxos inerentes aos objetos, um procedimento que permite desmontar a política ao
tornar visíveis “os choques recíprocos dos quais toda história é tecida” (DIDI-HUBERMAN,
[2007] 2016, p. 1). A montagem opera o mecanismo filosófico de remontar a história, como
Pêcheux remonta à origem da categoria de contradição em Remontemos de Foucault a Spinoza,
de 1977. Como exposição de anacronismos, dirá Didi-Huberman ([2007] 2016), a montagem
cria um abalo, e isso porque lança mão de uma interpretação que não deixa de estar
relacionada a um gesto político – este gesto dialético de exposição da contradição com o qual
a Análise de Discurso também costuma operar. A montagem, assim, atua como ferramenta
que proporciona “compreender a eficácia dessas imagens como fundamentalmente
sobredeterminada, ampliada, múltipla, invasora”, como afirma Didi-Huberman, desta vez
em Diante do tempo, de 2015 (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 187). A montação, de maneira
similar, confere forma a uma posição de um discurso complexo e disperso, reúne contrários
em torno de si e potencializa o corpo como objeto paradoxal; ela comparece como
contraparte fixa, contorno, fôrma, materialização discursiva.
Deparado com esse outro contorno, o performer passa, então, a significar no interior
de outra posição de sujeito consubstanciada ao corpo modificado, montado. Dei preferência
especial a entrevistas em vídeo que retratassem o processo da montação para que fosse
possível observar a forma como ocorre essa passagem especular – de uma posição a outra,
ainda que essa transição não dependa unicamente do reconhecimento imagético, mas, sim,
de uma identificação discursiva particular. A isso equivale dizer que esse momento em que
se “conclui o estádio de espelho inaugura, pela identificação com a imago do semelhante e
pelo drama do ciúme primordial [...], a dialética que desde então liga o Eu a situações
socialmente elaboradas” (LACAN, 1996, p. 101, os grifos são do autor). Estas situações
socialmente elaboradas não são senão a rede de referentes em conflito que sustentam a
existência do aparato discursivo, seu real sócio-histórico.
Segundo essa lógica, o macho só é possível a partir da anulação da fêmea. Ele existe
como negação ao que é socialmente considerado feminino; não há nada particular ao homem
senão uma série de interdições – não andar como mulher, não falar como mulher, não vestir
como mulher, sob o risco de ser lido como conjuntivo feminino (qualquer posição não-
masculina, mas, mais comumente, a de gay, por exemplo). Ainda que num primeiro
momento o espelho atue na delineação corpórea dessa posição contrária à ação
homogeneizante da ideologia masculinista, esse sujeito passa a compreender que a assunção
social da possibilidade dessa contradição à norma surge como necessidade identitária,
decorrente e complementar do/ao âmbito psicológico. Daí Amazone figurar como “o que
falta no B [o nome do performer foi suprimido]. Onde eu tento fazer essa mesclagem”, o que
se marca na língua pelo câmbio irrestrito entre eu/ela e B./Amazone quanto em passagens do
tipo “G. Amazone que na verdade também sou eu, hoje eu entendo isso; mais do que duas
personas separadas, é como o yin e yang, fazem parte de um mesmo, de um todo”. Para além
do espelho, o que existe é um espaço de percepção da conjunção entre psicológico e social,
de complementariedade do outro em relação ao eu, ao desejo que o eu materializa numa
posição dissidente à formação masculinista, mas filiada à posição enviada.
também levar em consideração o lugar social que eles ocupam, o momento e o espaço da
enunciação.
