Dom Casmurro-Machado de Assis-14
Dom Casmurro-Machado de Assis-14
Dom Casmurro-Machado de Assis-14
— Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo também; aqui no semi-
nário você é a pessoa que mais me tem entrado no coração, e lá fora, a não ser
a gente da família, não tenho propriamente um amigo.
— Se eu disser a mesma coisa, retorquiu ele sorrindo, perde a graça; pa-
rece que estou repetindo. Mas a verdade é que não tenho aqui relações com
ninguém, você é o primeiro e creio que já notaram; mas eu não me importo
com isso. Comovido, senti que a voz se me precipitava da garganta.
— Escobar, você é capaz de guardar um segredo?
— Você que pergunta é porque duvida, e nesse caso...
— Desculpe, é um modo de falar. Eu sei que é moço sério, e faço de
conta que me confesso a um padre.
— Se precisa de absolvição, está absolvido.
— Escobar, eu não posso ser padre. Estou aqui, os meus acreditam, e
esperam; mas eu não posso ser padre.
— Nem eu, Santiago.
— Nem você?
— Segredo por segredo; também eu tenho o propósito de não acabar o
curso; meu desejo é o comércio, mas não diga nada, absolutamente nada;
fica só entre nós. E não é que eu não seja religioso; sou religioso, mas o co-
mércio é a minha paixão.
— Só isso?
— Que mais há de ser?
Dei duas voltas e sussurrei a primeira palavra da minha confidência, tão
escassa e surda, que não a ouvi eu mesmo; sei porém que disse “uma pes-
soa...” com reticência. Uma pessoa...? Não foi preciso mais para que ele en-
tendesse. Uma pessoa devia ser uma moça. Nem cuides que pasmou de me
ver enamorado; achou até natural e espetou-me outra vez os olhos. Então
contei-lhe por alto o que podia, mas demoradamente para ter o gosto de
repisar o assunto. Escobar escutava com interesse; no fim da nossa con-
versação, declarou-me que era segredo enterrado em cemitério. Deu-me de
conselho que não me fizesse padre. Não podia levar para a Igreja um coração
que não era do céu, mas da terra; seria um mau padre, nem seria padre. Ao
contrário, Deus protegia os sinceros; uma vez que eu só podia servi-lo no
mundo, aí me cumpria ficar.
C A PÍ T U LO L X X I X
Vamos ao capítulo
Com efeito, gostei de ouvi-lo falar assim. Sabes a opinião que eu tinha
de minha mãe. Ainda agora, depois de interromper esta linha para mirar-lhe
o retrato que pende na parede, acho que trazia no rosto impressa aquela
qualidade. Nem de outro modo se explica a opinião de Escobar, que apenas
trocara com ela quatro palavras. Uma só bastava a penetrar-lhe a essência
íntima; sim, sim, minha mãe era adorável. Por mais que me estivesse então
obrigando a uma carreira que eu não queria, não podia deixar de sentir que
era adorável, como uma santa.
C A PÍ T U LO L X X X
Venhamos ao capítulo
Venhamos ao capítulo. Minha mãe era temente a Deus; sabes disto, e
das suas práticas religiosas, e de fé pura que as animava. Nem ignoras que a
minha carreira eclesiástica era objeto de promessa feita quando fui concebi-
do. Tudo está contado oportunamente. Outrossim, sabes que, para o fim de
apertar o vínculo moral da obrigação, confiou os seus projetos e motivos a
parentes e familiares. A promessa, feita com fervor, aceita com misericórdia,
foi guardada por ela, com alegria, no mais íntimo do coração. Penso que lhe
senti o sabor da felicidade no leite que me deu a mamar. Meu pai, se vives-
se, é possível que alterasse os planos, e, como tinha vocação da política, é
provável que me encaminhasse somente à política, embora os dois ofícios
não fossem nem sejam inconciliáveis, e mais de um padre entre na luta dos
partidos e no governo dos homens. Mas meu pai morrera sem saber nada, e
ela ficou diante do contrato, como única devedora.
