Imaginação em Schelling
Imaginação em Schelling
Imaginação em Schelling
São Paulo
2009
ANDERSON GONÇALVES DA SILVA
São Paulo
2009
A dona Zilda que, na luta,
arrima a quem junto dela está.
Agradecimentos
afetiva, de ser preciso: nomear as pessoas em razão do que elas deram, um dom.
embora a filosofia nunca tenha deixado de ser o chão do qual se partiu para juntar
“prazos acadêmicos”.
Ao Márcio Suzuki, professor a quem devo muitas das balizas que tornaram
kantianos e perguntar sobre a famigerada “coisa em si”, sem que esta jamais fosse
um mero topos erudito. Enfim, quem não gosta de Maria Lúcia, bom sujeito não é.
Monteiro, José César Magalhães, Júlia, Lucas Janoni, Ludmila Abílio, Marco
Aurélio, Sílvia Viana, Tatiana Maranhão. Aos amigos, manos mais novos:
Fernando Vidal, José Luiz Bastos Neves, Júlio Miranda, Leonardo Massari. A
Resumo: Este trabalho se compõe, por assim dizer, em três tempos. Num primeiro
Abstract: This work is structurated, so to speak, in three parts. The fisrt part aims
part, the relation between mythology and politic strategy. In other words, the "use"
of mythology that could be called "technical use of mythology". In the third part,
ÍNDICE
Introdução 09
Bibliografia 74
9
Introdução
Este trabalho se compõe, por assim dizer, em três tempos, cada qual tomando
quais o que se poderia chamar de tecnicizado, o que seria uma hipostasiação. No terceiro
tempo, tomando os resultados obtidos como uma espécie de léxico e sintaxe, empreender
medida em que isso é perguntar-se sobre a Symbolik. Tomei Clara como um “exemplo”,
ou antes um modelo, em que esse modo de entroncamento se reduz, como que numa
dizer uma simbolização – o que configura as duas primeiras partes deste trabalho. Isto é,
gesto puro, o qual é retomado, e nisso mesmo atualizado, em cada produção particular
Absoluto que intenta Schelling. Mas esta é como que apenas uma face, a outra diz
particularidades, ainda que sustentadas pelo Absoluto, sem que elas se tornem mero
suportes desse mesmo Absoluto, de modo a não serem simplesmente apagadas. Um dos
modos de Schelling apontar para essa questão formula-se no seguinte imperativo das
Outro modo, no entanto, de apresentar este trabalho está em relatar seu impulso
inicial. Esta pesquisa teve como ponto de partida duas considerações, como que
Rodrigues Torres Filho e Paulo Arantes. E junto a eles, não posso deixar de mencionar,
Gérard Lebrun.
antigo programa sistemático do Idealismo alemão”, tomando Schelling por seu mais
novo senso comum que justamente religue os homens, ilustrados e não ilustrados” 1.
emprestada a expressão de Raymond Williams. Como que uma Gesinnung que dê chão
interior do espírito” nos tempos modernos (VII, 167). Era essa, salvo engano, a crise. A
partir disso, muito brevemente, minha pergunta se formularia: Como procede Schelling,
relação com a arte, orientando-se por, ou para, uma “verdadeira reforma intelectual e
moral”?
kantiano, principalmente na filosofia de Fichte. Como uma espécie de resumo, cito este
trecho:
conceitos sem fixidez. Aí se punha uma “pedagogia transcendental” 5, por assim dizer,
Outro autor, não menos importante nessa minha aproximação da filosofia clássica
alemã, como já mencionei, foi Gérard Lebrun. Cito dele o que me parece uma de suas
2
Rubens R. Torres Filho. O espírito e a letra. A crítica da imaginação pura, em Fichte. São Paulo,
Ática,1975, p. 256 (grifo nosso).
3
Idem.
4
Cf. Ibidem, p. 253 e 257.
5
Ibidem, p. 258.
6
Esta expressão é o título de um capítulo do livro de Gérard Lebrun Kant e o fim da metafísica (São
Paulo, Martins Fontes, 1993) e também como que um emblema de sua tese.
12
formulações mais concisas sobre o que seria a filosofia, depois de Kant, como discurso
autônomo:
fichtiana, caso se volte os olhos para Schelling, dá-se de cara com a querela, que
resultou em ruptura, entre Fichte e Schelling. Como se decidir aí: pelo excesso ou pela
poética de Drummond: “Que importa este lugar/ se todo lugar/ é ponto de ver e não de
ser”?
Mais uma vez reformulando, diria que, de maneira “ingênua”, parti do velho dito
retraduziria pela questão: Como tornar inefetivo um uso conservador dessa herança, a
filosofia clássica alemã, numa leitura de Schelling? Qual o distanciamento crítico que se
7
LEBRUN, G. op. cit., p. 694, grifo meu.
8
Fichte a Schelling, 31.05.1801. Há tradução, em apêndice, desta carta no livro já citado de Torres
Filho.
9
Torres Filho, O Espírito e a letra, p. 253.
13
toma diante de uma experiência, ‘pedaço’ da tradição, sem que isso implique seu
aniquilamento? Não posso afirmar que eu respondo à questão, mas procuro formulá-la.
14
Que é a filosofia da identidade senão uma noite cujo colorido são monótonas
onde vem essa representação, e aqui me valho dela menos por seu teor polêmico do que
por sua determinação como mera imagem, tomando essa palavra como uma tradução
mais corriqueira de Vorstellung. Não sem malícia, seria melhor verter o termo por pré-
juízo. Mas deixemo-la de lado. Dessa imagem se pode depreender algumas, nomeemos,
(querendo dizer com isso apenas que é posterior e não desatada do Iluminismo, assim
como uma filha sempre é filha em relação ao pai). A primeira se alicerçaria na claridade
identidade, pois que o aboliria enquanto tal’; a segunda, por sua vez, sem deixar de
Vorrecht, dos que se têm por poucos e bons’. O que fazemos com esse esquema
brincalhão e rígido? Muito pouco provavelmente. Mas talvez sua serventia seja
15
território de nossa investigação. Abandonando o tom jocoso, que se aceite uma ou outra
crítica, a pura e simples ‘eliminação’ do abismo não apaga a questão de como são
imaginação, para chegar a alguma resposta, mesmo que venha a ser insatisfatória.
‘caos’, menos como antônimo da ordem do cosmos do que como uma imagem mítica.
Por esta última pode-se acompanhar, e por isso compreender melhor, como se produzem
a linguagem e a mitologia, por assim dizer, lugares onde o Caos se instala como contra-
quero dizer, aqui, que primeiro linguagem e mitologia se irmanam em sua construção, ou
conexão entre pré-história e história. Se essa distinção dos tempos não se compreende
uma doutrina de imagens. Nossa escolha, para termos de comparação, recaiu sobre dois
secundária, de que com Plotino, e com os que dele se aproximam, tem-se provavelmente
a mais bem acabada sistematização de um confronto entre uma consciência mítica e uma
10
É verdade que a escolha poderia recair sobre outros, ou mesmo refazer o percurso do
neoplatonismo (também comparar, por exemplo, com Plotino, Erígena e Nicolau de Cusa), mas isso,
acredito, levaria longe demais o escopo deste trabalho.
16
consciência histórica 11, embora esse confronto não se restrinja a essa escola filosófica, já
que aparece também, por exemplo, no gnosticismo, que não foi de todo estranho a
Schelling. Basta lembrar que escreveu uma tese sobre Marcião, fundador de uma igreja
gnóstica que, durante os três primeiros séculos de nossa era, foi uma concorrente
ameaçadora da hegemonia daquela que estabeleceu como Igreja católica. Mas voltemos
como contraponto.
imagem 12; o conceito se faz reflexivamente imagem, assim como a imagem, igualmente
de maneira reflexiva, conceito. A linguagem seria como que o medium desse percurso, o
qual de certo modo a nega, ou antes, a leva a confessar pela expressão seus limites e, por
meio de tal, como que a apontar para o elemento extra-lingüístico. Ao entrar neste
confim, toca-se no aquém e além da linguagem, instância em que ela se estilhaça (por
11
A bibliografia sobre o assunto é dipersa e enorme, contento-me aqui em remeter em geral aos
trabalhos de Werner Beierwaltes (em especial o livro Pensare l’Uno. Studi sulla filosofia neoplatonica
e sulla storia dei suoi influssi. Milano, Vita e Pensiero, 1991, a edição original, em alemão, é de 1985)
e Jacob Taubes (em especial o livro Do culto à cultura: elementos de construção para uma crítica da
razão histórica, que reúne ensaios que vão de 1954 a 1984 ). São dois autores fortemente díspares
entre si, que valha como indicação dessa disparidade, que o primeiro visa a especulação neoplatônica
principalmente por seu caráter ético, aproximando inclusive de posições como as de Pierre Hadot (a
filosofia como forma de vida), e o segundo, com um pensamento mais marcadamente político, se
aproxima das considerações de Walter Benjamin sobre a revolução.
12
Para esse “resumo”, tomo por base as reflexões de Werner Beierwaltes em seu artigo “Zu Augustins
Metaphysik der Sprache”, publicado em Augustinian Studies, vol. 2, 1971, p. 179-195. As expressões
entre aspas são deles.
17
tensão exigida pela busca de repouso, ao qual se move e tende a alma humana. “O amor,
diz Agostinho, é o meu peso. Por ele sou levado para onde sou levado”14.
as quais são o peso, “o físico na linguagem” (VII, 453) – cabendo aí ao homem o papel
palavra viva de Deus; por assim dizer, no homem as pré-significações vêm à luz como
presente na natureza como verbo obscuro e profético (não ainda inteiramente proferido).
pelo homem, e um real, que é a natureza. A relação da linguagem com a natureza chega
os de distinção.
13
Cf.: E. Auerbach, Mímesis. São Paulo, Perspectiva, 2001, p.60-62 e L. Mammi, Santo Agostinho, o
tempo e a música. São Paulo, FFLCH-USP, Tese de doutoramento, 1998, p. 221-223.
14
Confissões, XIII, 9. As citações de Agostinho foram retiradas da edição italiana: Opere di
Sant’Agostino. Roma, Città Nuova, 1992.
15
As expressões entre aspas são de Schelling: Schellings Werke. Manfred Schröter (Hrsg.). Munique,
Beck, 1959, vol.V, p. 393, 390, 394. Daqui em diante citarei no corpo do texto do seguinte modo (V
393). Sobre as traduções ver a bibliografia.
16
Ele também diz, determinando o verbo na natureza, nos Aforismas para introdução à filosofia da
natureza (S.W., VII, 180, n o 197): “todo átomo de matéria é um mundo tão infinito quanto o universo
inteiro; na menor parte ressoa o Verbo eterno da afirmação divina. Mas a maneira pela qual essa parte
reproduz (abbildet) a plenitude do todo já não pertence à essência; ela é apenas comparativa e pertence
à sombra que as coisas, na substância infinita, lançam umas sobre as outras”. No mais, é preciso
lembrar que o termo alemão Wort pode ser vertido como “palavra” ou “Verbo”.
