Macaco de Pedra, O - Jeffery Deaver
Macaco de Pedra, O - Jeffery Deaver
Macaco de Pedra, O - Jeffery Deaver
Jeffery Deaver
O Macaco de Pedra
TRADUÇÃO DE Alves Calado.
EDITORA RECORD
RIO DE JANEIRO · SÃO PAULO
2003
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores
de Livros, RJ.
Deaver, Jeffery D329m O macaco de pedra Jeffery Deaver.
tradução de Alves-Calado.
Ilustrações César Lobo. — Rio de Janeiro: Record, 2003.
ISBN 85-01-06377-0
1. Ficção policial. 2. Romance americano. I. Alves-Calado, Ivanir,
1053. II. Título. III. Série.
031538
CDD — 813 CDU-821.1U(733
Título original norte-americano: The stone monkey
Copyright © 2002 by Jeffery Deaver Projeto gráfico de miolo:
Glenda Rubinstein Ilustração: César Lobo Todos os direitos
reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de
quaisquer meios.
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente
para o Brasil adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE
SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 — Rio de
Janeiro, RJ-20921-380-Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade
literária desta tradução Impresso no Brasil
ISBN 85-01-06377-0
PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL
Caixa Postal 23.052
Rio de Janeiro, RJ -
0922-970
Contracapa
Apresentado aos leitores no romance O colecionador de ossos, o
detetive Lincoln Rhyme surpreendeu a todos com sua capacidade de
investigação forense sem paralelo — totalmente realizada de uma
cadeira de rodas. Famoso criminologista, paralisado do pescoço para
baixo, Rhyme compensa a deficiência física com seu cérebro e os
braços e as pernas de sua protegida, a bela e inteligente Amelia
Sachs, que faz por ele as investigações de campo.
Recrutados pelo FBI e o Serviço de Imigração, os dois localizam
uma embarcação que se dirige para Nova York com dúzias de
imigrantes chineses ilegais em seu porão, todos a cargo do notório
assassino e contrabandista de pessoas conhecido como Fantasma. Na
iminência de ser capturado, o vilão explode o barco, matando a
maior parte dos passageiros e tripulantes, e foge.
Lincoln e Amelia, então, se veem numa corrida contra o tempo:
encontrar os sobreviventes antes que o Fantasma os encontre.
Nas 48 horas seguintes, Rhyme e Sachs empregam todas as suas
forças numa caçada humana pelas ruas de Nova York. Um romance
cativante e empolgante, um dos melhores deste mestre da ficção
policial e de suspense.
Aos que perdemos em 11 de setembro de 2001 — cujo único
crime foi seu amor pela tolerância e pela liberdade, e que estarão
para sempre em nossos corações Nota do Autor
Estou incluindo aqui algumas informações que podem ser
úteis aos leitores não familiarizados com alguns aspectos da vida
chinesa descritos no livro.
GEOGRAFIA: A maior parte dos imigrantes ilegais chineses
para os Estados Unidos vem da região litorânea do Sudeste da
China, geralmente de duas províncias: no extremo sul, a
Província de Guangdong, onde se localiza Hong Kong, e, logo ao
norte dela, a Província de Fujian, cuja principal cidade é Fujou,
grande centro marítimo e provavelmente o ponto de embarque
mais popular para os imigrantes ilegais que iniciam a jornada
para outras terras.
LINGUAGEM: A escrita chinesa é a mesma em todo o país,
mas no falar existem grandes diferenças de uma região para outra.
Os principais dialetos são o cantonês, no Sul, o minnanhua em
Fujian e Taiwan e o mandarim, ou putonghua, em Pequim e no
Norte. As poucas palavras chinesas que uso no livro estão no
dialeto putonghua, que é a língua oficial do país.
NOMES: Os nomes chineses são tradicionalmente dados na
ordem inversa à que usamos nos Estados Unidos e na Europa. Por
exemplo, no caso de Li Kangmei, Li é o sobrenome e Kangmei o
nome. Alguns chineses nas regiões mais urbanizadas do país ou
que têm ligações mais próximas com os Estados Unidos ou outras
culturas ocidentais podem usar um nome ocidental, acrescentado
ou em substituição ao nome chinês. Nesse caso, o nome
anglicizado precede o sobrenome, como Jerry Tang.
I
O CABEÇA DE COBRA
A batalha é vencida pelo jogador que enxerga mais longe, isto é, o que
pode ver
através do movimento do oponente, que pode adivinhar seu plano e se
opor a ele,
e que, ao atacar, antecipa todos os movimentos defensivos do adversário.
FANTASMORTES
8 de agosto
De: Harold C. Peabody, Diretor Assistente do Serviço de
Imigração e Naturalização dos EUA
Para: Det. Cap. Lincoln Rhyme (apos.)
Ref: Força-tarefa Conjunta Serviço de Imigração/FBI/NYPD,
caso Kwan Ang, vulgo Gui, vulgo O Fantasma
Isto confirma nossa reunião às dez da manhã de amanhã para
discutirmos os planos para a prisão do suspeito mencionado
acima.
Por favor, ver o material anexo.
FANTASMORTES
FANTASMORTES
FANTASMORTES
FANTASMORTES
— O negócio, Amie...
Amelia Sachs estava dirigindo o carro para o centro, mantendo-se
curiosamente perto do limite de velocidade.
— O negócio, querida — dissera o pai em péssimo estado,
devastado pelas células gulosas que lhe iam desmantelando o corpo
—, é que você tem de cuidar de si mesma.
— Claro, pai.
— Não, não, você diz ”claro”, mas não quer dizer ”claro”. Quer
dizer: estou concordando com o velho porque ele está que nem você
sabe o quê.
Mesmo na cama do hospital West Brooklyn na Fort Hamilton
Parkway, perto da morte, o sujeito não a deixava dar a última
palavra.
— Acho que eu não quis dizer isso.
— Ah, escute, Amie, escute.
— Estou escutando.
— Eu ouvi suas histórias sobre o trabalho de ronda.
Sachs, como o pai, era na época uma ”portátil”, um patrulheiro
de ronda. Na verdade seu apelido era ”FP”, de Filha do Portátil.
— Eu invento um monte de coisas, pai.
— Fale sério.
O sorriso de Amelia desaparecera e ela ficara realmente séria,
sentindo a brisa empoeirada do verão entrar pela janela entreaberta,
agitando seu cabelo solto e as roupas desbotadas do pai, os dois ali
naquele lugar tão difícil.
— Continue — dissera ela.
Obrigado... Eu ouvi suas histórias sobre as rondas. Você não se
cuida o suficiente. Mas precisa, Amie.
Por que tudo isso, pai?
Os dois sabiam o que estava por vir do câncer que logo iria matá-
lo e da urgência de repassar à filha única alguma coisa mais
substancial do que um distintivo do DPN Y, um revólver Colt
niquelado e um velho Dodge Charger precisando de transmissão e
cabeças de cilindro. Mas o papel dele como pai lhe exigia dizer: —
Agrade a um velho.
— Então vamos contar piadas.
— Lembra-se da primeira vez em que andou de avião?
— Nós fomos visitar a vovó Sachs na Flórida. Fazia quarenta e
cinco graus perto da piscina e um camaleão me atacou.
Sem se abalar, Herman Sachs continuou: — E a aeromoça, ou sei
lá como vocês chamam hoje, disse: ”Em caso de emergência ponham
sua máscara de oxigênio e depois ajude a quem precisar.” Esta é a
regra.
— Elas dizem isso — admitira Amelia, fustigada pelas emoções
que sentia.
O velho policial, com manchas de graxa de carro
permanentemente entranhadas na trama das mãos, continuara: —
Esta tem de ser a filosofia de um patrulheiro nas ruas. Você
primeiro, e depois a vítima. E tem de ser a sua filosofia pessoal
também. Não importa o que custe, cuide de você primeiro. Se não
estiver inteira, não poderá cuidar de mais ninguém.