Assim, é possível que o sujeito que significa esse indivíduo como mulher evangélica
modalize o dizer e produza sentenças do tipo “a paz do Senhor, irmã”, se superidentificado
com a mesma posição; mude de calçada; mobilize afetos como empatia, ódio, indiferença;
presuma a posição política daquele indivíduo; antecipe seu gênero ou preferência sexual;
perceba a aproximação física como autorizada ou interceptada etc. É nesse sentido preciso
que a barba de Amazone produz um equívoco – o sujeito, posto a significar de uma forma
determinada pela estrutura que o determina, é obrigado a suspender três imagens
dominantes na formação imaginária que o afeta: a de homem, a de mulher e a da própria
drag queen, que a cultura tratou de cristalizar como sendo predominantemente voltada à
representação prototípica feminina. Para o sujeito que significa Amazone, ela é e não é
homem, assim como é e não é mulher e drag queen. Daí também podermos afirmar que o
corpo da drag se apresenta como objeto paradoxal, a reunião exemplar de contradições, o
ponto em que elas propositalmente estão a serviço da suspensão do engessamento do sentido
ordinário, em favor da construção de um espaço de estranhamento em que o olhar esteja a
serviço do performer – é ela quem direciona e demanda atenção, e é sobre ela que repousa a
orientação da presença.
feminino, o humano passível de defeitos em relação às deusas maternas das quais fora
apartada, o real que mantém barba e bigode apesar da negação do nome do pai. “A persona
ela vem de uma origem mitológica, filha de uma deusa com um ser humano, então é uma
semideusa. Dentro desse contexto, o nome está numa língua incompreensível, ele é
abreviado para deixar uma incógnita”.
3. O acontecimental
A ressalva que faz Lara atenta para o fato de que assumir a existência do
acontecimento artístico-discursivo não implica que “toda e qualquer performance produza,
propriamente, resistência discursiva” (2016, p. 206) – a resistência, íntima à identificação,
ocasionaria a ruptura e a contra-identificação a que se refere Indursky (2008), já que é
resistindo aos saberes que o sujeito modaliza sua tomada de posição. Isso não apaga o caráter
138
estabilizada pela repetição e cristalizada pela memória até automatizá-los e torná-los óbvios.
A esquematização do panorama tracejado pode ser observada na figura abaixo:
Para Marx & Engels (2001), a produção do óbvio é uma expressão particular de um
dos mecanismos de funcionamento da ideologia, qual seja: a naturalização dos fatos
históricos e culturais, sua marcação enquanto normais, triviais ou inevitáveis. No caso
apresentado, o assentamento dos sentidos possíveis para a arte, aos quais se refere Lara
(2016), é efeito colateral de dois fatores de mesmo expoente: a) a evidenciação de que há uma
linguagem naturalizada para a arte, e b) o reconhecimento da necessidade de quebra dessa
linguagem para que se valide a arte enquanto tal. A concepção de que só se é arte quando há
ruptura, acompanha um anseio pelo novo, o desejo que está na base do funcionamento da
obsolescência quase instantânea que rege o comércio moderno, pautado na fabricação e troca
contínua de produtos (objeto a), que impulsiona o consumo. Essa ação ideológica na arte,
140
pontuada na produção do óbvio, é possível tanto porque a arte se apresenta como uma
linguagem – a contraparte concreta do discurso que, por sua vez, materializa a ideologia;
quanto porque, na conjuntura capitalista, a arte é tida como produto cultural e econômico,
cujo consumo esteve historicamente associado às classes dominantes.
Um segundo ponto que merece destaque nesta crítica faz referência ao que vinha
discutindo como destrinchamento do acontecimento discursivo, ou a observação dele
enquanto processo. No diagrama apresentado, a obra de arte participa de um primeiro
estágio do acontecimento em que se situa a desautomatização da linguagem nas vias em que
lhe permite o estranhamento. Esse objeto, condicionado à ação proporcional das forças
externas à Formação-discursiva em relação com os limites (proporcionais, elásticos e de
resistência) do sujeito, pode ou não escalonar e chegar assim a instaurar uma ruptura. Em
miúdos, este objeto é passível de limitar-se à torção e estancar na contra-identificação, ou
141
4. Outras imagens
2018, p. 26, os grifos são do autor). Sem o outro, essa contraparte a partir da qual o sujeito é
constituído, a negatividade que concorre na formulação da imagem de si como contrastante
do outro que significa eu, o sujeito é puramente positivo. Didi-Huberman, em Diante da
imagem, de 2013, afirma, ainda, que “há um trabalho do negativo na imagem, uma eficácia
‘sombria’ que, por assim dizer, escava o visível” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 182, os grifos
são do autor). Assim, as imagens postas em circulação no ciberespaço tendem a promover o
igual, o uniforme, o liso, o belo, o mimetizável, um local em que a presentificação dos
sujeitos é atravessada pelo drama existente entre o senhor que passa de agente da visão a
objeto do olhar.