18
instrumental, isto é, quando ela toma parte da integração social entre os homens; um
principium, se pergunta pelo como saber a verdade a respeito daquilo que foi dito por
órgãos da linguagem, sem som de sílabas, diga: Ele diz a Verdade; e, então,
chama de Verbo. Mas, antes de continuarmos, é preciso distinguir que, para Agostinho,
há o Verbo divino e o humano. Por ora, com respeito ao Verbo de Deus, basta dizer que
forma pura”, nela não há nada de informe, formável ou formado, nela “existe uma
substância por si mesma eterna e imutável” 20. O verbo do homem, por sua vez, guarda
uma semelhança obscura, em enigma, com o divino (disso trataremos um pouco mais a
frente).
17
Confissões, XI, 3.
18
O caminho, como também apresentado em De Magistro, é o da aprendizagem da alma, a verdade
que “dentro de nós preside à própria mente” é consultada e, então, se dá o ensinamento verdadeiro do
“Cristo, que habita (...) no homem interior” (De Magistro, 11, 38).
19
Confissões, XI, 3, 5.
20
A trindade,15, 15, 24. A maior parte das nossa considerações, daqui para a frente, são baseadas no
livro XV de A Trindade.
19
signos; com a segunda, de modo interior, os pensamentos que “são uma espécie de
segundo, vemos. Ouvir e ver com os sentidos do corpo são coisas distintas, ao passo que
pensamento são “visões brotadas da visão do conhecimento implícito (notitia)” 22. Até
aqui ambas as elocuções mostram-se separadas, cumpre apresentar de que modo elas se
vinculam. A relação entre elas é a relação entre o verbo interior e o exterior, uma relação
de subordinação: o verbo exterior serve ao interior, para que este se manifeste. Ou, nas
palavras de Agostinho, “o verbo que ressoa fora é signo do verbo que ilumina
internamente”23.
humano e o divino: assim como o verbo divino se fez carne, o nosso “se faz voz” 24. Isto
posto, lembrando que para Agostinho se trata de alcançar a sapientia 25, a estratégia seria
superar o verbo material, exterior, voltando-se para dentro, para assim “alcançar aquele
verbo humano que é uma espécie de semelhança na qual podemos ver um pouco, como
21
A trindade,15, 10, 18.
22
Idem, id. Aqui seguimos a tradução italiana ao verter notitia por “conhecimento implícito”.
23
Idem, 15, 11, 20 (grifo nosso).
24
Idem, id.
25
“À sapiência pertence o conhecimento intelectual das coisas eternas”, diferentemente da ciência, à
qual pertence “o conhecimento racional das coisas temporais” (A Trindade, 12, 15, 25). Além disso, há
outros dois aspectos a serem também levados em conta. Primeiro: na sapientia divina, ser, saber e ser
sapiente são o mesmo, ou seja, a ciência em Deus é idêntica à sapientia; em nós, não. Segundo: a
sapientia humana, lembrando que pode ser definida como a fruição das coisas eternas (cf. Doutrina
cristã, II, 7, 10), também se liga à doutrina do uti e frui; na medida em que só conhecemos o que
amamos, percorremos um caminho que nos conduz, usando as coisas mutáveis, às coisas eternas e
imutáveis que devem ser fruídas, e o que se frui e deve ser amado por si mesmo é Deus, o qual
“constitui em si a vida bem-aventurada” em contemplação (Doutrina cristã, I, 22).
20
em enigma, o Verbo de Deus” 26. Ver em enigma 27, para Agostinho, é ver pelo espelho o
que não se pode determinar completamente, aquilo que no verbo do coração, pela
nenhuma língua” 28. Os signos corporais ou físicos são usados a fim de nos
interno –, para que possamos dar notícia, trazer ao conhecimento deles o verbo que
“coagulada” 29 (V, 484), que é a natureza. A linguagem humana tem por base ou
fundamento o lado real, isto é, a palavra falada (“o físico na linguagem”), que se repete
também um lado ideal, no qual é retomada30 a palavra falante de Deus. Esses dois lados
por exemplo, na introdução à Filosofia da arte, na qual chama a atenção para a relação
Com a maioria das pessoas ocorre em relação à arte o mesmo que com
falado em prosa durante toda a vida sem que soubesse disso. São bem poucos
Ora, essa naturalização da linguagem implica que ela é não só uma obra de arte,
oxímoro: “uma obra de arte natural”. Ela é tanto “expressão imediata de um ideal – do
saber, pensar, sentir, querer etc. – num real”, obra de arte, quanto é, “com igual
determinação, uma obra natural, pois como forma única, necessária da arte, não pode ser
pensada como se tivesse sido descoberta ou tivesse surgido por meio de arte” (V, 482) 31.
A linguagem assim repete o Absoluto, cuja essência é “um produzir eterno”, “um
afirmar ou conhecer absoluto”, que objetiva, no lado real, a “infinita afirmação de si”
apenas “como afirmado”; o ideal aparece não como absoluto, mas como “ideal
meramente relativo” (V, 482, 483). Neste sentido, a linguagem é símbolo da “afirmação
absoluta ou infinita de Deus, porque esta se expõe aqui por meio de um real, sem que
30
Quando sobre Schelling utilizamos as palavras “repetição” e “retomada” (e derivados) estamos nos
referindo à alemã Wiederholung, categoria com a qual, dentro da doutrina das potências, se passa de
uma potência a outra, de modo que qualitativamente permaneça a identidade. Em comparação com
Hegel, a Wiederholung é, grosso modo, o sucedâneo da Aufhebung.
31
Schelling aqui entra em controvérsia com as discussões de sua época sobre as origem das línguas
(em alemão Sprache é tanto “língua” quanto “linguagem”), por exemplo Rousseau e Herder. Para ele,
a discussão está mal posta. Ao filósofo, não interessa a origem empírica das línguas, mas a “origem da
língua (ou linguagem) na Idéia”(V, 486), onde a Sprache surge, “de maneira incondicionada, mediante
a efetivação eterna do ato absoluto de conhecimento”, a linguagem portanto como Ursprache (Idem).
22
é apenas uma única, assim como a razão é apenas uma única, mas, assim como da
provêm todas as diferentes línguas, cada uma das quais é um universo por si, é
absolutamente separada das outras, e no entanto todas são essencialmente um, não
apenas segundo a expressão interior da razão, mas também no que toca os elementos
que, à exceção de poucas nuances, são iguais em todas as línguas (V, 485).
por isso mesmo não são meramente empíricas – ao repetir, espelhar, simbolicamente a
Por um lado, podemos dizer que a linguagem, enquanto obra de arte, é o aspecto
consciente da linguagem, por outro, enquanto, obra natural, o inconsciente. Ora, esse
aspecto inconsciente é o ponto em que a linguagem também pode ser chamada de “um
designações universais, mesmo pra designar o particular” (V, 408)33. Desse modo,
Outro ponto dessa indeterminação, aparece quando Schelling diz que a linguagem é,
“como afirmação infinita que se exprime vivamente”, “o símbolo supremo do caos” (V,
32
Mais tarde Schelling usará, nas Investigações sobre a liberdade e nas Preleções de Stuttgart, os
vocábulos vernaculares Selbstlauter e Mitlauter, auto-sonante e consonante, para vogal e consoante.
Ainda sobre o mesmo assunto cf.: IX 101; X 40; WA 61, 85, 251; Plitt II 222 (carta a Georgii, 18 de
julho de 1810).
33
Ele se refere aqui ao esquematismo kantiano, que, segundo sua própria explicação no Sistema do
idealismo transcendental, é “somente intuição da regra na qual um objeto determinado pode ser
produzido”(III, 508)
34
Suzuki, M. “La double enigme du monde: nature et langage chez Schelling et Merleau-Ponty”. In:
Chiasmi international, 2003, p. 249.
23
Sensível e supra-sensível aqui são um, o mais palpável se torna signo para o
mais espiritual. Tudo se torna imagem de tudo, e a própria linguagem, por isso
resto que nunca eclode” (VII, 360)35, que permanece eternamente subjacente sem jamais
linguagem, em Agostinho, aponta para a visão, ou antes, para “a reflexão (palavra)” que
“se baseia sobre uma visão (Verbo) permanente, que a reflexão descobre em si na
medida em que reconhece seus limites”36. Em Schelling, por sua vez, a linguagem parece
apontar para um mergulho em busca de uma espécie de imagético, uma Bildlichkeit, que
35
Sobre o caos como Grund cf : Vetö, Miklos. Le fondement selon Schelling. Paris, Beauschene, 1977,
p. 174-212. Ainda sobre a relação entre linguagem e natureza, o §259 do System der gesamten
Philosophie (1804), VI, 491-492: “A linguagem é o mais alto na natureza; é o verbo feito carne, a
infinita e eterna afirmação que novamente soa (wiedertönt) no universo e que se capta por fim na
linguagem totalmente em movimento e vem a ser novamente o caos, que compreende em si todas as
particularidades das coisas e o universo inteiro. A linguagem é um empunhar e apreender (Ergreifen)
absoluto do espaço por meio do tempo, da totalidade por meio da identidade; presentifica
imediatamente um infinito e o estabiliza, assim como o tempo na translação se estabiliza no espaço
intuindo a totalidade objetiva do corpo celeste. A linguagem é vida livre, expansão eterna do sujeito e
retorno eterno em si mesma como a translação”.
36
Mammi,L., op. cit., p. 265.
24
Tomemos outro desvio, ainda que brevemente, pela doutrina eckhartiana das
da identidade” 38, no qual não há, à maneira de um símbolo, finalidade externa: “Por que
comes? – Com isso tenho força! – Por que dormes? – Pela mesma finalidade! (...) – Por
que amas a verdade? – A fim de querer a verdade! – Por que amas a justiça? – A fim de
querer a justiça! – Por que amas a bondade? – A fim de querer a bondade! – Por que
37
Além obviamente dos textos de Eckhart (Deutsche Predigten und Traktate. Ed. e trad. Josef Quint.
Munique, Carl Hanser, 3 a ed., 1969), baseio-me em dois comentadores: R. Schürmann, Maître Eckhart
ou la joie errante. Paris, Payot, 2005 (a primeira edição é de 1972); W. Wackernagel, Ymaginare
denudari: éthique de l'image et métaphysique de l'abstraction chez maître Eckhart. Paris, Vrin, 1991.
Sobre as relações de Eckhart com o neoplatonismo, cf.: W. Beierwaltes, Platonisme et idéalisme.
Paris, Vrin, 2000, p.43-72; Identità e differenza. Milano, Vita e Pensiero, 1989, p. 134-141.
38
Schürmann, op.cit., p. 177.
39
Eckhart, “Mulier, venit hora et nunc est…”, ed. cit., p. 384. Aqui, há uma semelhança com a
doutrina agostiniana do uti e frui, por assim dizer, a fruição desinteressada de Deus na bem-
aventurança. Essa pura ausência de finalidades reaparecerá mais tarde também em Angelus Silesius:
“A Rosa é sem-porquê, floresce porque sim; /Não dá tento de si, não pergunta se a vêem” (Die Rose ist
ohn Warum, sie blühet, weil sie blühet:/ Sie acht nicht ihrer selbst, fragt nicht, ob man sie sieht) – a
tradução é de Rubens R. Torres Filho (Novolume. São Paulo, Iluminuras, 1997, 213.
