Macaco de Pedra, O - Jeffery Deaver

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O Macaco de Pedra

Jeffery Deaver
O Macaco de Pedra
TRADUÇÃO DE Alves Calado.
EDITORA RECORD
RIO DE JANEIRO · SÃO PAULO
2003
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores
de Livros, RJ.
Deaver, Jeffery D329m O macaco de pedra Jeffery Deaver.
tradução de Alves-Calado.
Ilustrações César Lobo. — Rio de Janeiro: Record, 2003.
ISBN 85-01-06377-0
1. Ficção policial. 2. Romance americano. I. Alves-Calado, Ivanir,
1053. II. Título. III. Série.
031538
CDD — 813 CDU-821.1U(733
Título original norte-americano: The stone monkey
Copyright © 2002 by Jeffery Deaver Projeto gráfico de miolo:
Glenda Rubinstein Ilustração: César Lobo Todos os direitos
reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de
quaisquer meios.
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente
para o Brasil adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE
SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 — Rio de
Janeiro, RJ-20921-380-Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade
literária desta tradução Impresso no Brasil
ISBN 85-01-06377-0
PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL
Caixa Postal 23.052
Rio de Janeiro, RJ -
0922-970
Contracapa
Apresentado aos leitores no romance O colecionador de ossos, o
detetive Lincoln Rhyme surpreendeu a todos com sua capacidade de
investigação forense sem paralelo — totalmente realizada de uma
cadeira de rodas. Famoso criminologista, paralisado do pescoço para
baixo, Rhyme compensa a deficiência física com seu cérebro e os
braços e as pernas de sua protegida, a bela e inteligente Amelia
Sachs, que faz por ele as investigações de campo.
Recrutados pelo FBI e o Serviço de Imigração, os dois localizam
uma embarcação que se dirige para Nova York com dúzias de
imigrantes chineses ilegais em seu porão, todos a cargo do notório
assassino e contrabandista de pessoas conhecido como Fantasma. Na
iminência de ser capturado, o vilão explode o barco, matando a
maior parte dos passageiros e tripulantes, e foge.
Lincoln e Amelia, então, se veem numa corrida contra o tempo:
encontrar os sobreviventes antes que o Fantasma os encontre.
Nas 48 horas seguintes, Rhyme e Sachs empregam todas as suas
forças numa caçada humana pelas ruas de Nova York. Um romance
cativante e empolgante, um dos melhores deste mestre da ficção
policial e de suspense.
Aos que perdemos em 11 de setembro de 2001 — cujo único
crime foi seu amor pela tolerância e pela liberdade, e que estarão
para sempre em nossos corações Nota do Autor
Estou incluindo aqui algumas informações que podem ser
úteis aos leitores não familiarizados com alguns aspectos da vida
chinesa descritos no livro.
GEOGRAFIA: A maior parte dos imigrantes ilegais chineses
para os Estados Unidos vem da região litorânea do Sudeste da
China, geralmente de duas províncias: no extremo sul, a
Província de Guangdong, onde se localiza Hong Kong, e, logo ao
norte dela, a Província de Fujian, cuja principal cidade é Fujou,
grande centro marítimo e provavelmente o ponto de embarque
mais popular para os imigrantes ilegais que iniciam a jornada
para outras terras.
LINGUAGEM: A escrita chinesa é a mesma em todo o país,
mas no falar existem grandes diferenças de uma região para outra.
Os principais dialetos são o cantonês, no Sul, o minnanhua em
Fujian e Taiwan e o mandarim, ou putonghua, em Pequim e no
Norte. As poucas palavras chinesas que uso no livro estão no
dialeto putonghua, que é a língua oficial do país.
NOMES: Os nomes chineses são tradicionalmente dados na
ordem inversa à que usamos nos Estados Unidos e na Europa. Por
exemplo, no caso de Li Kangmei, Li é o sobrenome e Kangmei o
nome. Alguns chineses nas regiões mais urbanizadas do país ou
que têm ligações mais próximas com os Estados Unidos ou outras
culturas ocidentais podem usar um nome ocidental, acrescentado
ou em substituição ao nome chinês. Nesse caso, o nome
anglicizado precede o sobrenome, como Jerry Tang.
I

O CABEÇA DE COBRA

Terça-feira, a Hora do Tigre, 4h30 da manhã


até a Hora do Dragão, 8 da manhã

A palavra Wei-Chi é formada de duas palavras chinesas


— Wei, que significa ”cercar”, e Chi, que significa ”peça”.
Como o jogo representa uma luta pela vida,
ele pode ser chamado de ”o jogo da guerra”.

DANIELLE PECORINI e TONG SHU


The Game of Wei-Chi
Capítulo 1
Eles eram os desaparecidos, eram os desafortunados.
Para os contrabandistas de pessoas — os cabeças de cobra — que
os transportavam pelo mundo como a caixotes de mercadorias
danificadas, eles eram jujia, porquinhos.
Para os agentes da imigração americana que abordavam seus
navios e os prendiam e deportavam, eles eram os sem documento.
Eram os esperançosos. Que trocavam lar, família e mil anos de
ancestralidade pela dura certeza de anos arriscados e laboriosos pela
frente.
Que tinham chances ínfimas de se enraizar num local onde suas
famílias pudessem prosperar, onde liberdade, dinheiro e
contentamento, segundo diziam, eram tão comuns quanto a luz do
sol e a chuva.
Eram sua carga frágil.
E agora, com as pernas se firmando contra as ondas furiosas de
cinco metros de altura, o capitão Sen Zi-jun descia do passadiço até
dois conveses abaixo, ao mofado depósito, para dar a triste
mensagem de que a viagem sofrida poderia ter sido em vão.
Faltava pouco para o amanhecer de uma terça-feira de agosto. O
atarracado capitão de cabeça raspada e com um bigode elaborado e
farto passou pelos contêineres vazios presos como camuflagem ao
convés do Fujou Dragon, de setenta e dois metros, e abriu a pesada
porta de aço do depósito. Olhou para as duas dúzias de pessoas
emboladas lá dentro, no espaço desolado e sem janelas. Lixo e peças
de plástico de criança flutuavam na água rasa sob os catres baratos.
Apesar das ondas enormes, o capitão Sen — um veterano de
trinta anos nos mares — desceu a íngreme escada de metal sem usar
os corrimãos e foi para o meio do depósito. Verificou o medidor de
dióxido de carbono e achou que os níveis eram aceitáveis, ainda que
o ar estivesse rançoso com o cheiro de óleo diesel e seres humanos
que tinham vivido duas semanas quase amontoados.
Ao contrário de muitos capitães e tripulantes que operavam os
”baldes” — navios de contrabando humano — e que, na melhor das
hipóteses, ignoravam ou algumas vezes até espancavam ou
estupravam os passageiros, Sen não os tratava mal. Em vez disso
acreditava estar fazendo uma boa coisa: transportando aquelas
famílias da dificuldade para, se não a riqueza certa, pelo menos a
esperança de uma vida feliz nos Estados Unidos, Meiguo em chinês,
que significa o ”Belo País”.
Mas nesta viagem em particular a maioria dos imigrantes
desconfiava dele. E por que não? Presumiam que ele estivesse
mancomunado com o cabeça de cobra que alugara o Dragon, Kwan
Ang, conhecido universalmente pelo apelido de Gui, o Fantasma.
Prejudicados pela reputação de violência do cabeça de cobra, os
esforços do capitão Sen para fazer os imigrantes conversarem tinham
sido rejeitados e produzido apenas um amigo. Chang Jingerzi — que
preferia seu nome ocidental de Sam Chang — era um ex-professor
universitário de quarenta e cinco anos de um subúrbio da enorme
cidade portuária de Fujou, no sudeste da China. Estava trazendo
toda a família para os Estados Unidos: a mulher, dois filhos e seu pai
viúvo.
Meia dúzia de vezes durante a viagem, Chang e Sen tinham se
sentado no depósito, tomando o potente mao-tai do qual o capitão
tinha sempre um bom suprimento no navio e falando sobre a vida
na China e nos Estados Unidos.
O capitão Sen viu Chang sentado num catre num canto do
depósito. O homem alto e plácido franziu a testa, uma reação à
expressão dos olhos do capitão. Chang entregou ao filho adolescente
o livro que estivera lendo para a família e se levantou para receber o
capitão.
Todo mundo em volta ficou quieto.
— Nosso radar mostra um navio movendo-se rapidamente para
nos interceptar.
O desânimo floresceu nos rostos dos que tinham entreouvido.
— Os americanos? — perguntou Chang. — A Guarda Costeira
deles?
— Acho que sim. Estamos em águas americanas.
Sen olhou os rostos amedrontados dos imigrantes em volta.
Como muitas cargas de imigrantes ilegais que havia transportado,
essas pessoas — muitas delas estranhas antes de se encontrarem pela
primeira vez — tinham formado um forte elo de amizade. E agora
deram-se as mãos ou sussurraram uns para os outros, alguns
procurando, outros oferecendo conforto. O olhar do capitão pousou
numa mulher que segurava no colo uma menina de dezoito meses.
A mãe — cujo rosto tinha cicatrizes de espancamento num campo de
reeducação — baixou a cabeça e começou a chorar.
— O que podemos fazer? — perguntou Chang, perturbado.
O capitão Sen sabia que ele era um dissidente conhecido na
China e estivera desesperado para fugir do país. Se fosse deportado
pela imigração americana provavelmente terminaria numa das
famosas cadeias no oeste da China como prisioneiro político.
— Não estamos muito longe do ponto de desembarque. Estamos
indo a toda velocidade. Talvez dê para chegar suficientemente perto
para vocês irem até a costa em balsas.
— Não, não — disse Chang. — Nestas ondas? Todos vamos
morrer.
— Há um porto natural para onde estou indo. Deve estar
suficientemente calmo para vocês entrarem nas balsas. Na praia
haverá caminhões para levá-los a Nova York.
— E o senhor? — perguntou Chang.
— Vou voltar na tempestade. Quando estiver seguro para eles
me abordarem, vocês já estarão seguros em autoestradas de ouro,
indo para a cidade dos diamantes... Agora diga a todos para
juntarem suas coisas. Mas só as mais importantes. O dinheiro, as
fotografias. Deixem todo o resto. Será uma corrida até a costa.
Fiquem escondidos até que o Fantasma ou eu diga que podem
aparecer.
O capitão Sen subiu correndo a escada íngreme, indo para o
passadiço. Enquanto subia fez uma rápida oração a Tian Hou, a
deusa dos marinheiros, pela sobrevivência deles, depois se desviou
de uma parede de água cinzenta que passou sobre a amurada.
No passadiço achou o Fantasma parado junto ao radar, olhando a
luz baça. O sujeito estava completamente imóvel, firmando-se contra
os movimentos do oceano.
Alguns cabeças de cobra se vestiam como os ricos gangsteres
cantoneses de um filme de John Woo, mas o Fantasma sempre usava
a roupa comum da maioria dos chineses — calças simples e camisas
de mangas curtas. Era musculoso mas pequenino, barbeado, com
cabelos mais compridos do que os de um empresário típico, mas
jamais condicionado com creme ou spray.
— Eles vão nos interceptar em quinze minutos — disse o cabeça
de cobra. Mesmo agora, diante da abordagem e da prisão, ele parecia
tão letárgico quanto um vendedor de passagens numa estação de
ônibus do interior.
— Quinze? — disse o capitão. — Impossível. Quantos nós eles
estão fazendo?
Sen foi até a mesa de mapas, o centro de todas as embarcações
que atravessam o oceano. Nele havia um mapa náutico da Agência
de Mapeamento da Defesa dos EUA mostrando a área. Precisava
avaliar as posições relativas dos dois navios a partir do radar; por
causa do risco de ser rastreado, o sistema de posicionamento global
do Dragon, seu farol de emergência EPIRB e o Sistema de Segurança
Marítimo Global estavam desligados.
— Acho que levarão uns quarenta minutos — disse o capitão.
— Não, eu marquei a distância que eles fizeram desde que os
detectamos.
O capitão Sen olhou para o tripulante que pilotava o Fujou
Dragon, suando enquanto segurava o timão na luta para manter
virado para cima o nó pinha de anel amarrado numa haste,
indicando que o leme estava alinhado ao casco. Os motores rugiam
com força total. Se o Fantasma estivesse certo em sua avaliação de
quando o barco da Guarda Costeira iria interceptá-los, eles não
poderiam chegar a tempo ao porto abrigado. Na melhor das
hipóteses, poderiam chegar a oitocentos metros da costa rochosa
mais próxima suficientemente perto para baixar as balsas mas
sujeitando-as a golpes implacáveis das ondas tempestuosas.
— Que tipo de armas eles devem ter? — perguntou o Fantasma
ao capitão.
— Você não sabe?
— Nunca fui abordado — respondeu o Fantasma. — Diga.
Navios sob o comando de Sen tinham sido parados e abordados
duas vezes antes — felizmente em viagens dentro da lei, não quando
estava transportando imigrantes para cabeças de cobra. Mas a
experiência fora ruim. Uma dúzia de marinheiros da Guarda
Costeira, armados, tinham entrado na embarcação, enquanto um
outro, no convés do barco interceptador, apontava uma
metralhadora de dois canos para ele e sua tripulação. Além disso,
também havia um canhão pequeno.
Ele disse ao Fantasma o que poderiam esperar.
— Precisamos avaliar nossas opções — disse o Fantasma depois
de assentir.
— Que opções? — questionou o capitão Sen. — Não está
pensando em lutar com eles, está? Não. Não vou permitir.
Mas o cabeça de cobra não respondeu. Continuou agarrado ao
suporte do radar olhando a tela.
O homem parecia calmo, mas, imaginou Sen, devia estar furioso.
Nenhum cabeça de cobra que ele já conhecera tinha tomado tantas
precauções para evitar a captura e a detecção como o Fantasma nesta
viagem. As duas dúzias de imigrantes tinham se reunido num
armazém abandonado perto de Fujou e esperado lá durante dois
dias, sob a vigilância de um parceiro do Fantasma — um ”pequeno
cabeça de cobra”. Então o sujeito tinha enfiado os chineses num
Tupolev 154 alugado, que voou até uma base aérea abandonada
perto de São Petersburgo, na Rússia. Lá foram postos num contêiner
de navio, foram levados por 120 quilômetros até a cidade de Vyborg
e embarcaram no Fujou Dragon, que Sen tinha levado ao porto russo
na véspera. Ele próprio havia preenchido meticulosamente os
documentos e manifestos da alfândega — tudo segundo o manual,
para não levantar suspeitas. O Fantasma se juntou a eles no último
minuto e o navio zarpou na hora marcada. Através do mar Báltico,
do mar do Norte, do Canal da Mancha, em seguida o Dragon
atravessou o famoso ponto de partida de viagens transatlânticas no
mar Celta — 49°N 7°0 — e começou a ir para o sudeste na direção de
Long Island, Nova York.
Não havia absolutamente nada na viagem que pudesse levantar
as suspeitas das autoridades americanas.
— Como a Guarda Costeira fez isso? — perguntou o capitão.
— O quê? — disse o Fantasma distraidamente.
— Nos encontrou. Ninguém poderia ter encontrado. É
impossível.
O Fantasma se empertigou e saiu para o vento furioso, gritando
de volta.
— Quem sabe? Talvez seja magia.
Capítulo 2
— Estamos bem em cima deles, Lincoln. O barco está indo para
terra, mas será que vai conseguir? Não, senhor, não tem como.
Espere, eu tenho de chamar aquilo de ”navio”? Acho que sim. É
grande demais para um barco.
— Não sei — disse Lincoln Rhyme distraidamente a Fred
Dellray.
— Não sou muito de navegar.
O alto e magro Dellray era o agente do FBI encarregado do lado
federal dos esforços para achar e prender o Fantasma. Nem a camisa
amarelo-canário de Dellray nem o terno preto, tão escuro quanto sua
pele lustrosa, tinham sido passados recentemente — mas ninguém
naquela sala parecia particularmente descansado. Aquela meia dúzia
de pessoas reunidas em volta de Rhyme tinha passado as últimas
vinte e quatro horas praticamente morando ali, nesse quartel-general
improvável — a sala de estar na casa de Rhyme na Central Park
West, que não lembrava a sala de estar vitoriana que já havia sido, e
sim um laboratório forense, atulhado de mesas, equipamentos,
computadores, produtos químicos, fios e centenas de livros e
revistas forenses.
A equipe incluía agentes federais e estaduais. Do lado do estado
havia o tenente Lon Selli o, detetive de homicídios do
Departamento de Polícia de Nova York, muito mais amarrotado do
que Dellray — e mais atarracado também (tinha acabado de ir morar
com a namorada no Brooklyn, a qual, segundo anunciara o policial
com orgulho triste, cozinhava maravilhosamente). O jovem Eddie
Deng, um detetive sino-americano da Quinta Delegacia do NYPD,
que cobria Chinatown, também estava presente. Deng era magro,
atlético e elegante, com óculos Armani e cabelos pretos espetados
para cima como as cerdas de um javali. Estava servindo de parceiro
temporário para Selli o. O grandalhão que costumava trabalhar com
o detetive, Roland Bell, tinha ido há uma semana para a Carolina do
Norte, onde havia nascido, para uma reunião familiar com os dois
filhos e, por acaso, iniciou uma amizade com uma policial da cidade,
Lucy Kerr. Por isso esticara as férias por mais alguns dias.
Ajudando na parte federal da equipe estava Harold Peabody, de
cinquenta e poucos anos, um sujeito inteligente, com um corpo em
forma de pera que tinha um cargo importante no escritório de
Manha an do Serviço de Naturalização e Imigração. Peabody falava
pouco sobre si mesmo, como todos os burocratas que estão prestes a
se aposentar, mas seu amplo conhecimento sobre a entrada de
estrangeiros no país atestava uma longa e bem-sucedida passagem
pelo serviço.
Peabody e Dellray tinham se estranhado mais de uma vez
durante esta investigação. Depois do incidente do Golden Venture
em que dez imigrantes ilegais se afogaram quando um navio de
contrabandistas com esse nome encalhou perto do Brooklyn — o
presidente dos Estados Unidos ordenara que o FBI tomasse a
jurisdição principal do serviço de imigração em todos os grandes
casos de contrabando humano, com apoio da CIA. O serviço de
imigração tinha muito mais experiência com cabeças de cobra e suas
atividades de contrabando humano do que o FBI, e não aceitou
facilmente ceder jurisdição para outras agências — especialmente
uma que insistia em trabalhar ombro a ombro com o NYPD e, bem,
com consultores alternativos como Lincoln Rhyme.
Assessorando Peabody, estava um jovem agente do serviço de
imigração chamado Alan Coe, um homem de trinta e poucos anos
com cabelo ruivo escuro cortado curto. Enérgico mas azedo e mal-
humorado, Coe também era um enigma, não dizendo uma única
palavra sobre sua vida e muito pouco sobre sua carreira, afora o caso
Fantasma. Rhyme havia observado que os ternos de Coe eram estilo
chique ponta de estoque — chamativos mas costurados com
acabamentos óbvios — e os sapatos pretos e empoeirados tinham as
grossas solas de borracha dos calçados dos guardas de segurança:
perfeitos para correr atrás de ladrões de lojas. A única situação em
que se mostrava falante era quando fazia uma de suas palestras
espontâneas — e tediosas — sobre os males da imigração ilegal.
Mesmo assim Coe trabalhava incansavelmente e era zeloso com
relação a captura do Fantasma.
Vários outros subalternos, federais e estaduais, tinham aparecido
e desaparecido na última semana realizando tarefas relacionadas ao
caso.
Isto aqui é a própria estação Grand Central, pensava — e dizia
com frequência Lincoln Rhyme aproximadamente de um dia para
cá.
Agora, às 4h45 desta manhã tempestuosa, ele manobrou sua
cadeira de rodas Storm Arrow, movida a bateria, através da sala
atulhada até o quadro de situação do caso, onde estava presa com
fita adesiva uma das poucas fotos existentes do Fantasma, uma foto
de vigilância muito ruim, além de uma de Sen Zi-jun, o capitão do
Fujou Dragon, e um mapa da área leste de Long Island e do oceano
em volta. Ao contrário dos dias que passara na cama, numa
aposentadoria autoimposta depois que um acidente num local de
crime o transformara num tetraplégico C4, agora Rhyme passava
metade das horas de vigília em sua Storm Arrow vermelho-cereja,
aparelhada com um novo controlador touchpad MKIV de último tipo
que seu secretário, Thom, tinha achado no Invacare. O controlador
sobre o qual seu único dedo que funcionava estava pousado lhe dava
muito mais flexibilidade para dirigir a cadeira do que o velho, à base
de sopro.
— A que distância da costa? — gritou ele olhando para o mapa.
Lon Selli o, que estava no telefone, levantou a cabeça.
— Estou descobrindo.
Rhyme trabalhava frequentemente como consultor para o NYPD,
mas a maioria de seus esforços eram em investigação forense clássica
— ou criminalística, como o mundo da polícia, cheio de jargões,
gostava de chamar atualmente; este trabalho era incomum. Há
quatro dias Selli o, Dellray, Peabody e o taciturno jovem Alan Coe
tinham-no procurado em sua casa. Rhyme estivera distraído o
acontecimento que consumia sua vida no momento era um
procedimento médico marcado para breve — mas Dellray atraiu sua
atenção dizendo: — Você é nossa última esperança, Linc Temos um
grande problema e não fazemos a mínima ideia de como agir.
— Continue.
A Interpol — a carteira de compensação internacional de
inteligência criminal — tinha emitido um de seus famosos Bilhetes
Vermelhos sobre o Fantasma. Segundo informantes, o esquivo
cabeça de cobra havia aparecido em Fujou China, ido de avião para
o sul da França e depois para algum porto da Rússia, pegar uma
carga de imigrantes ilegais chineses — entre os quais estava o
bangshou, ou assistente, do Fantasma, um espião disfarçado de
passageiro. O destino, supostamente, era Nova York. Mas então ele
desapareceu. As polícias de Taiwan, da França e da Rússia, além do
FBI e do Serviço de Naturalização e Imigração, não puderam
encontrá-lo em lugar nenhum.
Dellray tinha trazido com ele a única prova que possuía — uma
pasta com objetos pessoais do Fantasma, de seu esconderijo na
França — esperando que Rhyme pudesse tirar alguma ideia do seu
paradeiro.
— Por que toda essa tripulação? — perguntara Rhyme,
examinando o grupo, que representava três das principais
organizações policiais.
— Ele é a porra de um sociopata — disse Coe. Peabody deu uma
resposta mais comedida: — O Fantasma é provavelmente o
contrabandista de pessoas mais perigoso do mundo. É procurado
por nove mortes, de imigrantes e agentes de polícia. Mas sabemos
que matou muito mais. Os imigrantes ilegais são chamados de
”desaparecidos”: se tentam enganar um cabeça de cobra, são mortos.
Se reclamam, são mortos. Simplesmente desaparecem para sempre.
— E estuprou pelo menos quinze mulheres imigrantes, pelo que
sabemos — acrescentou Coe. — Tenho certeza que foram mais.
— Parece que a maioria dos cabeças de cobra como ele não fazem
as viagens pessoalmente — disse Dellray. — O único motivo para ele
próprio estar trazendo esse pessoal é porque está expandindo suas
operações aqui.
— Se ele entrar no país — disse Coe —, vai morrer gente. Muita
gente.
— Bom, por que eu! — perguntou Rhyme. — Não sei nada sobre
contrabando humano.
— Já tentamos todas as outras opções, Lincoln — disse o agente
do FBI. — Mas não conseguimos nada. Não temos nenhuma
informação pessoal sobre ele, nem fotos boas, nem impressões
digitais. Zero. A não ser isto. — Um movimento de cabeça na
direção da pasta de executivo contendo os objetos do Fantasma.
Rhyme olhou para ela com uma expressão cética.
— E aonde, exatamente, ele foi na Rússia? Vocês sabem qual é a
cidade? Um estado, província, ou qualquer coisa de lá? É um país
imenso, pelo que me disseram.
Selli o respondeu levantando uma sobrancelha, o que parecia
significar: não fazemos ideia.
— Farei o que puder. Mas não esperem milagres.
Dois dias depois Rhyme os havia chamado de volta. Thom
entregou a pasta executiva ao agente Coe.
— Serviu para alguma coisa? — perguntou o rapaz.
— Não — respondeu Rhyme, todo animado.
— Diabo — murmurou Dellray. — Então estamos sem sorte.
O que tinha sido uma dica bem boa para Lincoln Rhyme. Ele
inclinou a cabeça na confortável almofada que Thom havia posto na
cadeira de rodas e falou rapidamente: — O Fantasma e uns vinte ou
trinta imigrantes ilegais chineses estão a bordo de um navio
chamado Fujou Dragon, de Fujou, Província de Fujian, China. É um
navio de contêineres e carga de porão, de setenta e dois metros, dois
motores diesel, sob o comando de Sen Zi-jun. Sen é o sobrenome.
Cinquenta e seis anos, e com sete tripulantes. Partiu de Vyborg,
Rússia, às oito e quarenta e cinco há quatorze dias e no momento —
é uma estimativa minha — está a cerca de trezentas milhas do litoral
de Nova York. Indo para o cais do Brooklyn.
— Como, diabos, deduziu isso? — perguntou Coe, pasmo. Até
mesmo Selli o, acostumado com a capacidade de dedução de
Rhyme, deu uma gargalhada.
— Simples. Presumi que eles estariam navegando de leste para
oeste; caso contrário teriam partido para a própria China. Tenho um
amigo na polícia de Moscou que faz análise de locais de crime.
Escrevi alguns artigos com ele. A propósito, é especialista em solos,
o melhor do mundo. Pedi que ligasse para os mestres dos portos no
oeste da Rússia. Ele mexeu uns pauzinhos e conseguiu todos os
manifestos de navios chineses que tinham zarpado nas últimas três
semanas. Passamos algumas horas examinando-os. A propósito,
vocês vão receber uma conta telefônica bastante obesa. Ah, e eu lhe
disse para cobrar de vocês os serviços de tradução também. Eu
cobraria. Bom, descobrimos que só um navio pôs combustível
suficiente para uma viagem de oito mil milhas quando o manifesto
dizia que estaria viajando quatro mil e quatrocentas. Oito mil
poderia levá-lo de Vyborg a Nova York e de volta a Southampton
Inglaterra, para reabastecer. Eles não iriam atracar no Brooklyn. Iam
deixar o Fantasma e os imigrantes e depois voltar para a Europa.
— Talvez o combustível seja caro demais em Nova York —
sugeriu Dellray.
Rhyme deu de ombros — um dos poucos gestos que seu corpo
ainda lhe permitia — e disse azedamente: — Tudo é caro demais em
Nova York. Mas tem mais: o manifesto do Dragon dizia que ele
estava transportando máquinas industriais para a América. Mas
você precisa informar o calado do navio — até onde o casco afunda
na água, se é que estão interessados para se certificar de não
encalhar em portos rasos. O calado do Dragon foi dado como três
metros. Mas um navio de seu tamanho totalmente carregado deveria
ter um calado de pelo menos sete metros e meio. De modo que ele
estava vazio. A não ser pelo Fantasma e os imigrantes. Ah, e eu disse
que são de vinte a trinta imigrantes porque o Dragon pegou água
fresca e comida para essa quantidade quando, como eu disse, a
tripulação era de sete pessoas.
— Droga — disse o normalmente rígido Harold Peabody com um
riso de admiração.

Mais tarde, naquele dia, satélites espiões haviam captado o


Dragon a cerca de 280 milhas da costa, como Rhyme tinha previsto.
O barco Evan Brigant, da Guarda Costeira, com vinte e cinco
marinheiros a bordo apoiados por metralhadoras duplas calibre
cinquenta e um canhão de 80 mm, tinha entrado em alerta mas
manteve a distância, esperando até o Dragon chegar mais perto da
costa.
Agora — logo antes do amanhecer da terça-feira — o navio
chinês estava em águas americanas e o Evan Brigant o perseguia. O
plano era tomar o controle do Dragon, prender o Fantasma, seu
assistente e a tripulação do navio. A Guarda Costeira guiaria o navio
até o porto em Port Jefferson, Long Island onde os imigrantes seriam
transferidos para um centro de detenção federal para esperar a
deportação ou audiências de pedido de asilo.
Foi feito um contato pelo rádio com o barco da Guarda Costeira
que se aproximava do Dragon. Thom pôs no viva-voz.
— Agente Dellray? Aqui é o capitão Ransom, do Evan Brigant.
— Estou ouvindo, capitão.
— Achamos que eles nos detectaram, tinham um radar melhor
do que imaginávamos. O navio virou direto para a costa. Precisamos
de alguma orientação quanto ao plano de ataque. Há alguma
preocupação de que, se abordarmos, possa haver um tiroteio. Quer
dizer, considerando quem é esse indivíduo em particular. Estamos
preocupados com baixas. Câmbio.
— Da parte de quem? — perguntou Coe. — Dos sem documento?
— O desdém em sua voz quando ele usava a palavra que
descrevia os imigrantes era claro.
— Isso. Estamos achando que deveríamos só fazer o navio se
aproximar e esperar até que o Fantasma se renda.
Dellray levantou a mão e apertou o cigarro que estava atrás da
orelha, uma lembrança de seus dias de fumante.
— Negativo. Siga as ordens originais. Intercepte o navio, aborde
e prenda o Fantasma. O uso de força mortal está autorizado. Ouviu?
Depois de um momento de hesitação o rapaz respondeu: —
Perfeitamente, senhor. Câmbio e desligo.
A linha ficou muda e Thom desconectou a chamada. Uma tensão
elétrica inundou a sala nos calcanhares do silêncio que se seguiu.
Selli o enxugou as palmas das mãos na calça eternamente
amarrotada e ajeitou o revólver de serviço no cinto. Dellray andou
de um lado para o outro. Peabody ligou para o Serviço de Imigração
para dizer que não tinha nada a dizer.
Um instante depois o telefone particular de Rhyme tocou. Thom
atendeu no centro da sala. Ouviu um momento e depois levantou os
olhos.
— É a Dra. Weaver, Lincoln. Sobre a cirurgia. — Ele olhou para a
sala cheia de policiais tensos. — Vou dizer que você liga depois.
— Não — respondeu Rhyme com firmeza. — Eu atendo.
Capítulo 3
Agora os ventos estavam mais fortes, as ondas se arqueando altas
acima da amurada do intrépido Fujou Dragon.
O Fantasma odiava travessias por mar. Era um homem
acostumado a hotéis de luxo, a ser mimado. As viagens de
contrabando humano eram sujas, oleosas, frias, perigosas. O homem
não domou o mar, pensou ele, e nunca domará. É um gélido
cobertor de morte.
Examinou a popa do navio mas não pôde encontrar em nenhuma
parte seu bangshou. Virando-se para a proa, forçou a vista contra o
vento e também não pôde ver terra, só outras implacáveis
montanhas de água negra. Subiu ao passadiço e bateu na abertura de
vidro na porta de trás. O capitão Sen ergueu os olhos e o Fantasma
fez um gesto para ele.
Sen pôs um gorro de lã e saiu para a chuva.
— A Guarda Costeira logo estará aqui — gritou o Fantasma
acima do vento furioso.
— Não. Posso chegar suficientemente perto para desembarcar o
pessoal antes que eles nos interceptem. Tenho certeza que posso.
Mas o Fantasma virou os olhos inexpressivos para o capitão e
disse: — Você fará o seguinte. Deixe aqueles homens no passadiço e
você e o resto da tripulação vão para baixo com os porquinhos.
Esconda-se com eles, faça todo mundo ficar fora das vistas, no
depósito.
— Mas por quê?
— Porque você é um homem bom. Bom demais para mentir. Vou
fingir que sou o capitão. Sou capaz de olhar nos olhos de um homem
e ele vai acreditar no que eu disser. Você não consegue isso.
O Fantasma tirou o gorro de Sen. Em reação, o sujeito começou a
tentar pegá-lo, mas logo baixou a mão. O Fantasma colocou-o.
— Pronto — disse sem qualquer senso de humor. — Estou
parecendo um capitão? Acho que eu daria um bom capitão.
— Este navio é meu.
— Não — devolveu o Fantasma. — Nesta viagem o Dragon é meu
navio. Estou pagando em dinheiro de uma cor só. — Os dólares
americanos eram muito mais valiosos e negociáveis do que o iene
chinês, a moeda em que muitos cabeças de cobra de nível inferior
pagavam.
— Não vai lutar com eles, vai? Com a Guarda Costeira? O
Fantasma deu um riso impaciente.
— Como é que eu poderia lutar com eles? Eles têm dúzias de
marinheiros, certo? — Fez um movimento de cabeça para os
tripulantes na ponte. — Diga aos seus homens para seguirem
minhas ordens. — Quando Sen hesitou, o Fantasma se inclinou para
a frente com o olhar plácido, mas gélido, que tanto inquietava todo
mundo que ele encarava. — Quer dizer alguma coisa?
Sen desviou o olhar e entrou no passadiço para dar instruções
aos tripulantes.
O Fantasma se virou de novo para a popa do navio, outra vez
procurando seu assistente. Em seguida puxou o gorro do capitão
com mais força na cabeça e entrou no passadiço para assumir o
comando do navio que se sacudia.

Os dez juízes do inferno...


O homem se arrastou pelo convés principal até a popa do navio,
pôs a cabeça para fora do Fujou Dragon e começou a ter ânsias de
vômito de novo.
Ficara deitado junto de uma balsa salva-vidas durante toda a
noite, desde que a tempestade tinha aumentado, e fugiu do depósito
fedorento para purgar o corpo da desarmonia gerada pelo mar
revolto.
Os dez juízes do inferno, pensou de novo. Suas entranhas estavam
em agonia por causa das ânsias secas, e ele sentia frio e sofria como
nunca na vida. Apoiando-se no corrimão enferrujado, fechou os
olhos.
Chamava-se Sonny Li, mas o nome dado implacavelmente por
seu pai era Kangmei, que significava ”Resistir à América”. Era típico
de crianças nascidas sob o reino de Mao ter esses nomes
politicamente corretos — e totalmente vergonhosos. Mesmo assim,
como acontecia frequentemente com jovens da China litorânea —
Fujian e Guangdong —, assumira também um nome ocidental. Esse
era o que os rapazes de sua gangue lhe deram: Sonny, por causa do
perigoso e mal-humorado filho de Don Corleone em O poderoso
chefão.
Fiel ao personagem que lhe dera o nome, Sonny Li tinha visto —
e causado — muita violência na vida, mas nada o fizera ficar de
joelhos, literalmente, como esse enjoo do mar.
Juízes do inferno...
Li estava pronto para ser levado pelos seres infernais. Tinha
confessado tudo de ruim que fizera na vida, toda a vergonha que
trouxera ao pai, todas as idiotices, todo o mal. Deixe o deus Taishan
separar para mim um lugar no inferno. Só pare com a porra desse
enjoo! Com a cabeça leve devido a quase duas semanas de comida
escassa, tonto pela vertigem, fantasiava que o mar estava em tumulto
graças a um dragão enlouquecido; queria arrancar a pistola pesada
do bolso e disparar bala após bala contra a fera.
Olhou para trás — para o passadiço do navio — e pensou ter
visto o Fantasma, mas de repente seu estômago se convulsionou e
ele teve de se virar de novo para o corrimão. Sonny Li se esqueceu
do cabeça de cobra, esqueceu a vida perigosa na Província de Fujian,
esqueceu tudo, menos os dez juízes do inferno alegremente
instigando os demônios a cutucar sua barriga agonizante com as
lanças.
Começou a ter ânsias de vômito de novo.

A mulher alta se encostou no carro, e os contrastes se destacaram:


o cabelo ruivo agitado pelo vento forte, o amarelo do velho Chevy
Camaro, o cinto de utilidades de náilon preto prendendo uma
pistola no quadril.
Amelia Sachs, de jeans e um agasalho com capuz em cujas costas
estavam as palavras NYPD — CENA DO CRIME, olhou para as
águas turbulentas do porto perto de Port Jefferson, no litoral norte
de Long Island. Examinou a área ao redor. A Imigração e
Naturalização, o FBI, a Polícia do Condado de Suffolk e seu próprio
departamento tinham isolado um estacionamento que num dia
comum de agosto normalmente estaria apinhado de famílias e
adolescentes vindo pegar uns raios de sol. Mas a tempestade tropical
mantivera o pessoal de férias muito longe da costa.
Parados ali perto estavam dois grandes ônibus de prisioneiros do
Departamento de Correção que o Serviço de Imigração tinha pedido
emprestados, meia dúzia de ambulâncias e quatro furgões cheios de
policiais táticos das várias agências. Em teoria, quando o Dragon
chegasse ali, estaria sob o controle da tripulação do barco Evan
Brigant, e o Fantasma e seu assistente estariam sob custódia. Mas
haveria um certo período de tempo entre o Fantasma ter visto o
barco da Guarda Costeira e a abordagem — talvez até quarenta
minutos. Isso daria ao Fantasma e ao seu bangshou tempo suficiente
para se disfarçarem de imigrantes e esconder armas, uma tática
usada frequentemente pelos cabeças de cobra. A Guarda Costeira
talvez não conseguisse revistar com eficácia os imigrantes e o navio
antes dele chegar aqui ao porto, e o cabeça de cobra e qualquer
assistente poderiam tentar alcançar a liberdade a tiros.
A própria Sachs correria um perigo em particular. Seu serviço era
”andar pela grade”, fazer uma varredura do navio em busca de
provas de crimes que pudessem ajudar nos vários processos contra o
Fantasma e para achar pistas de seus colegas. Se o encarregado da
cena do crime estiver examinando um local onde, digamos, um
corpo é encontrado ou um assalto ocorreu, muito depois do
criminoso ter fugido, há relativamente pouco perigo para o policial.
Mas se a cena é o local a ser invadido, envolvendo um número de
criminosos cuja aparência não é bem conhecida, os riscos podem ser
grandes, particularmente no caso de contrabandistas de pessoas, que
têm acesso a bons armamentos.
Seu celular tocou e ela se sentou no banco apertado do Chevy
para atender.
Era Rhyme.
— Estamos todos a postos — disse ela.
— Achamos que eles sabem de nós. O Dragon virou para terra. A
Guarda Costeira vai interceptá-lo antes de chegar a terra, mas agora
achamos que o Fantasma pode estar se preparando para uma luta.
Ela pensou nas pobres pessoas a bordo.
— Ela telefonou? — perguntou Sachs aproveitando uma pausa
de Rhyme.
Uma hesitação. Em seguida ele disse: — Sim. Há uns dez
minutos. Eles têm uma vaga no Hospital Manha an na semana que
vem. Ela vai ligar de volta com os detalhes.
— Ah.
”Ela” era a Dra. Cheryl Weaver, uma renomada neurocirurgiã
que tinha vindo da Carolina do Norte para a área de Nova York dar
aulas durante um semestre no Hospital Manha an. E a ”vaga” se
referia a uma cirurgia experimental que Rhyme ia fazer — uma
operação que poderia melhorar seu estado de tetraplégico. Uma
operação da qual Sachs não era a favor.
— Vou pedir mais umas ambulâncias para a área — disse
Rhyme. Seu tom de voz agora era seco; ele não gostava de que
assuntos pessoais se intrometessem no trabalho.
— Eu cuido disso.
— Ligo para você de novo, Sachs.
O telefone ficou quieto.
Ela correu em meio ao aguaceiro até um dos policiais do
Condado de Suffolk e pediu mais três peritos médicos. Depois
voltou ao seu Chevy e sentou-se no banco da frente, ouvindo o
barulho da chuva forte no para-brisa e no teto de lona. A umidade
fazia o interior cheirar a plástico, óleo de motor e tapetes velhos.
O pensamento na operação de Rhyme trouxe à mente uma
conversa recente com outro médico, que não tinha nada a ver com a
medula espinhal dele. Não queria que os pensamentos voltassem
àquela conversa — mas voltaram.
Há duas semanas Amelia Sachs estivera parada junto à máquina
de café na sala de espera de um hospital, perto da sala onde Lincoln
Rhyme estava sendo examinado. Lembrou-se do sol de julho caindo
brutalmente sobre o chão de ladrilhos verdes. O homem de jaleco
branco tinha se aproximado e se dirigido a ela com uma solenidade
gélida.
Ah, Sra. Sachs. Cá está.
Olá, doutor.
Acabei de me reunir com a médica de Lincoln Rhyme.
É?
Preciso conversar com você sobre uma coisa.
Pelo jeito está parecendo má notícia, doutor — disse ela, o coração
martelando.
Por que não nos sentamos ali no canto? — perguntou ele, parecendo
mais um gerente de funerária do que um médico.
Aqui está bem — disse ela com firmeza. — Fale. Seja direto.
Agora um sopro de vento a fez balançar, e ela olhou para o porto
de novo, para o píer comprido, onde o Fujou Dragon atracaria.
Má notícia...
Diga. Seja direto...
Sachs passou seu Motorola para a frequência segura da Guarda
Costeira, não só para ficar sabendo o que acontecia com o Dragon
mas também para impedir que os pensamentos voltassem àquela
sala de espera luminosa e calorenta.

— Que distância da terra? — perguntou o Fantasma aos dois


tripulantes que restavam no passadiço.
— Uma milha, talvez menos. — O homem magro no timão olhou
rapidamente para o Fantasma. — Vamos virar logo antes da parte
rasa e tentar ir para o porto.
O Fantasma olhou para a frente. De cima da crista de uma onda
ele pôde ver a linha de terra cinza-clara.
— Continue direto no rumo — disse ele. — Eu volto num
momento. Segurando-se, o Fantasma saiu. O vento e a chuva
chicotearam seu rosto enquanto ele descia até o convés de
contêineres e depois para o inferior. Chegou à porta de metal que
dava no depósito. Entrou e olhou os porquinhos embaixo. Os rostos
deles se viraram para cima com medo e inquietação. Os homens
patéticos, as mulheres desarrumadas, as crianças imundas — até
mesmo algumas garotas inúteis. Por que aquelas famílias idiotas
tinham se incomodado em trazê-las?
— O que é? — perguntou o capitão Sen. — O barco da Guarda
Costeira está à vista?
O Fantasma não respondeu. Estava examinando os porquinhos à
procura de seu bangshou. Mas não havia sinal dele. Com raiva, virou-
se.
— Espere — gritou o capitão.
O cabeça de cobra saiu e fechou a porta.
— Bangshou — gritou.
Não houve resposta. O Fantasma não se incomodou em chamar
pela segunda vez. Aparafusou as trancas de modo que a porta do
depósito não pudesse ser aberta por dentro. Correu de volta para
sua cabine, que ficava no convés do passadiço. Enquanto lutava
subindo a escada, tirou do bolso uma velha caixa de plástico preto,
exatamente como a que abria a porta da garagem de sua casa
luxuosa em Xiamen.
Abriu a caixa e apertou um botão, depois outro. O sinal de rádio
atravessou dois conveses até a bolsa de lona que ele havia posto no
depósito de popa, abaixo da linha d'água. O sinal fechou o circuito e
mandou a carga elétrica de uma bateria de nove volts para um
detonador encravado em dois quilos de explosivo Composição 4.
A detonação foi gigantesca, muito maior do que ele esperava, e
lançou uma alta coluna d'água no ar, mais alta do que as maiores
ondas.
O Fantasma foi jogado da escada no convés principal. Ficou caído
de lado, tonto.
Demais!, percebeu. Era explosivo demais. O navio já estava se
inclinando enquanto recebia a água do mar. Ele tinha pensado que
demoraria meia hora para afundar. Em vez disso, seriam minutos.
Olhou para o convés do passadiço, onde seu dinheiro e as armas
estavam na pequena cabine, e de novo examinou os outros conveses
em busca de seu bangshou. Nenhum sinal dele. Mas não havia tempo
para procurar. O Fantasma se levantou e foi correndo pelo convés
inclinado até a balsa mais próxima e começou a soltar as cordas.
O Dragon estremeceu de novo, rolando ainda mais de lado.
Capítulo 4
O som foi ensurdecedor. Uma centena de marretas num pedaço
de ferro.
Quase todos os imigrantes tinham sido jogados no chão frio e
molhado. Sam Chang ficou em pé e pegou seu filho mais novo, que
tinha caído numa poça de água oleosa. Depois ajudou a mulher e o
pai idoso a se levantarem.
— O que aconteceu? — gritou ao capitão Sen, que estava lutando
em meio às pessoas em pânico para chegar à porta que levava ao
convés. — Batemos nas rochas?
— Não, não foram rochas — gritou o capitão de volta.- A água
tem trinta metros de profundidade aqui. Ou o Fantasma explodiu o
navio ou a Guarda Costeira está disparando contra nós. Não sei.
— O que está acontecendo? — perguntou um homem em pânico,
sentado perto de Chang. Era o pai da família que ficava ao lado dos
Chang no depósito. Wu Qichen era seu nome. Sua mulher estava
imóvel no catre ali perto. Ela estivera febril e letárgica durante toda a
viagem, e até agora mal parecia perceber a explosão e o caos. O que
está acontecendo? — repetiu Wu numa voz aguda.
— Estamos afundando! — gritou o capitão e juntos, ele e vários
tripulantes agarraram as trancas da porta e tentaram abri-la. Mas
elas não se mexeram. — Ele bloqueou por fora!
Alguns dos imigrantes, homens e mulheres, começaram a gritar e
a se balançar para a frente e para trás; crianças permaneciam
imobilizadas de medo, com lágrimas descendo pelas bochechas
sujas. Sam Chang e vários tripulantes se juntaram ao capitão,
puxando as trancas. Mas as grossas barras de metal não cediam um
milímetro.
Chang notou uma mala no chão. Lentamente ela tombou de lado
e bateu no piso, espirrando água; o Dragon estava se inclinando
muito. A água fria do mar entrava em jatos no depósito através de
emendas nas placas de metal. A poça em que seu filho caíra tinha
agora meio metro de profundidade. Várias pessoas escorregavam
nas poças cada vez mais fundas, cheias de lixo, bagagem, comida,
copos de isopor, papéis. Elas gritavam e cambaleavam na água.
Homens, mulheres e crianças desesperados batiam inutilmente
com as bagagens nas paredes, tentando atravessar o metal,
agarrando-se uns aos outros, soluçando, gritando por ajuda,
rezando... A mulher com cicatriz no rosto agarrou a filha pequena do
mesmo modo como a menina agarrava um imundo boneco
Pokémon. As duas estavam soluçando.
Um gemido forte vindo da embarcação agonizante propagou-se
pelo ar viciado, e a água vil e suja ficou mais profunda.
Os homens na porta não conseguiam nada com as trancas. Chang
tirou o cabelo de cima dos olhos.
— Isso não vai funcionar — disse ao capitão. — Precisamos de
outra saída.
— Há um painel de acesso no piso, nos fundos do depósito disse
o capitão Sen. — Ele dá na sala de máquinas. Mas se foi lá que o
casco se rompeu não vamos poder abrir. Pressão demais...
— Onde? — perguntou Chang.
O capitão apontou para uma pequena porta presa com quatro
parafusos. Tinha tamanho apenas para uma pessoa passar de cada
vez. Ele e Chang foram até lá, lutando para ficar em pé no ângulo
inclinado do piso. O magro Wu Qichen ajudou sua mulher doente a
se levantar; a mulher tremia com arrepios. Chang se curvou para a
esposa e disse em voz firme: — Escute. Você vai manter nossa
família junta. Fiquem perto de mim, junto daquela passagem.
— Sim, marido.
Chang se juntou ao capitão ao pé da portinhola e, usando o
canivete de Sen, conseguiram tirar os parafusos. Chang empurrou a
porta com força e ela caiu do outro lado, sem resistência. A água
estava enchendo a sala de máquinas, mas não estava tão fundo
quanto no depósito. Chang pôde ver uma escada íngreme indo para
o convés principal.
Os imigrantes gritaram ao ver a passagem aberta. Correram em
pânico, imprensando algumas pessoas contra as paredes metálicas.
Chang golpeou dois homens com seu punho grande.
— Não! — gritou. — Um de cada vez, ou todos vamos morrer.
Vários outros, com desespero nos olhos, partiram para Chang.
Mas o capitão se virou contra eles brandindo o canivete, e eles
recuaram. O capitão Sen e Chang ficaram lado a lado, diante do
grupo.
— Um de cada vez — repetiu o capitão. — Atravessem a sala de
máquinas e subam a escada. Há balsas no convés.
Ele assentiu para os imigrantes mais próximos da passagem, e
eles se arrastaram para fora. O primeiro foi John Sung, o médico
dissidente com quem Chang tinha passado algum tempo
conversando durante a viagem. Sung passou pela porta e se agachou
para ajudar os outros a sair. Um jovem casal saiu em seguida e foi
correndo pela escada.
O capitão viu o olhar de Chang e assentiu.
— Vá!
Chang fez um gesto para Chang Jiechi seu pai, o velho passou
pela porta, e John Sung segurou-o pelo braço. Em seguida foram os
filhos de Chang: o adolescente William e Ronald, de oito anos.
Depois, sua mulher. Chang saiu por último e apontou a escada para
a família. E se virou para ajudar Sung a tirar os outros.
Em seguida foi a família Wu: Qichen, sua mulher, a filha
adolescente e o filho pequeno.
Chang enfiou a mão no depósito para ajudar outro imigrante,
mas dois tripulantes correram para a porta. O capitão Sen os agarrou
e gritou furioso: — Eu ainda estou no comando. O Dragon é meu
navio. Os passageiros vão antes.
— Passageiros? Seu idiota, eles são gado! — gritou um tripulante
e derrubando de lado a mãe com cicatriz no rosto e sua filhinha,
passou pela abertura. O outro foi logo atrás, empurrando Sung no
chão e correndo para a escada. Chang ajudou o médico a ficar em pé.
— Estou bem — gritou Sung e agarrou um amuleto que tinha no
pescoço, murmurando uma prece rápida. Chang ouviu o nome Chen-
Wu, o deus do céu do norte e protetor contra os criminosos.
O navio se inclinou bruscamente e mais rápido. O vento
provocado pelo ar que escapava começou a soprar forte pela
passagem enquanto a água entrava, enchendo o depósito. Os gritos
eram de partir o coração e logo estavam misturados ao som de
engasgos. Ele está afundando, pensou Chang. Mais alguns minutos
no máximo. Ouviu um som sibilante e agudo atrás. Olhou para cima
e viu água descendo pela escada e caindo sobre os motores enormes
e oleosos. Um deles parou de girar e as luzes se apagaram. Em
seguida o segundo motor ficou silencioso.
John Sung perdeu o apoio da mão e escorregou pelo piso até a
parede.
— Saia — gritou Chang para ele. — Não podemos fazer mais
nada aqui.
O médico assentiu, arrastou-se rapidamente para a escada e
subiu. Mas o próprio Chang se virou para a porta, tentando resgatar
mais um ou dois. Estremeceu, perturbado com o que via: a água
jorrava pela porta, da qual quatro braços desesperados se esticavam
para a sala de máquinas, pedindo ajuda. Chang agarrou o braço de
um homem, mas ele não podia ser desalojado. O braço estremeceu
uma vez e Chang sentiu os dedos se afrouxarem. Através da água
que agora vinha aos borbotões para a sala de máquinas Chang pôde
ver vagamente o rosto do capitão Sen. Chang fez um gesto para ele
tentar sair, mas o capitão desapareceu na escuridão do depósito. Mas
alguns segundos depois o careca nadou de volta para a porta e
empurrou alguma coisa na direção de Chang, através de um jorro de
água do mar.
O que era?
Agarrando um tubo para não escorregar, Chang enfiou a mão na
água espumante para pegar o que o capitão estendia. Fechou a mão
musculosa em volta de um pano e puxou com força. Era uma criança
pequena, a filha da mulher da cicatriz. Ela passou pela porta
empurrada pelos braços já sem vida. O bebê estava engasgado, mas
consciente Chang apertou-a contra o peito com firmeza e soltou o
tubo. Escorregou pela água chegando à parede e depois nadou até a
escada, por onde subiu através da cascata gélida para o convés
acima.
Ficou boquiaberto diante do que viu — a popa mal estava acima
da água, e ondas cinza e turbulentas já cobriam metade do convés.
Wu Qichen, o pai e os filhos de Chang estavam lutando para
desamarrar uma grande balsa inflável laranja na popa do navio. Ela
já estava flutuando, mas logo ficaria debaixo d'água. Chang foi
cambaleando, entregou o bebê à sua mulher e começou a ajudar os
outros a desamarrar a corda. Mas logo o nó que prendia a balsa
estava debaixo das ondas. Chang mergulhou e puxou inutilmente o
nó de cânhamo, os músculos tremendo com o esforço. Então uma
mão apareceu perto da sua. Seu filho William estava segurando um
canivete comprido e afiado que ele devia ter achado no convés.
Chang pegou-o e serrou a corda até ela ceder.
Chang e o filho voltaram à tona e, ofegando, ajudaram sua
família, os Wu, John Sung e o outro casal a entrar na balsa, que
rapidamente foi levada para longe do navio pelas ondas enormes.
Ele se virou para o motor de popa. Puxou a corda para dar a
partida mas não funcionou. Precisavam acioná-lo imediatamente;
sem o controle de um motor seriam emborcados pelo mar em
segundos. Começou a puxar furiosamente e por fim o motor ganhou
vida.
Chang se agarrou na popa da balsa e rapidamente virou-a para
as ondas. O barquinho saltou furiosamente, mas não virou. Ele
acelerou e manobrou cuidadosamente num círculo, voltando pela
névoa ”e a chuva em direção ao navio agonizante.
— Aonde você está indo? — perguntou Wu.
— Os outros — gritou Chang. — Temos de achar os outros.
Alguns podem ter...
Foi então que a bala atravessou o ar a apenas um metro deles.

O Fantasma estava furioso.


Estava em pé na proa do Fujou Dragon, que ia afundando, a mão
no colhedor da balsa de proa, e olhou de novo para o mar, a
cinquenta metros, onde tinha visto alguns porquinhos desgraçados
fugindo.
Disparou a pistola mais uma vez. Errou de novo. As ondas
enormes tornavam impossível acertar a essa distância. Fez uma
careta de fúria enquanto seus alvos manobravam para trás do
Dragon, fora de sua vista. O Fantasma olhou para o convés do
passadiço a distância, onde ficava sua cabine, na qual estava sua
metralhadora e seu dinheiro: mais de cem mil em dinheiro de uma
cor só. Pensou momentaneamente se conseguiria voltar à cabine a
tempo.
Como se em resposta, um enorme jato de ar e espuma brotou do
casco do Dragon e o navio começou a afundar ainda mais depressa,
tombando mais para o lado.
Bom, a perda doía, mas não valia sua vida. O Fantasma subiu na
balsa e se afastou do navio usando um remo. Examinou as águas em
volta, lutando para ver através da névoa e da chuva. Duas cabeças
subiam e desciam, com os braços acenando freneticamente, dedos
abertos em pânico.
— Aqui, aqui! — gritou o Fantasma. — Eu salvo vocês! — Os
homens se viraram para ele esforçando-se por ficar acima da água,
de modo que ele pudesse vê-los melhor. Eram dois tripulantes, os
que tinham estado no passadiço. Ele levantou de novo a pistola
automática militar chinesa, Modelo 51. Matou os tripulantes com um
tiro em cada.
Então ligou o motor de popa e, cavalgando as ondas, procurou
mais uma vez seu bangshou. Mas não havia sinal dele. O assistente
era um matador implacável e intrépido no meio de tiroteios, mas era
um idiota quando estava fora do seu elemento. Provavelmente havia
caído na água e se afogado, porque não jogaria fora sua arma pesada
e a munição. Bom, o Fantasma tinha outras coisas em mente. Virou a
balsa para onde tinha visto os porquinhos pela última vez e
aumentou a aceleração do motor de popa.

Não houve tempo para achar um colete salva-vidas. Nem para


nada.
Assim que a explosão despedaçou o casco enferrujado do Dragon,
derrubando Sonny Li de barriga para baixo, o navio começou a se
inclinar, a água passando por cima dele e puxando-o
implacavelmente para o oceano. De repente ele se pegou
escorregando para fora do navio, sozinho e desamparado nas
frenéticas montanhas de água.
Dez juízes do inferno, porra, pensou amargamente em inglês.
A água estava fria, pesada, insuportavelmente salgada. As ondas
viraram-no de costas, depois ergueram-no bem alto e o afundaram
de novo. Li conseguiu subir à tona e olhou em volta procurando o
Fantasma, mas no ar nublado e na chuva forte não podia ver
ninguém. Engoliu um bocado daquela água enjoativa e começou a
engasgar e tossir. Fumava três maços de cigarros por dia e bebia
litros de cerveja Tsingtao e mao-tai logo estava sem fôlego, e os
músculos pouco acostumados de suas pernas começaram a ter
cãibras dolorosas.
Relutantemente levou a mão ao cinto e sacou sua pistola
automática. Soltou-a e a arma afundou rapidamente afastando-se de
seus dedos. Fez o mesmo com os três pentes de munição que
estavam no bolso de trás. Isso ajudou-o a boiar um pouco melhor,
mas não bastava. Precisava de um colete, qualquer coisa que
flutuasse, qualquer coisa para dividir o fardo agonizante de se
manter na superfície.
Pensou ter ouvido o som de um motor de popa e se virou o
quanto pôde. A trinta metros de distância havia uma balsa laranja.
Levantou a mão, mas uma onda pegou-o no rosto e ele estava
inalando e com os pulmões cheios da água que ardia.
Uma dor lancinante no peito.
Ar... preciso de ar.
Outra onda chocou-se contra ele. Li afundou, puxado pelos
grandes músculos de água cinzenta. Olhou para as mãos. Por que
não estavam se mexendo?
Bata as pernas, bata os braços! Não deixe o mar sugá-lo para
baixo!
Lutou mais uma vez até a superfície.
Não deixe...
Engoliu mais água.
Não deixe...
Sua visão começou a ficar preta.
Dez juízes do inferno...
Bom, pensou Sonny Li, parecia que ele ia encontrá-los.
Capítulo 5
Estavam aos pés dele, cerca de uma dúzia, na sopa fria no fundo
da balsa, apanhados entre as montanhas de água entre eles e a chuva
dilacerante que vinha de cima. Suas mãos agarravam
desesperadamente a corda que circulava a balsa laranja.
Sam Chang, relutante capitão daquele barco frágil, cuidava dos
passageiros. As duas famílias — a sua e os Wu —, amontoadas na
parte traseira da balsa, em volta dele. Na frente iam o Dr. John Sung
e os dois outros que tinham escapado do depósito, que Chang só
conhecia pelos primeiros nomes, Chao-hua e sua mulher Rose.
Uma onda se chocou sobre eles, encharcando ainda mais os
infelizes ocupantes. A mulher de Chang, Mei-Mei, tirou o suéter e
enrolou na filhinha da mulher com a cicatriz. A menina, lembrou
Chang com uma pontada, chamava-se Po-Yee, que significava
Criança Adorada; ela fora a mascote de boa sorte da viagem.
— Vá! — gritou Wu. — Vá para terra.
— Nós temos de procurar os outros.
— Ele está atirando em nós.
Chang olhou para o mar agitado. Mas o Fantasma não estava à
vista.
— Nós já vamos. Mas temos de resgatar qualquer um que possa
ser salvo. Procurem!
William de dezessete anos, esforçou-se por ficar de joelhos e
forçou a vista através dos borrifos de água. A filha adolescente de
Wu fez o mesmo.
Wu gritou alguma coisa, mas sua cabeça estava virada para o
outro lado e Chang não pôde ouvir as palavras.
Chang enrolou o braço na corda e forçou os pés contra um
suporte de remo para firmar o corpo enquanto lutava para manobrar
a balsa num círculo em volta do Fujou Dragon, a vinte metros de
distância. O navio afundou ainda mais, com um jorro de água e
espuma saltando ocasionalmente enquanto o ar escapava de um
rasgo na lateral do casco ou de alguma escotilha. O gemido, como de
um animal sentindo dor, aumentava e diminuía.
— Lá — gritou William. — Acho que vi alguém.
— Não — exclamou Wu Qichen. — Temos de ir embora! O que
estão esperando?
William estava apontando.
— É, pai. Lá!
Chang podia ver uma forma escura perto de uma forma branca
muito menor, a dez metros deles. Uma cabeça e uma mão, talvez.
— Deixe pra lá — gritou Wu Qichen. — O Fantasma vai ver a
gente! Vai atirar na gente!
Ignorando-o, Chang se aproximou das formas, que realmente
eram de um homem. Estava pálido e engasgado, tentando respirar,
com um ar de terror no rosto. Seu nome era Sonny Li, lembrou
Chang. Enquanto a maioria dos imigrantes tinha passado o tempo
conversando e lendo uns para os outros, vários homens que
viajavam sem família ficavam sozinhos. Li estava entre esses. Havia
alguma coisa agourenta nele. Tinha ficado sozinho durante a viagem
inteira, ocasionalmente olhando furioso para as crianças que faziam
barulho em volta e não raro subindo às escondidas ao convés, o que
era estritamente proibido pelo Fantasma. Quando falava, Li fazia
perguntas demais sobre o que as famílias planejavam fazer quando
chegassem ao Novo Mundo e onde morariam — assuntos que os
imigrantes ilegais espertos não discutiam.
Mesmo assim, Li era um ser humano passando necessidade, e
Chang tentaria salvá-lo.
O homem foi engolido por uma onda.
— Deixe-o — sussurrou Wu com raiva. — Ele se foi. Na frente da
balsa a jovem esposa, Rose, gritou: — Por favor, vamos!
Chang virou a balsa para uma onda grande, impedindo-a de
emborcar. Quando ficaram estáveis de novo Chang viu um brilho
laranja a cerca de cinquenta metros de distância, subindo e
descendo. Era a balsa do Fantasma. O cabeça de cobra virou na
direção deles. Uma onda subiu entre os dois barcos e eles se
deixaram de ver momentaneamente Chang acelerou o motor e virou
na direção do homem que se afogava.
— Abaixados, todo mundo se abaixe!
Reverteu o motor rapidamente assim que chegaram perto de Li,
inclinou-se por cima da borracha grossa e agarrou o imigrante pelo
ombro, puxando-o para a balsa, onde ele desmoronou no fundo,
tossindo ferozmente. Outro tiro. Um jorro de água saltou perto deles
enquanto Chang acelerava a balsa em volta do Dragon, pondo outra
vez o navio que afundava entre eles e o Fantasma.
A atenção do cabeça de cobra se afastou um momento quando
viu duas pessoas na água — tripulantes flutuando com coletes
laranjas, a uns vinte ou trinta metros do assassino. Ele acelerou na
direção dos dois, com o motor a toda.
Entendendo agora que o sujeito ia matá-los, eles balançavam os
braços desesperadamente na direção de Chang e tentavam nadar
para longe da balsa que se aproximava. Chang avaliou a distância
até os tripulantes, imaginando se poderia alcançá-los antes que o
cabeça de cobra estivesse suficientemente perto para acertar os tiros.
A névoa e a chuva — e as ondas enormes — atrapalhariam a mira do
Fantasma. Sim, ele achava que conseguiria. Começou a acelerar.
De repente uma voz soou em seu ouvido.
— Não. Está na hora de ir.
Era seu pai, Chang Jiechi, que tinha falado; o velho havia se
ajoelhado e estava inclinado para perto do filho.
— Leve sua família para a segurança.
— Sim, Baba — assentiu Chang usando o termo chinês afetuoso
para ”papai”. Em seguida apontou a balsa para terra e acelerou ao
máximo.
Um minuto depois veio o som de uma arma disparando, depois
outro, enquanto o cabeça de cobra assassinava os dois tripulantes. A
alma de Sam Chang gritou de desânimo diante do som. Perdoem-
me, foi seu pensamento para os marinheiros. Perdoem-me.
Olhando para trás, viu uma forma laranja em meio à névoa; a
balsa do Fantasma vindo atrás deles. Sentiu o desespero nos ossos.
Como dissidente na China, Sam Chang estava acostumado ao medo.
Mas na República Popular o medo era uma inquietação insidiosa
com a qual você aprendia a conviver; não era nem um pouco como
isso, o terror de ver um assassino louco caçando sua família amada e
seus companheiros.
— Fiquem abaixados! Todo mundo fique abaixado! — Ele se
concentrou em manter a balsa virada para cima e no máximo de
velocidade possível.
Outro tiro. A bala acertou a água ali perto. Se o Fantasma
acertasse a borracha, eles afundariam em minutos.
Um gemido gigantesco, fantasmagórico, encheu o ar. O Fujou
Dragon se virou completamente de lado e desapareceu sob a
superfície. A onda enorme criada pelo navio que afundava se
espalhou como o anel de choque da explosão de uma bomba. A
balsa dos imigrantes ia longe demais para ser afetada, mas a do
Fantasma estava muito mais perto do navio. O cabeça de cobra
olhou para trás e viu a onda alta vindo em sua direção. Ele se
desviou de lado e, depois de um momento, desapareceu de vista.
Mesmo sendo um professor, um artista, ativista político, como
muitos chineses Sam Chang também aceitava mais a espiritualidade
e os portentos do que aconteceria com um intelectual do Ocidente.
Pensou um instante que Guan Yin, a deusa da misericórdia, podia ter
intercedido por eles e mandado uma morte aquática para o
Fantasma.
Mas apenas um instante depois John Sung, que estava olhando
para trás, gritou: — Ele ainda está lá. Está vindo. O Fantasma vem
atrás de nós.
Assim, Guan Yin está ocupada em outro lugar hoje, pensou Sam
Chang amargamente. Se quisermos sobreviver temos de fazer isso
sozinhos. Ajustou o rumo para terra. E acelerou para longe dos
cadáveres frouxos e os destroços que flutuavam como lápides
marcando a sepultura do capitão Sen, da sua tripulação e das muitas
pessoas que tinham se tornado amigas de Chang nas últimas
semanas.