Em Políticas da imagem, de 2021, Giselle Beiguelman afirma que o corpo foi apartado
dos processos de visualização; dele só restou o olhar, organizado e disciplinado por uma
lógica fabril. Nesse esquema, a conjuntura social capitalista isola o olhar, exclui o olho da
experiência conjunta que opera com os outros órgãos, na intenção de direcionar a atenção
do olhar para o trabalho e o consumo. Nesses termos, “imagens digitais não são versões de
imagens analógicas em outro suporte”, e isso porque rompe-se aí com o “pressuposto da
separação dos sentidos e da autonomia da visão em relação ao corpo, um dos marcos da
reorganização da subjetividade e da vida, que ocorrem no processo de consolidação do
capitalismo industrial e da urbanização do século XIX” (BEIGUELMAN, 2021, p. 7). A ideia
é a de que as imagens que circulam em redes sociais instauram um efeito, este de que são
leituras atualizadas de uma prática analógica, retratos da vida offline, quando, na prática,
comparecem como um amontoado de pixels, mapas informacionais que efetivam conexões
entre a imagem e um algoritmo.
imagem da drag nas redes sociais, por exemplo, “duplica o corpo na consciência, fazendo-o
existir mais intensamente”, de acordo com Georges Vigarello n’O sentimento de si
(VIGARELLO, 2016, p. 272).
No começo desta tese havia me referido à incorporação como outro dos mecanismos
discursivos que constituem o sujeito drag queen, ao lado da montação. Se ela (a montação)
é o processo discursivo que centraliza a produção da corporificação de uma posição
discursiva, a incorporação é a ação e o meio pelo qual essa montação se conecta ao fazer
artístico. Vimos que a história do desenvolvimento da arte drag esteve relacionada à
resistência e, também, ao ato de agregar elementos de outras artes performáticas, como o
teatro, a dança, o canto, a fotografia, enfim. Isso se deve ao fato dessa ser uma arte periférica,
feita por artistas à margem do cânone das belas artes e por sujeitos excluídos da normatização
social que prediz um corpo próprio, superidentificado à formação da binaridade. É a
145
montação que autoriza o sujeito a significar no espaço artístico, já que cria uma posição cujo
efeito principal é o de emulação, separação entre o indivíduo masculino, sujeito de direito,
e sua imagem dissidente, sujeito permitido fazer e dizer. À drag é permitido ser o artista
negado ao sujeito de direito. Na ilusão de estar apartado do peso da determinação social que
rege o corpo a ser masculino, a posição drag consegue fabricar um corpo atento às vazões
artísticas desejadas pelo sujeito. Essa nova posição pode cantar, dançar, dublar, atuar,
comunicar, animar etc. Incorporar elementos dessas outras artes é, assim, resistir ao controle
dos corpos e, ao mesmo tempo, não se limitar a um único meio de significar artisticamente.
Note-se, ainda, que essa incorporação opera na tensão entre os campos e os sentidos por eles
encetados, sem, propriamente, sintetizá-los num novo arranjo ou objeto. Em aberto, a
performance drag consegue, em meio digital, criar a imagem de um corpo outro, este que
resiste aos encalços comunicativos do ciberespaço.
5. É de espelho, um semblante
Os animais, prossegue Lacan, estão presos no olhar do mundo, mas nós, que temos acesso
ao simbólico, podemos mediar e manipular esse olhar, domesticá-lo, contemplar um objeto
no ponto luminoso do olho.