25
negação (criatura)” 40. Neste sentido, “todas as coisas são criadas a partir do nada; por
isso a verdadeira origem delas é o nada” 41. Aqui elimina-se a analogia, na medida em
que na identidade não há possibilidade de distinção entre criador e criatura, uma vez que
identidade. Deus é quem atua ou opera e, nesse sentido, cria a realidade (Wirklichkeit)
por ebullitio, dando lugar para a oposição entre criador e criatura, o que permitiria ao
homem refletir sobre o Deus, invocá-lo, amá-lo e mesmo trazê-lo à morte; ao passo que
a deidade, anterior a qualquer oposição, não opera nem cria, é Ursache, coisa originária,
não é algo que possa ser ‘coagulado’; é a própria origem (Ursprung), ou antes, o puro e
de todas as criaturas – isto é a centelha (Funke), (...) essa centelha (Fünklein)42 é tão
aparentada a Deus que ela é um uno único, sem distinção, que ela porta em si as
além das imagens (das die Urbilder aller Kreaturen in sich trägt, bildlose und
überbildliche Urbilder)43.
se desapropria o mundo e suas imagens. No fundo (Grund, grunt) da alma, há uma força,
cujo operar (wirken) é idêntico à força divina. O incriado no criado é a identidade que se
40
Schürmann, p. 152.
41
Eckhart, “In hoc apparuit caritas dei in nobis”, ed. cit., p. 181.
42
Eckhart define a centelha como “uma imagem da natureza divina que sempre se opõe ao que não é
divino” (op. cit., p. 243), ou mais precisamente, algo que não é da alma mas está na alma, o incriado
propriamente.
43
Eckhart, “Ave, gratia plena”, ed. cit., p. 257-258, grifo meu.
44
Wackernagel, op. cit., passim.
26
desatada e livre, assim como Deus é em si mesmo desatado e livre” 45. Essa simplicidade
desdobramento da trindade; a deidade, nem intelecto nem vontade, é sem “véu” nem
“modos”, é essência nua, supra-ser. A Entbildung é tanto uma travessia pela qual se visa
potências na medida em que o ser dessa imagem é o Verbo, onde a deidade sem
deidade como que repousa sobre si mesma. Essa desimaginação, que se dá tanto ética
Überbildung, que é a própria deidade, a imagem originária sem imagem bem como
abstração eckhartiana – como afirmação do nada das coisas criadas, e portanto das
imagens – não destrói o ser delas, muito pelo contrário, diz-nos Eckhart, ela as funda”46.
imagem de Deus. “Se ele não é verdadeiramente uno, possui no entanto a faculdade de
união. Com efeito, o intelligere será o pivô operador de sua ‘conversão’, essa epistrophè
que ultrapassa a dualidade criador e criatura para descobrir, para além de sua oposição, a
identidade inicial de todas as coisas consigo mesmas e com Deus” 47. Nesse caminho da
45
Eckhart, “Intravit Jesus in quoddam castellum”, ed. cit., p. 163.
46
Wackernagel, p. 194.
47
Lossky, Théologie négative et connaissance de Dieu chez Maître Eckhart. Paris, 1960, p. 173 –
apud Wackernagel, op. cit., p. 146.
27
noção de linguagem quanto para a escrita eckhartianas. Sua escrita é fortemente imagée,
muitas vezes quase como uma imensa metáfora fillée 48, cuja função é indicar o que está
além dela. São imagens em função do que é sem imagem, sem nome, incriado. Junto a
esse uso da imagens, somam-se os paradoxos, a linguagem como que entra em crise,
cala-se por si mesma e abre espaço para um ultrapassamento de si mesma. Portanto, pela
pelo qual se alcança o ser das imagens. O símbolo dessa identidade é o túmulo vazio49 da
paganismo: os deuses, formas ou imagens, estão mortos; viva a deidade. Daí Eckhart
48
Em retórica talvez se aproxime de uma figura da acumulação, mais precisamente, uma “acumulação
de detalhamentos” (evidencia; enargeia, hypotipose, ekphrasis etc.), cujo objetivo é tornar mais clara e
vívida a descrição, por assim dizer, tornar sensível o que se pretende exibir (cf. H. Lausberg, Elemente
der literarischen Rhetorik. Ismaning, Max Hueber, 1990, §369, p.117-118). No caso de Eckhart há
uma intensificação do sensível em função do não-sensível. A Versinnlichung se dá paradoxalmente por
esvaziamento.
49
Cf. Wackernagel, op. cit., p. 150 ss. (trata-se do capítulo “Entre duas trevas: a exegese do túmulo
vazio”).
50
Wackernagel, op. cit., 145
28
própria, sem referência externa, da imaginação que, por seu papel mediador, garante
traços largos, essa Analítica, mas já a traduzindo um tanto para o idioma schellinguiano
grandeza em que esta é tomada em si mesma como uma totalidade, que não é resultado
de uma operação quantitativa (soma de partes, por exemplo). É uma unidade prévia a
qualquer medida, uma unidade que funda cada unidade e, como tal, é unidade das
unidades, uma Ureinheit. Mesmo que essa unidade não tenha correspondente intuitivo,
isto é, sensível, ela é pensável e, por isso mesmo, unidade transcendental ou formal.
Aqui, portanto, é possível uma “avaliação estética” da grandeza (Crítica do juízo, § 26),
fora da mera sucessão temporal, como um em si. Não se está sob o signo do número,
mas se está naquilo que é aquém do número, a condição de possibilidade de todo número
e que não é número. Nesse plano, a reflexão “se desprende de seu suporte estético
propriamente falando” 52; o juízo estético desobriga-se do sensível. Ou ainda, aquilo que
se obtém com uma avaliação estética – uma grandeza em si, uma unidade segundo a
51
Baseamo-nos em Lebrun, Kant e o fim da metafísica. São Paulo, Martins Fontes, 1993 –
especialmente o capítulo “A imaginação sem imagens”, p. 563-596.
52
Lebrun, Kant e o fim da metafísica, p. 589.
29
protótipo não remete senão a si mesmo, só se aflige consigo mesmo, como Novalis se
ausência de forma (Formlosigkeit). Isto, na potência da arte, pode ser expresso pela
realmente, se expressa por cosmos e caos 55. Antes, observemos uma crítica do jovem
“necessidade de nossas representações objetivas” (I, 410). Segundo ele, Kant e Fichte
teórica, e daí dizer que as coisas em si, enquanto tais, fornecem o material a nossas
representações. Fichte pode abster-se dessa apresentação simbólica, porque ele não
trata a filosofia teórica, como Kant o fez, separada da prática. Pois precisamente
nisso consiste o mérito próprio de Fichte: o princípio que Kant coloca no cume da
filosofia, e por isso torna-se o instituidor de uma filosofia que, com razão, pode ser
53
A Urbild, nos termos da filosofia transcendental, é “a forma pura de nosso espírito” ( I 387).
54
Cf. “Monólogo”, Pólen. São Paulo, Iluminuras, 1988, p. 195-196. Trad. R.R. Torres Filho.
55
É também onde sempre se repõe, como topos da bibliografia sobre Schelling, a questão sobre a
autonomia da particularidade na filosofia da identidade. Que se tome como exemplo disso F. Moiso,
Vita natura liberta: Schelling (1795-1809). Milano Mursia, 1990, p. 25-32.
30
chamada de a filosofia superior, porque ela não é, segundo seu espírito, nem teórica
nem prática apenas, mas ambas ao mesmo tempo (I, 409) 56.
que cindia, ou antes, a posição daquilo que dá unidade e identidade a tudo, o eu,
que se dá:
Há força produtiva nas coisas fora de nós. Mas uma tal força é apenas a
força de um espírito. Portanto essa coisas não podem ser coisas em si, não podem
ser efetivamente por si mesmas. Elas só podem ser criações (Geschöpfe), apenas
a distinção entre saber e ser, nota-se que a filosofia transcendental se ocupa apenas do
primeiro, não se preocupa com o segundo. O que se tem é apenas um “modo do saber”,
não um “modo do ser”. O filósofo transcendental está preso dentro do círculo do saber, a
consciênca de si, que é “o ponto luminoso no inteiro sistema do saber, mas que ilumina
apenas para frente, não para trás” (III, 357). O filósofo transcendental, portanto, “busca
de ser e conhecer bem como sua absolutez. Ora, com isso efetivamente se desfaz a
separação entre teoria e prática, entretanto ainda se está restrito ao círculo do saber,
56
O uso do termo ‘simbólico’ aqui não é no sentido enfático que mais tarde Schelling dará a essa
palavra .
57
Na Exposição do meu sistema da filosofia (1801), podemos recolher um pequeno esclarecimento de
Schelling sobre sua diferença com Fichte. O idealismo fichtiano está “no ponto de vista da reflexão”;
“eu, pelo contrário, me posicionaria com o princípio do idealismo no ponto de vista da produção: para
exprimir essa contraposição mais inteligivelmente, o idealismo, em significação subjetiva, teria de
afirmar que o eu é = tudo e o idealismo, em significação objetiva, inversamente, que tudo é = eu, e que
não exista nada senão o que é = eu” (IV 109).
31
“não há um saber absoluto e fora dele um Absoluto, mas ambos são um, e aqui subsiste a
vazia (als eitel Nacht), e nisso eles nada podem conhecer; ela desaparece diante
deles numa mera reunificação em conjunto das diferenças e é, para eles, uma
essência puramente privativa, por isso terminam prudentemente sua filosofia. (...)
mas essa (a forma absoluta) nos é incorporada como a idéia viva do Absoluto. (IV,
403)
por assim dizer, a ‘passagem’ do puro e límpido Ur, identidade, ao Urbild, diferença.
Aqui a noite da identidade se faz o dia da diferença: “Essa forma eterna, igual ao próprio
Absoluto, é o dia no qual concebemos essa noite e as maravilhas nela ocultas, a luz em
que reconhecemos claramente o Absoluto, o mediador eterno, o olho do mundo que tudo
vê e tudo revela, a fonte de toda sabedoria e conhecimento” (IV, 405)59. Esse amanhecer
58
“Chamamos esse conhecimento de intuição intelectual. Intuição, pois toda intuição é um igualar
(Gleichsetzen) de pensar e ser, e apenas na intuição é em geral também posta a realidade, no presente
caso é o mero pensar do Absoluto, este torna-se, conforme sua idéia, o que é imediatamente por meio
de seu conceito, um verdadeiro conhecimento do Absoluto. Este só é numa intuição, que iguala
absolutamente o pensar e o ser, e na medida em que ela expressa formalmente o Absoluto, torna-se ao
mesmo tempo expressão de sua essência. Chamamos de intelectual essa intuição porque ela é intuição
racional (Vernunft-Anschauung) e como conhecimento ao mesmo tempo absolutamente uno com o
objeto do conhecimento” (IV, 368-369) .
