Dom Casmurro-Machado de Assis-16
Dom Casmurro-Machado de Assis-16
Dom Casmurro-Machado de Assis-16
Ideias aritméticas
Não digo o mais, que foi muito. Nem ele sabia só elogiar e pensar, sabia
também calcular depressa e bem. Era das cabeças aritméticas de Holmes
(2 + 2 = 4). Não se imagina a facilidade com que ele somava ou multiplicava
de cor. A divisão, que foi sempre uma das operações difíceis para mim, era
para ele como nada: cerrava um pouco os olhos, voltados para cima, e sus-
surrava as denominações dos algarismos: estava pronto. Isto com sete, treze,
vinte algarismos. A vocação era tal que o fazia amar os próprios sinais das
somas, e tinha esta opinião que os algarismos, sendo poucos, eram muito
mais conceituosos que as vinte e cinco letras do alfabeto.
— Há letras inúteis e letras dispensáveis, dizia ele. Que serviço diverso
prestam o d e o t? Têm quase o mesmo som. O mesmo digo do b e do p, o
mesmo do s, do c e do z, o mesmo do k e do g, etc. São trapalhices caligráfi-
cas. Veja os algarismos: não há dois que façam o mesmo ofício; 4 é 4, e 7 é 7.
E admire a beleza com que um 4 e um 7 formam esta coisa que se exprime
por 11. Agora dobre 11 e terá 22; multiplique por igual número, dá 484, e
assim por diante. Mas onde a perfeição é maior é no emprego do zero. O valor
do zero é, em si mesmo, nada; mas o ofício deste sinal negativo é justamente
aumentar. Um 5 sozinho é um 5; ponha-lhe dois 00, é 500. Assim, o que não
vale nada faz valer muito, coisa que não fazem as letras dobradas, pois eu
tanto aprovo com um p como com dois pp.
Criado na ortografia de meus pais, custava-me a ouvir tais blasfêmias,
mas não ousava refutá-lo. Contudo, um dia, proferi algumas palavras de
defesa, ao que ele respondeu que era um preconceito, e acrescentou que
as ideias aritméticas podiam ir ao infinito, com a vantagem que eram mais
fáceis de menear. Assim que, eu não era capaz de resolver de momento um
problema filosófico ou linguístico, ao passo que ele podia somar, em três
minutos, quaisquer quantias.
— Por exemplo... dê-me um caso, dê-me uma porção de números que eu
não saiba nem possa saber antes... olhe, dê-me o número das casas de sua
mãe e os aluguéis de cada uma, e se eu não disser a soma total em dois, em
um minuto, enforque-me!
C A PÍ T U LO XC V
O papa
A amizade de Escobar fez-se grande e fecunda; a de José Dias não lhe
quis ficar atrás. Na primeira semana disse-me este em casa:
C A PÍ T U LO XC V I
Um substituto
Expus a Capitu a ideia de José Dias. Ouviu-me atentamente, e acabou
triste.
— Você indo, disse ela, esquece-me inteiramente.
— Nunca!
— Esquece. A Europa dizem que é tão bonita, e a Itália principalmente.
Não é de lá que vêm as cantoras? Você esquece-me, Bentinho. E não haverá
outro meio? D. Glória está morta para que você saia do seminário.
— Sim, mas julga-se presa pela promessa.
C A PÍ T U LO XC V II
A saída
Tudo se fez por esse teor. Minha mãe hesitou um pouco, mas acabou ce-
dendo, depois que o Padre Cabral, tendo consultado o bispo, voltou a dizer-lhe
que sim, que podia ser. Saí do seminário no fim do ano.
Tinha então pouco mais de dezessete... Aqui devia ser o meio do livro,
mas a inexperiência fez-me ir atrás da pena, e chego quase ao fim do papel,
com o melhor da narração por dizer. Agora não há mais que levá-la a gran-
des pernadas, capítulo sobre capítulo, pouca emenda, pouca reflexão, tudo
em resumo. Já esta página vale por meses, outras valerão por anos, e assim
chegaremos ao fim. Um dos sacrifícios que faço a esta dura necessidade é
a análise das minhas emoções dos dezessete anos. Não sei se alguma vez
tiveste dezessete anos. Se sim, deves saber que é a idade em que a metade
do homem e a metade do menino formam um só curioso. Eu era um curio-
síssimo, diria o meu agregado José Dias, e não diria mal. O que essa qualidade
superlativa me rendeu não poderia nunca dizê-lo aqui, sem cair no erro que
acabo de condenar; a análise das minhas emoções daquele tempo é que en-
trava no meu plano. Posto que filho do seminário e de minha mãe, sentia já
debaixo do recolhimento casto uns assomos de petulância e de atrevimento;
eram do sangue, mas eram também das moças que na rua ou da janela não me
C A PÍ T U LO XC V III
Cinco anos
Venceu a razão; fui-me aos estudos. Passei os dezoito anos, os dezenove,
os vinte, os vinte e um; aos vinte e dois era bacharel em Direito.
