Memorial Do Convento Contextualizacao
Memorial Do Convento Contextualizacao
Memorial Do Convento Contextualizacao
Memorial do Convento
I – Contextualização
Memorial do Convento evoca o período da história portuguesa respeitante ao reinado de D. João V, no
século XVIII, procurando uma ponte com as situações políticas de meados do século XX. Reescreve essa época
de luxo e de grandeza da Corte de Portugal, que procura imitar o esplendor da Corte francesa do Rei-Sol, Luís
XIV (reinado de 1643-1715). O poder absoluto e o iluminismo que configuram este século das luzes vão marcar
os seus gostos estéticos e as mentalidades de uma forma decisiva.
Em Portugal, D. João V deixa-se influenciar pelos diplomatas que o cercam – intelectuais
estrangeirados (D. Luís da Cunha, Alexandre de Gusmão, Francisco Xavier de Oliveira – o Cavaleiro de
Oliveira – e Luís António Verney) – e pela riqueza vinda do Brasil.
O descobrimento no Brasil de grandes jazidas de ouro de aluvião permitiu a resolução de alguns
problemas financeiros e levou o rei a investir no luxo dos palácios e das igrejas. Ao querer ultrapassar a
magnificência do Escorial de Madrid e do Palácio de Versalhes, e em acção de graças pelo nascimento do seu
filho, manda construir o convento de Mafra, com a inclusão de um grandioso palácio e uma extraordinária
basílica. Por isso, o principal ministro e homem de confiança, o cardeal da Mota (D. João da Mota e Silva),
solicita ao Papa o título de “Fidelíssimo” para o rei português, que adquire o cognome de o Magnânimo, devido
às grandes obras no campo da arte, da literatura e da ciência, como o referido Convento de Mafra, o Aqueduto
das Águas Livres de Lisboa, a Real Academia Portuguesa de História, a introdução da ópera italiana, com
Domenico Scarlatti 1 (1685-1757), e a Companhia de Paheti.
D. João V é aclamado rei a 1 de Janeiro de 1707, quando a situação económica do país se apresenta
extremamente grave e Portugal se encontra envolvido na Guerra da Sucessão de Espanha. Casa a 9 de Julho de
1708 com D. Maria Ana da Áustria, irmã do imperador austríaco Carlos III. Lisboa, ao receber D. Maria Ana de
Áustria para consorte do monarca, apresenta Arcos de Triunfo com alegorias do Sol (símbolo do Rei) do qual se
aproxima uma Águia (símbolo da esposa austríaca), ave que o fita, sem sofrer com os seus raios.
A vida sentimental de D. João V está, entretanto, marcada por várias relações: com a madre Paula
(Paula Teresa da Silva), do Convento de Odivelas, com quem se envolve durante vinte anos e de quem tem um
filho, o infante D. José, que chega a inquisidor-mor; com D. Madalena Miranda, uma freira do mesmo
convento, que lhe dá como filho o infante D. Gaspar, mais tarde arcebispo de Braga; e com uma francesa, de
quem nasce o infante D. António.
1
Domenico Scarlatti (1685-1757), filho do compositor Alessandro Scarlatti (mestre de capela da corte da rainha Cristina
da Suécia), foi, em Lisboa, desde 1720, professor da infanta D. Maria Bárbara, filha de D- João V. Após o casamento desta
com o príncipe Fernando VI de Espanha, Scarlatti acompanhou-a na Corte de Madrid, onde faleceu. Famoso pelas
modernas técnicas do piano e do cravo, Scarlatti teve, entre os seus alunos, Carlos Seixas (1704-1742), um dos mais
importantes compositores portugueses.
Enquanto o rei se interessa pela ostentação e esplendor da Corte ou pelas suas fugas sentimentais, a
Inquisição ocupa-se com a ordem religiosa e a moral, estendendo a sua acção aos campos culturais, sociais e
políticos. O rigor e as perseguições do Santo Ofício aumentam no seu reinado, com as vítimas a serem não só os
cristãos-novos e os que cometem delitos de superstição, feitiçaria, magia, crença sebastianista, heterodoxia, mas
também os intelectuais que, muitas vezes, se vêem forçados a fugir para a Europa culta, donde trazem ideias
novas. O dramaturgo António José da Silva, o Judeu (1705-1739), que Saramago refere no fim de Memorial do
Convento, é uma das vítimas da Inquisição.
O Absolutismo
Doutrina política, o absolutismo defende a concentração dos poderes legislativo, executivo e judicial
numa só pessoa. O absolutismo régio estabeleceu-se um pouco por toda a Europa Ocidental, a partir da 2.ª
metade do século XV. De acordo com os princípios do absolutismo do século XVIII, o poder do rei provém de
Deus, o que lhe permite legislar como entende. Só com as lutas liberais (1820-1834) desaparecerá a monarquia
absoluta em Portugal.