Poderíamos, em favor de uma distinção mais clara, falar de uma arte centrada na
ilusão da verossimilhança e outra preocupada com o ilusionismo traumático, mas pouco
avançaríamos na discussão central dessa questão, que é a relação entre sedução, ilusão e
dissolução. Ao tratar desse ponto, Lacan utiliza a anedota da disputa entre Zêuxis, que pinta
uvas tão realistas a ponto de atrair os pássaros até sua obra, e Parrásio, que pinta uma cortina
numa parede e, assim, termina por iludir Zêuxis, que pede para ver o que há por detrás
daquele tecido. Aqui o jogo se dá entre o animal seduzido e o humano iludido, já que é por
detrás do pano da cortina que está o olhar, isso que atrás ou além está sempre a nos seduzir.
O ilusionismo traumático, por outro lado, poria em questão a existência do muro,
lembrando haver, em primeiro lugar, uma barreira; o objetivo disso é propor sua dissolução.
Neste último caso, como o colocou Hélène Cixous n’O riso da medusa, de 2022, “como não há
lugar de onde estabelecer um discurso, mas um solo milenar e árido a fissurar, o que eu digo
tem ao menos duas faces e dois destinos: destruir, quebrar; prever o imprevisto, projetar”
(CIXOUS, 2022, p. 42). A opção aqui é pela violência, por derrocar uma estrutura em favor
de outra que habilite a existência de outro discurso, seu estabelecimento e circulação.
Semblantes e mascaradas (2021), decorre da formulação segundo a qual o véu é lido como uma
estrutura do fetiche; a realização de um fetiche nos dá indícios de que objeto está sendo
colocado como substituto do falo materno que não se aceita ter perdido. O véu, assim,
promove uma ação de enganar olhos, de ludibriar aquele que engana os pássaros, pintando
uma cortina que esconda a castração. O fetichista é, dessa forma, manipulativo, ele goza em
jogar com a aparência fálica aludida pelo objeto, com isso que está atrás da cortina, por detrás
do véu que causa o desejo. O gozo aí se encontra na falta, em causar – e nunca realizar – o
desejo. Assim também é o funcionamento da mascarada, que representa a forma como a
feminilidade é construída – não como uma imagem direta e ostensiva, mas, sim, como algo
velado, escondido por uma máscara. A mascarada também está ligada à causação do desejo,
mas, dirá Dunker (2021), não se conecta necessariamente ao fetiche, já que o propósito é o
de fazer com que o outro descubra sobre o sujeito – a descoberta, sempre proposta e
imediatamente impedida (e não o impedimento do desejo por si só), é, ela mesma, o fim
último da mascarada, ainda que sob a máscara esteja outra máscara.
que não existe a priori, mas que é fabricada pelo discurso e sustentada pelo sujeito, de
maneira que o sujeito aparece como instância material superidentificada com determinada
posição – existe uma cara, um semblante específico, que caracteriza um homem, por
exemplo. Assim também ocorre com associações do tipo “tem jeito de professor”, “fala como
político”, “age como uma estrela” etc. Assumir o semblante de uma dada posição no discurso
significa identificar-se com a rede de sentidos que sustenta essa posição, reproduzindo uma
série específica de condutas, dizeres e práticas. Manter a ficcionalidade desse sujeito equivale
à reprodução: “portar-se como”, agir conforme, falar de acordo, enfim, entender e replicar
isso que se “constitui sócio-historicamente sob a forma de pontos de estabilização que
produzem o sujeito, com, simultaneamente, aquilo que lhe é dado a ver, compreender, fazer,
temer, esperar etc.” (PÊCHEUX, 2014, p. 148, os grifos são do autor).
