O Sujeito-Corpo Nas Representações de Si: N. 26 Cena

Você está na página 1de 9

cena n.

26

O Sujeito-Corpo nas Representações de Si

Gabriela Pereira Fregoneis


Universidade Estadual de Maringá/UEM, Paraná, Brasil
E-mail: gabiangelus@hotmail.com

Matteo Bonfitto
Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP, São Paulo, Brasil
E-mail: matteobonfitto@gmail.com

Resumo Abstract
O corpo e suas possíveis representações The body and its possible representations of
de si nos coloca enquanto devir de ser/estar themselves in places while becoming of being
no mundo, construindo imagens e consequen- in the world, building images and consequently
temente subjetividades. Não somos um, so- subjectivities. We are one, we are plurals that
mos plurais que buscam incessantemente, por seek unceasingly, through art and performativ-
meio da arte e performatividade, novos modos ity, new modes of existence of our bodies. It is
de existência dos nossos corpos. É com o cor- with the body and his productions of images
po e suas produções de imagens que nos re- that we interact, share feelings and dwell as
lacionamos, compartilhamos afetos e nos ha- subjects. We will reflect on this article about the
bitamos enquanto sujeitos. Refletiremos nesse constructions of the subject-body by means of
artigo sobre as construções do sujeito-corpo representations of themselves, the conflict of
por meio das representações de si, no confli- looking aesthetic between what is and what is
to do olhar estético entre o que se é e o que overflowing through the constructions/descon-
transborda através das construções/descons- struções images of themselves.
truções das imagens de si.

Palavras-chave Keywords
Corpo. Imagem. Representação de si. Subje- Image. Self-Representation. Subjectivity. Iden-
tividade. Identidade. tity.
cena n. 26

O corpo há tempos deixou de ser algo or- de mudar sua vida, modificar seu sentimento
gânico imutável. Não estamos mais na terra de de identidade” (2013, p. 30). O olhar do sujeito
quem “nasceu assim, viveu assim e será sem- contemporâneo é visto pelo viés do corpo; o
pre assim!”. Estamos vivendo em um momen- corpo passa a ser um objeto de representação
to em que o corpo tem possibilitado a constru- de si, como diz Merleau-Ponty: “só podemos
ção de inúmeras corporeidades, colocando-se entender a geografia porque sabemos o que
no espaço das “possibilidades”, das mudan- é ter a experiência de uma paisagem” (MER-
ças, das construções e das desconstruções, LEAU-PONTY apud MATTHEWS, 2006, p.26).
seja por meio dos avanços médicos, estéticos Usando essa mesma analogia, pode-se dizer
e tecnológicos, enfim... era de descobertas que só podemos entender o que é o corpo
de novos modos de existência por meio dos porque sabemos o que é ter a experiência de
nossos corpos, identidades e subjetividades. vivenciá-lo, e essa vivência só é possível por
É com o corpo – e consequentemente nossas estar em contato com o mundo. Erving Gof-
corporeidades – e suas produções de imagens fman, no livro Representação do eu na vida
que nos relacionamos, compartilhamos afetos cotidiana (2002), ressalta que usa o termo ‘re-
e nos habitamos como sujeitos corporais. Há presentação’ para se referir a “toda atividade
uma relação intrínseca entre corpo e sujeito, de um indivíduo que se passa num período ca-
já que pensar o corpo é uma das maneiras racterizado por sua presença contínua diante
de se pensar o mundo, e consequentemente de um grupo particular de observadores e que
a arte. Levamos em consideração que pensar tem sobre estes alguma influência” (2002, p.
a corporeidade é pensar o mundo e a exten- 29). Logo, o sujeito-corpo em lugar de repre-
são de suas experiências. Mas, de que corpo sentação cotidiana,é aquele em que afeta e é
especificamente estamos falando? Do corpo afetado concomitantemente. Para entender
que busca se relacionar com a experiência e o melhor o que vem a ser esse indivíduo em es-
mundo. Como se trata de um campo de inves- tado de representação social, Goffman divide
tigação muito amplo e complexo, faremos um a ideia, em que o mesmo está envolto, em dois
recorte neste universo e assumiremos como papéis fundamentais:
fio norteador a relação entre o corpo e o sujeito
no olhar sobre si mesmo, nesse olhar estético considerado como ator, um atormen-
tado fabricante de impressões envol-
que se tem sobre o que sou e o que transborda vido na tarefa demasiado humana de
através da imagem do corpo. encenar uma representação; e foi con-
siderado como personagem, como
Para isso, utilizaremos conceitos de dois figura, tipicamente uma figura admirá-
teóricos para as discussões acerca dessa te- vel, cujo espírito, força e outras exce-
lentes qualidades a representação ti-
mática: Erving Goffman e David Le Breton. nha por finalidade evocar (GOFFMAN,
Não tomaremos o corpo enquanto uma “for- 2002, p. 230-231).
ma finalizada”, mas uma matéria em constante
mudança que tende a variar de acordo com a Conforme essa ideia, todo indivíduo se colo-
necessidade de experienciar novas identida- ca no mundo a fim de causar uma “impressão”
des. Como ressalta o antropólogo social Le de si mesmo ao encontro do olhar do outro.
Breton,“ao mudar o corpo, o indivíduo preten-