Dirigindo agora em meio à chuva fraca, ela escutou a voz do pai
sumindo e outra substituindo-a. O médico, há semanas. — Ah, Sra.
Sachs. Cá está.
Ah, Sra. Sachs. Cá está.
Olá, doutor.
Acabei de me reunir com a médica de Lincoln Rhyme.
É?
Preciso conversar com você sobre uma coisa.
Pelo jeito está parecendo má notícia, doutor.
Todo o seu mundo num tumulto, tudo que ela havia planejado
para o futuro alterado completamente.
O que podia fazer a respeito?
Bom, refletiu, parando junto ao meio-fio, aqui está uma coisa...
Amelia Sachs ficou sentada um longo instante. Isto é loucura,
pensou. Mas então, impulsivamente, desceu do Camaro e, de cabeça
baixa, virou rapidamente a esquina e entrou num prédio de
apartamentos. Subiu a escada. E bateu na porta. Quando esta se
abriu, ela deu um sorriso para John Sung. Ele sorriu de volta e
convidou-a a entrar.
Não importa o que custe, cuide de você primeiro. Se não estiver inteira,
não poderá cuidar de mais ninguém...
De repente sentiu como se um peso gigantesco fosse tirado dos
seus ombros.
Capítulo 29
Meia-noite.
Mas, apesar do dia exaustivo, que o levara de um navio
naufragando até um apartamento da Central Park West, à metade do
globo de distância de casa, Sonny Li não parecia cansado.
Entrou no quarto de Lincoln Rhyme, levando uma sacola de
compras.
— Quando eu em Chinatown com Hongse, Loaban, eu compra
umas coisas. Presente para você.
— Presente? — perguntou Rhyme de seu trono, a nova cama
Hill-Rom Flexicair que, pelo que lhe haviam dito, era extremamente
confortável.
Li pegou um objeto na sacola e começou a desembrulhar.
— Olha o que eu tenho aqui. — Em suas mãos havia uma
estatueta de jade, mostrando um homem com um arco e flecha e
parecendo feroz. Li olhou o quarto em volta. — De que lado norte?
— O norte fica para lá — disse Rhyme.
Li pôs a estatueta em cima de uma mesa encostada na parede.
Depois voltou à sacola e pegou alguns palitos de incenso.
— Você não vai queimar isso aqui.
— Preciso, Loaban. Não mata você.
Apesar da afirmativa de Li, de que os chineses têm dificuldade
para dizer não, esta não era uma característica que o policial
aparentemente compartilhava.
Pôs o incenso num suporte e acendeu. Depois achou um copo no
banheiro e encheu com um pouco de bebida de uma garrafa verde-
clara, que também tinha aparecido da sacola de compras.
— O que está fazendo, montando um templo?
— Um oratório, Loaban. Não um templo. — Li achou divertido o
fracasso de Rhyme em perceber a distinção óbvia.
— Quem é esse? Buda? Confúcio?
— Com arco e flecha? — zombou Li. — Loaban, você conhece
tanto sobre tão pouco, e tão pouco sobre tanto!
Rhyme gargalhou, pensando que quando era casado sua mulher
costumava dizer a mesma coisa, ainda que num volume mais alto e
de modo menos articulado.
— Este é Guan Di, o deus da guerra — disse Li. — Nós faz
sacrifício a ele. Ele gosta vinho doce e foi o que eu trouxe.
Rhyme imaginou como Selli o e Dellray, para não mencionar
Sachs, reagiriam ao ver a transformação do seu quarto num oratório
ao deus da guerra.
Li fez uma reverência para a estatueta e sussurrou algumas
palavras em chinês. Tirou uma garrafa de vinho da sacola de
compras e se sentou na poltrona de rata junto à cama de Rhyme.
Encheu um copo para si mesmo e depois pegou um dos copos de
Rhyme, tirando a tampa, enchendo até a metade e depois
recolocando a tampa e enfiando um canudo.
— E isso? — perguntou Rhyme.
— Coisa boa, Loaban. Chu yeh ching chiew. Nós faz sacrifício a nós
agora. Esta coisa boa. Como uísque.
Não, não era nem um pouco como uísque, definitivamente não
era um scotch de dezoito anos, delicadamente perfumado de turfa.
Mas, apesar de o gosto ser bastante ruim, dava uma pancada
infernal.
Li assentiu para a sacristia improvisada.
— Eu acha Guan Di em loja em Chinatown. Ele deus muito
popular. Milhares oratórios em toda a China dedicados a ele. Mas eu
não compra por causa de guerra. Ele é deus de detetives também,
estou dizendo.
— Você está inventando isso.
— Piada? Não, estou dizendo, é verdade. Todo escritório de
segurança eu trabalhei tem Guan Di lá. Caso não vai muito bem,
detetives queimam oferendas, como nós faz. — Outro gole da
bebida. Li fungou. — Isso coisa forte, estou dizendo. O baijiu.
— O quê?
Ele assentiu na direção da garrafa de chu yeh ching chiew.
— Qual foi a sua oração? — perguntou Rhyme.
— Eu traduz: ”Guan Di, por favor deixa nós achar os Chang e
pegar o escroto do Fantasma.”
— É uma boa oração, Sonny. — Rhyme tomou mais da bebida.
Ficava melhor a cada gole. Ou talvez tendesse a esquecer como era
ruim.
— Aquela cirurgia você fala — indagou o policial chinês. — Ela
melhora você?
— Talvez. Um pouco. Não vou poder andar, mas posso recuperar
um pouco de movimento.
— Como funciona?
Ele explicou a Li sobre a Dra. Cheryl Weaver, cuja unidade de
neurologia na Universidade da Carolina do Norte estava realizando
cirurgias experimentais em pacientes de lesão na medula espinhal.
Ele ainda podia se lembrar quase palavra por palavra a explicação
da médica sobre como a técnica funcionava.
O sistema nervoso efeito de axônios, que transportam os impulsos
nervosos. Numa lesão da medula espinhal esses axônios são cortados
ou esmagados e morrem. De modo que param de transmitir impulsos, e
as mensagens do cérebro não chegam ao resto do corpo. Bom, você já
ouviu dizer que os nervos não se regeneram. Isso não é totalmente
verdade — axônios danificados podem crescer de novo. Mas não no
sistema nervoso central — o cérebro e a medula espinhal. Pelo menos
não por conta própria. Então, quando você corta um dedo, sua pele
cresce de novo e você recupera o sentido do tato. Na medula espinhal
isso não acontece. Mas há coisas que estamos aprendendo para ajudar o
crescimento a acontecer.
Nossa abordagem aqui no Instituto é um ataque geral contra o
local da lesão. Atacamos em todas as frentes. Usamos a cirurgia
tradicional de descompressão para reconstruir a estrutura óssea das
vértebras e proteger o local onde a lesão aconteceu. Depois colocamos
duas coisas no local da lesão: uma é tecido do próprio sistema nervoso
periférico do paciente, e a outra substância que colocamos é um pouco
de células do sistema nervoso central de embriões.
— De um tubarão — acrescentou Rhyme a Sonny Li. O policial
riu.
— Peixe?
— Exato. Os tubarões são mais compatíveis com os seres
humanos do que outros animais. Então — prosseguiu o criminalista
— eu vou tomar remédios para ajudar na regeneração da medula
espinhal.
— Ei, Loaban — disse Li olhando-o atentamente. — Essa
operação, ela perigosa?
De novo, Rhyme ouviu a voz da Dra. Weaver:
Claro que há riscos. Os remédios em si não são particularmente
perigosos. Mas há riscos associados ao tratamento. Qualquer lesão
provoca dificuldade nos pulmões. Você não está usando um respirador
artificial, mas com a anestesia há uma chance de falha respiratória. E o
estresse do procedimento pode levar a uma disreflexia automática
resultando em sério aumento na pressão arterial — tenho certeza que
você está familiarizado com isso — que por sua vez pode levar a um
derrame ou acidente vascular cerebral. Há um risco de trauma
cirúrgico no local de sua lesão inicial — você não tem nenhum cisto
agora e nenhum desvio na corrente sanguínea —, mas a operação e o
aumento resultante nos líquidos podem aumentar essa pressão e causar
mais danos.