— Ele afundou o navio.


A voz de Lon Selli o saiu como um sussurro.
— Meu Deus. — O telefone se afastou de seu ouvido.
— O quê? — perguntou Harold Peabody, chocado. Uma mão
gorda subiu até seus óculos desajeitados e tirou-os. — Ele afundou?
O detetive assentiu, sério.
— Santo Deus, não — disse Dellray.
A cabeça de Lincoln Rhyme, uma das poucas partes que ainda se
movia, virou-se para o policial corpulento. Chocado com a notícia,
ele sentiu uma onda de calor passar por todo o corpo — apenas uma
sensação emocional, claro, quando ela desceu abaixo do pescoço.
Dellray parou de andar de um lado para o outro, Peabody e Coe
se entreolharam. Selli o baixou o olhar para o parque amarelo
enquanto ouvia de novo ao telefone e em seguida levantava a
cabeça.
— Meu Deus, Linc, o navio afundou. Com todo mundo a bordo.
Ah, não...
— A Guarda Costeira não sabe exatamente o que aconteceu, mas
eles captaram uma explosão subaquática e dez minutos depois o
Dragon desapareceu do radar.
— Quantas baixas? — perguntou Dellray.
— Não temos ideia. A Guarda Costeira ainda está a algumas
milhas de distância. E eles não sabem a localização — ninguém a
bordo do Dragon mandou um sinal de emergência. Esses sinais dão
as coordenadas exatas.
Rhyme olhou para o mapa de Long Island, com a extremidade
leste partida como um rabo de peixe. Seu olhar estava num alfinete
vermelho que marcava a localização aproximada do Dragon.
Qual a distância do litoral?
— Quase uma milha.
A mente ágil de Rhyme tinha examinado meia dúzia de
possibilidades lógicas do que poderia acontecer quando a Guarda
Costeira abordasse o Fujou Dragon, algumas otimistas, outras
envolvendo alguns feridos e perda de vidas. A prisão de criminosos
era um jogo, e você podia minimizar os riscos mas nunca eliminá-los
completamente. Mas afogar todo mundo que estava a bordo? Todas
aquelas famílias e crianças? Não, esse pensamento nunca lhe
ocorrera.
Meu Deus, ele estivera deitado em sua luxuosa cama de três mil
dólares e ouvindo o pequeno problema do Serviço de Imigração
quanto ao paradeiro do Fantasma como se fosse um jogo divertido
numa festa. Depois tinha chegado às suas conclusões e dado
alegremente a solução.
E havia parado aí — jamais pensando um passo além, jamais
pensando que os imigrantes poderiam estar correndo um risco tão
terrível.
Os imigrantes ilegais são chamados de ”desaparecidos” — se
tentarem enganar um cabeça de cobra, são mortos. Se reclamarem,
são mortos. Simplesmente desaparecem. Para sempre.
Lincoln Rhyme estava furioso consigo mesmo. Sabia como o
Fantasma era perigoso; deveria ter antecipado essa reviravolta
mortal. Fechou os olhos momentaneamente e ajeitou o fardo em
algum lugar da alma. Desista dos mortos, costumava dizer a si
mesmo — e aos peritos técnicos que costumavam trabalhar com ele
—, e agora reiterava silenciosamente o comando. Mas não podia
abandoná-los. Aqueles mortos não eram cadáveres numa cena de
crime, cujos olhos vítreos e a boca rindo num ricto você aprendia a
ignorar para fazer o serviço. Aqui estavam famílias inteiras mortas
por causa dele.
Depois de terem abordado o navio, prendido o Fantasma e
examinado a cena do crime, seu envolvimento no caso terminaria,
pensara Rhyme, e ele voltaria a se preparar para a operação. Mas
agora sabia que não poderia abandonar o caso. O caçador que havia
nele tinha de achar esse homem e levá-lo à justiça.
O telefone de Dellray tocou e ele atendeu. Depois de uma
conversa breve ele desligou o aparelho com o dedo comprido.
— O negócio é o seguinte. A Guarda Costeira acha que duas
balsas motorizadas estão indo para terra. — Ele foi até o mapa e
apontou. — Provavelmente por aqui. Easton, uma cidadezinha na
estrada para Orient Point. Eles não podem colocar um helicóptero no
ar com a tempestade tão forte, mas mandaram umas lanchas para
procurar sobreviventes, e vamos mandar nosso pessoal que está em
Port Jefferson para o lugar aonde as balsas estão indo.
Alan Coe coçou os cabelos ruivos, só um pouquinho mais escuros
que os de Sachs, e disse a Peabody: — Quero ir lá.
O supervisor do Serviço de Imigração respondeu incisivamente:
— Não estou tomando decisões pessoais aqui.
Era um comentário não muito sutil sobre o fato de que Dellray e
o FBI comandavam o show, uma das muitas farpas que tinham sido
trocadas entre os dois agentes nos últimos dias.
— O que acha, Fred? — perguntou Coe.
— Não — disse o agente, preocupado.
— Mas eu...
Dellray balançou a cabeça enfaticamente.
— Não há nada que possa fazer, Coe. Se eles prenderem o sujeito,
pode interrogá-lo na detenção. Jogar tudo que quiser contra ele. Mas
agora esta é uma operação tática de apreensão, o que não é sua
especialidade.
O jovem agente tinha dado boas informações sobre o Fantasma,
mas Rhyme achava difícil trabalhar com ele. Coe ainda estava com
raiva e ressentido porque não o deixaram ir a bordo da lancha que
interceptaria o navio — outra batalha que Dellray tivera de travar.
— Ora, isso é bobagem. — Coe se deixou cair mal-humorado
numa cadeira.
Sem responder, Dellray cheirou seu cigarro apagado, enfiou-o
atrás da orelha e atendeu a outro telefonema. Depois de desligar,
falou com a equipe: — Estamos tentando montar bloqueios de
estrada nas rodovias menores que saem da área, as Routes 25, 48 e
84. Mas está na hora do rush, e ninguém vai ter bagos para fechar a
via expressa de Long Island ou a Sunrise Highway.
— Podemos ligar para os cobradores de pedágio no túnel e nas
pontes — disse Selli o.
Dellray deu de ombros.
— Isso é alguma coisa, mas não basta. Diabos, Chinatown é a
área do sujeito. Assim que estiver lá, vai ser um inferno encontrá-lo.
Nós temos de pegá-lo na praia, se houver algum modo.
— E quando as balsas vão chegar a terra? — perguntou Rhyme.
— Eles acham que dentro de vinte, trinta minutos. E nosso
pessoal está a oitenta quilômetros de Easton.
— Há algum modo de mandar alguém lá mais cedo? —
perguntou Peabody.
Rhyme pensou durante um momento e em seguida disse no
microfone preso à sua cadeira de rodas.
— Comando. Telefone.

O carro-madrinha das 500 milhas de Indianápolis em 1969 era


um Camaro Super Sport conversível da General Motors.
Para essa honra, a GM escolheu o carro mais forte de sua linha —
o SS com motor Turbojet V-8 de 396 polegadas cúbicas, capaz de
desenvolver 375 HP. E se você fosse inclinado a envenenar o veículo
— retirando silenciadores, proteção antiferrugem do chassi, barras
de estabilização e mexendo com as polias e cabeças de cilindros, por
exemplo —, poderia elevar a potência efetiva para 450 HP.
O que o tornava uma máquina da pesada para disputas de
velocidade.
Mas uma desgraça para dirigir a duzentos quilômetros por hora
em meio a uma tempestade.
Apertando o volante forrado de couro, sentindo a dor nos dedos
com artrite, Amelia Sachs pilotava o carro para o leste pela via
expressa de Long Island. Estava com uma luz azul no painel — a
ventosa não gruda direito nos tetos dos conversíveis — e costurava
perigosamente pelo tráfego das pessoas que iam para o trabalho.
Como ela e Rhyme tinham decidido quando ele ligou cinco
minutos antes e lhe disse para se mandar para Easton, Sachs era
metade da equipe avançada que, se eles tivessem sorte, poderia
chegar à praia ao mesmo tempo que o Fantasma e qualquer
imigrante sobrevivente. A outra metade da equipe improvisada era
o tenente da Unidade de Serviços de Emergência do DPN Y que
estava sentado junto dela. A USE era o ramo tático do departamento
de polícia, a equipe SWAT, e Sachs — bem, na verdade Rhyme —
tinha decidido que ela deveria ter algum apoio de fogo do tipo que
agora estava no colo do sujeito: uma metralhadora Heckler Koch
MP5. Quilômetros atrás deles estavam agora a USE, o ônibus de
peritos, meia dúzia de policiais do condado de Suffolk, ambulâncias
e vários veículos do Serviço de Imigração e do FBI, abrindo caminho
do melhor modo possível em meio à tempestade maligna.
— Certo — disse o policial da USE. — Bem. Agora.
Falou isso reagindo a um pouquinho de hidroplanagem.
Sachs trouxe calmamente o Camaro de volta ao controle,
lembrando que também tinha retirado as placas de aço atrás do
banco de trás e posto uma célula de combustível no lugar do pesado
tanque de gasolina e substituído o estepe por um Fix-A-Flat e um kit
de ligação. O SS estava cerca de duzentos quilos mais leve do que
quando seu pai o comprara nos anos 70. Um pouco de lastro seria
útil agora, pensou ela, e controlou outra derrapagem.
— Certo, estamos bem, agora — disse o policial da USE,
aparentemente muito mais confortável num tiroteio do que viajando
pela amplidão da via expressa de Long Island.
O telefone dela tocou. Sachs pegou o aparelho.
— Diga, moça — perguntou o policial da USE —, vai usar um
daqueles negócios que deixam as mãos livres? Só estou achando que
poderia ser melhor. — E isso vindo de um homem vestido como o
Robocop.
Ela riu, pôs o fone de ouvido e levantou o microfone.
— Como está indo, Sachs? — perguntou Rhyme.
— Estou fazendo o máximo possível. Mas vamos entrar em
estradas secundárias daqui a pouco. Talvez eu tenha de reduzir nos
sinais vermelhos.
— Talvez? — murmurou o policial da USE.
— Algum sobrevivente, Rhyme? — perguntou Sachs.
— Por enquanto, nada. A Guarda Costeira só pode confirmar
duas balsas. Parece que a maioria das pessoas não conseguiu sair.
— Conheço esse tom de voz, Rhyme — disse Sachs ao
criminalista. — Não foi culpa sua.
Agradeço sua compreensão, Sachs, mas no momento não é o que
está em jogo. Está dirigindo com cuidado?
— Ah, sim — disse ela, calmamente fazendo o carro voltar do
giro de quarenta graus, sem que os batimentos cardíacos subissem
sequer um dígito. O Camaro se ajeitou como fosse um carrinho de
controle remoto e acelerou até 225 por hora. O policial da USE
fechou os olhos.
— A coisa vai ser difícil, Sachs. Mantenha a arma à mão.
— Ela sempre está. — Outra derrapagem rápida.
— Estamos recebendo chamados da lancha da Guarda Costeira,
Sachs. Tenho de desligar. — Ele fez uma pausa, depois disse: —
Procure bem, mas vigie suas costas.
— Gostei dessa — disse ela rindo. — Precisamos imprimir nas
camisetas da Unidade de Cena do Crime.
Desligaram.
A via expressa terminou e ela derrapou para uma rodovia menor.
Faltavam quarenta quilômetros até Easton, aonde as balsas iriam
chegar. Ela nunca estivera lá; Sachs, a garota da cidade grande,
imaginou como seria a topografia. Seria uma praia? Penhascos
rochosos? Teria de escalar? Sua artrite andava ruim ultimamente, e
essa umidade densa duplicava a dor e a rigidez.
Imaginando também: se o Fantasma ainda estivesse na praia,
haveria lugares suficientes para ele se esconder e de onde atirar?
Olhou para o velocímetro.
Reduzir?
Mas os sulcos nos pneus eram confiáveis e a única umidade em
suas palmas era da chuva que a encharcara lá em Port Jefferson.
Continuou pisando fundo.

Enquanto a balsa se chocava contra as ondas, mais perto da terra,


as rochas ficaram mais nítidas.
E mais pontiagudas.
Sam Chang forçou a vista através da chuva e dos borrifos do mar.
Havia alguns curtos trechos de praia adiante, cobertos de pedrinhas
e areia suja, mas a maior parte do litoral era rocha escura e
penhascos acima das cabeças deles. E para chegar a um trecho de
praia onde pudessem desembarcar ele teria de manobrar numa
corrida de obstáculos entre pedras que se projetavam da água.
— Ele ainda está lá, atrás de nós — gritou Wu.
Chang olhou para trás e pôde ver o minúsculo ponto laranja da
balsa do Fantasma. Estava indo diretamente para eles, mas era mais
lenta. O Fantasma era prejudicado pelo modo como manobrava a
balsa. Apontava direto para o litoral e lutava contra as ondas, que
reduziam seu progresso. Mas Chang, fiel aos seus ensinamentos
taoistas, pilotava sua embarcação de modo diferente; buscava o fluxo
natural da água, sem lutar contra ela, mas guiando em volta das
cristas mais altas num padrão tortuoso e usando as ondas que iam
para a terra a fim de levá-los mais depressa. A distância entre eles e
o cabeça de cobra estava aumentando.
Antes que o Fantasma desembarcasse, deveria haver tempo
suficiente para achar os caminhões que esperavam para levá-los a
Chinatown, calculou Chang. Os motoristas não saberiam sobre o
afundamento, mas Chang contaria que a Guarda Costeira estava
atrás deles, e ordenaria que os homens partissem imediatamente. Se
os motoristas insistissem em esperar, Chang, Wu e os outros iriam
dominá-los e eles mesmos dirigiriam os caminhões.
Examinou a costa e mais além — além da praia onde havia
árvores e capim. Era difícil enxergar na chuva fustigada pelo vento e
na névoa, mas ele detectou o que parecia uma estrada. E também
havia algumas luzes não muito longe. Um amontoado de luzes:
parecia um povoado.
Enxugando a água que fazia seus olhos arderem, Chang olhou as
pessoas aos seus pés, silenciosas enquanto olhavam para o litoral
adiante, as correntes turbulentas aqui, os refluxos e redemoinhos, as
rochas que se aproximavam, afiadas como facas, escuras como
sangue seco.
Então, logo adiante, sob a superfície da água, apareceu um banco
de rochas. Chang reverteu o motor rapidamente e virou para o lado,
escapando da pedra por pouco. Agora a balsa estava de lado,
chicoteada pelas ondas furiosas, que a inundaram. Eles quase
emborcaram uma vez, e de novo. Chang tentou guiar através de
uma abertura no banco, mas de repente o motor morreu. Ele pegou a
corda e puxou com força. Um gorgolejo, e depois silêncio. De novo,
uma dúzia de vezes. Nada aconteceu. O motor nem dava a partida.
Seu filho mais velho se arrastou para a frente e virou a lata de
gasolina.
— Vazia! — gritou William.
Desesperado, fraco de medo pela segurança da família, ele olhou
para trás. Agora a névoa era mais densa e os escondia — mas
também escondia o Fantasma. A que distância ele estava?
A balsa subiu numa onda alta e caiu num fosso de água com um
choque brusco.
— Abaixem-se, abaixem-se todos! — gritou Chang. — Fiquem
abaixados.
Ele se ajoelhou na água escura que chacoalhava no fundo da
balsa. Pegou o remo e tentou usá-lo. Mas as águas e a corrente eram
fortes demais, e a balsa muito pesada. Um punho de água o golpeou
e arrancou o remo de suas mãos. Chang caiu para trás. Olhou na
direção para onde iam e viu uma linha de rochas logo adiante, a
poucos metros.
A água pegou a balsa como se fosse uma prancha de surfe e
jogou-a para a frente. Eles bateram de proa nas rochas, com uma
força atordoante. O casco de borracha se rasgou sibilando e começou
a se esvaziar. Os que estavam na frente — Sonny Li, John Sung e o
jovem casal, Chao-hua e Rose — foram jogados na água turbulenta
logo depois das rochas e varridos pela espuma.
As duas famílias — os Wu e os Chang — estavam na parte de
trás da balsa, que permaneceu parcialmente inflada, e conseguiram
se segurar. A balsa se chocou de novo contra as rochas. A mulher de
Wu foi jogada contra uma laje de pedra, mas não caiu no mar;
gritando, tombou de novo na balsa, com sangue cobrindo o braço, e
ficou atordoada no fundo. Ninguém mais foi ferido pelo impacto.
Então a balsa havia ultrapassado as rochas e ia para a costa,
desinflando-se rapidamente.
Chang ouviu um grito distante de socorro — um dos quatro que
tinham desaparecido quando bateram na rocha, mas ele não podia
identificar de onde vinha o som.
A balsa deslizou sobre outra pedra, baixa na água, a quinze
metros da costa. Agora estavam presos nas ondas que se quebravam,
sendo espancados e arrastados para a praia de pedrinhas. Wu
Qichen e sua filha lutavam para manter a esposa ferida e semi-
inconsciente acima da superfície — o braço dela estava aberto e
sangrando muito. Nos braços de Mei-Mei Po-Yee o bebê, tinha
parado de chorar e olhava em volta sem prestar atenção a nada.
Mas o motor da balsa tinha se agarrado numa laje de pedra,
prendendo-os a oito ou nove metros da praia. Aqui não era fundo —
dois metros —, mas as ondas ainda os golpeavam com força.
— Para a praia! — gritou ele, tossindo água. — Agora!
Nadar até lá demorou uma eternidade. Até Chang, o mais forte,
estava ofegando e assolado por cãibras antes de chegar. Finalmente,
sob seus pés, sentiu pedras escorregadias de algas e lodo e saiu
cambaleando da água. Caiu uma vez, com violência, mas
rapidamente recuperou o equilíbrio e ajudou o pai a sair da água.
Exaustos, todos foram cambaleando até um abrigo ali perto na
praia, aberto nas laterais mas com um teto corrugado que os
protegia da chuva forte. As famílias se deixaram cair no escuro
embaixo dele, tossindo água, chorando, ofegando, rezando. Sam
Chang finalmente conseguiu ficar em pé. Olhou para o mar, mas não
viu sinal da balsa do Fantasma ou dos imigrantes que tinham sido
lançados fora.
Depois tombou de joelhos e pôs a testa na areia. Seus
companheiros e amigos estavam mortos, e eles próprios estavam
feridos, extenuados e perseguidos por um assassino... Mesmo assim,
refletiu Sam Chang, estavam vivos e em terra firme. Ele e a família
finalmente haviam terminado a jornada sem fim que os levara por
meio mundo até o novo lar, os Estados Unidos, o Belo País.
Capítulo 6
Meio quilômetro mar adentro, o Fantasma se curvou sobre o
celular, tentando protegê-lo da chuva e das ondas enquanto a balsa
subia e descia saltando na direção dos porquinhos.
A recepção estava ruim — o sinal saltava pelo satélite através de
Fujou e Cingapura depois de deixar o telefone —, mas ele conseguiu
falar com Jerry Tang, um bangshou que ele usava algumas vezes na
Chinatown de Nova York e que agora estava esperando em algum
lugar do litoral ali perto para pegá-lo.
Ofegante pela corrida difícil, o Fantasma conseguiu descrever ao
motorista mais ou menos para onde estava indo — a cerca de
trezentos ou quatrocentos metros do que parecia ser uma fileira de
lojas e casas.
— Que armas você tem? — gritou o Fantasma.
— O quê? — gritou Tang.
Ele teve de repetir a pergunta várias vezes.
— Armas!
Mas Tang era um cobrador de dívidas — mais empresário do que
executor — e por acaso tinha apenas uma pistola.
— Gan — cuspiu o Fantasma. Porra. Armado apenas com sua
velha pistola Modelo 51, tinha esperado algum tipo de arma
automática.
— A Guarda Costeira — disse Tang, com a transmissão se
perdendo na estática e no som do vento -... eles estão... aqui. Eu
estou ouvindo... rádio... tenho de sair. Onde...
— Se você vir algum porquinho, mate — gritou o Fantasma.
Ouviu? Eles estão na costa perto de você. Ache! Mate!
— Matar? Você quer...
Mas uma onda passou por cima da balsa e o encharcou. O
telefone ficou silencioso e o Fantasma olhou para o visor. Estava
morto, em curto. Irritado, jogou-o no fundo da balsa.
Uma parede de rocha surgiu e o Fantasma manobrou ao redor,
indo para uma praia larga bem à esquerda do povoado. Demoraria
algum tempo para voltar até onde os porquinhos tinham
desembarcado, mas ele não queria correr o risco de se ferir nos
afloramentos de rocha. Mesmo assim, levar a balsa até a praia estava
sendo muito difícil. A medida que se aproximava da areia, a
pequena embarcação subiu na crista de uma onda e quase virou,
mas o Fantasma reverteu o motor depressa e a balsa se estabilizou na
água. Mas uma onda pegou-o por trás e o derrubou no chão da
embarcação, encharcando-o e girando a balsa de lado. Ela bateu em
terra numa explosão de espuma e jogou o ocupante violentamente
na praia. O hélice saiu da água e o motor gritou disparando. Com
medo de que o som entregasse sua posição, o Fantasma arrastou-se
freneticamente de volta ao motor e conseguiu desligá-lo.
Viu Jerry Tang, num 4x4 BMW prata, numa estrada de asfalto
coberta de areia a uns vinte metros da praia. Levantou-se e correu
até o veículo. Tang, gordo e barbado, viu-o e veio com o carro. O
Fantasma se encostou na janela do lado do motorista.
— Você viu os outros?
— Temos de ir embora! — disse o sujeito, nervoso, e indicou com
a cabeça um rádio da polícia. — A Guarda Costeira sabe que
estamos aqui. Estão mandando a polícia para procurar.
— E os outros? — perguntou o Fantasma rispidamente. — Os
porquinhos?
— Não vi mais ninguém.. Mas...
— Também não consegui encontrar meu bangshou. Não sei se ele
saiu do navio. — O Fantasma examinava o litoral.
— Não vi ninguém — disse Tang com a voz aguda. — Mas não
podemos ficar aqui.
Com o canto do olho o Fantasma viu movimento perto das
ondas: um homem de roupas cinza estava se arrastando sobre as
rochas, saindo da água, como um animal ferido. O Fantasma se
afastou do carro e sacou a arma do cinto.
— Espere aqui.
— O que está fazendo? — perguntou Tang, desesperado. — Não
podemos ficar mais aqui! Eles estão vindo. Vão chegar em dez
minutos. Você não entende?
Mas o Fantasma não estava prestando atenção ao capanga
enquanto voltava pela estrada. O porquinho olhou para cima e viu o
Fantasma se aproximando, mas aparentemente o sujeito tinha
quebrado a perna ao desembarcar e nem podia ficar em pé, quanto
mais fugir. Começou a se arrastar desesperadamente de volta para a
água. O Fantasma ficou curioso, pensando nos motivos por que se
incomodava com isso.

Sonny Li abriu os olhos e agradeceu aos juízes do inferno — não


por ter sobrevivido ao naufrágio, e sim porque pela primeira vez em
duas semanas a torção escorregadia da náusea dentro de suas
entranhas havia praticamente sumido.
Quando a balsa batera nas pedras, ele, John Sung e o jovem casal
foram jogados na água e varridos pela corrente forte. Imediatamente
Li perdeu de vista os outros três e foi arrastado ao longo da praia
pelo que pareceu um quilômetro, até conseguir nadar precariamente
para a areia. Então, arrastando-se o mais para longe possível do
oceano, desmoronou.
Ficou imóvel sob a chuva torrencial enquanto o enjoo se
dissipava e o latejamento na cabeça diminuía. Agora, lutando para
ficar em pé, começou lentamente a ir para a estrada, a pele irritada
pelo tecido dos jeans e do suéter, que estavam cheios de areia e
saturados com o resíduo ardente da água salgada. Não podia ver
nada em nenhuma direção. Mas se lembrou das luzes de um
pequeno povoado à direita e foi naquela direção que começou a
andar pela estrada varrida pela areia.
Onde estaria o Fantasma?, pensou.
Então, como se em resposta, veio um estalo breve, que Li
reconheceu como um tiro de pistola. O som reverberou pelo
amanhecer escuro e molhado.
Mas teria sido o Fantasma? Ou algum morador local? (Todo
mundo sabia que todos os americanos portavam armas.) Talvez fosse
um policial dos EUA.
Melhor ficar em segurança. Ele estava ansioso para achar o
Fantasma rapidamente, mas sabia que precisava ter cuidado. Saiu da
estrada e passou para trás de alguns arbustos, onde estava menos
visível, e começou a andar o mais rápido que suas pernas com
cãibras e exaustas permitiam.

Ao ouvir o som, as famílias pararam.


— Foi... — começou Wu Qichen.
— Sim — murmurou Sam Chang. — Um tiro.
— Ele vai nos matar. Está procurando e matando.
— Eu sei — respondeu Chang, ríspido. Seu coração chorava por
eles: pelo Dr. Sung, por Sonny Li, pelo casal. Por quem quer que
tivesse acabado de morrer. Mas o que poderia fazer?
Olhou para o pai e observou que Chang Jiechi estava ofegando
mas, apesar dos choques na balsa e de ter nadado até a praia, o velho
não parecia estar sofrendo muito. Ele assentiu para o filho, dizendo
que podia continuar. O grupo de pessoas começou a andar de novo
em meio à chuva e ao vento.
Suas preocupações com relação a implorar ou coagir os
motoristas a levá-los a Chinatown eram infundadas; não havia
caminhões esperando. Chang supôs que os veículos estivessem num
local totalmente diverso, ou talvez, assim que decidiu afundar o
navio, o Fantasma tivesse telefonado e mandado que voltassem. Ele
e Wu haviam passado vários minutos chamando Sung, Li e os outros
que tinham sido jogados ao mar. Mas então Chang vira a balsa
laranja do cabeça de cobra se aproximando e guiou as duas famílias
para fora da estrada, entrando no capim e nos arbustos, onde
estariam fora das vistas, e foram na direção das luzes, onde ele
esperava achar um transporte.
As luzes que os atraíram eram de uma fileira composta por
restaurantes, um posto de gasolina, várias lojas que vendiam
suvenires como as que havia junto ao mar em Xiamen, dez ou doze
casas, uma igreja.
A hora era próxima do alvorecer — talvez 5h30 ou seis horas —,
mas havia sinais de vida: uma dúzia de carros parados diante dos
dois restaurantes, inclusive um sem motorista e com o motor ligado.
Mas era um sedã pequeno, e Chang precisava de um veículo com
espaço para dez. E precisava de um cujo roubo só fosse notado dali a
duas ou três horas — o tempo que, segundo tinham dito, eles
demorariam para chegar a Chinatown, na cidade de Nova York.
Disse aos outros que esperassem atrás de uma alta cerca viva e
fez um gesto para que seu filho William e Wu o seguissem.
Agachados, foram por trás das construções. Havia dois furgões
grandes atrás do posto de gasolina, mas estavam muito à vista de
um jovem funcionário da garagem. A chuva golpeava o vidro,
tornando ruim a visibilidade, mas o rapaz notaria imediatamente se
eles saíssem com o furgão.
Vinte metros adiante havia uma casa escura e atrás dela uma
caminhonete. Mas Chang não queria expor seu pai ou as crianças à
chuva e ao vento. Além disso, dez chineses naufragados seriam
facilmente identificados num veículo velho em mau estado como
aquele, indo na direção de Nova York como um bando que fizesse
parte da ”população flutuante” — trabalhadores itinerantes que
viajavam de cidade em cidade na China procurando trabalho.
— Fiquem fora da lama — ordenou Chang ao filho e a Wu. — Só
andem no capim, em galhos ou em pedras. Não quero deixar
pegadas.
Para Chang a cautela era instintiva; com agentes do escritório de
segurança pública e do Exército de Libertação do Povo
constantemente perseguindo-os, os dissidentes na China aprendiam
depressa a disfarçar seus movimentos.
Prosseguiram, através de arbustos e árvores chicoteados pelo
vento feroz, passando por mais casas, algumas escuras, algumas
mostrando sinais de famílias acordadas: televisores piscando, cafés
da manhã sendo preparados. Ao ver essa prova pungente de vida
normal, Chang foi golpeado pelo desespero da situação em que
estavam. Mas, como tinha aprendido na China, onde o governo lhe
havia tirado tanto, empurrou esse sentimentalismo de lado e
instigou o filho e Wu a andarem mais depressa. Finalmente
chegaram à última construção da fileira: uma pequena igreja, escura
e aparentemente desocupada.
Atrás do prédio antigo acharam um velho furgão branco. Pelas
horas passadas na Internet e assistindo à TV, Chang sabia um pouco
de inglês, mas aquelas palavras ele não entendeu. Mas, por sua
insistência, os dois filhos tinham estudado a língua e a cultura
americana durante anos. William olhou para o furgão e explicou: —
Diz: Igreja Batista Pentecostal de Easton.
Outro estalo fraco na distância. Chang congelou ao ouvir. O
Fantasma tinha matado mais um deles.
— Vamos! — disse Wu, ansioso. — Depressa. Veja se está aberto.
Mas as portas do furgão estavam fechadas.
Enquanto Chang olhava em volta procurando alguma coisa que
pudessem usar para quebrar a janela, William examinou a tranca
atentamente. Em seguida gritou acima do barulho do vento: — Você
está com o meu canivete?
— Seu canivete?
— O que eu lhe dei no navio para cortar a corda da balsa.
— Aquele canivete era seu?
— Que diabos seu filho estava fazendo com uma arma daquelas?
Era um canivete de mola.
— Você está com ele? — repetiu o garoto.
— Não, deixei cair quando ia entrar na balsa.
O garoto fez uma careta, mas Chang ignorou a expressão — bom,
era uma coisa quase impertinente — e examinou o chão esburacado
pela chuva. Achou um pedaço de cano de metal e o usou para bater
com força na janela do furgão. O vidro se despedaçou numa centena
de minúsculos pedaços de gelo. Ele subiu no banco do carona e
abriu o porta-luvas procurando chaves. Não achou, e saiu no chão
lamacento. Olhando para a igreja, imaginou se haveria um jogo de
chaves lá dentro. Nesse caso, onde? Num escritório? Deveria haver
um zelador lá dentro; e se o homem ouvisse e os enfrentasse? Chang
achava que não poderia machucar nenhum inocente, nem se...
Ouviu um estalo alto e girou, alarmado. O filho estava agachado
no banco do motorista e tinha despedaçado a caixa plástica da
ignição com um chute de sua bota. Enquanto Chang olhava, atônito
e consternado, o garoto puxou alguns fios e começou a esfregar uns
contra os outros. De repente, o rádio foi ligado e saiu um som
estridente: Ele sempre o amará, permita que o Nosso Salvador entre em seu
coração...”
William apertou um botão no painel e o volume diminuiu. Fez
ligações com outros fios.
Uma fagulha... O motor foi ligado.
— Como sabia fazer isso? — indagou Chang incrédulo. O garoto
deu de ombros.
— Diga...
— Vamos! — disse Wu agarrando o braço de Chang. — Temos de
pegar nossas famílias e ir embora. O Fantasma está procurando por
nós.
O pai atravessou o filho com um olhar chocado. Esperava que o
garoto baixasse os olhos, envergonhado. Mas William devolveu o
olhar friamente, de um modo que o próprio Chang nunca teria feito
com seu pai, em qualquer idade.
— Por favor — implorou Wu. — Vamos voltar para pegar os
outros.
— Não — disse Chang depois de um momento. — Traga-os aqui.
Sigam nosso caminho, e se certifique de que eles não deixem
pegadas.
Wu correu para pegá-los.
No furgão William achou um livreto de mapas da área e os
examinou cuidadosamente. Ficou balançando a cabeça para a frente
e para trás, como se memorizasse as orientações.
Resistindo ao desejo de interrogar o filho sobre a capacidade de
ligar um carro sem a chave, Chang perguntou: — Você sabe para
onde ir?
— Posso deduzir. — O garoto levantou os olhos. — Quer que eu
dirija? — Em seguida acrescentou secamente: — Você não é muito
bom nisso. — Como a maioria dos chineses urbanos, o principal
meio de transporte de Sam Chang era uma bicicleta.
Chang piscou diante dessas palavras do filho — faladas de novo
num tom de voz que se aproximava da insolência. Então Wu
apareceu com o resto dos imigrantes e Chang correu para ajudar a
mulher e o pai a entrarem no furgão, gritando de volta para o filho:
— Sim, dirija você.
Capítulo 7
Ele tinha matado dois porquinhos na praia — o homem ferido e
uma mulher.
Mas havia cerca de doze pessoas na balsa. Onde estava o resto?
Uma buzina soou. O Fantasma girou. Era Jerry Tang, atraindo
sua atenção. Ele levantou o rádio da polícia, com gestos frenéticos.
— A polícia vai estar aqui a qualquer minuto! Talvez eles...
O Fantasma se virou e examinou a praia mais uma vez, a estrada.
Para onde eles tinham ido? Talvez tivessem...
Com um guincho de pneus, o 4x4 de Tang foi para a estrada,
acelerando depressa.
— Não! Pare!
Tomado pela fúria, o Fantasma apontou a pistola e atirou uma
vez. A bala acertou a porta de trás, mas o veículo prosseguiu até um
cruzamento sem reduzir, fez a curva cantando pneus e desapareceu.
O Fantasma ficou imóvel, com a pistola ao lado do corpo, olhando
pela névoa para a estrada onde seu meio de fuga tinha acabado de
sumir. Estava a cento e trinta quilômetros de seus esconderijos em
Manha an, seu assistente estava desaparecido e provavelmente
morto, ele não tinha dinheiro nem celular. Dúzias de policiais
estavam a caminho. E Tang tinha acabado de abandoná-lo. Ele
poderia...
Retesou-se. Não muito longe um furgão branco apareceu
subitamente saindo de um campo do outro lado de uma igreja e
entrou na estrada. Eram os porquinhos! O Fantasma levantou a
pistola de novo, mas o veículo desapareceu na névoa. Baixando a
arma, respirou fundo várias vezes. Depois de um momento ficou
mais sereno. No momento estava cheio de problemas, sim, mas tinha
experimentado muita adversidade na vida, muito piores do que esta.
Você é parte dos antigos
Você reformará sua vida
Você morrerá por suas crenças antigas.
Um revés, ele aprendera, era apenas um desequilíbrio
temporário, e até mesmo os acontecimentos mais terríveis de sua
vida acabavam sendo harmonizados pela boa sorte Sua filosofia
estava em uma palavra: naixin. Isso podia ser traduzido como
”paciência”, mas significava algo mais na mente do Fantasma. O
equivalente inglês seria ”tudo no seu tempo devido”. Ele havia
sobrevivido esses quarenta e poucos anos porque havia sobrevivido
aos problemas, ao perigo e à tristeza. Por enquanto os porquinhos
tinham escapado. A morte deles teria que esperar. Agora não havia
nada a fazer além de fugir da polícia e do Serviço de Imigração.
Pôs a velha pistola no bolso e foi andando pela chuva e o vento ao
longo da praia, em direção às luzes da cidadezinha. A construção
mais próxima era um restaurante, diante do qual havia um carro
com o motor ligado. Então, alguma boa sorte, já. E então, olhando
para o mar, viu uma coisa que realmente o fez ter mais sorte. Ainda
não muito longe na água viu outro porquinho, um homem lutando
para se manter na tona. Pelo menos podia matar mais um deles antes
de escapar para a cidade. O Fantasma tirou a arma do bolso e andou
para a beira d'água.

O vento o estava esgotando.


Enquanto seguia para o povoado, Sonny Li arrastava os pés na
areia. Era um homem magro e pequeno e, no mundo duro em que
fizera sua vida, contava com o blefe, a surpresa e a esperteza (com as
armas também, claro), e não com a força física. Agora estava no
limite, exausto do sofrimento nessa manhã.
O vento... por duas vezes o derrubou de joelhos.
Chega, pensou. Apesar do risco de ser visto, lutar andando pela
areia mole era simplesmente demais para ele, e voltou à estrada de
asfalto varrida pela chuva e continuou na direção das luzes do
povoado. Seguia do melhor modo possível, com medo de que o
cabeça de cobra fosse embora antes que ele o encontrasse.
Mas um instante depois recebeu a confirmação de que o sujeito
ainda estava ali: vários tiros.
Li se esforçou subindo uma ladeira e forçou a vista em meio ao
vento e à chuva, mas não pôde ver ninguém. O som aparentemente
fora transportado por alguma distância no vento.
Desencorajado, continuou. Durante dez minutos intermináveis se
esforçou pela estrada, virando a cabeça para trás ocasionalmente e
deixando a chuva encharcar sua boca rachada. Depois de toda a
água do mar que tinha engolido, estava com uma sede desesperada.
Então viu, à direita, uma pequena balsa laranja na praia.
Presumiu que fosse do Fantasma. Ergueu a cabeça e olhou pela
costa, em busca do cabeça de cobra, mas era impossível ver muito
longe na névoa e na chuva.
Foi em direção à balsa, pensando que talvez pudesse seguir as
pegadas do sujeito e encontrá-lo escondido na cidade. Mas quando
deu um passo para fora da estrada uma luz piscante apareceu.
Enxugou a chuva dos olhos e forçou a vista. A luz era azul e se
movia rapidamente em sua direção pela estrada.
Serviço de Imigração? Policiais do escritório de segurança?
Li correu para alguns arbustos densos do outro lado do asfalto.
Agachou-se e olhou a luz ficar mais brilhante enquanto o veículo em
que ela estava, um conversível esporte amarelo, se materializava
saindo da chuva e parava derrapando a uns cem metros de distância.
Agachado, Li começou a ir lentamente para o carro.

Amelia Sachs estava parada na praia varrida pela chuva, olhando


para um corpo de mulher embolado na pose grotesca da morte.
— Ele está matando o pessoal, Rhyme — sussurrou Amelia,
consternada, no microfone de cabeça de seu Motorola SP-50. — Ele
atirou em dois, um homem e uma mulher. Nas costas. Estão mortos.
— Atirou neles? — A voz do criminalista estava oca, e ela soube
que Rhyme sentia a responsabilidade por mais mortes ainda.
O policial da USE correu até ela segurando a metralhadora.
— Nenhum sinal dele — gritou o homem sobre o vento. — O
pessoal naquele restaurante a meio quilômetro daqui disse que
alguém roubou um carro há uns vinte minutos. — O policial deu a
Sachs a descrição de um Honda e o número da placa, e ela repassou
a Rhyme.
— Lon vai espalhar a notícia — disse ele. — O sujeito estava
sozinho?
— Acho que sim. Por causa da chuva não há pegadas na areia,
mas eu achei algumas na lama, onde ele parou para atirar na mulher.
No momento ele estava sozinho.
— Então vamos presumir que o bangshou ainda não foi
encontrado. Ele pode ter chegado a terra em outra balsa. Ou pode ter
ficado na que naufragou.
Com a mão perto da arma, ela examinou o local. Formas de
rochas, dunas e arbustos manchados pela névoa rodeavam-na. Um
homem com uma arma seria invisível.
— Vamos procurar os imigrantes, Rhyme — disse em seguida.
Ela esperava que ele discordasse, que lhe dissesse para examinar a
cena do crime primeiro, antes que os elementos em fúria destruíssem
todas as provas. Mas ele falou simplesmente: — Boa sorte, Sachs.
Ligue de volta quando começar a trabalhar a grade. — A linha ficou
muda.
Procure bem, mas vigie as costas...
Os dois policiais correram pela praia. Chegaram a uma segunda
balsa, menor, a uns cem metros da primeira. A reação instintiva de
Sachs foi examiná-la em busca de provas, mas permaneceu fiel à
missão imediata e, com a artrite golpeando as juntas, correu com o
vento nas costas enquanto examinava a paisagem procurando os
imigrantes — e sinais de uma emboscada ou um esconderijo onde o
Fantasma pudesse ter se entocado.
Não acharam nada.
Então ouviu sirenes a distância, trazidas pelo vento, e viu o
carnaval dos veículos de emergência entrando a toda na cidade.
Cerca de uma dúzia de moradores que estavam abrigados no
restaurante e no posto de gasolina resolveram enfrentar o vento para
descobrir exatamente que tipo de empolgação a tempestade havia
trazido à sua minúscula cidade.
A primeira missão de um policial de cena do crime é controlar a
cena — de modo que a contaminação seja mínima e as provas não
desapareçam, seja acidentalmente, nas mãos de caçadores de
lembranças ou nas do próprio criminoso, mascarado como um
espectador. Relutando, Sachs desistiu de procurar outros emigrantes
e tripulantes — havia muitas pessoas para fazer isso agora — e
correu até o ônibus azul dos peritos do NYPD para dirigir a
operação.
Enquanto os peritos cercavam a praia com fita amarela, Sachs
colocou a última palavra em alta-costura forense sobre seus jeans e a
camiseta encharcados. O novo macacão de cena do crime do NYPD,
uma roupa de corpo inteiro com capuz, feito de Tyvek branco, que
impedia o investigador de deixar evidências pessoais — pelos, pele
ou suor, por exemplo — e contaminar a cena.
Lincoln Rhyme aprovava o macacão — tinha se batido por algo
semelhante na época em que comandava a Divisão de Investigação e
Recursos, que supervisionava o Departamento de Cena do Crime.
Mas Sachs não ficou tão satisfeita. O fato de o macacão fazê-la
parecer um alienígena de um filme ruim de ficção científica não era o
problema; o que a chateava era ele ser de um branco luminoso —
facilmente visível por qualquer bandido que, por algum motivo,
ficasse no local do crime e tentasse atirar em policiais que
procuravam provas. Daí o nome que Sachs dera à roupa: ”macacão-
alvo”.
Uma breve entrevista com os frequentadores do restaurante,
empregados do posto de gasolina e moradores das poucas casas
junto à praia não produziu nada além do que eles já sabiam sobre o
Honda em que o Fantasma tinha escapado. Nenhum outro veículo
fora roubado e ninguém tinha visto ninguém nadando para a praia
ou se escondendo em terra, nem mesmo tinha ouvido os tiros em
meio ao vento e à chuva.
De modo que estava exclusivamente por conta de Amelia Sachs e
Lincoln Rhyme — arrancar da cena do crime qualquer informação
que pudesse haver sobre o Fantasma, a tripulação e os imigrantes.
E que cena do crime! Uma das maiores que eles já haviam
examinado: um quilômetro e meio de praia, uma estrada e, do outro
lado da tira de asfalto, um labirinto de arbustos. Milhões de lugares
para procurar. E possivelmente ainda escondendo um criminoso
armado.
— É uma cena ruim, Rhyme. A chuva diminuiu um pouco, mas
ainda está caindo com força e o vento está a mais de trinta
quilômetros por hora.
— Eu sei. Estamos com o Canal da Previsão do Tempo ligado.
Agora a voz dele estava diferente, mais calma. O som a assustou um
pouco. Fez lembrar a qualidade fantasmagoricamente plácida da voz
de Rhyme quando falava sobre términos, sobre se matar, sobre o fim
de tudo. — Muito mais motivo para continuar com a busca, não
acha?
Ela olhou para um lado e outro da praia.
— É só que... tudo é grande demais. Há muita coisa aqui.
— Como pode ser grande demais, Sachs? Nós trabalhamos cada
cena do crime dando um passo de cada vez. Não importa se é um
quilômetro quadrado ou meio metro. Só demora mais. Além disso,
adoramos cenas grandes. Há muitos lugares maravilhosos onde
achar pistas.
Maravilhosos, pensou ela com um riso torto.
E, a partir da grande balsa desinflada, começou a andar pela
grade. A expressão descrevia uma técnica para examinar fisicamente
uma cena do crime em busca de pistas, em que o policial cobre o
terreno numa direção, para trás e para a frente, como se estivesse
aparando um gramado, depois vira na direção perpendicular e cobre
o mesmo terreno de novo. A teoria por trás desse método de busca é
que de um ângulo você vê coisas que pode deixar escapar quando vê
de outro. Ainda que houvesse dezenas de outros métodos para
examinar cenas de crime, todas mais rápidas, a grade — o tipo de
busca mais tedioso era o mais provável de dar bons resultados. Era o
que Rhyme insistia em que Sachs usasse. Entre os policiais da área
metropolitana ”andar pela grade” tinha se tornado sinônimo de
examinar uma cena de crime.
Logo ela se encontrava fora das vistas do povoado de Easton, e o
único sinal de que não estava sozinha era o piscar difuso das luzes
de emergência dos veículos, como sangue pulsando através de uma
pele pálida, incômodo e fantasmagórico.
Mas logo as luzes também desapareceram na névoa. A solidão —
e um assustador sentimento de vulnerabilidade — se aninhara ao
redor. Ah, cara, eu não gosto disso. A névoa era pior aqui, e os sons
da chuva batendo forte no capuz do macacão, das ondas e do vento
poderiam mascarar a aproximação de um atacante.
Bateu no cabo de sua pistola Glock preta, em busca de conforto, e
se manteve na grade.
— Vou ficar quieta um tempo, Rhyme. Estou com a sensação de
que ainda há alguém aqui. Alguém me vigiando.
— Ligue quando terminar — disse ele. Seu tom de voz hesitante
sugeria que queria dizer mais alguma coisa, mas depois de um
momento a linha emudeceu.
Vigie suas costas...
Durante a hora seguinte, através do vento e da chuva, ela
examinou a praia e a vegetação mais além, como uma criança
procurando conchas. Examinou a balsa intacta, onde achou um
celular, e a desinflada, que dois policiais da USE tinham puxado
para a praia. Finalmente juntou sua coleção de pistas, cartuchos de
balas, amostras de sangue, digitais e polaroides de pegadas.
Depois parou e olhou em volta. Então ligou o rádio e se
comunicou com uma aconchegante casa da cidade a anos-luz de
distância.
— Há uma coisa estranha, Rhyme.
— Isso não ajuda, Sachs. ”Estranha”? O que quer dizer?
— Os imigrantes... uns dez ou doze. Simplesmente
desapareceram. Não entendo. Eles deixam um abrigo na praia,
atravessam a estrada e se escondem no mato. Vejo as pegadas na
lama do outro lado da estrada. Depois elas simplesmente
desaparecem. Acho que foram se esconder mais para dentro de terra,
mas não consigo encontrar pegadas. E ninguém daria uma carona a
pessoas como eles por aqui, e ninguém da cidade viu nenhum
caminhão esperando para pegá-los. De qualquer modo, não há
marcas de pneus.
— Certo, Sachs, você simplesmente andou nos passos do
Fantasma. Viu o que ele fez, sabe quem ele é esteve onde ele esteve.
O que está se passando na sua cabeça?
— Eu...
— Você é o Fantasma agora — lembrou Rhyme numa voz
sedutora. — Você é Kwan Ang, apelido Gui, o Fantasma. E um
multimilionário, um traficante de gente; um cabeça de cobra. Um
assassino. Acabou de afundar um navio e matou mais de doze
pessoas. O que se passa na sua mente?
— Achar o resto deles — respondeu de imediato. — Achá-los e
matá-los. Não quero ir embora. Ainda não. Não sei por quê, mas
tenho de achá-los. — Por um instante uma imagem saltou em sua
mente. Ela de fato se via como o cabeça de cobra, salivando num
desejo de achar os imigrantes e matá-los. A sensação era incômoda.
— Nada vai me impedir — sussurrou.
— Bom, Sachs — disse Rhyme do outro lado, em voz baixa, como
se estivesse com medo de partir o tênue fio que ligava uma parte da
alma dela à do cabeça de cobra. — Agora pense nos imigrantes. Eles
estão sendo perseguidos por alguém assim. O que eles fariam?
Ela demorou um instante para sair da pele de um assassino sem
coração e entrar na das pobres pessoas daquele navio, perplexa
porque o homem a quem tinha entregado as economias de toda a
sua vida a havia traído desse modo, tinha matado pessoas que ela
passara a conhecer, talvez membros de sua própria família. E agora
estava decidido a matá-la.
— Não vou me esconder — disse com firmeza. — Vou me
mandar daqui o mais rápido possível. De qualquer modo, para o
mais longe possível. Não podemos voltar ao oceano. Não podemos
andar. Precisamos de um veículo.
— E como conseguiria um?
— Não sei — disse ela sentindo a frustração de estar perto de
uma resposta que ainda lhe escapava.
— Há alguma casa nas cercanias?
— Não.
— Nenhum furgão no posto de gasolina?
— Sim, mas os policiais perguntaram aos funcionários. Não está
faltando nenhum.
— Mais alguma coisa? Sachs examinou a rua.
— Nada.
— Não pode haver nada, Sachs — zombou ele. — Essas pessoas
estão fugindo para salvar a vida. Elas escaparam de algum modo. A
resposta está aí. O que mais você vê?
Ela suspirou e começou a recitar: — Estou vendo uma pilha de
pneus velhos, vejo um veleiro emborcado, uma caixa com latas de
cerveja vazias: cerveja Sam Adams. Na frente da igreja há um
carrinho de mão...
— Igreja? — reagiu Rhyme. — Você não mencionou uma igreja
antes.
— É manhã de terça-feira, Rhyme. O lugar está fechado e a USE o
examinou.
— Vá até lá, Sachs. Agora!
Rigidamente ela começou a andar para lá, mas não fazia ideia do
que poderia encontrar e que fosse útil. Rhyme explicou: — Você não
frequentou a escola bíblica nas férias, Sachs? Biscoitos Ri , ponche
havaiano e Jesus nas tardes de verão? Nem piqueniques com sobras
de comida? Nem convenções de grupos de jovens?
— Uma ou duas vezes. Mas eu passava a maior parte dos meus
domingos montando carburadores.
— Como acha que as igrejas levam as crianças para suas
pequenas diversões teológicas? Vans, Sachs, vans com espaço para
uma dúzia de pessoas.
— Poderia ser — arriscou ela com ceticismo.
— E talvez não — admitiu Rhyme. — Mas os imigrantes não
criaram asas e voaram, não é? Então vamos ver as possibilidades
mais prováveis.
E, como acontecia com frequência, ele estava certo.
Ela foi até os fundos da igreja e examinou o terreno lamacento:
pegadas, minúsculos cubos de vidro espatifado, o cano usado para
despedaçar a janela, as marcas de pneus de um furgão.
— Achei, Rhyme. Um bocado de pegadas recentes. Droga, isso
foi esperto... eles andaram sobre pedras, capim e mato baixo. Para
não deixar pegadas na lama. E parece que entraram no furgão e
cruzaram um campo antes de entrar na estrada. Foi por isso que
ninguém viu nada na rua principal.
— Pegue informações sobre o furgão com o pastor — ordenou
Rhyme.
Sachs pediu a um policial que ligasse para o pastor da igreja.
Minutos depois vieram os detalhes — era um Dodge branco, de
cinco anos, com o nome da igreja na lateral. Ela olhou o número da
placa e repassou para Rhyme, que disse que iria emitir outro aviso
para localização do veículo, além do emitido para o Honda, e pediria
à polícia rodoviária que avisasse aos cobradores de pedágio nas
pontes e túneis, supondo que os imigrantes estivessem indo para
Chinatown, em Manha an.
Ela caminhou pela grade cuidadosamente atrás da igreja, mas
não encontrou mais nada.
— Acho que não há muito mais que possamos fazer aqui, Rhyme.
Vou catalogar as evidências e depois volto. — E desligou.
Retornando ao ônibus da perícia, guardou o macacão Tyvek,
catalogou o que tinha achado e prendeu os cartões de cadeia de
custódia que deveriam acompanhar cada item coletado numa cena
de crime. Disse aos técnicos que levassem tudo à casa de Rhyme o
mais rápido possível. Mesmo parecendo uma coisa sem esperança,
queria fazer outra varredura em busca de sobreviventes. Seus joelhos
estavam pegando fogo — a artrite crônica herdada do avô. A doença
costumava incomodá-la, mas agora, sozinha, ela se deu o luxo de
andar devagar; sempre que estava entre os colegas policiais tentava
não mostrar a dor. Receava que os chefões ficassem sabendo e a
colocassem num serviço burocrático sob a alegação de incapacidade.
Mas, depois de quinze minutos sem achar qualquer sinal de mais
imigrantes, começou a ir para o seu Camaro, o único que restava
nessa parte da praia. Estava sozinha; o policial da USE que a havia
acompanhado tinha optado por uma carona mais segura de volta à
cidade.
A névoa estava mais fraca. A oitocentos metros de distância, do
outro lado da cidade, Sachs podia apenas entrever duas ambulâncias
de resgate do Condado de Suffolk e um sedã Ford placa fria
estacionado ali perto. Podia ser um veículo do Serviço de Imigração.
Tensa, deixou-se cair no banco da frente do Camaro. Achou um
pedaço de papel e começou a fazer anotações do que tinha
observado na cena para apresentar a Rhyme e à equipe que estava na
casa dele. O vento açoitava o carro leve e a chuva golpeava
furiosamente a lataria de aço. Por acaso Sachs ergueu a cabeça a
tempo de ver uma onda enorme explodindo em espuma e erguendo-
se três metros no ar antes de bater numa rocha.
Forçou a vista e enxugou com a manga o vapor na parte interna
do para-brisa.
O que é aquilo? Um animal? Algum destroço do Fujou Dragon?
Não, percebeu espantada; era um homem. Ele se agarrava
desesperadamente à rocha.
Sachs pegou seu Motorola, ligou na frequência local de operações
e anunciou: — Aqui é o Cinco Oito Oito Cinco da Cena do Crime do
NYPD para o Resgate do Condado de Suffolk na praia de Easton.
Câmbio?
— Câmbio, Cinco Oito Oito Cinco. Prossiga.
— Estou a meio quilômetro a leste da cidade. Achei uma vítima
na água. Preciso de ajuda.
— Certo, estamos indo. Desligo.
Sachs saiu do carro e foi na direção do mar. Viu uma onda
grande levantar o homem da rocha e jogá-lo na água. Ele tentou
nadar, mas estava ferido — havia sangue em sua camisa — e o
máximo que podia fazer era manter a cabeça acima d'água, mas
estava difícil. Ele afundou uma vez e lutou para voltar à superfície.
— Ah, irmão — murmurou ela olhando para a estrada. Nesse
momento a ambulância amarela do resgate estava começando a se
mover na areia.
O imigrante deu um grito engasgado e afundou sob as ondas.
Não havia tempo para esperar os profissionais.
Da época da academia de polícia ela sabia o básico sobre
salvamento: ”Estender, jogar, remar e só então ir.” Quer dizer, tente
resgatar uma vítima de afogamento da margem ou num barco antes
de decidir-se a nadar para salvá-la. Bom, as três primeiras opções
não existiam.
Então pensou: ir.
Ignorando a dor lancinante nos joelhos, correu para o oceano,
enquanto tirava o cinto com a arma e a munição. Junto à água,
desamarrou os sapatos da polícia, chutou-os e, com os olhos
concentrados no nadador que lutava, entrou na água fria e
turbulenta.
Capítulo 8
Arrastando-se para fora dos arbustos, Sonny Li teve uma visão
melhor da mulher ruiva enquanto ela tirava os sapatos, entrava na
água revolta e saía nadando na direção de alguém que lutava nas
ondas.
Li não podia ver quem era — John Sung ou o marido do casal
que estivera ao lado dele na balsa — mas de qualquer modo sua
atenção foi novamente atraída para a mulher que ele estivera
estudando de seu esconderijo no mato desde que ela chegara à praia
havia mais de uma hora.
Bom, não era o seu tipo de mulher. Ele não gostava de mulheres
ocidentais, pelo menos das que tinha visto em Fujou. Ou estavam
nos braços de empresários ricos (altas e lindas, lançando olhares
desdenhosos para os chineses que as encaravam) ou eram turistas
com maridos e filhos (malvestidas, lançando olhares desdenhosos
para os homens que cuspiam nas calçadas e os ciclistas que nunca as
deixavam atravessar as ruas).
Mas esta mulher o intrigava. A princípio ele não pudera deduzir
o que ela estava fazendo aqui; tinha chegado em seu carro amarelo
brilhante, acompanhada por um soldado com uma metralhadora.
Depois tinha virado as costas e ele vislumbrou as letras NYPD no
agasalho. Então era uma policial do escritório de segurança pública.
Escondido do outro lado da estrada, ele tinha olhado enquanto ela
procurava sobreviventes ou pistas.
Sensual, pensou ele, apesar de sua enorme preferência por
chinesas quietas e elegantes.
E aquele cabelo! Que cor! Isso o inspirou a lhe dar um apelido,
”Hongse”, que se pronuncia hoankseh, a palavra chinesa para
vermelho”.
Olhando pela estrada, Li viu um furgão amarelo de emergência
vindo rapidamente na direção deles. Assim que o veículo entrou
num estacionamento e parou, ele se arrastou até a beira da estrada.
Havia uma chance de ser visto, claro, mas tinha de agir agora, antes
que ela voltasse. Esperou até que a atenção do pessoal de resgate
estivesse em Hongse, e em seguida correu abaixado atravessando a
estrada até o carro amarelo. Era um carro antigo, daqueles que
apareciam em seriados americanos como Kojak e Chumbo grosso.
Ele não estava interessado em roubar o carro (a maioria dos policiais
e soldados tinha ido embora, mas ainda havia um número suficiente
por perto para persegui-lo e capturá-lo — especialmente atrás do
volante de um carro chamativo como uma gema de ovo). Não, no
momento ele só queria uma arma e um pouco de dinheiro.
Abrindo a porta do carona, entrou e começou a procurar no
porta-luvas. Nenhuma arma. Pensou com raiva em sua pistola
Tokarev no fundo do oceano. Também não havia cigarros. Filha da
puta... Em seguida Li remexeu na bolsa dela e achou uns cinquenta
dólares em dinheiro de uma cor. Guardou o dinheiro no bolso e
olhou um papel em que ela estivera escrevendo. Seu inglês falado
era bom — graças aos filmes americanos e ao programa Follow Me na
Rádio Pequim —, mas sua capacidade de ler era terrível (o que não
parecia justo, considerando que o inglês tinha apenas umas vinte e
cinco letras enquanto a língua chinesa tinha quarenta mil). Depois de
tropeçar um pouco, reconheceu o verdadeiro nome do Fantasma,
Kwan Ang, em inglês, e deduziu mais algumas coisas. Dobrou o
papel e o enfiou no bolso, depois espalhou o resto das folhas no
chão, próximo à porta do motorista, para dar a impressão de que
tinham sido sopradas pelo vento.
Outro carro vinha se aproximando — um sedã preto que, para Li,
cheirava a veículo do governo. Agachando-se, voltou para a estrada.
Depois de se esconder de novo no mato, olhou para o mar
turbulento, observando agora que Hongse parecia estar lutando tanto
quanto o homem que se afogava no oceano agitado. Sentiu uma
pontada ao ver uma mulher tão bonita correndo perigo. Mas isso
não era da sua conta; agora as prioridades eram achar o Fantasma e
simplesmente ficar vivo.

O esforço de nadar contra as ondas violentas até chegar ao


imigrante que se afogava tinha praticamente exaurido Amelia Sachs,
e ela descobriu que tinha de ficar batendo as pernas furiosamente
para manter os dois acima d'água. Seu joelho e as juntas dos quadris
protestavam de dor. O imigrante não ajudava em nada. Era de
estatura mediana e magro — sem muita gordura para boiar. Ele
balançava os pés letargicamente, e o braço esquerdo estava
inutilizado, graças a um tiro no peito.
Ofegando, cuspindo a horrível água salgada que ficava entrando
na boca e no nariz, Amelia lutava em direção à praia. A água ardia
em seus olhos e turvava a visão, mas ela pôde ver, na praia perto de
onde as ondas quebravam, dois médicos com uma maca e um
grande tanque verde, de oxigênio, fazendo gestos para ela nadar na
direção deles.
Obrigado, rapazes... eu estou tentando.
Fazia o máximo para ir até lá, mas a corrente contrária era feroz.
Olhou para trás, para a rocha à qual o imigrante havia se agarrado e
viu que, apesar de seus enormes esforços, tinham nadado apenas
uns três metros.
Com mais força, mais força!
Recitando um de seus mantras pessoais: Quando você se move,
eles não conseguem pegá-la...
Mais uns dois metros e meio ou três. Mas Sachs finalmente teve
de parar para recuperar o fôlego, olhando consternada enquanto a
corrente puxava-os de volta para o mar.
Qual é, saia daí...
O imigrante apático, agora quase inconsciente, continuava
puxando-a para baixo. Sachs bateu as pernas com mais força. Uma
cãibra atacou seu tornozelo e ela gritou e afundou mais depressa. A
água cinza-escura, cheia de algas e areia, engoliu-a. Com uma das
mãos agarrando a camisa do imigrante, a outra batendo no próprio
tornozelo para interromper a cãibra lutou para manter o fôlego pelo
maior tempo possível.
Ah, Lincoln!, pensou. Estou afundando... Mais para longe no
tecido cinza da água.
Depois: Jesus! O que é isso?
Uma barracuda, um tubarão, uma enguia preta... saltou da água
enevoada e a agarrou pelo peito. Ela estendeu a mão instintivamente
para o canivete que guardava no bolso de trás, mas seu braço estava
agarrado ao corpo pelo peixe terrível. Ele puxou-a para trás e alguns
segundos depois ela estava na superfície, sugando o doce ar para os
pulmões doloridos.
Olhou para baixo. O peixe era o braço de um homem vestido com
roupa de borracha preta.
O mergulhador do Resgate do Condado de Suffolk cuspiu um
regulador da sua boca e disse: — Está tudo bem, moça, peguei você.
Tudo bem.
Um segundo mergulhador estava agarrando o imigrante,
mantendo sua cabeça frouxa acima d'água.
— Cãibra — ofegou Sachs. — Não posso mexer a perna. Dói. Ele
baixou uma das mãos, esticou a perna dela e em seguida apertou
seus artelhos na direção do corpo, esticando os músculos da batata
da perna. Depois de um instante a dor se foi. Ela assentiu.
— Não bata as pernas. Só relaxe. Eu levo você. — Ele começou a
rebocá-la e Sachs inclinou a cabeça para trás, concentrando-se em
respirar. As pernas fortes do sujeito, ajudadas por pés-de-pato,
levaram-nos rapidamente para a praia. Ele disse: — Foi muita
coragem sua ir até lá. A maioria das pessoas simplesmente teria
ficado olhando o cara morrer.
Os dois nadaram pela água gélida durante o que pareceu uma
eternidade. Finalmente Sachs sentiu pedrinhas sob os pés.
Cambaleou até a praia e pegou o cobertor que os médicos lhe
ofereceram. Depois de recuperar o fôlego, foi até o imigrante, que
estava deitado na maca, com uma máscara de oxigênio sobre o rosto.
Seus olhos estavam atordoados, mas ele parecia consciente. A camisa
estava aberta e o médico limpava um ferimento ensanguentado com
desinfetante e gaze.
Sachs tirou o máximo que pôde de areia dos pés e das pernas,
calçou os sapatos de novo e prendeu o cinto da arma.
— Como ele está?
— O ferimento não é ruim. O atirador acertou no peito, mas num
ângulo. Mas vamos ter de cuidar da hipotermia e da exaustão.
— Posso fazer umas perguntas a ele?
— Por enquanto só o mínimo. Ele precisa de oxigênio e descanso.
— Qual é o seu nome? — perguntou Sachs ao imigrante. Ele
levantou a máscara de oxigênio.
— John Sung.
— Sou Amelia Sachs, do Departamento de Polícia de Nova York.
— Ela mostrou o distintivo e a identidade, como determinava o
procedimento. E perguntou: — O que aconteceu?
O homem levantou de novo a máscara de oxigênio.
— Fui derrubado da nossa balsa. O cabeça de cobra do navio, nós
o chamamos de Fantasma, me viu e veio para a praia. Atirou em
mim e errou. Eu nadei debaixo d'água mas tive de subir para
respirar. Ele estava esperando. Atirou de novo e acertou. Fingi que
estava morto e, quando olhei de novo, vi quando ele entrou num
carro vermelho e foi embora. Tentei nadar para a praia mas não
consegui. Só fiquei agarrado nas pedras e esperei.
Sachs observou o sujeito. Era bonito e parecia em boa forma. Vira
recentemente um especial de TV sobre a China e ficou sabendo que,
ao contrário dos americanos — que fazem exercícios
temporariamente, em geral por vaidade —, muitos chineses malham
durante a vida inteira.
— Como estão... — ia perguntando o homem, mas tossiu de
novo. Os espasmos ficaram violentos. O médico deixou que ele
tossisse a água durante alguns momentos e, quando Sung parou,
ajoelhou-se e pôs a máscara de oxigênio no rosto dele.
— Desculpe, policial, mas ele realmente precisa do ar agora. Mas
Sung levantou a máscara.
— Como estão os outros? Estão em segurança?
Não era o procedimento do NYPD dar informações a
testemunhas, mas ela viu a preocupação nos olhos do homem e
disse: — Sinto muito. Dois morreram.
Ele fechou os olhos e com a mão direita agarrou um amuleto de
pedra que estava pendurado numa tira de couro no pescoço.
— Quantos estavam na balsa? — perguntou ela. Ele pensou um
momento.
— Quatorze no total. — Depois perguntou: — Ele fugiu? O
Fantasma?
— Estamos fazendo todo o possível para achá-lo.
De novo o rosto de Sung se encheu de consternação enquanto
voltava a apertar o amuleto.
O médico entregou a carteira do imigrante. Ela abriu-a. O que
havia dentro estava virando papa devido à água do mar, e quase
tudo era em chinês. Mas um cartão que continuava legível era em
inglês. Identificava-o como o Dr. Sung Kai.
— Kai? É esse o seu nome? Ele assentiu.
— Mas eu uso principalmente John.
— O senhor é doutor? — Sou.
— Médico?
Ele assentiu de novo.
Sachs estava olhando uma foto de duas crianças, um menino e
uma menina. Sentiu uma pontada de horror, pensando que eles
tinham estado no navio.
— E seus... — Sua voz sumiu. Sung entendeu.
— Meus filhos? Estão em casa em Fujian. Morando com meus
pais. O médico estava parado perto do paciente, insatisfeito por ele
continuar levantando a máscara. Mas Sachs tinha seu trabalho a
fazer.
— Dr. Sung, o senhor tem alguma ideia de para onde o Fantasma
pode estar indo? Ele tem alguma casa ou apartamento neste país?
Uma empresa? Algum amigo?
— Não. Ele nunca falava conosco. Nunca tinha nada a ver
conosco. Ele nos tratava como animais.
— E os outros imigrantes? Sabe para onde podem ter ido? Sung
balançou a cabeça.
— Não, sinto muito. íamos para umas casas em algum lugar de
Nova York, mas eles não diziam onde. — Seus olhos se viraram de
novo para a água. — Achamos que a Guarda Costeira tinha atirado
em nós com um canhão. Mas depois percebemos que ele mesmo
tinha afundado o navio. — Sua voz estava perplexa. — Ele nos
trancou por fora do nosso depósito e explodiu o barco. Com todo
mundo a bordo.
Um homem de terno — um agente do Serviço de Imigração que
Sachs se lembrava de ter conhecido em Port Jefferson — saiu do
carro preto, que tinha acabado de se juntar ao veículo de resgate na
areia. Ele vestiu um agasalho e veio andando até onde estavam.
Sachs entregou-lhe a carteira de Sung. Ele a examinou e se agachou.
— Dr. Sung, eu sou do Serviço de Imigração e Naturalização dos
Estados Unidos. O senhor tem um passaporte válido e visto de
entrada?
Sachs pensou que a pergunta era absurda, se é que não
provocativa, mas achou que era uma das formalidades que
precisavam ser cumpridas.
— Não, senhor — respondeu Sung.
— Então acho que teremos de detê-lo por entrada ilegal no
território dos Estados Unidos.
— Eu estou buscando asilo político.
— Tudo bem — disse o agente, cauteloso. — Mas mesmo assim
temos de detê-lo até a audiência.
— Entendo — respondeu Sung O agente perguntou ao médico:
— Como ele está?
— Vai ficar bem. Mas precisamos levá-lo a um centro
traumatológico. Onde ele vai ser fichado?
Sachs interveio para perguntar ao agente do Serviço de
Imigração: — Ele pode ir para o centro de detenção de vocês em
Manha an? Ele é testemunha no caso e nós temos uma força-tarefa
trabalhando lá.
O agente deu de ombros.
— Para mim tanto faz. Vou providenciar a papelada.
Sachs balançou de uma perna para a outra e se encolheu quando
a dor atravessou seu joelho e o quadril. Ainda segurando
distraidamente o amuleto no pescoço, Sung a examinou e disse
numa voz baixa, sentida: — Obrigado, moça.
— Por quê?
— Você salvou minha vida.
Ela assentiu sustentando o olhar dele por um momento. Depois o
médico recolocou a máscara de oxigênio.
Um clarão branco ali perto atraiu o olhar de Amelia Sachs, e ela
ergueu os olhos e viu que tinha deixado a porta do Camaro aberta e
que o vento estava soprando suas anotações da cena do crime para o
mar. Franzindo o rosto de dor, correu de volta ao carro.
II
O BELO PAÍS

Terça-feira, da Hora do Dragão, 8 da manhã,


até a Hora do Galo, 6h30 da tarde.