45 Fregoneis, Bonfitto // O Sujeito-Corpo nas Representações de Si


Revista Cena, Porto Alegre, n. 26, p. 6-19 set./dez. 2018
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 26

Robert Park1 nos lembra que “não é provavel- Breton diz que a aparência, dentro do campo
mente um mero acidente histórico que a pala- da sociologia do corpo:
vra ‘pessoa’, em sua acepção primeira, queira
responde a uma ação do ator relacio-
dizer máscara” (PARK apud GOFFMAN, 2002,
nada com o modo de se apresentar e
p. 27), por isso também a associação de Go- de se representar. Engloba a maneira
ffman com a figura do ator e o personagem. de se vestir, a maneira de se pentear
e ajeitar o rosto, de cuidar do corpo,
Todos os indivíduos são atores sociais e pos- etc., quer dizer, a maneira cotidiana de
suem uma construção sobre a impressão de si se apresentar socialmente, conforme
as circunstâncias, através da maneira
que deseja ser passada ao outro de maneira de se colocar e do estilo da presença
eficaz, ou seja, que haja uma convergência en- (LE BRETON, 2007, p. 77).
tre essas impressões – a emitida e a recebi-
Traçando um paralelo entre essas duas ci-
da.2 Para isso, o indivíduo é mergulhado em
tações, é possível notar que ambas carregam
um “cenário” que serve como um suporte ex-
uma mesma ideia. Não se pode negar que a
pressivo para a dita “fachada pessoal”. Segun-
ordem social e cultural é inseparável dessa or-
do Goffman, o conceito de “fachada pessoal”
dem orgânica, que modela o corpo e fabrica
diz respeito aos equipamentos expressivos
suas subjetividades. As artes performativas
que “de modo mais íntimo identificamos com
têm se interessado cada vez mais por esse
o próprio ator, e que naturalmente esperamos
território investigativo que visa o corpo como
que o sigam onde quer que vá [...] vestuário,
material orgânico e criativo acerca das repre-
sexo, idade, altura e aparência, atitudes, pa-
sentações de si. As artes plásticas também
drões de linguagens, etc.” (Ibidem, p. 31). Po-
contribuíram e continuam contribuindo poeti-
de-se dizer que a “fachada pessoal” é o que
camente, por meio de suas imagens e auto-
pode ser percebido, notado pelo espectador,
-retratos, no olhar do sujeito sobre si mesmo
por meio da imagem, de sua aparência.
(Francis Bacon, Van Gogh, Artaud, Frida Kahlo,
É importante ressaltar que o indivíduo ao
Salvador Dali, etc.).
mesmo tempo que visa uma identidade pes-
Le Breton fala de uma antropologia con-
soal autêntica para a representação de si, de-
temporânea do corpo, ressaltando temas re-
seja se assemelhar e fazer parte de um grupo
levantes quanto à analogia entre corpo e a
– talvez esse pensamento paradoxal venha da
formação do sujeito nas sociedades ociden-
própria ideia de identidade, que remete ao ser
tais contemporâneas. Piercing, tatuagem,
‘idêntico’ se comparado a outros e concomi-
branding, stretching, implantes subcutâne-
tantemente exclusivo, único – desta maneira
os, dentre inúmeros outros aspectos da body
não se fala mais em “fachada pessoal”, mas
art, apresentam como característica a busca
em “fachada coletiva”. Indo ao encontro des-
incessante por uma nova identidade pessoal
se pensamento desenvolvido por Goffman, Le
tendo como base o corpo. Boy George, David
Bowie, Michael Jackson, Orlan, Ana Mendieta,
1 PARK, Robert Ezra. Race and Culture. Glencoe, Illinois:
Free Press, 1950. Gina Pane, Rudolf Schwarzkogler, são exem-
2 É importante lembrar que a “aparência das coisas”, segundo plos populares de artistas que se remodelaram
a fenomenologia de Ponty, é sempre algo que aparece a um a fim de conquistar novas identidades e, con-
sujeito específico, ou seja, ela é mutável e singular a cada
indivíduo. Ver MATTHEWS, 2006, p. 31. sequentemente, novas aparências de si: “todo