59
Há unidade entre vidente e visto, entre contemplador e contemplado, entre ser e ver de Deus: “Assim
como o olho, na medida em que ele próprio se avista (erblickt) num reflexo, num espelho por exemplo,
se põe a si mesmo, se intui a si mesmo, apenas até o ponto em que ele põe o refletidor – o espelho –
como nada para si, e do mesmo modo há como que um único ato do olho, pelo que ele se põe a si
32
uniformação (Einbildung)60. Com isso chegamos à produção das formas, que sempre
noite, no dia e na distinguibilidade, mas ela se encobre num outro – na diferença –, não
apreende o Absoluto, e todas elas retornam em cada uma, e cada uma em todas, elas
abrange todas na absolutez completa, de modo que, com respeito a ele [cada qual
absolutamente para si], todas [porque absolutas] são compreendidas em cada uma e
assim se torna claro até que ponto se pode dizer que o conhecer absoluto, que tudo
contém, precisamente por isso nada contém e, além disso, como da mesma maneira
mesmo, se vê a si mesmo, e não vê nem põe o refletidor: assim também o todo se vê ou se contempla a
si mesmo, na medida em que ele não põe nem contempla o particular; ambos são nele um único ato; o
não-pôr do particular é um contemplar, um pôr-a-si-mesmo” (VI, 197-198).
60
Grosso modo, talvez se possa diferenciar a Einbildung da Ineinsbildung do seguinte modo: a
segunda se refere ao Absoluto em si mesmo, na potência zero, como unidade de todas as unidades,
identidade de todas as identidades (a Identidade absoluta); a primeira diz respeito à identidade,
retomada da primeira, nas diferentes potências, cada qual como unidade da diferença e da identidade
na diferenciação. Daí a imaginação, tomado o termo como essa operação ativa em todas as potências e
na potência zero, pode ser compreendida como co-ciência da criação, Mitwissenschaft der Schöpfung,
como “essa capacidade de anamnese que de algum modo nos torna contemporâneos da criação, que nos
remete à raiz e à fonte das coisas” (X. Tilliette, La mythologie comprise. L’interprétation
schellinguienne du paganisme. Nápoles, Bibliopolis, 1984, p.52)
33
61
(IV, 395)
de nosso espírito” (I, 387), mas sim do Absoluto, tampouco pode ser compreendida
como a fruição ou contemplação mística, que seria como que um estacionar na essência,
mas apenas cognição (Erkennung) imediata – não certamente uma cognição imediata que
pertenceria ao homem, mas somente a do divino pelo divino” (VI, 150, §51). “A
essência do Absoluto, em si e para si, nada nos revela, ela nos preenche com as
assim como as formas mais antigas da filosofia descrevem o estado do universo”, numa
palavra, caos (IV 404). Ao passo que a “forma eterna, igual ao próprio Absoluto, é (...) a
que tudo vê e tudo revela, a fonte de toda sabedoria e conhecimento” (IV 404). O
61
Essa diferenciação como potenciação, que implica proporção ou relação, Verhältniβ, entre infinito e
finito, pode ser resumida pelo seguinte passo da “Exposição da idéia universal da filosofia em geral e
em particular da filosofia da natureza como parte integrante da primeira” (1803): “O Absoluto só se
expande no particular dentro do eterno ato de conhecimento para, na absoluta uniformação
(Einbildung) de sua infinitude no finito, colher de volta (zurücknehmen) o próprio finito em si, e esses
dois atos são nele um só. Portanto, onde um dos momentos desse ato – por exemplo, a expansão da
unidade na pluralidade como tal – se torna objetivo, ali também o outro momento – o do recolhimento
(Wiederaufnahme) do finito no infinito – assim como aquele que corresponde ao ato tal como é em si –
ou seja, onde um deles (expansão do infinito no finito) é imediatamente também o outro (re-
uniformação (Wiedereinbildung) do finito no infinito) – tem de tornar-se, ao mesmo tempo, objetivo, e
cada um deles tornar-se distinguível em particular. // Vemos que, desse modo, assim que aquele
conhecer eterno se dá a conhecer na distinguibilidade (Unterscheidbarkeit) e, da noite de sua essência,
sai à luz do dia, imediatamente as três unidades se destacam dele como particulares. // A primeira, que,
como uniformação do infinito no finito, se transforma, dentro da absolutez, imediatamente na segunda,
assim como esta nela, é, como unidade distinta, a natureza, assim como a segunda é o mundo ideal, e a
terceira é distinguida como tal ali onde, nas outras duas, a unidade particular de cada uma, na medida
em que se torna absoluta para si, ao mesmo tempo se dissolve e se transforma na outra” (II, 65, tr. br.,
p. 51).
34
contanto que ela também seja imediatamente ser e, por conseguinte, posição infinita
Daí a idea não é de nenhum modo para ser pensada como conceito universal
ou como ser genérico (Gattungswesen); pois este é o conceito por oposição ao ser, a
Daí a idea pode ser também descrita como a perfeição das coisas; e
posição, assim como elas, em si mesmas, são em Deus, sem relação de uma com a
Retrocedamos à polêmica com Fichte. Ora, o passo dado por Schelling, diante da
“agilidade pura” da imaginação fichtiana, oscilando entre dois pólos (real e ideal), é o de
estabelecer uma identidade entre atividade e repouso absolutos, podendo com isso
encontro da atividade da natureza (e esta era impossível para Fichte, afinal “o único
64
positivo é, para o idealista, a liberdade; ser, para ele, é a mera negação desta” ), de
mesma 65. Nesse sentido, a imaginação é “ampliada” como o próprio operar do Absoluto.
Operação que, como já dissemos, é, em cada potência, retomada como uma uniformação
Mas afirmar o Absoluto como “um vazio absoluto, sem fundo (bodenlos)”, diz
Schelling na Filosofia da Arte, só é possível para o entendimento que o toma por “um
produz Idéias (imagens do divino que são protótipos, Urbilder) formadas na razão, ou,
“consideradas realmente, deuses”, que são apreendidos pela fantasia humana como
são, com o perdão do neologismo, repetições poiéticas da identidade; são símbolos que
se produzem, ou se constroem (V, 393, 390, 394). Não se trata, portanto, de vazio, mas
de caos; ou ainda: o sublime não é vazio, é caos. Esse caos, como originário, é
infinito dizer-sim, na infinita afirmação” (VII, 162, §103). O jogo das formas belas,
sublimidade não tem razão de ser. A Formlosigkeit não é nenhuma negação, mas
A essência interna do Absoluto, onde tudo está como um, e o um como tudo,
identidade da forma absoluta com a falta de forma (Formlosigkeit), pois aquele caos
no Absoluto não é mera negação da forma, mas falta de forma na forma suprema e
é: forma absoluta, porque toda forma é formada em cada forma, e cada forma em
Por assim dizer, passa-se de uma ‘imaginação sem imagens’ (pensemos em Kant
(IV, 167), se basta a si mesma; permanece indiferente no abismo, sem revelação. Ora,
isso não significa perder de vista a particularidade, uma vez que a noção ampliada de
linguagem e das imagens – como fosse uma obsessiva desreificação na medida mesma
em que é uma afirmação. É, como já se afirmou, “uma dialética do positivo, que não se
apóia no trabalho da negatividade” 68. Reformulando, nos tempos modernos não se tem
67
Diz Schelling, em 1800, na Dedução geral do processo dinâmico: “Admite-se que a força só pode
ser posta em eficiência (Wirksamkeit) pela cisão (Entzweiung) absoluta. Isto só é pensável quando a
força é a própria identidade absoluta, a qual, como que perdida em si mesma, não pode ser
constrangida de nenhum modo a sair de si e revelar-se a si mesma, por meio do que ela é suprimida
como identidade absoluta. Daí segue-se por si que a identidade absoluta enquanto tal nunca pode em
geral revelar-se, pois ela é enquanto tal um abismo (Abgrund) de repouso e inatividade, e, se posta em
atividade, ela já deixa de ser identidade absoluta” (IV 34, §37).
68
R.R. Torres Filho, “O simbólico em Schelling”, p. 132.
37
Idéia (Urbild). Se nos voltamos para a Filosofia da arte, o belo originário (Urschönes) é
as obras de arte particulares como produtos perfeitos e acabados. Essa idéias reais,
Idéias, como Idéias reais, é dada, por conseguinte, na mitologia (...) e a solução da
mitologia nada mais são que as Idéias da filosofia, mas intuídas objetivamente ou
realmente” (V 370).
Com o que apresentamos, até aqui, talvez seja possível distinguir entre mito e
outra senão mostrar aos homens as imagens originárias de tudo aquilo de que estão
representados “como um instituto (Anstalt) destinado a levar aqueles que tomam parte
(Idem). São um itinerário no qual se aprende que “aquilo que há de mais semelhante ao
revelação, os Mistérios estão para a mitologia como a filosofia para a poesia e, mais que
isso, “a instituição (Einrichtung) dos Mistérios a cargo dos filósofos” (IV, 234). Daí
Anselmo propor a Bruno que “falasse sobre que espécie de filosofia acredita que tenha
de ser ensinada nos Mistérios e contenha aquele estímulo à vida bem aventurada e
divina” (IV, 234). Bruno aquiesce à proposta, mas recua um tanto ao limitar o teor de
sua fala: “não vos digo, tanto, qual filosofia considero a melhor para ser ensinada nos
Mistérios, mas, antes, exponho aquela da qual sei que é a verdadeira, e mesmo esta não
em si mesma, mas apenas o solo e o fundamento sobre o qual tem de ser construída e
entre Luciano (Fichte) e Bruno (Schelling), em que este procura convencer o primeiro da
geral” (1802, cf.V,124) e o apêndice à Introdução 69 da segunda edição das Ideen (1803,
cf. II, 73) terminam apontando para uma ‘nova mitologia’. No mundo antigo, os deuses
dando nascimento a uma nova mitologia 70. Grosso modo, trata-se de um itinerário em
passagem pelos mundos ínferos de Hades até o reecontro com Zeus, o Pai. Schelling, de
fato, ‘mistura’ a linguagem das duas religiões: como nos mistérios de Eleusis e como na
69
Há tradução brasileira no volume Schelling da coleção “Os pensadores”.
70
Sobre essa questão cf. X. Tilliette. La mythologie comprise, ed. cit., p. 25ss.
39
tal” (V, 124), isto é, enquanto abstração, unilateralidade. O que nos interessa, aqui, é o
curto-circuito provocado por essa ‘mistura’, que implica, por assim dizer, uma nova
caráter histórico: nele “o universo em geral é intuído como história” (SW, V 287).
seu propósito é estabelecer a distinção entre dois tempos e suas respectivas consciências:
tempos que se delimitam” (SW, XI, 233). Um único ser em devir e dois tempos
natural, ao passo que a história se explica historicamente como uma ação de liberdade,
Cristo” não são consideradas como um marco arbitrário ou leviano. Ele sabe
perfeitamente que “depois de Cristo não se pode invocar os deuses, só é possível evocá-
los”72. Com o ‘exílio’ dos deuses pagãos, a partir do cristianismo, eles deixam de ser
71
Cf. R.R. Torres Filho, “O simbólico em Schelling”, op. cit..
72
Taubes, Jacob. Del culto a la cultura. Elementos para uma crítica de la razón histórica. Buenos
Aires/Madrid, Katz, 2007, p. 357.
40
considerados em si mesmos, não são tomado como imagens originárias, são antes
si mesmos. Já não são significações puras, são significados fixados, por isso, na medida
em que assim são considerados, são alegorias para o mundo moderno. São, nesse plano,
do eclipse, com os “olhos do mundo desencantado” (XIV 175), o eclipse. O que seria o
mesmo que pôr o passado como presente, o que significaria pôr a barbárie, ou a própria
impossibilidade do presente.