A batalha é vencida pelo jogador que enxerga mais longe, isto é, o que
pode ver
através do movimento do oponente, que pode adivinhar seu plano e se
opor a ele,
e que, ao atacar, antecipa todos os movimentos defensivos do adversário.

DANIELLE PECORINI e TONG SHU


The Game of Wei-Chi
Capítulo 9
A vida de um cobrador de pedágio que guarda os portais da
cidade de Nova York não é particularmente glamourosa.
Ocasionalmente há uma pequena agitação — como na vez em
que um ladrão invadiu uma cabine e roubou 312 dólares limpinhos,
mas o problema foi que o ladrão atacou a entrada da ponte
Triborough, do outro lado da qual uma dúzia de policiais o
esperava, achando divertido, na única saída que ele poderia pegar.
Mas o cobrador que estava numa cabine do túnel Queens
Midtown nessa manhã tempestuosa, logo depois das oito horas um
policial de trânsito aposentado de Nova York que trabalhava em
meio expediente como cobrador —, não via nenhum problema sério
há anos, e ficou empolgado ao saber que algo tinha acontecido para
quebrar a monotonia: todos os cobradores de pedágio em Manha an
haviam recebido um chamado de prioridade da sede da Autoridade
Viária falando de um navio que tinha afundado no litoral de Long
Island, um daqueles navios com imigrantes ilegais. Diziam que
alguns chineses a bordo estavam indo agora para a cidade, bem
como o próprio contrabandista. Estavam num furgão branco com o
nome de uma igreja e num Honda vermelho. Alguns, ou todos,
poderiam estar armados.
Havia vários modos de entrar na cidade vindo de Long Island
por terra: pontes ou túneis. Alguns desses eram gratuitos — não se
cobrava pedágio nas pontes de Queensboro ou na do Brooklyn, por
exemplo — mas a rota mais direta da extremidade de Long Island
era pelo túnel Queens Midtown. A polícia e o FBI tinham recebido
permissão de fechar todas as passagens expressas e reivindicar as
pistas de mudança, de modo que talvez os criminosos tivessem de
passar por uma cabine com cobrador.
O ex-policial nunca havia pensado que seria ele a ver os
imigrantes.
Mas parecia que era assim que as coisas iam acontecer. Agora ele
estava enxugando nas calças as palmas das mãos suadas e olhando
um furgão branco, com alguma coisa escrita na lateral e dirigido por
um chinês, vindo na direção da sua cabine.
A dez carros de distância, nove...
Tirou do coldre seu velho revólver de serviço, um Smith Wesson
357 com cano de doze centímetros e colocou-o do outro lado da caixa
registradora, imaginando como lidaria com a situação. Poderia
mandar que parassem, mas e se os sujeitos do furgão agissem de
modo estranho ou evasivo? Decidiu que apontaria a arma para eles e
ordenaria que saíssem do furgão.
Mas e se um deles abaixasse a mão sob o painel ou entre os
bancos?
Diabos, ele estava ali numa cabine de vidro, exposto, sem apoio,
com um furgão cheio de chineses vindo em sua direção. Eles até
podiam estar armados com a principal contribuição da Rússia para
as armas de pequeno porte: metralhadoras AK-47.
Foda-se, ele atiraria.
O cobrador ignorou uma mulher que reclamava de que as pistas
do E-Zpass estavam fechadas e olhou para a fileira de carros. O
furgão estava a três carros de distância.
Enfiou a mão no cinto e pegou o carregador rápido, um anel de
metal com seis balas, com o qual poderia recarregar seu Smi ie em
segundos. Colocou-o ao lado do revólver e enxugou a mão de novo
nas calças. Pensou um instante, pegou a arma, engatilhou-a e
colocou-a de novo no balcão. Isso ia contra as regras, mas era ele que
estava no aquário, não o chefão que escrevia os regulamentos.
A princípio Sam Chang se preocupou com a hipótese de a grande
fila de carros significar um bloqueio na via, mas depois viu cabines e
decidiu que era algum tipo de travessia de fronteira.
Passaportes, documentos, vistos... Eles não tinham nada disso.
Em pânico, procurou uma saída, mas não havia — a estrada era
cercada de muros altos.
Mas William disse com calma: Nós precisamos pagar.
— Pagar por quê? — perguntou Sam Chang ao garoto, o
especialista em costumes americanos.
— É um pedágio — explicou, como se isso fosse óbvio. — Preciso
de alguns dólares. Três e cinquenta centavos.
Num cinto de dinheiro Chang tinha milhares de ienes —
encharcados e salgados —, mas não ousara trocar o dinheiro por
dólares americanos nos mercados negros de Fujou, o que indicaria à
segurança pública que eles estavam para fugir do país. Mas numa
reentrância entre os dois bancos da frente eles haviam achado uma
nota de cinco dólares.
O furgão se arrastou devagar. Havia dois carros à frente deles.
Chang olhou o homem na cabine e observou que ele parecia
muito nervoso. Continuava a olhar o furgão fingindo não olhar.
Agora havia um carro na frente deles.
O homem da cabine os examinou cuidadosamente com o canto
do olho. Sua língua tocou o lado do lábio e ele balançou de um pé
para o outro.
— Não gosto disso — disse William. — Ele suspeita de alguma
coisa.
— Não podemos fazer nada — disse o pai. — Vá em frente.
— Vou passar direto.
— Não! — murmurou Chang. — Ele pode estar armado. Vai
atirar em nós.
William chegou com o furgão na cabine e parou. Será que, em
sua rebelião recém-encontrada, o garoto desconsideraria a ordem de
Chang e passaria a toda pela barreira?
O homem da cabine engoliu em seco e pegou alguma coisa perto
de uma grande caixa registradora. Seria algum tipo de botão
sinalizador?, pensou Chang.
William olhou para baixo e pegou o dinheiro americano na
divisória de plástico entre os bancos da frente.
O policial pareceu estremecer. Ele se abaixou, movendo o braço
para o furgão.
Então olhou a nota que William estava oferecendo.
O que havia de errado? Será que tinha oferecido demais? Muito
pouco? Será que o sujeito esperava um suborno?
O homem na cabine piscou. Pegou a nota com a mão insegura,
inclinando-se para a frente, e olhou para a lateral do furgão onde
estavam as palavras

A Loja do Lar. Enquanto contava o troco, o guarda olhou para a


parte de trás do furgão. Tudo que ele podia ver — rezava Chang —
eram as dúzias de mudas e arbustos que Chang, William e Wu
tinham arrancado num parque a caminho dali e posto no furgão
para fazer com que parecesse que estavam levando plantas para uma
loja local. Os parentes estavam deitados no chão, escondidos
embaixo da folhagem.
O policial lhe deu o troco do pedágio.
— Lugar bom, A Loja do Lar, eu compro lá o tempo todo.
— Obrigado — respondeu William.
— Dia ruim para entregas, não é? — perguntou a Chang,
assentindo para o céu tempestuoso.
— Obrigado — disse Chang.
William moveu o furgão. Acelerou e um instante depois estavam
mergulhando num túnel.
— Certo, estamos seguros, passamos pelos guardas — anunciou
Chang, e o resto dos passageiros sentou-se tirando folhas e terra das
roupas.
Bom, sua ideia tinha funcionado.
Enquanto saíam da praia afastando-se pela rodovia, Chang
percebeu que a polícia poderia fazer o que o Exército de Libertação
do Povo e o escritório de segurança chinês faziam frequentemente
para procurar dissidentes — montar bloqueios de estrada.
Por isso tinham parado num shopping center enorme, no meio
do qual ficava a Loja do Lar. Ficava aberta vinte e quatro horas por
dia e — com poucos empregados de manhã tão cedo. Chang, Wu e
William não tiveram problema para entrar na vaga de carga e
descarga. Na sala de estoque roubaram algumas latas de tinta,
pincéis e ferramentas, depois saíram de novo. Mas não antes de
Chang enfiar a cabeça na porta que dava na loja propriamente dita e
olhar para aquele lugar espantoso. Viu hectares de corredores. Era
de tirar o fôlego — Chang nunca tinha visto tantas ferramentas,
suprimentos e material de construção. Cozinhas prontas, milhares
de luminárias, mobília para jardim e churrasqueiras, portas, janelas,
tapetes. Fileiras inteiras dedicadas a parafusos, porcas e pregos. A
primeira reação de Chang foi levar Mei-Mei e seu pai lá para dentro,
só para mostrar o local. Bom, haveria tempo para isso mais tarde.
— Estou pegando estas coisas agora — disse Chang ao filho
porque precisamos delas para... para a nossa sobrevivência. Mas,
assim que conseguir um pouco de dinheiro de uma cor, vou pagar.
Vou mandar o dinheiro para eles.
— Você é maluco — respondeu o garoto. — Eles têm mais do que
precisam. Esperam que coisas sejam roubadas. Está embutido no
preço.
— Nós vamos pagar! — disse Chang rispidamente. Dessa vez o
garoto nem se incomodou em responder. Chang achou um jornal
colorido numa grande pilha na área de carga e descarga. Lutando
com o inglês, percebeu que era um folheto de vendas e que tinha
endereços de uma quantidade de Lojas do Lar. Quando recebesse o
primeiro pagamento ou convertesse alguns ienes, mandaria o
dinheiro para eles.
Tinham voltado ao furgão e achado um caminhão parado perto.
William trocou as placas e eles foram na direção da cidade até
acharem uma fábrica deserta. Pararam na área de carga e descarga,
fora da chuva, e Chang e Wu cobriram de tinta as letras com o nome
da igreja. Depois de a tinta branca secar, Chang, que fora calígrafo a
vida inteira, desenhou habilmente as palavras ”A Loja do Lar” na
lateral, numa letra parecida com a do folheto que tinha apanhado.
Bom, o truque dera certo e, não sendo parados pelos policiais
nem pelo guarda da cabine do pedágio, saíram do túnel para as ruas
de Manha an. William tinha estudado o mapa cuidadosamente
enquanto esperavam na fila do pedágio e sabia meio por alto aonde
deveriam ir para chegar a Chinatown. As ruas de mão única
causaram alguma confusão, mas ele logo se orientou e achou a via
expressa que estava procurando.
Através do tráfego denso da hora do rush, ainda mais lento
devido à chuva intermitente e área de neblina, seguiram ao longo de
um rio cujo tom combinava perfeitamente com o oceano ao qual
tinham acabado de sobreviver.
A terra cinzenta, refletiu Chang. Não eram autoestradas de ouro
nem uma cidade de diamantes, como prometera o infeliz capitão
Sen.
Enquanto olhava as ruas e os prédios em volta, Chang imaginou
o que os esperava agora.
Em teoria ainda devia um monte de dinheiro ao Fantasma. A
taxa atual para contrabandear alguém da China para os Estados
Unidos era de aproximadamente cinquenta mil dólares. Como
Chang era dissidente e estava desesperado para partir, esperava que
os agentes do Fantasma em Fujou cobrassem um acréscimo.
Entretanto ficou surpreso ao descobrir que o Fantasma cobrara
apenas oitenta mil por toda a sua família, incluindo o pai. Chang
tinha juntado todas as parcas economias e pegado o resto
emprestado com amigos e parentes, para pagar os dez por cento
iniciais.
No contrato com o Fantasma, Chang tinha concordado que ele,
Mei-Mei e William — e seu filho mais novo quando o menino tivesse
idade — dariam dinheiro todos os meses aos cobradores do
Fantasma, até pagar o resto da passagem. Muitos imigrantes
trabalhavam diretamente para o cabeça de cobra que os tinha
contrabandeado para o país — os homens geralmente em
restaurantes de Chinatown, as mulheres em fábricas de roupas e
moravam em esconderijos seguros em troca de um aluguel. Mas
Chang não confiava nos cabeças de cobra, especialmente no
Fantasma. Havia muitos boatos de imigrantes espancados,
estuprados e mantidos como prisioneiros em esconderijos infestados
de ratos. Por isso fizera seus próprios arranjos para conseguir um
emprego para ele e William, tinha alugado um apartamento em
Nova York através do irmão de um amigo na China.
Sam Chang sempre pretendera pagar a dívida. Mas agora, com o
afundamento do Fujou Dragon e as tentativas do Fantasma de
assassiná-los, o contrato estava rompido e eles estavam livres da
dívida esmagadora — se, claro, pudessem ficar vivos o tempo
suficiente para o Fantasma e seus bangshous serem capturados ou
mortos pela polícia ou fugirem de volta para a China, e isso
significava se esconderem o mais rápido possível.
William dirigia habilmente em meio ao trânsito. (Onde é que ele
tinha aprendido? A família nem mesmo possuía um carro.) Sam
Chang olhou para os outros no furgão. Estavam desgrenhados e
fediam a água do mar. A mulher de Wu, Yong-Ping, estava em
péssimas condições. Tinha os olhos fechados e tremia, com o suor
cobrindo o rosto. Seu braço estava partido pela colisão com as
rochas, e o ferimento continuava sangrando através de uma
bandagem improvisada. A filha adolescente de Wu, Chin-Mei,
parecia não estar ferida, mas sem dúvida estava apavorada. O irmão
dela, Lang, era da mesma idade do filho mais novo de Chang, e os
dois meninos, com cortes de cabelo tipo cuia, praticamente idênticos,
estavam sentados lado a lado, olhando pela janela e sussurrando.
O velho Chang Jiechi sentava-se imóvel na parte de trás do
furgão com as pernas cruzadas e os braços dos lados do corpo, o
cabelo branco e fino puxado para trás, sem dizer nada mas
observando tudo através dos olhos meio cobertos pelas pálpebras
caídas. A pele do velho parecia mais amarela do que quando saíra de
Fujou havia mais de duas semanas, mas talvez fosse apenas
imaginação de Chang. De qualquer modo, ele tinha decidido que a
primeira coisa a fazer depois de estarem estabelecidos em seu
apartamento era levá-lo a um médico.
O furgão parou por causa do trânsito. William apertou a buzina,
impaciente.
— Quieto — disse o pai, ríspido. — Não atraia atenção. O garoto
apertou a buzina de novo.
Chang olhou o filho, o rosto magro do garoto, o cabelo comprido,
que caía bem abaixo das orelhas. Perguntou num sussurro áspero: —
O furgão... como aprendeu a dar a partida desse jeito?
— O que importa?
— Diga.
— Ouvi alguém falando na escola.
— Não, você está mentindo. Você já fez isso antes.
— Eu só roubava dos subsecretários do partido e dos chefes de
comuna. Isso está bem para você, não está?
— Você fazia o quê?
O garoto deu um riso meio zombeteiro e Chang entendeu que ele
estava brincando. Mas o comentário tinha uma intenção cruel; era
uma referência aos escritos políticos anticomunistas de Chang, que
tinham causado tanta dor à família na China, praticamente
determinando a fuga para a América.
— Com quem você passa o tempo, com ladrões?
— Ah, pai. — O garoto balançou a cabeça num gesto
condescendente, e Chang sentiu vontade de lhe dar um tapa.
— E como arranjou aquele canivete?
— Um monte de gente tem canivete. Yeye tem um. — Essa era a
palavra afetuosa para ”avô”, que muitas crianças chinesas usavam.
— Um canivete de nada para limpar cachimbo, não uma arma.
— Mas finalmente perdeu as estribeiras, gritando: — Como pode
ser tão desrespeitoso?
— Se não fosse o canivete — retrucou o garoto com raiva —, se
eu não mostrasse como dar a partida no motor, provavelmente
estaríamos mortos.
O trânsito voltou a fluir e William caiu num silêncio mal-
humorado.
Chang se virou para o outro lado, sentindo como se tivesse sido
fisicamente agredido pelas palavras do garoto, por esse traço de
personalidade que ainda não conhecia em seu filho. Ah, certamente
houvera problemas com William no passado. A medida que se
aproximava do fim da adolescência ele tinha ficado carrancudo e
retraído. O comparecimento à escola diminuiu. Quando trouxe para
casa uma carta do professor repreendendo-o pelas más notas, Chang
chamou o garoto para uma conversa — afinal, sua inteligência fora
testada e estava muito acima da média. William disse que não era
culpa sua. Ele era perseguido na escola e tratado com injustiça
porque seu pai era um dissidente que tinha violado a regra de ter
apenas um filho, falava favoravelmente sobre a independência de
Taiwan e — o pior sacrilégio de todos — criticava o PCC, o Partido
Comunista Chinês e sua visão linha-dura da liberdade e dos direitos
humanos.
Ele e o irmão mais novo eram sempre provocados pelos
”supermoleques”, jovens que — como filhos únicos de famílias
comunistas ricas e de classe média — eram mimados por hordas de
parentes que os idolatravam e tendiam a chatear os outros
estudantes. Não ajudava nada o fato de que William tinha o nome
do mais famoso empresário americano dos últimos tempos, e o
jovem Ronald, o de um presidente americano.
Mas nem seu comportamento nem essa explicação tinham
parecido muito sérios a Chang, e ele não prestou muita atenção ao
humor dos filhos. Além disso, era tarefa de Mei-Mei criar os filhos,
não dele.
Por que de súbito o garoto estava se comportando de modo tão
diferente?
Mas então Chang percebeu que, entre o trabalho de dez horas
por dia numa gráfica e realizar suas tarefas de dissidente durante a
maior parte da noite, praticamente não tinha passado nenhum
tempo com o filho — até a viagem da Rússia até Meiguo. Talvez,
pensou com um arrepio, o garoto sempre tivesse se comportado
assim.
Por um momento sentiu outro jorro de raiva — mas apenas
parcialmente direcionado a William. Chang não podia dizer
exatamente com o que estava furioso. Olhou um instante as ruas
apinhadas e disse ao filho: — Você está certo. Eu não conseguiria dar
a partida no carro. Obrigado.
William não pareceu notar sequer que o pai tinha falado e se
curvou sobre o volante, perdido em seus pensamentos.
Vinte minutos depois estavam em Chinatown, indo por uma rua
larga que tinha placas com o nome em chinês e inglês: Canal Street.
A chuva estava diminuindo e havia muita gente nas calçadas, onde
ficavam centenas de lojas de comida e suvenires, mercados de peixe,
joalherias, padarias.
— Para onde vamos? — perguntou William.
— Pare ali — disse Chang, e William levou o carro para o meio-
fio. Chang e Wu saíram. Entraram numa loja e perguntaram ao
vendedor sobre as associações de bairro, as tongs. Essas organizações
geralmente eram compostas por pessoas de áreas geográficas
comuns na China. Chang estava procurando uma tong fujianesa, já
que as duas famílias eram da Província de Fujian. Chang presumiu
que não seriam bem recebidos numa tong com raízes em Cantão, de
onde tinha vindo a maioria dos primeiros imigrantes chineses. Mas
ficou surpreso ao saber que agora o bairro chinês de Manha an era
altamente povoado por gente de Fujian e que muitos cantoneses
tinham se mudado. Havia uma grande tong fujianesa a poucos
quarteirões de distância.
Chang e Wu deixaram as famílias no furgão roubado e foram
pelas ruas apinhadas até acharem o lugar. Pintado de vermelho e
mostrando um clássico telhado asa-de-pássaro chinês, o velho prédio
de três andares poderia ter sido transportado diretamente do bairro
pobre perto da Estação de Ônibus Norte em Fujou.
Os homens entraram rapidamente na sede da tong, de cabeça
baixa, como se as pessoas paradas no saguão do prédio fossem pegar
celulares e ligar para o Serviço de Imigração — ou para o Fantasma
— para informar de sua chegada.

Jimmy Mah, usando um terno sujo de cinza de cigarro e em vias


de arrebentar nas costuras, recebeu-os e os convidou ao seu
escritório no segundo andar.
Presidente da Sociedade Fujianesa Broadway Leste, Mah era o
prefeito de fato dessa parte de Chinatown.
Seu escritório era uma sala grande mas simples, contendo duas
mesas e meia dúzia de cadeiras descombinadas, pilhas de papéis,
um belo computador e um aparelho de televisão. Cerca de cem
livros chineses se acomodavam numa estante torta. Na parede havia
cartazes de paisagens chinesas, desbotados e sujos de cocô de mosca.
Chang não se deixou enganar pela aparência decadente do local;
suspeitou que Mah fosse multimilionário.
— Sentem-se, por favor — disse Mah em chinês.
O homem de rosto largo com cabelo preto escorrido para trás
ofereceu cigarros. Wu aceitou um. Chang balançou a cabeça
recusando. Tinha parado de fumar depois de perder seu trabalho de
professor e o dinheiro ficar escasso.
Mah olhou as roupas imundas deles, o cabelo desgrenhado.
— Ha! Vocês dois parecem ter uma história a contar. É uma
história interessante? Uma história envolvente? Qual seria? Aposto
que eu gostaria muito de ouvir.
Chang realmente tinha uma história. Não saberia dizer se era
interessante ou envolvente, mas uma coisa ele sabia: era fictícia.
Decidira não contar a estranhos que eles tinham vindo no Fujou
Dragon e que o Fantasma poderia estar atrás deles. Disse a Mah: —
Acabamos de chegar ao porto num navio hondurenho — disse.
— Quem era seu cabeça de cobra?
— Não chegamos a saber o nome dele. O apelido era Moxige.
— Mexicano? — Mah balançou a cabeça. Eu não trabalho com
cabeças de cobra latinos. — O dialeto de Mah tingia-se de sotaque
americano.
— Ele pegou nosso dinheiro — disse Chang, amargo —, mas
depois só nos deixou no cais. Ia conseguir documentos e transporte.
Desapareceu.
Com curiosidade, Wu o observou tecer sua narrativa. Chang
tinha dito para ele ficar quieto e deixá-lo falar com Mah. No Dragon,
Wu bebia demais e ficava impulsivo. Era descuidado em relação ao
que contava aos imigrantes e à tripulação no depósito.
— Não é que eles fazem isso algumas vezes? — disse Mah
jovialmente. — Por que enganam as pessoas? Isso não é ruim para os
negócios? Mexicanos escrotos. De onde vocês são?
— Fujou — disse Wu.
Chang se remexeu. Ele ia mencionar outra cidade em Fujian para
diluir qualquer ideia de ligação entre os imigrantes e o Fantasma.
Chang continuou, fingindo raiva: — Eu estou com dois filhos e um
bebê. E o meu pai também. Ele é velho. E o meu amigo aqui está com
a mulher doente. Precisamos de ajuda.
— Ah, ajuda. Bom, essa é uma história interessante, não é? Mas
que tipo de ajuda vocês querem? Eu posso fazer algumas coisas.
Outras não posso. Sou por acaso um dos Oito Imortais? Não, claro
que não. Do que estão precisando?
— Documentos. De identidade. Para mim, minha mulher e meu
filho mais velho.
— Claro, claro, eu posso conseguir alguns. Carteiras de
motorista, cartões do seguro social, carteiras de trabalho de alguma
empresa antiga, empresas falidas de modo que ninguém possa
verificar sobre vocês. Eu não sou inteligente? Só Jimmy Mah pensa
coisas assim. Essas carteiras farão vocês parecerem cidadãos, mas
com elas vocês não vão conseguir um emprego de verdade. Os
sacanas do Serviço de Imigração fazem as empresas checarem tudo
hoje em dia.
— Tenho um arranjo para um trabalho — disse Chang.
— E não faço passaportes — acrescentou Mah. — É perigoso
demais. E nem green cards.
— O que é isso?
— Vistos de residência.
— Vamos ficar na clandestinidade e esperar uma anistia —
explicou Chang.
— É mesmo? Talvez esperem muito tempo. Chang deu de
ombros.
— Meu pai precisa de um médico — disse ele, e apontou na
direção de Wu: — A mulher dele também. Pode conseguir cartões de
saúde para a gente?
— Eu não faço cartões de saúde. São fáceis demais de rastrear.
Vocês terão de ir a um médico particular.
— Eles são caros?
— Sim, muito caros. Mas, se não tiverem dinheiro, podem ir a um
hospital municipal. Eles vão atendê-los.
— O atendimento é bom?
— Como é que vou saber se o atendimento é bom? Além disso,
que opções vocês têm?
— Certo — disse Chang. — E para os outros documentos...
Quanto?
— Mil e quinhentos.
— Ienes?
Mah gargalhou.
— Uma cor.
Chang não demonstrou emoção, mas pensou: mil e quinhentos
dólares americanos! Isso era insano. No cinto de dinheiro que ele
estava usando havia o equivalente a cerca de cinco mil dólares em
ienes chineses. Era todo o dinheiro que sua família possuía no
mundo. Balançando a cabeça, disse: — Não, impossível.
Depois de alguns minutos de disputa animada combinaram em
novecentos dólares por todos os documentos.
— Para você também? — perguntou Mah a Wu. O homem magro
assentiu, mas acrescentou: — Só para mim. Vai ser menos, não é?
Mah tragou seu cigarro com força.
— Quinhentos. Não vou baixar mais do que isso.
Wu tentou barganhar, mas o outro se manteve firme. Finalmente
o magro concordou de má vontade.
— Vocês terão de me dar fotos para todo mundo para as carteiras
de motorista e carteiras de trabalho. Vão a algum fliperama, podem
tirar fotos lá.
Chang se lembrou com saudade da noite em que Mei-Mei e ele se
sentaram numa cabine daquelas num grande centro de diversões em
Xiamen há anos, pouco depois de se conhecerem. Atualmente as
fotos estavam numa mala junto com o cadáver do Fujou Dragon no
fundo do oceano escuro.
— Nós também precisamos de um furgão. Eu não posso comprar
um. Posso alugar com você?
O líder da tong deu um riso de desprezo.
— E eu não tenho tudo? Claro, claro. — Depois de mais
barganhas, concordaram. Mah calculou o total que os dois deviam e
então deduziu a taxa de câmbio para pagarem em ienes. Disse aos
homens uma quantia espantosa, e eles concordaram com relutância.
— Deem os nomes e endereços para os documentos. — Em seguida
se virou para o computador e, enquanto Chang ditava a informação,
Mah digitou com movimentos rápidos.
O próprio Chang passava muito tempo com o seu velho laptop.
A Internet se tornara o principal meio dos dissidentes na China Para
se comunicarem com o exterior, ainda que isso fosse muito difícil O
modem de Chang era lamentavelmente lento, e os escritórios de
segurança pública, bem como os agentes do Exército de Libertação
do Povo, viviam rastreando e-mails enviados por dissidentes. Chang
tinha um firewall em seu computador que frequentemente soltava
um bipe, sinalizando que o governo estava tentando invadir seu
sistema. Ele se desconectava imediatamente e precisava conseguir
conta num novo provedor. Seu laptop também, pensou com tristeza,
estava dormindo para sempre dentro do Fujou Dragon.
Enquanto Chang ditava o endereço, o líder da tong ergueu os
olhos do teclado.
— Então vocês vão ficar em Queens?
— É. Um amigo arranjou um lugar para nós.
— É um lugar grande? É confortável para todos vocês? Não
acham que meu corretor poderia conseguir uma coisa melhor? Eu
acho que sim. Tenho contatos em Queens.
— Ele é o melhor amigo do meu irmão. Já combinamos o aluguel.
— Ah, amigo do irmão. Bom. Bem, nós temos uma associação
filiada lá. A Associação de Moradores e Comerciantes de Flushing.
Muito grande. Poderosa. É a nova Chinatown na área de Nova York:
Flushing. Talvez vocês não gostem do seu apartamento. Talvez as
crianças não fiquem em segurança. É possível, não acha? Vá à
associação e fale o meu nome.
— Vou me lembrar disso.
Mah assentiu para a tela do computador e perguntou a Wu.
— Vocês dois estão nesse endereço?
Chang começou a dizer que sim, mas Wu interrompeu: — Não,
não. Eu quero ficar em Manha an, aqui em Chinatown. O seu
corretor pode conseguir uma casa para nós?
— Mas... — disse Chang, franzindo a testa.
— Você não quer dizer casa, quer? — perguntou Mah, divertido.
— Não existem casas. — E acrescentou: — Que você possa pagar.
Então um apartamento?
— Sim — disse Mah —, ele tem cômodos temporários. Você pode
conseguir um lugar hoje e ficar lá até ele conseguir uma moradia
permanente.
Enquanto Mah digitava mais um pouco e o sibilo do modem
enchia o escritório, Chang pôs a mão no braço de Wu e sussurrou:
Não, Qichen. Você precisa ir conosco.
— Nós vamos ficar em Manha an.
Inclinando-se mais para perto, para que Mah não pudesse ouvir,
Chang sussurrou: — Não seja idiota, o Fantasma vai achar vocês.
— Não se preocupe com ele — disse Wu dando uma gargalhada.
— Não me preocupar? Ele acabou de matar uma dúzia dos
nossos amigos.
Que Wu jogasse com a própria vida era uma coisa, mas era
impensável arriscar a esposa e os filhos. Mas Wu se manteve
inflexível.
— Não. Nós vamos ficar aqui.
Chang ficou quieto enquanto Mah desligava o computador e em
seguida escrevia um bilhete e o entregava a Wu.
— Este é o corretor. Fica só a alguns quarteirões daqui. Você vai
pagar uma taxa a ele. — E acrescentou: — Não vou cobrar por isso.
Eu não sou generoso? Todo mundo diz que Jimmy Mah é generoso.
Bom, quanto ao carro do Sr. Chang. — Mah deu um telefonema e
começou a falar rapidamente. Fez arranjos para que o furgão fosse
trazido. Desligou e se virou para os dois. — Pronto. Isso conclui
nossos negócios. Não é um prazer trabalhar com homens razoáveis?
Eles se levantaram ao mesmo tempo e se apertaram as mãos.
— Quer levar um cigarro? — perguntou a Wu, que pegou três.
Quando os imigrantes estavam na porta, Mah comentou: — Uma
coisa. Esse cabeça de cobra mexicano? Não há motivo para ele vir
atrás de vocês, há? Vocês estão quites com ele?
— Sim, estamos.
— Bom. Nós não temos motivo para olhar por cima dos ombros?
— perguntou Mah jovialmente. — E não há demônios suficientes
atrás de nós nesta vida?
Capítulo 10
A distância, sirenes rasgavam o ar da manhã.
O som ficou mais alto e Lincoln Rhyme esperou que ele marcasse
a chegada de Amelia Sachs. As provas que ela havia reunido na
praia já haviam chegado, entregues por um jovem técnico que
entrara timidamente no escritório do lendário Lincoln Rhyme sem
dizer uma palavra e se apressou a entregar os sacos e as pilhas de
fotos como o criminalista orientou rispidamente.
Mas Sachs tinha sido desviada no caminho da praia para
examinar uma cena de crime secundária. O furgão da igreja roubado
em Easton fora encontrado em Chinatown — abandonado há
quarenta e cinco minutos num beco perto de uma entrada do metrô.
O furgão tinha passado pelos bloqueios de estrada porque não
somente estava com placas roubadas, mas também porque os
imigrantes tinham pintado por cima do nome da igreja, substituindo
este por uma boa imitação do logotipo de uma loja de suprimentos
para o lar.
— Esperto — dissera Rhyme, com alguma perplexidade; ele não
gostava de criminosos espertos. Em seguida tinha ligado para Sachs
— que estava voltando a toda para a cidade pela via expressa de
Long Island — e ordenou que ela encontrasse um ônibus da perícia
no centro da cidade e examinasse o furgão.
Harold Peabody, do Serviço de Imigração, tinha ido embora
convocado para fazer malabarismos em entrevistas coletivas e
telefonemas de Washington sobre o fiasco.
Alan Coe, Lon Selli o e Fred Dellray permaneceram, bem como o
detetive magro e com cabelo de javali Eddie Deng. E mais um: Mel
Cooper, magro, meio careca, reservado. Ele era um dos principais
peritos de laboratório forense do NYPD, e Rhyme costumava pegá-lo
emprestado. Andando silenciosamente com seus sapatos Hush
Puppies de sola sulcada — que ele usava durante o dia porque eram
confortáveis e de noite porque lhe davam boa tração para a dança de
salão, Cooper estava juntando equipamento, organizando postos de
exame e espalhando as provas recolhidas na praia.
Seguindo a orientação de Rhyme, Thom grudou um mapa da
cidade de Nova York na parede, perto do mapa de Long Island e das
águas ao redor, que eles tinham usado para acompanhar os
movimentos do Fujou Dragon. Rhyme olhou para o alfinete vermelho
que representava o navio, e de novo sentiu uma pontada de culpa
por sua falta de previdência ter resultado na morte dos imigrantes.
As sirenes ficaram mais altas e pararam do lado de fora de sua
janela, que dava para o Central Park. Um instante depois a porta se
abriu e Amelia Sachs, mancando ligeiramente, entrou depressa na
sala. Seu cabelo estava embolado e com pedacinhos de alga e sujeira,
e os jeans e a camisa de trabalho estavam úmidos e com areia.
Os que estavam na sala assentiram com cumprimentos
distraídos. Dellray olhou para as roupas dela e levantou uma
sobrancelha.
— Tive um tempinho livre — disse ela. — Fui nadar um pouco.
Oi, Mel.
— Amelia — disse Cooper puxando os óculos mais para cima no
nariz. Ele piscou ao ver a aparência dela.
Rhyme notou com uma antecipação ansiosa o que ela carregava:
um caixote de leite cheio de sacos plásticos e de papel. Entregou as
provas a Cooper e foi para a escada, gritando: — Volto em cinco
minutos.
Passado um instante, Rhyme ouviu o chuveiro ligado e, de fato,
cinco minutos depois de ter saído ela estava de volta, usando
algumas das roupas que guardava no armário do quarto dele: jeans e
uma camiseta preta, tênis de corrida.
Usando luvas de borracha, Cooper estava arrumando os sacos,
organizando-os segundo os locais: a praia e o furgão em Chinatown.
Rhyme olhou para as provas e sentiu — nas têmporas, não no
peito entorpecido — uma aceleração no coração, a empolgação capaz
de tirar o fôlego, gerada pelo início de uma caçada. Indiferente aos
esportes e ao atletismo, mesmo assim Rhyme supunha que essa
empolgação tensa era o que, por exemplo, os esquiadores sentiam
quando estavam no topo de uma pista, olhando a montanha abaixo.
Será que venceriam? Será que cometeriam um erro tático e
perderiam por uma fração de segundo? Será que iriam se machucar
ou morrer?
— Certo — disse ele. — Vamos a isso. — E olhou a sala em volta.
— Thom? Thom! Onde é que ele está? Estava aqui há um minuto.
Thom!
— O que foi, Lincoln? — O ajudante atarefado apareceu na porta
segurando uma panela e um pano de prato.
— Seja o nosso escriba... anote nossas ideias vigorosas — e
assentiu para o quadro branco — naquela sua letra elegante.
— Sim, bwana. — Thom foi de novo para a cozinha.
— Não, não, deixe isso aí — reclamou Rhyme. — Escreva!
Suspirando, Thom pousou a panela e enxugou as mãos na toalha.
Enfiou a camisa roxa na calça para protegê-la do pincel atômico e
foi até o quadro branco. Ele já fora um membro oficioso de várias
equipes forenses aqui e conhecia o trabalho.
— Vocês já têm um nome para o caso? — perguntou ele a
Dellray.
O FBI sempre dava às grandes investigações nomes com siglas
variantes das palavras-chave que descreviam o caso — como
ABSCAM. Dellray apertou o cigarro que estava atrás de sua orelha.
— Não — respondeu. — Nada ainda. Mas vamos inventar um e
obrigar Washington a aceitar. Que tal o nome do nosso garoto?
FANTASMORTES. Está bom para todo mundo? É bem assustador’!
— E bastante assustador — concordou Selli o, embora com um
jeito de quem estava remotamente assustado.
Thom escreveu isso no topo do quadro branco e se virou para os
agentes da lei.
— Nós temos duas cenas — disse Rhyme. — A praia em Easton e
o furgão. Primeiro a praia.
Enquanto Thom anotava, o telefone de Dellray tocou e ele
atendeu. Depois de uma conversa breve desligou e disse à equipe o
que tinha acabado de saber: — Até agora mais nenhum sobrevivente.
E a Guarda Costeira não achou o navio. Mas recuperou alguns
corpos no mar. Dois mortos a tiro, um afogado. Um deles tinha
documentos da marinha mercante. Nada nos outros dois. Estão
mandando digitais e fotos para nós e cópias para a China.
— Ele matou até a tripulação. — perguntou Eddie Deng,
incrédulo.
— O que você esperava? — replicou Coe — Você o conhece
agora. Acha que ele deixaria uma única testemunha viva? — Um riso
desdenhoso. — Além disso, com a tripulação morta ele não teria que
pagar o aluguel do navio. E ao voltar à China provavelmente diria
que a Guarda Costeira disparou e afundou o Dragon.
Mas Rhyme não tinha tempo para raiva contra o Fantasma ou
para consternação pelo potencial de crueldade do coração humano.
— Certo, Sachs — disse incisivamente. — A praia. Conte o que
aconteceu.
Ela se encostou numa mesa de laboratório e consultou suas
anotações.
— Quatorze pessoas chegaram em terra numa balsa a cerca de
oitocentos metros de Easton, na estrada para Orient Point. — Ela foi
até a parede e tocou um ponto no mapa de Long Island. — Perto do
farol de Horton Point. A medida que chegavam perto, a balsa bateu
numas pedras e começou a se desinflar. Quatro imigrantes foram
jogados na água e lançados à praia. Os outros dez ficaram juntos.
Eles roubaram o furgão da igreja e foram embora.
— Fotos das pegadas? — perguntou Rhyme.
— Aí está — disse Sachs entregando um envelope a Thom. Ele
grudou as polaroides. — Achei num telheiro perto da balsa. Estavam
molhadas demais para usar eletrostática — explicou à equipe. —
Tive de tirar fotos.
E são uma bela obra de arte — disse Rhyme movendo a cadeira
de rodas para a frente e para trás diante deles.
— Estou contando nove — disse Dellray. — Por que disse que
eram dez, Amelia?
— Porque há um bebê, certo? — disse Rhyme.
Sachs assentiu.
Certo. Sob o abrigo achei alguns padrões na areia que não pude
identificar, parecia que alguma coisa tinha sido arrastada, mas não
havia pegadas na frente, só atrás. Achei que seria uma criança
engatinhando.
— Certo — disse Rhyme, estudando o tamanho dos sapatos.
Parece que temos sete adultos e/ou adolescentes mais velhos, duas
crianças e um bebê. Um dos adultos pode ser velho: ele está
arrastando os pés. Eu diria que é ”ele” por causa do tamanho do
sapato. E alguém está ferido, provavelmente uma mulher, a julgar
pelo tamanho dos sapatos dela. O homem ao lado está ajudando-a.
— Havia manchas de sangue na praia e no furgão — acrescentou
Sachs.
— Amostras do sangue? — perguntou Cooper.
— Não havia muitas na balsa ou na praia; a chuva tinha lavado a
maior parte. Peguei três amostras na areia. E um bocado no furgão,
ainda úmidas. — Ela achou um saco plástico contendo alguns
frascos. Entregou-o a ele.
O técnico preparou as amostras para tipificar e preencheu um
formulário. Ligou fazendo uma requisição expressa para tipificação
e identificação de sexo no laboratório de serologia do Instituto
Médico Legal e pediu que um policial uniformizado levasse as
amostras para o centro da cidade.
— Bom — continuou Sachs —, o Fantasma, numa segunda balsa,
desembarcou uns duzentos metros a leste de onde os imigrantes
chegaram.
Seus dedos desapareceram nos abundantes cabelos ruivos e
arranharam com força o couro cabeludo. Sachs costumava arranjar
pequenos machucados assim. Uma mulher linda, ex-modelo, que
não raro estava com as unhas cortadas rente, algumas vezes
ensanguentadas. Rhyme tinha desistido de deduzir de onde vinha
essa compulsão dolorosa, mas, estranhamente, invejava-a. As
mesmas tensões obscuras também o impeliam. A diferença era que
ele não tinha a válvula de escape desse tipo de movimento para
aliviar a tensão.
Fez um pedido silencioso à Dra. Weaver sua neurocirurgia: Faça
alguma coisa por mim. Alivie só um pouco esse confinamento
terrível. Por favor... depois bateu a porta sobre esses pensamentos
pessoais, com raiva de si mesmo, e voltou a atenção para Sachs.
— ”Então — continuou ela com uma lasca de emoção na voz —,
então ele começou a rastrear os imigrantes e matá-los. Achou dois
que tinham caído da balsa e matou-os. Atirou pelas costas. Feriu um.
O quarto imigrante continua desaparecido.
— Onde está o ferido? — perguntou Coe.
— Estavam levando-o para um ambulatório e depois para a
detenção do Serviço de Imigração em Manha an. Ele disse que não
sabia para onde o Fantasma ou os imigrantes poderiam ter ido
depois de chegar aqui. — De novo Sachs consultou suas anotações
encharcadas. — Bom, havia um veículo na estrada perto da praia
mas ele partiu; rápido, cantou pneus e fez uma curva. Acho que o
Fantasma atirou contra ele. De modo que talvez tenhamos uma
testemunha, se pudermos descobrir a marca e o modelo. Eu tenho as
dimensões das distâncias entre os eixos e...
— Espere — interrompeu Rhyme. — Ele estava perto de quê? O
carro?
— Perto? De nada. Só estava parado no acostamento. O
criminalista franziu a testa.
— Por que alguém pararia ali num dia de tempestade antes do
amanhecer?
— Podia estar passando e ter visto as balsas? — sugeriu Dellray.
— Não — disse Rhyme. — Nesse caso teria ido pedir ajuda ou
telefonado. E não houve nenhum nove-um-um informando nada.
Não, acho que o motorista estava lá para pegar o Fantasma, mas
quando viu que o cabeça de cobra não estava com pressa de ir
embora deu no pé.
— Então ele foi abandonado — observou Selli o. Rhyme
assentiu.
Sachs entregou um papel a Mel Cooper.
— Dimensões das distâncias entre os eixos. E aqui estão as fotos
das marcas dos pneus.
O técnico escaneou as fotos para o computador e mandou a
imagem, junto com as dimensões, para o banco de dados do IV
Identificador de Veículos — do NYPD.
Não deve demorar — informou a voz calma de Cooper.
— E os outros caminhões? — perguntou o jovem detetive Eddie
Deng.
— Que outros caminhões? — indagou por sua vez Sachs.
— Os termos de um contrato de contrabando — esclareceu Coe
— incluem transporte por terra também. Deveria haver alguns
caminhões para levar os imigrantes de volta à cidade.
— Não vi nenhum sinal deles — disse Sachs balançando a
cabeça.
— Mas quando afundou o navio o Fantasma provavelmente
ligou para o motorista e mandou-os voltar para a cidade. — Ela
olhou de novo os sacos com provas. — Eu achei isto... — Ela
estendeu um saco com um celular.
— Excelente! — disse Rhyme. Ele chamava pistas assim de
”prova NASDAQ” por causa da bolsa de valores de alta tecnologia.
Computadores, celulares, agendas eletrônicas. Toda uma nova classe
de provas, esses equipamentos reveladores proporcionavam
quantidades enormes de informações sobre criminosos e as pessoas
com quem eles haviam feito contato. — Fred, mande o seu pessoal
examinar isso.
— Certo.
Recentemente a agência tinha acrescentado uma equipe de
informática e eletrônica ao escritório de Nova York. Dellray deu um
telefonema e combinou para um agente pegar o celular e levá-lo até
o laboratório de perícia federal para análise.
— Certo — falou Rhyme, pensativo —, ele está caçando os
imigrantes, atirando neles, atirando no motorista que os abandonou.
Está fazendo isso sozinho, certo, Sachs? Nenhum sinal do misterioso
assistente?
Ela indicou com a cabeça para as polaroides das pegadas.
— Não, tenho certeza que o Fantasma era o único na segunda
balsa, e o único que atirou.
Rhyme franziu a testa.
— Não gosto de criminosos não-identificados andando por aí
quando estamos examinando cenas de crime. Não temos nada sobre
quem é esse bangshoul — Não — murmurou Selli o. — Nenhuma
pista. O Fantasma tem dúzias deles pelo mundo afora.
— E nenhum sinal do quarto imigrante? O que caiu da balsa?
— Não.
Então o criminalista perguntou a Sachs: — E quanto à balística?
Sachs estendeu um saco plástico contendo cartuchos, para
Rhyme examinar.
— Sete-ponto-meia-dois milímetros, mas o cartucho tem um
tamanho estranho. E é desigual. Barato. — Mesmo tendo um corpo
que não podia se mexer, seus olhos eram tão aguçados quanto os do
falcão-peregrino que morava no parapeito do seu quarto no andar
de cima. — Verifique os cartuchos online, Mel.
Quando era chefe da perícia forense no NYPD Rhyme passou
meses reunindo bancos de dados sobre padrões de provas —
amostras de substâncias e materiais junto com as fontes de onde
vinham, como óleo de motor, fios, fibras, terra e assim por diante —
para facilitar o rastreamento de provas encontradas em cenas de
crimes. Um dos bancos de dados maiores e mais utilizados era a
compilação de informações sobre cartuchos e balas. A coleção
combinada do FBI e do NYPD tinha amostras e imagens
digitalizadas de quase todos os projéteis disparados de alguma arma
nos últimos cem anos.
Cooper abriu o saco plástico e enfiou dentro pauzinhos japoneses
— apropriadamente, considerando o caso em que estavam
trabalhando agora. Essa era a ferramenta que Rhyme descobrira ser
menos danosa para as provas, e tinha ordenado que todos os seus
técnicos aprendessem a usá-los em vez de pinças ou fórceps, que
facilmente poderiam danificar amostras delicadas.
— De volta à sua cativante narrativa sobre a praia, Sachs.
— As coisas estavam esquentando — continuou ela. — O
Fantasma estava em terra há um tempo. Ele sabia que a Guarda
Costeira tinha uma ideia aproximada de sua localização. Encontrou
o terceiro imigrante na água, John Sung, atirou nele, depois roubou o
Honda e foi embora. — Ela olhou para Rhyme. — Há alguma notícia
do carro?
Um alerta de emergência para localização de veículo tinha ido
para todas as agências policiais das proximidades. Assim que o
Honda roubado fosse visto em algum lugar da área metropolitana
de Nova York, Selli o ou Dellray receberiam um telefonema. Mas
ainda não houvera notícia, disse o detetive de homicídios. Então ele
acrescentou: — Mas o Fantasma já esteve em Nova York antes,
muitas vezes. Ele conhece o sistema de trânsito. Imagino que tenha
usado estradas secundárias para oeste até chegar perto da cidade,
então largou o carro e pegou o metrô para a cidade. Já deve estar lá
agora.
Rhyme percebeu um risco de preocupação na testa do agente do
FBI.
— O que é, Fred?
— Eu gostaria que a gente tivesse achado esse escroto antes dele
chegar à cidade.
— Por quê?
— A informação do meu pessoal é de que ele tem uma rede
muito bem armada na cidade. Tongs e gangues de rua em
Chinatown, claro. Mas é muito mais do que isso, ele tem até gente do
governo na sua ”folha de pagamento”.
— Do governo? — perguntou Selli o, surpreso.
— Foi o que ouvi dizer — disse Dellray.
— Eu acredito — disse Deng cinicamente. — Se ele tem dúzias de
autoridades da China no bolso, por que não teria aqui também?
Então, refletiu Rhyme, temos um assistente não-identificado,
presumivelmente armado, um cabeça de cobra homicida e agora
espiões dentro de nossas próprias fileiras. Nunca é fácil, mas
realmente...
Um olhar para Sachs, que significava: continue.
— Marcas de fricção? — perguntou. Era o nome técnico para
impressões de dedo, palma e pés.
— A praia estava toda revirada por causa da chuva e do vento —
explicou ela. — Consegui algumas parciais no motor de popa e nas
laterais de borracha das balsas e no celular. — Ela estendeu os
cartões com as impressões que havia tirado. — A qualidade é bem
ruim.
— Escaneie e mande para o AFIS — gritou Rhyme.
O Sistema de Identificação Automática de Digitais, AFIS na sigla
em inglês, era uma rede gigantesca de arquivos federais e estaduais
de impressões digitais. O AFIS reduzia de meses para horas — e às
vezes até minutos, em alguns casos — o tempo de busca por
impressões iguais.
— Também encontrei isto. — Ela estendeu um tubo de metal
num saco plástico. — Um deles o usou para quebrar a janela do
furgão. Não há impressões visíveis, por isso achei melhor tentar tirá-
las aqui.
— Vá trabalhar, Mel.
O homem magro pegou o saco, calçou luvas de algodão e extraiu
o tubo, segurando-o apenas pelas extremidades.
— Vou usar DMV.
A Deposição de Metal por Vácuo é considerada o Rolls-Royce
dos sistemas de obtenção de impressões. Envolve colocar uma
cobertura microscópica de metal sobre o objeto a ser examinado e
em seguida irradiá-lo. Depois de alguns minutos Cooper tinha uma
imagem extremamente nítida de várias impressões latentes. Tirou
fotos delas, passou as fotos pelo scanner e mandou-as para o AFIS.
Entregou as fotos a Thom, que as prendeu no quadro.
— Da praia é praticamente só isso, Rhyme — disse Sachs.
O criminalista olhou para a tabela. Por enquanto as provas ainda
lhe diziam pouco. Mas ele não se sentia desencorajado; era assim
que os criminalistas trabalhavam — o negócio era incompreensível a
princípio; só depois de tentativas e erros e muita análise começavam
a surgir os padrões.
— Agora o furgão — disse ele.
Sachs prendeu fotos do furgão no quadro branco. Reconhecendo
o local em Chinatown a partir da polaroide, Coe falou: — A região
em volta dessa estação de metrô é apinhada. Deve haver alguma
testemunha.
— Ninguém viu nada — disse Sachs secamente.
— Onde foi que já ouvi isso antes? — brincou Selli o. Era
espantoso, sabia Rhyme, o tipo de amnésia induzido pelo simples
ato de mostrar um distintivo dourado ao cidadão comum.
— E quanto à placa? — perguntou ele.
— Foi roubada de uma caminhonete num estacionamento no
Condado de Suffolk — disse o atarracado policial de homicídios.
Também não havia testemunhas lá.
O que você encontrou no furgão? — perguntou a Sachs.
— Eles arrancaram um punhado de plantas e colocaram na parte
de trás.
— Plantas?
— Para esconder os outros, acho, e fazer parecer que eram dois
empregados fazendo entregas para a tal Loja do Lar. Mas não
consegui muito mais. Só as impressões, alguns trapos e o sangue; a
mancha estava na janela, de modo que acho que o ferimento era
acima da cintura. No braço ou na mão, provavelmente.
— Nenhuma lata de pintura? — perguntou Rhyme. — Pincéis?
De quando eles pintaram o logotipo na lateral?
— Não, eles jogaram tudo fora. — Ela deu de ombros. — É isso,
afora as marcas de fricção. — Sachs entregou a Cooper os cartões e
as polaroides das digitais que tinha retirado do furgão e ele as
escaneou: digitalizou-as e mandou para o AFIS.
Os olhos de Rhyme estavam grudados na tabela. Examinou os
itens durante um momento, como um escultor avaliando um pedaço
de pedra antes de começar a esculpir. Depois se virou para o outro
lado e disse a Dellray e Selli o: — Como vocês querem cuidar do
caso? Selli o cedeu a vez ao agente do FBI, que disse: — Nós temos
de dividir os esforços. Não vejo outro modo. Um: vamos atrás do
Fantasma. Dois: temos de achar essas famílias antes dele. — E olhou
para Rhyme. — Vamos estabelecer o posto de comando aqui, tudo
bem?
Rhyme assentiu. Não se importava mais com a intromissão, não
se importava mais com a transformação de sua casa na própria
estação Grand Central. Independentemente do que custasse, o
criminalista iria encontrar o homem que havia retirado
implacavelmente tantas vidas inocentes.
— Bom, eu estou pensando o seguinte — disse Dellray, andando
de um lado para o outro com suas pernas compridas. — Nós não
vamos ficar embromando com esse cara. Vou conseguir mais uma
dúzia de agentes aqui nos distritos Sul e Leste e vou conseguir um
grupo da SPECTAC em Quântico.
SPECTAC era uma espécie de diminutivo de Comando Tático
Especial, mas era pronunciado como ”espetacular”. Esse grupo
pouco conhecido do FBI era a melhor unidade tática do país.
Regularmente participava de operações práticas com a Força Delta e
os Seals da marinha — e geralmente vencia. Rhyme ficou feliz em
saber que Dellray estava convocando-o. Pelo que sabia agora sobre o
Fantasma, os recursos que possuíam no momento eram
inadequados. Dellray, por exemplo, era o único agente do FBI
designado em tempo integral para o caso, e Peabody era apenas um
agente de nível médio do Serviço de Imigração.
— Vai ser difícil convencer todo mundo no Edifício Federal disse
o agente. — Mas vou conseguir.
O telefone de Coe tocou. Ele ouviu durante alguns instantes,
assentindo. Depois de desligar, falou: — Era a Detenção do Serviço
de Imigração em Midtown, falando sobre aquele sem documento, John
Sung. Ele acabou de ser solto sob fiança por uma das nossas
autoridades de imigração. — Coe levantou uma sobrancelha. —
Todo mundo que é apanhado chegando tenta pedir asilo, é o
procedimento padrão. Mas parece que Sung pode conseguir. Ele é
um dissidente bastante conhecido na China.
— Onde ele está agora? — perguntou Sachs.
— Com o advogado do Centro de Direitos Humanos no centro
da cidade. Ele vai colocar Sung num apartamento perto da Canal
Street. Eu tenho o endereço. Ele vai estar lá dentro de meia hora. Vou
entrevistá-lo.
— Seria melhor que eu fosse — disse Sachs rapidamente.
— Você? — perguntou Coe. — Você é especialista em cena do
crime.
— Ele confia em mim.
— Confia em você? Por quê?
— Eu salvei a vida dele. Mais ou menos.
— Mesmo assim, é um caso do Serviço de Imigração — disse o
jovem agente, inflexível.
— Exato — observou Sachs. — Quanto você acha que ele vai
contar a um agente federal?
— Deixe Amelia fazer isso — interveio Dellray.
Coe entregou-lhe relutantemente o endereço. Ela mostrou a
Selli o.
— Deveríamos colocar uma radiopatrulha na frente do lugar. Se
o Fantasma descobrir que Sung ainda está vivo, ele será um alvo
também.
O detetive anotou o endereço.
— Claro. Vou fazer isso agora.
— Certo, todo mundo, qual é o lema da investigação? —
perguntou Rhyme em voz alta.
— Procure bem mas vigie as costas — respondeu Sachs rindo.
— Mantenha isso em mente. Nós não sabemos onde o Fantasma
está, nem sabemos onde o bangshou está e nem quem ele é.
Então sua atenção se dispersou. Ele teve uma vaga percepção de
Sachs pegando a bolsa e indo para a porta, assim como notou o
suspiro descontente de Coe por ver sua jurisdição limitada, Dellray
andando de um lado para o outro e a diversão elegante de Eddie
Deng por eles estarem controlando o caso a partir deste estranho
posto de comando. Mas essas impressões iam desaparecendo de
seus pensamentos enquanto seus olhos rápidos faziam o circuito das
provas retiradas das cenas dos crimes. Olhou atentamente para os
itens, como se implorasse que as provas inanimadas reunidas ali
saltassem para a vida, entregassem qualquer segredo que pudessem
guardar e os guiassem até o assassino e às presas desafortunadas
que o cabeça de cobra caçava.

FANTASMORTES

Cena do Crime Easton, Long Island

Dois imigrantes mortos na praia, com tiros nas costas.


• Um imigrante ferido — Dr. John Sung. Um desaparecido.
• ”Bangshou” (assistente) a bordo; identidade desconhecida.
• Dez imigrantes escapam: sete adultos (um idoso, uma mulher
ferida), duas crianças, um bebê. Roubam furgão da igreja.
• Amostras de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Veículo esperando o Fantasma na praia partiu sem ele. Um tiro
supostamente dado pelo Fantasma contra o veículo. Providenciado
pedido de marca e modelo do veículo, baseado em marcas de pneus
e distância entre eixos.
• Nenhum veículo para pegar os imigrantes foi localizado.
• Celular, presumivelmente do Fantasma, mandado para análise
no FBI.
• Arma do Fantasma é uma pistola 7.62. Cartuchos incomuns.
• O Fantasma pode ter gente do governo em sua folha de
pagamentos.
• O Fantasma roubou um sedã Honda vermelho para fugir.
Providenciado pedido de localização do veículo.
• Três corpos recuperados no mar dois mortos a tiros, um
afogado fotos e impressões mandadas a Rhyme e à polícia chinesa.
Digitais mandadas ao AFIS.
Furgão Roubado, Chinatown

• Camuflado por imigrantes com o logotipo ”A Loja do Lar”.