O Iluminismo
Movimento cultural e intelectual, na Europa dos séculos XVII e XVIII, o iluminismo pretendeu dar à
razão a capacidade de iluminar ou explicar racionalmente os fenómenos naturais, sociais e religiosos.
Em Portugal, este movimento tem a sua primeira fase com D. João V e os diplomatas que o cercam,
como D. Luís da Cunha, Alexandre de Gusmão, Francisco Xavier de Oliveira (o Cavaleiro de Oliveira) e Luís
António Verney.
Da mescla do absolutismo com o iluminismo surgiu a despotismo esclarecido de D. José e do Marquês
de Pombal.
Algumas referências deste movimento são Descartes, Voltaire, Jean-Jacques Rousseau, Montesquieu,
imperadores Frederico II da Prússia e Catarina II da Rússia, Diderot, D’ Alembert e Mirabeau, Locke e Newton.
A Inquisição
Também conhecida por Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição, criada pelo papa Gregório IX, no século
XIII para combater as heresias religiosas que aparecem pela Europa, é confiada aos jesuítas e aos dominicanos,
na dependência da Santa Sé. Este tribunal instala-se, no século XIII, em Espanha, na Alemanha e em França, e,
no século XVI, no reinado de D. João III, em Portugal. Com frequência, serve o poder instituído, embora a sua
acção esteja orientada para o combate às várias heresias e desvios religiosos, incluindo a censura aos livros, às
práticas de adivinhação e feitiçaria, à bigamia. Com o decorrer do tempo, passa a ter influência em todos os
sectores da vida social, política e cultural, e desde que haja uma denúncia o acusado está sujeito a toda a sorte
de torturas físicas e mentais, incluindo a perda de bens e a morte. A força do Tribunal do Santo Ofício é
enorme, mas acaba por criar conflitos entre os reis e os jesuítas, até que em 1821 é extinta.
Memorial do Convento é uma narrativa histórica que percorre este período de aproximadamente 30 anos
da história portuguesa, no reinado de D. João V, entrelaçando personagens e acontecimentos verídicos com
seres conseguidos pela ficção. Saramago fundamenta-se na realidade histórica da Inquisição, da família real, do
padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão (inventor da passarola voadora) e de muitas das figuras da
intelectualidade e da política portuguesas, embora ficcionasse a sua acção.
II – A Obra
1. Título / Conteúdo
O título Memorial do Convento apresenta uma carga simbólica quer enquanto sugere as memórias –
evocativas do passado – e pressuposições existenciais quer ao remeter para o místico e misterioso. Ao lado da
história da construção do convento, com tudo o que de grandioso e trágico representou, surge o fantástico
erudito e popular que permite a realização dos sonhos e as crenças num universo de magia.
Em Memorial do Convento, o romance histórico convive e entretece-se com o universo mágico criado
pela ficção. O Convento de Mafra liga-se ao sonho dos frades que aproveitam a oportunidade de terem um
convento, mas reflecte, sobretudo, a magnificência da Corte de D. João V e do poder absoluto, que se contrapõe
ao sacrifício e à opressão do povo que nele trabalhou.
A construção do Convento de Mafra, o espectro da Inquisição, o projecto da passarola voadora do
Padre Bartolomeu de Gusmão e um conjunto de outros factos que sucederam durante o reinado de D. João V
são corpo a este memorial. Com as memórias de uma época, é um romance histórico, mas simultaneamente
social, ao fazer a análise das condições sociais, morais e económicas da Corte e do povo.
Podemos classificar a obra Memorial do Convento como um romance histórico, um romance social e de
intervenção e ainda como um romance de espaço:
Romance de Espaço Se optarmos por uma classificação de acordo com os elementos estruturais da
narrativa – personagem, espaço e acontecimento – recebe a denominação de romance de espaço ao
representar uma época, interessando-se não apenas por traduzir o ambiente histórico mas também por
apresentar vários quadros sociais que permitem um melhor conhecimento do ser humano. A riqueza do
cenário, reconstruindo Lisboa e diversas povoações em seu redor, permite observar: as preocupações
com os factos históricos e as vivências do povo humilde; espreitar a intimidade e os deveres conjugais –
“duas vezes por semana” – do rei D. João V, que necessita de herdeiros; assistir à construção de um
convento em Mafra; recordar a passarola voadora do Padre Bartolomeu Lourenço; ou reviver as
perseguições religiosas e políticas da Inquisição. Sempre que pode, uma voz narrativa insurge-se
sarcasticamente contra os repressores: