O Sujeito-Corpo Nas Representações de Si: N. 26 Cena
O Sujeito-Corpo Nas Representações de Si: N. 26 Cena
O Sujeito-Corpo Nas Representações de Si: N. 26 Cena
26
Matteo Bonfitto
Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP, São Paulo, Brasil
E-mail: matteobonfitto@gmail.com
Resumo Abstract
O corpo e suas possíveis representações The body and its possible representations of
de si nos coloca enquanto devir de ser/estar themselves in places while becoming of being
no mundo, construindo imagens e consequen- in the world, building images and consequently
temente subjetividades. Não somos um, so- subjectivities. We are one, we are plurals that
mos plurais que buscam incessantemente, por seek unceasingly, through art and performativ-
meio da arte e performatividade, novos modos ity, new modes of existence of our bodies. It is
de existência dos nossos corpos. É com o cor- with the body and his productions of images
po e suas produções de imagens que nos re- that we interact, share feelings and dwell as
lacionamos, compartilhamos afetos e nos ha- subjects. We will reflect on this article about the
bitamos enquanto sujeitos. Refletiremos nesse constructions of the subject-body by means of
artigo sobre as construções do sujeito-corpo representations of themselves, the conflict of
por meio das representações de si, no confli- looking aesthetic between what is and what is
to do olhar estético entre o que se é e o que overflowing through the constructions/descon-
transborda através das construções/descons- struções images of themselves.
truções das imagens de si.
Palavras-chave Keywords
Corpo. Imagem. Representação de si. Subje- Image. Self-Representation. Subjectivity. Iden-
tividade. Identidade. tity.
cena n. 26
O corpo há tempos deixou de ser algo or- de mudar sua vida, modificar seu sentimento
gânico imutável. Não estamos mais na terra de de identidade” (2013, p. 30). O olhar do sujeito
quem “nasceu assim, viveu assim e será sem- contemporâneo é visto pelo viés do corpo; o
pre assim!”. Estamos vivendo em um momen- corpo passa a ser um objeto de representação
to em que o corpo tem possibilitado a constru- de si, como diz Merleau-Ponty: “só podemos
ção de inúmeras corporeidades, colocando-se entender a geografia porque sabemos o que
no espaço das “possibilidades”, das mudan- é ter a experiência de uma paisagem” (MER-
ças, das construções e das desconstruções, LEAU-PONTY apud MATTHEWS, 2006, p.26).
seja por meio dos avanços médicos, estéticos Usando essa mesma analogia, pode-se dizer
e tecnológicos, enfim... era de descobertas que só podemos entender o que é o corpo
de novos modos de existência por meio dos porque sabemos o que é ter a experiência de
nossos corpos, identidades e subjetividades. vivenciá-lo, e essa vivência só é possível por
É com o corpo – e consequentemente nossas estar em contato com o mundo. Erving Gof-
corporeidades – e suas produções de imagens fman, no livro Representação do eu na vida
que nos relacionamos, compartilhamos afetos cotidiana (2002), ressalta que usa o termo ‘re-
e nos habitamos como sujeitos corporais. Há presentação’ para se referir a “toda atividade
uma relação intrínseca entre corpo e sujeito, de um indivíduo que se passa num período ca-
já que pensar o corpo é uma das maneiras racterizado por sua presença contínua diante
de se pensar o mundo, e consequentemente de um grupo particular de observadores e que
a arte. Levamos em consideração que pensar tem sobre estes alguma influência” (2002, p.
a corporeidade é pensar o mundo e a exten- 29). Logo, o sujeito-corpo em lugar de repre-
são de suas experiências. Mas, de que corpo sentação cotidiana,é aquele em que afeta e é
especificamente estamos falando? Do corpo afetado concomitantemente. Para entender
que busca se relacionar com a experiência e o melhor o que vem a ser esse indivíduo em es-
mundo. Como se trata de um campo de inves- tado de representação social, Goffman divide
tigação muito amplo e complexo, faremos um a ideia, em que o mesmo está envolto, em dois
recorte neste universo e assumiremos como papéis fundamentais:
fio norteador a relação entre o corpo e o sujeito
no olhar sobre si mesmo, nesse olhar estético considerado como ator, um atormen-
tado fabricante de impressões envol-
que se tem sobre o que sou e o que transborda vido na tarefa demasiado humana de
através da imagem do corpo. encenar uma representação; e foi con-
siderado como personagem, como
Para isso, utilizaremos conceitos de dois figura, tipicamente uma figura admirá-
teóricos para as discussões acerca dessa te- vel, cujo espírito, força e outras exce-
lentes qualidades a representação ti-
mática: Erving Goffman e David Le Breton. nha por finalidade evocar (GOFFMAN,
Não tomaremos o corpo enquanto uma “for- 2002, p. 230-231).
ma finalizada”, mas uma matéria em constante
mudança que tende a variar de acordo com a Conforme essa ideia, todo indivíduo se colo-
necessidade de experienciar novas identida- ca no mundo a fim de causar uma “impressão”
des. Como ressalta o antropólogo social Le de si mesmo ao encontro do olhar do outro.