• Mancha de sangue sugere que mulher tem ferimento no braço
ou no ombro.
• Amostras de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Digitais mandadas ao AFIS.
Capítulo 11
O Fantasma esperava os três homens num ambiente luxuoso.
De banho tomado e vestido com roupas simples e que não
chamavam a atenção, sentou-se no sofá de couro e olhou o porto de
Nova York do apartamento no décimo oitavo andar, que era o seu
principal esconderijo em Nova York. Era num prédio elegante perto
do Ba ery Park City, no canto sudoeste de Manha an, não muito
longe de Chinatown mas distante de suas ruas apinhadas, dos
cheiros de frutos do mar, do fedor de óleo rançoso dos restaurantes
para turistas. Agora refletia em como essa elegância e conforto, que
ele lutara muito para alcançar, há muito tinham sido alvos do
Partido Comunista.
Por que você busca o caminho da decadência?
Você faz parte dos antigos! Você se arrepende do que fez?
Você deve se livrar da cultura antiga, dos hábitos antigos, das ideias
antigas!
Você está infectado pelos pensamentos e desejos errados!
Desejos errados?, pensou sorrindo cinicamente consigo mesmo.
Desejos? Sentindo a familiar sensação se arrastando na virilha. Uma
ânsia com a qual era muito familiarizado — e pela qual costumava
ser governado — durante toda a vida.
Agora que tinha sobrevivido ao afundamento do navio e
escapado da praia, seus pensamentos voltavam às prioridades
normais: precisava tremendamente de uma mulher.
Não tivera uma sequer durante duas semanas — uma prostituta
russa em São Petersburgo, uma mulher de boca grande e peitos que
tombavam de modo alarmante na direção das axilas quando se
deitava de costas. Deu para o gasto, mas só isso.
E no Fujou Dragon? Nenhuma. Geralmente era prerrogativa do
cabeça de cobra pedir a uma das porquinhas mais bonitas que fosse
à sua cabine, prometendo reduzir o preço da passagem em troca de
uma noite na cama. Ou, se estivesse viajando sozinha ou com um
homem fraco, simplesmente arrastá-la até sua cabine e estuprá-la. O
que ela iria fazer, afinal de contas? Chamar a polícia quando
chegassem ao Belo País?
Mas seu bangshou, escondido no depósito como espião, tinha
informado que as porquinhas no Dragon não eram particularmente
bonitas nem jovens, e os homens eram desafiadores e inteligentes,
perfeitamente capazes de causar encrenca. Por isso fora uma viagem
longa e celibatária.
Agora tinha voltado a fantasiar sobre a mulher que ele chamava
de Yindao, a palavra chinesa para a genitália feminina. O apelido era
desdenhoso, claro, mas não particularmente no caso dela porque o
Fantasma pensava em todas as mulheres, afora algumas empresárias
e cabeças de cobra que ele respeitava, apenas em termos de seus
corpos. Uma quantidade de imagens veio à sua mente sobre o
contato que planejava com Yindao: ela deitada debaixo dele, o som
distinto de sua voz no ouvido dele, ela se arqueando, as mãos dele
puxando os cabelos compridos da mulher... cabelos de seda tão
bonitos... Pegou-se dolorosamente excitado. Por um momento
pensou em esquecer os Chang e os Wu. Podia se encontrar com
Yindao — ela estava em Nova York — e realizar as fantasias. Mas,
claro, não estava em sua natureza fazer isso. Primeiro as famílias de
porquinhos precisavam morrer. Depois ele poderia passar longas
horas com ela.
Naixin.
Tudo no seu devido tempo.
Um olhar ao relógio. Eram quase onze da manhã. Onde estavam
os três turcos?, pensou.
Quando o Fantasma chegou ao esconderijo, não muito tempo
atrás, tinha usado um dos celulares roubados que mantinha ali para
ligar para um centro comunitário no Queens, com o qual já fizera
negócios. Contratou três homens para ajudá-lo a achar e matar os
porquinhos. Sempre paranoico e desejando manter o mais distante
possível as conexões entre si mesmo e seus crimes, o Fantasma não
tinha procurado uma das tongs tradicionais em Chinatown; tinha
contratado uigures.
Em termos raciais, a vasta maioria do território chinês é composta
pela etnia Han, cujos ancestrais remontam à dinastia desse nome,
estabelecida por volta de 200 a.C Os outros cerca de oito por cento
da população são compostos por grupos minoritários como os
tibetanos, mongóis e manchus. Os uigures, cujo povo é do oeste da
China, era uma dessas minorias. Predominantemente muçulmana,
sua região nativa é considerada parte da Ásia Central e, antes de ser
anexada à China, era chamada de Turquestão Oriental. Daí o nome
que o Fantasma lhes dava: ”turcos”.
Como outras minorias da China, os uigures costumavam ser
perseguidos e sofriam grande pressão da parte de Pequim para se
assimilarem na cultura chinesa. Os separatistas costumavam ser
brutalizados e mortos, e os uigures eram muito enfáticos em suas
exigências de independência; a maioria dos atos terroristas na China
podia ser ligada a pessoas que lutavam pela independência uigur.
A comunidade uigur em Nova York era calma, devota e pacífica.
Mas esse grupo em particular de homens do Centro Comunitário e
Islâmico Turquestão do Queens era tão implacável quanto qualquer
tríade com a qual o Fantasma já havia lidado. E como essa tarefa
implicava matar famílias de chineses han, eles eram a escolha
perfeita; eram motivados por anos de opressão e pela quantidade
generosa de dinheiro que o Fantasma iria pagar, parte do qual
acabaria indo para a Província de Xinjiang, no oeste da China, para
ajudar a financiar o movimento pela independência uigur.
Dez minutos depois eles chegaram. Mãos foram apertadas e eles
deram seus nomes: Hajip, Yusuf, Kashgari. Eram morenos, quietos,
magros — de menor estatura que a dele, e olha que o Fantasma não
era particularmente grande. Usavam roupas pretas, braceletes ou
colares de ouro e celulares elegantes nos quadris, como distintivos.
Os uigures falavam túrquico uma língua que o Fantasma não
entendia, e não se sentiam confortáveis com nenhum dialeto chinês.
Decidiram-se pelo inglês. O Fantasma explicou o que era necessário
e perguntou se tinham algum problema em matar pessoas
desarmadas — mulheres e crianças, por exemplo.
Yusuf, um homem de quase trinta anos, com sobrancelhas que se
encontravam acima do nariz, era o porta-voz; seu inglês era melhor
que o dos outros. Sem consultá-los, falou: — Sem problema. Faremos
isso. Faremos o que você quiser. Como se matasse mulheres e
crianças regularmente.
E talvez matasse mesmo, refletiu o Fantasma.
O Fantasma deu dez mil dólares a cada um, de um cofre que
mantinha no esconderijo, e depois ligou para o chefe do Centro
Comunitário Turquestão e passou o telefone a Yusuf, que disse ao
chefe, em inglês, quanto dinheiro o Fantasma havia distribuído, de
modo que não houvesse disputas sobre subfaturamento nem para
onde o dinheiro tinha ido. Eles desligaram.
Agora o Fantasma disse:
— Vou dar uma saída — disse o Fantasma. — Preciso de algumas
informações.
— Nós esperamos. Podemos tomar café?
O Fantasma sinalizou com a cabeça a direção da cozinha. Depois
foi até um pequeno oratório. Acendeu uma vareta de incenso,
murmurou uma oração a Yi, o timoneiro divino na mitologia
chinesa, que ele tinha adotado como divindade pessoal. Depois pôs a
pistola num coldre de tornozelo e deixou seu apartamento luxuoso.
Sonny Li estava num ônibus de Long Island, que seguia
lentamente pelo trânsito matinal banhado pela chuva, enquanto a
silhueta de Manha an crescia lentamente.
Cínico e duro por natureza, mesmo assim Li se espantava com o
que via. Não o tamanho enorme da cidade da qual se aproximavam
— o mundo de Li era o litoral sudeste da China, um dos locais mais
superpovoados da Terra. Xangai tinha o dobro do tamanho de Nova
York, e cinquenta milhões de pessoas viviam no Delta da Pérola,
entre Hong Kong e Guangjou.
Não, o que o fascinava era o ônibus em que estava.
Na China o principal meio de transporte público são os ônibus.
São veículos apinhados, imundos, frequentemente quebrados,
sufocantes nos meses quentes e gélidos no outono e no inverno, com
as janelas gordurosas dos resíduos de fumaça, óleo e fuligem. As
estações de ônibus também eram lugares velhos e decrépitos. Li
havia atirado num homem atrás da infame Estação de Ônibus Norte
em Fujou, e ele próprio fora esfaqueado não muito longe do mesmo
lugar.
De modo que nunca vira um veículo como aquele monstro era
gigantesco e luxuoso, com bancos almofadados, chão limpo e janelas
sem uma sujeira. Até nesse dia opressivo e úmido de agosto, o ar-
condicionado funcionava perfeitamente. Ele tinha passado duas
semanas enjoando violentamente todos os dias, estava praticamente
falido e não tinha ideia de onde o Fantasma se encontrava. Não tinha
arma, nem mesmo um maço de cigarros. Mas pelo menos o ônibus
era uma bênção do céu.
Depois de ter fugido da praia onde os sobreviventes do Fujou
Dragon tinham desembarcado, Li pediu carona a um motorista de
caminhão numa parada para descanso na rodovia, a vários
quilômetros de distância. O homem olhou para suas roupas
molhadas e amarfanhadas e o deixou ir na carroceria. Depois de
cerca de meia hora o motorista o deixou numa elegante estação de
ônibus num estacionamento enorme. Ali, explicou o motorista,
Sonny Li poderia pegar um ônibus para onde queria ir —
Manha an.
Li não tinha certeza do que era necessário para comprar uma
passagem, mas aparentemente não exigiam passaportes ou
documentos. Entregou ao bilheteiro uma das notas de vinte dólares
que tinha roubado do carro da ruiva Hongse e disse ”cidade de Nova
York, por favor”. Tentar usar o seu melhor sotaque, imitando o ator
Nicholas Cage. Na verdade, falou com tanta clareza que o bilheteiro,
talvez esperando palavras ininteligíveis, piscou os olhos surpreso e
entregou um tíquete impresso em computador junto com seis
dólares de troco. Ele contou o dinheiro duas vezes e decidiu que o
bilheteiro o havia roubado ou, como murmurou baixinho em inglês,
agora estava ”num país caro pra caralho”.
Foi até uma banca de jornais junto da estação e comprou um
aparelho de barbear e um pente. No banheiro masculino, barbeou-se
e lavou a água salgada do cabelo e o secou com toalhas de papel.
Depois penteou os fios ralos para trás e tentou tirar o máximo de
areia possível do corpo. Em seguida juntou-se aos passageiros bem
vestidos na plataforma.
Agora, aproximando-se da cidade, o ônibus diminuiu a
velocidade numa cabine de pedágio e depois continuou por um
túnel comprido. Finalmente saiu na cidade propriamente dita. Dez
minutos depois o veículo parou numa rua comercial movimentada.
Li saltou como todos os outros passageiros e ficou parado na
calçada.
Seu primeiro pensamento: Onde estão todas as bicicletas e
motos? Esses eram os principais meios de transporte particular na
China, e Li não podia imaginar uma cidade tão grande sem milhões
de bicicletas andando nas ruas.
Seu segundo pensamento: Onde posso comprar cigarros?
Achou um quiosque que vendia jornais e comprou um maço.
Quando olhou o troco dessa vez, pensou: Dez juízes do inferno!
Quase três dólares por um maço! Ele fumava pelo menos dois maços
por dia, três quando estava fazendo alguma coisa perigosa e
precisava acalmar os nervos. Iria à falência em um mês aqui, avaliou.
Acendeu um cigarro e tragou profundamente enquanto andava em
meio à multidão. Perguntou a uma asiática bonita como chegar a
Chinatown, e ela mostrou a entrada do metrô.
Abrindo caminho entre a massa de passageiros, Li comprou uma
ficha. Também era cara, mas ele havia parado de comparar custos
entre os dois países. Pôs a ficha na catraca, passou e esperou na
plataforma. Levou um certo susto quando um homem começou a
gritar para ele. Li pensou que o sujeito poderia ser maluco, mesmo
usando uma roupa cara. Mas logo percebeu o que o homem estava
dizendo. Ao que tudo indicava, era proibido fumar no metrô.
Li achou isso loucura. Não podia acreditar. Mas não queria fazer
uma cena, por isso apagou o cigarro e o pôs no bolso, murmurando
baixinho outra avaliação: ”Que país mais maluco.”
Alguns minutos depois um trem chegou rugindo na estação, e
Sonny Li entrou como se fizesse isso a vida inteira, olhando em volta
com atenção — não em busca de agentes de segurança, mais sim
para ver se descobria alguém fumando, caso em que poderia acender
o cigarro de novo. Para sua consternação, ninguém estava fumando.
Na Canal Street, Li saiu do vagão e subiu a escada até a cidade
agitada no início da manhã. A chuva tinha parado, e ele acendeu o
cigarro guardado e se enfiou na multidão. Muitas pessoas em volta
estavam falando cantonês, o dialeto do sul, mas afora a língua esse
bairro parecia algumas partes da sua cidade, Liu Guoyuan — ou
qualquer cidadezinha na China: cinemas mostrando filmes chineses
de ação e romance, os rapazes com cabelos escorridos para trás ou
topetes e sorrisos desafiadores, as garotas andando abraçadas às
mães ou avós, empresários de terno muito bem abo toados, as caixas
cheias de gelo e peixe fresco, as padarias vendendo pãezinhos para
chá e bolos de arroz, os patos defumados pendendo pelo pescoço
nas vitrines gordurosas dos restaurantes, herbanários e
acupunturistas, médicos chineses, vitrines de lojas cheias de raízes
de ginseng retorcidas como corpos humanos deformados.
E em algum lugar aqui perto, esperava, haveria uma outra coisa
com a qual estava familiarizado.
Li demorou dez minutos para achar o que procurava. Percebeu o
sinal revelador — o guarda, um rapaz com celular, fumando e
examinando os passantes recostado na frente de um apartamento de
porão cujas janelas eram pintadas de preto. Era um salão de jogos
que funcionava vinte e quatro horas por dia.
Ele se aproximou e perguntou em inglês: — O que se joga aqui?
Fan tai? Pôquer? Trinta pontos? O homem olhou as roupas de Li e o
ignorou.
— Eu quero jogar — disse Li.
— Foda-se — disse o jovem rispidamente.
— Eu tenho dinheiro — gritou Li, irritado. — Deixe-me entrar!
— Você fujianês. Eu ouço sotaque. Você não bem-vindo aqui.
Saia daqui ou vai se machucar.
Li ficou furioso.
— Meu dólar bom, igual dólar cantonês. Seu chefe quer afastar
clientes?
— Sai daqui, homenzinho. Eu não vou dizer de novo.
E puxou de lado seu paletó preto, revelando o cabo de uma
pistola automática.
Excelente! Era isso que Li esperava.
Parecendo com medo, ele começou a se virar, e em seguida girou
de volta com o braço esticado. Acertou o rapaz no peito com o
punho, deixando-o sem fôlego. O rapaz cambaleou para trás e Li o
acertou no nariz com a palma da mão aberta. O guarda gritou e caiu
na calçada. Ficou ali caído, tentando respirar freneticamente, com o
sangue jorrando do nariz, enquanto Li dava um chute no lado de sua
cintura.
Pegando a arma, um pente extra de munição e os cigarros do
sujeito, Li olhou para um lado e outro da rua. Duas moças, andando
de braços dados, fingiram não ter visto. Afora elas a rua estava vazia.
Ele se curvou de novo para perto do homem que sofria e pegou seu
relógio de pulso e uns trezentos dólares.
— Se contar a alguém que eu fiz isso — disse Li ao guarda,
falando em putonghua —, eu acho você e mato.
O homem assentiu e limpou o sangue com a manga. Li começou
a andar, depois olhou para trás e voltou. O homem se encolheu.
— Tire os sapatos — disse Li rispidamente.
— Eu...
— Sapatos. Tire.
O sujeito desamarrou os Kenneth Cole pretos e os estendeu a Li.
— As meias também.
As caras meias de seda preta se juntaram aos sapatos.
Li tirou seus sapatos e as meias, ásperas de areia e ainda úmidas,
e jogou-os longe. Calçou os novos. ”É o céu”, pensou feliz.
Voltou rapidamente para uma das ruas comerciais apinhadas.
Achou uma loja de roupas baratas e comprou jeans, camiseta e um
leve agasalho Nike. Trocou-se nos fundos da loja. Pagou as compras
e jogou as roupas velhas numa lata de lixo. Depois entrou num
restaurante chinês e pediu chá e uma tigela de macarrão. Enquanto
comia, tirou de dentro da carteira um pedaço de papel dobrado, o
papel que ele tinha roubado do carro de Hongse na praia.

8 de agosto
De: Harold C. Peabody, Diretor Assistente do Serviço de
Imigração e Naturalização dos EUA
Para: Det. Cap. Lincoln Rhyme (apos.)
Ref: Força-tarefa Conjunta Serviço de Imigração/FBI/NYPD,
caso Kwan Ang, vulgo Gui, vulgo O Fantasma
Isto confirma nossa reunião às dez da manhã de amanhã para
discutirmos os planos para a prisão do suspeito mencionado
acima.
Por favor, ver o material anexo.

Grampeado no memorando havia um cartão de visita, que dizia:


Lincoln Rhyme Central Park West, 345 Nova York, NY 10022.
Ele chamou a garçonete e fez uma pergunta.
Alguma coisa em Li pareceu amedrontá-la e alertá-la para não
ajudar aquele homem. Mas um segundo olhar para o rosto dele deve
ter dito que seria pior recusar. Ela assentiu e, de olhos baixos, deu o
que Li considerou uma orientação excelente para chegar à rua
conhecida como Central Park West.
Capítulo 12
— Você parece melhor — disse Amelia Sachs. — Como está se
sentindo?
John Sung fez um gesto para ela entrar.
— Com muita dor — falou, e, fechando a porta, acompanhou-a à
sala. Andava devagar e franzia o rosto ocasionalmente. Uma
consequência compreensível de ter levado um tiro, supôs ela.
O apartamento que o advogado de imigração tinha arranjado
para ele era um lugar precário na Bowery, dois cômodos escuros
com móveis danificados e descombinados. Logo abaixo, no primeiro
andar, ficava um restaurante chinês. O cheiro de óleo rançoso e alho
impregnava o lugar.
Sung era um homem compacto, com alguns fios de cabelo
grisalho, e andava curvado por causa do ferimento. Olhando o passo
inseguro dele, Sachs sentiu uma terna simpatia. Em sua vida na
China, como médico, ele certamente gozava do respeito de seus
pacientes e — mesmo sendo dissidente — devia ter algum prestígio.
Mas aqui Sung não tinha nada. Ela imaginou o que ele faria para
viver — dirigiria um táxi, trabalharia num restaurante?
— Vou fazer chá — disse ele.
— Não, não precisa. Não posso ficar muito tempo.
— Mas já estou mesmo fazendo um pouco para mim.
Não havia cozinha separada; só um fogão, uma geladeira
pequena e uma pia manchada de ferrugem se alinhavam numa
parede da sala. Ele pôs uma chaleira barata na chama crepitante e
pegou uma caixa de Lipton no armário sobre a pia. Cheirou-a e deu
um sorriso curioso.
— Não é o que você costuma usar? — perguntou ela.
— Vou fazer compras mais tarde — disse ele com tristeza.
— O Serviço de Imigração liberou você sob fiança?
— Fiz uma petição formal de asilo. Meu advogado disse que a
maioria das pessoas tenta mas não consegue. Mas eu passei dois
anos num campo de reeducação. E publiquei artigos atacando
Pequim por violação dos direitos humanos. Nós baixamos alguns
como prova. O examinador não quis garantir nada, mas disse que
era um bom caso para asilo.
Quando será a audiência?
— Mês que vem.
Sachs olhou as mãos dele enquanto Sung pegava duas xícaras no
armário e cuidadosamente lavava, secava e arrumava numa bandeja.
Havia algo cerimonial no modo como fazia isso. Ele abriu os
saquinhos de chá, pôs num bule de cerâmica, derramou a água
quente em cima e em seguida mexeu a infusão com uma colher.
Tudo para uma xícara de Lipton feito para o mercado de massa...
Levou o bule e as xícaras para a sala de estar, sentou-se
rigidamente. Serviu duas xícaras e ofereceu uma a ela. Ela se
levantou para ajudá-lo. Pegou a xícara de suas mãos, que lhe
pareceram macias mas muito fortes.
— Há alguma notícia dos outros? — perguntou ele.
— Devem estar em algum lugar de Manha an. Achamos um
furgão que eles roubaram, abandonado não muito longe daqui. Eu
gostaria de lhe perguntar sobre eles.
— Claro. O que posso dizer?
— Qualquer coisa que saiba. Nomes, descrições... qualquer coisa.
Sung levou o chá aos lábios e tomou um gole muito pequeno.
— Havia duas famílias, os Chang e os Wu, e mais algumas
pessoas que escaparam. Não lembro dos nomes. Alguns tripulantes
também saíram do navio. Chang tentou salvá-los, ele estava
pilotando nossa balsa, mas o Fantasma atirou neles.
Sachs experimentou o chá. Parecia ter um gosto muito diferente
da bebida de mercearia a que estava acostumada. É minha
imaginação, disse a si mesma.
— A tripulação era decente conosco — continuou Sung. — Antes
de sairmos, ouvi boatos ruins sobre as tripulações dos navios de
contrabandistas. Mas no Dragon eles nos trataram bem, davam água
fresca e comida.
— Lembra de alguma coisa sobre para onde os Chang ou os Wu
podem ter ido?
— Nada além do que eu contei na praia. Só ouvimos dizer que
iríamos ser deixados numa praia em Long Island. E então caminhões
iriam nos levar para algum lugar em Nova York.
— E o Fantasma? Pode dizer alguma coisa que nos ajude a achá-
lo? Ele balançou a cabeça.
— Os pequenos cabeças de cobra na China, que eram os
representantes do Fantasma, disseram que assim que a gente
desembarcasse nunca mais iria vê-lo de novo. E alertaram para a
gente nunca tentar contatá-lo.
— Achamos que ele tinha um assistente a bordo fingindo ser um
dos imigrantes — disse Sachs. — Geralmente o Fantasma faz isso.
Sabe quem pode ter sido?
— Não. No depósito havia vários homens que ficavam isolados.
Não falavam muito com ninguém. Poderia ser um deles. Mas eu
nunca prestei atenção. Não sabia o nome deles.
— A tripulação sabia alguma coisa sobre o que o Fantasma iria
fazer quando chegasse ao país?
Sung ficou sério e pareceu estar pensando em alguma coisa.
Falou: — Nada específico. Acho que eles também tinham medo dele.
Mas uma coisa... não sei se vai ajudar, mas é uma coisa que ouvi. O
capitão do navio estava falando sobre o Fantasma e usou a expressão
To fu chen jou para falar dele. Pode ser traduzido literalmente como
”quebra os caldeirões e afunda os barcos”. Acho que vocês poderiam
dizer ”não há volta”. Refere-se a um guerreiro da dinastia Qin.
Depois de suas tropas terem atravessado um rio para atacar o
inimigo, foi isso que ele ordenou a seus homens: quebrar os
caldeirões e afundar os barcos. De modo a não haver possibilidade
de montar acampamento ou recuar. Se eles quisessem sobreviver
tinham que ir em frente e destruir o outro lado. O Fantasma é esse
tipo de inimigo.
Então não vai parar enquanto não achar e matar as famílias, refletiu
Sachs, inquieta.
O silêncio caiu entre os dois, interrompido pelo som áspero do
trânsito na Canal Street. Num impulso, Sachs perguntou: — Sua
mulher está na China? Sung olhou nos olhos dela e disse,
inexpressivo: — Ela morreu no ano passado.
— Sinto muito.
— Num campo de reeducação. As autoridades disseram que ela
estava doente. Mas nunca me contaram qual era a doença. E não
houve autópsia. Espero que ela realmente tenha ficado doente.
Melhor isso do que imaginar que foi torturada até a morte.
Sachs sentiu um arrepio ao ouvir essas palavras.
— Ela também era dissidente?
— Foi assim que nos conhecemos — disse ele depois de balançar
afirmativamente a cabeça. — Num protesto em Pequim há dez anos.
No aniversário dos acontecimentos da Praça Tiananmen. Com o
correr dos anos ela passou a falar mais do que eu. Antes de ser presa,
viríamos para cá juntos, com as crianças... — A voz de Sung sumiu e
ele deixou os vazios após suas palavras explicarem a tristeza
essencial de sua vida presente. Finalmente, acrescentou: — Decidi
que não podia ficar mais no país. Politicamente era perigoso, claro.
Mas, mais do que isso, havia muitas lembranças da minha mulher.
Decidi vir para cá, pedir asilo e depois mandar trazer meus filhos. —
Ele deu de ombros e tomou um gole de chá. — Mas isso vai ser no
futuro.
Sua mão afagou o amuleto que estava usando. Os olhos de Sachs
acompanharam o gesto. Ele percebeu, tirou-o do pescoço e entregou
a ela.
— Meu amuleto da sorte. Talvez funcione. — Ele riu. — Ele
trouxe você até onde eu estava me afogando.
— O que é? — perguntou ela segurando a peça esculpida e
olhando de perto.
— É uma peça esculpida em Qingtian, ao sul de Fujou. A pedra-
sabão de lá é muito famosa. Foi presente de minha mulher.
— Está quebrada — observou ela esgaravatando a fratura com a
unha. Um pouco da pedra macia se soltou em flocos.
— Foi lascada pela rocha onde eu estava me segurando quando
você me salvou.
A imagem era a de um macaco acocorado. A criatura parecia
humana. Inteligente e esperta.
— É um personagem famoso na mitologia chinesa — explicou
Sung. — O Rei Macaco.
Ela devolveu o amuleto. Sung o colocou de novo no pescoço e a
peça bateu contra o seu peito musculoso e sem pelos. O curativo no
tiro dado pelo Fantasma podia ser entrevisto sob a camisa azul. De
repente ela ficou muito consciente da presença de Sung, a
centímetros de distância. Dava para sentir o cheiro do sabão
desinfetante e do detergente grosseiro usado para lavar as roupas.
Sentiu um conforto inexplicável vindo dele — desse homem que era
praticamente um estranho.
— Vamos deixar uma radiopatrulha diante do seu apartamento
— falou.
— Para me proteger?
— Sim.
Isso divertiu Sung.
— As autoridades do escritório de segurança na China não
fariam isso. Só param na frente de alguma porta para espionar ou
intimidar.
— Você não está mais em Kansas, John.
— Kansas?
— É uma expressão. Tenho de voltar ao Lincoln.
— Ao...
— Ao homem com quem eu trabalho. Lincoln Rhyme. Ela se
levantou e sentiu uma pontada de dor no joelho.
— Espere — disse Sung. Segurou a mão dela. Sachs sentiu uma
força serena irradiando-se do toque. Ele disse: — Abra a boca —
disse ele.
— O quê? — Ela riu.
— Incline-se para a frente. Abra a boca. — Por quê?
— Eu sou médico. Quero olhar sua língua.
Divertida, ela fez isso e ele examinou rapidamente sua boca.
— Você tem artrite — disse ele soltando a mão dela e se sentando
de novo.
— Crônica. Como é que você sabe?
— Como eu disse, sou médico. Volte e eu trato de você. Ela riu,
— Já estive em dezenas de médicos.
— A medicina ocidental, os médicos ocidentais têm o seu lugar.
A medicina chinesa é melhor para curar dores e desconforto
crônicos, problemas que parecem surgir sem motivo aparente. Mas
sempre há um motivo. Há coisas que eu posso fazer e que vão
ajudar. Tenho uma dívida para com você. Você salvou minha vida.
Ficaria envergonhado se não pudesse pagar.
— Quem fez isso foram dois caras grandes usando roupas de
borracha preta.
— Não, não, se não fosse você eu teria me afogado. Sei disso.
Então, por favor, vai voltar e me deixar ajudá-la?
Ela hesitou um momento.
Mas então, como se a impelisse a agir, um choque de dor
atravessou seu joelho. Sachs não teve qualquer reação externa à
pontada e manteve um rosto plácido enquanto pegava a caneta e
dava a Sung o número do seu celular.
Parado na Central Park West, Sonny Li estava confuso.
O que havia com o escritório de segurança pública daqui? Hongse
dirigia aquele carro amarelo rápido, bang, bang, como um policial
de TV, e agora, parecia, os policiais estavam caçando o Fantasma a
partir de um edifício tão luxuoso como este? Nenhum policial do
BSP na China poderia ter um apartamento assim, nem mesmo o
mais corrupto (e havia algumas autoridades de segurança pública
bastante corruptas).
Li jogou o cigarro fora, cuspiu na grama e então, de cabeça baixa,
atravessou rapidamente a rua e entrou no beco que levava aos
fundos do prédio. Até o beco estava limpíssimo! Na cidade natal de
Li, Liu Guoyuan — que era mais rica do que a maioria das cidades
da China —, um beco assim estaria cheio de lixo e coisas
abandonadas Parou, olhou depois da esquina e achou a porta dos
fundos do prédio aberta. Um rapaz, de cabelos louros perfeitamente
aparados, usando calça preta, camisa clara e gravata florida, saiu.
Empurrava um carrinho com dois sacos de lixo verdes, que levou a
uma grande lixeira de metal e jogou dentro. O homem olhou o beco
em volta, pegou alguns pedaços de papel espalhados e jogou fora
também. Bateu as mãos, limpando-as, e em seguida voltou para
dentro, fechando a porta. Mas não a trancou.
Obrigado, senhor.
Sonny Li entrou no porão, sentindo o forte cheiro mofado do
lugar, tentando ouvir sons. Os passos do rapaz subiram a escada. Li
esperou atrás de uma pilha de grandes caixas de papelão,
imaginando que ele poderia voltar, mas o sujeito devia ter ido fazer
outras tarefas. Havia estalos vindo de cima e o som de água corrente.
Li olhou dentro de caixas de papelão no chão. Algumas estavam
cheias de roupas, outras pareciam ser lembranças. Placas, prêmios,
diplomas de escolas. Universidade de Illy-noise, como Li pronunciara
para si mesmo. Prêmio de Mérito do Instituto Americano de Ciência
Forense, uma Carta de Recomendação do FBI, assinada pelo próprio
diretor. Dúzias de outras.
O destinatário de todas essas homenagens era Lincoln Rhyme.
Aparentemente o louro não ia trazer mais lixo para baixo, e Li
deixou o esconderijo. Subiu devagar um lance de escada. Parou atrás
da porta no topo e empurrou-a ligeiramente.
Então passos ruidosos vieram em sua direção, pelo jeito, várias
pessoas. Li se encostou na parede, atrás de alguns esfregões e
vassouras.
Vozes falando alto:
— Nós voltamos em algumas horas, Linc
— Vamos mandar a perícia ligar... — Alguma outra coisa que Li não
entendeu.
Os passos pararam e Li ouviu outro homem perguntar: — Ei, Lincoln,
quer que um de nós fique?
Outra voz, irritada, respondeu: — Ficar? Por que eu ia querer que
alguém ficasse? Eu quero que algum trabalho seja feito. E não quero
interrupções!
— Só estou dizendo que seria melhor ter alguém com uma arma. O
Fantasma desapareceu, caralho. O assistente dele também. Você mesmo
disse para a gente vigiar as costas.
— Mas como ele vai me achar? Como vai saber onde eu moro, nesta
terra verde de Deus? Não preciso de ninguém bancando minha babá.
Preciso que vocês consigam as drogas das informações que eu pedi.
— Certo, certo.
Vindo de cima: sons de pessoas andando, uma porta se abrindo e
fechando. Depois silêncio. Sonny Li prestou atenção um momento.
Abriu a porta totalmente e olhou para fora. Diante dele havia um
corredor comprido que levava à porta da frente, pela qual os homens
— presumivelmente outros policiais do escritório de segurança —
tinham acabado de sair.
À direita de Li ficava uma entrada para o que devia ser uma sala
de estar. Ficando perto das paredes para fazer menos barulho com
os passos, Li foi por esse corredor. Parou ao lado da sala e olhou
rapidamente para dentro. Uma visão estranha: a sala estava cheia de
equipamento científico, computadores, mesas, tabelas, gráficos e
livros de todo tipo. Era a última coisa a se esperar nesse prédio
bonito e antigo.
Mas o mais curioso era o homem de cabelo escuro sentado numa
cadeira de rodas vermelha e complicada no meio da sala, inclinado
para a frente, olhando uma tela de computador, aparentemente
falando consigo mesmo. Então Li percebeu que não, o homem estava
falando com um microfone perto da boca. O microfone devia estar
mandando sinais para o computador, dizendo o que fazer. A tela
respondia aos comandos.
Então essa criatura era Lincoln Rhyme?
Bom, não importava quem ele era e, além disso, Li não tinha
tempo para especular. Não sabia quando os outros policiais
voltariam.
Levantando a arma, Sonny Li entrou na sala.
Capítulo 13
Um metro para a frente. Mais um. Sonny Li era um homem
pequeno e se movia em silêncio.
Chegando mais perto da parte de trás da cadeira de rodas,
olhando para o tampo das mesas em busca de alguma informação
sobre o Fantasma. Ele ia...
Li não tinha ideia de onde os homens vieram.
Um deles — muito mais alto do que Li — era preto como carvão
e usava um terno com camisa amarela berrante. Estivera escondido
encostado na parede dentro da sala. Num movimento ágil ele
arrancou a arma da mão de Li e apertou-a contra sua têmpora.
Outro homem, baixo e gordo, jogou Li no chão e se ajoelhou nas
suas costas, fazendo o ar sair de seus pulmões enquanto uma dor
aguda atravessava sua barriga e os lados do corpo. Algemas foram
colocadas, rápidas como uma enguia.
— Inglês? — perguntou o negro.
Li estava chocado demais para responder.
— Vou perguntar mais uma vez, magrelo. Você. Fala. Inglês?
Um chinês, que também estava escondido na sala, se adiantou.
Usava um terno escuro elegante e um distintivo pendurado
numa corrente ao pescoço. Fez a mesma pergunta em chinês. Era o
dialeto de Cantão, mas Li entendeu.
— Sim — respondeu sem fôlego. — Eu falo inglês.
O homem da cadeira de rodas girou.
— Vamos ver o que nós pegamos.
O negro puxou-o em pé, quase levantando-o do chão, ignorando
seus gemidos de dor. Segurando-o com uma das mãos, começou a
bater em seus bolsos com a outra.
— Escute aqui, seu esqueletozinho, eu vou achar alguma agulha
nos seus bolsos? Vou achar alguma coisa que vai me espetar de um
modo desagradável?
— Eu...
— Responda à pergunta agora e diga a verdade. Porque se eu for
espetado você vai ser espetado também. — Ele sacudiu Li pelo
colarinho e gritou: — Alguma agulha?
— Está dizendo coisa de drogas? Não, não.
O homem tirou de seus bolsos o dinheiro, os cigarros, a munição,
o papel que ele tinha roubado na praia.
— Ah, parece que esse garoto aqui pegou emprestado com
Amelia uma coisa que não devia ter pegado. E enquanto ela estava
ocupada salvando vidas, veja só. Que vergonha!
— Foi assim que ele nos achou — disse Lincoln Rhyme, olhando
o papel com seu cartão anexado. — Eu estava imaginando.
O louro de cabelo aparado surgiu na porta.
— Então vocês o pegaram — disse sem surpresa.
E Li entendeu que o louro o tinha visto no beco quando estava
tirando os sacos de lixo, e que deixara a porta aberta de propósito.
Para atraí-lo para cima. E os outros homens tinham fingido ir
embora, como se fossem deixar Lincoln sozinho.
Então vocês o pegaram...
O homem da cadeira de rodas notou o nojo nos olhos de Li.
Falou: — Isso mesmo, o observador Thom viu você quando levou
o lixo para fora. E então... — Ele assentiu para a tela do computador
e disse: — Comando, segurança. Porta dos fundos.
Na tela do computador surgiu uma imagem em vídeo da porta
dos fundos do prédio e do beco.
De repente Li entendeu como a Guarda Costeira tinha localizado
o Fujou Dragon flutuando no oceano sem fim: esse homem Lincoln
Rhyme.
— Juízes do inferno — murmurou.
O policial gordo gargalhou.
— Você simplesmente não odeia dias assim?
Então o negro tirou a carteira de Li do bolso dele. Apertou o
couro úmido.
— Acho que o nosso esqueletozinho aqui andou nadando. — Ele
abriu a carteira e entregou ao policial chinês.
O gordo pegou um rádio e falou nele.
— Mel, Alan, voltem para cá. Nós o pegamos.
Dois homens, provavelmente os que Li ouvira saindo alguns
instantes antes, voltaram. Um homem meio careca e magro ignorou
Li e foi até um computador, começou a digitar freneticamente nele.
O outro era um homem de terno com um cabelo de um ruivo
espantoso. Ele piscou surpreso e disse: — Espere, este não é o
Fantasma.
— Então é o ajudante desaparecido — disse Rhyme. — O
bangshou dele.
— Não — disse o ruivo. — Eu o conheço. Já o vi antes.
Li também percebeu que havia alguma coisa familiar naquele
homem.
— Já o viu? — perguntou o policial negro.
— Alguns de nós, do Serviço de Imigração, fomos a uma reunião
no escritório de segurança pública em Fujou no ano passado. Ele
estava lá. Era um deles.
— Como é que é? — perguntou o policial gordo.
O policial chinês gargalhou e estendeu um documento de
identidade tirado da carteira de Li, comparando a foto de Li com o
rosto dele.
— Um dos nossos — disse o chinês. — Ele é policial.
Rhyme também examinou a identidade e a carteira de motorista,
e as duas tinham a foto do sujeito. Davam seu nome como Li
Kangmei, um detetive do Bureau de Segurança Pública de Liu
Guoyuan.
O criminalista disse a Dellray: — Veja se alguém dos nossos na
China pode confirmar isso.
Um minúsculo celular apareceu na mão enorme do agente. E ele
começou a digitar teclas.
Olhando para o homem minúsculo, Rhyme perguntou: — Li é o
seu nome ou o sobrenome?
— Sobrenome. E eu não gosto de ”Kangmei”. Uso Sonny. Nome
ocidental.
— O que estava fazendo aqui?
— O Fantasma, ele mata três pessoas na minha cidade no ano
passado. Ele teve reunião. Eu estou dizendo. Teve reunião com
pequeno cabeça de cobra em restaurante. Sabe o que é pequeno
cabeça de cobra?
— Continue — disse Rhyme depois de assentir.
— O pequeno cabeça de cobra enganou ele. Grande luta.
Fantasma matou ele, mas uma mulher e filha dela também foram
mortas e velho sentado no banco. Entrou no caminho e Fantasma só
mata eles para escapar, estou dizendo.
— Pessoas que não tinham nada a ver?
Li assentiu.
— Nós tentamos prender ele, mas ele tem fortes... — Li procurou
a palavra. Finalmente se virou para Eddie Deng e disse: — Guanxi.
— Isso significa conexões — explicou Deng. — Você paga às
pessoas certas e consegue boas guanxi.
Li assentiu.
— Ninguém quis testemunhar contra ele. Então provas do
tiroteio sumiram da delegacia. Meu chefe perdeu interesse. O caso
foi coletivizado.
— Coletivizado? — perguntou Selli o.
Li deu um sorriso amargo.
— Quando algo arruinado, nós dizemos que foi coletivizado. Nos
velhos tempos, no tempo de Mao, quando governo transformava
uma empresa ou uma fazenda numa comuna ou num coletivo, ela
falia depressa pra caralho.
— Mas — sugeriu Rhyme — para você o caso não estava
coletivizado.
— Não — disse Li, e seus olhos eram duros discos de ébano. —
Ele mata gente na minha cidade. Eu quero garantir que ele vai a
julgamento.
— Como você entrou no navio? — perguntou Dellray.
— Eu tenho monte de informantes em Fujou. No mês passado
descobri que o Fantasma mata duas pessoas em Taiwan, figurões,
caras importantes, e estava indo para a China durante um mês até o
escritório de segurança de Taiwan parar de procurar por ele. Ele ia
para sul da França e depois levar imigrantes de Vyborg, na Rússia,
para Nova York, no Fujou Dragon.
Rhyme gargalhou. As informações dadas por aquele homem
pequeno e mal-ajambrado tinham sido melhores do que as da
Interpol e do FBI juntas.
— Então — continuou Li — eu passei para clandestinidade. Me
tornei porquinho: imigrante.
— Você descobriu alguma coisa sobre o Fantasma? — perguntou
Selli o. — Onde ele fica aqui? Algum associado dele?
— Não, ninguém fala muito comigo. Eu subia no convés quando
a tripulação não estava olhando, principalmente para vomitar. — Ele
balançou a cabeça, aparentemente diante da lembrança desagradável
da viagem. — Mas não cheguei perto do Fantasma.
— Mas o que você ia fazer? — perguntou Coe. — Nós não
iríamos extraditar o Fantasma para a China.
Perplexo, Li falou:
— Por que eu ia querer ele extraditado? Vocês não ouvem.
Guanxi, eu estou dizendo. Na China eles soltam ele. Eu ia prender
ele quando a gente chegasse em terra. Depois dar para o seu
escritório de segurança pública.
— Você está falando sério, não está? — disse Coe dando uma
risada.
— Estou. Eu ia fazer.
— Ele estava com um bangshou, a tripulação do navio. Pequenos
cabeças de cobra para recebê-lo aqui. Eles iam matar você.
— É arriscado, você dizendo? Claro, claro. Mas esse é nosso
trabalho, certo? Sempre arriscado. — Ele estendeu a mão para os
cigarros que Dellray havia tirado de seu bolso.
— Não se fuma aqui — disse Thom.
— O que você quer dizer?
— Nada de fumar.
— Por que não?
— Porque não pode — disse o ajudante com firmeza.
— Coisa maluca. Você fazendo piada?
— Não.
— Metrô já bem estúpido. Mas aqui é casa, estou dizendo.
— É, uma casa em que não se pode fumar.
— Muito foda — disse Li. De má vontade, guardou o maço.
Um bipe fraco soou do outro lado da sala. Mel Cooper se virou
para o computador. Leu por um momento e depois girou a tela para
que todo mundo pudesse olhar. O escritório do FBI em Cingapura
tinha mandado por e-mail uma confirmação de que Li Kangmei era
realmente detetive do Gabinete de Segurança Pública da República
Popular da China, em Liu Guoyuan. Atualmente estava designado
como agente disfarçado, mas seu departamento não quis dar mais
informações. Uma foto de Li, de uniforme azul-marinho,
acompanhava a mensagem. Era claramente o homem que estava na
sala diante deles. Então Li explicou como o Fantasma tinha
afundado o Dragon. Sam Chang, Wu Qichen e suas famílias, junto
com o Dr. Sung, vários outros imigrantes e o bebê de uma mulher
que estava a bordo do navio saíram numa balsa. Todos os outros se
afogaram.
— Sam Chang se tornou o líder da balsa. Bom homem,
inteligente. Salva minha vida. Me pega quando Fantasma atira nas
pessoas. Wu era pai da segunda família. Wu inteligente também,
mas não equilibrado. Desarmonia entre fígado e baço.
Deng viu Rhyme franzir a testa e disse: — É medicina chinesa.
Difícil de explicar.
— Wu emoção demais — prosseguiu Li —, estou dizendo. Faz
coisas no impulso.
Até mesmo o trabalho de criação de perfil comportamental feito
pelo FBI estava fora da zona de conforto de Rhyme, sendo o cientista
físico que era; não tinha nenhum tempo para baços desarmônicos.
— Vamos nos ater aos fatos — disse ele.
Então Li contou como a balsa bateu na rocha e ele, Sung e os
outros foram jogados ao mar. Foram varridos para a costa. Quando
Li voltou ao lugar aonde a balsa tinha chegado em terra, o Fantasma
havia matado dois imigrantes.
— Eu corre para prender, mas quando chega ele sumiu. Esconde
no mato do outro lado da estrada. Vi mulher de cabelo vermelho
resgatar um homem.
— John Sung — disse Rhyme.
— O Dr. Sung — assentiu Li. — Sentou perto de mim na balsa.
Ele bem?
— O Fantasma atirou nele, mas vai ficar bem. Amelia, a mulher
que você viu, está entrevistando ele agora.
— Hongse, como eu chamei ela. Ei, garota bonita. Sensual, estou
dizendo.
Selli o e Rhyme compartilharam um olhar bem-humorado.
Rhyme estava visualizando as consequências se Li tivesse dito isso
na cara de Sachs.
Li apontou a casa em volta.
— Eu pega endereço no carro dela e vem aqui, achando talvez eu
consiga coisa que me leve ao Fantasma. Informação, estou dizendo.
Provas.
— Para roubar? — perguntou Coe.
— É, claro — disse ele sem se abalar.
— Por que faria isso, seu esqueletozinho? — perguntou Dellray
em tom ameaçador, usando uma gíria policial que significava
basicamente ”dedo-duro insignificante”.
— Eu precisava conseguir sozinho. Porque, ei, vocês não deixa eu
ajudar, certo? Vocês só me manda de volta. E eu vou prender ele.
— Bem, você está certo — disse Coe. — Nós não vamos ajudá-lo.
Você pode ser policial na China, mas aqui não passa da porra de um
sem documento. Você vai voltar.
Com os olhos relampejando furiosos, Sonny Li chegou perto de
Coe, que parecia uma torre ao lado do baixinho. Selli o suspirou e
puxou Li pela camisa.
— Não, nem vem com essa merda.
Divertido com a bravata do sujeito, Coe pegou as algemas.
— Li, você está preso por entrar nos Estados Unidos...
Mas Lincoln Rhyme disse: — Não, eu o quero.
— O quê? — perguntou o agente, chocado.
— Ele será um consultor. Como eu.
— Impossível.
— Qualquer pessoa que passe por uma encrenca tão grande para
pegar um criminoso... Eu quero do nosso lado.
— Pode apostar que eu ajudo, Loaban. Faço muito, estou dizendo.
— Do que você me chamou?
— Loaban — Li explicou. — Significa ”chefe”. Você tem que ficar
comigo. Eu pode ajudar. Eu sei como Fantasma pensa. Nós do
mesmo mundo, ele e eu. Eu em gangues quando era garoto, como
ele. E passa muito tempo como policial disfarçado, trabalhando nas
docas em Fujou.
— De jeito nenhum — irrompeu Coe. — Pelo amor de Deus, ele é
um sem documento. Assim que a gente virar as costas, ele vai fugir, se
embebedar e depois ir para um antro de jogatina.
Rhyme imaginou se teria início uma luta de kungfu. Mas dessa
vez Li ignorou Coe e falou numa voz razoável: — Em meu país tem
quatro classes de pessoas. Não como rico e pobre, que vocês têm
aqui. Na China o que você faz é mais importante do que dinheiro
que você tem. E sabe qual é maior honra? Trabalhar por país,
trabalhar por povo. Isso eu faço e eu sou um policial bom pra
caralho, estou dizendo.
— Aqui todos eles estão a fim de se dar bem — murmurou Coe.
— Eu não a fim de se dar bem, certo? — Em seguida Li riu. —
Não em caso importante assim.
— E como é que vamos saber que ele não está na folha de
pagamento do Fantasma? — perguntou Coe.
Li gargalhou.
— Ei, como nós sabe que você não trabalha para ele?
— Vá se foder — disse Coe. Estava furioso.
O problema do jovem agente do Serviço de Imigração, avaliou
Rhyme, era que ele era emocional demais para ser um agente da lei
eficiente. O criminalista costumava ouvir desprezo em sua voz
quando ele falava dos ”sem documento”. Coe parecia afrontado pela
ideia de que eles violariam uma lei federal para penetrar no país e
tinha sugerido várias vezes que os imigrantes eram motivados
essencialmente pela cobiça, e não pelo amor à liberdade ou à
democracia.
Mas afora sua atitude de desprezo em relação aos estrangeiros,
ele tinha um perturbador interesse pessoal em pegar o Fantasma. Há
vários anos Coe servira em Taipei, a capital de Taiwan, comandando
agentes disfarçados na China, tentando identificar os cabeças de
cobra importantes. Durante uma investigação sobre o Fantasma, um
dos seus informantes, uma mulher, tinha desaparecido e
presumivelmente estava morta. Mais tarde ficou-se sabendo que a
mulher tinha dois filhos pequenos, mas precisava tão
desesperadamente de dinheiro que havia concordado em dedurar o
Fantasma — o Serviço de Imigração nunca usaria como informante
se soubesse que ela tinha filhos. Coe foi repreendido — suspenso por
seis meses. A partir disso ficou obcecado por prender o Fantasma.
Mas para ser um bom policial você tem de afastar esses
sentimentos pessoais. O distanciamento é absolutamente necessário.
Esta era uma variação da regra de Rhyme sobre desistir dos mortos.
— Escutem — disse Dellray. — Eu não estou no clima de botar
uma criancinha de castigo em cada canto para vocês ficarem quietos.
Li fica conosco enquanto Rhyme quiser. Faça isso acontecer, Coe.
Ligue para alguém no Departamento de Estado e consiga um visto
temporário. Estamos todos juntos nisso?
— Não — murmurou Coe —, não estou totalmente nisso. Vocês
não podem ter um deles na força-tarefa.
— ”Deles”? — perguntou Dellray, girando sobre o pé muito
comprido. — Quem exatamente são ”eles”?
— Os sem documento.
O agente alto estalou a língua.
— Olha só, Coe, para mim essa palavra é que nem bolas de gude
num liquidificador. Não parece respeitosa. Não parece legal.
Especialmente do modo como você diz.
— Bom, como vocês do escritório deixaram claro o tempo todo,
este não é realmente um caso do Serviço de Imigração. Fiquem com
ele, se quiserem. Mas eu não vou levar nenhuma bronca por causa
disso.
— Você toma boa decisão — disse Sonny Li a Rhyme. — Eu
ajuda muito, Loaban. — Li foi até a mesa e pegou a arma que estivera
portando.
— Não, não, não — disse Dellray. — Tire as mãos disso.
— Ei, eu sou polícia. Como você.
— Não, você não é um policial como eu nem como nenhuma
pessoa aqui. Nada de armas.
— Certo, certo. Fique com arma por enquanto, Heise.
— O que é isso? — perguntou Dellray rispidamente. — Heise?
— Significa negro. Hei, hei, não se ofenda. Nada ruim, nada
ruim.
— Bom, corta essa.
— Claro, eu corto essa. Claro.
— Bem-vindo a bordo, Sonny — disse Rhyme. Depois olhou para
o relógio. Era meio-dia. Seis horas tinham se passado desde que o
Fantasma começara sua busca implacável aos imigrantes. Ele podia
estar se aproximando das pobres famílias agora mesmo. — Certo,
vamos começar a trabalhar nas provas.
— Claro, claro — disse Li, subitamente distraído. — Mas preciso
de cigarro primeiro. Anda, Loaban. Deixa eu?
— Certo — respondeu Rhyme. — Mas lá fora. E, pelo amor de
Deus, alguém vá com ele.
Capítulo 14
Wu Qichen enxugou o suor da testa da esposa.
Tremendo, queimando de febre, encharcada de suor, ela estava
deitada num colchão no quarto do apartamento minúsculo.
Os cômodos no porão ficavam num beco que saía da Canal
Street, no coração de Chinatown. Tinham sido fornecidos pelo
corretor que Jimmy Mah havia indicado — um ladrão, pensou Wu,
furioso. O aluguel era absurdo, bem como a comissão que o sujeito
escorregadio tinha exigido. O apartamento fedia, o lugar
praticamente não tinha móveis e as baratas percorriam o chão
ousadamente — mesmo agora, à difusa luz do meio-dia que
sangrava através das janelas gordurosas.
Ele examinou a mulher, preocupado. A dor de cabeça feroz que
Yong-Ping tinha sofrido a bordo do Dragon, a letargia, os arrepios e
suores, que ele acreditara serem do enjoo do mar, tinham persistido
mesmo depois de terem chegado em terra. Ela estava sofrendo de
outra coisa.
A mulher abriu os olhos vítreos de febre.
— Se eu morrer... — sussurrou.
— Você não vai morrer.
Mas Wu não tinha certeza de acreditar em suas próprias
palavras. Lembrou-se do Dr. John Sung no depósito do Dragon e
desejou ter Perguntado a opinião do sujeito sobre o estado da
mulher; o doutor havia tratado vários imigrantes com problemas,
mas Wu teve medo de que ele cobrasse seu dinheiro para examinar
Yong-Ping.
— Durma — disse Wu, sério. — Você precisa descansar. Vai ficar
boa se descansar. Por que não faz isso?
— Se eu morrer você deve arranjar uma mulher. Alguém para
cuidar das crianças.
Você não vai morrer.
— Onde está meu filho?
— Lang está na sala.
Ele olhou pela porta e viu o garoto no sofá e a adolescente Chin-
Mei pendurando roupas num barbante esticado na sala. Depois de
terem chegado, a família havia se revezado tomando banho e depois
vestindo as roupas limpas que Wu comprara numa loja de
pechinchas na Canal Street. Depois de um pouco de comida — da
qual Yong-Ping não tinha sequer provado — Chin-Mei tinha posto o
irmão diante da TV e lavado as roupas incrustadas de sal na pia da
cozinha. Eram essas roupas que ela estava estendendo agora para
secar.
A mulher de Wu olhou o cômodo em volta, forçando a vista,
como se tentasse lembrar onde estava. Desistiu e pousou a cabeça no
travesseiro.
— Onde... onde nós estamos?
— Você está em Chinatown, em Manha an de Nova York.
— Mas... — Ela franziu a testa enquanto as palavras dele se
registravam atrasadas em seu cérebro febril. — O Fantasma, marido.
Nós não podemos ficar aqui. Não é seguro. Sam Chang disse que
não deveríamos ficar.
— Ah, o Fantasma... — Ele fez um gesto sem dar importância. Ele
voltou para a China.
— Não. Acho que não. Eu tenho medo pelos nossos filhos. Temos
de ir embora. Temos de ir para o mais longe possível.
— Nenhum cabeça de cobra iria se arriscar a ser capturado ou
morto a tiros só para encontrar alguns imigrantes que escaparam
disse Wu. — Você é boba a ponto de acreditar nisso?
— Por favor, marido. Sam Chang disse...
— Esqueça Chang. Ele é um covarde. Nós vamos ficar. — Sua
raiva diante da desobediência dela era temperada pela visão da
pobre mulher e da dor que ela devia estar sentindo. Acrescentou
suavemente: — Eu vou sair. Vou arranjar remédio para você.
Ela não respondeu, e ele se levantou e foi para a sala.
Olhou para os filhos, que por sua vez olhavam inquietos para o
cômodo onde a mãe se encontrava.
— Ela está bem? — perguntou a adolescente.
— É. Ela vai ficar bem. Eu volto em meia hora. Vou arranjar um
pouco de remédio.
— Espere, pai — disse Chin-Mei, insegura, baixando os olhos.
— O que é?
— Posso ir com o senhor?
— Não, você vai ficar com sua mãe e seu irmão.
— Mas...
— O quê?
— Eu preciso de uma coisa.
Uma revista de moda?, pensou ele com cinismo. Maquiagem?
Fixador de cabelo? Ela quer que eu gaste o dinheiro da nossa
sobrevivência com seu rosto bonito.
— O que é?
— Por favor, deixe-me ir com o senhor. Eu mesma compro. — Ela
estava um tomate de tanta vergonha.
— O que você quer?
— Preciso de coisas para... — E deu um suspiro, de cabeça baixa.
— Para o quê? — perguntou Wu asperamente. — Responda. Ela
engoliu em seco.
— Para os meus dias. O senhor sabe. Absorventes.
Com um choque, Wu entendeu de súbito. Afastou o olhar da
garota e fez um gesto irritado para o banheiro.
— Use alguma coisa lá.
— Não posso. É desconfortável.
Wu ficou furioso. Era serviço de sua mulher cuidar dessas coisas.
Nenhum homem dos que conheceu comprava essas... coisas.
— Certo — falou rispidamente. — Certo. Vou comprar o que
você precisa.
Ele se recusou a perguntar de que tipo ela queria. Pegaria a
primeira caixa de qualquer coisa que houvesse na loja mais próxima.
Ela teria de usar. Saiu e trancou a porta.
Wu Qichen caminhou pelas ruas movimentadas de Chinatown
ouvindo uma cacofonia de línguas — minnanhua cantonês,
putonghua, vietnamita e coreano. Inglês também, temperado por
mais sotaques e dialetos do que ele sabia que existiam.
Olhou para as lojas, as pilhas de mercadorias, os gigantescos
arranha-céus marcando a cidade. Nova York parecia dez vezes maior
do que Hong Kong e centenas de vezes maior do que Fujou.
Eu tenho medo pelos nossos filhos. Temos de ir embora. Temos
de ir para o mais longe possível...
Mas Wu Qichen não tinha a intenção de deixar Manha an. O
homem de quarenta anos havia alimentado um sonho durante a vida
inteira e não deixaria a doença da mulher ou a leve ameaça de um
cabeça de cobra valentão impedir que ele o realizasse. Wu Qichen ia
se tornar um homem rico, o mais rico de todos os tempos em sua
família.
Aos vinte e poucos anos ele era mensageiro de hotel, depois foi
auxiliar de gerência no Hotel Paraíso na rua Hundong, perto do
Parque das Fontes Quentes, no coração de Fujou, servindo a ricos
chineses e europeus. Wu tinha decidido então que seria um
empresário bem-sucedido. Trabalhou duro no hotel e, mesmo dando
aos pais a quarta parte do que recebia, conseguiu economizar o
bastante para comprar uma loja de miudezas e lembranças perto da
famosa estátua de Mao Tsé-tung na rua Gutian, com seus dois
irmãos. Com o dinheiro que ganharam com a loja compraram uma
mercearia e depois mais duas. Pretendiam cuidar dos negócios
durante vários anos e economizar o máximo de dinheiro possível,
comprar um prédio e depois fazer a fortuna com imóveis.
Mas Wu Qichen cometeu um erro.
A face econômica da China estava mudando drasticamente. As
zonas francas econômicas estavam prosperando, e até mesmo os
principais políticos vinham falando favoravelmente sobre as
empresas privadas — o próprio líder chinês Deng Xiaoping falara:
”Ser rico é glorioso.” Mas Wu negligenciou lembrar a primeira regra
da vida chinesa: o PCC — o Partido Comunista Chinês — comanda o
show. Wu não tinha papas na língua para reivindicar ligações
econômicas mais íntimas com Taiwan, terminando com o sistema da
tigela de arroz de ferro”, que garantia emprego independentemente
da produtividade, e baixando o pau nas autoridades do partido e do
governo que aceitavam suborno e cobravam taxas arbitrárias dos
empresários. Ironicamente, Wu nem se importava com o que
defendia; seu objetivo era meramente atrair a atenção de parceiros
comerciais ocidentais — na Europa e na América —, os quais,
segundo ele sonhava, viriam para ele com dinheiro para investir
porque ele era a voz da nova economia chinesa.
Mas não foi o Ocidente que ouviu aquele homem magricela;
foram os agentes e secretários do Partido Comunista. De repente
inspetores do governo começaram a aparecer nas lojas dos Wu,
encontrando dezenas de violações aos códigos de saúde e segurança
— muitos dos quais eles simplesmente inventavam na hora. Sem
poder pagar as multas escorchantes, logo os irmãos faliram.
Mas, por mais envergonhado que estivesse com a situação
rebaixada, Wu se recusou a abrir mão do objetivo de ser rico. E
assim, seduzido pelas gordas oportunidades no Belo País, Wu
Qichen havia juntado a família e se arriscado à imigração ilegal. Iria
se tornar um patrão em Chinatown. Iria trabalhar de limusine e —
quando finalmente pudesse viajar de volta à China — entraria no
Hotel Paraíso e se hospedaria na maior suíte, a da cobertura, no
mesmo quarto para o qual, na juventude, ele havia carregado
centenas de bagagens.
Não, seus sonhos tinham sido adiados durante muito tempo; o
Fantasma não iria expulsá-lo da cidade do dinheiro.
Wu achou uma farmácia chinesa. Entrou e falou com o
herbanário sobre o estado da mulher. O médico ouviu atentamente e
diagnosticou uma deficiência no qi — o espírito da vida — e
obstrução no sangue, duas coisas que eram agravadas pelo frio
excessivo. Juntou um punhado de ervas para Wu, que
relutantemente pagou a conta gigantesca de dezoito dólares, de
novo furioso por estarem se aproveitando dele.
Deixando o herbanário, continuou pela rua até uma mercearia
chinesa. Entrou rapidamente, antes que sua coragem terminasse,
achou um cesto e pegou algumas mercadorias das quais não
precisava. Passou rapidamente pela seção de drogaria, pegando uma
caixa de absorventes femininos para a filha. Foi rapidamente até o
balcão e durante toda a transação manteve os olhos num vidro cheio
de raízes de ginseng. A mulher grisalha registrou a compra e,
mesmo não sorrindo nem chamando a atenção para o que ele havia
comprado, Wu sabia que ela estava rindo dele. Deixou a loja de
cabeça baixa e com o rosto vermelho como a bandeira chinesa.
Virou na direção de seu apartamento, mas depois de cinco
minutos andando depressa diminuiu o passo e começou a se desviar
pelas ruas laterais. Estava preocupado com a mulher, claro, e por
deixar os filhos, mas, deuses do céu, esse dia tinha sido um pesadelo.
Quase fora morto num naufrágio, tinha perdido todas as suas
posses, fora enganado por Jimmy Mah e pelo corretor. E, pior de
tudo, tinha suportado a vergonha e a humilhação de comprar o que
estava na sacola em sua mão direita. Decidiu que precisava de
alguma distração, de alguma camaradagem masculina.
Demorou apenas alguns minutos para encontrar o que
procurava: um antro de jogatina fujianês. Depois de mostrar seu
dinheiro ao guarda na frente, foi admitido.
Sentou-se em silêncio durante um tempo, jogando trinta pontos,
fumando e bebendo um pouco de baijiu. Ganhou um pouquinho de
dinheiro e começou a se sentir melhor. Outro copo da bebida forte e
transparente, depois mais um, e finalmente relaxou — mas
certificando-se de que a sacola de compras estivesse completamente
escondida debaixo da cadeira.
Por fim começou a conversar com os homens em volta e, com os
trinta dólares que ganhara — para ele uma quantia gigantesca —,
pagou-lhes a bebida. Bêbado e de bom humor, contou uma piada, e
vários homens riram bastante. Com o tom conspiratório de homens
sozinhos, todos compartilharam histórias de mulheres desobedientes
e filhos desrespeitosos, dos lugares onde moravam agora e dos
empregos que tinham — ou estavam procurando.
— Este é para Zai Chen — anunciou Wu, bêbado, erguendo o
copo. Era o deus da riqueza, um dos mais reverenciados na China.
Wu acreditava que tinha uma conexão especial com essa divindade
popular.
Todos os homens engoliram suas bebidas.
— Você é novo aqui — disse um velho. — Quando chegou?
Satisfeito por ter a atenção dos colegas, Wu cantou vantagem
num sussurro: — Hoje de manhã. No navio que afundou.
— O Fujou Dragon. — perguntou um homem, com as
sobrancelhas erguidas. — Saiu no noticiário. Disseram que as ondas
estavam terríveis.
— Ah — disse Wu. — As ondas tinham quinze metros de altura!
O cabeça de cobra tentou matar todos nós, mas eu consegui tirar
uma dúzia de pessoas do depósito. E depois tive de nadar debaixo
d'água para cortar a corda de uma balsa no convés. Quase me
afoguei. Mas consegui levar todo mundo até a praia.
— Você mesmo fez isso? Ele baixou os olhos, triste.
— Não pude salvar todos. Mas tentei.
— Sua família está bem? — perguntou outro.
— Sim — respondeu Wu, bêbado.
— Você está aqui no bairro?
— Ali adiante, na rua.
— Como é o Fantasma? — perguntou um homem.
— Ele é um blefe. E é covarde. Nunca fica sem a arma. Se ele
deixasse a arma de lado e lutasse como um homem, com uma faca,
eu poderia matá-lo facilmente.
Então Wu ficou quieto, enquanto as palavras de Sam Chang
começavam a ecoar em sua mente. Percebeu que provavelmente não
deveria estar dizendo essas coisas. Mudou de assunto.
— Alguém pode me dizer? Há uma estátua que eu quero ver.
Talvez vocês possam me dizer onde fica.
O homem mais perto de Wu zombou: — Estátua? Qual? Aqui há
estátuas em toda parte.
— É muito famosa. De uma mulher segurando o livro de
contabilidade.
— Contabilidade? — perguntou outro homem.
— E — explicou Wu. — A gente vê nos filmes sobre o Belo País.
Ela está numa ilha, segurando uma tocha numa das mãos e um livro
de contabilidade na outra. Está segurando a tocha para poder ler o
livro-caixa a qualquer hora do dia ou da noite e ver quanto dinheiro
ela tem. Isso fica aqui em Nova York?
— É, ela fica aqui — disse um homem, mas começou a rir. Vários
outros também. Wu juntou-se ao riso, sem ter ideia do motivo para
aquilo ser tão engraçado.
— Você vai a um lugar chamado Ba ery Park e pega um barco
para ir ver a estátua.
Vou fazer isso. Outro homem riu.
— A dama da contabilidade. — Todos esvaziaram seus copos e
retomaram o jogo.
Capítulo 15
Amelia Sachs voltou do apartamento da testemunha em
Chinatown e Rhyme achou divertido o olhar áspero com o qual ela
examinou Sonny Li quando este anunciou com orgulho consumado
que era ”um detetive do gabinete de segurança pública da República
Popular da China”.
— Não diga! — respondeu ela friamente. Selli o explicou a
presença do policial chinês.
— Vocês o verificaram? — perguntou Amelia examinando
atentamente o sujeito, que era quase trinta centímetros mais baixo do
que ela.
Li falou antes que o outro respondesse: — Eles me verificaram
direito, Hongse. Eu estou limpo.
— Hoankseh? Que diabo é isso? — rosnou ela. Ele levantou as
mãos na defensiva.
— Significa ”vermelha”. Só isso. Nada ruim. O seu cabelo, estou
dizendo. Eu vi você na praia, vi o seu cabelo.
Rhyme achou que havia um leve flerte no sorriso de dentes tortos
do sujeito.
Eddie Deng confirmou que a palavra significava apenas a cor;
não havia qualquer sentido secundário, pejorativo.
— Está tudo certo com ele, Amelia — confirmou Dellray.
— Mas deveria estar numa cela — murmurou Coe.
Sachs deu de ombros e se virou para o policial chinês.
— O que quer dizer com a praia? Você estava me espionando?
— Não disse nada lá. Medo de vocês me mandarem de volta.
Queria chance de ver Fantasma também.
Sachs revirou os olhos
— Espere, Hongse. Aqui. — Ele estendeu alguns dólares
amarfanhados.
— O que é isso? — perguntou ela franzindo a testa.
— Na praia, sua bolsa, estou dizendo. Eu precisa dinheiro. Eu
pega emprestado.
Sachs olhou na bolsa e fechou-a fazendo barulho.
— Meu Deus. — Um olhar para Selli o. — Eu posso prender esse
cara agora?
— Não, não, eu pagando. Não ladrão. Aqui. Olha, tudo aí. Até
dez dólares a mais.
— Dez a mais
Juros, estou dizendo.
— Onde conseguiu? — perguntou ela com cinismo. — Quer
dizer, de quem roubou estes7.
Não, não, eles legal.
— Bom, esta é uma tremenda defesa para você. ”Eles são legais.”
— Sachs suspirou, pegou o dinheiro e devolveu os dez
questionáveis.
Então contou à equipe o que a testemunha — John Sung — tinha
dito. Rhyme relaxou um pouco mais com relação à decisão de
manter Sonny Li quando soube que Sung confirmou a informação
que Li tinha dado, o que aumentava a credibilidade do policial
chinês. Mas ficou perturbado quando Sachs mencionou a história de
John Sung sobre a avaliação que o capitão tinha feito sobre o
Fantasma.
— ”Quebra os caldeirões e afunda os barcos” — disse ela,
explicando o significado da expressão.
— Po fu chen jou — disse Li, assentindo sério. — Isso descreve
bem o Fantasma. Nunca relaxe nem recue até vencer.
Então Sachs começou a ajudar Mel Cooper a organizar as provas
tiradas do furgão, catalogando-as e cuidadosamente preenchendo
fichas de cadeia de custódia para mostrar no julgamento que as
evidências estavam registradas e que não tinham sido alteradas.
Estavam ensacando o trapo ensanguentado que achara no furgão,
quando Cooper olhou para o pedaço de jornal na mesa debaixo do
saco que ela estava segurando. Franziu a testa. O técnico calçou
luvas de látex e extraiu o trapo ensanguentado de dentro do plástico.
Usando uma lente, examinou-o com atenção.
— Isso é estranho, Lincoln — disse Cooper.
— Estranho? O que significa estranho? Dê os detalhes, dê as
anomalias. Dê as especificidades!
— Eu deixei passar esses fragmentos. Olhe. — Ele estendeu o
tecido sobre uma grande folha de jornal e alisou-o cuidadosamente
com um pincel.
Rhyme não podia ver nada.
— Algum tipo de pedra porosa — disse Cooper, inclinando-se
sobre o pano com uma lente. — Como pude deixar passar? — O
técnico pareceu consternado.
De onde os fragmentos tinham vindo? Será que estavam
entranhados numa dobra? O que eram?
— Ah, diabos — murmurou Sachs olhando para as mãos.
— O quê? — perguntou Rhyme. Ruborizando, ela levantou os
dedos.
— Isso estava comigo. Eu peguei o pano sem luvas.
— Sem luvas? — perguntou Rhyme com a voz irritada. Era um
erro sério, vindo de um técnico de cena do crime. Afora o fato de o
trapo conter sangue, que poderia ter HIV ou hepatite, ela havia
contaminado a prova. Quando era chefe da unidade forense do
NYPD Lincoln Rhyme tinha demitido pessoas por esse tipo de lapso.
— Desculpe — disse Sachs. — Eu sei de onde é. John... o Dr. Sung
estava me mostrando um amuleto que ele usava. Estava lascado, e
eu o raspei com a unha.
— Tem certeza que é isso? — perguntou Rhyme.
— Eu me lembro — disse Li, confirmando. — Sung deixava
crianças no Fujou Dragon brincar com ele. Pedra-sabão de Qingtian.
Vale algum dinheiro, estou dizendo. Dá sorte. Era do Macaco. Muito
famoso na China.
— Claro, o Rei Macaco... — corroborou Eddie Deng. — Era uma
figura mitológica. Meu pai costumava ler histórias dele para mim.
Mas Rhyme não estava interessado em nenhum mito. Estava
tentando pegar um assassino e salvar algumas vidas.
E tentando descobrir por que Sachs havia cometido um erro
dessa magnitude.
Um erro de recruta.
O erro de alguém distraído. E o que, exatamente, estava no
pensamento dela?
— Jogue fora... — começou ele.
— Desculpe — repetiu ela.
— Jogue fora a folha de cima desse jornal — disse Rhyme
peremptoriamente. — Vamos prosseguir.
Enquanto o técnico arrancava a folha, seu computador soltou um
bipe.
— Chegando. — Ele leu a tela. — Certo, temos os tipos
sanguíneos. Todas as amostras são da mesma pessoa,
presumivelmente a mulher ferida. E tipo AB negativo e o teste de
Barr confirma que é sangue de uma mulher.
— Na parede, Thom — gritou Rhyme. E o ajudante anotou.
Antes que ele terminasse, o computador de Mel Cooper os convocou
de novo.
— São os resultados da busca no AFIS.
Eles ficaram desencorajados ao descobrir que a busca das digitais
que Sachs havia coletado resultou negativa. Mas enquanto
examinava as digitais, que estavam digitalizadas e aparecendo na
tela à sua frente, Rhyme observou uma coisa incomum sobre a
digital mais débil que tinham conseguido — do cano usado para
roubar o furgão. Eles sabiam que eram as digitais de Sam Chang,
porque combinavam com algumas tiradas do motor de popa e Li
havia confirmado que Chang tinha pilotado a balsa até a costa.
— Olhem para essas linhas — disse ele.
— O que está vendo, Lincoln? — perguntou Dellray.
Rhyme não disse nada ao agente, mas, chegando a cadeira de
rodas mais perto da tela, ordenou: — Comando, cursor baixo...
parar. Cursor esquerda... parar. — A seta do cursor na tela parou
numa linha — uma indentação na almofada do indicador da mão
direita de Chang. Havia marcas similares no dedo médio e no
polegar — como se Chang tivesse puxado com força uma corda fina.
— O que é isso? — perguntou Rhyme em voz alta.
— Calo? Uma cicatriz? — sugeriu Eddie Deng.
— Nunca vi isso antes — observou Mel Cooper.
— Talvez seja um corte ou algum tipo de ferimento.
— Talvez uma queimadura de corda — sugeriu Sachs.
— Não, teria uma bolha. Deve ser algum tipo de ferimento. Você
viu alguma cicatriz na mão de Chang? — perguntou Rhyme a Li.
— Não, não vi.
Indentações, calos e cicatrizes nos dedos e nas palmas das mãos
podem ser reveladores sobre profissões ou passatempos das pessoas
que deixam as impressões — ou sobre os dedos em si, no caso de
suspeitos ou vítimas. Hoje em dia essas coisas são menos úteis,
quando a única habilidade física requerida por tantas profissões é
digitar em teclados ou fazer anotações. Mesmo assim, pessoas que
fazem trabalhos manuais, por exemplo, ou que praticam
determinados esportes, frequentemente desenvolvem marcas
distintas nas mãos.
Rhyme não tinha ideia do que significava esse padrão, mas
alguma informação adicional poderia revelar isso. Ele instruiu Thom
a escrever a observação no quadro. Então recebeu um telefonema do
agente especial Tobe Geller, um dos gurus de informática e
eletrônica do FBI, atualmente trabalhando no escritório de
Manha an. Ele tinha completado a análise do celular do Fantasma,
que Sachs havia achado na segunda balsa na praia de Easton. O
criminalista transferiu o telefonema para o viva-voz e um instante
depois a voz animada de Geller falou: — Bom, deixe-me dizer, esse é
um telefone excessivamente interessante.
Rhyme não conhecia bem o rapaz, mas se lembrava dos cabelos
encaracolados, do humor fácil e de uma paixão enorme por tudo que
contivesse microchips.
— Como assim? — perguntou Dellray.
— Em primeiro lugar, não tenham muitas esperanças. Ele é
praticamente impossível de ser rastreado. Nós os chamamos de
”telefones quentes”. O chip de memória foi desativado, de modo que
o celular não grava o último número chamado nem os que ligaram
para ele, as características de armazenamento estão totalmente
apagadas. E é um celular por satélite: você pode ligar para qualquer
parte do mundo e não precisa passar por empresas locais. Os sinais
são repassados através de uma rede do governo em Fujou. O
Fantasma, ou alguém que trabalha para ele, penetrou no sistema
para ativá-lo.
— Bom — rosnou Dellray —, vamos ligar para alguém na porra
da República Popular e dizer que esse bandido está usando o
sistema deles.
— Nós tentamos isso. Mas a posição dos chineses é de que
ninguém pode invadir o sistema telefônico deles, de modo que
devemos estar enganados. Obrigado pelo interesse.
— Mesmo que isso signifique ajudar a prender o Fantasma?
— Eu mencionei o nome de Kwan Ang — disse Geller. — Eles
continuaram desinteressados. O que quer dizer que provavelmente
foram subornados.
Guanxi...
Rhyme agradeceu ao jovem agente e eles desligaram. Um ponto
para o Fantasma, pensou o criminalista, furioso.
Foram um pouco mais bem-sucedidos com o banco de dados de
armas de fogo. Mel Cooper descobriu que os cartuchos combinavam
com dois tipos de arma, ambos datando de quase cinquenta anos
atrás: um deles era uma automática russa Tokarev 7.62.
— Mas — continuou Cooper — aposto que ele estava usando o
Modelo 51, uma versão chinesa da Tokarev. É praticamente a mesma
arma.
— É, é — disse Sonny Li. — Deve ser 51, estou dizendo. Eu tinha
Tokarev mas perdi no oceano. Muita gente na China tem 51.
— Munição? — perguntou Rhyme. — Talvez ele precise
conseguir mais aqui. — Estava pensando que, se a munição fosse
rara, talvez eles pudessem tocaiar os lugares mais prováveis onde o
Fantasma iria comprar.
Mas Cooper balançou a cabeça.
— Você pode comprar balas em qualquer loja de armas de bom
tamanho.
— Droga.
Um mensageiro chegou com um envelope. Selli o pegou-o e
rasgou uma extremidade. Tirou um punhado de fotografias. Olhou
para Rhyme com uma sobrancelha levantada.
— Os três corpos que a Guarda Costeira recuperou da água. A
cerca de uma milha da praia. Dois mortos a tiro. Um afogado.
As fotos eram dos rostos dos mortos, com os olhos parcialmente
abertos mas vítreos. Um tinha um buraco na têmpora. Os outros dois
não tinham sinais de ferimentos visíveis. Também havia cartões com
digitais.
— Esses dois — disse Li —, eles tripulantes. Outro cara um dos
imigrantes. No depósito com a gente. Não sei nome.
— Pregue no quadro — disse Rhyme — e mande as digitais para
o AFIS.
Selli o grudou as fotos no quadro debaixo do título
FANTASMORTES e Rhyme percebeu que a sala tinha ficado silenciosa
enquanto os membros da equipe olhavam para os acréscimos
macabros à tabela de provas. Supunha que Coe e Deng tinham
pouca experiência com cadáveres. Esse era um negócio que acontecia
com relação aos detalhes das cenas de crime: a rapidez com que nos
acostumamos à face da morte.
Sonny Li continuou a olhar as fotos em silêncio por um
momento. Murmurou alguma coisa em chinês.
— O que foi? — perguntou Rhyme. Ele olhou para o criminalista.
— Eu disse: ”Juízes do inferno.” Só expressão. Nós temos mito na
China: dez juízes do inferno decidem onde seu nome é posto no
Registro de Vivos e Mortos. Juízes decidem quando você nasce e
quando morre. Todo mundo no mundo, nome está no registro.
Rhyme pensou momentaneamente nas recentes consultas a
médicos e na operação que faria em breve. Imaginou exatamente
onde seu nome estaria no Registro de Vivos e Mortos...
Então o silêncio foi quebrado por outro bipe do computador. Mel
Cooper olhou a tela.
— Conseguimos a marca e o modelo do carro que esteve na
praia. BMW X5. É um daqueles 4x4 caros. Eu, por outro lado, tenho
um Dodge de dez anos. Mas com boa quilometragem.
— Ponha na tabela.
Enquanto Thom escrevia, Li olhou para o quadro e perguntou: —
De quem esse carro?
— Nós achamos que alguém estava na praia para pegar o
Fantasma — explicou Selli o. — Era esse o carro que ele estava
dirigindo. — E acenou na direção ao quadro.
— O que aconteceu ele?
— Parece que entrou em pânico e se mandou — disse Deng. — O
Fantasma atirou nele, mas ele foi embora.
— Ele deixa Fantasma para trás? — perguntou Li franzindo a
testa.
— É — confirmou Dellray.
— Mande a informação para o Departamento de Trânsito —
ordenou Rhyme. — Nova York. Para Jersey e Connecticut também.
Podem reduzir a busca para, digamos, duzentos e cinquenta
quilômetros ao redor de Manha an.
— Certo. — Cooper se conectou, indo para os sites seguros do
Departamento de Trânsito. — Lembra de quando isso demorava
semanas? — falou, pensativo. Com um zumbido fraco, a cadeira de
rodas de Rhyme foi até a tela na frente do técnico. Um instante
depois pôde ver a tela se enchendo com os nomes e endereços de
todos os donos registrados de carros X5.
— Merda — murmurou Dellray chegando perto. — Quantos são?
— O negócio é mais popular do que eu pensava — disse Cooper.
— Centenas.
— E os nomes? — perguntou Selli o. — Algum chinês? Cooper
fez a lista correr na tela.
— Parece que dois. Ling e Zhao. — Ele olhou para Eddie Deng,
que confirmou com a cabeça. — E, são chineses.
— Mas nenhum dos dois é de perto do centro da cidade
prosseguiu Cooper. — Um fica em White Plains e o outro é em New
Jersey, Paramus.
— Mande policiais de Nova York e Jersey verificar — ordenou
Dellray.
Os técnicos continuaram a examinar a lista.
— Aqui há uma possibilidade, há uns quarenta X5 registrados
em nome de empresas e mais uns cinquenta com locadoras.
— Alguma empresa parece ser chinesa? — perguntou Rhyme,
desejando poder ele mesmo batucar nas teclas e examinar
rapidamente a lista.
Não — respondeu Cooper. — Mas todas são muito genéricas.
Você sabe, seria um saco, mas nós poderíamos contatar todas. E as
locadoras também. Descobrir quem estava dirigindo os carros.
É uma possibilidade muito remota — disse Rhyme. —
Desperdício de recursos. Vai demorar dias. Mandem uns dois
policiais do centro verificar as que ficam mais perto de Chinatown,
mas...
— Não, não, Loaban — interrompeu Sonny Li. — Você tem de
achar carro. Primeira coisa a fazer. Depressa.
Rhyme ergueu uma sobrancelha interrogativa.
— Achar agora — continuou o policial chinês. — Botar um monte
de gente na busca. Todos seus policiais, estou dizendo. Todo mundo.
— Vai demorar tempo demais — murmurou Rhyme, irritado
com a distração. — Não temos gente suficiente. Teríamos que achar
alguém na empresa encarregado de comprar carros e, se for por
leasing, falar com o agente da revendedora, conseguir os registros, e
metade deles não faria isso sem uma ordem judicial. Quero me
concentrar em achar os Chang e os Wu.
— Não, Loaban — insistiu Li. — O Fantasma, ele vai matar aquele
motorista. É o que está fazendo agora, procurando ele.
— Não, acho que você está errado — disse Dellray. — A
prioridade dele é matar as testemunhas do barco.
Sachs concordou.
— Minha opinião é que, claro, ele está puto com o motorista por
tê-lo abandonado, e talvez vá atrás dele quando tiver tempo mais
tarde. Mas não agora.
— Não, não — disse Li balançando enfaticamente a cabeça.
Importante, estou dizendo. Achar homem do BMW.
— Por quê? — perguntou Sachs.
— Muito claro. Muito óbvio. Pegar aquele motorista. Ele leva
vocês a cabeça de cobra. Talvez usar ele como isca para achar
Fantasma.
— E qual, Sonny, é a sua base para essa conclusão — murmurou
Lincoln Rhyme sombrio e irritado. — Onde estão os dados para
sustentá-la?
— Um monte de dados, estou dizendo.
— O quê?
O homenzinho deu de ombros.
— Quando eu no ônibus vindo para esta cidade de manhã eu vi
sinal.
— Um sinal de estrada? — perguntou Rhyme. — O que quer
dizer?
— Não, não, como vocês dizem? Não sei... — Ele falou em chinês
com Eddie Deng.
— Ele quer dizer um presságio — disse o jovem detetive.
— Um presságio? — rosnou Rhyme, como se tivesse comido
peixe estragado.
Li pegou distraidamente seus cigarros e deixou-os intocados
quando viu o olhar incisivo de Thom. Continuou: — Eu vem de
ônibus para a cidade, estou dizendo. Vê corvo na estrada bicando
comida. Outro corvo tenta roubar e primeiro corvo não só espanta o
outro; ele persegue e tenta bicar olhos. Não deixa ladrão em paz. —
Li levantou as palmas. Aparentemente essa era toda a sua
argumentação.
— E?
— Não claro, Loaban? O que eu disse?
— Não. O que você está dizendo não é claro porra nenhuma.
— Certo, certo. Eu lembra aquele corvo agora e começa a pensar
no Fantasma e em quem ele é e a pensar no motorista, homem em
BMW caro, e em quem ele é. Bom, ele é inimigo do Fantasma. Como
corvo roubando comida. As famílias, os Wu, os Chang, eles não faz
nada ruim para ele pessoalmente, estou dizendo. O motorista... — Li
franziu a testa, olhou frustrado e falou de novo para Deng, que
sugeriu: — Traiu?
— É, traiu ele. Ele agora inimigo do Fantasma. Lincoln Rhyme
tentou não rir. — Entendido, Sonny. — Ele se virou de novo para
Dellray e Selli o. — Agora...
— Eu vejo seu rosto, Loaban — disse Li. — Eu não disse deuses
descem e me dão sinal dos corvos. Mas lembrar pássaros faz eu pensar
diferente, abre minha mente. Deixa vento passar por ela. Isso bom,
não acha?
— Não, eu acho que é superstição — disse Rhyme. — É woo-woo e
nós não temos tempo para... De que diabo está rindo?
— Woo-woo. Você diz woo-woo. Você falando chinês. ”Woo”
significa névoa. Então você diz uma coisa é woo-woo, ela é enevoada,
não é clara.
— Bom, para nós woo-woo significa besteira sobrenatural.
Mesmo diante da irritação considerável de Rhyme, Li não queria
recuar.
— Não, isso não é besteira. Ache aquele motorista. Você precisa,
Loaban.
Os olhos de Sachs estavam examinando o homenzinho
persistente.
— Não sei, Rhyme.
— De jeito nenhum.
— Ideia boa pra caralho, estou dizendo — garantiu Li ao
criminalista.
Houve um silêncio denso por um momento. Selli o interveio.
— Que tal se a gente colocar Bedding e Saul nisso, dar a eles meia
dúzia de caras da Patrulha, Linc? Eles podem verificar registros de
X5 para empresas e leasing em Manha an e Queens, só isso, as de
Chinatown aqui e a de Flushing. E se houver mais alguma coisa e a
gente precisar de pessoal, a gente tira os caras de lá.
— Certo, certo — disse Rhyme, irritado. — Então andem logo.
— Meia dúzia é só seis, certo? — reclamou Li. — Precisa mais do
que isso.-Mas o olhar de Rhyme o silenciou.-Certo, certo, Loaban.
Corvos bicando, macacos de pedra e O Registro de Vivos e
Mortos... Rhyme suspirou e olhou para a equipe.
— Bom, se não for pedir muito, podemos agora voltar ao
trabalho policial de verdade.