Daí a possibilidade de Lady afirmar que “a Lady sou eu e não sou eu”. A ambivalência
que essa posição enceta assume a contradição inscrita no corpo de um sujeito dividido entre
149
estar superposto a uma posição enviada e, ao mesmo tempo, de não apresentar um semblante
possível para ela senão por intermédio da montação. E isso porque o semblante a ser
sustentado pelo sujeito desmontado diz sobre a posição masculinista, esta que precisa se
manter alinhada à formação imaginária cujo fundo de sentido prediz uma imagem cultural
e ideologicamente determinada do que é ser e parecer um homem. Impedido de significar e
de dar ao corpo à imagem que lhe corresponderia, o sujeito opera, via performance, o
desarranjo necessário para identificar-se com a posição-discursiva a que se filia. É na arte
que o semblante da drag surge, e é pelo discurso que os dizeres contra o binarismo e o
masculinismo se coadunam à face resistente criada, materializada no novo corpo fabricado
pelo performer.
mesma figura; esse corpo que é dado pela linguagem “não é, por essa razão, redutível à
linguagem” (BUTLER, 2021, p. 43). Da maneira como o colocou Amazone, “tem etapas da
maquiagem que dão saltos de que Amazone tá chegando [...] saltos para a personificação”.
Essa figura que aparece personificada aos poucos, em pedaços e saltos que deixam indícios
de seu surgimento, é o índice que desponta a forma material do equívoco a que Bressan se
refere; o centro de um nó numa corda trançada pela cultura, pela ideologia, pelo inconsciente
e pelo discurso, que ata os pedaços do corpo de um sujeito ambíguo. Ela e ele, dele e dela, de
um ao outro noutra volta.
Figura 5 Pedaços de corpo atados por corda. Fonte: A figura foi criada com inteligência virtual
151
Esse ímpeto de alargamento que resulta no corpo em pedaços, delineia uma forma
para logo em seguida romper com ela; trata-se de um tipo de distribuição geográfica,
espacial, cartográfica do corpo. Assume-se uma conexão que não é orientada linearmente
pelos órgãos, mas por afecções que se incorporam à textura do corpo, como afirma Suely
Rolnik, em entrevista concedida à Revista Redobra, em 2010. Para Rolnik, essa é uma
capacidade vibrátil do corpo, na qual o contato consigo e com o outro, humano e não-
humano, expande os limites corpóreos e, nesse processo, orienta afetos. Compreende-se o
funcionamento de uma série de constantes movimentos paradoxais do corpo, de admitir que
ele necessita de um contorno e que é irredutível ao contorno atual. Sobretudo o corpo do
sujeito drag é, antes de ser objeto, uma questão lançada em direção ao outro, uma
interrogação que leva à recriação do corpo e do espaço ao seu redor. Esses movimentos,
“dependendo do limiar desse paradoxo geram sensações, a sensação desse paradoxo tem que
152
ser enfrentado, ela gera um vazio de sentidos, nos torna frágeis; e é a experiência dessa
sensação que nos empurra e nos obriga a criar” (ROLNIK, 2010, s. p.).
6. (60.284.640)
No segundo turno das eleições presidenciais, em outubro de 2022, Luís Inácio Lula
da Silva contabilizou 60.284.640 votos, 50.90% do total de votos válidos54, derrotando o
então presidente Jair Bolsonaro, que tentava reeleição munido de toda sorte de recursos
fornecidos pelo aparato da maquinaria estatal, grande apoio popular, fortes propagandas
negacionistas e bastante dinheiro da iniciativa privada. O governo de Bolsonaro foi marcado
por uma série de escândalos políticos, desastres econômicos, crises sanitárias, crimes
ambientais, massacres e fanatismos religiosos. O sentimento geral daqueles que se colocaram
contra as medidas tomadas pela União e resistiram aos entraves sociais desse período é difícil
de ser descrito. Carregávamos um misto de indignação, desânimo, medo; exigíamos alguma
responsabilização ética de quem fora incapaz de fornecer raciocínio lógico estruturado;
tentamos, ainda, desenvolver um vocabulário social55, qualquer gramática socialmente
compartilhada que desse conta de nomear e compreender o desamparo e outros des-afetos
postos em circulação nesse período de injustiça social. Até mesmo agora, depois da vitória
incontestável de Lula nas urnas, nas ruas e na justiça, a descrença no bom funcionamento
das instituições instaurada pelo bolsonarismo põe em desconfiança a posse e um governo
tranquilo. Em igual medida, tememos e aguardamos outro golpe, um novo escândalo.