Breton,“ao mudar o corpo, o indivíduo preten-
Robert Park1 nos lembra que “não é provavel- Breton diz que a aparência, dentro do campo
mente um mero acidente histórico que a pala- da sociologia do corpo:
vra ‘pessoa’, em sua acepção primeira, queira
responde a uma ação do ator relacio-
dizer máscara” (PARK apud GOFFMAN, 2002,
nada com o modo de se apresentar e
p. 27), por isso também a associação de Go- de se representar. Engloba a maneira
ffman com a figura do ator e o personagem. de se vestir, a maneira de se pentear
e ajeitar o rosto, de cuidar do corpo,
Todos os indivíduos são atores sociais e pos- etc., quer dizer, a maneira cotidiana de
suem uma construção sobre a impressão de si se apresentar socialmente, conforme
as circunstâncias, através da maneira
que deseja ser passada ao outro de maneira de se colocar e do estilo da presença
eficaz, ou seja, que haja uma convergência en- (LE BRETON, 2007, p. 77).
tre essas impressões – a emitida e a recebi-
Traçando um paralelo entre essas duas ci-
da.2 Para isso, o indivíduo é mergulhado em
tações, é possível notar que ambas carregam
um “cenário” que serve como um suporte ex-
uma mesma ideia. Não se pode negar que a
pressivo para a dita “fachada pessoal”. Segun-
ordem social e cultural é inseparável dessa or-
do Goffman, o conceito de “fachada pessoal”
dem orgânica, que modela o corpo e fabrica
diz respeito aos equipamentos expressivos
suas subjetividades. As artes performativas
que “de modo mais íntimo identificamos com
têm se interessado cada vez mais por esse
o próprio ator, e que naturalmente esperamos
território investigativo que visa o corpo como
que o sigam onde quer que vá [...] vestuário,
material orgânico e criativo acerca das repre-
sexo, idade, altura e aparência, atitudes, pa-
sentações de si. As artes plásticas também
drões de linguagens, etc.” (Ibidem, p. 31). Po-
contribuíram e continuam contribuindo poeti-
de-se dizer que a “fachada pessoal” é o que
camente, por meio de suas imagens e auto-
pode ser percebido, notado pelo espectador,
-retratos, no olhar do sujeito sobre si mesmo
por meio da imagem, de sua aparência.
(Francis Bacon, Van Gogh, Artaud, Frida Kahlo,
É importante ressaltar que o indivíduo ao
Salvador Dali, etc.).
mesmo tempo que visa uma identidade pes-
Le Breton fala de uma antropologia con-
soal autêntica para a representação de si, de-
temporânea do corpo, ressaltando temas re-
seja se assemelhar e fazer parte de um grupo
levantes quanto à analogia entre corpo e a
– talvez esse pensamento paradoxal venha da
formação do sujeito nas sociedades ociden-
própria ideia de identidade, que remete ao ser
tais contemporâneas. Piercing, tatuagem,
‘idêntico’ se comparado a outros e concomi-
branding, stretching, implantes subcutâne-
tantemente exclusivo, único – desta maneira
os, dentre inúmeros outros aspectos da body
não se fala mais em “fachada pessoal”, mas
art, apresentam como característica a busca
em “fachada coletiva”. Indo ao encontro des-
incessante por uma nova identidade pessoal
se pensamento desenvolvido por Goffman, Le
tendo como base o corpo. Boy George, David
Bowie, Michael Jackson, Orlan, Ana Mendieta,
1 PARK, Robert Ezra. Race and Culture. Glencoe, Illinois:
Free Press, 1950. Gina Pane, Rudolf Schwarzkogler, são exem-
2 É importante lembrar que a “aparência das coisas”, segundo plos populares de artistas que se remodelaram
a fenomenologia de Ponty, é sempre algo que aparece a um a fim de conquistar novas identidades e, con-
sujeito específico, ou seja, ela é mutável e singular a cada
indivíduo. Ver MATTHEWS, 2006, p. 31. sequentemente, novas aparências de si: “todo
Explorar o que está oculto, o que não se pode expressa por meio do corpo [...] Não poderia
ver a olho nu, mas que se sente, se percebe: o de modo algum responder subjetivamente ao
corpo em estado de experiência. Experiência mundo se não tivesse corpo [...] É tão verda-
física, experiência íntima, experiência cultu- deiro dizer que meu corpo sou eu como eu sou
ral, experiência de identidade, experiência no meu corpo” (MERLEAU-PONTY apud MAT-
mundo. THEWS, 2006, p. 71), ou seja, vivemos nos-
Nas décadas de 1970 e 1980, houve uma so corpo como uma experiência subjetiva do
profusão de textos “sugerindo que a pessoa mundo.