FANTASMORTES

Cena do Crime Easton, Long Island

• Dois imigrantes mortos na praia, com tiros nas costas.


• Um imigrante ferido — Dr. John Sung.
• ”Bangshou” (assistente) a bordo; identidade desconhecida.
• Dez imigrantes escapam: sete adultos (um idoso, uma mulher
ferida), duas crianças, um bebê. Roubam furgão da igreja.
• Amostras de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Mulher ferida é AB negativo.
• Veículo esperando o Fantasma na praia partiu sem ele. Um tiro
supostamente dado pelo Fantasma contra o veículo. Providenciado
pedido de marca e modelo do veículo, baseado em marcas de pneus
e distância entre eixos.
• Veículo é um BMW X5. Verificando proprietários registrados.
• Nenhum veículo para pegar os imigrantes foi localizado.
• Celular, presumivelmente do Fantasma, mandado para análise
no FBI.
• Telefone por satélite impossível de ser rastreado. Penetrou no
sistema chinês para ser usado.
• Arma do Fantasma é uma pistola 7.62. Cartuchos incomuns.
• Pistola automática chinesa Modelo 51.
• O Fantasma pode ter gente do governo em sua folha de
pagamentos.
• O Fantasma roubou um sedã Honda vermelho para fugir.
Providenciado pedido de localização do veículo.
• Três corpos recuperados no mar — dois mortos a tiros, um
afogado. Fotos e impressões mandadas a Rhyme e à polícia chinesa.
• Digitais mandadas ao AFIS.
• Nenhuma identificação em nenhum ponto, mas marcas
incomuns nos dedos de Sam Chang (ferimento, queimadura de
corda?) · Perfil dos imigrantes: Sam Chang, Wu Qichen e suas
famílias, John Sung, bebê de mulher afogada, homem e mulher não
identificados (mortos na praia).

Furgão Roubado, Chinatown

• Camuflado por imigrantes com o logotipo ”A Loja do Lar”.


• Mancha de sangue sugere que mulher tem ferimento no braço
ou no ombro.
• Amostras de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Mulher ferida é AB negativo.
• Digitais mandadas ao AFIS.
• Nenhuma identificação.
Capítulo 16
O sobrenome Chang significa arqueiro.
Seu pai, sua mulher e seus filhos estavam sentados em volta
enquanto Sam Chang, com um toque mágico de calígrafo, desenhava
os caracteres chineses para esse nome num pedaço de tábua que ele
tinha achado no quintal dos fundos do apartamento novo. O estojo
de seda que guardava seus valiosos pincéis de pelo de lobo, cabra e
coelho, bastão de nanquim e tinteiro de pedra tinha afundado com o
Fujou Dragon e ele estava sendo forçado a usar uma pavorosa caneta
americana de plástico.
Mesmo assim, Chang tinha aprendido caligrafia com o pai
quando era jovem, e treinou a arte durante toda a vida, de modo
que, mesmo que a espessura da tinta não variasse, os traços eram
perfeitamente formados — decidiu que pareciam os estudos do
artista Wan Li, do século XVI, que fazia um esboço simples de uma
cena que mais tarde pintaria em cerâmica — o esboço era apenas
meio formado, mas lindo por direito próprio. Chang pegou o pedaço
de madeira que representava o nome da família e apoiou no
improvisado altar de papelão sobre a lareira da sala de estar.
A China é um shopping center teológico, um país onde Buda é a
divindade tradicional mais reconhecida, mas onde os filósofos
Confúcio e Lao-tsé são como semideuses, onde o cristianismo e o
islamismo têm grandes bolsões de devotos e onde a vasta maioria do
povo faz suas apostas rezando regularmente e fazendo sacrifícios a
deuses folclóricos tão numerosos que ninguém sabe exatamente
quantos existem.
Mas acima de todos, no panteão dos deuses da maioria dos
chineses, estão seus ancestrais.
E era aos progenitores Chang que esse altar vermelho era
dedicado, decorado com as únicas lembranças ancestrais que tinham
sobrevivido ao afundamento do navio: fotos manchadas de água do
mar que tinham estado na carteira de Chang, mostrando seus pais e
avós.
— Pronto — anunciou ele. — Nosso lar.
Chang Jiechi apertou a mão do filho e depois fez um gesto em
direção ao chá, que Mei-Mei serviu para ele. O velho segurou a
bebida quente e olhou os cômodos escuros em volta.
— Melhor do que muitos.
Mas apesar das palavras dele, Sam Chang sentiu outra onda de
vergonha, como uma febre alta, por estar sujeitando o pai a um lugar
tão ruim quanto esse. A maior obrigação, depois da que é devida ao
chefe do governo, segundo Confúcio, é a que o filho deve ao pai.
Desde que tinha planejado a fuga da China, Chang se preocupava
com o modo como a viagem afetaria o homem idoso. Sempre quieto
e sem demonstrar emoções, Chang Jiechi recebera em silêncio a
notícia da fuga próxima, deixando Chang pensando se estaria
fazendo a coisa certa aos olhos do velho.
E agora, depois do afundamento do Dragon, a vida deles não iria
melhorar tão cedo. Esse apartamento teria de ser sua prisão até que o
Fantasma fosse capturado ou voltasse à China, o que poderia
demorar meses.
Pensou de novo no lugar onde havia parado para roubar a tinta e
os pincéis — A Loja do Lar. As filas de banheiras brilhantes,
espelhos, luzes e bancadas de mármore. Queria ser capaz de se
mudar com a família para uma casa que tivesse as coisas
maravilhosas que tinha visto lá. Isso aqui era uma imundície. Era...
Uma batida firme na porta.
Por um momento ninguém da família se mexeu. Depois Chang
olhou pela cortina e relaxou. Abriu a porta e abriu um sorriso ao ver
o homem de meia-idade usando jeans e um suéter. Joseph Tan
entrou e os dois se cumprimentaram. Chang olhou para a calma rua
residencial e não viu ninguém que parecesse capanga do cabeça de
cobra. No ar úmido e pesado havia um cheiro ruim; o apartamento
não ficava longe da central de tratamento de esgoto. Ele entrou e
fechou a porta.
Tan, irmão de um bom amigo de Chang em Fujian, tinha vindo
para cá há anos. Era cidadão americano e, como não tinha história de
atividade dissidente, viajava com liberdade entre a China e Nova
York. Chang tinha passado várias ocasiões com ele e o irmão em
Fujou na primavera passada, e acabou se sentindo bastante
confortável para contar a Tan a notícia de que pretendia trazer a
família para o Belo País. Tan se ofereceu para ajudar. Conseguiu esse
apartamento e um trabalho para Chang e o filho mais velho numa
das empresas de Tan — uma oficina de impressão rápida, não longe
do apartamento.
O homem afável prestou os respeitos ao idoso Chang Jiechi e
depois a Mei-Mei, e todos se sentaram para tomar chá. Tan ofereceu
cigarros. Sam Chang recusou, mas seu pai pegou um e os dois
fumaram.
— Ouvimos falar do navio no noticiário — disse Tan. — Eu
agradeci a Guan Yin por vocês estarem em segurança.
— Muitos morreram. Foi terrível. Quase nos afogamos, todos
nós.
— A televisão disse que o cabeça de cobra era o Fantasma. Chang
respondeu que era, e que ele tinha tentado matar todos, mesmo
depois de chegarem em terra.
— Então precisamos ter muito cuidado. Não vou mencionar o
nome de vocês a ninguém. Mas há pessoas na oficina que ficarão
curiosas sobre vocês. Eu tinha pensado que deveriam começar a
trabalhar imediatamente, mas agora, com o Fantasma... Seria melhor
esperar. Talvez na semana que vem. Ou na outra. Então eu treino
vocês. Conhecem o equipamento de impressão americano?
Chang balançou a cabeça. Na China ele fora professor de arte e
cultura — até que o seu status de dissidente levou-o a ser demitido.
Assim como os artistas deslocados e desprezados que tinham
perdido o emprego durante a Revolução Cultural dos anos 60,
Chang fora forçado a fazer trabalho ”de correção de pensamento” —
trabalho braçal. E como muitos calígrafos e artistas daquela época
anterior, arranjou serviço como gráfico. Mas tinha operado apenas
máquinas chinesas ou russas, ultrapassadas.
Falaram durante um tempo sobre a vida na China e aqui. Depois
Tan anotou o endereço e o modo de chegar à oficina, e as horas que
Chang e seu filho estariam trabalhando. Ele pediu para conhecer
William.
Chang abriu a porta do quarto do garoto. Olhou — primeiro
surpreso, depois consternado — para o cômodo vazio. William não
estava lá.
Virou-se para Mei-Mei.
— Onde está o nosso filho?
— Ele estava no quarto. Eu não o vi sair.
Chang foi até a porta dos fundos e viu que estava destrancada.
William tinha-a deixado assim ao se esgueirar para fora.
Não!
O quintal dos fundos estava vazio. O beco atrás também. Voltou
à sala de estar.
— Aonde um garoto adolescente iria por aqui? — perguntou a
Tan.
— Ele fala inglês?
— Melhor do que nós.
— Na esquina há um Starbucks, você sabe o que é?
— Sei, o lugar que vende café.
— Um monte de adolescentes chineses vai lá. Ele não vai falar
nada sobre o Dragon, vai?
— Não, tenho certeza — disse Chang. — Ele sabe do perigo. Tan,
que também tinha filhos, falou: — Ele vai ser o seu maior problema.
Vai assistir àquilo — e apontou para a televisão — e vai querer tudo
que vir lá. Videogames, carros e roupas. E vai querer sem ter de
trabalhar. Porque na televisão você vê pessoas tendo coisas, não vê as
pessoas conseguindo as coisas. Vocês chegaram até aqui,
sobreviveram ao oceano Atlântico, sobreviveram ao Fantasma. Não
sejam deportados porque a polícia pegou o seu filho roubando numa
loja e o entregou ao Serviço de Imigração.
Chang entendeu o que o homem estava dizendo, mas no
momento estava em pânico, sem poder se concentrar no conselho. O
Fantasma poderia ter bangshous em todas as ruas daqui. Ou homens
que venderiam seu paradeiro a ele.
— Preciso achar meu garoto agora.
Ele e Tan saíram para a calçada. Tan apontou a esquina, onde
ficava a cafeteria.
— Vou deixá-lo agora. Seja forte com seu filho. Agora que ele
está aqui será muito mais difícil. Mas você precisa controlá-lo.
Chang manteve a cabeça baixa enquanto passava pelos
apartamentos baratos, lavanderias automáticas, lanchonetes,
restaurantes e lojas. O bairro era menos congestionado do que a
Chinatown de Manha an, as calçadas eram mais largas, com menos
gente na rua. Mais de metade das pessoas aqui eram asiáticas, mas a
população era mista: chineses, vietnamitas e coreanos. Também
havia muitos hispânicos e uma quantidade de indianos e
paquistaneses. Praticamente nenhum branco.
Olhou para as lojas enquanto passava e não viu o filho em
nenhuma delas.
Rezou a Chen-Wu para o garoto meramente ter ido dar uma
volta sozinho, e que não tivesse conhecido alguém e contado como
tinham vindo para cá — talvez tentando impressionar uma garota.
Um pequeno parque — nenhum sinal dele.
Um restaurante. Nada.
Entrou na cafeteria Starbucks e vários adolescentes cautelosos e
velhos complacentes olharam o rosto perturbado do imigrante.
William não estava ali. Chang saiu rapidamente.
Então, olhando por acaso para um beco sujo, viu o filho. O garoto
estava falando com dois rapazes chineses, ambos usando jaquetas de
couro. O cabelo deles era comprido e alto, puxado para trás com
laquê ou óleo. William entregou a um deles uma coisa que Chang
não pôde ver. O homem assentiu para o amigo e pôs um embrulho
na mão de William. Depois os dois se viraram rapidamente e
voltaram pelo beco. William olhou o embrulho, examinando o que
tinha acabado de receber, depois enfiou no bolso. Não!, pensou
Chang, chocado. O que era aquilo? Droga? Seu filho estava
comprando droga?
Chang se esgueirou para fora do beco e, quando o filho saiu,
chocado, agarrou o garoto pelo braço e o empurrou contra a parede.
— Como pôde fazer isso? — perguntou, indignado.
— Me deixe em paz.
— Responda!
William olhou a cafeteria ali perto, onde três ou quatro pessoas
estavam sentadas do lado de fora, desfrutando a ausência
momentânea de chuva. Tinham ouvido a voz alta de Chang e
olharam para o garoto e o pai. Chang notou, e soltou o filho,
sinalizando com a cabeça para o garoto segui-lo.
— Não sabe que o Fantasma está procurando por nós? Ele quer
nos matar!
— Eu queria sair. Aqui é como uma cadeia! Aquela porra
daquele quartinho, com o meu irmão.
Chang agarrou de novo o braço do filho.
— Não use essa linguagem comigo. Você não pode me
desobedecer assim.
— É um lugarzinho de merda. Eu quero um quarto só para mim
— respondeu o garoto, puxando o braço.
— Mais tarde. Teremos de fazer sacrifícios.
— Foi escolha sua vir para cá. Você pode fazer os sacrifícios.
— Não fale comigo assim! Eu sou seu pai.
— Eu quero um quarto. Quero um pouco de privacidade.
— Você deveria agradecer por nós termos algum lugar para ficar.
Nenhum de nós tem quarto sozinho. Seu avô dorme com sua mãe e
comigo.
O garoto não disse nada.
Hoje ele tinha descoberto um bocado de coisas sobre o filho. Que
ele era insolente, que era ladrão de carros, que as correntes de ferro
da obrigação familiar que tinham guiado tão absolutamente a vida
de Sam Chang significavam pouco para o garoto. Chang se
perguntou supersticiosamente se tinha cometido um erro ao dar ao
garoto o nome ocidental quando ele entrou para a escola, chamando-
o a partir do gênio americano dos computadores, o Gates. Talvez, de
algum modo, isso tivesse levado o garoto a entrar no caminho da
rebelião.
Enquanto se aproximavam do apartamento, Chang perguntou: —
Quem eram eles?
— Quem? — disse o garoto evasivamente.
— Aqueles homens que estavam com você.
— Ninguém.
— O que eles venderam a você? Era droga? A resposta foi um
silêncio irritado.
Estavam na porta da frente do apartamento. William começou a
passar pelo pai, mas Chang o impediu. Enfiou a mão no bolso do
garoto. Os braços de William se levantaram com hostilidade, e
durante um momento de choque Chang pensou que o filho iria
empurrá-lo ou mesmo bater nele. Mas depois de um instante
interminável ele baixou as mãos.
Chang pegou o embrulho e olhou dentro, pasmo ao ver uma
pequena pistola prateada.
— O que vai fazer com isto? — sussurrou, aborrecido. — Roubar
pessoas?
Silêncio.
— Diga, filho. — Sua mão forte de calígrafo apertou com força o
braço do garoto. — Diga!
— Comprei para proteger a gente! — gritou o garoto.
— Eu vou proteger a gente. E não com isso.
— Você? — William deu um riso zombeteiro. — Você escrevia
suas matérias sobre Taiwan e democracia e tornou nossa vida um
sofrimento. Você decidiu vir para cá e a porra do cabeça de cobra
tentou matar todos nós, você chama isso de cuidar da gente?
— Com o que você pagou por isto? — Ele levantou o embrulho
que continha a pistola. — Onde conseguiu o dinheiro? Você não tem
emprego.
O garoto ignorou a pergunta.
— O Fantasma matou os outros. E se ele tentar matar a gente? O
que vamos fazer?
— Vamos nos esconder até a polícia achá-lo.
— E se não acharem?
— Você vai me desonrar assim? — perguntou Chang, irado.
Entrando no apartamento, William balançou a cabeça com um ar
de exasperação no rosto e entrou bruscamente no quarto. Bateu a
porta.
Chang pegou o chá que a mulher lhe ofereceu.
— Aonde ele foi? — perguntou Chang Jiechi.
— Estava na rua, perto daqui. Comprou isso. — Mostrou a arma,
e seu pai pegou-a com as mãos nodosas.
— Está carregada? — perguntou Chang.
Seu pai tinha sido soldado, resistindo a Mao Tsé-tung na Longa
Marcha que varreu Chiang Kai-shek e os nacionalistas para o mar, e
estava familiarizado com armas. Examinou-a atentamente.
— Sim. Tenha cuidado. Mantenha a trava de segurança nesta
posição. — Devolveu a arma ao filho.
— Por que ele me desrespeita? — perguntou Chang com raiva.
Em seguida escondeu a arma na prateleira de cima do armário da
frente e foi com o velho até o sofá mofado.
O pai não disse nada durante um momento. A pausa foi tão
longa que Chang olhou para o velho cheio de expectativa.
Finalmente, com um olhar estranho, o pai respondeu: — Onde
aprendeu toda a sua sabedoria, filho? O que formou sua mente, seu
coração?
— Meus professores, livros, colegas. Principalmente o senhor,
Baba.
— Ah, eu? Você aprendeu com o seu pai — perguntou Chiang
Jiechi fingindo surpresa.
— Sim, claro. — Chang franziu a testa, sem saber aonde ele
queria chegar.
O velho não disse nada, mas um sorriso débil atravessou-lhe o
rosto cinzento.
Um momento se passou. Então Chang disse: — E o senhor está
dizendo que William aprendeu comigo? Nunca fui insolente com o
senhor, Baba.
— Comigo, não. Mas certamente foi com os comunistas. Com
Pequim. Com o governo de Fujian. Filho, você é um dissidente. Toda
a sua vida foi de rebelião.
— Mas...
— Se Pequim dissesse a você: por que Sam Chang nos desonra?,
qual seria a sua resposta?
— Eu diria: ”O que vocês fizeram para merecer meu respeito?”
— William poderia dizer o mesmo a você. — Chiang Jiechi
levantou as mãos, terminando a argumentação.
— Mas meus inimigos foram a opressão, a violência, a corrupção.
Sam Chang amava a China com todo o seu coração. Amava o povo.
A cultura. A história. Sua vida nos últimos doze anos tinha sido uma
luta absorvente, passional, para ajudar seu país a entrar numa era
mais esclarecida.
— Mas tudo que William vê é você curvado sobre o computador
à noite, atacando a autoridade e não se preocupando com as
consequências.
Palavras de protesto se formaram na mente de Chang, mas ele
ficou quieto. Depois percebeu, chocado, que talvez seu pai estivesse
certo. Deu um riso débil. Pensou em ir falar com o filho, mas alguma
coisa o segurava. Raiva, confusão — talvez até medo do que seu filho
poderia dizer. Não, falaria com o garoto mais tarde. Quando...
De repente o velho se encolheu de dor.
— Baba! — disse Chang, alarmado.
Uma das poucas posses que tinham sobrevivido ao naufrágio do
Dragon era o frasco quase cheio da morfina de Chang Jiechi. Chang
dera ao pai um tablete logo antes do navio afundar e estava com o
vidro no bolso. Era muito bem lacrado, e não entrara água do mar.
Agora deu mais dois comprimidos ao pai e pôs um cobertor em
cima dele. O homem ficou deitado no sofá e fechou os olhos.
Sam Chang deixou-se cair pesadamente numa poltrona mofada.
Não havia mais dinheiro, seu pai precisava desesperadamente de
tratamento, tinham um assassino implacável como inimigo, seu filho
era um renegado e criminoso...
Tanta dificuldade em volta.
Queria culpar alguém: Mao, o Partido Comunista Chinês, os
soldados do Exército de Libertação do Povo...
Mas o motivo para as dificuldades e o perigo atual parecia estar
apenas num local, onde William o havia colocado: aos pés de Chang.
Entretanto o arrependimento não adiantaria de nada. Agora ele
só podia rezar para que as histórias sobre a vida aqui fossem
verdade, e não mitos — que o Belo País fosse realmente uma terra de
milagres, onde o mal era trazido à luz e punido, onde os defeitos
mais perniciosos dentro de nossos corpos podiam ser consertados
rapidamente, e onde a liberdade generosa realizava a promessa de
que os corações perturbados não se perturbariam mais.
Capítulo 17
Às 13h30 o Fantasma estava andando rapidamente por
Chinatown, de cabeça baixa, preocupado como sempre com a
hipótese de ser reconhecido.
Para a maioria dos ocidentais, claro, ele era invisível, com as
feições se fundindo num homem asiático genérico. Raramente os
americanos brancos podiam dizer a diferença entre um chinês, um
japonês, um vietnamita ou um coreano. Mas entre os chineses suas
feições seriam distintas e ele estava decidido a permanecer anônimo.
Uma vez, havia alguns anos, tinha subornado um magistrado de
trânsito em Hong Kong com dez mil em dinheiro de uma cor só,
para evitar ser preso numa briga sem importância, para que uma
foto sua não aparecesse nos registros criminais. Nem mesmo a Seção
de Arquivos e Busca Automática ou a Unidade Analítica de
Inteligência Criminosa da Interpol tinham fotos confiáveis dele (o
Fantasma sabia disso porque usara um hacker em Fujou para invadir
o banco de dados da Interpol através do seu supostamente seguro
sistema de e-mail X400).
De modo que agora andava rapidamente, de cabeça baixa — na
maior parte do tempo.
Mas nem sempre.
Levantava os olhos para examinar mulheres, as bonitas e jovens,
as voluptuosas, as esbeltas, as recatadas, as que flertavam e as
tímidas. As vendedoras, as adolescentes, as esposas, as empresárias,
as turistas. Ocidentais ou orientais, para ele não fazia diferença.
Queria um corpo deitado embaixo dele, gemendo — de prazer ou
dor (isso também não fazia diferença) enquanto pulsava para cima e
para baixo em cima dela, agarrando sua cabeça com força entre as
mãos.
Uma mulher de cabelos castanhos-claros passou, uma mulher
ocidental. Ele reduziu o passo e se deixou ser tocado pelo véu do
perfume dela. Estava faminto — mas também percebia que o desejo
não era por ela e sim por sua Yindao.
Mas não tinha tempo para as fantasias; tinha vindo à associação
de mercadores, onde os turcos o esperavam. Cuspiu na calçada,
achou a entrada dos fundos, que eles haviam deixado aberta, e
entrou. Subiu até o andar de cima. Estava na hora de fazer um
negócio importante.
Dentro do grande escritório achou Yusuf e os outros dois turcos.
Não tinha demorado muito — alguns telefonemas, uma ameaça e
um suborno — para descobrir o nome do homem que estava
sentado, nervoso a ponto de quase chorar, numa cadeira diante de
sua própria mesa.
Os olhos de Jimmy Mah se fixaram no chão quando o Fantasma
entrou na sala. O cabeça de cobra puxou uma cadeira e se sentou ao
lado dele. O Fantasma segurou a mão de Mah casualmente — um
gesto que não era incomum entre os homens chineses — e sentiu os
músculos trêmulos e a pulsação de um coração apavorado.
— Eu não sabia que eles vieram no Dragon. Não contaram! Juro!
Eles mentiram para mim. Quando vieram aqui eu nem tinha ouvido
falar do navio. Não vi o noticiário hoje de manhã.
O Fantasma continuou segurando a mão do sujeito, aumentando
ligeiramente a pressão, mas sem dizer nada.
— Vai me matar? — perguntou Mah, num suspiro tão fraco que
voltou a fazer a mesma pergunta, mesmo o Fantasma tendo ouvido
perfeitamente.
— Os Chang e os Wu, onde eles estão? — O Fantasma apertou a
mão do sujeito com um pouco mais de força e recebeu um gemido
agradável em troca do esforço. — Onde eles estão?
Os olhos de Mah se desviaram para os turcos. Devia estar
imaginando que tipo de armas terríveis eles teriam, facas, garrotes
ou revólveres.
Mas no fim foi simplesmente a pressão fraca da palma da mão do
Fantasma contra a do pobre Jimmy Mah que soltou sua língua.
— Dois lugares diferentes, senhor. Wu Qichen está num
apartamento em Chinatown. Um corretor que eu uso conseguiu para
ele.
— O endereço?
— Não sei. Juro! Mas o corretor sabe. Ele vai contar.
— Onde fica esse corretor?
Mah recitou rapidamente o nome e o endereço. O Fantasma
memorizou.
— E os outros?
— Sam Chang levou a família para o Queens.
— O Queens? Onde? — Um aperto particularmente delicado na
mão. Imaginou momentaneamente que estava tocando os seios de
Yindao.
Mah assentiu na direção da escrivaninha.
— Ali! Está naquele pedaço de papel.
O Fantasma o pegou, olhou o endereço e enfiou o papel no bolso.
Soltou a mão do líder da tong e lentamente enxugou do polegar o
suor que tinha brotado da palma da mão de Mah.
— Não diga a ninguém que eu perguntei sobre isso —
murmurou o Fantasma.
— Não, não, claro que não. O Fantasma sorriu.
— Você me fez um favor, e agradeço por isso. Estou em dívida
com você. Agora vou lhe fazer um favor em troca.
Mah ficou quieto. Então, cautelosamente, perguntou com a voz
trêmula: — Um favor?
— Que outro tipo de negócios o senhor tem, Sr. Mah? Em que
outras atividades o senhor está envolvido? O senhor ajuda porquitos,
ajuda cabeças de cobra. Mas administra casas de massagem?
— Algumas. — O sujeito estava parecendo mais calmo. Enxugou
as mãos na calça. — Principalmente jogos.
— Ah, jogos, claro. Há muito jogo aqui em Chinatown. Eu gosto
de jogar. O senhor gosta?
Mah engoliu em seco e enxugou o rosto com um lenço branco.
— Todos nós não adoramos jogar? Sim, sim.
— Então diga: Quem interfere com sua atividade de jogos? Outra
tong? Uma tríade? Alguma gangue Meiguo. A polícia? Eu posso falar
com pessoas. Tenho conexões em todo o governo. Minhas conexões
vão muito longe. Posso garantir que ninguém incomode suas casas
de jogos.
— Sim, sim, senhor. E não há sempre problemas? Mas não são os
chineses ou a polícia. São os italianos. Por que eles nos causam tanto
problema? Não sei. Os rapazes jogam bombas incendiárias contra
nós, espancam nossos clientes, roubam as casas de jogos.
— Os italianos — murmurou o Fantasma. — Como é que eles são
chamados? Há uma palavra pejorativa... não consigo lembrar.
— Wops — disse Mah em inglês.
— Wops. Mah sorriu.
— É uma referência aos que estão na sua linha de trabalho.
— Na minha?
— Imigração. Wop significa ”without passport”, ”sem
passaporte”. Quando os imigrantes italianos vieram para cá há anos,
sem documentação, foram rotulados de WOP. É muito insultuoso.
O Fantasma olhou a sala em volta, franzindo a testa.
— Há alguma coisa de que o senhor precise? — perguntou Mah.
— Você tem um pincel atômico? Talvez um pouco de tinta?
— Tinta? — Os olhos de Mah seguiram os do Fantasma. — Não.
Mas posso chamar minha ajudante lá embaixo. Posso mandar que
ela consiga. O que o senhor quiser eu posso conseguir. Qualquer
coisa.
— Espere — disse o Fantasma —, isso não será necessário. Tive
outra ideia.

Lou Selli o ergueu os olhos do seu Nokia e anunciou à equipe do


caso FANTASMORTES: — Temos um corpo em Chinatown. Um detetive
da Quinta Delegacia está na linha. — E se virou de novo para o
telefone.
Alarmado, Rhyme olhou para ele. Será que o Fantasma rastreou e
matou outro imigrante? Quem?, imaginou. Chang, Wu? O bebê?
Não parece relacionado ao Fantasma — disse Selli o desligando.
— O nome da vítima é Jimmy Mah.
Eu conheço — disse Eddie Deng. — É chefe de uma tong.
— Também ouvi falar dele — acrescentou Coe. — Contrabando
não é a sua especialidade, mas ele promove alguns encontros e
recepções.
— O que significa isso? — perguntou Rhyme acidamente, vendo
que Coe não se estendera mais no assunto.
Quando os sem documento chegam a Chinatown — respondeu o
agente —, há uma autoridade que os ajuda; consegue um
esconderijo, dá um pouco de dinheiro. Isso se chama ”encontrar e
receber” os ilegais. A maioria dos que fazem isso trabalha para os
cabeças de cobra, mas alguns fazem por conta própria. Como Mah.
Só que não há muito lucro nisso. Se você é corrupto e quer muita
grana, trabalha com drogas, jogos ou casas de massagem. E o que
Mah faz. Bom, fazia, ao que parece.
— Por que não acha que isso esteja relacionado? — perguntou
Rhyme.
— Havia uma mensagem pintada na parede atrás da mesa dele
— disse Selli o —, onde acharam o corpo. Dizia: ”Vocês nos
chamam de Wops, tiram as nossas casas.” Estava escrito com o
sangue de Mah, a propósito.
Assentindo, Deng falou:
— Há uma grande rivalidade entre os mafiosos de terceira
geração, vocês sabem, a turma dos Sopranos, e as tongs. As casas de
jogos e de massagens dos chineses, e um pouco de tráfico de drogas,
praticamente chutaram os italianos do crime organizado em
Manha an.
A demografia do crime organizado, sabia Rhyme, era tão fluida
quanto a da cidade em si.
— De qualquer modo — disse Coe — esse pessoal do Dragon ia
desaparecer o mais rápido possível. Ia evitar alguém conhecido
como Mah. Eu evitaria.
— A não ser que estivessem desesperados — disse Sachs. —
Coisa que estão. — Ela olhou para Rhyme. — Talvez o Fantasma
tenha matado Mah e feito parecer um ataque do crime organizado.
Devo examinar a cena?
Rhyme pensou um momento. Sim, as famílias estavam
desesperadas, mas Rhyme já tinha visto a habilidade dos imigrantes,
presumivelmente trabalho de Sam Chang. Deixaria muitas pistas
procurar a ajuda de alguém como Mah.
— Não, preciso de você aqui. Mas mande uma equipe especial da
Cena do Crime e diga a eles que nos mandem o relatório. Virando-se
para Eddie Deng, falou: — Ligue para Dellray e Peabody no Prédio
Federal. Fale com eles sobre a morte.
— Sim, senhor — disse Deng.
Dellray tinha ido ao sul de Manha an conseguir os agentes
extras das duas jurisdições federais relevantes de Nova York — a Sul
e a Leste, que cobriam Manha an e Long Island. Também usava sua
influência para colocar a equipe SPECTAC do local, coisa que
Washington estava relutando em fazer; a unidade especial
geralmente era reservada para grandes sequestros com reféns e
ocupações de embaixadas, não para caçadas humanas. Mesmo
assim, Rhyme sabia, era difícil recusar alguma coisa a Dellray, e se
alguém pudesse conseguir a força tática necessária seria o agente
magro.
Rhyme manobrou a cadeira de volta para os quadros brancos
com as tabelas de provas.
Nada, nada, nada...
O que mais podemos fazer?, pensou. O que não exaurimos?
Examinando o quadro... Finalmente disse: — Vamos olhar um pouco
mais o sangue.
E olhou as amostras que Sachs tinha achado: a da imigrante
ferida — a mulher com o braço, a mão ou o ombro quebrado ou
cortado.
Lincoln Rhyme adorava o sangue como ferramenta forense. Era
fácil de achar, se grudava como cola a todo tipo de superfície,
mantinha suas importantes informações forenses durante anos.
A história do sangue na investigação criminal, de fato, reflete
amplamente a história da ciência forense em si.
O primeiro esforço no uso do sangue como prova — em meados
do século XIX — se concentrava simplesmente em classificá-lo, isto é,
em determinar se uma substância desconhecida era sangue ou não,
digamos, tinta marrom seca. Cinquenta anos depois o foco estava em
identificar o sangue como humano, e não de animal. Pouco depois os
detetives começaram a procurar um modo de diferenciar o sangue —
limitá-lo a um certo número de categorias —, e os cientistas reagiram
criando o processo de tipagem sanguínea (o sistema A, B, O, além
dos sistemas MN e Rh), que reduz o número de fontes. Nos anos 60
e 70 os cientistas forenses buscaram dar um passo adiante —
individualizar o sangue, isto é, rastreá-lo até um único indivíduo,
como uma impressão digital. Os primeiros esforços para fazer isso
bioquimicamente — identificando enzimas e proteínas — podia
eliminar muitos indivíduos como fonte, mas não todos. Só se
alcançou a verdadeira individualização com a classificação por
DNA.
Classificação, identificação, diferenciação, individualização... isso
é a criminalística em essência.
Mas havia mais no sangue do que a possibilidade de ligá-lo a um
indivíduo. O modo como ele caía nas superfícies nas cenas de crimes
proporcionava muitas informações sobre a natureza do ataque. E
Lincoln Rhyme costumava examinar o conteúdo do sangue para
determinar o que ele podia dizer sobre o indivíduo que o havia
derramado.
— Vejamos se nossa mulher ferida tinha vício em droga ou se
estava tomando algum remédio raro. Ligue para o Departamento de
Perícia Médica e mande que façam um exame completo. Quero saber
tudo que havia na corrente sanguínea dela.
Enquanto Cooper falava com o departamento, o telefone de
Selli o tocou e ele atendeu.
Rhyme pôde ver no rosto do detetive que ele estava recebendo
más notícias.
Ah, meu Deus... ah, não...
O criminalista sentiu uma fibrilação estranha no centro do corpo
uma área onde, segundo todos os direitos, ele não deveria sentir
nada. As pessoas paralisadas costumam sentir dor fantasma em
membros e partes do corpo que não podem ter sensação nenhuma.
Rhyme não somente experimentava essa sensação, mas também
sentia choque e jorros de adrenalina, quando sua mente lógica sabia
que isso era impossível.
O que foi, Lon — perguntou Sachs.
— Quinta Delegacia de novo. Chinatown — disse ele franzindo o
rosto. — Outra morte. Desta vez é definitivamente o Fantasma. Ele
olhou para Rhyme e balançou a cabeça. — Cara, não é bom.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que é desagradável pra caralho, Linc.
Desagradável não era uma palavra que se ouvia com frequência na
boca de um detetive de homicídios do NYPD, especialmente Lon
Selli o, um policial endurecido como poucos.
Ele anotou algumas informações, em seguida desligou o telefone
e olhou para Sachs.
— Prepare-se, policial, você tem uma cena para examinar.

FANTASMORTES

Cena do Crime Easton, Long Island

• Dois imigrantes mortos na praia, com tiros nas costas.


• Um imigrante ferido — Dr. John Sung.
• ”Bangshou” (assistente) a bordo; identidade desconhecida.
• Dez imigrantes escapam: sete adultos (um idoso, uma mulher
ferida), duas crianças, um bebê. Roubam furgão da igreja.
• Amostras de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Mulher ferida é AB negativo. Requisitando mais informações
sobre seu sangue.
• Veículo esperando o Fantasma na praia partiu sem ele. Um tiro
supostamente dado pelo Fantasma contra o veículo. Providenciado
pedido de marca e modelo do veículo, baseado em marcas de pneus
e distância entre eixos.
• Veículo é um BMW X5. Verificando proprietários registrados.
• Nenhum veículo para pegar os imigrantes foi localizado.
• Celular, presumivelmente do Fantasma, mandado para análise
no FBI.
• Telefone por satélite impossível de ser rastreado. Penetrou no
sistema chinês para ser usado.

Furgão Roubado, Chinatown

• Camuflado por imigrantes com o logotipo ”A Loja do Lar”.