54
Disponível em: https://bit.ly/3udH45r. Acesso em nov. 2022.
55
O termo é de Filipe Campello, em Crítica dos afetos, de 2022.
153
gente tá nesse tempo tão ruim e ao mesmo tempo tão bom pra ser quem a gente é; a gente
nunca esteve tão oprimido, mas ao mesmo tempo nunca esteve tão livre pra se expressar”. É
ao enfrentar a impossibilidade de assumir livremente a posição-sujeito a que se visa filiar
que o sujeito drag mobiliza, via performance, circuitos de afetos capazes de produzir outras
formas de encarnação dessa vontade de identificação – de contra-identificação à posição em
dominância na formação discursiva diametralmente oposta. É nesse sentido que Lady diz
que gosta “muito de explorar isso; de novo, de explorar como o amor, como a paixão, como
a raiva, a tristeza, como o medo... de perder alguém da família, medo de começar uma coisa
nova... tudo isso me encanta bastante e eu gosto de expandir isso e levar pro palco”.
56
Sujeito que, como me alertou Luciene Jung na banca de defesa da tese, é maior do que o eu, o recobre. O
sujeito comporta o imaginário de eu e, também, esse outro, que por vezes nos dá a ver algo disso, o fato de que,
como diria Pêcheux, há real. Também por isso, o sujeito se lança ao olhar do outro, rememora sua dependência
e demanda em direção ao Outro.
154
No fim, este também foi o rumo que a tese tomou – procurou tornar nítida a relação
entre a montação e a resistência e, nesse processo, refletir sobre a afetação/afecção múltipla
do corpo do sujeito drag – pelo discurso, pela ideologia, pelo inconsciente, pela cultura e
pela arte. A elaboração teórica percorreu esses diversos caminhos para chegar até essa
conclusão. Num primeiro momento, parti de uma reflexão sobre indeterminação, rebeldia e
repressão para apresentar a história da arte drag e sua relação com os estudos da linguagem,
e também tracei distinções entre o câmbio que ocorre entre eu e ela, as implicações teóricas
de considerar o nós como uma pessoa estendida, que compreende o eu em adição ao objeto
ela, este que funciona como não-pessoa. Nesse cenário, o nós marca o desejo de reintegração
do ela como agente do discurso e, ao mesmo tempo, configura linguisticamente o sujeito
drag queen, dividido entre ser eu e fazer outro de si (ela). Assim, apesar de, em um primeiro
momento, ela comparecer como objeto, a marcação dessa posição dissidente (enviada) resiste
à ação de objetificação imposta pela posição em dominância (masculinista) e tenta se
inscrever como aquele eu que diz. O resumo da questão pode ser entendido como a
constatação do desejo do sujeito de fazer com que a posição dissidente ocupe a centralidade
da ação subjetiva do eu, e não figure como mero complemento ou objeto afastado de mim.
Este processo não ocorre, como é possível perceber, de maneira uniforme ou pacífica, mas
sempre em dissimetria, claudicação, nas vias em que a contradição instaurada entre ser e
parecer consegue se materializar.
No caso analisado, foi a hesitação de Lady em dizer eu ao falar de ela que fez surgir a
marcação nós. O caso marca, além disso, o espaço de limbo em que a posição enviada
comparece – num exterior, à margem da posição masculinista, mas, ainda assim, sem tecer
superidentificação com a FD feminista. Trata-se de uma posição que se acotovela para
garantir um espaço de ação no entremeio, no vão entre uma e outra força de ação. Esse espaço
de tensão é, por excelência, aquele ocupado pelo sujeito performer que, em contato com a
arte contemporânea, se inscreve num entre, na mestiçagem, que pressupõe, segundo Cattani
(2004, p. 169), a “presença simultânea de seus elementos constitutivos, os quais não se
155
anulam mutualmente nem se fundem, mas permanecem sempre presentes, numa relação
tensa, ambivalente, contraditória”.