41
em 1795 (1797), para cuja questão, “Que progressos foram feitos pela metafísica desde
alemães para a filosofia, comenta que “não é de estranhar que os alemães, que desde
muito cedo cederam sua pátria como teatro sobre o qual outras nações desempenham seu
rumos políticos, reaparece mais tarde, em outra chave, na Filosofia da arte, e desta vez
uma “mistura da epopéia e do drama” (V, 674), e ele chega mesmo a ampliar essa
sua vida oscilante entre o dramático e o épico, ao dialógico” (IX, 90). A forma romance
é portanto algo de misturado e irresoluto. Para Schelling, ao menos até 1805, época
dessa preleções, teriam existido dois romances propriamente, Dom Quixote e Wilhelm
nação na qual a poesia é popular”. Já Goethe, desfavorecido em seu solo natal, teve de
concepção, da intenção, numa palavra, da invenção, como que por compensação a tudo o
dessa forma, faz da obra algo parcial, ou não-universal (V, 679, 680, 681). Ora, se isso
ainda permanece para Schelling, quando escreve Clara, um diálogo filosófico cosido
prestidigitação, aquilo que num romance é aventura ali se torna aventura íntima, interna,
pois que, exteriormente, a limitação nacional sufocaria a obra em sua realização, espécie
modo de exposição misturado de ambos, ou como ele dizia, nas Preleções sobre o
43
método de estudo acadêmico, “os primeiros protótipos (Urbilder) do estilo histórico são
pelo menos desde 1806, uma nova preocupação, embora não inteiramente nova: desde
Iena, “aprendi a reconhecer (einsehen) que a religião, a crença pública, a vida no Estado
é o ponto em torno do qual tudo se move e junto ao qual têm de ser empregados todos os
esforços que devem abalar essa massa humana morta” 73. Quatro anos mais tarde, nas
Estado74, não poupa suas críticas 75. A idéia de um Estado perfeito, isto é, conduzida em
na terra, a verdadeira politeia está no céu” 76 (VII, 462). No mundo decaído, há seres
livres, mas não unidade com Deus. Se não há unidade divina para eles, há de se procurar
então por uma “unidade natural”, que na verdade é como o “liame que mantém unida a
73
Plitt II 78, Schelling a Windischmann, 16 de janeiro 1806.
74
Para a lista de pessoas que freqüentaram as reuniões, cf.: Stuttgarter Privatvorlesungen. Edição e
introdução de Miklos Vetö. Torino, Bottega d’Erasmo, 1973, p. 240-241.
75
Habermas em seu ensaio “Idealismo dialético en tránsito para lo materialismo” (Teoría y praxis.
Estudios de filosofía social. Madrid, Tecnos, 1990, p. 163-215) dá logo no início um resumo das “três
deduções” schellinguianas do Estado. A primeira, favorável à república democrática, no Sistema do
Idealismo transcendental; a segunda, que estamos expondo aqui, “que conduz à negação do Estado”
(p. 168) ; e a terceira, na Filosofia da mitologia, feita por um “eclesiástico e conservador filósofo do
Estado e da reação” .
76
Cf. Tagebuch 1848, p.
44
humanidade 77. Uma vez que o homem não pode ter Deus para a unidade, ele tem de
Daí a “contradição” interna do Estado: uma unidade externa, natural, física, que
se pretende interna e espiritual. Mais que isso: é uma tentativa de se tornar uma unidade
orgânica e, mesmo que alcance essa meta, como todo ser orgânico, está fadado a nascer,
crescer e morrer. A questão é que ele é meramente essa unidade externa e, no entanto,
para que a mantenha, faz-se necessário evocar “motivos mais altos e espirituais”. O
Estado afirma como realizada a unidade que não está sob seu “poder” (Gewalt); nesse
sentido, uma unidade falsa. Mesmo que se vanglorie de produzir um “estado ético”
(sittlicher Zustand), a unidade sob o Estado sempre será “precária e temporária” (Ibid.).
Seres livres não são compatíveis com o Estado, a despeito dos esforços em prol dessa
segunda natureza, esse estado de natureza, tem dois principais resultados, guerra e
A suprema confusão surge por meio da colisão dos Estados entre si, e o
guerra, que é tão necessária quanto a luta dos elementos na natureza. Aqui, os
77
Ou ainda, o Estado é “uma mera conseqüência da deterioração do gênero humano” (Versão Georgii
das Preleções, p. 174).
45
laços sociais. No Estado não se produz, efetivamente, vida pública e política. Pelo
Que fazer então? Voltar os olhos para quem busca a unidade interna,
historicamente: a Igreja (cf. VII, 464). No que Schelling apura, a situação não é tão
melhor. O resumo dos três primeiros séculos de nossa era, em relação ao cristianismo,
indicaria uma Igreja que se deixou invadir por formas estatais. Ela já se perdeu no
momento em que começou a perseguir os hereges. Ou seja, até aqui o cômputo é de duas
“tentativas unilaterais” falhadas (VII, 464). O protestantismo então? Não entra sequer
será acessível por via religiosa” (Id.). “Não para que a Igreja domine o Estado, ou o
Estado domine a Igreja, mas para que o Estado desenvolva em si mesmo o princípio
religioso e para que a grande aliança de todos os povos repouse sobre a fundação das
convicções religiosas tornadas universais” (VII, 465). Diante dessas considerações sobre
própria natureza, porque antes da Queda o próprio homem era a unidade da natureza. O
divina. O espírito humano comunica-se mais fortemente com a natureza em sua potência
mais profundo da natureza também é pesadume; ela também está de luto (trauert)
por um bem perdido, e por toda a vida engasta uma melancolia indestrutível, porque
tem debaixo dela algo de independente (o que está acima se eleva, o que está
Por conta desse aspecto decaído, atalhemos, em direção a certa ‘lógica’ 79 que
humana. No passo que nos interessa aqui, trata-se de determinar o que é uma vida, ou
antes, como toda existência exige uma condição (fundamento) para ser efetiva,
“pessoal”, inclusive a existência divina. Com respeito a isso, o que distingue Deus do
homem e da natureza está em que “ele tem essa condição em si, não fora de si”.
78
Sobre a melancolia, pesadume e “o véu de tristeza” cf.: X. Tilliette. Schelling. Une philosophie en
devenir. Paris, 1970, t. I, p. 559, nota 17, e a introdução de M. Vetö às Stuttgarter Privatvorlesungen.
Torino, Bottega d’Erasmo, 1973, 41-42.
79
Aqui um exemplo, por assim dizer, mais abstrato dessa ‘lógica’: “Todo não-ente é apenas relativo, a
saber, em relação com um ente (Seyendes) mais alto, mas também tem por sua vez em si mesmo, de
novo, um ente; por isso B e A não podem ser separados.//Assim, se B = ao puro não-ente, então B não
poderia ser para si; ele também tem, por sua vez, novamente, um A em si e é portanto A=B; mas esse
todo (A=B) se relaciona por sua vez, novamente, com um superior como não-ente (Nichtseyendes),
como mero embasamento, mero material, mero órgão ou instrumento, entretanto ele é por sua vez em
si mesmo, novamente, um ente” (Stuttutgart, SW VII 437).
47
Ele não pode suprimir a condição, uma vez que ele, aliás, teria de se
suprimir a si mesmo; apenas pelo amor, ele pode subjugá-la e subordiná-la, para sua
não se desse essa condição, se não se atasse a ela para formar com ela não mais do
que uma personalidade absoluta. O homem nunca chega a ter em seu poder a
condição, ainda que aspire a isso no mal; ela, independente dele, lhe é apenas
nunca poderem se elevar até o ato (Aktus) perfeito. É esta a tristeza (Trauerigkeit)
que se adere a toda vida finita, e se também há em Deus uma condição ao menos
relativamente independente, então há nele mesmo uma fonte de tristeza, que nunca
condição ou do fundamento (Grund) não vem de Deus, mesmo que isso seja
resta essa tristeza: luto por algo que, encerrado em si mesmo, nunca pode vir a existir, e
sem o qual não haveria existência. São “forças encerradas” em si mesmas. Daí, a
possibilidade de afirmar que “a terra inteira é uma única grande ruína, onde moram os
animais como fantasmas, os homens como espíritos” (IX, 33). A tristeza vem de um
passado que não passa. Isso, contudo, não implica uma pura e simples heteronomia.
Deus, é sua ipseidade, mas que se torna, por sua unidade com o princípio ideal, espírito. A
80
Persönlichkeit, mais literalmente, poderia ser vertida como ‘pessoalidade’. Quanto à Selbstheit,
Schelling, nas Preleções de Stuttgart, a toma como sinônimo de Egoismus (cf. VII 438).
48
que se refere a si mesmo (selbstisch), particular (separado de Deus), e essa relação constitui
Daí o presente tomado como a conexão entre os dois. A relação entre a natureza e o
mundo dos espíritos não é transitória (vorübergehend), mas relação eterna. A natureza,
a natureza é seu aspecto corporal, ao passo que o mundo dos espíritos, seu aspecto
pois a alma é o liame natural de corporal e espiritual. A alma atua sem raio refletido
(reflexão) em si mesma, e por isso ela é distinta do espírito. Espírito é o que é para
em necessidade. A unidade portanto não é espírito, não é unidade livre e ciente, mas
A alma, “liame de natureza e mundo dos espíritos” (WA, 236), pode ser tomada
então como a “universal alma do mundo” – liame móvel e vivo entre as potências, um só
mundo dos espíritos e universal alma do mundo. A alma, liame, justamente enquanto
sendo, deve ser subordinado” (VII, 468) 81. Nesse andamento escalonado, a alma como o
que a natureza observa no mundo interior, assim, por sua vez, novamente, aquela
ao que soa por si mesmo, consoante para as vogais (Cf. WA, 251). Essa subordinação
ocorre porque há elevação do espiritual, e vice-versa. Um não ocorre sem o outro, trata-
comum, não é uma dejeção do espiritual (cf. WA, 252, 256-257). Ainda sobre essa
oprimido e agrilhoado, bem como chama de céu a região onde ele mora livre e em
sua própria essencialidade. Assim, se essa potência do começo está rebaixada ao ser
nos equivocaremos quando afirmarmos que, rebaixada ao ser, essa potência superior
– na qual antes de mais nada a essência está manifesta e a força negadora, oculta –
81
Cf. acima a nota 79 de nosso texto. Outra explicação dada por Schelling sobre o impessoal: “O mais
alto nas obras tanto de arte quanto científicas surge precisamente por meio disso de que o impessoal
opera nelas. Denominamos isso em uma obra de arte, por exemplo, a objetividade, pelo que se deve
expressar propriamente apenas a oposição de subjetividade” (VII, 473).