46 Fregoneis, Bonfitto // O Sujeito-Corpo nas Representações de Si


Revista Cena, Porto Alegre, n. 26, p. 6-19 set./dez. 2018
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 26

corpo contém a virtualidade de inúmeros ou- Esforça-se em identificar-se com esta


figura e assim parecer a si mesma es-
tros corpos que o indivíduo pode revelar tor-
tar estabilizada, justificada em seu es-
nando-se o arranjador de sua aparência e de plendor (BEAUVOIR apud GOFFMAN,
seus afetos” (LE BRETON, 2013, p. 32). O uso 2002, p. 59).

de psicotrópicos, hormônios, dietas, cirurgias,


implantes, etc., trazem um novo corpo para o O olhar sobre o corpo e as representações
sujeito, trata-o como pura matéria orgânica a idealizadas de si na atualidade tem convergido
fim de oferecer um novo estado de “ser” para o e se concretizado como nas falas de Beauvoir.
indivíduo. O corpo tem se tornado uma prótese Idealiza-se um corpo e uma representação
de um eu. Um eu que se metamorfoseia a cada que não se é efetivamente. É como se fosse
momento a fim de ressignificar sua presença um rótulo, um manequim ou a busca em ser
no mundo. O corpo se transformou numa ban- uma escultura “carnalizada” de Rodin. Temos
deira do self, uma superfície estética em que participado continuamente de uma verdade
transborda o eu. Deste modo, o corpo passa mentirosa e de uma mentira verdadeira que o
a ser o cenário para que surjam as “fachadas sujeito encena sob a forma de espetáculo que
pessoais” de Goffman, e como consequência são as buscas pelas possíveis representações
dessa reorganização, o corpo se coloca dentro de si, tanto na vida como na arte. PaulRicœur
de uma nova representação de si. já dizia que “o que está em jogo é a definição
Não se fala mais em identidade pessoal de “si mesmo como um Outro” (RICŒUR apud
como algo concreto e sólido, mas em identida- MOULIN, 2011, p. 54). O corpo passa a ser
des pessoais que se liquefazem e se recons- estranhado pelo sujeito, percebido como um
troem a todo momento a mercê do indivíduo, novo ambiente, uma nova matéria, distancian-
“podemos dizer que ele tem praticamente tan- do-se da ideia concreta que se tem sobre o
tas individualidades sociais diferentes quan- “eu sou”, adequando-se melhor à ideia do “eu
tos são os grupos distintos de pessoas cuja estou”.
opinião lhe interessa. Geralmente mostra uma Os estudos acerca do corpo e suas corpo-
faceta diferente de si mesmo a cada um des- reidades artísticas são intermináveis, já que
ses diversos grupos” (GOFFMAN, 2002, p. 52). este é objeto de infindáveis explorações. No
Em meio ao desenvolvimento desenfreado das decorrer da história do século XX, bem como
virtualidades, o olhar sobre si tem se tornado nas mutações do olhar proposta por Jean-Ja-
cada vez mais exaltado e idealizado, já que é cques Courtine, é possível notar que a arte
pelo seu corpo que você é taxado e classifi- tem trazido cada vez mais a ideia de poder
cado na sociedade contemporânea. Como diz agir incessantemente sobre o próprio corpo, a
Simone de Beauvoir: de possibilitar escapar e se “perder” dentro de
suas percepções e fisicalidades, e também de
Tal como um quadro, a estátua ou o buscar maneiras de reinventar a si mesmo. A
ator no palco, é um agente por meio
vontade incessante do artista de experimentar
do qual sugere alguém que não está
aí, a saber, o personagem que ela re- os “outros lugares” perdidos ou desconheci-
presenta mas não é. É esta identifi- dos em seu corpo, redescobrir seus invólucros,
cação com algo irreal, fixo, perfeito,
como o herói de um romance, um re- suas camadas, seus fluídos, suas membranas.
trato ou um busto, que agrada a ela.