Depois disso, num passeio pelas concepções de tique e de trauma, pude introduzir a
ideia de que existe um universo de signos interditados ao sujeito e que são acessados via
montação – ela serve como mecanismo de autorização para uma posição dissidente, que se
materializa no corpo do sujeito por intermédio de um processo discursivo e artístico; além
disso, esse processo também compreende, como pudemos verificar, a criação de um
semblante. Sob os auspícios dessa máscara, o sujeito consegue pôr em circulação os sentidos
a ele negados pela ação da repressão sócio-histórica e cultural. Essa miríade de sentidos
restringidos a que me refiro é culturalmente marcada pelas concepções de gênero feminino
e de feminilidade: a cultura designa o espaço masculinista como oposto radical deste espaço,
que comporta tudo aquilo que carregue qualquer carga de sentido passível de ser associada
ao gênero feminino.
de uma mesma posição sujeito; um corpo em sobreposição, que é e não é ao mesmo tempo
correspondente material da posição enviada. Para entender a complexidade dos paradoxos,
recorri à teoria lógica paraconsistente, de maneira a entender como um sistema logicamente
estruturado pode comportar contradições. O paradoxo, no sentido lógico clássico, decorre
de uma visão restrita da contradição, no paradigma aristotélico, que fundamenta as
abordagens tradicionalistas, a ocorrência de uma contradição num sistema organizado está
associada à trivialidade. Trivial é a condição do arranjo sujeito à implosão; assim, seguindo
essa determinação, contradizer é, necessariamente, impor resistências ao sentido lógico,
torná-lo inconsistente e fazer explodir a organização que fora estabilizada. Entretanto, a
lógica moderna, paraconsistente, opera com a possibilidade de edificação de um sistema
inconsistente, mas não trivial.
Dessa forma, admite-se que um arranjo está sujeito às contradições, que não
apresentam, a rigor, uma implosão. Se toda contradição implicasse numa implosão,
poderíamos estabelecer relação de aproximação entre qualquer objeto externo a um dado
termo no interior de um sistema. Nesse sentido preciso, para um sistema lógico formal, dizer
que um sujeito é e não é mulher, seria o mesmo que dizer que ele é e não é um canetinha
colorida. Por outro lado, no interior de um sistema regido por uma lógica paraconsistente,
definimos uma série de arranjos possíveis para o que esse objeto interno pode ser sem que o
sistema imploda numa contradição trivial – ser e não ser mulher corresponde, no caso da
drag, a uma expressão corpórea orientada pela assunção de uma posição no discurso. Dizer,
assim, que o discurso está inteiramente na língua e inteiramente na história também é
possível; mas é improvável que digamos, no sistema da Análise de discurso materialista, que
o discurso está inteiramente na língua e inteiramente no cérebro, por exemplo.
devir na memória, “não se identifica nem com a mulher nem com o inseto nem com a flor”
(PRECIADO, 2014, p. 192).
formação cultural em dominância. A cultura atua nesse esquema tanto como instância de
regulação de um imaginário de corpo, quanto como espaço de dissimulação das incoerências
que circundam essa imagem formulada, ideal de existência de um único corpo possível.
que realiza essa ação, que é determinada sócio-histórica, cultural e ideologicamente. Para
tratar da noção de presente que fundamenta, no campo da arte, a performance, recorri à
formulação de Ricoeur, segundo a qual o persente se inscreve como passagem, marca do
movimento de transição que caracteriza o tempo, noção que se torna acessível à experiência
por meio da inscrição de uma narrativa. No processo de produção do discurso, a narrativa
comparece como construto de linguagem enunciado por um sujeito interpelado, o que
implica considerar a narração como uma prática discursiva, sedimentada por uma memória,
instância que integra um processo histórico de conflito de sentidos.