• Mancha de sangue sugere que mulher tem ferimento no braço
ou no ombro.
• Amostras de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Mulher ferida é AB negativo. Requisitando mais informações
sobre seu sangue.
• Digitais mandadas ao AFIS.
• Nenhuma identificação.
• Arma do Fantasma é uma pistola 7.62. Cartuchos incomuns.
• Pistola automática chinesa Modelo 51.
• O Fantasma pode ter gente do governo em sua folha de
pagamentos.
• O Fantasma roubou um sedã Honda vermelho para fugir.
Providenciado pedido de localização do veículo.
• Três corpos recuperados no mar — dois mortos a tiros, um
afogado. Fotos e impressões mandadas a Rhyme e à polícia chinesa.
• Digitais mandadas ao AFIS.
• Nenhuma identificação em nenhum ponto, mas marcas
incomuns nos dedos de Sam Chang (ferimento, queimadura de
corda?)
• Perfil dos imigrantes: Sam Chang, Wu Qichen e suas famílias,
John Sung, bebê de mulher afogada, homem e mulher não
identificados (mortos na praia).
Capítulo 18
Amelia Sachs tinha deixado o Camaro na rua perto da casa de
Rhyme e estava dirigindo um ônibus de cena do crime para o sul da
cidade, pela FDR Drive.
O veículo era propriedade funcional do município — um furgão
Ford —, mas ela o dirigia como se estivesse ao volante de seu
espalhafatoso carro esporte amarelo. Eram 2h45 da tarde, antes da
hora do rush, mas as ruas já estavam apinhadas e manobrar no
tráfego exigia toda a sua habilidade.
— Ei, Hongse — começou Sonny Li nervosamente enquanto ela
cantava pneus passando por um táxi a 110 por hora. Mas
aparentemente ela preferia manter a atenção na rua, e ficou quieta.
No banco de trás estavam Eddie Deng, que não estava
preocupado com o modo dela dirigir, e o agente Allan Coe, que,
como o policial chinês, claramente estava. Ele agarrou a tira do peito
do seu cinto de segurança como se estivesse segurando a corda de
abrir o paraquedas num salto livre.
— Viu aquilo? — perguntou Sachs casualmente quando um táxi
ignorou a sirene e a luz no ônibus de cena do crime e virou
diretamente na frente dela para sair na Houston Street.
— Nós indo rápido de verdade — disse Li, mas pareceu lembrar
que não queria distraí-la e parou de falar de novo.
— Para que lado, Eddie? — perguntou Sachs.
— Na Bowery vire à esquerda, mais dois quarteirões e vire à
direita.
Ela entrou a oitenta por hora na Canal Street escorregadia por
causa da chuva, controlou a derrapagem antes que batessem num
caminhão de lixo e acelerou entrando em Chinatown cantando os
pneus, levados pelo grande motor da polícia e soltando fumaça nas
quatro rodas.
Li murmurou alguma coisa em chinês.
— O quê?
— Dez juízes do inferno — traduziu ele.
Sachs lembrou — os dez juízes do inferno que mantinham o livro
chamado O Registro de Vivos e Mortos com o nome de todas as
pessoas do mundo. O balancete da vida e da morte.
Meu pai, Herman, pensou ela, já está inscrito no lado dos mortos.
Onde é que meu nome está no registro?, pensou.
E os nomes das pessoas de quem estou perto? Das pessoas que ainda vão
nascer?
Pensando na vida e na morte...
Ah, Srta. Sachs. Aqui está você.
Alô, doutor.
Acabei de falar com o médico de Lincoln Rhyme.
Sim?
Preciso conversar com você sobre uma coisa.
Pelo jeito parece má notícia, doutor.
— Hmm, policial. — Deng interrompeu seus pensamentos. —
Acho que há um sinal vermelho à frente.
— Saquei — disse ela, e reduziu para cinquenta por hora para
atravessar o cruzamento.
— Gan — sussurrou Li. Depois disse o que Sachs achou que era a
tradução: — Porra.
Três minutos depois o ônibus de cena do crime parou cantando
pneus na frente de um beco rodeado por uma pequena multidão de
espectadores, mantidos a distância por uma teia de fitas amarelas da
polícia e meia dúzia de policiais uniformizados da divisão de
patrulha. A porta da frente do que parecia um pequeno armazém
estava aberta. Sachs saiu, seguida por Deng, que gritou para um
louro de terno: — Ei, detetive! — O sujeito assentiu e Deng
apresentou Sachs a um detetive de homicídios da Quinta Delegacia.
— Vocês vão cuidar da cena? — perguntou ele. Sachs assentiu.
— O que é este lugar?
— Um armazém. O dono parece estar limpo. Nós o contatamos e
ele não sabia de nada, a não ser que a vítima — o nome dele era Jerry
Tang — trabalhava aqui. Teve oito prisões, duas condenações. Na
maior parte das vezes ele roubava carros e dirigia para fugas. Faz...
— fazia — trabalho de capanga.
Ele assentiu na direção do 4x4 BMW prateado no beco. Um X5.
Esse era o veículo que Tang tinha usado para ir a Long Island pegar
o Fantasma de manhã cedo. Havia um buraco de bala na porta de
trás: o tiro dado pelo Fantasma quando Tang fugiu deixando-o lá.
Um patrulheiro que reagiu a alguns gritos tinha notado um 4x4
BMW de último tipo perto do prédio de onde viera o barulho.
Depois viu o buraco de bala atrás e, com seu parceiro, entrou no
armazém.
E achou o que restava de Jerry Tang. Ele fora torturado com uma
faca ou navalha — a pele havia sumido, inclusive das pálpebras — e
depois morto,
Rhyme, ela sabia, odiava ser suplantado por outros policiais
quase tanto quanto odiava ser suplantado por bandidos, e quando
ficou claro que Sonny Li, o detetive chinês, estava certo — a primeira
missão do Fantasma foi matar o homem que o havia abandonado —,
o humor do criminalista ficou ainda mais sombrio. Também não
ajudou, claro, o fato de Li ter dito: ”Você deveria ter me escutado,
Loaban. Deveria ter escutado.”
— Temos dois policiais procurando testemunhas — disse o
detetive da 5a DP. — Ah, estão chegando.
Sachs assentiu para dois detetives com quem já havia trabalhado
antes. Bedding e Saul não eram mais necessários para procurar
donos de BMWs X5 e estavam de volta à tarefa usual: entrevistas
pós-crime, ”trabalho de escavação”, como era chamado. Eram
conhecidos pela habilidade consumada em abordar as testemunhas
em dupla. Apesar da diferença de altura, compleição e pele (um
tinha sardas), o cabelo cor de areia idêntico e a postura resultou no
apelido: os Gêmeos. Também eram conhecidos como os Garotos
Audazes.
— Chegamos aqui vinte minutos depois do primeiro avistamento
— disse Bedding ou Saul O alto.
— Foi uma adolescente que ia do grupo de teatro na escola para
casa. Ouviu um grito no prédio. Mas só informou depois de chegar
em casa. Ela estava...
— ... com medo, você sabe. Não podemos culpá-la, considerando
o que os policiais encontraram lá dentro. Eu também ficaria.
— Com medo, ele quer dizer. Sangue em toda parte. E pedaços
do corpo.
Sachs franziu o rosto, mas não por causa da situação nojenta; só
porque estava levantando os joelhos para vestir a roupa de Tyvek
branco, de usar na cena do crime, e suas juntas artríticas protestaram
dolorosamente.
— Falamos com umas oito pessoas no prédio... — disse Bedding
ou Saul.
— ... e ao redor. Esse é um caso de surdos e mudos ainda maior
do que o normal.
— E, e a maioria das pessoas aqui também é cega.
— Nós achamos que eles ouviram dizer que foi o Fantasma quem
fez o trabalho em Tang, e isso apavorou todo mundo. Ninguém vai
ajudar. O máximo que alguém vai dizer é que duas ou...
— ... três ou quatro...
— ... pessoas, presumivelmente homens, chutaram a porta do
armazém.
— E houve muitos gritos durante dez minutos. Depois dois tiros.
Depois tudo ficou quieto.
— A mãe da garota ligou para o nove-um-um.
Mas não havia mais ninguém quando a patrulha chegou aqui.
Sachs olhou para os dois lados do beco e para a rua diante do
armazém. Como temia, a chuva tinha destruído qualquer esperança
de achar marcas de pneus de qualquer tipo de carro que o Fantasma
e seus ajudantes estivessem usando.
— Quem esteve lá dentro? — perguntou ao detetive louro da
Quinta Delegacia.
— Só um policial uniformizado, para ver se a vítima estava viva.
Nós ouvimos dizer que você queria o lugar virgem, por isso nem
deixamos o médico-legista entrar.
— Bom — disse ela. — Quero falar com o patrulheiro que entrou.
— Vou procurar.
Um instante depois ele voltou com uma patrulheira
uniformizada.
— Eu fui a primeira. Queria me ver?
— Só o seu sapato.
— Bem, tudo certo. — A mulher tirou-o e entregou a Sachs, que
tirou uma foto das marcas da sola e anotou o tamanho, para poder
diferenciá-lo das marcas deixadas pelo Fantasma e seus cúmplices.
Em seguida pôs tiras de elásticos nos sapatos para identificar
suas próprias pegadas. Erguendo os olhos, notou Sonny Li parado
na porta do armazém.
— Com licença — disse ela, irritada —, poderia ficar para trás?
— Claro, claro, Hongse. Aquele salão. Cara, tem muito pra olhar.
Mas você conhece Confúcio, certo?
— Na verdade, não — disse ela concentrando-se na cena.
— Ele escreve: ”Longa jornada começa com primeiro passo.” Eu
acho ele escreve isso. Talvez outra pessoa. Eu leio mais Mickey
Spillane do que Confúcio.
— Poderia esperar ali, policial Li?
— Me chame de Sonny, estou dizendo.
Ele ficou de lado e Sachs entrou no armazém. O fone de ouvido
com microfone foi ligado e ela ligou também o rádio Motorola.
— Cena do crime Cinco Oito Oito para Central. Preciso de
conexão com uma linha telefônica, câmbio?
— Entendido, Cinco Oito Oito. Qual é o número, câmbio? Ela
deu a eles o telefone de Lincoln Rhyme e um instante depois ouviu a
voz dele.
— Sachs, onde você está? Já na cena? Temos de andar com isso.
Como sempre — e inexplicavelmente — sua impaciência irritada
tranquilizou-a. Ela examinou a carnificina.
— Meu Deus, Rhyme, isto aqui está uma bagunça.
— Diga. Dê-me a planta baixa primeiro.
— Armazém e escritório combinados. Nove por nove, mais ou
menos, área de escritório de aproximadamente três por seis.
Algumas mesas e...
— Algumas? Duas ou dezoito?
Rhyme pegava pesado com qualquer um que fizesse observações
preguiçosas.
— Desculpe. Quatro mesas de metal, oito cadeiras, não, nove.
Uma está virada.
A cadeira à qual Tang estivera amarrado quando o Fantasma o
torturou e matou.
— Fileiras de estantes de metal cheias de caixas de papelão, com
comida dentro. Comida enlatada e pacotes de celofane. Suprimento
para restaurantes.
— Certo, Thom está preparado para começar a escrever. Você
está preparado, não está, Thom? Escreva em letras grandes, para eu
ver. Essas palavras aí, não estou entendendo. Faça de novo... Certo,
certo... Por favor, faça de novo. — Em seguida disse: — Comece com
a grade, Sachs.
Ela começou a examinar a cena, pensando: um primeiro passo... a
jornada mais longa.
Mas vinte minutos de busca dando um passo de cada vez não
revelaram praticamente nada de útil. Ela achou dois cartuchos de
balas, que pareciam iguais aos da arma do Fantasma na praia. Mas
não havia nada que os levasse diretamente ao lugar onde ele poderia
estar escondido em Nova York. Nem cigarros, nem caixas de
fósforos, nem digitais — os agressores tinham usado luvas de couro.
Examinou o teto e sentiu o cheiro do local — duas importantes
diretrizes de Rhyme para os investigadores de cenas de crime — sem
no entanto detectar nada que pudesse ajudar. Sachs pulou quando a
voz de Rhyme estalou em seu ouvido.
— Fale comigo, Sachs. Não gosto quando fica quieta.
— Este lugar está uma bagunça — repetiu ela.
— Você já disse isso. Uma. Bagunça. Isso não nos diz muito, diz?
Dê os detalhes.
— Foi tudo revirado, gavetas abertas, cartazes arrancados das
paredes, mesas limpas; estátuas, bibelôs, aquário, xícaras e copos
despedaçados.
— Numa luta?
— Não creio.
— Roubo de alguma coisa específica?
— Talvez, mas eu diria que é principalmente vandalismo.
— Como são as marcas dos sapatos deles?
— Todas lisas.
— Sacanas estilosos — murmurou ele.
Rhyme estava esperando que houvesse alguma terra ou fibras
que pudessem levá-los ao esconderijo do Fantasma, mas, enquanto
as reentrâncias das solas de borracha podem reter esse tipo de
evidência durante meses, as solas lisas perdem traços muito mais
rapidamente.
— Certo, Sachs, continue. O que as pegadas dizem?
— Estou pensando que...
— Não pense, Sachs. Esse não é o modo de se entender uma cena
de crime. Você sabe disso. Você precisa senti-la.
A voz sedutora e grave era hipnotizante, e a cada palavra que ele
falava ela se sentia sendo transportada de modo inquietante para o
crime em si, como se estivesse participando. As palmas das suas
mãos começaram a suar copiosamente nas luvas de látex.
— Ele está ali. Jerry Tang está atrás da mesa dele e eles...
— Nós — corrigiu Rhyme, sério. — Você é o Fantasma, lembre-
se.
— ... nós chutamos a porta e entramos. Ele se levanta e corre para
a porta dos fundos, mas nós o pegamos e arrastamos de volta à
cadeira.
— Vamos reduzir isso, Sachs. Você é o cabeça de cobra. Achou o
homem que o traiu. O que você vai fazer?
— Vou matá-lo.
Eu vi corvo na estrada bicando comida. Outro corvo tentou
roubar e primeiro corvo não só espantou o outro; ele perseguiu e
tentou bicar olhos.
De repente ela estava cheia de uma raiva desfocada. Que quase
tirou seu fôlego.
— Não, espere, Rhyme. É como se a morte dele fosse secundária.
O que eu realmente quero é machucá-lo. Eu fui traído e quero
machucá-lo muito.
— O que você faz? Exatamente.
Ela hesitou, suando na roupa quente. Vários lugares de seu corpo
coçavam ao mesmo tempo. Sentiu uma vontade de rasgar um buraco
na roupa e coçar a pele.
— Eu não posso...
— ”Eu”, Sachs. Quem é ”eu”? Você é o Fantasma, lembra? Mas
solidamente em sua própria pessoa, pensou ela.
— Estou tendo problemas dessa vez, Rhyme. Há alguma coisa
nele, no Fantasma. Ele está muito do outro lado. — Ela hesitou. A
sensação é muito ruim lá.
Um lugar onde famílias morrem, onde crianças são presas em
depósitos de navios naufragando, onde homens e mulheres levam
tiros nas costas lutando pelo único abrigo que podem encontrar: um
oceano sem coração e frio. Um lugar onde morrem sem motivo além
de serem coisas irritantes e incômodas.
Sachs olhou para os olhos eternamente abertos de Jerry Tang.
— Vá lá, Sachs — murmurou Rhyme. — Continue. Eu trago você
de volta. Não se preocupe.
Ela desejou ser capaz de acreditar.
— Você encontrou quem o traiu — continuou o criminalista. Está
furioso com ele. O que faz?
— Os outros três homens que estão comigo amarram Tang numa
cadeira e nós usamos facas ou navalhas nele. Ele está aterrorizado,
gritando... Nós estamos demorando quanto queremos. A minha
volta há pedaços de carne. O que parece parte de uma orelha, tiras
de pele. Cortamos as pálpebras dele... — Ela hesitou. — Mas não
estou vendo nenhuma pista, Rhyme. Nada que nos ajude.
— Mas existem pistas, Sachs. Você sabe que existem. Lembre-se
de Locard.
Edmond Locard era um antigo criminalista francês que declarou
que em cada local de crime há troca de provas entre a vítima e o
criminoso, ou entre o local em si e o criminoso. Pode ser difícil
identificar as provas que está sendo trocada, e mais difícil ainda ligá-
la à sua fonte, mas, como Rhyme dissera dezenas de vezes, um
criminalista deve ignorar as aparentes impossibilidades do serviço.
— Continue indo, mais, mais... Você é o Fantasma. Está
segurando sua faca ou navalha.
Então, subitamente, a raiva fantasmagórica que ela estava
sentindo desapareceu, substituída por uma serenidade etérea. Essa
sensação chocante, mas estranhamente magnética, preencheu-a.
Respirando com força, suando, ela olhou para Jerry Tang e foi
possuída totalmente pelo espírito maligno de Kwan Ang, Gui, o
Fantasma. Ela sentia o que ele tinha experimentado — uma
satisfação visceral ao ver a dor e a morte lenta do traidor.
Boquiaberta, percebeu que sentia um desejo profundo de ver
mais, de ouvir os gritos de Tang, de ver seu sangue descer
espiralando pelos membros trêmulos.
E com esse pensamento veio outro: — Não...
— O que, Sachs?
— Não sou eu quem está torturando Tang.
— Não é você?
— Não. Eu quero que os outros façam. Para poder olhar. É mais
satisfatório assim. É como um vídeo pornô. Eu quero ver tudo, ouvir
tudo. Não quero deixar escapar um único detalhe. E mandei que eles
cortassem as pálpebras primeiro, de modo que Tang tem que me ver
olhando-o. — Ela sussurrou: — Eu quero que a coisa continue e
continue.
Um sussurro.
— Ah, bom, Sachs. E isso significa que há um lugar de onde você
está olhando?
— Sim. Há uma cadeira aqui, de frente para Tang, mas a uns três
metros do corpo. — A voz dela falhou. — Eu estou olhando —
sussurrou. — Estou gostando. — Ela engoliu em seco e sentiu o suor
escorrendo do couro cabeludo. — Os gritos duraram cinco, dez
minutos. Estou sentado diante dele esse tempo todo, desfrutando
cada grito, cada gota de sangue, cada pedaço cortado. — A
respiração dela estava rápida.
— Como você está, Sachs?
— Tudo bem.
Mas não estava bem. Estava numa armadilha — naquele lugar
onde não queria estar. De repente tudo de bom em sua vida foi
negado e ela escorregou ainda mais para o âmago do mundo do
Fantasma.
Pelo jeito parece má notícia...
Suas mãos tremiam. Ela estava desesperada e só.
Pelo jeito parece má...
Pare com isso!, disse a si mesma.
— Sachs? — perguntou Rhyme.
— Eu estou bem.
Pare de pensar nisso, pare de pensar nos pedaços de carne meio
enrolados, nas manchas de sangue... Pare de pensar em como você está
gostando da dor dele.
Então notou que o criminalista não estava dizendo nada.
— Rhyme?
Sem resposta.
— Você está bem? — perguntou ela.
— Na verdade, não — respondeu ele finalmente.
— O que é?
— Não sei... De que nos serve saber onde ele estava sentado? Ele
estava usando aquelas porras de sapatos de sola lisa. É o único lugar
onde nós sabemos que o Fantasma passou algum tempo, mas que
tipo de indício existe?
Ainda se sentindo nauseada, manchada pelo espírito do
Fantasma dentro dela, Sachs olhou para a cadeira. Mas desviou o
olhar, incapaz de manter a concentração.
Desencorajado, com raiva, ele continuou: — Eu não consigo
pensar.
— Eu...
— Tem de haver alguma coisa — prosseguiu ele. Ela ouviu
frustração na voz, e achou que Rhyme desejava poder vir aqui e
andar ele mesmo pela grade.
— Não sei — disse ela, com a voz fraca.
Olhou para a cadeira, mas viu, na mente, a faca subindo e
descendo pela carne de Jerry Tang.
— Diabo — disse Rhyme —, eu também não sei. A cadeira está
em pé?
— A cadeira em que o Fantasma se sentou para olhar? Sim.
— Mas o que nós fazemos com esse fato? — A voz dele estava
frustrada.
Bom, isso não era o estilo dele. Lincoln Rhyme tinha opiniões
sobre tudo. E por que estava parecendo que havia fracassado? O tom
de voz a alarmou. Será que ele ainda estava pensando no papel que
havia representado na morte dos imigrantes e da tripulação do Fujou
Dragonl Sachs se concentrou de novo na cadeira, que estava coberta
com restos do vandalismo. Examinou-a cuidadosamente.
— Tenho uma ideia. Espere aí. — Ela chegou mais perto da
cadeira e olhou debaixo. Seu coração martelou de empolgação. — Há
marcas de movimento aqui, Rhyme. O Fantasma se sentou e se
inclinou para a frente — para ver melhor. Cruzou os pés embaixo da
cadeira.
— E?
— Isso significa que qualquer coisa que pudesse haver na costura
entre o couro e a sola pode ter caído. Vou passar o aspirador de pó
embaixo da cadeira. Se tivermos sorte podemos achar alguma coisa
que nos leve até a porta dele.
— Excelente, Sachs. Pegue o aspirador.
Empolgada com essa descoberta, ela foi pegar o kit da cena do
crime perto da porta para pegar o aspirador. Mas então parou. Deu
um riso débil.
— Você me pegou, Rhyme.
— Fiz o quê?
— Não banque o inocente. — Agora ela percebeu que ele sabia
que haveria alguma coisa sob a cadeira desde o momento em que
Sachs tinha deduzido que o Fantasma ficara sentado olhando a
carnificina. Mas Rhyme havia reconhecido que ela continuava
perdida no mundo terrível do Fantasma e ele precisava levá-la a um
lugar melhor — o porto seguro do trabalho que os dois faziam
juntos. Tinha fingido estar frustrado para atrair a atenção dela de
volta e retirá-la da escuridão.
Era uma representação equivocada, supôs, mas é nessas fintas
que o amor é encontrado.
— Obrigada.
— Eu prometi trazer você de volta. Agora vá aspirar um pouco.
Sachs aspirou o chão embaixo e em volta da cadeira, depois tirou
o filtro do aspirador portátil e colocou num saco plástico para
provas.
— O que acontece em seguida? — perguntou Rhyme.
Ela avaliou o ângulo da queda do sangue das balas que mataram
Tang.
— Parece que quando Tang finalmente desmaiou de dor o
Fantasma se levantou e o matou. Depois saiu e os ajudantes fizeram
um quebra-quebra no lugar.
— Como sabe que as coisas aconteceram nessa ordem?
— Porque havia entulho cobrindo um dos cartuchos de bala. E
havia vidro quebrado e pedaços de um cartaz rasgado na cadeira
onde o Fantasma esteve sentado.
— Bom.
— Vou tirar marcas eletrostáticas dos sapatos.
— Não me diga, Sachs — murmurou Rhyme, sendo Rhyme de
novo. — Só faça.
Ela saiu e voltou com o equipamento. Nesse processo, uma folha
de plástico é posta sobre uma pegada de sapato e uma carga elétrica
é enviada através da folha. O resultado é uma imagem, como uma
cópia xerox em plástico, de uma pegada.
Foi quando estava se agachando, de costas para o armazém
escuro, que sentiu o cheiro da fumaça de cigarro. Ah, Jesus, pensou
subitamente — um dos assassinos estava de volta, talvez apontando
a arma contra a radiante roupa branca.
Talvez o próprio Fantasma...
Não, percebeu, era o bangshou desaparecido!
Sachs largou o equipamento eletrostático ruidosamente e girou,
caindo de costas no chão, com a Glock 40 na mão. A mira estava
apontada diretamente para o peito do intruso.
— Que porra está fazendo aqui? — gritou em fúria, em agonia
pela queda dolorosa.
Sonny Li, fumando um cigarro, estava andando pelo escritório,
olhando em volta.
— O que eu fazendo? Eu investiga também.
— O que está acontecendo, Sachs? — perguntou Rhyme.
— Li está no perímetro. Está fumando.
— O quê? Tire ele daí, droga.
— Eu estou tentando. — Ela se levantou sentindo dor e foi
tempestuosamente até o policial chinês. — Você está contaminando
a cena.
— Um pouco de fumaça. Vocês americanos se preocupam
muito...
— E os traços de substâncias nos seus sapatos, nas roupas, as
suas pegadas... Você está arruinando a cena!
— Não, não, eu investiga.
— Tire-o daí, Sachs! — gritou Rhyme.
Ela o pegou pelo braço e o levou à porta. Gritou para Deng e Coe.
— Mantenham-no aí fora.
— Desculpe, policial — disse Eddie Deng. — Ele disse que ia
ajudá-la a examinar a cena.
— Eu está fazendo — disse Li, perplexo. — Qual é problema?
— Mantenham-no aí. Algemem se for necessário.
— Ei, Hongse, você mal-humorada. Sabia?
Ela voltou furiosa para a cena e terminou de recolher a pegada.
— Eddie Deng está aí? — perguntou Rhyme.
— Está lá fora.
— Eu sei que a empresa é supostamente limpa, mas mesmo
assim mande-o examinar os arquivos; presumo que sejam em chinês.
Veja se ele pode achar alguma coisa sobre o Fantasma ou
contrabando, outros cabeças de cobra. Qualquer coisa útil.
Do lado de fora, ela acenou para Eddie Deng. Ele tirou um fone
telefônico do ouvido e se juntou a ela. Sachs repassou o pedido de
Rhyme e, enquanto as unidades de Foto e Identificação ocupavam o
lugar de Sachs, Deng mergulhou nos arquivos e armários. Depois de
meia hora de trabalho diligente disse a ela: — Nada útil. É tudo
sobre suprimentos para restaurantes. Ela contou isso a Rhyme e
acrescentou: — Tenho tudo aqui. Volto em vinte minutos.
Eles se desconectaram.
Massageando a coluna dolorida, ela refletiu: e quanto ao bangshou
do Fantasma? Ele estaria na cidade? Seria realmente uma ameaça
para eles?
Vigie suas costas...
Estava perto da porta quando seu celular tocou. Atendeu e ficou
surpresa, e satisfeita, ao ouvir John Sung se identificar.
— Como vai? — perguntou ela.
— Ótimo. O ferimento coça um pouco. — Depois acrescentou: —
Eu queria dizer: estou com algumas ervas para a sua artrite. Há um
restaurante embaixo do meu prédio. Poderia me encontrar lá?
Sachs olhou o relógio. Que mal poderia fazer? Ela não demoraria
muito. Entregando as evidências a Deng e Coe, disse que tinha de
fazer uma parada e que estaria na casa de Rhyme em meia hora. Eles
e Sonny Li pegaram carona com outro policial. Li parecia aliviado
por não ir com ela.
Sachs saiu da roupa de Tyvek e guardou-a no ônibus de cena do
crime.
Enquanto se sentava atrás do volante, olhou para o armazém
onde podia ver claramente o corpo de Jerry Tang, seus olhos abertos
olhando para o teto.
Outro cadáver nas mãos do Fantasma. Outro nome transferido
de uma coluna para outra do Registro dos Vivos e Mortos.
Chega, pensou para os dez juízes do inferno. Por favor, chega.
Capítulo 19
Levando cuidadosamente o ônibus de cena do crime pelas ruas
estreitas de Chinatown, Amelia Sachs parou num beco perto do
apartamento de John Sung.
Saiu, olhou para um cartaz pintado à mão na floricultura do
térreo do prédio, ao lado do restaurante. PRECISA DE SORTE NA VIDA? —
COMPRE NOSSO BAMBU DA SORTE!
Então notou Sung através da vitrine do restaurante. Ele acenou,
sorrindo.
Lá dentro, ele encolheu o rosto ao se levantar para cumprimentá-
la.
— Não, não — disse Sachs. — Não se levante. Sentou-se de frente
para ele em um reservado grande.
Gostaria de comer um pouco?
— Não. Não posso ficar muito tempo.
— Então chá. — Ele serviu e empurrou a xícara pequena para ela.
O restaurante era escuro mas limpo. Vários homens estavam
sentados em reservados, falando chinês.
— Vocês já o encontraram? — perguntou Sung. — O Fantasma?
Não querendo falar da investigação, ela se conteve e disse apenas
que tinham algumas pistas.
— Não gosto desta incerteza — disse Sung. — Ouço passos no
corredor e congelo. É como estar em Fujou. Alguém anda mais
devagar perto da sua casa e você não sabe se são vizinhos ou agentes
de segurança que o chefe do partido na área mandou para prendê-lo
em casa.
Uma imagem do que tinha acontecido com Jerry Tang veio à
mente de Sachs, e ela espiou pela janela, procurando uma visão
tranquilizadora da radiopatrulha parada do outro lado da rua diante
do prédio, guardando Sung.
— Depois de tudo que saiu na imprensa sobre o Fujou Dragon —
disse ela —, seria de esperar que o Fantasma voltasse para a China.
Ele não sabe quantas pessoas o procuram?
— Quebra os caldeirões... — lembrou Sung.
— ... e afunda os barcos. — Ela assentiu. Depois acrescentou:
Bom, não é só ele que tem esse lema.
Sung avaliou-a por um momento.
— Você é uma mulher forte. Sempre foi agente de segurança?
— Nós chamamos de policiais. Agentes de segurança são
particulares.
— Ah.
— Não. Fui para a academia da polícia depois de já estar
trabalhando há alguns anos. — Ela contou sobre o tempo que passou
como modelo para uma agência da Madison Avenue.
— Você era uma modelo? — Os olhos dele estavam achando
divertido.
— Eu era jovem. Achei interessante experimentar um tempo. Era
mais ideia da minha mãe. Lembro que uma vez eu estava
trabalhando num carro com meu pai. Ele era policial também, mas
seu passatempo eram carros. Nós estávamos montando o motor de
um velho Thunderbird. Um Ford, sabe? Um carro esporte. Conhece?
— Não.
— E eu tinha, sei lá, uns dezenove anos, vinha trabalhando de
free-lance para uma agência de modelos da cidade. Estava debaixo
do carro e ele deixou cair uma chave de boca. Me pegou na
bochecha.
— Argh!
Uma confirmação com a cabeça.
— Mas o grande argh foi quando minha mãe viu o corte. Não sei
com quem ela ficou mais furiosa, comigo, com meu pai ou com o
Ford.
— E sua mãe? — perguntou Sung. — É ela quem toma conta dos
seus filhos quando você vai trabalhar?
Um gole de chá, um olhar firme.
— Não tenho filhos. Ele franziu a testa.
— Você... sinto muito. — A simpatia jorrou em sua voz.
— Não é o fim do mundo — disse ela estoicamente. Sung
balançou a cabeça.
— Claro que não. Eu reagi mal... O Ocidente e o Oriente têm
ideias diversas sobre família.
Não necessariamente, pensou ela, mas não deixaria que ele fosse
mais longe do que isso.
— Na China as crianças são muito importantes — disse Sung.
Claro, nós temos o problema de superpopulação, mas uma das
partes mais odiadas do governo central é a regra de só ter um filho.
Isso só se aplica aos Han — a raça majoritária na China —, de modo
que temos gente em áreas de fronteira dizendo que pertencem a
minorias raciais para ter mais de um filho. Algum dia terei mais.
Vou trazer meus filhos para cá e então, quando conhecer alguém,
terei mais dois ou três.
Sung a encarou enquanto dizia isso, e de novo ela sentiu o
conforto irradiando dos olhos dele. Do sorriso também. Ela não sabia
nada sobre a competência dele como praticante da medicina chinesa,
mas somente seu rosto já fazia muito para acalmar um paciente e
ajudar no processo de cura.
— Você sabe que nossa linguagem se baseia em pictogramas. O
caractere chinês para a palavra ”amor” são pinceladas que
representam uma mãe segurando um filho.
Ela sentiu uma ânsia de contar mais, de dizer que sim, queria
tremendamente ter filhos. Mas de repente sentiu vontade de chorar.
Depois controlou-se rapidamente. Nada disso. Nada de abrir o
berreiro quando se está usando uma das melhores pistolas da
Áustria num dos quadris e uma lata de spray de pimenta no outro.
Percebeu que os dois estavam se olhando em silêncio durante um
tempo. Baixou os olhos, tomou mais chá.
— Você é casada? — perguntou Sung.
— Não. Mas tenho alguém na vida.
— Isso é bom — disse ele, continuando a observá-la. — Sinto que
ele está na mesma linha de trabalho. Por acaso é aquele homem de
quem você me falou? Lincoln...
— Rhyme. — Ela riu. — Você é muito observador.
— Na China os médicos são detetives da alma. — Então Sung se
inclinou para a frente e disse: — Estenda o braço.
— O quê?
— O braço, por favor.
Ela fez isso e ele pôs dois dedos sobre seu pulso.
— O quê?
— Shhh. Estou verificando sua pulsação.
Depois de um momento ele se recostou na cadeira.
— Meu diagnóstico é correto.
— Sobre a artrite?
— A artrite é um mero sintoma. Achamos que é errado limitar-se
à cura dos sintomas. O objetivo da medicina é reequilibrar
harmonias.
— Então o que está desequilibrado?
— Na China nós gostamos de números. As cinco bênçãos, as
cinco feras do sacrifício.
— Os dez juízes do inferno — disse ela. Ele riu.
— Exato. Bem, na medicina temos liuyin, as seis influências
perniciosas. São elas a umidade, o vento, o fogo, o frio, a secura e o
calor de verão. Elas afetam os órgãos do corpo e o qi — o espírito —,
bem como o sangue e a essência. Quando são excessivas ou quando
faltam, criam desarmonia e causam problemas. Umidade demais
deve ser secada. Frio demais deve ser aquecido.
As seis influências perniciosas, refletiu ela. Tente colocar isso
num formulário de plano de saúde.
— Pela sua língua e pela pulsação vejo que você tem umidade
demais no baço. O resultado é artrite, entre outros problemas.
No baço?
— Não é simplesmente seu baço verdadeiro, segundo a medicina
ocidental — disse ele, notando o ceticismo dela. — O baço é mais um
sistema de órgãos.
— Então do que o meu baço precisa?
— Ficar menos úmido — respondeu Sung como se fosse óbvio.
— Eu consegui isto para você. — Ele empurrou um saquinho
para ela. Sachs abriu e achou ervas e plantas secas dentro. — Faça
um chá e tome devagar, durante dois dias. — Depois entregou
também uma caixinha. — Esses são tabletes Qi Ye Lien. Aspirina
herbal. Há instruções em inglês na caixa. A acupuntura também vai
ajudar um bocado. Eu não sou licenciado para praticar acupuntura
aqui e não quero me arriscar a ter problemas antes da audiência no
INS.
— Eu não quereria que você se arriscasse.
— Mas posso fazer massagem. Acho que vocês chamam de
acupressão. É muito eficaz. Eu vou mostrar. Incline-se para mim.
Ponha as mãos no colo.
Sung se inclinou para a frente na mesa, com o macaco de pedra
balançando para longe de seu peito forte. Debaixo da camisa dele
Sachs podia ver os curativos recentes no ferimento do tiro dado pelo
Fantasma. As mãos dele acharam pontos em seus ombros e
apertaram com força durante uns cinco segundos, depois acharam
novos lugares e fizeram o mesmo.
Depois de um minuto assim, ele se sentou de novo.
— Agora levante os braços.
Sachs fez isso, e mesmo que ainda houvesse alguma dornas
juntas, achou que era muito menor do que vinha sentindo
ultimamente. Disse com surpresa: — Funcionou.
— É só temporário. A acupuntura dura muito mais.
— Vou pensar nisso. Obrigada. — Ela olhou o relógio. — Preciso
voltar.
— Espere — disse Sung com ansiedade na voz. — Não terminei
meu diagnóstico. — Ele pegou a mão dela, examinando as unhas
quebradas e a pele machucada. Normalmente Sachs tinha vergonha
desses maus hábitos. Mas não se sentiu nem um pouco embaraçada
com o exame daquele homem. — Na China os médicos olham e
tocam para decidir o que está fazendo mal a um paciente. É vital
saber o estado mental dele; feliz, triste, preocupado, ambicioso,
frustrado. — Ele a encarou atentamente. — Há mais desarmonia
dentro de você. Você quer ter uma coisa que não pode ter. Ou que
acha que não pode ter. É o que está criando esses problemas. — Ele
balançou a cabeça para as unhas dela.
— Que harmonia eu quero?
— Não tenho certeza. Talvez uma família. Amor. Seus pais estão
mortos, eu sinto.
— Meu pai.
— E isso foi difícil para você. — Foi.
— E amantes? Você teve problemas com amantes.
— Eu os amedrontava na escola, era capaz de dirigir mais rápido
do que a maioria deles. — Isso pretendia ser uma piada, mesmo
sendo verdade, mas Sung não riu.
— Continue.
— Quando eu era modelo, os homens que valiam a pena tinham
medo demais de me convidar para sair.
— Por que um homem teria medo de uma mulher? — perguntou
Sung, genuinamente perplexo. — É como o yin ficar com medo do
yang. Dia e noite. Eles não deveriam competir; deveriam se
complementar e realizar um ao outro.
— E os que tinham coragem para me convidar queriam
praticamente só uma coisa.
— Ah, isso.
— É, isso.
— Energia sexual é muito importante, uma das partes mais
importantes do qi, do poder espiritual. Mas só é saudável quando
decorre de um relacionamento harmônico.
Ela riu consigo mesma. Essa era uma expressão para
experimentar no primeiro encontro: você está interessado num
relacionamento harmônico?
Depois de um gole de chá, ela continuou: — Depois morei com
um homem durante um tempo. Na força. — No quê?
— Quer dizer: ele era policial também. Era uma coisa boa,
intensa, desafiadora, acho que sim. Nós nos encontrávamos no stand
de tiros e cada um tentava atirar melhor do que o outro. Só que ele
foi preso. Aceitando propina. Sabe o que eu quero dizer?
— Morei na China a vida inteira — disse Sung rindo — claro que
sei o que é propina. E agora você está com esse homem com quem
trabalha.
— É.
— Talvez esta seja a fonte do problema — disse Sung em voz
baixa, examinando-a com mais atenção ainda.
— Por que diz isso? — perguntou ela, inquieta.
— Eu diria que você é yang; essa palavra significa o lado de uma
montanha onde o sol bate. Yang é claridade, movimento, aumento,
excitação, início, suavidade, primavera e verão, nascimento. Isso é
claramente você. Mas você parece habitar o mundo do yin. Que
significa o lado sombreado da montanha. E movimento para dentro,
escuridão, introspecção, dureza e morte. É o fim das coisas, outono e
inverno. — Ele fez uma pausa. — Acho que talvez a desarmonia seja
que você não está sendo fiel à sua natureza yang. Deixou o yin ir
muito longe em sua vida. Será que esse pode ser o problema?
— Eu... não tenho certeza.
Eu acabei de me reunir com a médica de Lincoln Rhyme.
Sim?
Preciso conversar com você sobre uma coisa.
Seu celular tocou e ela pulou ao ouvir o som. Enquanto pegava o
telefone, percebeu que a mão de Sung ainda estava pousada em seu
braço.
Sung voltou a se recostar no banco do reservado e ela atendeu.
— Alô?
— Policial, onde, diabos, você está? — Era Lon Selli o. Sachs
relutou em dizer, mas olhou a radiopatrulha do outro lado da rua e
teve a sensação de que eles poderiam ter dito ao detetive onde ela se
encontrava. Falou: — Com aquela testemunha, John Sung.
— Por quê?
— Eu só precisava perguntar umas coisas.
Não era mentira, pensou. Não exatamente.
— Bom, termine de perguntar — disse o sujeito, mal-humorado.
— Precisamos de você aqui, na casa de Rhyme. Há evidências a
serem examinadas.
Meu Deus, pensou ela. O que está incomodando esse cara? — Já
estou indo.
— Venha mesmo — disse o detetive rispidamente. Perplexa com
a atitude dele, Amelia desligou e disse a Sung: — Tenho de ir.
Com uma expressão esperançosa no rosto, o médico perguntou:
— Vocês acharam Sam Chang e os outros do navio?
— Ainda não.
Enquanto se levantava, ele a espantou dizendo rapidamente: —
Eu me sentiria honrado se você viesse me ver de novo. Eu poderia
continuar o tratamento. — Sung empurrou o saquinho de ervas e os
comprimidos para ela.
Sachs hesitou um momento antes de dizer.
— Claro. Eu gostaria disso.
Capítulo 20
— Espero não ter interrompido nada importante, policial — disse
Lon Selli o, carrancudo, quando ela entrou na sala de estar de
Rhyme.
Sachs começou a perguntar o que o detetive queria dizer, mas o
próprio criminalista começou a farejar o ar. Sachs reagiu com um
olhar interrogativo.
— Lembra do meu manual, Sachs? ”Gente que trabalha em cena
de crime nunca deve usar perfume, porque...”
— ”... os odores não peculiares à cena podem ajudar a identificar
indivíduos que estiveram presentes lá.”
— Bom.
— Mas não é perfume, Rhyme.
— Incenso, talvez?
— Encontrei John Sung num restaurante no prédio dele. Havia
incenso queimando.
— Fede — concluiu Rhyme.
— Não, não — disse Sonny Li. — Pacífico, muito pacífico. Não,
fede, pensou Rhyme, petulante. Olhou para o saquinho que ela
segurava e franziu o nariz.
— E o que é isso
— Remédio. Para a minha artrite.
— Fede ainda mais do que o incenso. O que vai fazer com isso —
Um chá.
— Provavelmente tem um gosto tão ruim que você vai esquecer a
dor nas juntas. Espero que goste. Eu continuo com o uísque. — Ele
examinou-a atentamente durante um momento. — Gostou da visita
ao Dr. Sung, Sachs?
— Eu... — começou ela, inquieta, perturbada com o tom de voz
irritado dele.
— Como ele está? — perguntou Rhyme, jovialmente.
— Melhor.
— Falou muito sobre a casa dele na China? Para onde ele viaja?
Com quem passa o tempo?
— Aonde você quer chegar? — perguntou ela cautelosamente.
— Só estou curioso para saber se o que me ocorreu também
ocorreu a você.
— E o que é?
— Que Sung era o bangshou do Fantasma. O ajudante dele. O
coconspirador.
— O quê? — perguntou ela, sem fôlego.
— Aparentemente não lhe ocorreu.
— Mas não há como. Passei algum tempo falando com ele. Ele
não pode ter nenhuma conexão com o Fantasma. Quer dizer...
— Na verdade — interrompeu Rhyme —, não tem. Nós
acabamos de receber um relatório do escritório do FBI em
Cingapura. O bangshou do Fantasma no Dragon era Victor Au. As
digitais e a foto combinam com um dos três corpos que a Guarda
Costeira achou hoje de manhã no local do naufrágio. — Ele assentiu
na direção do computador.
Sachs olhou a foto na tela de Rhyme e em seguida o quadro
branco onde estavam grudadas as fotos dos corpos tiradas pela
Guarda Costeira. Au era um dos que tinham se afogado, e não levou
tiro.
— Sung está limpo — disse Rhyme falando sério. — Mas nós não
sabíamos disso até há dez minutos. Eu lhe disse para ter cuidado,
Sachs. E você simplesmente foi bater papo com Sung. Não se
descuide. — A voz dele se elevou dizendo: — E isso serve para todo
mundo!
Procure bem, mas vigie suas costas.
Desculpe — murmurou ela.
O que a estava distraindo?, pensou Rhyme de novo. Mas só disse:
— De volta ao trabalho, meninos e meninas.
Virou-se para as pegadas eletrostáticas da cena do crime de Tang,
que Thom havia colado no quadro de provas. Não havia muito que
pudessem dizer, a não ser que as pegadas do Fantasma, ainda que
de um sapato tamanho mediano, mais ou menos 41 eram maiores do
que as três pegadas dos seus cúmplices.
— Bom, e quanto aos traços de substâncias dos sapatos do
Fantasma, Mel?
— Certo, Lincoln — disse o técnico lentamente, olhando por cima
da tela do cromatógrafo. — Temos alguma coisa aqui. Limalha de
ferro oxidado muito antiga, velhas fibras de madeira, cinza e silício
— parece pó de vidro. E a principal substância é um mineral escuro,
de pouco brilho, em grande concentração — montmorilonita e oxido
alcalino também.
Certo, pensou Rhyme. De onde isso tinha vindo, diabo? Assentiu
lentamente e depois fechou os olhos e começou, figurativamente, a
andar de um lado para o outro.
Quando era chefe da DRI — a Divisão de Recursos de
Investigação do NYPD, a unidade forense —, Rhyme andava por
toda parte de Nova York. Levava saquinhos e frascos nos bolsos para
pegar amostras de solo, concreto, poeira e vegetação que
acrescentava ao seu conhecimento da cidade. Um criminalista
precisa conhecer seu território de mil modos diferentes: como
sociólogo, cartógrafo, geólogo, engenheiro, botânico, zoólogo,
historiador.
Percebeu que havia alguma coisa familiar nas substâncias que
Cooper estava descrevendo. Mas o quê?
Espere, há uma ideia aí. Segure-a.
Droga, escorregou para longe.
— Ei, Loaban? — chamou uma voz, mas a distância. Rhyme
ignorou Li e continuou andando atentamente, depois voou para os
vários bairros da cidade. — Ele está...?
— Shhh — disse Sachs com firmeza. Livrando-o para continuar a
jornada.
Pairou por cima da torre da Universidade de Columbia, sobre o
Central Park com sua argila, seu calcário e os excrementos de
animais, pelas ruas de Midtown cobertas de resíduos de toneladas
de fuligem que caíam diariamente, pelas bacias fluviais com sua
mistura peculiar de gasolina, propano e óleo diesel, pelas partes
decadentes do Bronx com tinta à base de chumbo e reboco antigo
misturado com serragem...
Voando, voando...
Até chegar a um lugar.
Seus olhos se abriram.
— Na área sul de Manha an — falou. — O Fantasma está na área
sul de Manha an.
— Claro. — Allan Coe deu de ombros. — Em Chinatown.
— Não, não em Chinatown — rebateu Rhyme. — No Ba ery
Park City ou num dos conjuntos habitacionais por lá.
— Como deduziu isso? — perguntou Selli o.
— Aquela montmorilonita, sabe? É bentonita. E uma argila usada
como massa para manter as fundações sem água quando as equipes
de construção escavam alicerces fundos. Quando construíram o
World Trade Center as fundações chegaram a dezoito metros no
leito de rocha. O construtor usou milhões de toneladas de bentonita.
Está em todo lugar por lá.
— Mas eles usam bentonita em muitos lugares — observou
Cooper.
— Claro, mas os outros materiais que Sachs achou também estão
lá. Toda aquela área é de aterro, e está cheia de metal enferrujado e
restos de vidro. E as cinzas? Para tirar os velhos píeres os
construtores os queimaram.
— E fica a apenas vinte minutos de Chinatown — observou
Deng. Thom escreveu isso na tabela de evidências.
Mesmo assim era uma área gigantesca e continha muitos prédios
com alta densidade populacional: hotéis, prédios residenciais e
escritórios. Eles precisariam de mais informações para estreitar a
área de busca até o lugar onde o Fantasma poderia estar.
Sonny Li estava andando de um lado para o outro, na frente do
quadro.
— Ei, Loaban, eu tem umas ideias também.
— Sobre o quê? — rosnou Rhyme. O cara fedia a cigarro. Rhyme
nunca tinha fumado, mas sentiu um jorro gigantesco de inveja; por
aquele sujeito poder exercer todos os vícios sozinho, sem um
conspirador para ajudá-lo.
É melhor que a porra dessa cirurgia ajude alguma coisa, pensou.
— Ei, Loaban, está ouvindo?
— Vá em frente, Sonny — disse Rhyme, distraído.
— Eu estive na cena do crime também.
— É, — disse Sachs dando um olhar exasperado. — Andando,
fumando.
— Veja bem — explicou Rhyme tentando ser paciente mesmo
contra sua natureza —, qualquer coisa que entre na cena do crime
depois do criminoso pode contaminá-la. Isso torna mais difícil achar
provas que levem ao suspeito.
— Ei, Loaban, acha que eu não sei disso? Claro, claro, você pega
pó e terra e bota no cromatógrafo a gás e depois no espectrômetro e
usa microscópio eletrônico. — As palavras complicadas em inglês
saíam desajeitadas de sua língua. — Compara com bancos de dados.
— Você conhece equipamento forense? — perguntou Rhyme
piscando com surpresa.
— Conheço? Claro, nós usamos essas coisas. Ei, eu estuda no
Instituto Forense de Pequim. Ganha medalha bonita. Segundo da
turma. Sei tudo isso. Estou dizendo. — E acrescentou, irritado: —
Nós não estamos na dinastia Ming, Loaban. Eu tem computador,
Windows XR Todo tipo de banco de dados também. E celular e
pager.
— Certo, Sonny, entendi. O que viu na cena do crime?
— Desarmonia. Foi isso que eu vi.
— Explique.
— Harmonia é muito importante na China. Até crime tem
harmonia. Naquele lugar lá, naquele armazém, nenhuma harmonia.
— O que é um assassinato harmonioso? — perguntou Coe,
irônico.
— O Fantasma acha homem que o traiu. Tortura ele, mata ele e
vai embora. Mas, ei, Hongse, lembra? Lugar todo destruído. Cartazes
da China rasgados, estátuas de Buda e dragões quebrados.. Chineses
han não faz isso.
— E a maioria racial da China, a han — explicou Eddie Deng.
Mas o Fantasma é han, não é?
— Claro, mas ele não faz isso. Escritório foi bagunçado depois
Tang morto. Eu ouve ela dizer isso.
Sachs confirmou.
— Provavelmente Fantasma vai embora e esses homens
trabalham para ele, eles vandalizam o escritório. Estou achando ele
contrata minoria étnica para ser ba-tu.
Capangas — traduziu Deng.
— E, é, capangas. Ele contrata gente de minorias. Mongóis,
manchus, tibetanos, uigures.
— Isso é loucura, Sonny — disse Rhyme. — Harmonia?
— Loucura? — Li deu de ombros. — Claro, você certo, Loaban. Eu
louco. Como quando eu disse você achar Jerry Tang primeiro, eu
louco. Mas ei, se você me ouvisse, talvez a gente acha Tang quando
ele vivo, amarra ele e usa aguilhão elétrico para ele contar onde
Fantasma está. — Toda a equipe se virou para ele, chocada. Li
hesitou um momento, depois riu. — Ei, Loaban, piada.
Mas Rhyme não tinha toda a certeza de que ele estivesse
brincando.
Li continuou, apontando o quadro.
— Quer evidência? Certo, aqui evidência. Pegadas. Menores do
que do Fantasma. Han, chineses, não são gente grande. Como eu.
Não são grandes como vocês. Mas gente minorias do oeste e do
norte, muitas ainda menores do que nós. Pronto, gostou dessa coisa
forense, Loaban? Achei que gostaria. Então vá procurar umas
minorias. Você tem pista do Fantasma, estou dizendo.
Rhyme olhou para Sachs e soube que ela estava pensando a
mesma coisa. Que mal faria?
— O que acha? — perguntou a Eddie Deng. — Você conhece
essas minorias?
— Não tenho ideia. A maioria das pessoas com quem lidamos na
Quinta Delegacia é han: fujianeses, cantoneses, mandarins,
taiwaneses...
Coe concordou, acrescentando: — Essas minorias ficam isoladas.
Impaciente agora que havia uma pista a ser seguida, Rhyme
falou rispidamente: — Bom, quem saberia? Eu quero alguma
informação. Como?
— Tongs — disse Li. — Tongs sabem tudo. Han, não-han, tudo.
— E o que, exatamente, é um tong? — perguntou Rhyme, tendo
apenas uma vaga memória de um filme ruim a que tinha assistido
enquanto se recuperava do acidente.
Eddie Deng explicou que as tongs eram sociedades de chineses
com interesses comuns: gente que vinha de uma área particular da
China e que praticava a mesma atividade comercial ou profissão.
Eram envoltas em segredo e, nos velhos tempos, só se reuniam em
locais fechados — ”tong” significa ”câmara”. Nos Estados Unidos
elas surgiram para dar proteção contra os brancos e para a
autodeterminação; tradicionalmente os chineses resolviam as
disputas entre si, e o chefe da tong tinha mais poder sobre os seus
membros do que o presidente dos Estados Unidos.
Mesmo tendo uma longa tradição de crime e violência,
prosseguiu ele, nos últimos anos as tongs haviam se limpado. A
palavra ”tong” fora divulgada e elas começaram a se identificar
como ”associações públicas”, ”sociedades de beneficência” ou
”sindicatos mercantis”. Muitas ainda continuavam tão envolvidas
com jogo, casas de massagem, extorsão e lavagem de dinheiro como
sempre, mas se distanciavam da violência. Contratavam rapazes sem
conexão com as tongs para agir como executores.
— Terceirizando — zombou Deng.
— Você já fez parte de uma, Eddie? — perguntou Rhyme.
O detetive limpou seus óculos elegantes enquanto respondia
defensivamente: — Durante um tempo. Era uma coisa de criança.
— Há alguém em uma delas com quem possamos falar? —
perguntou Sachs.
Deng pensou um momento.
— Eu ligaria para Tony Cai. Ele nos ajuda um pouco — até certo
ponto — e é um dos loabans com melhores conexões na área. Muito
guanxi. Ele comanda a Associação Pública do Leste da China. Fica na
Bowery.
— Ligue para ele — ordenou Rhyme. Coe balançou a cabeça.
— Ele não vai querer falar pelo telefone.
— Grampeado?
— Não, não — disse Deng. — É uma coisa cultural. Para alguns
assuntos é preciso se encontrar cara a cara. Mas aí é que está o
problema. Cai não vai querer ser visto com policiais, principalmente
se o Fantasma está envolvido.
Um pensamento ocorreu a Rhyme.
— Consiga uma limusine e traga-o aqui.
— O quê? — perguntou Selli o.
— Os chefes das tongs... têm egos, certo?
— Pode apostar que sim — disse Coe.
— Diga que nós precisamos da ajuda dele e que o prefeito
mandou uma limusine para pegá-lo.
Enquanto Selli o ligava para conseguir o carro, Eddie Deng ligou
para a associação comunitária de Cai. A conversa foi na cadência
entrecortada e cantarolada do chinês falado rapidamente. Eddie pôs
a mão sobre o fone.
— Deixe-me esclarecer: eu vou dizer a ele que foi um pedido do
prefeito.
— Não — disse Rhyme. — Fale que é do escritório do
governador.
— A gente precisa ter um pouco de cuidado aqui, Linc — disse
Selli o delicadamente.
— Teremos cuidado depois de pegar o Fantasma.
Deng assentiu, voltou ao telefone e falou mais um pouco. Em
seguida desligou.
— Certo. Ele topa.
Sonny Li estava batendo nos bolsos da calça distraidamente, sem
dúvida procurando cigarros. Parecia inquieto.
— Ei, Loaban, eu pergunto uma coisa. Talvez você me faz favor?
— O quê?
— Eu pode telefonar? Para a China. Custa dinheiro eu não tem.
Mas eu pago depois.
— Tudo bem — disse Rhyme.
— Para quem vai ligar? — perguntou Coe distraidamente.
— Particular. Coisa minha.
— Não. Você não tem uma vida particular aqui, Li. Diga, caso
contrário não vai ligar.
O policial lançou um olhar frio para o agente do Serviço de
Imigração e disse: — Telefonema é para meu pai.
— Eu sei falar chinês — murmurou Coe. — Putonghua e
minnanhua. Entendo hao. Vou ficar ouvindo.
Rhyme assentiu para Thom, que ligou para a telefonista
internacional e fez a ligação para a cidade de Liu Guoyuan em
Fujian. Entregou o fone a Li, que o pegou inseguro. Olhou para o
aparelho um momento e depois se virou de costas para Rhyme e os
outros, e lentamente levou-o ao ouvido.
De repente Rhyme viu um Sonny Li diferente. Uma das
primeiras palavras que ouviu foi ”Kangmei” — o nome formal de
Sonny. O sujeito ficou todo obsequioso, curvado, nervoso,
assentindo como um jovem colegial enquanto falava. Finalmente
desligou o telefone e ficou olhando para o chão durante um
momento.
— Alguma coisa errada? — perguntou Sachs.
De repente o policial chinês percebeu que alguém tinha falado
com ele. Balançou a cabeça em resposta à pergunta e se virou de
novo para Rhyme.
— Certo, Loaban, o que nós faz agora?
— Vamos olhar alguns indícios harmoniosos — respondeu
Rhyme.
Capítulo 21
Uma hora depois a campainha tocou e Thom desapareceu no
corredor. Voltou com um chinês atarracado, vestindo terno cinzento
todo abotoado, camisa branca e gravata listrada. Seu rosto não
revelou surpresa ou choque ao ver Rhyme na cadeira Storm Arrow ou
o conjunto de equipamento forense na elegante casa vitoriana. A
única emoção foi quando olhou para Sachs e a viu tomando chá com
perfume de ervas que ele parecia conhecer pelo cheiro.
— Eu sou Sr. Cai. Rhyme se apresentou.
— O senhor se sente confortável falando inglês? — Sim.
— Temos um problema, Sr. Cai, e espero que possa nos ajudar.
— O senhor trabalha para governador?
— Isso mesmo.
De uma forma distante, mas trabalhamos, pensou Rhyme,
erguendo uma sobrancelha irônica em direção ao ainda inquieto Lon
Selli o.
Enquanto Cai se sentava, Rhyme explicou sobre o Fujou dragou e
os imigrantes escondidos na cidade. Outro lampejo de emoção
quando o nome do Fantasma foi mencionado, mas então o rosto
ficou vazio de novo. Rhyme assentiu para Deng, que lhe contou
sobre os assassinos e a suspeita de que os homens eram de alguma
etnia minoritária chinesa.
Cai assentiu, pensando. De baixo dos grandes óculos bifocais de
aro metálico, seus olhos eram rápidos.
— O Fantasma, nós sabemos sobre ele. Ele causa muito mal a
todos nós aqui. Eu vou ajudar vocês... Minorias étnicas? Em
Chinatown não há nenhuma, mas eu vou fazer algumas
investigações em outras áreas da cidade. Eu tenho muitas conexões.
— É muito importante — disse Sachs. — Essas dez pessoas, as
testemunhas... o Fantasma vai matá-las se nós não as encontrarmos
primeiro.
— Claro — disse Cai com simpatia. — Farei o possível. Se seu
motorista puder me levar agora, eu começo logo.
— Obrigada — disse Sachs. Selli o e Rhyme também
agradeceram. Cai se levantou e apertou as mãos, ainda que,
diferentemente de muitos visitantes, não houvesse sequer um gesto
vestigial de seu braço indo na direção de Rhyme, e apenas um leve
movimento de cabeça, que disse ao criminalista que ele tinha um
autocontrole muito grande e era muito mais perceptivo e inteligente
do que sugeria sua postura distraída.
Ele ficou feliz porque aquele homem iria ajudá-los.
Mas quando Cai foi em direção à porta, Sonny Li disse
abruptamente: — Ting!
— Ele disse ”espere” — explicou Eddie Deng a Rhyme, num
sussurro. Cai girou, franzindo o rosto. Li foi até ele e, com gestos
amplos, começou a falar asperamente. O líder da tong se inclinou
para perto de Li e os dois começaram uma conversa explosiva.
Rhyme achou que eles começariam a trocar socos.
— Ei! — disse Selli o a Li. — Que diabo está fazendo?
Li o ignorou e, de rosto vermelho, continuou a golpear Cai com
palavras. Finalmente o líder da tong ficou quieto. Sua cabeça
finalmente baixou e seus olhos examinaram o chão.
Rhyme olhou para Deng, que deu de ombros.
— Rápido demais para mim. Não pude acompanhar. Enquanto
Li continuava falando, mais calmo agora, Cai começou a assentir e
responder. Finalmente Li fez uma pergunta e o líder da tong
estendeu a mão, e os dois se cumprimentaram.
Cai assentiu brevemente outra vez para Rhyme, com o rosto
totalmente desprovido de emoção, e em seguida foi embora.
— Que diabo foi isso? — perguntou Sachs.
— Por que você deixa ele ir embora antes? — disse Li,
carrancudo, a Rhyme. — Ele não ia ajudar você.
— Ia sim.
— Não, não, não. Não importa o que ele disse. Perigoso para ele
ajudar nós. Ele tem família, não quer que se machuquem. Ele não
ganha nada com vocês. Limusine não engana ele. — Li apontou a
sala em volta. — Ele sabe governador não envolvido.
— Mas ele disse que ia ajudar — insistiu Selli o.
— Chineses não gosta dizer não. Mais fácil para nós achar
desculpa ou só dizer sim e depois esquecer. Cai ia voltar a escritório
e esquecer vocês, estou dizendo. Ele diz ajuda, mas na verdade diz
”Meiyou. Sabe o que é meiyou? Significa eu não ajuda vocês; vão
embora.
— O que vocês falaram? Por que estavam brigando?
— Não, não, não briga. Nós negociação. Você sabe, negócios.
Agora ele procura suas minorias. Ele realmente faz.
— Por quê? — perguntou Rhyme.
— Vocês paga dinheiro ele.
— O quê? — perguntou Selli o.
— Não muito. Só custa dez mil. Dólares, não ienes.
— De jeito nenhum — disse Allan Coe.
— Jesus Cristo — exclamou Selli o. — Nós não temos isso no
orçamento.
Rhyme e Sachs se entreolharam e riram.
— Vocês cidade grande, vocês ricos — zombou Li. — Vocês tem
dólar forte, Wall Street, vocês comandam Organização Mundial do
Comércio. Ei, Cai queria mais, primeiro.
— Nós não podemos pagar... — começou Selli o.
— Qual é, Lon — disse Rhyme. — Vocês têm sua verba para
informantes. De qualquer modo, tecnicamente esta é uma operação
federal. O INS vai colocar metade.
— Eu não sei disso — disse Coe, inquieto, passando a mão no
cabelo ruivo.
— Tudo bem, eu assino o pedido — disse Rhyme, e o agente
piscou, sem saber se era adequado rir disso. — Ligue para Peabody.
E nós vamos conseguir que Dellray contribua também. — Ele olhou
para Li. — Quais foram os termos?
— Eu fiz boa barganha. Ele nos dá nomes primeiro e depois
recebe. Claro, ele quer ser pago em dinheiro.
— Claro.
— Certo, eu precisa um cigarro. Vou tirar um tempo, certo,
Loaban? Eu precisa cigarro bom. Vocês têm os piores neste país,
porra. Sem gosto de nada. Arranjar um pouco comida também.
— Vá em frente, Sonny, você mereceu.
Enquanto o policial chinês saía da sala, Thom perguntou: — O
que eu ponho na tabela? — E olhou para o quadro de evidências. —
Sobre Cai e as tongs.
— Não sei — disse Sachs. — Acho que eu diria: ”Verificando as
evidências do woo-woo. Mas Lincoln Rhyme optou por algo mais útil.
— Que tal: ”Cúmplices suspeitos de pertencer a minoria étnica
chinesa” — ditou. — ”No momento procurando paradeiro.”

Acompanhado pelos três turcos, o Fantasma estava dirigindo


uma Chevrolet Blazer roubada e indo em direção ao Queens, para o
apartamento dos Chang.
Enquanto dirigia cuidadosamente como sempre, para não ser
parado, refletia sobre a morte de Jerry Tang. Nem por um momento
tinha pensado em deixar o sujeito ficar sem punição por tê-lo traído.
Também não tinha pensado em adiar a vingança. A deslealdade para
com os superiores era o pior crime na filosofia confuciana. Tang o
havia abandonado em Long Island — uma situação da qual ele só
havia escapado por causa da sorte de ter encontrado aquele carro
com o motor ligado no restaurante da praia. De modo que o sujeito
teve de morrer, e morrer dolorosamente. O Fantasma pensou no
imperador Shang Jou Xin. Uma vez, sentindo deslealdade da parte
de um de seus vassalos, o imperador trucidou o filho do homem,
mandou cozinhá-lo e servi-lo ao traidor insuspeito durante o jantar,
depois revelou todo alegre o ingrediente básico do prato principal.
O Fantasma achava esse tipo de justiça perfeitamente razoável,
para não dizer satisfatório.
A um quarteirão do apartamento dos Chang, ele parou a Blazer
junto ao meio-fio.
— Máscaras — ordenou.
Yusuf enfiou a mão numa bolsa e entregou as máscaras de
esquiador.
O Fantasma pensou no melhor modo de atacar a família. Sam
Chang tinha mulher e um pai idoso, pelo que soubera. Mas o risco
principal seria qualquer filho mais velho, adolescente. Para eles a
vida não passava de um videogame, e quando o Fantasma e os
outros invadissem um adolescente poderia atacá-los com uma faca.
— Matem primeiro qualquer filho — ordenou. — Depois o pai e
os velhos. — Em seguida teve um pensamento. — Não matem a
esposa por enquanto. Tragam-na conosco.
Aparentemente os turcos entenderam o motivo e assentiram.
O Fantasma examinou a rua silenciosa, na qual havia dois
armazéns compridos. Na metade do quarteirão havia um beco entre
as construções. Segundo o mapa, o endereço dos Chang ficava do
outro lado dos armazéns. Era possível que Chang e os filhos ou o pai
estivessem vigiando a porta da frente, por isso o Fantasma aceleraria
pelo beco até os fundos e eles entrariam pela porta de trás, enquanto
um dos turcos corria para a porta da frente, para que a família não
tentasse escapar por lá.
— Usem as máscaras em cima da cabeça — disse em inglês —,
como se fossem gorros, até a gente chegar na casa.
Eles assentiram e obedeceram. Com as peles escuras e os gorros
pareciam membros de gangues de negros num bizarro clipe de rap.
O Fantasma pôs sua máscara.
Sentiu um medo momentâneo, como frequentemente acontecia
em momentos assim, logo antes de entrar em batalha. Sempre havia
uma chance de que Chang tivesse uma arma ou que a polícia tivesse
achado a família primeiro, levado para a detenção e estivesse ela
própria esperando o Fantasma no apartamento.
Mas lembrou-se que o medo fazia parte da humildade, e que
eram os humildes que tinham sucesso neste mundo. Pensou numa
de suas passagens prediletas do Tao.
Ceda para não precisar quebrar.
Curvado, você pode se esticar.
Esvaziado, você pode conter.
Rasgado, você pode se emendar.
Agora o Fantasma acrescentou seu próprio verso: Com medo, você
pode ser corajoso.
Olhou para Yusuf, sentado ao seu lado no banco do carona. O
uigur assentiu com firmeza, respondendo. E, com a habilidade de
artesãos rematados, começaram a verificar as armas.
Capítulo 22
Sonny Li tinha achado cigarros muito bons.
Camels, sem filtros na ponta, que tinham um gosto bem próximo
da marca que ele costumava comprar na China. Tragou
profundamente e disse: — Aposto cinco. — Empurrou as fichas para
a frente e olhou os outros jogadores de pôquer pensando em como
reagiriam enquanto a aposta era feita ao redor da mesa de
compensado barato, manchada por anos de mãos suadas e bebida
derramada.
O salão de jogo ficava na Mo Street, no coração de Chinatown, o
bairro aonde ele fora comprar cigarros. Uma viagem tão longa
provavelmente não era o que Loaban tinha em mente quando lhe deu
permissão para comprar cigarro. Mas não importa. Ele voltaria logo.
Não havia pressa.
O salão era grande, povoado principalmente por fujianeses (ele
queria evitar tropeçar no segurança cantonês em quem tinha dado
umas porradas pela manhã), e tinha um bar completo e três
máquinas de cigarro. Era escuro, a não ser por luzes fracas sobre as
mesas, mas com seu olhar afiado de agente de segurança ele tinha
visto cinco homens armados.
Mas isso não era problema. Nada de roubar armas agora nem
espancar garotos bonitos. Só estava aqui para jogar, beber e bater
papo.
Ganhou a mão, riu e em seguida serviu mao-tai nos copos de
todos à mesa, menos do carteador, que não tinha permissão de
beber. Os homens levantaram os copos e rapidamente engoliram a
bebida clara e forte. O mao-tai era a versão chinesa do uísque
falsificado, e você não toma aos poucos; vira na garganta o mais
rápido possível.
Li puxou conversa com os homens curvados sobre a mesa em
volta. Uma garrafa de bebida e uma dúzia de Camels mais tarde
Sonny Li avaliou que sua perda líquida era de apenas sete dólares.
Decidiu não tomar mais um copo e se levantou.
Vários homens pediram que ele ficasse. Estavam gostando de sua
companhia.
Mas Li disse que sua amante o esperava, e os homens
concordaram, entusiasmados.
— Ela fode você de todo jeito — disse um velho bêbado. Para Li
não ficou claro se era uma pergunta ou uma declaração.
Sonny Li foi até a porta, dando a eles um sorriso que confirmava
a alta qualidade de sua vida amorosa. Mas a verdade era que esse
salão de jogos tinha pouco a lhe oferecer, e ele queria tentar outro.
A Blazer, acelerando rapidamente pelo beco que levava aos
fundos do apartamento dos Chang.
O Fantasma segurando sua pistola Modelo 51 numa das mãos,
com o volante forrado de couro na outra.
Os turcos, prontos para saltar do veículo.
Saíram do beco num grande estacionamento — e acharam uma
caminhonete gigantesca vindo de cara para eles.
Com um profundo gemido de freios a caminhonete começou a
derrapar.
O Fantasma pisou com força no freio — instintivamente
golpeando o piso do carro com o pé esquerdo também, acertando o
lugar onde ficaria a embreagem em seu carro esporte BMW. A Blazer
oscilou e parou cantando pneus, quase porta a porta com a
caminhonete. Ele ofegou e sentiu o coração falhando pela quase
batida.
— Que porra está fazendo? — gritou o motorista da
caminhonete. Ele se inclinou para a janela do motorista da Blazer. —
Isto aqui é mão única, seu japa da porra! Se vem para este país,
aprenda a porra das regras.
O Fantasma estava abalado demais para responder.
O motorista engrenou a caminhonete e passou pela Blazer.
O Fantasma agradeceu ao seu deus, Yi, o arqueiro, por salvá-lo
da morte. Dez segundos mais, e eles teriam colidido de frente com a
caminhonete.
Prosseguindo lentamente, o Fantasma olhou para os dois turcos,
que estavam olhando em volta franzindo a testa. Estavam confusos,
perturbados.
— Onde é? — perguntou Yusuf, que estava olhando o grande
estacionamento em que se encontravam. — O prédio dos Chang?
Não estou vendo.
Não havia nenhuma residência por ali.
O Fantasma verificou o endereço. O número estava correto; era
esse o lugar. Só... só que era um grande shopping center. O beco
onde o Fantasma tinha entrado era uma das saídas do
estacionamento.
Gan — cuspiu o fantasma.
— O que aconteceu? — perguntou um dos turcos.
O que aconteceu foi que Chang não tinha confiado em Jimmy
Mah, percebeu o Fantasma. Tinha dado um endereço falso ao líder
da tong. Provavelmente tinha visto um anúncio de loja. Ele olhou
para a placa grande acima de sua cabeça.

Seu fornecedor para qualquer necessidade em casa ou no jardim

O Fantasma pensou no que fazer. O outro imigrante, Wu,


provavelmente não fora tão esperto. Tinha usado o corretor de Mah
para conseguir um apartamento. O Fantasma tinha o nome do
corretor e eles poderiam descobrir rapidamente onde a família
estava.
— Vamos pegar os Wu agora — disse o Fantasma. — Depois
vamos achar os Chang.
Naixin.
Tudo no devido tempo.

Sam Chang desligou o telefone.


Atordoado, ficou imóvel um momento, olhando um programa de
TV que mostrava uma sala muito diferente daquela onde estava
agora, e um conteúdo e uma família idiota muito diferente da sua.
Olhou para Mei-Mei, que o olhava com um ar interrogativo. Ele
balançou a cabeça e ela voltou a atenção a Po-Yee, o bebê. Então
Chang se agachou ao lado do pai e sussurrou: — Mah está morto. —
Mah?
— O loaban de Chinatown, o que nos ajudou. Liguei para
perguntar sobre os nossos documentos. A garota disse que ele está
morto.
— O Fantasma? Foi ele quem o matou?
—É
— Quem mais?
— Mah sabia onde estamos?
— Não.
Chang não tinha confiado em Mah. Por isso deu o endereço de
uma das Lojas do Lar que ele vira no folheto encontrado no
shopping center onde roubaram a tinta e os pincéis.
Na verdade os Chang não estavam no Queens, e sim no
Brooklyn, num bairro chamado Owls Head, perto do porto. Esse era
um destino que ele mantivera em segredo para todo mundo, menos
o pai.
O velho assentiu e franziu o rosto quando uma dor o atravessou.
— Morfina?
O pai balançou a cabeça e respirou fundo um momento.
— Essa notícia sobre Mah. Ela confirma que o Fantasma está nos
procurando.
— É. — Então Chang teve um pensamento perturbador. — Os
Wu! O Fantasma pode achá-los. Eles conseguiram o apartamento
com o corretor de Mah. Tenho de alertá-lo. — Chang foi para a porta.
— Não — disse o pai. — Você não pode salvar um homem da
própria tolice.
— Ele também tem família. Filhos, a mulher. Nós não podemos
deixar que morram.
Chang Jiechi pensou alguns instantes. Finalmente disse: — Tudo
bem, mas não vá você. Use o telefone. Ligue para a tal mulher de
novo. Diga para ela dar um recado a Wu, para alertá-lo.
Chang pegou o telefone e discou. Falou de novo com a mulher do
escritório de Mah e pediu que ela desse um recado aos Wu.
— Diga que ele deve sair de lá imediatamente. Ele e a família
estão correndo grande perigo. Vai dizer isso?
— Sim, sim — disse ela, mas estava claramente perturbada, e
Chang não tinha ideia se ela cumpriria o pedido.
O pai fechou os olhos e se recostou no sofá. Chang enrolou o
cobertor nos pés dele. O velho precisaria de um médico em breve.
Tantas coisas a fazer, precauções a tomar! Por um momento
sentiu-se esmagado pela desesperança. Pensou no amuleto que o Dr.
Sung usava — o Rei Macaco. No depósito do navio ele tinha deixado
Ronald brincar com o objeto e contou histórias sobre o Macaco. Uma
delas era sobre como os deuses puniram o Macaco pela afronta
enterrando-o debaixo de uma montanha enorme. Era assim que Sam
Chang se sentia agora — coberto por um milhão de quilos de medo e
incerteza.
Mas seus olhos pousaram na família e o fardo diminuiu um
pouco.
William riu de alguma coisa na televisão; Chang achou que era a
primeira vez que o filho mais velho se livrava da raiva e do espírito
azedo que irradiara o dia inteiro. Ele estava rindo do programa
frívolo num bom humor genuíno. Ronald também.
Então Chang olhou para a mulher, completamente absorta com a
criança, Po-Yee. Como ela fica à vontade com crianças! O próprio
Chang não tinha essa facilidade. Vivia pesando o que dizia, será que
deveria ser sério com tal assunto, flexível com aquele outro?
Mei-Mei empoleirou o bebê nos joelhos e fez a criança rir
enquanto a balançava.
Na China as famílias rezam para um filho levar adiante o
sobrenome (tradicionalmente, não ter filho do sexo masculino era
motivo para divórcio). Chang, claro, ficara deliciado com o
nascimento de William, e de Ronald depois, orgulhoso porque podia
garantir ao seu pai que a linhagem Chang continuaria. Mas a tristeza
de Mei-Mei por não ter uma filha fora motivo de tristeza para ele
também. E assim Chang se vira numa posição curiosa para um
chinês de uma certa idade — desejando uma menina, caso Mei-Mei
ficasse grávida de novo. Como dissidente perseguido e violador da
regra de um só filho, o partido não poderia puni-lo mais por ter
outro filho, de modo que estava totalmente preparado para dar uma
filha à esposa.
Mas ela ficara muito doente durante a gravidez de Ronald e
levou meses para se recuperar do parto. Era uma mulher pequena,
não era mais jovem, e os médicos insistiram, em nome de sua saúde,
em que não tivesse mais filhos. Ela aceitou isso estoicamente, como
tinha aceitado a decisão de Chang de vir ao Belo País — o que
praticamente impedia a chance de adotarem uma filha, por causa da
condição de imigrantes ilegais.
Mas do meio desse sofrimento terrível aparentemente algum bem
surgira para aliviar as dificuldades. Os deuses do destino ou o
espírito de algum ancestral tinham entregado Po-Yee a eles, a filha
que nunca poderiam ter, e restaurado a harmonia em sua mulher.
Yiri'yang, luz e escuridão, masculino e feminino, tristeza e
alegria. Privação e dádiva...
Chang se levantou, foi até os filhos e se sentou para assistir à
televisão com eles. Movia-se muito devagar, muito em silêncio, como
se qualquer gesto abrupto pudesse despedaçar essa frágil paz
familiar como uma pedra caindo num imóvel lago matinal.
III
O REGISTRO DOS VIVOS E DOS MORTOS

Terça-feira, da Hora do Galo, 18h30,


a Quarta-feira, Hora do Rato, 1 da madrugada.

No Wei-Chi (...) os dois jogadores diante do tabuleiro vazio começam


avaliando
os pontos em que acreditam ter vantagem. Pouco a pouco as áreas
desertas desaparecem.
Então vem o choque entre as massas em conflito; lutas
de defesa e ataque se desenvolvem, como acontece no mundo.