47 Fregoneis, Bonfitto // O Sujeito-Corpo nas Representações de Si


Revista Cena, Porto Alegre, n. 26, p. 6-19 set./dez. 2018
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 26

Explorar o que está oculto, o que não se pode expressa por meio do corpo [...] Não poderia
ver a olho nu, mas que se sente, se percebe: o de modo algum responder subjetivamente ao
corpo em estado de experiência. Experiência mundo se não tivesse corpo [...] É tão verda-
física, experiência íntima, experiência cultu- deiro dizer que meu corpo sou eu como eu sou
ral, experiência de identidade, experiência no meu corpo” (MERLEAU-PONTY apud MAT-
mundo. THEWS, 2006, p. 71), ou seja, vivemos nos-
Nas décadas de 1970 e 1980, houve uma so corpo como uma experiência subjetiva do
profusão de textos “sugerindo que a pessoa mundo.
procurasse descobrir a si mesma pela ‘consci- O pintor, escultor e performer francês Oli-
ência profunda do corpo”. (VIGARELLO apud vier de Sagazan é um exemplo de artista que
HOUREAU, p. 405). O sujeito tenta experien- transborda por meio da sua arte, a desestabi-
ciar o conhecer a si mesmo por meio do pró- lização do sujeito e sua figura aparente. Cria
prio corpo, indo além, por meio do estado de por meio de camadas de argila e tinta em seu
presença que é o corpo. O corpo de que falo rosto e corpo um universo para transformar,
aqui, como diz Le Breton em A Sociologia do desfigurar e desmontar sua própria figura, re-
Corpo, é o “corpo que, de fato, não é pensa- velando o homem e sua animalidade. Obras
do somente do ponto de vista biológico, mas como Transfiguration, Hibridation (com Marie
como uma forma moldada pela interação so- Cardinal), L’effet de robe e Transept (em cola-
cial” (2007, p. 16). Assim como Goffman consi- boração com Richard Nadal), buscam ressaltar
dera a percepção como uma forma de contato essas características, bem comoquestionar a
e participação entre os indivíduos, o resgate posição do homem no mundo. Como se mani-
da impressão sobre a representação de si co- festa Elisa Schmidt:
loca o corpo no lugar de vitrine, de contato e
interação. Ou seja, a encenação só atinge seu A carne é entendida pelo artista tal
como uma dobra que se divide até o
objetivo quando esse encontro com o público infinito como num anel de Moebius
acontece, quando essa percepção se efetiva. [...] A carne seria a materialidade pri-
mordial para a delimitação de uma in-
Ao mesmo tempo em que o corpo está ligado a terioridade e distinção entre o si e o
um coletivo, ele também está imerso na busca outro. Esta interioridade formulada por
camadas de pele seria as margens da
pela singularidade de suas histórias pessoais, identidade, na qual a linguagem que
de sua unicidade, e faz com que o mundo o descreve e interroga, mantém o sujeito
um estranho dentro de si [...] A carne
transforme em indivíduo/sujeito. É exatamente para De Sagazan? O ponto de inter-
este o campo do qual Le Breton se refere: “a rogação entre o sujeito e o mundo.
(SCHMIDT, 2013, p. 51-52).
sociologia do corpo é aquela das modalida-
des físicas da relação do ator com o mundo”
Sagazan questiona o mundo e sua exis-
(Ibidem, p. 35), e que muito se assemelha as
tência por meio de sua(s) aparência(s). O per-
ideias de Goffman, no que diz respeito do in-
former traz as imagens instáveis e movediças
divíduo nas situações de representações coti-
que fazem parte desse território experiencial,
dianas. Matthew, tendo como alicerce o olhar
questionando a imagem como algo trágico, ani-
fenomenológico de Merleau-Ponty, diz que
malesco, cruel, mutável, etc. A deformação, o
“a subjetividade humana necessariamente se

48 Fregoneis, Bonfitto // O Sujeito-Corpo nas Representações de Si


Revista Cena, Porto Alegre, n. 26, p. 6-19 set./dez. 2018
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 26

estranho, a inquietação “sobre o corpo-objeto, Figura 1: Transfiguration. Olivier de Sagazan. 1999.