— É, é perigosa — disse Rhyme.
— Para mim parece yi luan tou shi.
— O que significa?
Li pensou, depois disse:
— Tradução de palavras: ”jogar ovos em rochas”. Significa fazer
uma coisa que tem tudo para dar errado, estou dizendo. Então por
que faz essa operação?
Parecia óbvio a Rhyme. Para dar um passo mais próximo da
independência. Talvez para poder fechar a mão em volta do copo,
por exemplo, e levantá-lo aos lábios. Coçar a cabeça. Tornar-se mais
normal — usando o termo que era muito politicamente incorreto
dentro da comunidade de deficientes físicos. Ficar mais próximo de
Amelia Sachs. Ser um pai melhor para o filho que Sachs tanto queria.
Falou:
— É só uma coisa que tenho de fazer, Sonny — disse ele,
indicando em seguida a garrafa de uísque Macallan ali perto. —
Agora vamos experimentar o meu baifu.
— Baijiu, Loaban — corrigiu o outro dando uma gargalhada. — O
que você acabou de dizer foi ”Vamos experimentar minha loja de
departamentos”.
— Baijiu — corrigiu-se por sua vez Rhyme.
Li encheu os copos com o uísque envelhecido. Rhyme bebeu pelo
canudinho. Ah, sim, muito melhor. Li engoliu um copo inteiro de
uísque. Balançou a cabeça.
— Estou dizendo: você não devia fazer essa operação.
— Eu avaliei os riscos e...
— Não, não. Abraça quem você é! Abraça suas limitações.
— Mas por quê? Já que eu não preciso fazer isso.
— Eu vê toda essa merda de ciência que vocês têm aqui em
Meiguo. Nós não tem ciência em todo lugar na China como vocês.
Ah, Pequim, Hong Kong, Guangdong, Fujou, claro, nós tem quase
tudo vocês têm, um pouco atrasados, muito obrigado, camarada
Mao, mas nós tem computadores, nós tem Internet, nós tem mísseis
— é, de vez em quando eles explode, mas geralmente vão ao espaço
OK. Mas médicos, eles não usa muita ciência. Eles coloca a gente de
novo em harmonia. Na China, médicos não deuses.
— Nós temos uma visão diferente aqui.
— É, é — zombou Li. — Médicos faz você parecer mais novo. Dá
cabelo. Dá a mulheres xiong maior, você sabe... — Ele apontou para o
próprio peito. — Nós não entende isso. Isso não em harmonia.
— Você acha que eu estou em harmonia assim? — perguntou
Rhyme com um riso exasperado.
— Destino faz você assim, Loaban. E faz você assim com
propósito. Talvez você melhor detetive por causa do que aconteceu.
Sua vida equilibrada agora, estou dizendo.
Rhyme teve que rir.
— Eu não posso andar, não posso recolher evidências... Como,
diabos, isso é melhor?
— Talvez o seu cérebro, ele trabalha melhor agora, estou dizendo.
Talvez você tem vontade mais forte. Seu jijong, sua concentração,
talvez melhor.
— Desculpe, Sonny, não engulo isso.
Mas, como ele havia aprendido, quando Sonny Li assumia uma
posição numa discussão, não soltava.
— Deixe eu explicar, Loaban. Você lembra John Sung? Ele tem
aquela pedra de boa sorte do Rei Macaco.
— Lembro.
— Você é Macaco.
— Eu sou o quê?
— Você é como Macaco, estou dizendo. Macaco faz coisas
milagrosas, mágico, inteligente, mal-humorado também, estou
dizendo. Como você. Mas ele ignora natureza, procura maneiras de
enganar deuses e ficar vivo para sempre. Ele rouba pêssegos da
imortalidade, apaga nomes do Registro dos Vivos e dos Mortos. Isso
quando entrou em encrenca. Foi queimado, espancado e enterrado
debaixo montanha. Finalmente Macaco desistiu de querer viver
sempre. Achou uns amigos e todos fizeram peregrinação a terra
sagrada no oeste. Ele estava feliz. Em harmonia, estou dizendo.
— Eu quero andar de novo — sussurrou Rhyme, inflexível,
imaginando por que estava desnudando a alma para esse
homenzinho estranho. — Não é pedir muito.
— Mas talvez seja pedir muito. Escuta, Loaban, olha para mim. Eu
podia querer ser alto e parecer o Chow Yun-Fat, todas as garotas me
caçando. Poderia querer comandar grande comuna e ter centenas de
prêmios de produtividade para todo mundo me respeitar. Poderia
querer ser banqueiro em Hong Kong. Mas não minha natureza.
Minha natureza ser policial bom pra caralho. Talvez você começa a
andar de novo, você perde outra coisa, outra coisa mais importante.
Por que você bebe essa merda? — Ele apontou para o uísque.
— É meu baijiu predileto.
— É? Quanto custa?
— Uns setenta dólares cada garrafa.
Li fez uma cara azeda. Mesmo assim engoliu a bebida do copo e
encheu de novo.
— Escuta, Loaban, você conhece o Tao?
— Eu? Aquela merda da Nova Era? Você está falando com a
pessoa errada.
— Certo, eu diz uma coisa a você. Na China nós tem dois
grandes filósofos. Confúcio e Lao-tsé. Confúcio acha que é melhor as
pessoas obedecer aos superiores, seguir ordens, baixar a cabeça para
quem for melhor, ficar quieto. Mas Lao-tsé diz o oposto. O melhor é
cada pessoa seguir seu modo de vida. Achar harmonia e natureza.
Nome inglês do Tao é Caminho da vida. Ele escreve uma coisa eu
tenta dizer. É tudo sobre você, Loaban.
— Sobre mim? — perguntou Rhyme lembrando-se que seu
interesse nas palavras daquele sujeito devia se originar do poço de
álcool que havia dentro dele no momento.
Li franziu o rosto enquanto traduzia: — No Tao, Lao-tsé diz:
”Não precisa sair de casa para ver melhor. Não precisa olhar de
janela. Em vez disso viva no centro de seu ser. O modo de fazer é
ser.”
— Todo mundo na China tem um ditado para tudo? —
perguntou Rhyme com rispidez.
— Nós tem muitos ditados, certo. Você devia mandar Thom
escrever isso e botar na parede, perto de altar de Guan Di.
Os dois ficaram quietos um minuto. Não precisa sair de casa para
ver melhor. Não precisa olhar de janela...
Finalmente a conversa foi retomada e Li falou longamente sobre
a vida na China.
— Como é sua casa? — perguntou Rhyme.
— Apartamento. Lugar inteiro pequeno, tamanho este quarto.
— Onde fica?
— Minha cidade, Liu Guoyuan. Significa ”seis pomares”, mas
todos sumiram agora, todos cortados. Umas cinquenta mil pessoas.
Perto Fujou. Muitas pessoas mora lá. Mais de milhão, estou dizendo.
— Eu não conheço a região.
— Na província de Fujian, sudeste da China. Taiwan logo do
outro lado do litoral. Rio Min, grande, passa no meio. Nós lugar
independente. Pequim muito preocupada com a gente. Fujian foi lar
de primeira tríade, gangue organizada, estou dizendo. A San Lian
Hui. Muito poderosa. Muito contrabando: sal, ópio, seda. Muitos
marinheiros em Fujian. Comerciantes, importadores. Não muitos
agricultores. Partido Comunista é forte na minha cidade, mas isso
porque secretário do partido é capitalista privado. Tem companhia
de Internet que nem AOL. Muito sucesso. Ahn, cão lacaio capitalista!
O coletivo dele rende muito, muito dinheiro. Ação dele não cai que
nem NASDAQ.