Um dos aforismos de Franklin é que, para quem tem de pagar na Páscoa,
a Quaresma é curta. A nossa quaresma não foi mais longa que as outras, e
minha mãe, posto me mandasse ensinar latim e doutrina, começou a adiar a
minha entrada no seminário. É o que se chama, comercialmente falando, re-
formar uma letra. O credor era arquimilionário, não dependia daquela quan-
tia para comer, e consentiu nas transferências de pagamento, sem sequer
agravar a taxa do juro. Um dia, porém, um dos familiares que serviam de
C A PÍ T U LO L X X X I
Uma palavra
Assim contado o que descobri mais tarde, posso trasladar para aqui uma
palavra de minha mãe. Agora se entenderá que ela me dissesse, no primeiro
sábado, quando eu cheguei a casa, e soube que Capitu estava na Rua dos
Inválidos, com sinhazinha Gurgel:
— Por que não vais vê-la? Não me disseste que o pai de Sancha te ofe-
receu a casa?
— Ofereceu.
— Pois então? Mas é se queres. Capitu devia ter voltado hoje para aca-
bar um trabalho comigo; certamente a amiga pediu-lhe que dormisse lá.
— Talvez ficassem namorando, insinuou prima Justina.
Não a matei por não ter à mão ferro nem corda, pistola, nem punhal; mas
os olhos que lhe deitei, se pudessem matar, teriam suprido tudo. Um dos erros
da Providência foi deixar ao homem unicamente os braços e os dentes, como
armas de ataque, e as pernas como armas de fuga ou de defesa. Os olhos bas-
tavam ao primeiro efeito. Um mover deles faria parar ou cair um inimigo ou
um rival, exerceriam vingança pronta, com este acréscimo que, para desnor-
tear a justiça, os mesmos olhos matadores seriam olhos piedosos, e correriam
C A PÍ T U LO L X X X II
O canapé
Deles, só o canapé pareceu haver compreendido a nossa situação moral,
visto que nos ofereceu os serviços da sua palhinha, com tal insistência que
os aceitamos e nos sentamos. Data daí a opinião particular que tenho do
canapé. Ele faz aliar a intimidade e o decoro, e mostra a casa toda sem sair
da sala. Dois homens sentados nele podem debater o destino de um império,
e duas mulheres a graça de um vestido; mas, um homem e uma mulher só
por aberração das leis naturais dirão outra coisa que não seja de si mesmos.
Foi o que fizemos, Capitu e eu. Vagamente lembra-me que lhe perguntei se
a demora ali seria grande...
— Não sei; a febre parece que cede... mas...
Também me lembra, vagamente, que lhe expliquei a minha visita à Rua
dos Inválidos, com a pura verdade, isto é, a conselho de minha mãe.
C A PÍ T U LO L X X X III
O retrato
Gurgel tornou à sala e disse a Capitu que a filha chamava por ela. Eu
levantei-me depressa e não achei compostura; metia os olhos pelas cadei-
ras. Ao contrário, Capitu ergueu-se naturalmente e perguntou-lhe se a febre
aumentara.
— Não, disse ele.
Nem sobressalto nem nada, nenhum ar de mistério da parte de Capitu;
voltou-se para mim, e disse-me que levasse lembranças a minha mãe e a
prima Justina, e que até breve; estendeu-me a mão e enfiou pelo corredor.
Todas as minhas invejas foram com ela. Como era possível que Capitu se
governasse tão facilmente e eu não?
— Está uma moça, observou Gurgel olhando também para ela.
Murmurei que sim. Na verdade, Capitu ia crescendo às carreiras, as for-
mas arredondavam-se e avigoravam-se com grande intensidade; moralmente,
a mesma coisa. Era mulher por dentro e por fora, mulher à direita e à esquerda,
mulher por todos os lados, e desde os pés até a cabeça. Esse arvorecer era
mais apressado, agora que eu a via de dias a dias; de cada vez que vinha a casa
achava-a mais alta e mais cheia; os olhos pareciam ter outra reflexão, e a boca
outro império. Gurgel, voltando-se para a parede da sala, onde pendia um re-
trato de moça, perguntou-me se Capitu era parecida com o retrato.