50
dos espíritos. Pois também essa potência superior, ainda que diante da inferior seja
como espírito e vida puros, a franqueadora de todas as suas maravilhas, pode por
sua vez afundar-se diante de uma potência mais alta, tornar-se um material e admitir
propriedades passivas, e, por estranha que possa soar a expressão de que também o
mundo dos espíritos tem um material, uma base (Basis) sobre a qual repousa, fora
de Deus nada pode verdadeiramente existir que não tenha sido criado a partir de um
Pois bem, no essencial, seria esse o conteúdo do segundo livro sobre o presente
das Weltalter 82, se tomamos suas notas como base. Mas ainda há algo mais em que
como relação entre dois tempos, levando em conta sua co-originariedade: “Natureza e
mundo dos espíritos são, portanto, igualmente originários e (mesmo em sua cisão) <pura
e simplesmente> simultâneos” (WA, 252) 83. Na relação do presente (A) com o passado
como o que eternamente porta essa unidade superior e <outra> última” (WA, 255).
dos tempos: passado, presente e futuro. O que se casa com sua doutrina da subjetividade
do tempo 84: “Nenhuma coisa surge no tempo, apenas em cada coisa surge o tempo, de
82
Lembro que Schelling redigiu três versões diferentes do livro do passado. Dos outros, só restou
algumas notas sobre o presente, de onde tirei a maior parte das citações deste trecho sobre natureza e
mundo dos espíritos.
83
Os sinais < > indicam que, no manuscrito, as palavras estavam riscadas.
84
Sobre essa “subjetividade do tempo” em Schelling comparada com a temporalidade hegeliana e
kantiana, ver a longa e precisa nota em P. Arantes, Hegel: a ordem do tempo. São Paulo, Polis, 1981,
p. 118.
51
externo às coisas, pelo que se pode dizer que não se trata de um começo no tempo, pois
cada coisa possui “somente um tempo interno, próprio, nativo e imanente a ela” (WA,
78-79). Daí é possível pensar sobre os “tempos distintos” em simultaneidade, que “são
necessariamente a um só tempo”.
pode ser como é um presente, mas certamente tem de ser, como um passado, ao
mesmo tempo em que o presente; o futuro sem dúvida não é como um ente, um
sendo (Seyendes) agora, mas certamente é com o presente como um futuro ente ao
precisamente essa série de eternidades que chamamos em geral de tempo” (VIII 302). A
exposição schellinguiana do tempo oscila entre apresentação dos tempos cósmicos e dos
tempos humanos, ao mesmo tempo em que considera o passado como o passado divino
Ele é um ser (Wesen) que se encontra no ponto intermédio desses dois mundos,
também dois tempos, sem que haja nele unidade de ambos. O homem, diz Schelling, é
“o imediato ponto de contato” (WA, 254) dos dois mundos. A natureza é para ele
passado, enquanto o mundo dos espíritos é futuro. “O caminho do homem vai, por meio
da natureza, ao mundo dos espíritos” (WA, 253) – a ciência vai do sensível ao supra-
sensível, sem que haja conhecimento imediato do mundo dos espíritos. “A história da
terra é, para ele [o homem], o único ponto inicial de uma história do presente” (WA,
255). E em relação ao mundo dos espíritos o que segue o homem? Schelling responde:
52
Tudo o que também aqui já era ele próprio, e remanesce aqui apenas o que
não era ele próprio. Assim o homem não passa meramente para o mundo dos
espíritos com seu espírito no sentido estrito da palavra, mas também com o que em
seu corpo, carne (Leib), era ele próprio, o que em seu corpo era o espiritual, o
partir da qual se decide a relação entre natureza e significação 85. É no demoníaco que
pode aparecer propriamente a imortalidade, pelo que se delimita o que é morte e se torna
cadáver). Portanto não é um mera parte do homem que é imortal, mas o homem total
segundo seu verdadeiro Esse, de modo que a morte é uma reductio ad essentiam.
Queremos o ser-essência (Wesen), que não remanesce na morte – pois este é o caput
físico, mas o espiritual do físico e o físico do espiritual; para nunca o confundir com
homem é o demoníaco, não uma negação do físico, mas antes o físico essencificado
mesmo mais efetivo do que o homem é neste corpo; é isto o que na linguagem
popular (e aqui vale propriamente: vox populi vox Dei) não se nomeia o espírito mas
85
Para uma história dos usos do termo demoníaco entre gregos e cristãos, ver os trabalhos de M.
Detienne: La notion de daïmôn dans Le pythagorisme ancien (Paris, Les Belles Lettres, 1963) e o
verbete “Demônios” na Enciclopédia Einaudi (Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987, vol.
12, p. 45-57). Detienne prefere usar o neologismo “demônico” em vez de “demoníaco”, já que este
seria de uso mais pejorativo.
53
um espírito; se, por exemplo, é dito que a um homem apareceu um espírito, então é
Schelling não pretende entrar pela Schwärmerei, uma vez que, ao contrário, se intenta
à exaltação fantasiosa (IX 07) 86. Para Schelling, à ciência (filosofia) não cabe pôr-se
anteparos ou calar-se sobre o que é de interesse geral, que se encontra, por exemplo, na
discussão sobre a imortalidade da alma. Curiosamente, uma questão como essa abre a
“O homem”, afirma Schelling, “que não é capaz de opor-se a seu passado não o
tem, ou, antes, ele nunca sai dele, mas vive constantemente nele”(WA, 11). Ocorre aí
uma espécie de anacronismo, que não é propriamente suprimido (em seu sentido
puramente negativo), ou excesso, que nunca pode ser inteiramente superado; enquanto
não houver uma verdadeira cisão que, de dentro do próprio presente, é estabelecida para
com o passado, não haverá propriamente passado. O homem está condenado ao seu
presente, por isso ele pôde dizer que “não podemos ser narradores, mas apenas
pesquisadores” (WA, 9). Põe-se, como tarefa aos pesquisadores, o esforço de narrar.
Portanto a insistência de Schelling sobre o passado, tempo mítico inclusive, não são
votos em prol de uma religio mortis que se traduziria como mergulho no passado
relação com o passado em que o passado se torne apenas evocável, e não propriamente
filosofia transcendental “põe entre parênteses o mundo (o tempo) para proceder ao ato
86
O que cito é uma introdução (IX, 03-10) a um tratado, não escrito, sobre a passsagem, Übergang, da
natureza ao mundo dos espíritos. Não é uma introdução a Clara, apesar de possuir o mesmo tema.
Sobre isso ver a introdução dos editores ao volume IX das obras de Schelling. Esse texto,
tradicionalmente, é editado junto com Clara.
54
de fundar” e a dialética, por sua vez, “põe entre parênteses o ato de fundar para se
apropriar teórica e praticamente do mundo” 87, de modo que se protela (‘suspende’) o ato
87
Ruy Fausto, Marx: lógica e política.Tomo I. São Paulo, Brasiliense, 2ª ed., 1987, p. 35.
55
“Eu tive que roubar todo conteúdo à imaginação poética para dar
menos desde o humanismo da Renascença, foi como que depurada do elemento ctônico
e, em seu caráter geral, olimpicamente vista como “uma nobre simplicidade e uma
grandeza serena” (eine edle Einfalt und eine stille Größe), de modo que suas figuras
pudessem ser esteticamente apreciadas, aparentemente sem a sobrecarga do culto 88. Esse
lado obscuro, no entanto, não foi propriamente eliminado; pelo contrário, retornou em
alemã.
88
É preciso acentuar que as considerações de Winckelmann sobre a arte grega antiga bem como seus
efeitos não se restringiam à Alemanha, mas faziam parte de um debate europeu. Sobre isso, o número
especial (“Écrire l’histoire d’art”) da Revue germanique internationale, n o 13, 2000. Quanto à
reconsideração dessa imagem olímpica como que depurada do ctônico, tomando por base o
Renascimento, cf.: Aby Warburg. “La divination païenne et antique dans les écrits et les images à
l’époque de Luther” (1920), Essais florentins. Paris, Klincksieck, 1990, p. 246-294; e Walter
Benjamin. Origem do drama barroco alemão. São Paulo, Brasiliense, 1984, p. 248ss. Quanto à frase
citada, Winckelmann, Réflexions sur l’imitation des oeuvres grecques en peinture et sculpture. (Edição
bilíngüe). Paris, Aubier, 1990, p. 142.
56
Nosso exemplo tem precisamente como tema a linha divisória entre o olímpico e
mítico, ou seja, a dupla face do narrador como “moderação e ferocidade” 89, olímpico e
ctônico.
espíritos” 90 e, em seguida, seu questionamento insinua que não há o primeiro sem este
ainda moço, à Itália e à Grécia. Essa imagem concentra a Bildung de Serenus, bem como
Quando do alto da Acrópole dirigia o olhar à via sacra, pela qual avançavam
da cátedra de meu colégio, amiúde expliquei aos alunos do último ano que a cultura
89
F. Jesi, O mito. Lisboa, Presença, 1977, p. 63 e Jesi, F. Materiali mitologici. Torino, Einaudi, 2 a . ed.,
2001, p. 200.
90
Lembremos que há uma dupla significação da expressão Geisterwelt, um mundano (mundo dos
espíritos, sobrenatural) e outro acadêmico (mundo de espíritos, supra-sensível).
91
As citações, com pequenas alterações, foram retiradas da edição brasileira: Doutor Fausto: a vida
do compositor alemão Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Trad. de Herbert Caro. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1994, p. 15. Doktor Faustus. Berlin/Darmstadt, Deutsche Buch-Gemeinschaft,
1955, p. 13-14. Para a concepção do mito em Mann ver sua correspondência com Karl Kerényi
57
vieram de uma ‘formação’ nos Mistérios, ele chega ao local em que se invoca Hades
(Eubuleu é seu nome propiciatório, aquele em que por temor se lisonjeia e enaltece o
deus em busca de favores), o deus dos mundos ínferos. Aqui ele se põe e permanece
dentro do círculo do culto e dele conclui, como educador, que a cultura (o mundo do
Na exposição de seu objeto, o pedagogo e narrador faz, portanto, com que o seu
humanismo como um conceito político 92, a despeito de quaisquer boas intenções de seu
agente, é possível concluir não só sobre sua ineficácia, como sobre sua conjugação com
‘paganismo’, o qual por sua vez pode ser contraposto a ‘cristianismo’. Contraposição
que permite voltarmos a Schelling e, aqui nosso objetivo, nos voltar para Clara93. À
primeira vista, é a história de uma jovem viúva católica que, auxiliada por dois amigos,
um pastor protestante e um médico, tem por ‘aventura’, na qual todos se engajam, seu
passagem do mundo natural para o mundo dos espíritos. As conversas são narradas pelo
aparece antes como ruínas significativas dessa tentativa de se bater contra a divisão
social do trabalho. Noutras palavras, trata-se do interesse de Schelling pelo que chamou,
em seu diário, de “Popularität” 94, isto é, uma prosa que fosse expressiva do tema já
místicas” (mystische Vorstellungen) da teosofia. Mas, diz Schelling, isso teria de ser
não desistisse. A fim de que tal aclaramento, uma tal empreitada esclarecida e
o grande fidalgo” (Nicht den großen Herrn spielen)95. Noutros termos, por meio da
94
Philosophische Entwürfe und Tagebücher 1809-1813. Philosophie der Freiheit und der Weltalter.
Edição de L. Knatz, H.J. Sandkühler e M. Schraven. Hamburgo, Felix Meiner, 1994, p. 145.
95
Idem.
59
distinção entre o acadêmico e o popular bem como ao que aí está suposto, a mera
filosóficas, do qual retiram aquelas mais apropriadas para uma tese qualquer que
queiram comprovar sobre a filosofia de Schelling 96. Ou ainda, fazem de Clara, no que
aqui, traçar um percurso diferente desse. Não será meu interesse analisar os temas
propriamente, tenciono na verdade fazer uma espécie de análise ‘formal’ de Clara, o que
não implica completo desligamento da filosofia, lidando com questões como: Qual é a
de uma conversação? O que é possível dizer dos personagens dentro dessa forma?