mas também sobre o sujeito: seu retrato, sua


figura e os devidos contextos que relacionam a
aparência, a frontalidade da aparência direcio-
nada à visão do rosto, a identidade reconhe-
cida pelos traços da face e a inteligibilidade
da forma” (Ibidem, p. 53). Sagazan confronta
a ideia da petrificação da nossa identidade nas
sociedades ocidentais, o outdoor da identida-
de está estampada no rosto. Pode-se notar
que no próprio documento de “identidade” e
Fonte: http://olivierdesagazan.com/
passaporte do sujeito, há uma foto 3x4 foca- performancetransfiguration.
lizando o rosto, nosso cartão de visita. Como
diz Le Breton, “o rosto é, de todas as partes Enquanto Sagazan trabalha artisticamente
do corpo humano, aquela onde se condensam com argila e tinta afim de construir suas ima-
os valores mais elevados. Neles cristalizam-se gens transfiguradas e muitas vezes grotescas,
os sentimentos de identidade, estabelece-se o a artista francesa Orlan trabalha com a body
reconhecimento do outro, fixam-se qualidades art, mais especificamente acarnal art, tendo seu
da sedução, etc.” (LE BRETON, 2007, p. 70- corpo, carne e sangue como matéria-prima.
71). Sagazan coloca esta questão em choque, Orlan, assim como os demais artistas da body
não trazendo uma (con)figuração harmônica de art, defende a dualidade dor/prazer como uma
suas partes, mas sim uma (des)figuração dos real e presente vivência do seu corpo (carne)
elementos que compõem. Como diz Evelyne por meio das experiências artísticas. É como
Grossman, “desfigurar não é apenas uma for- se o dilaceramento, a dor, o sangue, os cortes,
ça violenta e destrutiva contra a figura da face, as ardências e os inchaços, colocassem a ar-
do corpo, e da identidade, mas também a for- tista em sintonia com a própria carne, a fizes-
ça de criação e recriação da vida” (GROSS- se se sentir verdadeiramente viva, sentindo-a
MAN, 2004, p. 53). É a arte se fazendo infiltrar a cada momento de suas transformações. O
nos caminhos permeáveis que tocam a vida, o performer Fakir Musafar, um dos pais do “pri-
corpo e suas experiências de estar em contato mitivismo moderno”, afirma que usa seu corpo
com o mundo e interagindo nele. As obras de como potência máxima de experiência sobre
Sagazan nos fazes lembrar uma frase de Pon- a existência de vida, ou seja, privando-se de
ty: “felizmente, ficamos em carne e osso para organicidades necessárias inerentes ao corpo
não perder o gosto do mundo”. humano, Musafar busca seu pulsar de vida:

aos 17 anos, jejua, priva-se de sono


e amarra-se com correntes apertadas
e pesadas a um muro, ali agitando-se
durante horas. Atinge uma espécie de
êxtase – os pés e os braços entorpe-
cidos, à beira da asfixia. Consegue,
contudo, livrar-se das correntes e des-

49 Fregoneis, Bonfitto // O Sujeito-Corpo nas Representações de Si


Revista Cena, Porto Alegre, n. 26, p. 6-19 set./dez. 2018
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 26

morona, não sentindo mais a menor performer ficou conhecida internacionalmen-


sensação em certos membros. Esse
te por utilizar destes princípios como material
momento é contudo uma iluminação.
Depois, faz inúmeras experiências cor- artístico para suas performances, passando
porais em situações extremas: recobre por nove cirurgias plásticas a fim de performar
todo seu corpo com uma pintura dou-
rada que impede a respiração tegu- seu corpo e sua imagem. O trabalho de Orlan
mentar; pendura com anzóis no peito abrange questões sociais, políticas e culturais
objetos pesados; suspende cargas em
seus piercings; sofre, com todo co- deixando uma marca “na carne”, literalmente,
nhecimento de causa, uma operação por meio do que a performer chama de carnal
que lhe permite o alongamento de
seu pênis graças a pesos que ele fixa; art. Segundo a própria artista:
aceita, dessa maneira, perder sua fa-
culdade genésica e vive outras formas A Arte Carnal é auto-retrato no senti-
de sexualidade com sua companhei- do clássico, mas pensada através da
ra; enfia espartilhos muito apertados; possibilidade tecnológica. Ela oscila
deita-se numa cama de alfinetes, de entre desfiguração e refiguração. Sua
lâminas [...] Suspende-se em ganchos inscrição na carne é uma função da
cravados em seu peito ou em todo o nossa idade. O corpo tornou-se um
seu corpo, etc. Sua pele é recoberta “modificado ready-made”, já não é
de tatuagens e piercings. Ao lhe per- visto como o ideal, uma vez represen-
guntarem sobre o significado de sua tado; o corpo não é mais esse idea-
conduta, evoca o prazer que sente em lizado ready-made satisfeito com sua
certas ações e o estado de êxtase que assinatura3.
experimenta com elas.(Ibidem, p. 37).