procurasse descobrir a si mesma pela ‘consci- O pintor, escultor e performer francês Oli-
ência profunda do corpo”. (VIGARELLO apud vier de Sagazan é um exemplo de artista que
HOUREAU, p. 405). O sujeito tenta experien- transborda por meio da sua arte, a desestabi-
ciar o conhecer a si mesmo por meio do pró- lização do sujeito e sua figura aparente. Cria
prio corpo, indo além, por meio do estado de por meio de camadas de argila e tinta em seu
presença que é o corpo. O corpo de que falo rosto e corpo um universo para transformar,
aqui, como diz Le Breton em A Sociologia do desfigurar e desmontar sua própria figura, re-
Corpo, é o “corpo que, de fato, não é pensa- velando o homem e sua animalidade. Obras
do somente do ponto de vista biológico, mas como Transfiguration, Hibridation (com Marie
como uma forma moldada pela interação so- Cardinal), L’effet de robe e Transept (em cola-
cial” (2007, p. 16). Assim como Goffman consi- boração com Richard Nadal), buscam ressaltar
dera a percepção como uma forma de contato essas características, bem comoquestionar a
e participação entre os indivíduos, o resgate posição do homem no mundo. Como se mani-
da impressão sobre a representação de si co- festa Elisa Schmidt:
loca o corpo no lugar de vitrine, de contato e
interação. Ou seja, a encenação só atinge seu A carne é entendida pelo artista tal
como uma dobra que se divide até o
objetivo quando esse encontro com o público infinito como num anel de Moebius
acontece, quando essa percepção se efetiva. [...] A carne seria a materialidade pri-
mordial para a delimitação de uma in-
Ao mesmo tempo em que o corpo está ligado a terioridade e distinção entre o si e o
um coletivo, ele também está imerso na busca outro. Esta interioridade formulada por
camadas de pele seria as margens da
pela singularidade de suas histórias pessoais, identidade, na qual a linguagem que
de sua unicidade, e faz com que o mundo o descreve e interroga, mantém o sujeito
um estranho dentro de si [...] A carne
transforme em indivíduo/sujeito. É exatamente para De Sagazan? O ponto de inter-
este o campo do qual Le Breton se refere: “a rogação entre o sujeito e o mundo.
(SCHMIDT, 2013, p. 51-52).
sociologia do corpo é aquela das modalida-
des físicas da relação do ator com o mundo”
Sagazan questiona o mundo e sua exis-
(Ibidem, p. 35), e que muito se assemelha as
tência por meio de sua(s) aparência(s). O per-
ideias de Goffman, no que diz respeito do in-
former traz as imagens instáveis e movediças
divíduo nas situações de representações coti-
que fazem parte desse território experiencial,
dianas. Matthew, tendo como alicerce o olhar
questionando a imagem como algo trágico, ani-
fenomenológico de Merleau-Ponty, diz que
malesco, cruel, mutável, etc. A deformação, o
“a subjetividade humana necessariamente se
seu corpo e suas possibilidades artísticas por nariz na tentativa de emular um ritual de morte
meio desse olhar, como um objeto ready-made dos monarcas Olmecas (povo pré-colombiano
em constante modificação; um corpo em bus- que ocupava o atual México) que alongavam
ca de “ter” diferentes formas e moldes cultu- seu nariz depois de mortos.
rais e sociais, relendo seus conflitos e choques As diferentes representações de Maria Ma-
por meio da carne. dalena ou da Virgem, para ela, era uma forma
de transmitir uma imagem ideal e sacralizada
Figura 2: 1st.Operation-Surgery-Performance, ORLAN
Reading La Robe by Eugénie Lemoine-Luccioni Orlan.
da mulher. A artista compartilha da ideia de
que a imagem na religião pode ser o que qui-
ser, pois ninguém nunca viu a face de Jesus
nem o olhar de Maria, por exemplo, sendo que
essa representação passa por uma leitura cul-
tural. Chegando a essa constatação, o que nos
resta ver é uma “representação” do que seria
este ausente, e é sobre isso que a artista per-
forma com seu corpo.
Segundo entrevista concedida ao jornal O
Globo em agosto de 2008, Orlan disse que:
Fonte: http://www.orlan.eu/portfolio/first-surgery-
Eu queria falar sobre o quanto se mal-
performance-paris-july-1990/.
trata o corpo das mulheres. A religião
propõe um corpo culpado, que deve
sofrer. O meu trato era: nada de dor,
Orlan passou por nove intervenções cirúrgi- nem antes, nem depois. [...] ‘As fotos
mostram os inchaços e todas as cores
cas, por meio da performance A reencarnação pelas quais passamos – azul, amarelo,
da Santa Orlan, tendocomo intuito performar vermelho. Muitos cirurgiões não qui-
seram me operar, não queriam mostrar
os modelos de beleza ocidentais vistos pelo o que acontecia no meio do processo,
viés das artes plásticas. Escolheu como mo- só o antes e o depois, conta.4
delos o queixo da Vênus de Botticelli e a tes-
ta da Monalisa. Apesar de Orlan ter se inspi- É curioso pensar na maneira que Orlan lida
rado em dois ícones das artes plásticas, seu com seu corpo na arte. A performer escanca-
objetivo não era expor de maneira idólatra os ra os poros, a pele, as vísceras e vê a carne
parâmetros de beleza ocidentais atuais; muito como uma massa homogênea a ser performa-
pelo contrário, seu intuito era de “rever” esses da, expondo todos os processos transicionais
padrões pré-estabelecidos. Em uma das cirur- do corpo como obra de arte, como o exemplo
gias, Orlan estava fantasiada como uma “Ma- “das cores pelas quais passamos – azul, ama-
donna”, deusa-mãe da mitologia cristã, sendo relo, vermelho”.
que carregava na mão direita uma enorme cruz
negra e na esquerda uma imensa cruz branca.
4 Trecho da entrevista realizada em 25/08/2008, retirada do site:
Enquanto isso, médicos e enfermeiras também http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL736383-7084,-
0 0 F R A N C E S A + O R L A N + FA L A + S O B R E + A + A R -
se fantasiam a caráter. Ela também operou o TE+DE+MODIFICAR+O+PROPRIO+CORPO+COM+CI-
RURGIAS.html.
As reflexões desenvolvidas nesse artigo se- HOUREAU, M.J-. Les techniques du corps.
guiram uma trajetória que permeou processos Paris: Retz, 1978.
de representação de si através de interven-
ções corporais mais ou menos contundentes, LE BRETON, David. A Sociologia do corpo.
que produziram, por sua vez, potentes efeitos Petrópolis: RJ, Editora Vozes, 2007.
expressivos. Feitas tais reflexões, é possível
nesse momento reconhecer essa trajetória LE BRETON, David. Antropologia do corpo e
como uma preparação para a abordagem de modernidade. 3.ed. – Petrópolis, RJ: Vozes,
algo maior, de um campo interdisciplinar em 2013.
constante construção e revisão. Esse campo
– que envolve um entrelaçamento entre filo- MATTHEWS, Eric. Compreender Merleau-
sofia, antropologia, psicologia, psicanálise e Ponty. Petrópolis: RJ: Editora Vozes, 2006.
talvez também certos autores ligados às ciên-
cias cognitivas – tem como eixo as chamadas SCHMIDT, Elisa. Matéria-Prima: atransfigura-
Tecnologias de si. Apontado por Foucault em ção em Olivier de Sagazan. Dissertação. Flo-
algumas de suas obras, dentre elas a Herme- rianópolis: 2013.
nêutica do Sujeito (2010), a percepção desse
campo funcionará como um gatilho que verti-
calizará as reflexões feitas aqui a fim de buscar
perceber como o corpo-mente, suas represen-
tações e alteridades podem ser catalisadores
surpreendentes de processos artísticos e cul-
turais. Recebido: 28/08/2017
Aprovado: 27/08/2018
Referências