— Que tipo de crime há em Liu Guoyuan?
— Muito suborno, dinheiro de proteção — respondeu Li. — Na
China você trapaceia empresas e pessoas, isso OK. Mas se trapacear
o partido ou o governo, você morre, porra. Condena você, atira na
nuca. Nós tem muitos outros crimes também. Mesma coisa que
acontece aqui. Assassinato, roubo e estupro. — Li tomou mais um
pouco da bebida. — Eu acha homem matando mulheres. Ele mata
quatro, ia matar mais. Eu prende. — Ele ri. — Uma gota de sangue.
Eu acha uma gota de sangue no pneu de bicicleta dele, pequeno que
nem grão de areia. Isso situa ele na cena do crime. Ele confessa. Vê,
Loaban, nem tudo woo-woo.
— Tenho certeza que não, Sonny.
— Sequestrar mulheres grande problema em China; tem mais
homem do que mulher. Para cada cem mulheres, tem cento e vinte
homens. Pessoas não querem filhas, estou dizendo, só meninos. Mas
então de onde vêm noivas? Então muitos sequestradores pegam
meninas e mulheres, vendem. Tristes, famílias procuram a gente e
pedem a gente achar esposas ou filhas sequestradas. Muitos agentes
de segurança não se importa — casos difíceis. Algumas vezes eles
leva mulheres milhares de quilômetros longe. Eu acha cinco ano
passado. Registros em nosso departamento. Bom sentimento achar
sequestrador, prender ele.
— É disso que se trata — disse Rhyme.
Diante disso Li ergueu seu copo e os dois beberam em silêncio
durante um momento. Rhyme achando que estava se sentindo
contente. A maioria das pessoas que vinham visitá-lo tratavam-no
como uma excentricidade. Ah, elas não pretendiam ser grosseiras.
Mas lutavam para ignorar sua ”condição”, como dizia a maioria
delas, ou celebravam sua deficiência, fazendo piadas e comentários
sobre ela, para mostrar com que intimidade se conectavam com ele.
Quando de fato não se conectavam nada, e assim que vislumbravam
o cateter ou a caixa de fraldas para adulto no canto do quarto
começavam a contar os minutos até poder escapar. Essas pessoas
nunca discordavam dele, nunca contra-atacavam. Nunca chegavam
mais fundo do que a aparência de um relacionamento.
Mas, no rosto de Sonny Li, o criminalista podia ver indiferença
completa para com o seu estado. Como se ele fosse, bem, realmente
natural.
Então percebeu que quase todas as pessoas que tinha conhecido
nos últimos anos, com exceção de Amelia Sachs, eram meramente
conhecidos. Ele conhecia esse sujeito há menos de um dia, mas
Sonny Li já parecia mais do que isso.
— Você mencionou seu pai — disse Rhyme. — Quando ligou
para ele antes, não pareceu uma conversa boa. Qual é a história dele?
— Ah, meu pai... — Li tomou mais uísque, que aparentemente
estava se tornando mais agradável para o policial, assim como
Rhyme tinha se acostumado com o baijiu. A globalização através do
álcool, refletiu Rhyme secamente.
Li serviu-se de mais uma dose.
— Talvez seja melhor tomar aos poucos — sugeriu Rhyme.
— Tem tempo para tomar aos poucos depois de você morrer
disse o policial, e esvaziou o copo rosado, enfeitado com flores. Meu
pai... ele não gosta muito de mim. Eu sou, o que significa... Não
realiza o que ele quer.
— Desapontamento?
— É, eu sou desapontamento.
— Por quê?
— Ah, um monte de coisas. Vou contar nossa história em
pequeno pra você.
— Resumir — disse Rhyme.
— O Dr. Sun Yat-sen nos anos 20, ele unifica China, mas
aconteceu guerra civil. O Kuomitang — o Partido Nacional — estava
sob comando de Chiang Kai-shek. Mas Gongchantang — os
comunistas — luta contra eles. Então Japão invade, tempo ruim para
todo mundo. Depois de Japão perder, nós tem mais guerra civil na
China e finalmente Mao Tsé-tung e comunistas vence, expulsa
nacionalistas para Taiwan. Meu pai, ele luta com Mao. Outubro de
1949, ele junto com o camarada Mao no Portão da Paz Celestial em
Pequim. Ah Loaban, eu ouve essa história um milhão de vezes. Como
ele fica ali parado e bandas tocavam ”A Marcha dos Voluntários”.
Época patriótica pra caralho.
”Então meu pai, ele tem guanxi. Conexões alto nível. Vira figurão
no Partido Comunista em Fujian. Quer que eu vira também. Mas eu
vejo o que comunistas faz em 66 — Grande Revolução Cultural
Proletária Sem Precedentes Históricos —, destrói tudo, machuca
gente, mata gente. Governo e partido não fazendo coisas certas.
— Não era natural. Não estava em harmonia.
— Exato, Loaban — disse Li gargalhando. — Meu pai quer eu
entra pro partido. Ordena. Ameaça. Mas eu não me importa com
partido. Não me importa com coletivos. — Ele balançou os braços.
— Não me importa com grandes ideias. O que eu gosta é de trabalho
policial. Minha irmã, ela importante no partido. Nosso pai orgulhoso
dela, mesmo ela sendo mulher. Ele diz ela não traz desgraça para ele
como eu. Diz isso o tempo todo. — O rosto dele ficou sombrio. —
Outra coisa ruim também é eu não tenho filho, nenhum filho,
quando casei.
— Você é divorciado?
— Minha mulher, ela morre. Fica doente e morre. Uma febre,
coisa ruim. Só casado poucos anos, mas sem filhos. Meu pai disse é
culpa minha. Nós tenta, só não tem filhos. Então ela morre. — Ele se
levantou e andou até a janela, olhou para as luzes da cidade. Meu
pai, ele muito rígido. Bate em mim o tempo todo eu crescia. Nunca o
que eu fazia bom para ele. Boas notas... eu bom aluno. Ganha
medalhas no exército. Casa garota boa, respeitosa, tem trabalho em
escritório de segurança, vira detetive, não só trânsito, estou dizendo.
Vai visitar meu pai toda semana, dá dinheiro, presta respeito em
sepultura de mãe. Mas nunca nada eu faz é suficiente. Seus pais,
Loaban?
— Os dois morreram.
— Minha mãe, ela não tão rígida igual meu pai, mas nunca diz
muita coisa. Ele não deixa ela... Aqui, no Belo País, vocês não tanto,
como diz, sob gravidade dos pais?
Bom modo de colocar, pensou Rhyme.
— Talvez não tanto. Algumas pessoas são.
— Respeito por pais, isso é número um para nós. — Ele assentiu
na direção da estátua de Guan Di. — De todos deuses, mais
importantes são nossos ancestrais.
— Talvez seu pai goste mais de você do que dá a entender. E use
uma fachada, você sabe. Porque ele acha que isso é bom para você.
— Não, ele não gosta de mim. Ninguém para levar o nome de
família, estou dizendo. Isso coisa muito ruim.
— Você vai conhecer alguém e ter uma família.
— Um homem como eu? — Li fez um muxoxo. — Não, não. Eu
só policial, não tem dinheiro. Maioria de homens minha idade em
Fujou, eles trabalha empresas, ganha muito dinheiro. Dinheiro em
toda parte. Lembra, eu disse muito mais homens que mulheres? Por
que uma mulher escolhe homem pobre e velho quando pode ter rico
e novo?
— Você é da minha idade. Não é velho. Li olhou de novo pela
janela.
— Talvez eu fica aqui. Eu fala inglês bom. Eu ser agente de
segurança aqui. Trabalha Chinatown. Disfarçado.
Ele parecia falar sério. Mas então riu e disse o que os dois
estavam pensando: — Não, não, tarde demais para isso. Um monte
tarde demais... não, nós pega o Fantasma, eu vai para casa e continua
sendo detetive bom pra caralho. Guan Di e eu resolve grande crime e
minha foto sai em jornal em Fujou. Talvez chefe de partido me dá
medalha. Talvez meu pai assiste noticiário e ver e acha eu não filho
muito ruim. — Ele esvaziou o copo de uísque. — Certo. Chega de
beber agora. Você e eu, nós faz jogo, Loaban.
— Eu não jogo.
— Mas e aquele jogo em seu computador? — disse Li
rapidamente.
— Xadrez. Eu vê.
— Eu não jogo com muita frequência — corrigiu Rhyme.
— Jogo melhora você. Eu vai mostrar como jogar melhor jogo.
— Ele voltou à mágica sacola de compras.
— Eu não posso jogar a maioria dos jogos, Sonny. Não consigo
segurar direito as cartas, você sabe.
— Ah, jogos de carta? — disse Li zombando. — Isso jogos de
azar. Só bom para ganhar dinheiro. Veja, neles, você guarda
segredos escondendo cartas dos oponentes. Melhores jogos, jogos
onde você guarda segredos na cabeça, estou dizendo. We-Uchi? Já
ouviu falar? Também chamado Go.
Rhyme achou que já.
— E como damas, ou algo assim?
— Damas, não, não — respondeu Li rindo muito.
Rhyme examinou o tabuleiro que Li pegou da sacola de compras
e pôs na mesa ao lado da cama. Era uma grade com uma quantidade
de linhas perpendiculares. Em seguida ele pegou dois sacos, um
contendo centenas de minúsculas pedrinhas brancas, o outro com
pretas.
De repente Rhyme sentiu um desejo enorme de jogar, e se
obrigou a prestar bastante atenção à voz animada de Sonny Li
enquanto ele explicava as regras e o objetivo do wei-chi.
— Parece bem simples — disse Rhyme. Os jogadores se
alternavam colocando suas pedrinhas no tabuleiro, numa tentativa
de rodear as do oponente e eliminá-las do jogo.
— Wei chi como todos grandes jogos: regras simples, mas vencer
difícil. — Li separou as pedras em duas pilhas. Enquanto isso falou:
— Jogo tem muitos anos. Eu estuda melhor jogador todos os tempos.
Nome era Fan Si-pin. Viveu mil setecentos e pouco, data de vocês.
Nunca ninguém melhor que ele vive. Ele fez jogo após jogo com Su
Ting-an, que era quase tão bom. Os jogos costumava empatar, mas
Fan ganha mais alguns pontos, por isso era jogador melhor no geral.
Sabe por que ele melhor?
— Por quê?
— Su era jogador defesa. Mas Fan... ele sempre joga ataque. Ele
ataca sempre, era impulsivo, maluco, estou dizendo.
Rhyme sentiu o entusiasmo do sujeito.
— Você joga muito?
— Eu vou clube minha cidade. Eu joga muito, sim. — Sua voz se
interrompeu um momento e ele ficou pensativo. Rhyme se
perguntou por quê. Então Li puxou para trás o cabelo oleoso e disse:
— Certo, nós joga. Você vê como você gosta. Pode durar muito
tempo.
— Não estou cansado.
— Também não. Agora, você nunca joga antes, por isso eu dá
vantagem. Dá três peças a mais. Parece não muito, mas grande,
grande vantagem em wei-chi.
— Não. Eu não quero vantagem.
Li olhou para ele e deve ter pensado que isso tinha a ver com a
deficiência física, e acrescentou sério: — Eu só dá vantagem porque
você não joga antes. Esse único motivo. Jogadores experientes
sempre faz isso. É costume.
Rhyme entendeu e apreciou a observação de Li. Mesmo assim,
falou inflexível: — Não. Você faz a primeira jogada. Vá. — E
observou os olhos de Li baixando e se concentrando na grade de
madeira entre eles.
IV
CORTANDO O RABO DO DEMÔNIO
Meu filho:
Minha vida foi plena além das minhas esperanças. Estou velho
e doente. Buscar mais um ou dois anos de vida na terra não me
conforta. Pelo contrário, encontro consolo em meu dever para
voltar à alma da Natureza na hora que foi inscrita para mim no
Registro dos Vivos e dos Mortos.
E o momento é agora.
Eu poderia lhe dizer muitas coisas, resumir para você todas as
lições da minha vida, tudo que aprendi com meu pai, minha mãe e
com você, filho, também. Mas opto por não fazer isso. A verdade é
inabalável, mas o caminho para a verdade frequentemente é um
labirinto que cada um de nós deve lutar para decifrar sozinho. Eu
plantei bambu saudável e ele cresceu bem. Continue sua jornada
para longe da terra e na direção da luz, e alimente suas jovens
plantas. Seja vigilante, como qualquer agricultor, mas dê-lhes
espaço. Eu vi a qualidade das plantas; elas vão crescer retas.
Seu pai
Sam Chang foi tomado por uma raiva sem fundo. Levantou-se
rapidamente do sofá e, grogue devido à droga, lutou para ficar em
pé. Jogou a xícara na parede e ela se despedaçou. Ronald se afastou
com medo do pai enraivecido.
— Eu vou matá-lo! — gritou. — O Fantasma vai morrer!
Sua voz fez o bebê chorar. Mei-Mei sussurrou alguma coisa para
os filhos. William hesitou, mas em seguida assentiu para Ronald,
que pegou Po-Yee. Juntos, os dois entraram no quarto. A porta foi
fechada.
— Eu o encontrei uma vez — disse Chang à esposa —, e vou
encontrar de novo. Desta vez...
— Não — disse Mei-Mei com firmeza.
Ele se virou para encarar a mulher.
— O quê?
Ela engoliu em seco e baixou os olhos.
— Você não vai.
— Não fale comigo assim. Você é minha mulher.
— Sim — disse ela, a voz tremendo. — Eu sou sua mulher. E sou
a mãe de seus filhos. E o que vai acontecer conosco se você morrer?
Já pensou nisso? Vamos morar na rua, vamos ser deportados. Sabe
como seria a vida para nós na China quando voltássemos? Uma
viúva de um dissidente sem qualquer propriedade, sem dinheiro? É
o que você quer para nós?
— Meu pai está morto! — gritou Chang. — O homem
responsável por isso tem que morrer.
— Não, não tem — bateu ela, ofegante, juntando mais coragem.
— Seu pai era velho. Estava doente. Ele não era o centro do nosso
universo, e nós temos que continuar.
— Como pode dizer isso? — gritou Chang, chocado com a
ousadia dela. — Ele é o motivo para eu existir.
— Ele viveu uma vida plena e agora se foi. Você vive no passado,
Jingerzi. Nossos pais merecem nosso respeito, sim, mas nada além
disso.
Chang notou que ela usara seu nome próprio chinês. Achava que
ela não fazia isso havia anos — desde que tinham se casado. Quando
se dirigia a ele, usava sempre o respeitoso zhangfu, ”marido”.
Agora, numa voz mais firme, Mei-Mei falou: — Você não vai
vingar a morte dele. Vai ficar aqui conosco, escondido, até que o
Fantasma seja capturado ou morto. Então você e William vão
trabalhar na gráfica de Joseph Tan. E eu vou ficar aqui e ensinar a
Ronald e Po-Yee. Todos vamos estudar inglês, vamos ganhar
dinheiro... E quando houver outra anistia, vamos nos tornar
cidadãos. — Ela parou um momento e enxugou o rosto lavado de
lágrimas. — Eu também o amava. A perda também é minha, não
somente sua. — Em seguida ela voltou a limpar a casa.
Chang se deixou cair no sofá e ficou sentado por longo tempo em
silêncio, olhando para o velho tapete vermelho e preto. Depois foi
até o quarto. William, segurando Po-Yee, olhava pela janela. Chang
ia falar com ele mas mudou de ideia e silenciosamente fez um gesto
para o filho mais novo sair. O garoto foi cautelosamente para a sala,
sentando-se com o pai no sofá. Depois de um momento, Chang se
compôs.
— Filho — perguntou —, você conhece os guerreiros de Qin Shi
Huang?
— Sim, baba.
Esses guerreiros eram milhares de estátuas de terracota de
tamanho natural, representando soldados, condutores de carruagens
e cavalos, esculpidas perto de Xian pelo primeiro imperador da
China, no século III a.C. e postas em seu túmulo. O exército deveria
acompanhá-lo até a outra vida.
— Nós vamos fazer o mesmo para Yeye. — Ele quase se engasgou
com a própria tristeza. — Vamos mandar algumas coisas para o céu,
para ficarem com o seu avô.
— O quê?
— Coisas que eram importantes para ele quando era vivo. Nós
perdemos tudo no navio, por isso vamos desenhá-las.
— Isso vai funcionar? — perguntou o garoto franzindo a testa.
— Sim. Mas preciso da sua ajuda. Ronald assentiu.
— Pegue um pouco de papel ali e aquela caneta. — Indicou a
mesa com um gesto. — Por que não faz um desenho dos pincéis
prediletos dele, o de pelo de lobo e o de cabra? E o bastão de
nanquim também. Lembra de como eram?
Ronald pegou a caneta com a mão pequena. Curvou-se sobre o
papel e começou a tarefa.
— E uma garrafa do vinho de arroz que ele gostava — sugeriu
Mei-Mei.
— E um porco? — perguntou o menino.
— Porco? — replicou Chang.
— Ele gostava de arroz com porco, lembra?
Então Chang notou alguém atrás dele. Virou-se e viu William
olhando o desenho do irmão. Com o rosto sombrio, o adolescente
disse: — Quando vovó morreu, nós queimamos dinheiro.
Era tradição nos enterros chineses queimar papel impresso para
parecer notas de um milhão de ienes, emitidas pelo ”Banco do
Inferno”, para que o falecido tivesse dinheiro para gastar no outro
mundo.
— Talvez eu possa desenhar alguns ienes — disse William.
Chang foi varrido pela emoção diante das palavras dele, mas não
abraçou o garoto, como queria desesperadamente. Disse
simplesmente: — Obrigado, filho.
O garoto magro se agachou junto do irmão e começou a desenhar
as notas.
Quando as crianças terminaram os desenhos, Chang levou a
família para o quintal dos fundos de seu novo lar e, como se fosse o
verdadeiro enterro de Chang Jiechi, enfiou no chão dois palitos de
incenso acesos para marcar o lugar onde o corpo teria ficado, e
então, pondo fogo nos desenhos feitos pelos filhos, eles olharam a
fumaça desaparecer no céu cinzento e a cinza se fundir em formas
pretas e enroladas.
Capítulo 34
— Alguém fez outra tentativa contra os Wu — disse Selli o
olhando para Rhyme depois de falar ao celular.
— O quê? — perguntou Sachs. — Na nossa casa de segurança em
Murray Hill?
Rhyme girou a cadeira para encarar o detetive, que falou: — Um
homem de pele morena, magro, usando luvas, foi visto por uma das
câmeras de segurança no beco. Estava verificando uma das janelas
dos fundos. Coincidência, vocês acham?
Sonny Li deu um riso amargo.
— Com Fantasma, não tem coincidências. Confirmando com a
cabeça, Rhyme perguntou: — O que aconteceu?
— Dois dos nossos foram atrás, mas ele desapareceu.
— Como, diabos, o Fantasma descobriu onde eles estavam?
perguntou o criminalista.
— Quem pode saber? — retrucou Selli o. Sachs pensou nisso.
— Depois do tiroteio na Canal Street, um dos bangshous dele
pode ter me seguido até a clínica, e depois seguido os Wu até a casa
de segurança. É difícil, mas possível. — Ela foi ao quadro branco e
bateu numa anotação. — Ou que tal isto?
FANTASMORTES
Estava no inferno.
Não havia outra palavra para aquilo.
O escuro corredor cheio de entulho e fuligem, restos de pano,
papel, comida, peixes com olhos amarelos e penetrantes. E acima,
um tremor, como gelo: a fina camada de ar presa acima dela. Os sons
eram assustadores: algo raspando e rangendo, gemidos. Guinchos
parecidos com vozes humanas em agonia, estalos finos e ásperos.
Batida de metal contra metal.
Um peixe, cinza e esguio, passou rapidamente. Sachs ofegou
involuntariamente e virou a cabeça para acompanhá-lo.
Viu-se olhando para dois olhos humanos opacos, num rosto
branco e sem vida.
Gritou através do regulador e saltou para trás. O corpo de um
homem, descalço, com os braços acima da cabeça, como um bandido
se rendendo, flutuava ali perto. Suas pernas estavam imobilizadas na
posição de um corredor e, quando o peixe passou rapidamente, a
pequena esteira de movimento virou-o lentamente para longe dela.
Clang, clang.
Não pensou. Não posso fazer isso.
As paredes já estavam se fechando sobre ela. Assolada durante
toda a vida Pela claustrofobia, Sachs não conseguia parar de pensar
no que aconteceria se ficasse presa numa daquelas passagens
minúsculas. Enlouquecedor, com certeza.
Duas profundas respirações de ar seco pelo regulador.
Pensou na família Chang. Pensou no bebê.
E continuou nadando.
O manômetro: 2.300 libras de pressão.
Estamos bem. Continue em frente.
Clang.
Aquela droga de barulho — como portas se fechando, lacrando-a.
Bom, ignore, disse a si mesma. Ninguém está fechando porta
nenhuma.
As cabines acima dela — no lado do Dragon virado para a
superfície — não eram do Fantasma, deduziu: duas pareciam não ter
sido ocupadas durante a viagem, e uma era do capitão; nesta ela
encontrou lembranças de viagens no mar e fotos do homem careca e
de bigode que ela reconheceu como sendo o capitão Sen, das fotos
presas na parede de Lincoln Rhyme.
Clang, clang, clang.
Nadou para baixo, para verificar as cabines do outro lado do
corredor estreito — viradas para baixo.
Ao fazer isso, seu tanque se agarrou num extintor de incêndio
preso à parede, e ela se imobilizou na posição. Presa no corredor
estreito, foi tomada num clarão de pânico.
Tudo bem, Sachs, disse a voz de Lincoln Rhyme, aquela voz
profunda e convincente que ela sempre sentia falando através do
fone de ouvido nas cenas de crime. Tudo bem.
Controlou o pânico e recuou, livrando-se.
O manômetro dizia: 2.100 libras.
Três cabines abaixo não haviam sido ocupadas. Só restava uma
tinha de ser a do Fantasma.
Um gemido enorme.
Mais clangs.
Então um gemido tão alto que ela o sentiu no peito. O que estava
acontecendo? Todo o navio estava balançando! As portas ficariam
travadas. Ela ficaria presa ali para sempre. Sufocando lentamente...
morrendo sozinha... oh, Rhyme...
Mas então o gemido parou, substituído por mais clangs.
Parou na entrada da cabine do Fantasma, abaixo de seus pés.
A porta estava fechada. Abria-se para dentro — bom, para baixo.
Ela agarrou a maçaneta e girou. A tranca se soltou e a pesada porta
de madeira se virou para baixo. Olhando para baixo, para a
escuridão. Coisas nadavam dentro da cabine. Meu Deus... Ela
estremeceu e continuou onde estava, pairando no corredor estreito.
Mas a voz de Lincoln Rhyme, clara como se ele estivesse falando
pelos fones de ouvido, soou em seus pensamentos. Ӄ uma cena de
crime, Sachs. Só isso. E examinar cenas de crime é o que nós
fazemos, lembra? Você estabelece agrade, examina, observa, coleta
evidências.
Certo, Rhyme. Mas eu preferiria sem enguias.
Deixou um pouco de ar sair do ECF e baixou suavemente para a
cabine.