O corpo é visto como objeto manipulável,


Desta maneira, o performer desvirtua a ideia
maleável, repleto de metamorfoses e significa-
do senso comum sobre a sensação de aban-
ções. Orlan se coloca a viver um jogo, em que
dono do corpo devido às suas “falhas de en-
seu corpo é o território a ser explorado, rein-
grenagens”; problemas ou disfunções de seu
ventado e questionado. A carne deixa de ser
funcionamento orgânico. A arte performativa
estável para se tornar argila vermelha, deixa
acaba resistindo aos limites apresentados pelo
de ser um destino e passa a ser uma escolha,
corpo e o transforma em potência máxima de
adquirindo novas identidades e formas. Com o
presença. Para alguns destes artistas, a morte
desenvolvimento da anatomia e a dissecação
do corpo não é o fim da existência, como diz
do corpo humano, principalmente com Leonar-
Orlan:
do Da Vinci e Vesalius, o corpo passa a ser co-
A morte não deterá Orlan, pois seu locado em “suspensão, dissociado do homem;
cadáver será mumificado, um dia será ele é estudado por si mesmo, como realidade
encontrado em um museu, inserido
em uma instalação com vídeo intera- autônoma. Ele deixa de ser o signo irredutível
tivo. ‘Meu trabalho’, escreve, ‘comba- da imanência do homem e da ubiquidade do
te o inato, o inexorável, a natureza, o
cosmo” (LE BRETON, 2013, p. 72-73). Orlan vê
DNA (que é nosso rival direto como
artista da representação) e Deus (OR-
LAN, 1997, p. 41 apud LE BRETON, 3 Tradução nossa. No original: “Carnal Art is self-portraiture
2013, p. 48). in the classical sense, but realised through the possibility of
technology. It swings between defiguration and refiguration. Its
inscription in the flesh is a function of our age. The body has
become a “modified ready-made”, no longer seen as the ideal
Um outro exemplo interessante a ser cita- it once represented; the body is not anymore this ideal ready-
do são suas intervenções cirúrgicas, já que a -made it was satisfying to sign”. Informações retiradas do site
da artista: http://www.orlan.eu/texts/. Acesso em: 10/02/15.

50 Fregoneis, Bonfitto // O Sujeito-Corpo nas Representações de Si


Revista Cena, Porto Alegre, n. 26, p. 6-19 set./dez. 2018
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 26

seu corpo e suas possibilidades artísticas por nariz na tentativa de emular um ritual de morte
meio desse olhar, como um objeto ready-made dos monarcas Olmecas (povo pré-colombiano
em constante modificação; um corpo em bus- que ocupava o atual México) que alongavam
ca de “ter” diferentes formas e moldes cultu- seu nariz depois de mortos.
rais e sociais, relendo seus conflitos e choques As diferentes representações de Maria Ma-
por meio da carne. dalena ou da Virgem, para ela, era uma forma
de transmitir uma imagem ideal e sacralizada
Figura 2: 1st.Operation-Surgery-Performance, ORLAN
Reading La Robe by Eugénie Lemoine-Luccioni Orlan.
da mulher. A artista compartilha da ideia de
que a imagem na religião pode ser o que qui-
ser, pois ninguém nunca viu a face de Jesus
nem o olhar de Maria, por exemplo, sendo que
essa representação passa por uma leitura cul-
tural. Chegando a essa constatação, o que nos
resta ver é uma “representação” do que seria
este ausente, e é sobre isso que a artista per-
forma com seu corpo.
Segundo entrevista concedida ao jornal O
Globo em agosto de 2008, Orlan disse que:

Fonte: http://www.orlan.eu/portfolio/first-surgery-
Eu queria falar sobre o quanto se mal-
performance-paris-july-1990/.
trata o corpo das mulheres. A religião
propõe um corpo culpado, que deve
sofrer. O meu trato era: nada de dor,
Orlan passou por nove intervenções cirúrgi- nem antes, nem depois. [...] ‘As fotos
mostram os inchaços e todas as cores
cas, por meio da performance A reencarnação pelas quais passamos – azul, amarelo,
da Santa Orlan, tendocomo intuito performar vermelho. Muitos cirurgiões não qui-
seram me operar, não queriam mostrar
os modelos de beleza ocidentais vistos pelo o que acontecia no meio do processo,
viés das artes plásticas. Escolheu como mo- só o antes e o depois, conta.4
delos o queixo da Vênus de Botticelli e a tes-
ta da Monalisa. Apesar de Orlan ter se inspi- É curioso pensar na maneira que Orlan lida
rado em dois ícones das artes plásticas, seu com seu corpo na arte. A performer escanca-
objetivo não era expor de maneira idólatra os ra os poros, a pele, as vísceras e vê a carne
parâmetros de beleza ocidentais atuais; muito como uma massa homogênea a ser performa-
pelo contrário, seu intuito era de “rever” esses da, expondo todos os processos transicionais
padrões pré-estabelecidos. Em uma das cirur- do corpo como obra de arte, como o exemplo
gias, Orlan estava fantasiada como uma “Ma- “das cores pelas quais passamos – azul, ama-
donna”, deusa-mãe da mitologia cristã, sendo relo, vermelho”.
que carregava na mão direita uma enorme cruz
negra e na esquerda uma imensa cruz branca.
4 Trecho da entrevista realizada em 25/08/2008, retirada do site:
Enquanto isso, médicos e enfermeiras também http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL736383-7084,-
0 0 F R A N C E S A + O R L A N + FA L A + S O B R E + A + A R -
se fantasiam a caráter. Ela também operou o TE+DE+MODIFICAR+O+PROPRIO+CORPO+COM+CI-
RURGIAS.html.

51 Fregoneis, Bonfitto // O Sujeito-Corpo nas Representações de Si


Revista Cena, Porto Alegre, n. 26, p. 6-19 set./dez. 2018
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 26

As reflexões desenvolvidas nesse artigo se- HOUREAU, M.J-. Les techniques du corps.
guiram uma trajetória que permeou processos Paris: Retz, 1978.
de representação de si através de interven-
ções corporais mais ou menos contundentes, LE BRETON, David. A Sociologia do corpo.
que produziram, por sua vez, potentes efeitos Petrópolis: RJ, Editora Vozes, 2007.
expressivos. Feitas tais reflexões, é possível
nesse momento reconhecer essa trajetória LE BRETON, David. Antropologia do corpo e
como uma preparação para a abordagem de modernidade. 3.ed. – Petrópolis, RJ: Vozes,
algo maior, de um campo interdisciplinar em 2013.
constante construção e revisão. Esse campo
– que envolve um entrelaçamento entre filo- MATTHEWS, Eric. Compreender Merleau-
sofia, antropologia, psicologia, psicanálise e Ponty. Petrópolis: RJ: Editora Vozes, 2006.
talvez também certos autores ligados às ciên-
cias cognitivas – tem como eixo as chamadas SCHMIDT, Elisa. Matéria-Prima: atransfigura-
Tecnologias de si. Apontado por Foucault em ção em Olivier de Sagazan. Dissertação. Flo-
algumas de suas obras, dentre elas a Herme- rianópolis: 2013.
nêutica do Sujeito (2010), a percepção desse
campo funcionará como um gatilho que verti-
calizará as reflexões feitas aqui a fim de buscar
perceber como o corpo-mente, suas represen-
tações e alteridades podem ser catalisadores
surpreendentes de processos artísticos e cul-
turais. Recebido: 28/08/2017
Aprovado: 27/08/2018

Referências

FOUCAULT, Michel. Hermenêutica do sujeito:


curso dado no Collège de France (1981-1982).
São Paulo: Martins Fontes, 2010.

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na


vida cotidiana. Rio de Janeiro, Petrópolis: Edi-
tora Vozes, 2002.

GROSSMAN, Evelyne. La défiguration. Artaud,


Beckett, Michaux. Paris: Les Éditions de Mi-
nuit, 2004.

52 Fregoneis, Bonfitto // O Sujeito-Corpo nas Representações de Si


Revista Cena, Porto Alegre, n. 26, p. 6-19 set./dez. 2018
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena

Você também pode gostar