Caberia algum tipo de comparação com obras da literatura alemã? É com isso que nos
pomos às voltas com uma leitura de Clara. Uma tentativa de compreender sua
composição. Caso não se leve isso em conta, sua construção compositiva, corre-se o
risco de, por assim dizer, traduzir literalmente expressões idiomáticas, ou cair em fintas.
96
Só conheço propriamente uma exceção, o livro de Sara Nosari (La favola di Clara. Paradigma
schellinguiano e pedagogia della morte. Milão, Mursia, 1998), mas que me parece uma leitura
equivocada, excessivamente marcada por um certo pathos da finitude.
60
autorizado a predicar, a convencer em favor de uma crença, mas não é desse modo que
ele se põe em sua narrativa. No plano privado das conversações, ele dialoga; no plano
público da escrita, ele narra. Se dialoga, não cabe predicar. Se narra, o que faz então?
o espírito e Clara, a alma, o liame entre os dois. O que faz lembrar, embora não em
é Aufklärung?”. Nos termos de Kant, temos um Seelesorger, homem que cuida e conduz
as almas, e um médico, homem que ajuíza sobre o corpo de outros. Nos termos de
com alguém em meio a uma crise pessoal, de modo a auxiliá-la a ficar de pé sobre as
próprias pernas. Em parte, eles agem como especialistas, mas, tomando a distinção
kantiana, não fazem uso privado da razão, não falam em nome de nenhuma instituição.
São seres racionais que pensam livremente sobre os assuntos de sua especialidade, estão
como que desatados seja da ‘máquina’ estatal, seja da Igreja. Portanto os usos livre e
universal da razão, em Clara, são manifestos pelo andamento e teor das discussões.
próprio ato narrativo. Ao que parece, há um legítimo uso crítico da razão. Há, na
Aufklärung.
Ora, tomar Schelling por um iluminista, antes de mais nada, parece um perfeito
contra-senso, do qual é certamente impossível discordar. Mas tomá-lo como alguém que
se ocupa com sua própria época, isto sim já é mais sensato. Schelling, na verdade, não
61
faz nenhuma negação abstrata da Ilustração, e tampouco pode ser tido por um
vem junto com um “princípio bárbaro” que, precisa o filósofo, “vencido mas não
aniquilado, é o embasamento de toda grandeza e beleza” (VIII, 343). Salvo engano, aqui
se dá o enjeu político e ‘estético’ desse escrito, na medida mesma em que a relação entre
Clara.
geral de nosso texto: o pastor e o médico, duas figuras típicas do douto, se encontram
com uma viúva, que carece de cuidados profissionais. No entanto não ocorrem duas
de modo tal que a competência profissional desses dois homens abstratos, afinal são
maneira amadora – o poder religioso e o poder médico, ao que parece, estão suspensos.
que poderia se dar como uma luta, encontro de inimigos, dá-se conforme afinidade 97 ou
Gesittung 98, bons modos, boa criação, urbanidade. Evitam-se os extremos: nem
jamais se apaga, ou mesmo é esquecida, já que a nobre tem nome, não os burgueses. A
97
Cf. Kant, Antropologia, VII, 176-177.
98
Para uma análise magistral da Gesittung em Bachofen, cf Furio Jesi., “Bachofen e il rapporto con
l’antico” Bachofen. Torino, Bollati Boringhieri, 2005, p. 04-57.
99
Na primeira parte do relatório de 07 de maio de 1794, apresentado em nome do Comitê de Salva ção
Pública, Robespierre expõe essa oposição, que serve de base para culminar no triunfo da Revolução e,
com isso, estabelecer o culto do Ser Supremo e um “sistema de festas nacionais”, Cf.: M. de
Robespierre, Discursos e relatórios na Convenção. Rio de Janeiro, Contraponto/EDUERJ, 1999, p.
163-190.
62
Eles são representantes (Vertreter) que exercem funções, sem que os possa prender em
determinações de conteúdo. Evocam com isso figuras como Asclépio, ligado à medicina,
conciliar-se com a natureza, pela qual, aliás, declara horror e a qual define como “essa
noite eterna, essa fuga da luz, esse ser eternamente em luta que nunca é” (IX, 27). O
médico, por suas declarações, algumas vezes quase exaltado, procura iniciá-la na
com a natureza para então elevar-se às significações do mundo espiritual. Pelos signos
funestos, que despontam ao longo da narrativa, e por alguns momentos em que Clara é
chega mesmo a comentar que, na noite de natal, “havia em seu ser, a noite toda, algo de
nela” (IX, 41). Clara educa-se, e é educada, para tornar-se estranha à vida e familiar à
anagogia, mistagogia e pedagogia), quase como fosse uma composição musical em que o
desenvolvimento não chega a um gran finale, uma vez que o leitor não tem acesso à
hora mortis. Sem clímax, ocorrem repetições que, a cada vez, produzem sentidos:
100
Inclusive em seu sentido platônico, em que se conjugam diálogo, dialética, retórica e política.
Sobre o assunto cf.: A. Tordesillas, “Platone e la psicagogia”, in: M. Migliori (ed.). Interiorità e
anima: la psychè in Platone. Milano, Rusconi, 2006, p. 293-306.
63
não é de todo incompatível, começa a se ver, com sua forma. É ao leitor, caso queira,
que incumbe cumprir o prometido. Muito provavelmente, imagina-se, não seria um fim
gorgônico à maneira do jovem Werther, tal como narra o “editor” das cartas: “Disparara
101
na cabeça, acima do olho direito; o cérebro era expelido” . Talvez Clara adoeça e
paulatinamente vá minguando?
As aberturas dos dois textos, Werther e Clara, são quase uma oposição. A
Werther na segunda carta, “ocupou minha alma inteira, tal como a doce manhã
102
primaveril, de que desfruto com todo meu coração” . Serenidade que se reverte em
aquiescência, uma vez que ele se abisma na beatitude do espetáculo da natureza: “eu
103
sucumbo ao poder violento da majestade desses fenômenos” . O início com a
encruada de morte: um futuro junto com o sentimento sublime de ser aterrado. O outono
promessa de vida, mas apenas na medida em que ela cinde o instante, de modo que o
tempo se inicia apontando para a vida como passado e para morte como futuro, o mundo
dos espíritos. O presente de Clara é tensionado entre o passado e o futuro. Seu júbilo
tempo do anelo, com que vontade de viver preenches o coração!”, “O Frühling, Zeit der
101
O fragmento foi publicado pela primeira vez em 1862, depois da primeira edição das obras
completas de Schelling. Só foi republicado em 1946 pela reedição das obras completas Nachgelasse
Band (p. 272-275), que citamos como WA.
102
“Eine wunderbare Heiterkeit hat meine ganze Seele eingenommen, gleich den süßen
Frühlingsmorgen, die ich mit ganzem Herzen genieße”.
103
“Ich erliege unter der Gewalt der Herrlichkeit dieser Erscheinungen”.
104
Trata-se do fragmento “Der Frühling”, editado no Nachlaβband das obras completas de Schelling
(WA, 272-275). Ali consta anotado pelos editores: “Projeto para a continuação do diálogo Clara
(início do quarto diálogo)”.
64
Sehnsucht, mit welcher Lebenslust erfüllst du das Herz!” (WA, 272). O júbilo, aqui,
para cima – sem que essa tensão se resolva, pelo menos inicialmente.
Para Werther é difícil viver e é difícil morrer 105. O gesto de Werther é gesto de
seu amor por Lotte. Em seguida, mata-se. Mas o suicídio não é seu ‘verdadeiro’ gesto,
afinal são doze horas de agonia, que em alemão, aliás, se diz Todeskampf, luta de morte.
Daí se pode dizer que não houve preparação exitosa para a morte. É preciso que a morte
seja horrível, gorgônica, para que a renúncia, aqui fruto do direito, se espelhe nela. Aqui
ninguém se liberta, talvez se tenha uma promessa de libertação, que começa como
recusa, ainda que passiva. O sacrifício se faz mais evidente, na obra de Goethe, na figura
acusa sem significado: uma denúncia vazia portanto, e, por isso mesmo, surge esperança
onde não há nenhuma. Não há preenchimento do futuro, mas uma antecipação vazia. Em
Clara, por sua vez, se é lícito falar em revolta, ela cabe ao narrador. Em seu
procedimento ele resfria a oposição dramática pelo distanciamento épico: ele mistura
reflexão, que se ganha com o expediente épico, com a reflexão do diálogo dramático (e
conflitos. Formalmente, ele produz um drama apaziguado pelo gesto épico. O gesto de
105
Sobre Werther, ver: F. Jesi, Spartakus. Simbologia della rivolta. Torino, Bollati Boringhieri, 2000,
p. 76-81.
106
Sobre a docilidade (Fügsamkeit) como revolta, ver o ensaio “Parataxis” de Adorno, Noten zur
Literatur III. Frankfurt, Suhrkamp, 1975.
65
Clara é distinto, e não pode ser observado sem levar em conta o narrador. A fala de
distensionada com a imagem da beatitude da alma, o liame vivo de corpo e espírito. Soa
como um canto de despedida, pois ela parece pronta e decidida a morrer. Para Clara foi
fácil viver enquanto casada; com a viuvez, interrupção do laço social do matrimônio,
tornou-se difícil viver. Ela sobrevivia, mas sempre como quem estivesse prometida para
a morte, desde que nos fiemos, é claro, no narrador. Terminado o fragmento Primavera,
burguês, nem uma moça das grandes massas. A aristocracia é quem deve ser sacrificada.
Se lembrarmos que a tragédia antiga 107 era parte de uma festa cívico-religiosa em
que se comemorava a democracia, que nela se tem uma seqüência de mortes que leva
(morta a família real, não há continuidade do poder, basta pensar na família mítica de
Édipo), que a tragédia antiga era um modo de retomar e repetir o gesto político da luta
símbolos míticos e símbolos de poder), então é possível dizer que esse gesto trágico é
retomado, com as diferenças que apontamos, pelo narrador de Clara. A ação narrada de
sem a vida pública do teatro (nem a festa cívico-religiosa dos antigos, nem o coup de
107
Cf. W. Benjamin, op. cit., p. 129-141.