Duas visões a fizeram ofegar.
Diante dela um homem flutuava no espaço negro, de olhos
fechados, com o queixo o mais abaixado possível, braços abertos, o
casaco balançando atrás. O rosto estava branco como papel.
A segunda coisa que viu foi menos macabra, mas muito mais
estranha: o que deveriam ser mil notas de cem dólares flutuavam na
água, enchendo a cabine, como flocos num globo de plástico com
neve de mentirinha.
As notas explicavam a morte do homem. Seus bolsos estavam
cheios de dinheiro e ela deduziu que, quando o navio começou a
afundar, ele havia corrido para a cabine para pegar o máximo do
dinheiro do Fantasma que pudesse, mas ficou preso ali dentro.
Ela entrou ainda mais, com as notas redemoinhando em sua
esteira.
Logo o dinheiro acabou se mostrando um gigantesco pé no saco.
Grudava-se nela, obscurecia o local como se fosse fumaça
(Acrescente isso ao seu livro, Rhyme: dinheiro em excesso na cena
do crime pode tornar as buscas extremamente difíceis.) Ela não
podia ver mais do que um metro além da nuvem de notas. Agarrou
vários punhados do dinheiro como evidência e pôs em sua sacola de
coleta. Batendo os pés para ir até onde agora era a parte de cima da
cabine — originalmente a lateral —, notou uma maleta aberta
flutuando no fino bolsão de ar. Achou mais notas dentro —
pareciam chinesas. Um punhado dessas notas foi para a sacola de
coleta.
Clang, clang.
Meu Deus, isso é assustador. Escuridão em volta, coisas
invisíveis acariciando a roupa de mergulho. Ela só podia ver pouco
mais de um metro adiante — o túnel de luz fraca lançada pela
lâmpada minúscula na cabeça.
Então localizou duas armas: uma submetralhadora UZI e uma
Bere a 9 mm. Examinou-as atentamente e descobriu que o número
de série da Uzi tinha sido raspado. Deixou essa arma cair no fundo.
Mas havia um número na Bere a, o que significava que poderia
revelar alguma conexão com o Fantasma. Colocou-a dentro da sacola
de provas. Um olhar para o manômetro: 1.800 libras de ar. Meu
Deus, estava acabando com ele depressa. Respire devagar.
”Ande, Sachs, concentre-se.”
Certo, desculpe, Rhyme.
Clang, clang, clang.
Odeio a porra desse som.
Examinou o cadáver. Nenhuma carteira nem documento de
identidade.
Outro tremor. Por que essa cena era tão horrível, tão
fantasmagórica? Ela havia processado dezenas de corpos. Mas então
percebeu: os corpos naquelas cenas sempre estavam caídos como
brinquedos quebrados no chão, presos pela gravidade, inanimados,
no concreto, na grama ou no tapete. Não eram reais. Mas este
homem não estava imóvel. Frio como a água insensível em volta,
branco como neve, ele se movia como um elegante bailarino em
câmera lenta.
A cabine era muito pequena, e o corpo iria interferir com sua
busca. Assim, com um respeito que não teria sentido em qualquer
outro local fora desse horrível mausoléu, empurrou o corpo para o
corredor acima e para longe. Depois voltou à cabine do Fantasma.
Clang, clang... clang.
Ignorando os gemidos e clangores de dar medo, olhou em volta.
Num cômodo minúsculo como esse, onde alguém esconderia coisas?
Toda a mobília era presa à parede e ao piso. E havia apenas uma
cômoda pequena. Dentro havia material de toalete feito na China,
nada que guardasse evidências óbvias.
Procurou qualquer coisa escondida no armário, mas só achou
roupas.
Clang, clang...
O que pensamos disso, Rhyme?
“Eu acho que nós temos, digamos, umas mil e quatrocentas libras
de ar. Eu diria que, se você não achar nada logo, se mande daí.”
Eu ainda não vou a lugar nenhum, pensou. Pairando, examinou
lentamente o cômodo ao redor. Onde ele esconderia coisas? Tinha
deixado as armas, deixou o dinheiro... Isso significa que a explosão o
pegara de surpresa também. Tinha de haver alguma coisa aqui.
Olhou de novo para o armário. As roupas? Talvez. Foi para lá.
Começou a examiná-las. Nada em nenhum bolso. Mas continuou
procurando e — num dos paletós Armani — achou uma fenda que
ele havia feito na costura. Enfiou a mão dentro e tirou um envelope
com um documento. Apontou a luz para ele. Não sei se vai ajudar
ou não, Rhyme. É em chinês.
”Isso nós é que vamos descobrir aqui em casa. Você achou, Eddie
vai traduzir, eu vou analisar
Para a sacola.
Mil e duzentas libras de pressão. Mas nunca, nunca prenda o
fôlego.
Por que mesmo isso?
Certo. Seus pulmões explodiriam.
Clang.
Certo, vou sair daqui.
Saiu da pequena cabine para o corredor, com os tesouros de
evidências guardados na bolsa amarrada ao cinto.
Clang clang clang... clang... clang... clang.
Voltou pelo corredor escuro e interminável — o caminho pelo
qual poderia escapar desse lugar terrível. O passadiço parecia a
quilômetros pelo corredor escuro.
A mais longa jornada, o primeiro passo...
Sas então parou, agarrando a porta. Meu Deus, Senhor, pensou.
Clang clang clang...
Amélia Sachs percebeu uma coisa nas batidas fantasmagóricas
que vinha escutando desde que entrara no navio. Três batidas
rápidas, três lentas.
Era S-O-S em código Morse. E vinha de algum lugar no fundo do
navio.
Capítulo 37
SOS.
O pedido universal de socorro.
S-O...
Alguém estava vivo! A Guarda Costeira tinha deixado de
perceber um sobrevivente. Será que devia procurar os outros
mergulhadores?
Mas isso demoraria muito; pelas batidas irregulares Sachs
imaginou que o ar preso que o sobrevivente estava respirando
praticamente havia acabado. Além disso, o som parecia estar vindo
de perto. Ela deveria levar apenas alguns minutos para achar a
pessoa.
Mas onde exatamente?
Bom, obviamente o som não viera da direção do passadiço,
através do qual ela havia entrado no navio. Não vinha das cabines
também. Tinha de ser num dos depósitos ou na sala dos motores na
parte mais baixa do navio. Agora, com o Dragon de lado, essas áreas
estavam no mesmo nível que ela, à esquerda.
Sim, não?
Para isso não podia pedir o conselho a Lincoln Rhyme.
Não havia ninguém para ajudá-la aqui.
Ah, meu Deus, eu já estou entrando nisso, não estou?
Restavam menos de 1.200 libras de ar.
Então é melhor mexer esse rabo, garota.
Sachs olhou para a fraca iluminação onde ficava o passadiço,
depois se virou para a escuridão — e para a claustrofobia — e bateu
os pés com força. Seguindo o barulho.
S-O-S.
Mas quando chegou ao fim do corredor escuro, de onde achava
que ouvia o código, não achou um modo de entrar no interior do
navio. O corredor simplesmente acabava. Mas apertou a cabeça
contra a madeira e pôde ouvir claramente o barulho.
Apontando a luz para a parede, descobriu uma pequena porta.
Abriu-a e ofegou quando uma enguia verde passou calmamente por
ela. Deixou o coração se acalmar e olhou para dentro, olhando à
esquerda, para as entranhas do navio. O poço era um monta-cargas,
presumivelmente para transportar suprimentos dos conveses
inferiores para as cabines e o passadiço. Media cerca de setenta por
setenta centímetros.
Confrontando a ideia de nadar naquele espaço estreito, pensou
agora em voltar para pedir ajuda. Mas já havia desperdiçado tempo
demais para achar a passagem.
Ah, cara...
Mil libras de ar.
Clang, clang...
Fechou os olhos e balançou a cabeça.
Não posso fazer isso. De jeito nenhum.
S-O-S.