Tudo mudara em volta de mim. Minha mãe resolvera-se a envelhecer;
ainda assim os cabelos brancos vinham de má vontade, aos poucos e espa-
lhadamente; a touca, os vestidos, os sapatos rasos e surdos eram os mesmos
de outrora. Já não andaria tanto de um lado para outro. Tio Cosme padecia
do coração e ia descansar. A prima Justina apenas estava mais idosa. José
Dias também, não tanto que me não fizesse a fineza de ir assistir à minha
graduação, descer comigo a serra, lépido e viçoso, como se o bacharel fosse
ele. A mãe de Capitu falecera, o pai aposentara-se no mesmo cargo em que
quis dar demissão da vida.
Escobar começava a negociar em café depois de haver trabalhado qua-
tro anos em uma das primeiras casas do Rio de Janeiro. Era opinião de prima
Justina que ele afagara a ideia de convidar minha mãe a segundas núpcias;
mas, se tal ideia houve, cumpre não esquecer a grande diferença de idade.
Talvez ele não pensasse em mais que associá-la aos seus primeiros tentames
comerciais, e de fato, a pedido meu, minha mãe adiantou-lhe alguns dinhei-
ros, que ele lhe restituiu, logo que pôde, não sem este remoque: “D. Glória é
medrosa e não tem ambição.”
A separação não nos esfriou. Ele foi o terceiro na troca das cartas entre
mim e Capitu. Desde que a viu animou-me muito no nosso amor. As relações
que travou com o pai de Sancha estreitaram as que já trazia com Capitu, e
fê-lo servir a ambos nós, como amigo. A princípio, custou-lhe a ela aceitá-lo,
preferia José Dias, mas José Dias repugnava-me por um resto de respeito de
criança. Venceu Escobar; posto que vexada, Capitu entregou-lhe a primeira
carta, que foi mãe e avó das outras. Nem depois de casado suspendeu ele o
obséquio... Que ele casou, adivinha com quem, — casou com a boa Sancha,
a amiga de Capitu, quase irmã dela, tanto que alguma vez, escrevendo-me,
C A PÍ T U LO XCI X
O filho é a cara do pai
Minha mãe, quando eu regressei bacharel quase estalou de felicidade.
Ainda ouço a voz de José Dias, lembrando o evangelho de São João, e dizen-
do ao ver-nos abraçados:
— Mulher, eis aí o teu filho! Filho, eis aí a tua mãe!
Minha mãe, entre lágrimas:
— Mano Cosme, é a cara do pai, não é?
— Sim, tem alguma coisa, os olhos, a disposição do rosto. É o pai, um
pouco mais moderno, concluiu por chalaça. E diga-me agora, mana Glória,
não foi melhor que ele não teimasse em ser padre? Veja se este peralta daria
um padre capaz.
— Como vai o meu substituto?
— Vai indo, ordena-se para o ano, respondeu tio Cosme. Hás de ir ver
a ordenação; eu também se o meu senhor coração consentir. É bom que te
sintas na alma do outro, como se recebesses em ti mesmo a sagração.
— Justamente! exclamou minha mãe. Mas veja bem, mano Cosme,
veja se não é a figura do meu defunto. Olha, Bentinho, olha bem para mim.
C A PÍ T U LO C
“Tu serás feliz, Bentinho!”
No quarto, desfazendo a mala e tirando a carta de bacharel de dentro
da lata, ia pensando na felicidade e na glória. Via o casamento e a carreira
ilustre, enquanto José Dias me ajudava, calado e zeloso. Uma fada invisível,
desceu ali e me disse em voz igualmente macia e cálida: “Tu serás feliz,
Bentinho; tu vais ser feliz.”
— E por que não seria feliz? perguntou José Dias, endireitando o tronco
e fitando-me.
— Você ouviu? perguntei eu erguendo-me também, espantado.
— Ouviu o quê?
— Ouviu uma voz que dizia que eu serei feliz?
— É boa! Você mesmo é que está dizendo...
Ainda agora sou capaz de jurar que a voz era da fada; naturalmente as
fadas, expulsas dos contos e dos versos, meteram-se no coração da gente
e falam de dentro para fora. Esta, por exemplo, muita vez a ouvi clara e
distinta. Há de ser prima das feiticeiras da Escócia: “Tu serás rei, Macbeth!” —
“Tu serás feliz, Bentinho!” Ao cabo, é a mesma predição, pela mesma toada
universal e eterna. Quando voltei do meu espanto, ouvi o resto do discurso
de José Dias:
— ...Há de ser feliz, como merece, assim como mereceu esse diploma
que ali está, que não é favor de ninguém. A distinção que tirou em todas as
matérias é prova disso; já lhe contei que ouvi da boca dos lentes, em parti-
cular, os maiores elogios. Demais, a felicidade não é só a glória, é também
outra coisa... Ah! você não confiou tudo ao velho José Dias! O pobre José Dias