Um dos costumes da minha vida foi sempre concordar com a opinião
provável do meu interlocutor, desde que a matéria não me agrava, aborrece
ou impõe. Antes de examinar se efetivamente Capitu era parecida com o re-
trato, fui respondendo que sim. Então ele disse que era o retrato da mulher
dele, e que as pessoas que a conheceram diziam a mesma coisa. Também
C A PÍ T U LO L X X X I V
Chamado
No saguão e na rua, examinei ainda comigo se efetivamente ele teria
desconfiado alguma coisa, mas achei que não e pus-me a andar. Ia satisfeito
com a visita, com a alegria de Capitu, com os louvores de Gurgel, a tal ponto
que não acudi logo a uma voz que me chamava:
— Sr. Bentinho! Sr. Bentinho!
Só depois que a voz cresceu e o dono dela chegou à porta é que eu parei
e vi o que era e onde estava. Estava já na Rua de Matacavalos. A casa era
uma loja de louça, escassa e pobre; tinha as portas meio cerradas, e a pessoa
que me chamava era um pobre homem grisalho e mal vestido.
— Sr. Bentinho, disse-me ele chorando; sabe que meu filho Manduca
morreu?
— Morreu?
— Morreu há meia hora, enterra-se amanhã. Mandei recado a sua mãe
agora mesmo, e ela fez-me a caridade de mandar algumas flores para botar
no caixão. Meu pobre filho! Tinha de morrer, e foi bom que morresse, coi-
tado, mas apesar de tudo sempre dói. Que vida que ele teve!... Um dia des-
tes ainda se lembrou do senhor, e perguntou se estava no seminário... Quer
vê-lo? Entre, ande vê-lo...
Custa-me dizer isto, mas antes peque por excessivo que por diminuto.
Quis responder que não, que não queria ver o Manduca, e fiz até um gesto
para fugir. Não era medo; noutra ocasião pode ser até que entrasse com fa-
cilidade e curiosidade, mas agora ia tão contente! Ver um defunto ao voltar
de uma namorada... Há coisas que se não ajustam nem combinam. A simples
notícia era já uma turvação grande. As minhas ideias de ouro perderam todas
a cor e o metal para se trocarem em cinza escura e feia, e não distingui mais
nada. Penso que cheguei a dizer que tinha pressa, mas provavelmente não falei
C A PÍ T U LO L X X X V
O defunto
Tal foi o sentimento confuso com que entrei na loja de louça. A loja era
escura, e o interior da casa menos luz tinha, agora que as janelas da área
estavam cerradas. A um canto da sala de jantar vi a mãe chorando; à porta da
alcova duas crianças olhavam espantadas para dentro, com o dedo na boca.
O cadáver jazia na cama; a cama...
Suspendamos a pena e vamos à janela espairecer a memória. Realmente,
o quadro era feio; já pela morte, já pelo defunto, que era horrível... Isto aqui,
sim, é outra coisa. Tudo o que vejo lá fora respira vida, a cabra que rumina ao
pé de uma carroça, a galinha que marisca no chão da rua, o trem da Estrada
Central que bufa, assobia, fumega e passa, a palmeira que investe para o
céu, e finalmente aquela torre de igreja, apesar de não ter músculos nem
folhagem. Um rapaz, que ali no beco empina um papagaio de papel, não
morreu nem morre, posto também se chame Manduca.
Verdade é que o outro Manduca era mais velho que este, pouco mais
velho. Teria dezoito ou dezenove anos, mas tanto lhe darias quinze como
vinte e dois, a cara não permitia trazer a idade à vista, antes a escondia nas
dobras da... Vá, diga-se tudo; é morto, os seus parentes são mortos, se existe
algum não é em tal evidência que se vexe ou doa. Diga-se tudo; Manduca
padecia de uma cruel enfermidade, nada menos que a lepra. Vivo era feio;