Amélia Sachs, que ficava absolutamente calma a duzentos por
hora em seu Camaro SS, acordava soluçando de sonhos em que se
via presa em câmaras, túneis e poços de minas.
Não posso fazer isso, pensou de novo.
Depois suspirou através do regulador e se enfiou no espaço
estreito, virou à esquerda do melhor modo possível e bateu os pés
penetrando mais fundo no inferno.
Meu Deus, odeio isso.
Novecentas libras de pressão no manômetro.
Seguiu adiante, pelo poço que tinha largura suficiente apenas
Para acomodá-la e ao tanque. Três metros. De repente o tanque se
agarrou em algo acima dela. Lutou para dominar o tremor de
pânico, trincando os dentes furiosamente no bocal do regulador.
Girando lentamente, descobriu o fio que a havia prendido, e se
livrou. Virou-se de novo e achou outro rosto branco-azulado se
projetando por outra porta do monta-carga.
Ah, meu Deus...
Os olhos do homem, opacos como geleia, espiavam na sua
direção, brilhando na luz. O cabelo dele se projetava da cabeça como
os espetos de um porco-espinho.
Sachs continuou adiante e passou lentamente pelo homem,
lutando para ignorar a sensação arrepiante do topo da cabeça dele
roçando seu corpo enquanto ela nadava.
S...
O som, ainda que frágil, era mais forte aqui.
O...
Continuou descendo pelo túnel até o fundo do monta-carga e,
afastando o pânico enquanto se aproximava da saída, forçou-se a
passar calmamente pela porta para o que era a cozinha do Dragon.
S...
A água negra aqui estava cheia de lixo e flocos de comida — e
vários corpos.
Clang.
Quem quer que estivesse sinalizando nem conseguia mais fazer
uma letra inteira.
Acima, viu a superfície brilhante de um grande bolsão de ar e as
pernas de um homem na água, pendendo. Os pés, calçados com
meias, moviam-se ligeiramente, quase um tremor. Ela nadou
rapidamente para eles e chegou à superfície. Um homem careca e de
bigode que estava agarrado a um conjunto de prateleiras
aparafusadas à parede — agora o teto da cozinha — virou-se com
um grito de choque, e indubitavelmente da dor provocada pela luz
ofuscante brilhando em seus olhos.
Sachs forçou a vista. Reconheceu-o — por quê? Depois percebeu
que tinha visto sua foto no quadro de provas da casa de Rhyme — e
outra na cabine dele há alguns minutos. Era o capitão Sen, do Fujou
Dragon.
Ele estava murmurando incoerentemente e tremendo. Estava tão
azul que parecia cianótico — a cor das vítimas de asfixia. Sachs
cuspiu o regulador para fora da boca para respirar o ar preso no
bolsão e economizar seu estoque de oxigênio, mas a atmosfera era
tão fétida e esgotada que ela se sentiu enfraquecer. Agarrou o bocal
de novo e começou a sugar o ar de seu tanque.
Puxando o regulador secundário do colete, enfiou-o na boca de
Sen. Ele respirou fundo e começou a se recuperar um pouco. Sachs
apontou a água abaixo. Ele assentiu.
Um rápido olhar para o manômetro: 700 libras. E agora eram
dois usando seu suprimento.
Soltou ar do ECF e, com o braço em volta do homem frouxo, os
dois afundaram ao fundo da cozinha, empurrando para os lados os
corpos e as caixas de comida que flutuavam no caminho. A princípio
ela não pôde localizar a porta do monta-carga. Sentiu-se enfraquecer
de pânico por um momento, com medo de que o gemido que ouvira
significasse que o navio estava se mexendo, e que agora a porta
estivesse lacrada. Mas então viu que o corpo de uma mulher jovem
tinha flutuado diante dele. Empurrou gentilmente o cadáver para o
lado e escancarou a porta do monta-carga.
Os dois não cabiam no poço lado a lado, por isso ela empurrou o
capitão na frente, com os pés primeiro. Com os olhos fechados com
força, ainda tremendo violentamente, ele agarrava a mangueira
preta do regulador com as duas mãos. Sachs foi atrás, imaginando
com muita clareza o que poderia acontecer se ele entrasse em pânico
e puxasse o regulador de sua boca ou arrancasse a máscara ou a luz:
Presa nesse lugar horrível e estreito, sacudindo-se em pânico
enquanto respirava a água fétida para dentro dos pulmões...
Não, não, pare de pensar nisso! Continue em frente. Bateu os Pés com
força, movendo-se o mais rápido possível. Por duas vezes
o capitão, flutuando para trás, ficou preso e ela teve de libertá-lo.
Um olhar para o manômetro: 400 libras de pressão.
Nós deixamos o fundo com quinhentas. Não menos do que isso. É
Uma regra absolutamente rígida. Sem exceções.
Finalmente chegaram ao convés superior — onde ficavam as
cabines e o corredor que levava ao passadiço e, depois, ao precioso
Lá.
Fora, com sua corda laranja que os levaria à superfície e a um
suprimento interminável de doce ar. Mas o capitão ainda estava
atordoado e ela demorou um longo minuto para manobrá-lo através
da abertura ao mesmo tempo em que se certificava de que ele
mantivesse o regulador na boca.
Depois estavam fora do monta-carga e flutuando pelo corredor
principal. Ela nadou ao lado do capitão, segurando-o pelo cinto de
couro. Mas quando começou a bater as pernas, parou subitamente. O
botão de seu tanque de ar estava agarrado. Ela estendeu a mão para
trás e descobriu que ele havia se prendido no paletó do corpo que
estivera na cabine do Fantasma.
O manômetro: 300 libras de pressão.
Droga, pensou, puxando com força, batendo as pernas. Mas o
corpo estava agarrado num portal e a aba do paletó havia se
enrolado com força no botão do tanque. Quanto mais ela puxava,
mais ficava presa.
Agora a agulha do manômetro estava abaixo da linha vermelha:
restavam 200 libras.
Ela não conseguia alcançar a parte emaranhada nas costas.
Certo, não há o que fazer...
Rasgou o velcro do ECF e tirou o colete. Mas ao se virar para se
concentrar na dificuldade, o capitão começou a ter uma convulsão.
Chutava com força, e acertou seu rosto com o pé. A luz se apagou e o
regulador caiu de sua boca. O golpe a empurrou para trás.
Escuridão, sem ar...
Não, não...
Rhyme...
Tentou pegar o regulador, mas ele estava flutuando em algum
lugar atrás dela, fora do alcance.
Não prenda o fôlego.
Bom, porra, eu tenho que...
Escuridão em volta, girando em círculos, tentando
desesperadamente pegar o regulador.
Onde estavam as babás da Guarda Costeira?
Lá fora. Porque eu disse que queria fazer a busca sozinha. Como
avisar que estava em dificuldade?
Rápido, garota, rápido...
Bateu na bolsa de evidências e enfiou a mão desesperadamente.
Pegou a Bere a 9 mm. Engatilhou e apertou o cano na parede de
madeira, onde sabia que não acertaria Sen, e puxou o gatilho. Um
clarão e uma explosão alta. O choque e o coice quase partiram seu
pulso, e ela largou a arma em meio à nuvem de entulho e resíduo de
pólvora.
Por favor, pensou... Por favor...
Sem ar...
Sem...
FANTASMORTES
De: M. Cooper
Para: L. Rhyme
Assunto: Resultados de análises cromatográficas e espectro
métricas de Amostra do Indício 345202 ERIF, Departamento de
Justiça.
O cabeçalho de aparência oficial contrastava com a mensagem
informal embaixo: Lincoln:
Nós vimos a dinamite e ela era falsa.
A bunda de Dellray não correu nenhum perigo. O bandido se
ferrou e usou explosivo de mentira — material usado para
treinamento. Tentei acompanhar qualquer traço dele, mas
ninguém tem um banco de dados sobre bombas falsas. Talvez seja
alguma coisa em que pensar.