66
Schelling, o presente só tem início quando o passado, princípio bárbaro, é “vencido mas
beleza” (VIII, 343). Não há beleza sem princípio bárbaro: assim como não há presente
sem que o passado tenha sido vencido. Em resumo, na evocação sacrificial do narrador,
salvo engano, está o mordente de Clara. Ele evoca e exorciza a morte, espécie de
Ele governa o todo e cada um. Seus expedientes não só introduzem como também
tal, interrompe a força e presença da morte, o distanciamento que se ganha, aqui, toma
filosofia, lamenta-se:
Por que é assim impossível que aqueles que hoje filosofam não escrevam
como falam, pelo menos em parte? Essas palavras artificiais horríveis são, pois,
absolutamente necessárias? A mesma coisa não se deixa dizer de nenhum jeito num
qualquer pessoa cultivada; esse é um pouco o sentido de universal aí, bem à maneira
kantiana do mundo letrado, Leserwelt, no opúsculo a que nos referimos acima. Chegam
até mesmo a conjecturar que o romance talvez seja o sucedâneo moderno do que, entre
os antigos, foi o diálogo. Passa-se de uma comunidade efetiva para uma ‘comunidade
conversa. A ironia, então, não se reduz a um piscar de olhos para o leitor, como quem
diz ‘Eu consegui!’ Não, a ironia se deposita, em seu sentido enfático, na forma,
conforme a relação entre o épico e o dramático que descrevemos acima. É uma narração
e, enquanto tal, é uma evocação. Narra-se uma ação que, se é um sacrifício, protótipo do
drama em sentido amplo, é uma invocação. Esta é uma participação, ao passo que a
narração é distanciamento que, porque paralela à invocação que evoca, se faz também
paródia: o ponto crítico por excelência, e nesse sentido é uma pesquisa, uma exposição
do tempo presente. Entre as implicações dessa forma está o seu jogo dos tempos. Mas
para que isso se mostre melhor, releiamos a abertura de nossa narrativa. Insistamos, tudo
se passa sob o signo da morte: outono, dia de finados, assiste-se à celebração católica
num cemitério. Isso que se vê e é descrito, o ritual público pelos mortos ou “a vida
médico. Esse primeiro episódio tem por título “O pastor narra”, citemos a introdução
narrativa:
No dia de finados, íamos à cidade, o médico e eu, para voltar à tarde com Clara,
mesmo modo que tínhamos diante de nós a bela cidade, que ficava
abertura, que dava para uma larga planície, nós vimos uma multidão de pessoas se
ajuntando e dirigindo-se para o lado de uma encosta suave. Logo presumimos aonde
68
cidades católicas à memória dos falecidos. Logo descobrimos todo o espaço ficar
pressagiosamente iluminada pelo sol de outono brilhando esmaecido. Visto que nos
afastamos dos caminhos batidos, logo vimos uns bons grupos se ajuntarem em torno
de diferentes túmulos: aqui, moças em flor, de mãos dadas com irmãos e irmãs
caçulas, punham coroas no túmulo de uma mãe; ali, uma mãe de pé junto ao túmulo
dos filhos que se foram cedo, onde não era preciso água benta para tomar o lugar
das lágrimas, havia sim um pranto santificado que, vindo da doce melancolia (süβe
encerrassem um amigo que tenha ido embora cedo, ou uma amiga que não será
os irmãos, os filhos, para os pais e, nesse instante, eram novamente uma família;
apenas a amada, de quem a morte roubou o amado, não podia mostrar-se nesse
orvalho matutino, umedecer com suas lágrimas o lugar que amava. O bonito
delicada e engenhosamente ornado com flores, que somente mãos amantes o devem
ter efetuado. “Quão comovente é esse costume”, disse meu companheiro, “e como é
oferecer aos mortos essas flores de outono, que na primavera irão brotar suas flores
alegres, para fora de suas câmaras escuras, em eterno testemunho da vida que
Logo depois de nossa chegada, ela ficara tão repleta que uma longa fila, longe das
portas, se havia formado por sobre as sepulturas. Nós nos pusemos ao lado de uma
69
pelos movimentos daqueles que estavam do lado de fora. Nós nos sentamos
absorvidos em serena melancolia (stille Wehmuth). Quantos dos que caminham aqui
por sobre essas sepulturas irão repousar, neste mesmo ano, embaixo delas?
Por onde andaria nossa amiga? Acreditamos por um momento tê-la visto,
com ela no mosteiro beneditino, situado numa colina do outro lado da cidade, onde
em todo caso devíamos achá-la na hora da partida. Vimos que era hora, e nos
afastamos em silêncio.
Na cidade, encontramos tudo vazio e ermo; nós nos detivemos por um curto
tempo, para nos refrescar um pouco, e subimos em seguida para o belo mosteiro. Na
tempo privado e tempo coletivo se enredam. O narrador como que estaca diante da
“paisagem” e cisma. Não é o mundo natural que abre suas portas, uma vez que já são
uma contraposição entre aquele que observa e as formas naturais, anteriores a um estado
civil. É antes um natural domado e domesticado que aparece diante dele. Tudo já parece
natural, ele se contrai em enigma. Há a cidade e seu cemitério (vida e morte): um pedaço
ou recorte do espaço que, cadenciado no tempo de uma viagem, é tomado como objeto
do olhar e consideração do narrador. Junto com a cidade, à qual se segue uma planície,
70
vê-se uma multidão que, aos poucos, se dirige em cortejo a um cemitério no dia de
categoria pré-política, se ajuntando à roda dos túmulos. Sua ‘colonização’ se realiza pela
ocupação bem ordenada das pessoas, seus arranjos de flores nas sepulturas, criando um
Gemüthlichkeit. E não à-toa, ocupando o meio do terreno, está a capela onde se realiza a
liturgia; é por assim dizer o centro da comunidade objetivado, que, por sua vez, é
disposição física e ética, são como que carregados de significação 109, que não se
comunica. Como a natureza muda e triste, é o aspecto pitoresco e ruinoso de “uma velha
pedra tumular coberta de musgo, cujos traços já eram há muito ilegíveis”, justaposto à
observação do ofício, que desperta no narrador uma “serena e quieta melancolia” (stille
pergunta pelos que irão morrer. A linguagem das ruínas tem o mesmo pesadume da
natureza.
A festa, dia feriado em que estão suspensos os trabalhos cotidianos, apaga a vida
material da cidade, deixando-a fora do alcance dos olhos. Os cidadãos livres da faina
atuam e cumprem, oficiantes, a função política e religiosa (uma “ação simbólica”, Cf. V,
108
Segundo a Legenda aurea, de Jacopo de Varazze, o dia de finados foi instituído por santo Odon
(Odilon), abade beneditino de Cluny, no século XI. O feriado se liga ao purgatório (Fegefeuer), como
purificação dos mortos, à oração dos vivos em favor dos falecidos e à intercessão dos santos pelas
almas destes últimos (o dia de todos os santos é primeiro de novembro). A ordem beneditina, à qual
pertence o mosteiro em que os personagens de Clara se encontrarão, foi fundada no século VI. Com
seu principal centro em Cluny, uma primeira reforma da ordem, observando maior rigor na vida
monástica, ocorreu no século X.
109
Como já indicamos, há no livro todo, retomado em dimensões diferentes, um procedimento de
acumulação de signos que só ganham alguma clareza com o decorrer da narrativa (por exemplo, o
episódio do retrato, na primeira parte).
71
antiga 110: repete-se, em princípio, nesses instantes o ato de fundação ou criação de uma
coletividade, cria-se um centro que permite delimitar interno e externo, mas centro que
permeia todas as partes, como uma Idéia mitológica. Uma visibilidade do que ‘vale a
pena ser visto’ e se dá a ver de maneira equivalente à Idéia. Nesse dia, a cidade dos
vivos morre, para viver na necrópole. O que se vê, “a vida sobre os túmulos”,
médico, com a imagem das flores e ressurreição, o futuro cumprido e redimido. Mas, a
Apesar das arestas aparadas pelo narrador, resultado de seu proceder por Gesittung, há
que falamos sobre o papel de condutor do narrador tem validade, pode-se concluir que
Prenuncia-se com isso que Clara, jovem senhora aristocrata, já não se confunde
inteiramente com o passado católico, embora este não seja apresentado em estado puro.
como “um resumo simbólico da sociedade”111, de modo que a atitude característica dos
110
Cf. K. Kerényi,”Qu’est-ce que la fête?”, La religion antique. Genebra, Georg, 1957, p.43-68 e
Furio Jesi, “La festa e la macchina mitologica”, Materiali mitologici. Torino, Einaudi, 2001, p.
81-120.
111
Philippe Ariès. O homem diante da morte. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 2ª ed, 1990, vol. II, p.
547 e 548. Tomo por base, principalmente, os capítulos X (“O tempo das belas mortes”) e XI (“A
visita ao cemitério”). A pesquisa de Ariès se restringe à França e ao mundo anglo-saxão, o que não
impede a percepção de semelhanças entre o que ele descreve e o trecho inicial de Clara. Além disso,
resumindo o argumento que nos interessa aqui, e sendo historicamente mais preciso, Ariès relata a
passagem de uma prevalência da “administração policial” (salubridade e higiene pública), associada a
uma “vocação civil” (p. 548), a uma preponderância da função privada (afetiva) no uso do cemitério.
72
homens diante da morte teria sido a de indiferença dos sentimentos, ao passo que a partir
científica, e mesmo sem eficácia, pois o narrador assiste ao ver mas não vê o que vêem.
Evoca-se, em suma, a festa antiga, o inatual, no ponto de partida de uma reflexão sobre
pastor narra, uma vez que só se narra o passado, separado do presente. Nesse sentido,
Schelling como que toma por mote um dito de Nietzsche sobre os alemães, “eles são de
anteontem e de depois de amanhã – eles ainda não tem hoje”114. Em outras palavras, eles
Também sobre essa mudança de atitude diante da morte: “O exercício da memória torna-se de fato luta
contra a morte, busca desesperada de um vínculo com a eternidade que seja estranho à morte. Basta
pensar num exemplo facilmente verificável: no mundo ocidental moderno a prática de visitar os
cemitérios é agora freqüentemente motivada pelo desejo de alimentar a recordação dos defuntos. O
túmulo perdeu inteiramente seu significado de lugar posto no limiar do Além, de ponto de intersecção
entre reino dos vivos e reino dos mortos, para tornar-se apenas estímulo da memória; o atual costume
da visita aos túmulos está exatamente em oposição ao antigo culto dos defuntos: a sepultura é agora
valorizada em oposição à morte, como socorro da memória que combate a morte” (Furio Jesi.
Spartakus. Simbologia della rivolta. Torino, Bollati Boringhieri, 2000, p. 10.)
112
Ariès, História da morte no Ocidente: da Idade média aos nossos dias. Rio de Janeiro, Francisco
Alves, 1977, p. 11.
113
Ariès estabelece o seguinte desenvolvimento, que vai do século XVIII ao XIX, do passeio como
lazer público: primeiramente, os jardins, que são base para os cemitérios, que por sua vez são base
para os parques (ele dá o exemplo do projeto e realização do Central Park de Nova Iorque).
114
F. Nietzsche, Além do bem e do mal, §240. São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 132.
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inteiramente das relações com os vivos. O que parece ser seu único vínculo erótico a
liga à morte, seu marido morto, Albert. Sua fidelidade a faz íntima da morte. Seu
alheamento – quase atopia, limiar entre o vivo e o morto – já é algo do demoníaco (das
convivência com os vivos, Clara é demoníaca: nem a vida nem a morte a possuem
“alma corporal” (leibliche Seele), na vida (IX, 52) ; “o espiritual do físico e o físico do
espiritual” (VII, 476). O demoníaco aí aparece na agonia, na luta de morte. A morte, por
assim dizer, propriamente subtrai, a Clara, a presença de Albert, seu marido; já esse
narrador, marcada por ironia e paródia, Clara como ‘aquilo que passou’ deve morrer.
construção dessa forma. Clara é um modelo, ensaiado por Schelling, para tornar
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