DANIELLE PECORINI e TONG SHU


The Game of Wei-Chi
Capítulo 23
Sua mulher estava piorando.
Era início da tarde e Wu Qichen tinha ficado a última hora
sentado no assoalho perto do colchão, banhando a testa da esposa.
Sua filha, com dificuldade, tinha preparado o chá de ervas que ele
comprara e, junto com a garota, ele dera o líquido quente à mulher
febril. Ela também tinha tomado os comprimidos, mas parecia não
haver melhora.
Ele se inclinou para a frente de novo e enxugou a pele da mulher.
Porque não estava melhorando?, perguntou-se enfurecido. Será que
o herbanário o havia enganado? E por que sua mulher estava tão
magra? Ela não teria adoecido na viagem se tivesse comido direito,
se tivesse dormido mais antes de partirem. Yong-Ping, uma mulher
frágil e pálida, deveria se obrigar a tomar mais cuidado de si mesma.
Tinha responsabilidades...
— Estou com medo — disse ela. — Não sei o que é real. Tudo
parece sonho. Minha cabeça, a dor... — A mulher começou a
murmurar e finalmente ficou quieta.
E de repente Wu percebeu que também estava apavorado. Pela
primeira vez desde que tinham deixado Fujou, há uma eternidade,
Wu Qichen começou a pensar que poderia perdê-la. Ah, havia
muitas coisas em Yong-Ping que ele não entendia. Haviam se casado
impulsivamente, sem se conhecer muito. Ela era temperamental,
algumas vezes era menos respeitosa do que o pai dele, por exemplo,
teria tolerado. Mas era uma boa mãe para os filhos, era confiável na
cozinha, respeitosa com os pais dele, inteligente na cama. E estava
sempre pronta a ficar sentada em silêncio e ouvi-lo — a levá-lo a
sério. Não eram muitas pessoas que faziam isso.
O homem magro olhou para cima e viu o filho parado na porta.
Os olhos de Lang estavam arregalados e ele estivera chorando.
— Volte para a televisão — disse Wu.
Mas o garoto não se mexeu. Estava olhando para a mãe. O
homem se levantou.
— Chin-Mei — gritou. — Venha cá.
A garota apareceu na porta um instante depois.
— Sim, baba?
— Traga uma das roupas novas para a sua mãe.
A garota desapareceu e voltou um instante depois com uma calça
de malha azul e uma camiseta. Juntos eles vestiram a mulher. Chin-
Mei pegou um pano limpo e enxugou a testa da mãe.
Em seguida Wu foi à loja de material eletrônico ao lado do
prédio. Perguntou ao vendedor onde ficava o hospital mais próximo.
O homem disse que havia uma grande clínica não muito longe.
Anotou o endereço em inglês, como Wu pediu; ele decidira gastar o
dinheiro do táxi para levar a mulher para lá, e precisava do endereço
anotado para mostrar ao motorista; seu inglês era muito ruim.
Quando voltou ao apartamento, disse à filha: — Nós voltamos logo.
Ouça atentamente. Você não vai abrir a porta para ninguém.
Entendeu?
— Sim, pai.
— Você e seu irmão vão ficar no apartamento. Não saiam por
motivo nenhum.
Ela assentiu.
— Tranque a porta e ponha aquela corrente depois de nós
sairmos. Wu abriu a porta, estendeu o braço para a mulher se
agarrar e depois saiu. Parou, ouviu a tranca da porta e o barulho da
corrente. Depois seguiram pela Canal Street, cheia de tanta gente,
tantas oportunidades, tanto dinheiro — e nada disso significava
grande coisa para o homem pequeno e apavorado.
— Ali! — disse o Fantasma, ansioso, enquanto virava a esquina e
parava a Blazer junto ao meio-fio na Canal Street perto da Mulberry,
em Chinatown. — São os Wu.
Mas antes que ele e os turcos pudessem achar as máscaras e sair
do veículo, Wu ajudou a mulher a entrar num táxi. Ele subiu atrás
dela e o táxi foi embora. Logo se perdeu no trânsito agitado da hora
do rush na Canal Street.
O Fantasma voltou a entrar no tráfego e parou numa vaga diante
do apartamento cujo endereço, e cuja chave da porta da frente, o
corretor de Mah tinha lhe dado há meia hora — pouco antes de o
matarem a tiros.
— Aonde acha que eles foram? — perguntou um dos turcos ao
Fantasma.
— Não sei. A mulher parecia doente. Vocês viram como ela
estava andando. Talvez para um médico.
O Fantasma examinou a rua. Avaliou distâncias e notou
particularmente o número de joalherias aqui no cruzamento da
Mulberry com a Canal. Era uma versão menor do distrito dos
diamantes em Midtown. Isso perturbou o Fantasma. Significava que
haveria dúzias de seguranças armados na rua — se matassem os Wu
antes que as lojas fechassem poderiam esperar que alguns deles
ouvissem os tiros e viessem correndo. Mas mesmo depois do horário
comercial haveria riscos: ele podia ver as caixas quadradas de
dezenas de câmeras de segurança cobrindo as calçadas. Aqui
estavam fora das vistas das câmeras, mas para abordar os Wu
ficariam bem no alcance das lentes. Teriam de se mover rapidamente
e usar as máscaras de esquiador.
— Acho que vamos resolver a coisa assim — disse o Fantasma
num inglês lento. — Estão ouvindo?
Cada um dos turcos virou a atenção para ele.

Depois de seu pai e sua mãe terem partido, Wu Chin-Mei fez um


pouco de chá para o irmão e lhe deu um pãozinho e arroz. Pensava
em como seu pai a havia embaraçado na frente de um rapaz bonito
na mercearia pechinchando pela comida que tinham comprado hoje
cedo ao chegarem em Chinatown.
Economizando alguns ienes em pãezinhos e macarrão!
Sentou Lang, de oito anos, na frente da televisão com a comida e
depois foi ao quarto trocar os lençóis molhados de suor na cama da
mãe.
Olhando o espelho, examinou-se. Ficou satisfeita com o que viu:
seu cabelo preto e comprido, lábios grossos, olhos profundos.
Várias pessoas tinham observado como ela se parecia com Lucy
Liu, a atriz, e Chin-Mei podia ver que era verdade. Bom, iria se
parecer ainda mais com ela quando perdesse alguns quilos — e
consertasse o nariz, claro. E essas roupas ridículas. Um conjunto de
moletom verde-claro... que nojento! As roupas eram importantes
para Wu Chin-Mei. Ela e suas amigas estudavam fascinadas as
transmissões dos programas de moda de Pequim, Hong Kong e
Cingapura, as modelos altas girando os quadris enquanto andavam
pela passarela. Depois as garotas, de treze a quatorze anos, faziam
seus próprios desfiles, flanando pela passarela improvisada e depois
se enfiando atrás de divisórias de pano para trocar as roupas.
Uma vez, antes do partido pegar pesado com seu pai por ter
aberto a boca demais, a família fora com ele a Xiamen, a sul de
Fujou. Era uma cidade deliciosa, um lugar turístico, que atraía
muitos viajantes de Taiwan e do Ocidente. Numa tabacaria aonde
seu pai tinha ido comprar cigarros, Chin-Mei ficou pasma em ver
mais de trinta revistas de moda no mostruário. Ficou na loja durante
meia hora enquanto o pai fazia algum negócio ali perto e a mãe
levava Lang a um parque. Folheou todas elas. A maioria era do
Ocidente, mas muitas eram publicadas em Pequim ou outras cidades
das Zonas Livres no litoral, e mostravam as últimas criações dos
estilistas chineses, que eram tão chiques quanto qualquer coisa
produzida em Milão ou Paris.
A adolescente tinha planejado estudar moda em Pequim e se
tornar uma estilista famosa — possivelmente depois de um ou dois
anos trabalhando como modelo.
Mas agora seu pai tinha arruinado isso.
Deixou-se cair na cama, agarrou o tecido falso de seu agasalho
barato e puxou-o furiosa, querendo rasgá-lo em tiras.
O que seria de sua vida agora?
Trabalhar numa fábrica, costurar roupas vagabundas como esta.
Ganhar duzentos ienes por mês e entregá-los aos pais patéticos.
Talvez passasse o resto da vida assim.
Esta seria a sua carreira no mundo da moda. Escravidão... Ela ia...
Uma batida forte na porta interrompeu seus pensamentos.
Ofegando de medo, sentou-se rapidamente, visualizando o
cabeça de cobra na balsa, com uma arma na mão. O estalo dos tiros
enquanto ele matava as vítimas que estavam se afogando. Foi até a
sala e baixou o volume da TV. Lang ergueu os olhos franzindo a
testa, mas ela tocou os lábios para mantê-lo em silêncio.
Uma voz de mulher chamou:
— Sr. Wu? Está aí? O senhor está aí, Sr. Wu? Tenho um recado do
Sr. Chang.
Chang, lembrou ela, o homem que os havia salvado do depósito
do navio e levado a balsa até a praia. Ela gostava dele. Gostava do
filho dele também, o que tinha o nome ocidental, William. Ele era
carrancudo, magro e bonito. Bonito mas arriscado: sem dúvida ia
acabar em alguma tríade.
— É importante — disse a mulher. — Se estiver aí, abra a porta.
Por favor, o Sr. Chang disse que vocês estão em perigo. Eu
trabalhava como Sr. Mah. Ele está morto. Vocês correm perigo
também. Precisam ir para um lugar novo. Eu posso ajudar a achar
um. Está me ouvindo?
Chin-Mei não conseguia tirar da mente o som da arma. O homem
terrível, o Fantasma, atirando neles. A explosão do navio, a água.
Será que deveria ir com esta mulher?
— Por favor... — Mais batidas.
Mas então ouviu as palavras do pai ordenando que ficasse, que
não abrisse a porta para ninguém. E por mais raiva que tivesse, por
mais que considerasse o pai errado em tantas coisas, não podia
desobedecer.
Esperaria em silêncio e não deixaria ninguém entrar. Quando
seus pais voltassem, ela daria o recado.
A mulher no beco devia ter ido embora — não houve mais
batidas. Chin-Mei aumentou o volume da TV de novo e se serviu de
uma xícara de chá.
Ficou sentada alguns minutos, estudando as roupas das atrizes
americanas num seriado.
Então ouviu o estalo de uma chave na fechadura.
Seu pai já estaria de volta? Saltou em pé, imaginando o que
estaria errado com a mãe. Será que já estaria bem? Será que teve de
ficar no hospital?
No momento em que chegou à porta e disse: ”Pai...”, ela se abriu
rapidamente e um homem magro e moreno entrou, bateu a porta e
apontou um revólver.
Chin-Mei gritou e tentou correr até Lang, mas o homem saltou
para a frente e a agarrou pela cintura. Jogou-a no chão. Agarrou seu
irmão soluçante pela gola e arrastou-o até o banheiro, empurrando-o
para dentro.
— Fique aí, fique quieto, moleque — rosnou ele num inglês ruim.
Em seguida fechou a porta.
A garota cruzou os braços no peito e se arrastou para longe do
homem. Olhou para a chave.
— Como... Onde conseguiu isso? — Com medo de ele ter matado
seus pais e tirado a chave deles.
Mas ele não entendeu seu chinês, e ela repetiu em inglês.
— Feche a boca. Se gritar de novo, mato você. — Ele pegou um
celular no bolso e telefonou: — Estou dentro. Os filhos estão aqui.
O homem — moreno e de aparência árabe, provavelmente do
oeste da China — assentiu enquanto ouvia, olhando Chin-Mei de
cima a baixo. Depois deu um riso de desprezo azedo.
— Não sei, dezessete, dezoito... Bem bonita. Certo.
Desligou.
— Primeiro — falou em inglês —, um pouco de comida. —
Agarrou seu cabelo e arrastou a garota soluçando até a cozinha. — O
que você tem para comer aqui?
Mas ela só conseguiu ouvir aquelas primeiras palavras girando e
girando na mente.
Primeiro, um pouco de comida... primeiro, um pouco de comida.
E depois?
Wu Chin-Mei começou a chorar.
Na casa de Lincoln Rhyme, cinzenta e sombria graças ao
entardecer antecipado devido à tempestade, o caso não se movia.
Sachs estava sentada perto, bem calma e tomando aquele seu chá
de cheiro nojento, o que irritava Rhyme infernalmente, sem motivo
específico.
Fred Dellray tinha voltado, e andava e apertava seu cigarro
apagado, num humor que não era melhor que o de ninguém.
— Eu não estava feliz antes e não estou feliz agora. Não. Estou.
Uma. Pessoa. Feliz.
Estava se referindo ao que tinham lhe dito que eram ”questões de
alocação de recursos” no escritório, motivo pelo qual estavam
adiando a colocação de mais agentes na equipe do FANTASMORTES. O
homem alto rosnou cheio de desprezo: — Eles chegaram a dizer
RAI, se é que dá para acreditar. E, é. ”E uma situação de RAI.” —
Dellray revirou os olhos e murmurou: — Jesus ama a mãe dele.
A opinião de Dellray era que ninguém no Departamento de
Justiça achava o contrabando humano particularmente sexy, e que
portanto não merecia muito tempo. De fato, apesar da ordem
executiva nos anos 90 mudando a jurisdição, o escritório não tinha
tanta experiência quanto o Serviço de Imigração. Dellray tinha
tentado explicar ao agente especial assistente encarregado que
também havia a pequena questão de que aquele cabeça de cobra era
um assassino em massa. A reação a isso também foi tépida. Caía na
categoria do DOCDP, tinha explicado ele.
— O que é isso? — perguntou Rhyme.
— ”Deixe Outro Cuidar Disso, Porra”. Fui eu que inventei, mas
acho que dá uma ideia.
A equipe SPECTAC também estava esfriando os calcanhares em
Quântico, acrescentou carrancudo o agente.
E eles não estavam tendo sorte melhor com as provas de
nenhuma das cenas de crimes.
— Certo, e quanto ao Honda que ele roubou na praia? —
perguntou Rhyme bruscamente. — O carro está no sistema. Será que
ninguém está procurando por ele? Quer dizer, ele está num
localizador emergencial de veículos.
— Sinto muito, Linc — disse Selli o depois de verificar com o
departamento. — Nada.
Sinto muito Linc nada...
Era tremendamente mais fácil achar um navio num porto na
Rússia do que encontrar dez pessoas em seu próprio quintal.
Então o relatório preliminar da cena do assassinato de Mah
voltou. Thom estendeu as anotações para Rhyme e virou as páginas
para ele. Não havia nada sugerindo que o Fantasma estivesse por
trás da morte; nenhuma evidência ”associava” o Fantasma à cena.
Nenhuma balística estava envolvida — a garganta de Mah fora
cortada — e o carpete de seu escritório e dos corredores não havia
retido qualquer pegada. Os técnicos tinham conseguido centenas de
digitais e três dúzias de amostras de traços de substâncias, mas
demoraria horas para analisar todas.
Todos os outros pedidos feitos ao AFIS em relação às digitais que
Sachs tinha conseguido nas cenas anteriores voltaram negativos,
com a exceção da de Jerry Tang — mas sua identidade não era mais
uma dúvida, claro.
— Quero uma bebida — disse Rhyme, desencorajado. — Está na
hora do coquetel. Diabo, já passou da hora do coquetel.
— A Dra. Weaver proibiu álcool antes da cirurgia — observou
Thom.
— Ela disse para evitar, Thom. Tenho certeza que ela disse evitar.
Evitar não é se abster.
— Não vou questionar o dicionário aqui, Lincoln. Nada de birita.
— A operação é só na semana que vem. Me dá uma bebida,
droga. O ajudante se manteve inflexível.
— Você esteve trabalhando demais neste caso. Sua pressão está
alta e sua programação foi para o inferno.
— Vamos arranjar um meio-termo: um copo pequeno.
— Isso não é um meio-termo. Seria uma vitória para você e uma
derrota para mim. Você pode beber depois da cirurgia. — Ele
desapareceu na cozinha.
Rhyme fechou os olhos, empurrou a cabeça para trás contra a
cadeira, com raiva. Imaginando — num momento de fantasia
absurda — que a operação consertaria todos os nervos que faziam
seu braço inteiro funcionar. Não disse isso a ninguém — nem
mesmo a Amelia Sachs —, mas, ainda que andar estivesse fora de
questão, ele frequentemente fantasiava que a cirurgia iria deixá-lo
levantar coisas. Agora visualizou-se pegando o Macallan e tomando
um gole direto da garrafa. Rhyme quase podia sentir a mão em volta
do vidro frio e redondo.
Um barulho na mesa ao lado o fez piscar. O perfume
adstringente e enfumaçado do uísque subiu e engolfou sua cabeça.
Abriu os olhos. Sachs tinha posto um pequeno copo de uísque no
braço da cadeira de rodas.
— Não está muito cheio — murmurou o criminalista. Mas o
subtexto do comentário, como Lincoln e ela entenderam, era:
obrigado.
Ela piscou em resposta.
Ele bebeu ansiosamente pelo canudinho e sentiu a queimação do
álcool na boca e na garganta.
Outro gole.
Gostou da bebida, mas descobriu que ela fazia pouco para
amortecer a ansiedade e a frustração que sentia pelo ritmo lento do
caso. Seus olhos pousaram no quadro branco. Uma anotação atraiu
seu olhar.
— Sachs! — gritou ele. — Sachs!
— O quê?
— Preciso de um número de telefone. Rápido.

O Fantasma encostou no rosto sua pistola Modelo 51.


O metal quente, cheirando a óleo e graxa, deu-lhe confiança. Sim,
ele queria uma arma nova, alguma coisa maior e mais confiável —
como a Uzi e a Bere a que tinha perdido no Dragon. Mas esta era
uma arma da boa sorte que ele possuía há anos. Acreditava que ela
dava sorte porque tinha conseguido a pistola do seguinte modo:
perto de Taipei, uma vez, tinha ido a um templo rezar. Alguém havia
informado à polícia que ele estava lá dentro, e dois policiais o
fizeram parar quando descia a escada. Mas um deles tinha hesitado
em sacar a arma num templo budista e, desajeitado, deixou-a cair na
grama. O Fantasma pegou-a, atirou e matou os dois jovens Policiais
e fugiu.
A partir desse dia a arma fora seu amuleto da sorte, um presente
de seu deus arqueiro, Yi.
Fazia quase uma hora desde que Kashgari tinha entrado para se
certificar de que os filhos de Wu iam ficar quietos. As lojas tinham
fechado nessa parte da Canal — os guardas armados haviam ido
embora, ele tinha certeza, e as calçadas estavam quase totalmente
desertas. Vamos logo, pensou o Fantasma, e se espreguiçou. Estava
cansado de esperar. Yusuf e os outros turcos também estavam.
Tinham reclamado de fome, mas ele achava que até mesmo alguns
dos restaurantes e lanchonetes por ali tinham câmeras de segurança,
e o Fantasma não iria se deixar, nem deixar ninguém ligado a ele ser
gravado em fita por causa de alguma coisa tão frívola como comida.
Eles teriam de...
— Olhe — sussurrou, olhando rua acima.
No fim do quarteirão viu duas pessoas descendo de um táxi,
nervosamente mantendo a cabeça baixa. Os Wu. O Fantasma os
reconheceu claramente por causa das roupas de moletom barato que
usavam. Eles pagaram ao motorista e entraram numa farmácia da
esquina, o marido segurando a mulher pela cintura. O braço dela
estava engessado ou enrolado com bandagens grossas. Ele carregava
uma sacola de compras.
— Aprontem as máscaras. Verifiquem as armas. Os dois turcos
obedeceram.
Cinco minutos depois os Wu saíram da farmácia. Estavam
andando o mais rapidamente possível, considerando a situação da
mulher. O Fantasma disse a Hajip — Fique com o carro. Deixe o
motor ligado. Ele e eu — um movimento de cabeça para Yusuf —
vamos seguir os Wu para dentro. Nós vamos empurrá-los para o
apartamento e fechar a porta. Vamos usar travesseiros como
silenciadores. Quero trazer a filha conosco. Vamos ficar com ela
durante um tempo.
Yindao perdoaria essa infidelidade, pensou ele.
Agora os Wu estavam a cinco metros da porta, andando
rapidamente, de cabeça baixa, sem perceber os deuses da morte que
pairavam ali perto.
O Fantasma achou seu celular e ligou para o turco que estava no
apartamento dos Wu.
— Sim? — perguntou Kashgari.
— Os Wu estão perto do prédio. Onde estão os filhos?
— O garoto está no banheiro. A garota está comigo.
— Assim que eles entrarem no beco, nós vamos logo atrás. Ele
desligou o telefone totalmente — para não haver um toque que os
distraísse em momentos inoportunos. O Fantasma e Yusuf puseram
as máscaras sobre o rosto e desceram. O outro turco passou para trás
do volante da Blazer.
Os Wu estavam chegando perto da porta.
O Fantasma saiu da calçada e foi direto para suas vítimas.
Com medo, você pode ser corajoso...

FANTASMORTES

Cena do Crime Easton, Long Island

• Dois imigrantes mortos na praia, com tiros nas costas.


• Um imigrante ferido — Dr. John Sung.
• ”Bangshou” (assistente) a bordo; identidade desconhecida.
• Assistente confirmado como corpo afogado encontrado perto
do lugar onde o Dragon afundou.
• Dez imigrantes escapam: sete adultos (um idoso, uma mulher
ferida), duas crianças, um bebê. Roubam furgão da igreja.
• Amostras de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Mulher ferida é AB negativo. Requisitando mais informações
sobre seu sangue.
• Veículo esperando o Fantasma na praia partiu sem ele. Um tiro
supostamente dado pelo Fantasma contra o veículo.
• Veículo é um BMW X5.
• Motorista — Jerry Tang.

Furgão Roubado, Chinatown

• Camuflado por imigrantes com o logotipo ”A Loja do Lar”.


• Mancha de sangue sugere que mulher tem ferimento no braço
ou no ombro.
• Amostras de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Mulher ferida é AB negativo. Requisitando mais informações
sobre seu sangue.
• Digitais mandadas ao AFIS.
• Nenhuma identificação.

Cena do Assassinato de Jerry Tang

• Quatro homens arrombaram a porta, torturaram-no e o


mataram a tiros.
• Dois cartuchos de balas — combinam com Modelo 51. Tang
levou dois tiros na cabeça.
• Grande vandalismo.
• Algumas digitais.
• Nenhuma identificada, a não ser a de Tang.
• Três cúmplices têm sapatos menores que os do Fantasma,
presumivelmente menor estatura.
• Traços de substâncias sugerem que o esconderijo
• Veículo é um BMW X5.
• Motorista — Jerry Tang.
• Nenhum veículo para pegar os imigrantes foi localizado.
• Celular, presumivelmente do Fantasma, mandado para análise
no FBI.
• Telefone por satélite impossível de ser rastreado. Penetrou no
sistema chinês para ser usado.
• Arma do Fantasma é uma pistola 7.62. Cartuchos incomuns.
• Pistola automática chinesa Modelo 51.
• O Fantasma pode ter gente do governo em sua folha de
pagamento.
• O Fantasma roubou um sedã Honda vermelho para fugir.
Providenciado pedido de localização do veículo.
• Nenhum traço do Honda.
• Três corpos recuperados no mar — dois mortos a tiros, um
afogado. Fotos e impressões mandadas a Rhyme e à polícia chinesa.
• Indivíduo afogado identificado como Victor Au, o bangshou do
Fantasma.
• Digitais mandadas ao AFIS.
• Nenhuma identificação em nenhum ponto, mas marcas
incomuns nos dedos de Sam Chang (ferimento, queimadura de
corda?)
• Perfil dos imigrantes: Sam Chang, Wu Qichen e suas famílias,
John Sung, bebê de mulher afogada, homem e mulher não
identificados (mortos na praia).
Casa segura do Fantasma fica provavelmente no sul de
Manha an, na área de Ba ery Park City. · Suspeita-se de cúmplices
de minoria étnica chinesa. No momento o paradeiro é procurado.
Capítulo 24
Os Wu na porta.
Os filhos no apartamento.
O Fantasma e Yusuf com máscaras no rosto e armas na cintura,
corriam pela Canal Street. Ele sentia o jorro de empolgação de
sempre, antes da matança. Suas mãos vibravam ligeiramente, mas
ficariam firmes quando levantasse a arma para atirar.
Pensou de novo na filha de Wu. Dezessete, dezoito... bastante
bonita. Ele iria...
Foi nesse momento que um estampido alto ecoou na rua e uma
bala acertou um carro estacionado logo atrás do Fantasma. O alarme
começou a disparar.
— Meu Deus — gritou uma voz de homem em algum lugar.
Quem atirou?
O Fantasma e Yusuf pararam e se agacharam. Levantaram suas
armas, examinando a rua e procurando o atacante.
— Droga! — veio outra voz. — Cessar fogo! E outra: — Quem,
porra...
Os Wu pararam, agachando-se na calçada. A cabeça do Fantasma
estava girando. Ele agarrou o braço de Yusuf. Uma voz de homem
gritou por um alto-falante: ”Kwan Ang! Pare. Aqui é o Serviço de
Imigração dos Estados Unidos!”, seguido imediatamente por um
segundo disparo — aparentemente do homem que tinha gritado — e
uma janela de um carro parado ali perto explodiu numa nuvem de
cacos de vidro.
Com o coração vibrando pelo choque, o cabeça de cobra recuou
abaixado, mantendo a arma da sorte levantada, procurando um alvo.
O Serviço de Imigração estava aqui? Como?
— É uma armadilha — gritou ele para Yusuf. — Volte para o
carro!
Agora o caos enchia a Canal Street. Mais gritos, pedestres e
vendedores de lojas mergulhando em busca de abrigo. Mais adiante
no quarteirão as portas de dois furgões brancos se abriram e homens
e mulheres de uniformes pretos, portando armas, saltaram.
E o que era isso? Os próprios Wu estavam sacando armas! O
marido pegou uma pistola automática na sacola de plástico que
estava segurando. A mulher estava tirando uma arma do bolso de
seu agasalho de corrida... e então o Fantasma percebeu que eles não
eram os Wu. Eram iscas — policiais ou agentes sino-americanos
usando as roupas dos Wu. De algum modo a polícia tinha achado o
casal e mandado essas pessoas de volta para atraí-lo para fora da
cobertura.
— Baixem as armas! — gritou o homem disfarçado de Wu.
O Fantasma deu cinco ou seis tiros ao acaso, para manter as
pessoas abaixadas e alimentar o pânico. Atirou na vitrine de uma
joalheria, acrescentando outra sirene ao tumulto de sons na rua e
fazendo aumentar o caos.
O turco no banco do motorista abriu a porta e começou a atirar
contra os furgões brancos. Correndo, procurando cobertura e alvos,
a polícia se espalhou do outro lado da Canal.
Enquanto se agachava ao lado do seu carro, o Fantasma ouviu: —
Quem atirou?... O pessoal de apoio não está posicionado... Que porra
aconteceu?... Cuidado com os pedestres, pelo amor de Deus!
Um motorista em pânico num carro diante do apartamento dos
Wu começou a acelerar para sair da linha de tiro. O Fantasma
disparou duas vezes contra o banco da frente. O vidro da janela
desapareceu e o carro derrapou chocando-se num estrondo
gigantesco contra uma fila de veículos estacionados.
— Kwan Ang — veio o grito eletrônico de um megafone ou do
alto-falante de um veículo, dessa vez uma voz diferente. — Aqui é o
FBI. Baixe...
Ele calou o agente disparando mais duas vezes na direção dele e
subiu na Blazer. Os uigures subiram no banco de trás.
— Kashgari! Ele está lá dentro — gritou Yusuf, e indicou o
apartamento dos Wu, onde o terceiro turco esperava.
— Ele está morto ou capturado — reagiu o Fantasma. —
Entende? Não vamos esperar.
Yusuf concordou. Mas, assim que virou a chave e ligou o motor,
o Fantasma notou um policial saindo de uma fila de carros,
sinalizando para os pedestres voltarem e procurarem cobertura. Ele
levantou a pistola e apontou para a frente da Blazer.
— Abaixem-se! — gritou o Fantasma enquanto o policial atirava
repetidamente. Os três homens se encolheram, esperando que o
para-brisa se despedaçasse.
Em vez disso ele ouviu um tinido alto após outro enquanto as
balas acertavam a frente do veículo. Oito ou nove. Finalmente houve
um som metálico enorme quando as pás do ventilador foram
desalinhadas e se chocaram contra outras partes do motor, que deu
um guincho alto, com vapor brotando do radiador rasgado.
Finalmente emudeceu.
— Para fora! — ordenou o Fantasma, pulando e atirando várias
vezes na direção do policial, obrigando-o a buscar cobertura atrás de
uma fila de carros.
Os três homens se agacharam na calçada. Por um momento
houve uma calmaria. Os agentes da polícia tinham parado de atirar,
provavelmente esperando a chegada do pessoal de apoio — mais
carros de emergência, com sirenes uivando, vinham a toda agora
mesmo pela Canal Street, na direção deles.
— Larguem as armas e fiquem em pé — gritou a voz de novo
pelo alto-falante, envolta em estática. — Kwan, largue as armas!
— A gente se entrega? — perguntou Hajip, com os olhos
gigantescos de medo.
O Fantasma o ignorou e enxugou as mãos suadas na calça,
depois enfiou outro pente de munição na Modelo 51. Olhou para
trás.
— Por aqui! — Em seguida se levantou e atirou nos policiais e
correu em direção ao mercado de peixe atrás deles. Vários fregueses
e funcionários estavam escondidos atrás de latões cheios de peixes e
enguias, gôndolas de comida, freezers. O Fantasma e os dois turcos
correram para o beco dos fundos, onde acharam um velho parado ao
lado de um furgão de entregas. Ao ver as armas e as máscaras, o
homem se ajoelhou e levantou os braços. Começou a uivar: — Não
me machuquem! Por favor! Eu tenho família... — Sua voz sumiu
num soluço.
— Para dentro — gritou o Fantasma aos turcos. Eles saltaram no
furgão. O cabeça de cobra olhou para trás, pela porta, e pôde ver
vários policiais se aproximando cautelosamente da loja. Virou-se e
disparou na direção deles. Eles se espalharam procurando cobertura.
Então o Fantasma girou para trás e congelou. O velho tinha
agarrado uma comprida faca de cortar filé e dado um passo adiante.
Ele parou e piscou aterrorizado. O Fantasma baixou a pistola para a
testa do homem, cheia de manchas de velhice. A faca caiu nas pedras
molhadas do calçamento aos pés dele. Ele fechou os olhos.

Cinco minutos depois Amelia Sachs chegou à cena. Correu em


direção ao apartamento dos Wu, com a pistola na mão.
— O que aconteceu — gritou para um policial que estava junto a
um carro com buracos de tiros. — Que diabo aconteceu?
Mas o jovem policial estava muito abalado e só olhou para ela,
atordoado.
Ela continuou andando pela rua e achou Fred Dellray agachado
junto a um policial ferido no braço, segurando uma bandagem
improvisada no ferimento. Paramédicos chegaram correndo e
assumiram o controle.
Dellray estava furioso.
— Isto é ruim, Amelia. Nós estávamos a um centímetro dele.
Meio centímetro.
— Onde ele está? — perguntou ela, pondo a Glock no coldre.
— Roubou um furgão de entregas naquele mercado de peixe do
outro lado da rua. Pusemos todo mundo que tem um distintivo na
cidade atrás dele.
Sachs fechou os olhos, consternada. Todas as deduções brilhantes
de Rhyme... e os esforços sobre-humanos para juntar uma equipe de
abordagem a tempo tinham sido desperdiçados.
O que Rhyme, frustrado com a falta de pistas, tinha percebido na
tabela de evidências foi a referência ao sangue da imigrante ferida. O
número que Sachs havia achado para ele era do Departamento de
Perícia Médica. Ele percebeu que o laboratório não tinha ligado de
volta com o resultado dos exames. Rhyme conseguiu que um
patologista forense terminasse rapidamente a análise.
O médico tinha achado várias coisas úteis: a presença de medula
óssea no sangue, indicando uma fratura séria; sepsia, sugerindo um
corte ou abrasão funda, e a presença de Coxiella burnetii, a bactéria
responsável pela febre Q, uma zoonose — doença transmitida por
animais a pessoas. Essas bactérias costumavam ser contraídas em
lugares onde animais eram mantidos durante longos períodos, como
currais nos portos ou depósitos de navios.
O que significava que a imigrante era uma mulher muito doente.
E isso, por sua vez, era uma coisa que Rhyme achou que podia
ser útil.
— Fale desta febre — perguntou Rhyme ao patologista. Mesmo
não sendo contagiosa nem fatal, os sintomas da doença podiam ser
sérios, pelo que ficou sabendo. Dor de cabeça, arrepios, febre,
possivelmente até mau funcionamento do fígado. — É rara? —
perguntou Rhyme.
— Muito, por aqui.
— Excelente — anunciou Rhyme, animado com a notícia, e
mandou Selli o e Deng reunirem uma equipe de policiais do Grande
Prédio — Police Plaza número um, centro da cidade — e da Quinta
Delegacia. Eles começaram a ligar para todos os hospitais e clínicas
de emergência na Chinatown de Manha an e na de Flushing,
Queens, para ver se alguma paciente chinesa fora admitida com
febre, e um braço quebrado e infeccionado.
Depois de apenas dez minutos tinham recebido um telefonema
de um dos policiais do centro da cidade. Por acaso um chinês tinha
acabado de levar a mulher para a emergência de uma clínica em
Chinatown ela se ajustava perfeitamente ao perfil — febre avançada
e fraturas múltiplas. Seu nome era Wu Yong-Ping. Fora internada, e o
marido também estava lá.
Policiais da Quinta Delegacia tinham ido correndo ao hospital —
junto com Sachs e Deng — para entrevistá-los. Os Wu, muito
abalados com a prisão, contaram à polícia onde estavam morando e
que os filhos continuavam no apartamento. Então Rhyme tinha
telefonado dizendo a ela que tinha acabado de receber os resultados
do AFIS sobre o assassinato de Mah: algumas das digitais
combinavam com as encontradas numa cena anterior do caso
FANTASMORTES; o cabeça de cobra tinha cometido o crime. Quando
Wu explicou que o corretor de Mah tinha conseguido o apartamento
para eles, Rhyme e Sachs perceberam que o Fantasma
provavelmente estava indo matá-los naquele momento.
Como a equipe SPECTAC do escritório ainda não estava
disponível para ajudar no caso, Dellray, Selli o e Peabody montaram
uma equipe conjunta e conseguiram alguns policiais sino-
americanos da Quinta Delegacia para se disfarçarem como os Wu.
Mas, devido ao tiro prematuro, todo o esforço fora desperdiçado.
Dellray gritou para outro agente: — Mais alguma coisa sobre o
furgão da peixaria? Como foi que ninguém viu? Ele tem a porra do
nome da loja na lateral, em letras enormes e feias.
O agente fez uma chamada pelo rádio e um momento depois
informou: — Nada, senhor. Nenhum relatório sobre ele em
movimento ou abandonado.
Dellray mexeu o nó de sua gravata roxa e preta, praticamente
invisível atrás do colete à prova de balas.
— Alguma coisa não Está Certa.
— O que quer dizer, Fred? — perguntou Sachs.
Mas o agente não respondeu. Olhou para a peixaria e foi até lá.
Sachs o acompanhou. Parado perto do grande latão de gelo na frente
havia três chineses — funcionários da loja, presumiu Sachs — e dois
policiais do NYPD entrevistando-os.
Dellray examinou os funcionários um a um e seu olhar pousou
num homem velho, cujos olhos baixaram imediatamente para a
dúzia de peixes cinza-avermelhados sobre o gelo.
Apontou um dedo para o homem.
— Ele disse a vocês que o Fantasma roubou o furgão, certo?
— Isso mesmo, agente Dellray — disse um dos policiais.
— Bom, ele estava mentindo, droga!
Dellray e Sachs correram até a parte de trás da loja e foram até o
beco nos fundos. Escondido atrás de uma grande lixeira a uns dez
metros de distância acharam o furgão do mercado de peixes.
Voltando à frente da loja, Dellray disse ao velho: — Escute,
esqueleto, diga o que aconteceu e não me sacaneie. Nós estamos
todos juntos nisto?
— Ele ia me matar — disse o homem, soluçando. — Me fez dizer
eles rouba furgão, três homens. Pôs arma minha cabeça. Foram no
carro pelo beco, esconderam furgão depois saíram correndo. Não sei
aonde.
Dellray e a policial voltaram ao posto de comando improvisado.
— Não posso culpá-lo. Mas mesmo assim... que merda!
— Então — especulou ela — eles entraram numa rua lateral e
roubaram algum carro.
— Provavelmente. E mataram o motorista.
Um instante depois um policial apareceu dizendo que havia a
informação do roubo de um carro. Três homens armados, com
máscaras de esquiador, tinham corrido até um Lexus num sinal de
trânsito, ordenaram que o casal saísse e deram no pé.
Contrariamente à previsão de Dellray, o motorista e a passageira
ficaram incólumes.
— Por que ele não os matou? — perguntou-se Dellray.
— Provavelmente não queria atirar de novo — disse Sachs.
Atrairia muita atenção. — E acrescentou amarga: — Seria
inconveniente.
A medida que mais veículos de emergência chegavam, ela
perguntou a Dellray: — Quem foi? Quem deu o tiro que o assustou?
— Ainda não sei. Mas vou olhar isso com uma porra de uma
lente de aumento.
Mas acabou não precisando procurar muito. Dois policiais
uniformizados foram até o agente do FBI e conferenciaram com ele.
O rosto do agente se franziu. Dellray ergueu os olhos e foi até o
culpado.
Era Alan Coe.
— Que porra aconteceu? — rosnou Dellray.
Na defensiva, mas desafiador, o agente ruivo encarou nos olhos o
agente do FBI.
— Eu tinha de atirar. O Fantasma ia atirar nos policiais
disfarçados, você não viu?
— Não, não vi. A arma dele estava na cintura.
— Não pelo meu ângulo.
— A merda o seu ângulo. Estava na cintura dele.
— Estou ficando de saco cheio de você me dar lição, Dellray. Era
necessária uma porra de uma decisão. Se você estivesse com todo
mundo posicionado nós ainda poderíamos ter pegado o sujeito.
— Nós combinamos pegá-lo na calçada, sem inocentes em volta,
e não no meio de uma rua apinhada. — Dellray balançou a cabeça.
— Trinta segundinhos e ele estaria embrulhado que nem um
presente de natal. — Depois o agente alto assentiu para a grande
Glock 45 na cintura de Coe. — E mesmo que ele estivesse indo atacar
alguém, como, diabos, você pôde errar com uma arma dessas a
quinze metros? Até eu poderia acertá-lo, e olhe que não disparo
minha arma mijona mais de uma vez por ano. Porra.
O ar desafiador de Coe sumiu e ele disse, contrito: — Achei que
era a coisa certa a fazer, nas circunstâncias. Fiquei preocupado em
salvar algumas vidas.
Dellray pegou o cigarro apagado atrás da orelha, parecendo que
ia acendê-lo.
— Isso já foi longe demais. De agora em diante o Serviço de
Imigração é só uma consultoria. Nada de ação, nada de participar de
grupo tático.
— Você não pode fazer isso disse Coe com um olhar maligno.
— Segundo a Ordem Executiva, eu posso, filho. Vou lá no centro
fazer o que é preciso. — E foi embora intempestivamente. Coe
murmurou alguma coisa que Sachs não entendeu.
Ela olhou Dellray subindo no carro, batendo a porta e indo
embora a toda. Em seguida se virou de novo para Coe.
— Alguém pegou os filhos?
— Filhos? — perguntou o agente, distraído. — Quer dizer, os
filhos dos Wu? Não sei.
Os pais estavam frenéticos para que os filhos fossem levados até
eles no hospital o mais rápido possível.
— Falei ao pessoal do centro sobre eles — disse Coe sem dar
importância, querendo dizer o INS, supôs ela. — Acho que estão
mandando alguém para assumir a custódia. Esse é o procedimento.
— Bom, eu não estou pensando no procedimento — disse ela
rispidamente. — Há duas crianças sozinhas lá e elas acabaram de
ouvir um tiroteio na frente do apartamento. Não acha que elas
estariam meio apavoradas?
Coe já recebera reprimendas suficientes para um dia. Em silêncio
voltou ao seu carro sem uma palavra, pegando o celular enquanto ia
embora. Também acelerou o carro irritado, com o telefone encostado
no ouvido.
Então Sachs ligou para Rhyme e deu a má notícia.
— O que aconteceu? — perguntou Rhyme com mais raiva ainda
do que Dellray.
— Um dos nossos atirou antes de estarmos posicionados. A rua
não estava isolada e o Fantasma fugiu atirando... Rhyme, foi Alan
quem deu o tiro.
— Coe?
— Isso.
— Ah, não.
Dellray vai diminuir a participação do INS.
— Peabody não vai gostar disso.
— Neste ponto Fred não está com clima para se importar com o
que as pessoas gostam ou não.
— Bom — disse Rhyme. — Precisamos de alguém para assumir o
comando. Vamos nos agrupar no escuro para decidir isso. Eu não
gosto da coisa. — Depois perguntou: — Alguma baixa?
— Alguns policiais e civis feridos. Nada sério. — Ela percebeu
Eddie Deng. — Tenho de ir pegar os filhos dos Wu, Rhyme. Ligo
depois de examinar a cena.
— Preciso de alguma ajuda com a tradução, Eddie — disse a
Deng depois de desligar. — Com os filhos dos Wu.
— Claro.
Apontando para a Blazer furada de balas, Sachs disse a outro
policial: — Mantenha-a isolada. Vou examinar a cena num minuto.
— O policial assentiu em resposta.
Deng e Sachs foram até o apartamento.
— Não quero que as crianças vão sozinhas para o INS no centro,
Eddie — disse ela. — Você pode tirá-las disfarçadamente daqui e
levar até os pais na clínica?
— Claro.
Eles desceram os poucos degraus que levavam aos apartamentos
do porão. O lixo enchia o beco de entrada e Sachs soube que os
cômodos ali seriam escuros, provavelmente infestados de baratas e
sem dúvida fedorentos. Imagine, pensou: os Wu tinham se arriscado
à morte e à prisão e sofrido a dor física da viagem terrível só pelo
privilégio de chamar esse local imundo de lar.
— Qual é o número? — perguntou Deng andando na frente de
Sachs.
— Um B.
Ele foi em direção à porta.
Foi então que Sachs notou uma chave na fechadura do
apartamento dos Wu.
Uma chave?, pensou.
Deng estendeu a mão para a maçaneta.
— Não — gritou Sachs, sacando sua arma. — Espere!
Mas era tarde demais. Deng estava empurrando a porta. Ele
saltou para trás — para longe do homem magro e moreno com o
braço ao redor da cintura de uma adolescente que soluçava,
segurando-a na frente do corpo como um escudo, com uma pistola
encostada em seu pescoço.
Capítulo 25
— Ting, ting! — gritou Eddie Deng em pânico.
As mãos desarmadas do jovem detetive subiram acima de seu
cabelo espetado.
Ninguém se mexeu. Sachs ouviu uma quantidade de sons: o
gemido da garota, o sibilo baixo do trânsito, buzinas vindo da rua.
As ordens desesperadas do sujeito armado, numa língua que ela não
entendia. Seus próprios batimentos cardíacos.
Ela se virou de lado, para apresentar um alvo menor, e centrou a
mira de sua Glock na maior parte visível da cabeça dele. A regra era
a seguinte: por mais difícil que seja, você nunca se sacrificava. Nunca
abria mão de sua arma, nunca a largava num impasse, nunca
deixava um bandido usar qualquer parte do seu corpo como alvo.
Tinha de fazer com que ele entendesse que o refém não iria salvá-lo.
O homem começou a se adiantar muito lentamente, fazendo sinal
para eles recuarem, ainda murmurando em sua língua ininteligível.
Nem Sachs nem o jovem detetive se mexeram.
— Você está com colete, Deng? — sussurrou ela.
— Estou — veio a resposta trêmula.
Ela também estava — um colete à prova de balas American Body
Armor com placa Super Shok sobre o coração —, mas nessa distância
um tiro poderia facilmente causar um grande dano a qualquer parte
não protegida do corpo deles. Um pequeno talho na artéria femoral
poderia matar você mais rápido do que alguns tiros no peito.
— Recue — sussurrou ela. — Eu preciso de mais luz para atirar.
— Você vai atirar? — perguntou Deng, inseguro.
— Só recue.
Ela deu um passo atrás. Outro. O jovem policial, com o suor
brilhando entre os fios de cabelo, não se mexeu. Sachs parou. Ele
estava murmurando alguma coisa, talvez uma oração.
— Eddie, você está comigo? — sussurrou ela. Depois de uma
pausa: — Eddie, que droga!
Ele balançou a cabeça.
— Desculpe. Claro.
— Venha, devagar. — Para o homem que segurava a adolescente
Sachs falou numa voz suave e muito devagar: — Baixe a arma. Não
vamos deixar que ninguém se machuque. Você fala inglês?
Eles recuaram. O homem veio atrás.
— Inglês? — tentou ela de novo.
Nada.
— Eddie, diga a ele que nós vamos dar um jeito.
— Ele não é han — disse Deng. — Não fala chinês.
— Tente mesmo assim.
Um jorro de sons saiu da boca de Deng. As palavras em staccato
eram espantosas.
O homem não respondeu.
Os dois policiais recuaram para a frente do beco. Nenhuma
droga de policial ou agente percebeu-os. Sachs pensou: Onde, diabos,
está todo o nosso pessoal?
O agressor e a garota aterrorizada, com a arma comprimida no
pescoço, se adiantaram e saíram também.
— Vocês — gritou o homem para Sachs num inglês precário. —
No chão. Os dois no chão.
— Não — disse Sachs. — Nós não vamos nos deitar. Eu estou
pedindo a você para largar a arma. Você não pode fugir. Há
centenas de policiais. Entende? — Enquanto falava ela ajustava o
alvo, o rosto dele, à luz ligeiramente melhor aqui. Mas era um alvo
muito pequeno. E a têmpora da garota ficava apenas dois
centímetros à direita dele. O sujeito era muito magro, e Sachs não
tinha nenhum alvo no corpo.
O homem olhou para trás, para o beco escuro.
— Ele vai atirar e depois sair correndo — disse Deng numa voz
trêmula.
— Escute — disse Sachs calmamente. — Nós não vamos
machucar você. Nós...
— Não! — O homem apertou a arma com mais força no pescoço
da garota. Ela gritou.
Então Deng levou a mão à arma na cintura.
— Eddie, não! — gritou Sachs.
— Bu! — gritou o agressor, e estendeu a arma, disparando no
peito de Deng. O detetive grunhiu violentamente devido ao impacto
e caiu para trás, contra Sachs, derrubando-a no chão. Deng rolou
sobre a barriga, com ânsia de vômito — ou tossindo sangue; ela não
podia identificar o quê. Atordoada, Sachs lutou para ficar de joelhos.
O atirador apontou para ela antes que ela pudesse levantar a arma.
Mas o sujeito hesitou. Houve alguma distração atrás dele. O
atirador olhou para trás. Na escuridão do beco Sachs pôde
vislumbrar um homem correndo, uma figura pequena, segurando
alguma coisa.
O bandido soltou a garota e girou, levantando a arma, mas antes
que pudesse atirar a figura que corria acertou-o no lado da cabeça
com o objeto que estava segurando — um tijolo.
— Hongse! — gritou Sonny Li para Sachs, largando o tijolo e
afastando a garota do agressor atordoado. Li empurrou-a no chão e
se virou de novo para o sujeito moreno, que segurava a cabeça
sangrando. Mas de repente ele saltou de novo e levantou a pistola
para Li, que cambaleou de costas batendo na parede.
Três tiros rápidos da arma de Sachs derrubaram o atacante como
uma boneca nas pedras do pavimento, e ali ele ficou, imóvel.
— Juízes do inferno — ofegou Sonny Li, olhando o corpo. Ele se
adiantou, verificou o pulso do sujeito e depois tirou a arma de sua
mão sem vida. — Morto, Hongse — gritou ele. Em seguida se virou
de novo para a garota, ajudando-a a se levantar. Soluçando, ela
correu pelo beco, passando por Sachs e jogando-se nos braços de um
policial chinês da Quinta Delegacia, que começou a consolá-la em
sua língua comum.
Peritos médicos correram até Deng para ver como ele estava. O
colete realmente tinha segurado a bala, mas o impacto podia ter
quebrado uma ou duas costelas.
— Desculpe — ofegou ele para Sachs. — Eu só reagi.
— É o seu primeiro tiroteio?
Ele confirmou com a cabeça. Ela assentiu.
— Bem-vindo ao clube.
Os médicos o ajudaram a se levantar e o levaram para ser
examinado mais completamente no ônibus da perícia médica.
Sachs e dois policiais da USE entraram no apartamento e
acharam um menino apavorado com cerca de oito anos no banheiro.
Com a ajuda de um policial sino-americano da Quinta Delegacia
para traduzir, os médicos examinaram os dois irmãos e descobriram
que nenhum tinha sido ferido ou molestado pelo parceiro do
Fantasma.
Sachs olhou de novo o beco, onde outro médico e dois policiais
uniformizados estavam junto ao cadáver do agressor.
— Tenho que processar o corpo — disse ela. — Não quero que ele
seja mexido mais do que o necessário.
— Claro, policial — foi a resposta.
Ali perto, Sonny Li batia nos bolsos e finalmente achou seu maço
de cigarros. Se o policial chinês não tivesse achado nenhum, Sachs
não ficaria surpresa em vê-lo revistar os bolsos do defunto.
Enquanto vestia seu macacão de Tyvek para examinar a cena do
crime, Amelia Sachs levantou os olhos e viu Li caminhando na sua
direção.
Ela riu ao ver o riso animado do sujeitinho.
— Como? — perguntou ela.
— Como o quê?
— Como, diabos, descobriu que os Wu estavam aqui?
— Eu pergunta a mesma coisa a você.
— Você primeiro. — Ela sentiu que ele estava ansioso para cantar
vantagem, e ficou feliz em deixar.
— Certo. — Ele terminou o cigarro e acendeu outro. — Do jeito
eu trabalha na China. Eu vai lugares, conversa gente. Esta noite eu
vai casas de jogos, três. Perde algum dinheiro, ganha algum
dinheiro, bebe. E fala e fala. Finalmente acha um cara em mesa de
pôquer, carpinteiro, de Fujou. Ele conta sobre homem que veio antes,
ninguém conhece ele. Reclamando com todo mundo sobre mulheres,
sobre que tinha de fazer por família porque mulher doente e braço
quebrado. Falando de dinheiro ele vai ganhar. Depois ele diz ele tava
no Dragon hoje cedo e resgata todo mundo quando navio afunda.
Tinha de ser Wu. Desarmonia fígado-baço, estou dizendo. Ele diz ele
mora perto. Eu pergunta por aí e descobre este quarteirão. Um
monte de cabeças de cobra põe gente aqui. Eu vem e olha, pergunta
gente, ver se alguém sabe alguma coisa, e descobre família —
exatamente como os Wu — muda hoje. Eu checa prédio e olha por
janela dos fundos e vê cara com arma. Ei, você olha janela dos
fundos primeiro, Hongse?
— Não, não olhei.
— Talvez você devesse feito isso. Isso boa regra. Sempre olha
primeiro janela dos fundos.
— Eu devia ter olhado, Sonny. — Ela assentiu na direção do
atirador morto.
— Pena ele não vivo — disse Li, carrancudo. — Podia ajudar.
— Vocês realmente não torturam pessoas para fazer com que elas
falem, não é?
Mas o policial chinês simplesmente deu um sorriso enigmático e
perguntou: — Ei, Hongse, como você acha os Wu?
Sachs explicou como eles haviam achado a família através do
ferimento da mulher.
Li assentiu, impressionado com as deduções de Rhyme.
— Mas o que acontece com Fantasma?
Sachs contou do tiro prematuro e a fuga do cabeça de cobra.
— Coe?
— Isso mesmo — concordou ela.
— Grande merda... eu não gosta aquele homem, estou dizendo.
Quando ele lá na China na reunião em Fujou nós não confia muito
nele. Entra na sala e não gosta de nós, ninguém lá. Fala como se nós
é criança, quer ficar sozinho no caso contra o Fantasma. Fala mal de
imigrantes. Desaparece nas vezes a gente precisa dele. — Li olhou
para o macacão de Tyvek. Franziu a testa. — Por que usa essa roupa,
Hongse?
— Para não contaminar as provas.
— Cor ruim. Não deveria usar branco. Cor de morte no meu país,
cor de enterros, estou dizendo. Jogue fora. Arranja roupa vermelha.
Vermelho é cor boa sorte na China. Azul também não. Arranja roupa
vermelha. Já é um alvo suficiente sendo branca. Não bom.
Sentimentos ruins. — Ele se lembrou de uma palavra que Deng tinha
lhe ensinado antes. — Mau agouro, estou dizendo.
— Eu não sou supersticiosa.
— Eu sou. Muita gente na China é. Sempre rezando, sacrificando,
cortando rabo do demônio...
— Cortando o quê?
— Cortando o rabo do demônio. Vê, demônios seguem você
sempre, de modo quando você atravessa rua passa depressa na
frente de carro. Isso corta rabo de demônio e tira poder dele.
— As pessoas não são atropeladas nunca?
— Algumas vezes.
— Então elas não sabem se funciona, não é?
— Não, só sabe que algumas vezes você corta o rabo dele,
algumas vezes demônio pega você.
Cortar o rabo do demônio...
Sachs conseguiu que Sonny Li prometesse que ficaria fora da
cena do crime — pelo menos até ela terminar — e depois processou
o corpo do bandido morto, caminhou pela grade dentro do
apartamento e finalmente examinou o veículo do Fantasma, todo
furado de balas. Ensacou e etiquetou todas as evidências e
finalmente tirou a roupa de astronauta.
Depois ela e Li foram de carro para a clínica, onde acharam a
família Wu reunida num quarto guardado por dois policiais
uniformizados e uma agente do INS, de rosto pétreo. Com Li e o
agente traduzindo, Sachs conseguiu o máximo de informações que
pôde. Ainda que Wu Qichen não soubesse nada do paradeiro do
Fantasma na cidade, o sujeito magricela e amargo deu-lhe alguma
informação sobre os Chang, inclusive o nome do bebê que estava
com eles, PoYee, que significava Criança Adorada. Que nome lindo,
pensou Amelia Sachs.
— Eles vão para a detenção? — perguntou ela à agente do INS.
— Certo. Até a audiência.
— Para você é problema colocá-los numa das nossas casas
seguras?
O NYPD tinha várias casas de aparência comum e de alta
segurança na cidade, usadas para proteção de testemunhas. Os
centros de detenção de imigrantes ilegais do INS eram notoriamente
frouxos. Além disso, o Fantasma esperaria que eles fossem para uma
instalação da Imigração e, com seu guanxi, poderia pagar a alguém
do centro de detenção para deixá-lo, ou a um bangshou, entrar para
de novo tentar matar a família.
— Para nós, tudo bem.
A casa em Murray Hill estava livre, Sachs sabia. Deu o endereço
à agente e o nome do policial do NYPD que supervisionava as casas.
Então a agente do INS olhou para Wu e, como uma professora
mal-humorada, disse: — Por que vocês não ficam em casa?
Resolvam seus problemas lá. Você quase levou sua mulher e sua
família a serem mortos.
O inglês de Wu não era bom, mas aparentemente ele entendeu.
Levantou-se do lado da mulher na cama e fez um gesto largo.
— Não culpa nossa! — disse rispidamente, inclinando-se na
direção da mulher azeda. — Vir aqui não culpa nossa!
Divertida, a agente do INS perguntou: — Não é culpa sua? A
quem você quer culpar?
— Seu país!
— Como deduziu isso?
— Você não vê? Olha em volta! Todo seu dinheiro e riqueza, sua
Propaganda, seus computadores, seus Nikes e Levis, carros, laquê de
cabelo... Seu Leonardo di Caprio, suas mulheres bonitas. Seus
comprimidos para tudo, sua maquiagem, sua televisão! Vocês diz
todo mundo vocês tem tudo aqui, porra! É só dinheiro, mas vocês
diz nós meiyou, vão embora! Vocês diz nossos direitos humanos
terríveis, mas quando nós tenta vir aqui vocês diz meiyou!
O homem magro passou a falar chinês, e depois se acalmou.
Olhou para a mulher de cima a baixo, indicou seu cabelo louro.
— O que é seus ancestrais? Italianos? Ingleses, alemães? Eles
neste país primeiro? Hein? Diz. — Ele acenou irritado, depois
sentou-se na cama e pôs a mão no braço bom da esposa.
A agente balançou a cabeça, sorrindo com condescendência,
como se estivesse pasma pelo imigrante não conseguir deduzir o
óbvio.
Sachs deixou para trás a família sombria e fez um gesto para Li
acompanhá-la até a saída da clínica. Eles pararam na calçada e
depois correram entre dois táxis que se moviam rapidamente. Sachs
imaginou se havia passado suficientemente perto do segundo para
cortar o rabo de qualquer demônio que a estivesse perseguindo.

O prédio e a garagem embaixo eram praticamente


inexpugnáveis, mas o estacionamento anexo numa estrutura
subterrânea do outro lado da rua era muito menos.
A preocupação com atentados terroristas tinha levado a
Administração de Serviços Governamentais a limitar o acesso à
garagem sob o Manha an Federal Plaza. Havia tantos empregados
federais que verificar cada veículo que entrasse na garagem sobre o
edifício criaria gargalos, de modo que essa instalação foi fechada a
todos, menos às autoridades mais altas do governo, e o anexo foi
construído para os empregados. Ainda havia segurança no anexo,
claro, mas como a garagem ficava debaixo de um pequeno parque
até mesmo os piores danos causados por uma bomba seriam
limitados.
De fato, nesta noite às nove horas a segurança não era das
melhores, porque o único guarda na cabine de entrada estava
assistindo a uma diversão: um carro pegando fogo na Broadway.
Um velho furgão ia queimando até os pneus — observado por
centenas de pedestres felizes.
O guarda atarracado tinha saído da cabine, olhando a fumaça
preta e as chamas laranja dançando pelas janelas do furgão.
Por isso não notou o homem magro vestido de terno com uma
pasta de executivo na mão passar rapidamente pela entrada
privativa de veículos e descer correndo a rampa para a garagem
semideserta.
O homem tinha memorizado a placa do carro que queria e
demorou apenas cinco minutos para achar. O veículo azul-marinho
do governo estava bem perto da saída; o motorista tinha essa vaga
especial porque havia chegado há apenas meia hora — muito depois
de os escritórios terem fechado e a maioria dos funcionários federais
terem ido embora.
Como quase todos os carros federais — o homem havia se
certificado —, não havia alarme. Depois de um olhar rápido para a
garagem em volta, ele calçou luvas de tecido, rapidamente enfiou
uma cunha entre a janela e a lateral da porta, deslizou uma haste
para dentro do espaço e abriu a tranca. Abriu sua pasta de executivo
e tirou um saco de papel grosso, olhou dentro verificando mais uma
vez. Viu o maço de cilindros amarelos com trinta centímetros de
comprimento, em cuja lateral estavam escritas as palavras:
EXPLOSIVO. PERIGO. VER INSTRUÇÕES ANTES DE USAR. Fios iam de um
detonador num dos cilindros até uma caixa com uma bateria, e de lá
para um interruptor de pressão simples. Ele pôs o saco sob o banco
do motorista, desenrolou um pedaço de fio e em seguida pôs o
interruptor entre as molas do assento. Qualquer um que pesasse
mais de quarenta e cinco quilos completaria o circuito e acionaria o
detonador simplesmente sentando-se.
O homem ligou o interruptor da caixa da bateria e trancou a
porta do carro o mais silenciosamente possível. E saiu da garagem,
passando casualmente pelo guarda que continuava sem prestar
atenção, fascinado, vendo os bombeiros apagarem as chamas do
furgão incendiado, ainda que com um pequeno desapontamento no
rosto — como se lamentasse o fato de o tanque de gasolina não ter
explodido espetacularmente, como sempre acontecia nos filmes de
ação e nos seriados de TV.
Capítulo 26
Estavam sentados em silêncio, olhando para o pequeno aparelho
de televisão, William traduzindo as palavras que os pais não
entendiam.
O noticiário especial não dera os nomes das pessoas quase
assassinadas na Canal Street, mas foram sem dúvida Wu Qichen e
sua família; a matéria dizia que eles tinham sido passageiros do
Fujou Dragon. Um dos capangas do Fantasma fora morto, mas o
cabeça de cobra tinha escapado com outros dois.
A matéria terminou, e entraram os comerciais na tela da TV.
William se levantou e foi até a janela, olhou para a rua escura.
— Volte — disse Chang rispidamente ao filho. Mas, por um
momento desafiador, o garoto continuou onde estava.
Filhos..., pensou Chang.
— William!
Finalmente o garoto se afastou e entrou no quarto. Ronald ficou
trocando os canais da TV.
— Não — disse Sam Chang ao filho mais novo. — Leia. Pegue
um livro e treine o seu inglês.
O garoto se levantou obedientemente. Foi até a prateleira, achou
um volume e voltou ao sofá para ler.
Mei-Mei terminou de costurar um bichinho de pano para PoYee
— parecia um gato. A mulher fez o brinquedo saltar no braço da
poltrona e a menininha pegou-o com as duas mãos, examinando-o
com olhos felizes. As duas brincaram com o gato, rindo.
Chang ouviu um gemido na poltrona onde seu pai descansava,
enrolado num cobertor que tinha quase o mesmo cinza de sua pele.
— Baba — sussurrou Chang, e se levantou imediatamente.
Achou o remédio do pai, abriu e deu-lhe um tablete de morfina.
Segurou o copo de chá frio para que o homem pudesse tomar o
comprimido. Quando ele adoeceu — com o calor e a umidade se
espalhando rapidamente pelos órgãos yang de seu corpo, o
estômago e os intestinos —, os dois foram ao médico da família, que
lhes deu ervas e tônicos. Mas logo isso não bastava para a dor, e
outro médico diagnosticou câncer. Mas o status de dissidente de
Chang tinha mantido o pai esperando no fim das enormes filas dos
hospitais para o tratamento. O atendimento médico na China estava
mudando. Os hospitais públicos vinham sendo substituídos por
clínicas particulares, mas estas eram extremamente caras — uma
única consulta podia custar dois meses de salário, e o tratamento do
câncer estaria fora de questão para uma família que lutava para
sobreviver. O máximo que Chang pôde encontrar foi um ”médico
descalço” no campo ao norte de Fujou, um daqueles indivíduos que
o governo simplesmente proclamava como paramédicos e exerciam
a medicina com um treinamento mínimo. O homem tinha prescrito
morfina para aliviar a dor de Chang Jiechi, sem dar maiores
esperanças.
O frasco da droga era grande, mas não duraria mais de um mês,
e seu pai estava piorando rapidamente. Pela Internet Chang tinha
feito um bocado de pesquisas sobre os Estados Unidos. Havia um
famoso hospital em Nova York que só tratava de pacientes de câncer.
Ele sabia que o estado de seu pai era avançado, mas ele não era
velho — não pelos padrões americanos —, tinha apenas sessenta e
nove anos, e era forte devido às caminhadas e exercícios diários.
Cirurgiões poderiam operá-lo e remover as partes do corpo
destruídas pela umidade cancerosa e lhe dar radiação e remédios
para manter a doença afastada. Ele poderia viver muitos anos.
Enquanto olhava o pai, o velho abriu subitamente os olhos.
— O Fantasma está com raiva agora que eles mataram um dos
seus homens. E por não ter conseguido matar os Wu. Ele virá atrás
de nós. Eu conheço gente como ele. Não vai parar enquanto não nos
achar.
Esse era o jeito de seu pai. Sentar-se e absorver, e em seguida dar
sua avaliação, invariavelmente correta. Por exemplo, ele sempre
havia considerado Mao Tsé-tung um psicopata e tinha previsto que
algum cataclismo baixaria sobre o país sob o reinado dele. E estivera
certo; a quase aniquilação da economia chinesa nos anos 50 graças ao
Grande Salto Adiante de Mao e à Revolução Cultural uma década
depois, da qual seu pai — como todos os artistas e pensadores de
mente aberta — foi uma vítima.
Mas Chang Jiechi tinha sobrevivido aos desastres. Nos anos 60
dissera à família: — Isso vai passar. A loucura não pode ser mantida.
Só precisamos ficar vivos e esperar. É o nosso objetivo.
Dez anos depois Mao estava morto, o Bando dos Quatro ia para a
prisão, e Chang Jiechi mostrou que estava certo.
E agora também estava certo, pensou Sam Chang, desesperado.
O Fantasma viria atrás deles.
O próprio nome ”cabeça de cobra” vem da imagem dos
contrabandistas se arrastando furtivos pelas fronteiras para levar a
carga humana ao destino final. Chang sentia que o Fantasma estava
fazendo isso agora — sondando, requisitando favores, usando seu
guanxi, ameaçando, talvez até torturando pessoas para descobrir o
paradeiro dos Chang. Ele poderia...
Lá fora, um guincho de freios.
Chang, sua mulher e seu pai congelaram.
Passos.
— Apague as luzes — ordenou Chang. — Rápido. Mei-Mei
correu pelo apartamento apagando-as.
Chang foi rapidamente até o armário, tirou o revólver de William
do esconderijo e foi até a janela da frente, coberta por uma cortina.
Com as mãos trêmulas, olhou para fora.
Do outro lado da rua havia um caminhão de entregas — com um
grande cartaz mostrando uma pizza pendurado na janela. O
motorista estava carregando uma caixa de papelão até um prédio.
— Está tudo bem — disse ele. — Uma entrega para o outro lado
da rua.
Mas então olhou pelo apartamento escuro, detectando as formas
vagas de seu pai, sua mulher e do bebê, iluminados apenas pela luz
azul da tela da televisão. Seu sorriso de alívio se desbotou e como a
escura nuvem de um bastão de nanquim num tinteiro de caligrafia,
ele foi consumido por um arrependimento intenso pelas decisões
que tinha tomado por aquelas pessoas a quem tanto amava. Nos
Estados Unidos, aprendera Chang, a culpa pelas transgressões
tortura a psique; mas na China a vergonha por prejudicar a família e
os amigos é o tormento essencial. E era isso que ele sentia agora:
uma vergonha avassaladora.
Então esta será a vida para a qual eu trouxe meu pai e minha
família: medo e escuro. Nada além de medo e escuro.
A loucura não pode ser mantida.
Talvez não, pensou Chang. Mas isso não significa que seja menos
mortal enquanto persiste.