antecipar o momento mesmo da enunciação, num jogo imagético feito de uma série de
especulações do eu em relação a si e ao outro. Essas imagens estão atreladas ao corpo do
sujeito que enuncia e ao de seu interlocutor, além de também levar em consideração o lugar
social que eles ocupam, o momento e o espaço da enunciação. Partindo da conceituação de
Pêcheux sobre as formações imaginárias, passando pela ideia de formação cultural e
avançando em direção à formulação semântica de protótipo, pude articular uma categoria
de formações imaginárias que opera com a representação de lugares sociais transformados,
por intermédio da ação ideológica de uma formação cultural, que cristaliza uma série de
imagens significantes, prototípicas de uma posição em dominância. Vale lembrar aqui que
entendo formação cultural como sendo o “espaço a partir do qual se podem prever os efeitos
de sentido a serem produzidos” (LEANDRO-FERREIRA, 2011, p. 60), como apontado por
Maria Cristina Leandro-Ferreira em O lugar do social e da cultura numa dimensão discursiva,
de 2011. Assim, este é, por excelência, um espaço de dar a ver esses assentamentos de sentido,
em que a regularidade atua de tal modo a tornar previsível uma dada interpretação, donde
deriva a noção de protótipo.
O ideal de ser masculino, assim, essa imagem do peixe que não se presta à captura, é
imputado ao sujeito masculino – é necessário que ele replique essa estrutura masculinista de
uma forma antônima ao ser mulher, já que, culturalmente, o homem está ali no espaço de
negação do feminino. A drag, desobedecendo essa determinação, surge com o intuito de
162
É por intermédio da drag que o sujeito consegue resistir à coerção da norma imposta
pela formação ideológica e disseminada pela formação cultural, rompendo com a imagem
masculina sustentada por uma formação imaginária específica. O sujeito cria um semblante
para a posição enviada, contra-identificada com a posição masculinista. Essa posição enviada
é autorizada a dizer e a representar signos ligados à formação imaginária que veicula o
protótipo imagético do feminino, sem, no entanto, filiar-se à FD feminista. Trata-se de uma
posição de tensão, entremeio, inscrita por entre os vãos das FD masculinista e feminista.
Montar-se significa resistir, desobedecer à determinação de um padrão imposto
culturalmente e, assim, agir conforme os princípios de uma posição que não concorda com
a reprodução de sentidos masculinistas, que veiculam a ideia da violência e do desrespeito
contra a mulher e qualquer outro ser que a ela seja empático. A drag provoca, critica e propõe
reflexões sobre a reprodução desses padrões, é um ato de colocar-se num lugar outro, como
posição estratégica na defesa da luta pela subjetivação.
Além disso, a drag cria condições para que o sujeito, interditado a significar no
espaço que lhe é próprio, possa, agora como performer, expressar-se artisticamente da
maneira que achar preferível. A proposta desta tese foi a de apresentar este conceito – o de
montação, e refletir, dessa forma, sobre as condições que propiciam seu surgimento. O leque,
que fora aberto num vrá, jogou vento para todo canto. Sacudiu questões por aí, levantou o
pó da mesa e tornou possível respirar de maneira mais amena. Espero que agora, ao fechá-
lo, possamos acessar outros campos, enxergar outras imagens, expandir o vocabulário para
inscrever narrativas de novas e novas maneiras, sermos afetados de outra forma e caminhar
para um horizonte mais aberto – horizonte jamais alcançado, mas povoado de caminhos
desviantes, enviados e enviesados. Espero também que possamos, como analistas, mas
também como sujeitos, articular junto aos 60.284.640 que nos são companheiros, outras
formas de interpretação, injunções à liberdade do pensamento e transformações da
desesperança em alegria, da restrição em autorização, da violência em ternura.
164
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