Sentado num banco no Ba ery Park City, o Fantasma estava


olhando as luzes dos navios no rio Hudson, muito menos pacíficas
mas menos pitorescas do que a beira do cais em Hong Kong. Houve
uma parada na chuva, mas o vento continuava forte, empurrando
rapidamente nuvens baixas e púrpura, cujas barrigas eram
iluminadas pelo vasto espectro de luzes da cidade.
Como a polícia tinha achado os Wu?
Pensou na questão, mas não conseguiu chegar a uma resposta.
Provavelmente através do corretor que ele matara e através de Mah
— os investigadores não tinham engolido a história de que os
italianos houvessem liquidado o líder da tong apesar da mensagem
que ele escrevera com o sangue de Mah. O noticiário havia
informado que o uigur que eles deixaram para trás estava morto, e
isso significava uma grande reparação pela morte do chefe do centro
cultural.
Como é que haviam achado a família?
Talvez fosse magia...
Não, magia não. O Fantasma tivera mais prova ainda de que seu
adversário e os que trabalhavam com ele eram implacáveis e
talentosos. Havia uma coisa muito diferente nas pessoas que
estavam atrás dele desta vez. Melhores do que os taiwaneses,
melhores do que os franceses, melhores do que os agentes típicos do
INS. Se não fosse o primeiro tiro na Canal Street, ele agora estaria
preso ou morto.
E quem, exatamente, era esse tal de Lincoln Rhyme, sobre quem
sua fonte de informação havia relatado?
Bom, agora ele achava que estava em segurança. Ele e os turcos
tinham tomado muito cuidado para esconder o Lexus que haviam
roubado na fuga. Esconderam melhor do que o Honda que ele tinha
roubado na praia. Em seguida os três se separaram imediatamente.
Ele havia usado a máscara diante do apartamento dos Wu, ninguém
os havia seguido a partir do tiroteio, e Kashgari não tinha qualquer
documento de identidade que o ligasse ao Fantasma ou ao centro
cultural no Queens.
Amanhã ele acharia os Chang.
Duas jovens americanas passaram lentamente, desfrutando a
vista e conversando de um modo que ele achava irritante, mas o
Fantasma apagou as palavras e olhou para os corpos.
Resistir?, perguntou-se.
Não, pensou decidido. Pegou o celular e, antes que sua vontade o
impedisse, ligou para Yindao e os dois marcaram um encontro para
mais tarde. Notou que ela ficou satisfeita em ter notícias suas. Com
quem ela estaria atualmente? O que estaria fazendo e dizendo? Ele
não teria muito tempo para vê-la — estava exausto desse dia
interminável e precisava dormir. Mas com que força queria estar
perto dela, sentir seu corpo firme entre as mãos, olhá-la deitada
debaixo dele... Tocá-la, erradicar o choque, a raiva e o quase desastre
acontecido mais cedo na Canal Street.
Depois de desligar, manteve a lembrança da voz ardente da
mulher no pensamento, enquanto continuava olhando as nuvens
rápidas, as ondas agitadas...
Desapontado, você pode se realizar.
Com fome, você pode se saciar.
Derrotado, você pode ser vitorioso.

Às 21h30 Fred Dellray se levantou e se espreguiçou, depois tirou


quatro copos de café vazios de sua mesa no escritório do FBI em
Manha an. Jogou-os na lata de lixo cheia.
Hora de encerrar por hoje.
Folheou o relatório do tiroteio na Canal Street. Estava
praticamente terminado, mas sabia que teria de revisá-lo no dia
seguinte. Dellray gostava de escrever e era bom nisso (com um
pseudônimo ele havia colaborado para várias revistas históricas e
filosóficas, abordando muitos assuntos diferentes no correr dos
anos), mas esta obra em particular ia exigir uma massagem séria.
Curvado sobre a mesa, olhou as páginas, compulsivamente
tomando notas aqui e ali, e o tempo todo imaginando exatamente
por que estava trabalhando no FANTASMORTES.
Frederick Dellray, com diplomas em criminologia, psicologia e
filosofia enfiados no cinto, evitava o trabalho policial cerebral. Estava
para o serviço sob disfarce assim como Rhyme estava para a
criminalística. Conhecido como o Camaleão, podia representar
qualquer pessoa de qualquer cultura, desde, claro, que o papel
pudesse ser feito por alguém com bem mais de um metro e noventa
e de pele escura como um etíope. O que ainda deixava um âmbito
espantoso de papéis para o agente — uma vez que o crime talvez
seja o único aspecto da sociedade onde somos julgados apenas pela
habilidade, não pela raça.
Mas o talento de Dellray, e a paixão de toda a vida pelo trabalho
policial, tinha-o atrapalhado. Ele tinha sido bom demais. Além de
fazer serviços sob disfarce para sua instituição, o FBI, era
regularmente emprestado à Administração Antidrogas; à de Álcool,
Tabaco e Armas de Fogo e aos departamentos de polícia de Nova
York, L.A., Washington, D.C Os bandidos têm computadores,
celulares e e-mail também, claro, e pouco a pouco a reputação de
Dellray se espalhou no submundo. Tornou-se muito perigoso colocá-
lo no campo.
Ele foi promovido e encarregado de comandar agentes
disfarçados e ICs, informantes confidenciais, em Nova York.
De sua parte, Dellray teria preferido uma tarefa diferente. Seu
parceiro, o agente especial Toby Dooli le, fora morto no atentado a
bomba no prédio federal de Oklahoma City, e a morte colocara
Dellray numa busca perene para ser recolocado na unidade
antiterrorismo do escritório. Mas reconhecia com relutância que a
paixão por prender um bandido não bastava para ser bom nesta área
do trabalho policial — olhe para Alan Coe, por exemplo —, e assim
ele se contentava em permanecer onde seus talentos estavam.
A princípio Dellray ficou confuso ao ser designado para o que se
tornaria o FANTASMORTES; nunca tinha cuidado de casos de
contrabando humano. Achava que fora recrutado por causa de seus
muitos trabalhos sob disfarce em Manha an, no Queens e no
Brooklyn — onde as comunidades sino-americanas desta área se
localizavam. Mas logo Dellray ficou sabendo que suas técnicas
tradicionais para usar informantes e agentes disfarçados não
funcionavam. Espectador de filmes inteligentes, Dellray vira o
famoso Chinatown que deixava claro que o bairro de mesmo nome
na antiga Los Angeles atuava fora das leis ocidentais. Isso, descobriu
ele, não era uma invenção do roteirista. E era verdade também em
relação às Chinatowns de Nova York. A justiça era administrada
através das tongs, e o número de telefonemas para o 911 e para as
delegacias de polícia nas comunidades chinesas de Nova York era
muito menor do que em outros bairros. Ninguém dedurava para
gente de fora, e os agentes disfarçados eram identificados quase
imediatamente.
Assim, com o FANTASMORTES, ele se viu comandando uma
operação complicada lidando com um tipo de crime com o qual
tinha pouca experiência. Mas depois dos esforços desta noite no
escritório sentia-se muito melhor. Amanhã iria se encontrar com os
agentes especiais encarregados dos distritos Sul e Leste e um dos
diretores-assistentes de Washington. Seria nomeado agente especial
supervisor, o que abriria um bocado dos recursos do escritório para
ele e a equipe do FANTASMORTES. Como agente especial supervisor,
pressionaria para conseguir o que necessitavam para o caso: a
jurisdição completa do FBI, isto é, dele, a equipe SPECTAC da
cidade e o Serviço de Imigração relegado a um papel exclusivamente
de consultoria, o que na prática significava afastá-lo do caso por
completo. Peabody e Coe ficariam putos dentro da roupa, mas tanto
fazia. Ele já havia estruturado sua argumentação. Sim, o INS era vital
para reunir informações sobre cabeças de cobra e operações de
contrabando e para interceptar seus navios. Mas agora o
FANTASMORTES era totalmente a caçada a um assassino. Esta era a
especialidade do escritório.
Ele confiava em que os chefões engoliriam seu discurso; os
agentes que costumavam trabalhar disfarçados como ele, segundo
aprendera Dellray, estão entre os mais persuasivos — e
extorsionistas do mundo.
Dellray pegou o telefone do escritório e ligou para o seu próprio
número, o do seu apartamento no Brooklyn.
— Alô? — atendeu uma voz de mulher.
— Vou chegar em casa daqui a meia hora — disse em voz suave.
Com Serena ele nunca usava as gírias que tinha absorvido
trabalhando nas ruas de Nova York e que eram sua marca registrada
no serviço.
— Nos vemos mais tarde então. Amo você.
Desligou. Ninguém no escritório ou no NYPD sabia uma única
coisa sobre a vida pessoal de Dellray — nada sobre Serena, uma
coreógrafa na Brooklyn Academy of Music que ele namorava
esporadicamente havia anos. Ela trabalhava longas horas e viajava.
Ele trabalhava longas horas e viajava.
O arranjo servia aos dois.
Enquanto caminhava pelos corredores da sede do escritório, que
faziam lembrar o ambiente de uma corporação grande e
moderadamente bem-sucedida, ele cumprimentou com um aceno de
cabeça dois agentes em mangas de camisa e gravatas frouxas, de um
modo que o Chefe, J. Edgar Hoover, não teria tolerado (assim como,
refletiu Dellray, ele próprio não seria tolerado pelo velho federal,
agora que pensava a respeito).
— Tanto crime — entoou Dellray enquanto passava por eles
caminhando com suas pernas compridas —, tão pouco tempo. —
Eles retribuíram o aceno dando boa-noite.
Depois desceu no elevador e saiu pela portaria. Atravessou a rua
na direção do estacionamento federal anexo.
Percebeu o esqueleto chamuscado de um furgão que tinha se
incendiado mais cedo, ainda soltando fumaça. Lembrou-se de ter
ouvido sirenes, imaginou o que teria acontecido.
Passou pelo guarda, desceu a rampa e entrou na garagem escura,
que cheirava a concreto úmido e escapamento de carros.
Dellray achou seu Ford oficial e destrancou a porta. Abriu-a e
jogou dentro sua velha pasta, que continha uma caixa de munição 9
mm, um bloco de papel amarelo com suas anotações, vários
memorandos sobre o caso Kwan Ang e um livro muito lido, dos
poemas de Goethe.
Enquanto começava a entrar no Ford notou, no lado do
motorista, que o filme adesivo sobre o vidro da janela estava
descolado, o que lhe disse imediatamente que alguém havia enfiado
uma cunha para abrir a porta. Merda! Olhou e viu os fios se
projetando por baixo do banco. Segurou a parte de cima da porta
com a mão direita para não deixar todo o seu peso cair sobre o banco
e comprimir o que ele sabia que era o interruptor de pressão da
bomba.
Mas era tarde demais.
As pontas de seus dedos compridos bateram na borda da porta e
escorregaram. Ele começou a cair de lado no banco.
Proteja os olhos!, pensou instintivamente, levantando as mãos
compridas na direção do rosto.
Capítulo 27
— Os Chang estão em algum lugar no Queens — disse Sachs,
escrevendo a informação no quadro branco. — Dirigindo um furgão
azul, não sabemos a placa nem a marca.
— Nós temos alguma coisa específica sobre o carro? —
murmurou Rhyme. — Azul cerúleo, marinho, celeste, bebê?
— Wu não pôde lembrar.
— Ah, minha nossa, isso ajuda muito.
Enquanto Sachs andava de um lado para o outro, Thom assumiu
o posto como escriba.
As informações sobre o 4x4 do Fantasma, que o cabeça de cobra
tinha abandonado na área do tiroteio junto à casa dos Wu, não eram
melhores. A Blazer tinha sido roubada e estava com placas atuais
mas falsas. O rastreamento do número do chassi do veículo só
revelou que tinha sido roubado em Ohio havia meses.
Sonny Li estava sentado perto, mas no momento não oferecia
suas ideias de detetive asiático; estava remexendo numa grande
sacola de compras que tinha trazido de Chinatown pouco antes. Lon
Selli o estava ao telefone, aparentemente descobrindo que o
Fantasma desaparecera com sucesso depois do tiroteio, a julgar por
sua cara de asco.
Sachs, Mel Cooper e o criminalista se voltaram para os traços de
indícios que ela havia encontrado na Blazer. Ela havia localizado
algumas fibras de carpete cinzento sob os pedais do freio e do
acelerador e duas fibras iguais no punho da camisa do bandido
morto do lado de fora do apartamento dos Wu. As fibras não
combinavam com o carpete da Blazer nem com quaisquer outras das
cenas anteriores, e portanto poderiam vir do esconderijo do
Fantasma.
— Queime-as e vamos verificar o banco de dados.
Cooper passou duas fibras pelo cromatógrafo a
gás/espectrômetro de massa, que produziu um registro das
substâncias exatas que faziam parte daquele tipo de carpete.
Enquanto esperavam os resultados, houve uma batida na porta
do lado de fora, e um instante depois Thom trouxe um visitante.
Era Harold Peabody.
Rhyme presumiu que ele teria vindo falar com eles sobre o
descuido de Coe diante do apartamento dos Wu. Mas havia uma
seriedade em seu rosto que sugeria algo mais. Então, atrás dele,
outro homem apareceu. Rhyme o reconheceu como o agente especial
assistente encarregado — o AEAE — do escritório de Manha an do
FBI, um homem bonito demais, com queixo perfeito e modos
presunçosos. Rhyme tinha trabalhado com ele várias vezes e o
achava eficiente e sem imaginação — e, como reclamara Dellray,
dado a um papo burocrático denso como mel. Ele também estava
sério.
Então um terceiro homem apareceu. Seu terno azul-marinho
impecável e a camisa branca sugeriam a Rhyme que também era do
bureau, mas se identificou como Webley, do Departamento de
Estado.
Então agora o Departamento de Estado estava envolvido, pensou
Rhyme. Era bom sinal. Dellray devia ter usado seu guanxi em altas
esferas para conseguir reforços.
— Desculpe a intromissão, Lincoln — disse Peabody.
O AEAE: — Precisamos falar com você. Aconteceu uma coisa lá
no centro esta noite.
— O quê?
— É sobre o caso? — perguntou Sachs.
— Não achamos que esteja relacionado. Mas acho que pode ter
algumas implicações.
Bom, vamos logo, pensou Rhyme, e esperou que seu olhar
impaciente desse esta mensagem.
— Alguém pôs uma bomba na garagem do outro lado do prédio
federal esta noite.
— Meu Deus — sussurrou Mel Cooper.
— No carro de Fred Dellray.
Ah, meu Deus, não, pensou Rhyme.
— Não! — gritou Sachs.
— Uma bomba? — exclamou Selli o, fechando o celular.
— Ele está bem — disse o AEAE rapidamente. — A carga
principal não explodiu.
Rhyme fechou os olhos. Tanto ele quanto Dellray tinham perdido
gente próxima graças a explosões. Até mesmo Rhyme, que era
desprovido de emoções, considerava esse o modo mais insidioso e
covarde de matar alguém.
— Não ficou ferido? — perguntou Li, preocupado.
— Não.
O policial chinês murmurou alguma coisa, talvez uma oração.
— O que aconteceu? — perguntou o criminalista.
— Era dinamite com interruptor de pressão. Dellray o acionou,
mas só o detonador foi disparado. Talvez a carga não estivesse
colocada direito. Eles ainda não sabem.
— Nossa unidade antibombas pegou o material e mandou as
partes ao ERIF — disse o AEAE.
Rhyme conhecia a maior parte dos agentes e técnicos da Equipe
de Reação a Indícios Físicos do escritório, e os respeitava. Se
houvesse alguma coisa a descobrir, confiava em que eles
conseguiriam.
— Por que acham que não está relacionado?
— Houve um telefonema anônimo para o nove-um-um uns vinte
minutos antes da explosão. Voz masculina, sotaque não
determinado, disse que a família Cherenko estava planejando uma
retaliação pela batida da semana passada. Disse que depois viriam
mais coisas.
Dellray, lembrou Rhyme, tinha acabado de comandar uma
grande operação sob disfarce no Brooklyn, lar da máfia russa. Havia
prendido três lavadores de dinheiro em nível internacional, seus
empregados e vários supostos pistoleiros e confiscado milhões de
dólares e rublos — Origem do telefonema?
— Telefone público em Brighton Beach. A maior comunidade
russa da área.
— Não acredito em coincidências — disse Rhyme. — O Fantasma
passou algum tempo na Rússia, lembra? Para pegar os imigrantes.
Ele olhou para Sachs, levantando uma sobrancelha interrogativa.
Ela respondeu: — O Fantasma e seus coleguinhas estavam muito
doidos para se afastar da cena do tiroteio na casa dos Wu. Não
consigo vê-los fazendo um desvio até o prédio federal para colocar
uma bomba. O que não quer dizer que não possam ter contratado
alguém.
Rhyme observou que Webley, do Departamento de Estado, não
tinha dito uma palavra desde que os homens haviam chegado.
Estava em pé, quieto, de braços cruzados, diante das tabelas de
evidências, olhando-as.
— Como eles plantaram a bomba? — perguntou Selli o ao
AEAE.
— Achamos que era uma dupla. Alguém incendiou um furgão
diante da garagem. Distraiu o guarda. O outro cara entrou na
garagem e armou a bomba.
Consternado, de repente Rhyme entendeu a que ”implicações” o
AEAE estava se referindo.
— E Fred quer ficar fora do caso do Fantasma, certo? O AEAE
assentiu.
— Por causa do negócio que aconteceu com o parceiro dele, você
sabe.
Toby Dooli le, lembrou Rhyme, o parceiro morto no atentado em
Oklahoma City.
— Ele já limpou a mesa e está chamando seus informantes em
Brighton Beach.
Rhyme não podia julgar o agente. Mas falou: — Nós precisamos
de ajuda, Harold. Fred ia montar uma equipe SPECTAC e conseguir
mais uns agentes. — Ele também sabia que Dellray estivera tentando
reduzir o papel do INS para apenas captação de informações e
consultoria, um fato que até mesmo Rhyme jamais praticante da
diplomacia — decidiu que era melhor não mencionar no momento.
— A rede do Fantasma é boa demais. Ele está muito escondido.
Precisamos de mais gente, mais apoio. O AEAE falou em tom
tranquilizador: — Ah, nós não vamos cortar isso, Lincoln. Teremos
um novo agente de campo para você de manhã, e mais algumas
notícias sobre a SPECTAC
Peabody desabotoou o paletó, revelando uma camisa muito
manchada de suor.
— Ouvi falar do que aconteceu com Alan Coe — disse ele —,
quer dizer, diante do apartamento dos Wu. Sinto muito.
— A gente teria apanhado o Fantasma — disse Li. — Se Coe não
atira.
— Eu sei. Olhem, ele é um bom homem. Não tenho muitos
agentes tão dedicados quanto ele. Trabalha o dobro da maioria do
meu pessoal. É simplesmente impulsivo. Eu tento cortar a rédea
dele. Ele passou um tempo difícil depois que aquela informante
desapareceu. Acho que se culpou. Depois da suspensão ele tirou
licença. Coe não quer falar a respeito, mas ouvi dizer que ele viajou
para descobrir o que aconteceu com ela. Com seu próprio dinheiro.
Finalmente voltou para o trabalho e desde então está como um cão
de caça. É um dos meus melhores agentes.
A não ser por pequenas falhas como deixar suspeitos fugirem,
pensou Rhyme secamente.
Peabody e o AEAE saíram, de novo garantindo a Rhyme e Selli o
que eles teriam um novo agente de ligação com o FBI de manhã e
que a equipe SPECTAC estava a caminho.
— Está definitivamente agendado — gritou o AEAE.
— Boa noite — disse formalmente Webley, do Departamento de
Estado, e saiu atrás dos outros.
— Certo, de volta ao trabalho — disse o criminalista a Selli o,
Sachs, Cooper e Li. Eddie Deng estava em casa, cuidando do peito
machucado. — O que mais os Wu lhe disseram, Sachs?
Ela deu os detalhes do que ficara sabendo na clínica. A família
Wu era composta por Qichen sua mulher, Yong-Ping uma filha
adolescente chamada Chin-Mei e um filho pequeno, Lang. Os Chang
eram Sam, Mei-Mei, William e Ronald, além do pai de Chang, que
era conhecido por seu nome chinês inteiro, Chang Jiechi. Na China,
Sam tinha conseguido trabalho para ele e William, mas Wu não sabia
onde nem em que área. Depois ela disse que a família também estava
com um bebê cuja mãe havia se afogado no Dragon.
— Po-Yee. Significa ”Criança Adorada”.
Rhyme notou um certo olhar em Sachs quando ela mencionou o
bebê. Ele sabia o quanto Sachs queria um filho — e queria um filho
com ele. Por mais exótica que esta ideia lhe parecesse há vários anos,
agora, secretamente, ele gostava. Mas parte do motivo não era
completamente paternal. Amelia Sachs era uma das melhores
investigadoras de cenas de crime que ele já vira. Sua empatia era
importantíssima. Ela, mais do que qualquer outro profissional que
ele conhecera nesta atividade, exceto ele próprio, tinha a capacidade
de se transportar para a mente do criminoso no local e, nesse
personagem, achar indícios que a maioria dos outros policiais teriam
deixado passar. Mas Sachs possuía outro aspecto na psique. O que a
impulsionava à perfeição nas cenas de crime a impulsionava ao
perigo. Campeã de tiro com revólver, motorista hábil,
frequentemente era a primeira a chegar a uma cena, pronta para
sacar a arma e enfrentar um criminoso. Como nesta noite, no beco ao
lado do apartamento dos Wu.
Rhyme jamais lhe pediria que parasse com isso. Mas com um
filho em casa ele esperava que Amelia se restringisse ao trabalho na
cena do crime, onde estava seu verdadeiro talento de policial.
Então Mel Cooper interrompeu seus pensamentos.
— Resultados do carpete no cromatógrafo.
Ele explicou que era uma mistura de lã e náilon. Determinou a
temperatura de cor no tom de cinza e depois se conectou na Internet,
entrando no banco de dados de fibras de tapetes do FBI.
Alguns minutos depois os resultados apareceram na tela.
— A marca é Lustre-Rite, e o fabricante é a Arnold Textile and
Carpeting de Wallingham, Massachuse s. Eu tenho os números de
telefone — disse o técnico magro.
Mande alguém telefonar — disse Rhyme. — Queremos saber
sobre instalações feitas no sul de Manha an. É recente, você acha,
Mel — Provavelmente. Com tantas fibras assim.
— Por que isso? — perguntou Li.
— A maior perda de fibras de carpetes acontece mais ou menos
seis meses depois da instalação — explicou o técnico.
— Eu faço isso — disse Selli o. — Só não esperem milagres,
considerando que a esta hora a empresa provavelmente está fechada.
— Olhou para o relógio. Eram quase 23h.
— É uma fábrica — disse Rhyme. — E o que isso significa?
— Não sei, Linc Por que não diz? — grunhiu Selli o. Ninguém
estava no clima para aulas.
— Que provavelmente há um turno da noite. E um turno da noite
significa um chefe de seção, e um chefe de seção deve ter o número
do chefão em casa. Para o caso de um incêndio ou coisa assim.
— Vou ver o que posso fazer.
Cooper estava testando as substâncias que Sachs tinha achado na
Blazer.
— Mais bentonita — disse ele. — Tanto nos sapatos do Fantasma
quanto nos dos parceiros. — O magro se virou para o microscópio e
examinou mais um pouco de material. — O que acha, Lincoln, isto é
palha? — Ele ergueu os olhos do microscópio. — Veio do carpete do
veículo, do lado do motorista.
— Comando, entrada, microscópio — ordenou Rhyme.
A imagem que Cooper estava olhando no microscópio apareceu
na tela do computador de Rhyme. O criminalista viu o que
reconheceu imediatamente como traços de palha de cedro, do tipo
usado em jardins decorativos para proteger as raízes do
congelamento no inverno.
— Bom.
— Há muito paisagismo em volta do Ba ery Park City —
observou Selli o, referindo-se ao grande conjunto residencial no sul
de Manha an, onde indícios que eles haviam descoberto antes
tinham sugerido que o Fantasma poderia ter um esconderijo.
Mas era paisagismo demais, pensou Rhyme.
— Dá para ligar a um fabricante específico?
— Não — disse Cooper. — Genérico.
Bom, essa amostra sozinha não indicaria um local específico. Mas
o fato de a palha estar úmida poderia ajudar.
— Se acharmos um número de locais possíveis podemos eliminar
aqueles em que não foi colocada palha para proteger as plantas do
inverno nos últimos dias. É uma possibilidade remota, mas é alguma
coisa. — Depois Rhyme perguntou: — E o corpo?
— Não muita coisa — disse ela. Sachs explicou que o sujeito não
tinha qualquer documento, só um pouco de dinheiro, cerca de
novecentos dólares, munição extra para a arma, cigarros e um
isqueiro.
— Ah, e uma faca com traços de sangue.
Cooper já havia ordenado o teste de tipo sanguíneo. Mas Rhyme
sabia que iria combinar com o de Jerry Tang ou de Jimmy Mah.
Chegaram os resultados do AFIS para as digitais achadas na
Blazer e as do morto. Tudo negativo.
Sonny Li apontou para uma polaroide do rosto do cadáver.
— Ei, eu deduz certo, Loaban. O rosto dele, olha só. Ele é cazaque,
quirguiz, tajique, uigur. Uma minoria, como eu diz, lembra?
— Lembro, Sonny — disse Rhyme. — Ligue para Cai, o nosso
amigo da tong. Diga que achamos que a gangue é de uma dessas
minorias que você mencionou, Sonny. Talvez isso o ajude a reduzir o
âmbito da busca. — Depois perguntou: — Balística?
— O Fantasma ainda estava usando sua Modelo 51 — disse
Sachs.
— Eu diz: arma muito sólida — observou Li.
— Achei alguns cartuchos de nove milímetros também. — Ela
levantou o saco de prova. — Mas sem marcas distintas de ejeção.
Provavelmente era uma Bere a, INSG Sauer, Smi ie ou Colt nova.
— E a arma do morto?
— Eu a processei — explicou ela. — Só tinha as digitais dele. Era
uma velha Walther PPK. Sete ponto meia cinco.
— Onde está? — Rhyme examinou o saco de prova e não viu
qualquer sinal da arma.
Um olhar foi trocado entre Sachs e Sonny Li — um olhar que
decididamente não era para o detetive Lon Selli o.
— Acho que os federais ficaram com ela — disse Sachs. — Ah.
Li desviou o olhar da direção de Rhyme, e ele soube
imediatamente que Sachs passara a arma para o policial chinês
depois de processá-la completamente.
É, bom para ele, pensou o criminalista. Se não fosse o detetive
chinês, Deng, Sachs e a filha dos Wu teriam sido mortos esta noite.
Deixe que ele tenha alguma proteção.
Sachs deu a Cooper o número de série da Walther e ele o
comparou com o banco de dados de armas de fogo.
— Aí está — disse ele. — Feita nos anos 60. Provavelmente foi
roubada uma dúzia de vezes desde então.
— Acabei de fazer contato com um vice-presidente da Arnold
Textile — gritou Selli o. — Acordei-o, mas ele foi bastante
cooperativo, considerando as circunstâncias. Esse carpete específico
é apenas para vendas por atacado: para construtoras e instaladores, e
é o carro-chefe deles. O sujeito me deu uma lista de doze grandes
construtoras da área que compram diretamente dele, e vinte e seis
distribuidores que revendem a instaladores e empreiteiros.
— Diabo — disse Rhyme. Seria uma maratona de entrevistas até
achar o endereço dos prédios onde o LustreRite fora instalado.
Falou: — Ponha alguém nisso.
— Vou mandar que eles comecem a acordar as pessoas — disse
Selli o. — Porra, eu estou acordado, por que o resto do mundo
também não deve estar? — Deu um telefonema para a central,
pedindo alguns detetives para ajudar e mandou para eles a lista por
fax.
Então a linha particular de Rhyme tocou e ele atendeu.
— Lincoln? — perguntou uma mulher pelo viva-voz. Ele ficou
empolgado ao ouvi-la.
— Dra. Weaver.
A neurocirurgia de Rhyme, que faria a operação na semana
seguinte.
— Sei que é tarde. Estou interrompendo alguma coisa? Está
ocupado?
— Nem um pouco — disse Rhyme, e ignorou o olhar exagerado
de Thom para o quadro branco, que atestava o fato de que ele estava
um tanto ocupado no momento.
— Tenho os detalhes da cirurgia. Hospital Manha an. Na sexta-
feira da próxima semana, às dez da manhã. No pré-operatório da
neurocirurgia. Terceiro andar.
— Excelente.
Thom anotou a informação e Rhyme e a médica se despediram.
Você vai médico, Loaban? — Vou.
— Por causa da... — O policial chinês parecia não ser capaz de
pensar num modo de resumir o estado de Rhyme, e balançou a mão
na direção do seu corpo.
— Isso mesmo.
Sachs não disse nada, só olhou para a folha de instruções que a
Dra. Weaver tinha ditado a Thom. Rhyme tinha consciência de que
ela preferiria que ele não fizesse a operação. A maior parte dos
sucessos com a técnica tinha ocorrido com pacientes cujos danos
eram muito menos sérios do que os de Rhyme, muito mais abaixo na
medula espinhal, ao nível lombar ou torácico A operação, como ela
mesma tinha dito, provavelmente não produziria qualquer benefício
discernível e era arriscada — poderia até fazê-lo piorar. E, dado o
seu problema com os pulmões, era possível que ele morresse na
mesa de cirurgia. Mas Sachs entendia como era importante para ele e
iria apoiá-lo.
Então — disse ela finalmente, com um sorriso estoico no rosto —
vamos nos certificar de pegar o Fantasma antes da sexta-feira.
Rhyme notou que Thom estivera examinando-o atentamente.
— O que foi? — perguntou rispidamente.
, O auxiliar mediu a pressão sanguínea de Rhyme.
— Alta demais. E você não parece bem.
— Muito obrigado — disse de volta, ainda ríspido —, mas não
acho que minha aparência tenha algo a ver.
— Está na hora de parar — disse o auxiliar com firmeza. E não
estava falando com o chefe.
Selli o e Cooper também votaram a favor de parar por hoje.
— Motim — murmurou Rhyme.
— Não — retrucou Thom. — Bom senso.
Selli o telefonou para saber como estavam os Wu e John Sung.
Agora a família estava na casa segura do NYPD em Murray Hill.
John Sung tinha recusado o convite de Sachs para se juntar a eles,
com medo de que isso o lembrasse demais das muitas instalações do
escritório de segurança chinês em que ele fora detido como
dissidente. Em vez disso, Selli o pôs mais um policial na equipe que
o estava guardando. Todos os policiais no trabalho de proteção
informaram que os seguranças estavam em liberdade.
— Você vai levar essas ervas? — disse Rhyme a Sachs. — Espero
que leve. Elas fedem.
— Ia deixá-las como desodorante ambiental, mas se você não
gosta... — Ela chegou perto. — Como está se sentindo? Parece
pálido.
— Só cansado — disse ele.
O que era verdade. Estranhamente cansado. Achava que deveria
estar preocupado com isso, mas acreditava que a exaustão se devia
apenas às exigências do caso, que o estava consumindo. Mas a fadiga
era algo à qual ele sabia que precisava prestar atenção — será que
indicava alguma coisa mais séria? Um dos principais problemas que
afligem os pacientes de lesão na coluna, claro, não é apenas a
paralisia. Há problemas relacionados porque os nervos não reagem
— falha pulmonar e as infecções resultantes —, mas talvez o pior
problema seja a ausência de dor. Você não tem nenhum sistema de
alerta através da dor para o câncer, por exemplo, doença da qual o
pai de Rhyme tinha morrido — bem como o de Sachs. Ele se
lembrava de que o pai ficara sabendo da doença depois de ter ido ao
médico reclamando de dor no estômago.
— Boa noite — gritou Mel Cooper.
— Wan an — gritou Li.
— Tanto faz — grunhiu Selli o e foi para o corredor.
— Sonny — disse Rhyme. — Você fica aqui esta noite.
— Não tem outro lugar para ir, Loaban. Claro.
— Thom vai preparar um quarto. Vou estar no andar de cima,
cuidando de algumas coisas. Vá me visitar se sentir vontade. Me dê
vinte minutos.
Li assentiu e se virou de novo para o quadro branco.
— Eu levo você para cima — disse Sachs. Rhyme guiou a cadeira
até o minúsculo elevador entre o primeiro e o segundo andar, no
lugar onde antes ficava um armário. Ela se juntou a ele e fechou a
porta. Rhyme olhou o rosto dela. Estava pensativo, mas de um modo
que não tinha a ver com o caso, sentiu ele.
— Quer falar de alguma coisa, Sachs?
Sem responder, ela fechou a porta do elevador e apertou o botão
de subida.

FANTASMORTES

Cena do Crime Easton, Long Island

• Dois imigrantes mortos na praia, com tiros nas costas.


• Um imigrante ferido — Dr. John Sung.
• ”Bangshou” (assistente) a bordo; identidade desconhecida.
• Assistente confirmado como corpo afogado encontrado perto
do lugar onde o Dragon afundou.
• Dez imigrantes escapam: sete adultos (um idoso, uma mulher
ferida), duas crianças, um bebê. Roubam furgão da igreja.
• Amostras de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Mulher ferida é AB negativo. Requisitando mais informações
sobre seu sangue.
• Veículo esperando o Fantasma na praia partiu sem ele. Um tiro
supostamente dado pelo Fantasma contra o veículo. Providenciado
pedido de marca e modelo do veículo, baseado em marcas de pneus
e distância entre eixos.
• Veículo é um BMW X5.
• Motorista — Jerry Tang.
• Nenhum veículo para pegar os imigrantes foi localizado.
• Celular, presumivelmente do Fantasma, mandado para análise
no FBI.
• Telefone por satélite impossível de ser rastreado. Penetrou no
sistema chinês para ser usado.
• Arma do Fantasma é uma pistola 7.62. Cartuchos incomuns.
• Pistola automática chinesa Modelo 51.
• O Fantasma pode ter gente do governo em sua folha de
pagamentos.
• O Fantasma roubou um sedã Honda vermelho para fugir.
Providenciado pedido de localização do veículo.
• Nenhum traço do Honda foi encontrado.
• Três corpos recuperados no mar — dois mortos a tiros, um
afogado. Fotos e impressões mandadas a Rhyme e à polícia chinesa.
• Indivíduo afogado identificado como Victor Au, o bangshou do
Fantasma.
• Digitais mandadas ao AFIS.
• Nenhuma identificação em nenhum ponto, mas marcas
incomuns nos dedos de Sam Chang (ferimento, queimadura de
corda?) · Perfil dos imigrantes: Sam Chang, Wu Qichen e suas
famílias, John Sung, bebê de mulher afogada, homem e mulher não
identificados (mortos na praia).

Furgão Roubado, Chinatown

• Camuflado por imigrantes com o logotipo ”A Loja do Lar”.


• Mancha de sangue sugere que mulher tem ferimento no braço
ou no ombro.
• Amostras de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Mulher ferida é AB negativo. Requisitando mais informações
sobre seu sangue.
• Digitais mandadas ao AFIS.
• Nenhuma identificação.

Cena do Assassinato de Jerry Tang

• Quatro homens arrombaram a porta, torturaram-no e o


mataram a tiros.
• Dois cartuchos de balas — combinam com Modelo 51. Tang
levou dois tiros na cabeça.
• Grande vandalismo.
• Algumas digitais.
• Nenhuma identificada, a não ser a de Tang.
• Três cúmplices têm sapatos menores do que os do Fantasma,
presumivelmente têm estatura menor.
• Traços de substâncias sugerem que o esconderijo do Fantasma
fica provavelmente no sul de Manha an, na área de Ba ery Park
City.
• Suspeita-se de cúmplices de minoria étnica chinesa. No
momento o paradeiro é procurado.
Cena do Assassinato de Jerry Tang

Tiroteio na Canal Street Cena do Crime

• Traços adicionais sugerem que esconderijo é na área de Ba ery


Park City.
• Chevrolet Blazer roubada, impossível rastrear origem.
• Nenhuma identificação de digitais.
• Carpete do esconderijo: LustreRite da empresa Arnold,
instalado nos últimos seis meses; ligando para empreiteiros para
obter lista de instalações.
• Encontrada palha de jardinagem fresca.
• Corpo do cúmplice do Fantasma: minoria étnica do oeste ou
noroeste da China. Sem identificação de digitais. Arma era Walther
PPK.
• Detalhes sobre imigrantes: · Os Chang: Sam, Mei-Mei, William
e Ronald; pai de Sam, Chang Jiechi, e bebê, Po-Yee. Sam arrumou
trabalho, mas empregador e local são desconhecidos. Dirigindo
furgão azul, marca desconhecida, placa desconhecida. Apartamento
dos Tang é no Queens.
• Os Wu: Qichen, Yong-Ping, Chin-Mei e Lang.
Capítulo 28
Em chinês, muitas palavras são combinações de seus opostos. Por
exemplo, ”avançar-recuar” significa ”mover-se”. Uma dessas é a
palavra para ”fazer negócios”, que pode ser literalmente traduzida
como ”comprar-vender”. E era isso que os quatro homens sentados
no enfumaçado escritório na frente da Associação dos Trabalhadores
de East Broadway estavam fazendo nesta noite tempestuosa de
agosto: comprando e vendendo. O fato de o objeto das negociações
ser a vida humana — vendendo ao Fantasma a localização da família
Chang — não parecia causar-lhes qualquer hesitação.
Claro que havia muitas tongs legítimas em Chinatown, e elas
realizavam serviços importantes para seus membros — resolvendo
conflitos entre empresas concorrentes, protegendo os estudantes
contra as gangues, administrando centros para atendimento aos
idosos e creches, desencorajando a penetração dos sindicatos de
trabalhadores de restaurantes e da indústria do vestuário e servindo
como ligação com o ”Outro Governo”, isto é, a prefeitura e o NYPD.
Mas essa tong específica não fazia nada disso. Ela possuía apenas
uma especialidade, que era de servir como base de operações para
cabeças de cobra na área de Nova York.
Agora, quase meia-noite, os três líderes da associação de
trabalhadores — todos entre quarenta e poucos e cinquenta e poucos
anos estavam sentados de um dos lados da mesa, diante de um
homem que nenhum deles conhecia. Mas ele era um homem que
podia ser muito valioso — já que sabia onde os Chang estavam
escondidos.
— Como conhece essas pessoas? — perguntou o diretor da
associação ao homem, que lhes dera apenas o sobrenome, Tan,
presumivelmente para que o Fantasma não pudesse rastreá-lo e
torturá-lo para obter a mesma informação.
— Chang é amigo do meu irmão na China. Consegui um
apartamento para eles e um emprego para Chang e o filho mais
velho.
— Onde fica o apartamento? — perguntou o diretor da tong em
tom casual.
Fazendo um gesto abrupto, Tan disse: — E o que estou aqui para
vender. Se o Fantasma quiser, terá de pagar.
— Pode nos dizer — disse um dos sócios sorrindo. — Nós
guardamos segredo.
— Só trato com o Fantasma.
Claro que os chefes da tong sabiam disso. Mas sempre valia
tentar. Havia muita gente estúpida no mundo.
— Você precisa entender — sugeriu um dos sócios — que o
Fantasma é difícil de ser achado.
— Ah — zombou Tan. — Vocês não são os únicos que eu posso
procurar, sabem disso.
— Então por que veio aqui? — perguntou rapidamente o outro
sócio.
— Porque me disseram que vocês são os mais bem informados.
— disse Tan depois de uma pausa.
— É perigoso — disse o diretor a Tan. — A polícia está atrás do
Fantasma. Se eles descobrirem que nós o contatamos... Bom, eles
podem acabar com nossa organização.
Tan deu de ombros.
— Vocês têm meios seguros de entrar em contato com ele, não
têm?
— Vamos falar do dinheiro. O que vai nos pagar para colocá-lo
em contato com o Fantasma?
— Dez por cento do que ele me pagar. O diretor balançou o
braço.
— Esta reunião terminou. Vá procurar suas outras fontes. Rindo
e ridicularizando o comentário do diretor, Tan disse: — E quanto
vocês queriam?
— Metade.
— Vocês estão fazendo uma piada ruim.
Demarcadas as linhas de batalha, partiram para os negócios. A
compra-venda continuou durante quase meia hora. Finalmente
concordaram em trinta por cento, desde que fosse em dólares
americanos.
O diretor pegou um celular e deu um telefonema. O Fantasma
atendeu e o diretor se identificou.
— Sim? — perguntou o cabeça de cobra.
— Tenho alguém aqui que alugou um apartamento para alguns
sobreviventes do Dragon, os Chang. Ele quer vender a informação.
O Fantasma ficou quieto um momento. Depois perguntou: Peça
que ele prove.
O diretor repassou o pedido a Tan, que respondeu: — O nome
ocidental do pai é Sam. Há um velho também, o pai de Chang. E
dois garotos. Ah, uma mulher. Mei-Mei. E eles estão com um bebê.
Não é deles. A menina estava no navio. A mãe se afogou.
— Como ele os conhece?
— Ele é irmão de um amigo de Chang na China — explicou o
diretor.
O Fantasma pensou.
— Diga que eu pago cem mil de uma cor pela informação.
O diretor perguntou a Tan se isso era aceitável. Ele disse
imediatamente que era. Com algumas pessoas você não compra,
vende.
Mantendo o rosto impassível, apesar do prazer diante da quantia,
o diretor acrescentou delicadamente para o Fantasma: — Ele
concordou em nos pagar uma percentagem. Talvez, senhor, se não
fosse muito problema...
— Sim, eu pago a sua parte diretamente. Se a informação for
acurada. Qual é a percentagem?
— Trinta por cento.
— Você é um idiota — zombou o Fantasma. — Você foi roubado.
Eu teria ficado com sessenta e cinco por cento.
O diretor ruborizou e começou a se defender, mas o Fantasma o
interrompeu: — Mande-o para mim amanhã às oito e meia da
manhã. Você sabe onde. — E desligou.
O diretor contou o arranjo a Tan, e eles se apertaram as mãos.
Na ordem confuciana do dever para com os outros, a amizade
estava no nível mais baixo — depois da relação governante-súdito,
pai-filho, marido-esposa e irmão mais velho-irmão mais novo.
Mesmo assim, havia alguma coisa abominável nesse tipo de traição,
pensou o diretor.
Mas não importava. Quando chegasse ao inferno, Tan seria
julgado por seus atos. E quanto ao diretor e seus sócios... bem, trinta
mil dólares não era mau para uma hora de trabalho.

Com as mãos tremendo e a respiração acelerada, Sam Chang saiu


da sede da Associação dos Trabalhadores de East Broadway e teve
de andar três quarteirões antes de achar um bar. Bares são raros em
Chinatown. Sentou-se num banco bambo e pediu uma cerveja
Tsingtao. Bebeu rápido e pediu outra.
Ainda estava surpreso — não, atônito — com o fato de os três
homens da tong acreditarem que ele era Joseph Tan e ainda terem
dito onde poderia achar o Fantasma pela manhã.
Riu consigo mesmo. Que ideia espantosa — estava barganhando
com aqueles homens o preço da vida de sua família.
Sentado no apartamento escuro no Brooklyn várias horas antes,
Chang estivera pensando: esta vai ser nossa vida. Escuridão e
medo...
E os olhos argutos de seu pai tinham se estreitado.
— O que está pensando em fazer? — perguntou ao filho.
— O Fantasma está nos procurando.
— Sim.
— Ele não espera que eu esteja procurando ele.
Os olhos de Chang Jiechi demoraram-se um instante no filho,
depois se desviaram para a placa com o nome sobre o altar
improvisado. Chang... arqueiro.
— E o que faria se o achasse?
— Mataria ele.
— Por que não procurar a polícia? Chang deu um riso azedo.
— Você confia mais na polícia daqui do que na da China?
— Não.
— Vou matá-lo — repetiu Chang. Nunca na vida tinha
desobedecido ao pai, e imaginou se o velho agora iria proibi-lo de
fazer o que decidira que tinha de ser feito.
Mas, para sua surpresa, o pai limitou-se a perguntar: — Você
seria capaz de fazer isso?
— Sim, por minha família. Sim. — Em seguida Chang vestira o
agasalho leve. — Vou a Chinatown. Verei o que posso fazer para
achá-lo.
— Escute — disse o pai, sussurrando. — Você sabe como achar
um homem?
— Como, baba?
— Você acha um homem através das fraquezas dele.
Quais são as fraquezas do Fantasma?
— Ele não consegue aceitar o fracasso. Ele precisa nos matar, caso
contrário sua vida vai sofrer de grande desarmonia.
E assim Sam Chang tinha feito exatamente o que o pai sugeriu —
ofereceu ao Fantasma a chance de achar sua presa. E tinha dado
certo.
Segurando a garrafa de cerveja gelada junto do rosto, Chang
refletiu que ele próprio provavelmente morreria. Atiraria no
Fantasma imediatamente — assim que ele abrisse a porta. Mas o
sujeito devia ter capangas e guarda-costas, que por sua vez iriam
matá-lo.
E, pensando nisso, a primeira imagem em sua mente foi a de
William, seu primogênito, o rapaz que, mais cedo do que qualquer
um poderia pensar, herdaria o manto dos Chang.
Agora o pai ouviu a insolência do filho, viu o desprezo em seus
olhos...
Ah, William, pensou. E, eu negligenciei você. Mas se ao menos
entendesse que fiz isso somente com a esperança de criar uma pátria
melhor para você e seus filhos! E quando ficou perigoso demais na
China eu trouxe vocês para aqui, deixando meu país amado, para
lhe dar o que não podia dar em casa.
O amor, filho, não se manifesta presenteando badulaques,
comidas finas ou um quarto nosso. O amor se mostra na disciplina,
no exemplo e no sacrifício — até mesmo dando a própria vida.
Ah, meu filho...
Sam Chang pagou a cerveja e saiu do bar.
Apesar de ser tarde, algumas lojas continuavam abertas para
tentar os últimos turistas. Chang entrou numa loja de presentes e
comprou uma caixinha, um prato de latão, velas elétricas com
lâmpadas vermelhas, um pouco de incenso. Gastou algum tempo
tentando achar a estátua de Buda correta. Escolheu uma sorridente
porque — mesmo que ele fosse matar um homem amanhã e morrer
— um Buda alegre traria conforto e alívio, e em última instância boa
sorte para a família que ele ia deixar para trás.

— O negócio, Amie...
Amelia Sachs estava dirigindo o carro para o centro, mantendo-se
curiosamente perto do limite de velocidade.
— O negócio, querida — dissera o pai em péssimo estado,
devastado pelas células gulosas que lhe iam desmantelando o corpo
—, é que você tem de cuidar de si mesma.
— Claro, pai.
— Não, não, você diz ”claro”, mas não quer dizer ”claro”. Quer
dizer: estou concordando com o velho porque ele está que nem você
sabe o quê.
Mesmo na cama do hospital West Brooklyn na Fort Hamilton
Parkway, perto da morte, o sujeito não a deixava dar a última
palavra.
— Acho que eu não quis dizer isso.
— Ah, escute, Amie, escute.
— Estou escutando.
— Eu ouvi suas histórias sobre o trabalho de ronda.
Sachs, como o pai, era na época uma ”portátil”, um patrulheiro
de ronda. Na verdade seu apelido era ”FP”, de Filha do Portátil.
— Eu invento um monte de coisas, pai.
— Fale sério.
O sorriso de Amelia desaparecera e ela ficara realmente séria,
sentindo a brisa empoeirada do verão entrar pela janela entreaberta,
agitando seu cabelo solto e as roupas desbotadas do pai, os dois ali
naquele lugar tão difícil.
— Continue — dissera ela.
Obrigado... Eu ouvi suas histórias sobre as rondas. Você não se
cuida o suficiente. Mas precisa, Amie.
Por que tudo isso, pai?
Os dois sabiam o que estava por vir do câncer que logo iria matá-
lo e da urgência de repassar à filha única alguma coisa mais
substancial do que um distintivo do DPN Y, um revólver Colt
niquelado e um velho Dodge Charger precisando de transmissão e
cabeças de cilindro. Mas o papel dele como pai lhe exigia dizer: —
Agrade a um velho.
— Então vamos contar piadas.
— Lembra-se da primeira vez em que andou de avião?
— Nós fomos visitar a vovó Sachs na Flórida. Fazia quarenta e
cinco graus perto da piscina e um camaleão me atacou.
Sem se abalar, Herman Sachs continuou: — E a aeromoça, ou sei
lá como vocês chamam hoje, disse: ”Em caso de emergência ponham
sua máscara de oxigênio e depois ajude a quem precisar.” Esta é a
regra.
— Elas dizem isso — admitira Amelia, fustigada pelas emoções
que sentia.
O velho policial, com manchas de graxa de carro
permanentemente entranhadas na trama das mãos, continuara: —
Esta tem de ser a filosofia de um patrulheiro nas ruas. Você
primeiro, e depois a vítima. E tem de ser a sua filosofia pessoal
também. Não importa o que custe, cuide de você primeiro. Se não
estiver inteira, não poderá cuidar de mais ninguém.
Dirigindo agora em meio à chuva fraca, ela escutou a voz do pai
sumindo e outra substituindo-a. O médico, há semanas. — Ah, Sra.
Sachs. Cá está.
Ah, Sra. Sachs. Cá está.
Olá, doutor.
Acabei de me reunir com a médica de Lincoln Rhyme.
É?
Preciso conversar com você sobre uma coisa.
Pelo jeito está parecendo má notícia, doutor.
Todo o seu mundo num tumulto, tudo que ela havia planejado
para o futuro alterado completamente.
O que podia fazer a respeito?
Bom, refletiu, parando junto ao meio-fio, aqui está uma coisa...
Amelia Sachs ficou sentada um longo instante. Isto é loucura,
pensou. Mas então, impulsivamente, desceu do Camaro e, de cabeça
baixa, virou rapidamente a esquina e entrou num prédio de
apartamentos. Subiu a escada. E bateu na porta. Quando esta se
abriu, ela deu um sorriso para John Sung. Ele sorriu de volta e
convidou-a a entrar.
Não importa o que custe, cuide de você primeiro. Se não estiver inteira,
não poderá cuidar de mais ninguém...
De repente sentiu como se um peso gigantesco fosse tirado dos
seus ombros.
Capítulo 29
Meia-noite.
Mas, apesar do dia exaustivo, que o levara de um navio
naufragando até um apartamento da Central Park West, à metade do
globo de distância de casa, Sonny Li não parecia cansado.
Entrou no quarto de Lincoln Rhyme, levando uma sacola de
compras.
— Quando eu em Chinatown com Hongse, Loaban, eu compra
umas coisas. Presente para você.
— Presente? — perguntou Rhyme de seu trono, a nova cama
Hill-Rom Flexicair que, pelo que lhe haviam dito, era extremamente
confortável.
Li pegou um objeto na sacola e começou a desembrulhar.
— Olha o que eu tenho aqui. — Em suas mãos havia uma
estatueta de jade, mostrando um homem com um arco e flecha e
parecendo feroz. Li olhou o quarto em volta. — De que lado norte?
— O norte fica para lá — disse Rhyme.
Li pôs a estatueta em cima de uma mesa encostada na parede.
Depois voltou à sacola e pegou alguns palitos de incenso.
— Você não vai queimar isso aqui.
— Preciso, Loaban. Não mata você.
Apesar da afirmativa de Li, de que os chineses têm dificuldade
para dizer não, esta não era uma característica que o policial
aparentemente compartilhava.
Pôs o incenso num suporte e acendeu. Depois achou um copo no
banheiro e encheu com um pouco de bebida de uma garrafa verde-
clara, que também tinha aparecido da sacola de compras.
— O que está fazendo, montando um templo?
— Um oratório, Loaban. Não um templo. — Li achou divertido o
fracasso de Rhyme em perceber a distinção óbvia.
— Quem é esse? Buda? Confúcio?
— Com arco e flecha? — zombou Li. — Loaban, você conhece
tanto sobre tão pouco, e tão pouco sobre tanto!
Rhyme gargalhou, pensando que quando era casado sua mulher
costumava dizer a mesma coisa, ainda que num volume mais alto e
de modo menos articulado.
— Este é Guan Di, o deus da guerra — disse Li. — Nós faz
sacrifício a ele. Ele gosta vinho doce e foi o que eu trouxe.
Rhyme imaginou como Selli o e Dellray, para não mencionar
Sachs, reagiriam ao ver a transformação do seu quarto num oratório
ao deus da guerra.
Li fez uma reverência para a estatueta e sussurrou algumas
palavras em chinês. Tirou uma garrafa de vinho da sacola de
compras e se sentou na poltrona de rata junto à cama de Rhyme.
Encheu um copo para si mesmo e depois pegou um dos copos de
Rhyme, tirando a tampa, enchendo até a metade e depois
recolocando a tampa e enfiando um canudo.
— E isso? — perguntou Rhyme.
— Coisa boa, Loaban. Chu yeh ching chiew. Nós faz sacrifício a nós
agora. Esta coisa boa. Como uísque.
Não, não era nem um pouco como uísque, definitivamente não
era um scotch de dezoito anos, delicadamente perfumado de turfa.
Mas, apesar de o gosto ser bastante ruim, dava uma pancada
infernal.
Li assentiu para a sacristia improvisada.
— Eu acha Guan Di em loja em Chinatown. Ele deus muito
popular. Milhares oratórios em toda a China dedicados a ele. Mas eu
não compra por causa de guerra. Ele é deus de detetives também,
estou dizendo.
— Você está inventando isso.
— Piada? Não, estou dizendo, é verdade. Todo escritório de
segurança eu trabalhei tem Guan Di lá. Caso não vai muito bem,
detetives queimam oferendas, como nós faz. — Outro gole da
bebida. Li fungou. — Isso coisa forte, estou dizendo. O baijiu.
— O quê?
Ele assentiu na direção da garrafa de chu yeh ching chiew.
— Qual foi a sua oração? — perguntou Rhyme.
— Eu traduz: ”Guan Di, por favor deixa nós achar os Chang e
pegar o escroto do Fantasma.”
— É uma boa oração, Sonny. — Rhyme tomou mais da bebida.
Ficava melhor a cada gole. Ou talvez tendesse a esquecer como era
ruim.
— Aquela cirurgia você fala — indagou o policial chinês. — Ela
melhora você?
— Talvez. Um pouco. Não vou poder andar, mas posso recuperar
um pouco de movimento.
— Como funciona?
Ele explicou a Li sobre a Dra. Cheryl Weaver, cuja unidade de
neurologia na Universidade da Carolina do Norte estava realizando
cirurgias experimentais em pacientes de lesão na medula espinhal.
Ele ainda podia se lembrar quase palavra por palavra a explicação
da médica sobre como a técnica funcionava.
O sistema nervoso efeito de axônios, que transportam os impulsos
nervosos. Numa lesão da medula espinhal esses axônios são cortados
ou esmagados e morrem. De modo que param de transmitir impulsos, e
as mensagens do cérebro não chegam ao resto do corpo. Bom, você já
ouviu dizer que os nervos não se regeneram. Isso não é totalmente
verdade — axônios danificados podem crescer de novo. Mas não no
sistema nervoso central — o cérebro e a medula espinhal. Pelo menos
não por conta própria. Então, quando você corta um dedo, sua pele
cresce de novo e você recupera o sentido do tato. Na medula espinhal
isso não acontece. Mas há coisas que estamos aprendendo para ajudar o
crescimento a acontecer.
Nossa abordagem aqui no Instituto é um ataque geral contra o
local da lesão. Atacamos em todas as frentes. Usamos a cirurgia
tradicional de descompressão para reconstruir a estrutura óssea das
vértebras e proteger o local onde a lesão aconteceu. Depois colocamos
duas coisas no local da lesão: uma é tecido do próprio sistema nervoso
periférico do paciente, e a outra substância que colocamos é um pouco
de células do sistema nervoso central de embriões.
— De um tubarão — acrescentou Rhyme a Sonny Li. O policial
riu.
— Peixe?
— Exato. Os tubarões são mais compatíveis com os seres
humanos do que outros animais. Então — prosseguiu o criminalista
— eu vou tomar remédios para ajudar na regeneração da medula
espinhal.
— Ei, Loaban — disse Li olhando-o atentamente. — Essa
operação, ela perigosa?
De novo, Rhyme ouviu a voz da Dra. Weaver:
Claro que há riscos. Os remédios em si não são particularmente
perigosos. Mas há riscos associados ao tratamento. Qualquer lesão
provoca dificuldade nos pulmões. Você não está usando um respirador
artificial, mas com a anestesia há uma chance de falha respiratória. E o
estresse do procedimento pode levar a uma disreflexia automática
resultando em sério aumento na pressão arterial — tenho certeza que
você está familiarizado com isso — que por sua vez pode levar a um
derrame ou acidente vascular cerebral. Há um risco de trauma
cirúrgico no local de sua lesão inicial — você não tem nenhum cisto
agora e nenhum desvio na corrente sanguínea —, mas a operação e o
aumento resultante nos líquidos podem aumentar essa pressão e causar
mais danos.
— É, é perigosa — disse Rhyme.
— Para mim parece yi luan tou shi.
— O que significa?
Li pensou, depois disse:
— Tradução de palavras: ”jogar ovos em rochas”. Significa fazer
uma coisa que tem tudo para dar errado, estou dizendo. Então por
que faz essa operação?
Parecia óbvio a Rhyme. Para dar um passo mais próximo da
independência. Talvez para poder fechar a mão em volta do copo,
por exemplo, e levantá-lo aos lábios. Coçar a cabeça. Tornar-se mais
normal — usando o termo que era muito politicamente incorreto
dentro da comunidade de deficientes físicos. Ficar mais próximo de
Amelia Sachs. Ser um pai melhor para o filho que Sachs tanto queria.
Falou:
— É só uma coisa que tenho de fazer, Sonny — disse ele,
indicando em seguida a garrafa de uísque Macallan ali perto. —
Agora vamos experimentar o meu baifu.
— Baijiu, Loaban — corrigiu o outro dando uma gargalhada. — O
que você acabou de dizer foi ”Vamos experimentar minha loja de
departamentos”.
— Baijiu — corrigiu-se por sua vez Rhyme.
Li encheu os copos com o uísque envelhecido. Rhyme bebeu pelo
canudinho. Ah, sim, muito melhor. Li engoliu um copo inteiro de
uísque. Balançou a cabeça.
— Estou dizendo: você não devia fazer essa operação.
— Eu avaliei os riscos e...
— Não, não. Abraça quem você é! Abraça suas limitações.
— Mas por quê? Já que eu não preciso fazer isso.
— Eu vê toda essa merda de ciência que vocês têm aqui em
Meiguo. Nós não tem ciência em todo lugar na China como vocês.
Ah, Pequim, Hong Kong, Guangdong, Fujou, claro, nós tem quase
tudo vocês têm, um pouco atrasados, muito obrigado, camarada
Mao, mas nós tem computadores, nós tem Internet, nós tem mísseis
— é, de vez em quando eles explode, mas geralmente vão ao espaço
OK. Mas médicos, eles não usa muita ciência. Eles coloca a gente de
novo em harmonia. Na China, médicos não deuses.
— Nós temos uma visão diferente aqui.
— É, é — zombou Li. — Médicos faz você parecer mais novo. Dá
cabelo. Dá a mulheres xiong maior, você sabe... — Ele apontou para o
próprio peito. — Nós não entende isso. Isso não em harmonia.
— Você acha que eu estou em harmonia assim? — perguntou
Rhyme com um riso exasperado.
— Destino faz você assim, Loaban. E faz você assim com
propósito. Talvez você melhor detetive por causa do que aconteceu.
Sua vida equilibrada agora, estou dizendo.
Rhyme teve que rir.
— Eu não posso andar, não posso recolher evidências... Como,
diabos, isso é melhor?
— Talvez o seu cérebro, ele trabalha melhor agora, estou dizendo.
Talvez você tem vontade mais forte. Seu jijong, sua concentração,
talvez melhor.
— Desculpe, Sonny, não engulo isso.
Mas, como ele havia aprendido, quando Sonny Li assumia uma
posição numa discussão, não soltava.
— Deixe eu explicar, Loaban. Você lembra John Sung? Ele tem
aquela pedra de boa sorte do Rei Macaco.
— Lembro.
— Você é Macaco.
— Eu sou o quê?
— Você é como Macaco, estou dizendo. Macaco faz coisas
milagrosas, mágico, inteligente, mal-humorado também, estou
dizendo. Como você. Mas ele ignora natureza, procura maneiras de
enganar deuses e ficar vivo para sempre. Ele rouba pêssegos da
imortalidade, apaga nomes do Registro dos Vivos e dos Mortos. Isso
quando entrou em encrenca. Foi queimado, espancado e enterrado
debaixo montanha. Finalmente Macaco desistiu de querer viver
sempre. Achou uns amigos e todos fizeram peregrinação a terra
sagrada no oeste. Ele estava feliz. Em harmonia, estou dizendo.
— Eu quero andar de novo — sussurrou Rhyme, inflexível,
imaginando por que estava desnudando a alma para esse
homenzinho estranho. — Não é pedir muito.
— Mas talvez seja pedir muito. Escuta, Loaban, olha para mim. Eu
podia querer ser alto e parecer o Chow Yun-Fat, todas as garotas me
caçando. Poderia querer comandar grande comuna e ter centenas de
prêmios de produtividade para todo mundo me respeitar. Poderia
querer ser banqueiro em Hong Kong. Mas não minha natureza.
Minha natureza ser policial bom pra caralho. Talvez você começa a
andar de novo, você perde outra coisa, outra coisa mais importante.
Por que você bebe essa merda? — Ele apontou para o uísque.
— É meu baijiu predileto.
— É? Quanto custa?
— Uns setenta dólares cada garrafa.
Li fez uma cara azeda. Mesmo assim engoliu a bebida do copo e
encheu de novo.
— Escuta, Loaban, você conhece o Tao?
— Eu? Aquela merda da Nova Era? Você está falando com a
pessoa errada.
— Certo, eu diz uma coisa a você. Na China nós tem dois
grandes filósofos. Confúcio e Lao-tsé. Confúcio acha que é melhor as
pessoas obedecer aos superiores, seguir ordens, baixar a cabeça para
quem for melhor, ficar quieto. Mas Lao-tsé diz o oposto. O melhor é
cada pessoa seguir seu modo de vida. Achar harmonia e natureza.
Nome inglês do Tao é Caminho da vida. Ele escreve uma coisa eu
tenta dizer. É tudo sobre você, Loaban.
— Sobre mim? — perguntou Rhyme lembrando-se que seu
interesse nas palavras daquele sujeito devia se originar do poço de
álcool que havia dentro dele no momento.
Li franziu o rosto enquanto traduzia: — No Tao, Lao-tsé diz:
”Não precisa sair de casa para ver melhor. Não precisa olhar de
janela. Em vez disso viva no centro de seu ser. O modo de fazer é
ser.”
— Todo mundo na China tem um ditado para tudo? —
perguntou Rhyme com rispidez.
— Nós tem muitos ditados, certo. Você devia mandar Thom
escrever isso e botar na parede, perto de altar de Guan Di.
Os dois ficaram quietos um minuto. Não precisa sair de casa para
ver melhor. Não precisa olhar de janela...
Finalmente a conversa foi retomada e Li falou longamente sobre
a vida na China.
— Como é sua casa? — perguntou Rhyme.
— Apartamento. Lugar inteiro pequeno, tamanho este quarto.
— Onde fica?
— Minha cidade, Liu Guoyuan. Significa ”seis pomares”, mas
todos sumiram agora, todos cortados. Umas cinquenta mil pessoas.
Perto Fujou. Muitas pessoas mora lá. Mais de milhão, estou dizendo.
— Eu não conheço a região.
— Na província de Fujian, sudeste da China. Taiwan logo do
outro lado do litoral. Rio Min, grande, passa no meio. Nós lugar
independente. Pequim muito preocupada com a gente. Fujian foi lar
de primeira tríade, gangue organizada, estou dizendo. A San Lian
Hui. Muito poderosa. Muito contrabando: sal, ópio, seda. Muitos
marinheiros em Fujian. Comerciantes, importadores. Não muitos
agricultores. Partido Comunista é forte na minha cidade, mas isso
porque secretário do partido é capitalista privado. Tem companhia
de Internet que nem AOL. Muito sucesso. Ahn, cão lacaio capitalista!
O coletivo dele rende muito, muito dinheiro. Ação dele não cai que
nem NASDAQ.
— Que tipo de crime há em Liu Guoyuan?
— Muito suborno, dinheiro de proteção — respondeu Li. — Na
China você trapaceia empresas e pessoas, isso OK. Mas se trapacear
o partido ou o governo, você morre, porra. Condena você, atira na
nuca. Nós tem muitos outros crimes também. Mesma coisa que
acontece aqui. Assassinato, roubo e estupro. — Li tomou mais um
pouco da bebida. — Eu acha homem matando mulheres. Ele mata
quatro, ia matar mais. Eu prende. — Ele ri. — Uma gota de sangue.
Eu acha uma gota de sangue no pneu de bicicleta dele, pequeno que
nem grão de areia. Isso situa ele na cena do crime. Ele confessa. Vê,
Loaban, nem tudo woo-woo.
— Tenho certeza que não, Sonny.
— Sequestrar mulheres grande problema em China; tem mais
homem do que mulher. Para cada cem mulheres, tem cento e vinte
homens. Pessoas não querem filhas, estou dizendo, só meninos. Mas
então de onde vêm noivas? Então muitos sequestradores pegam
meninas e mulheres, vendem. Tristes, famílias procuram a gente e
pedem a gente achar esposas ou filhas sequestradas. Muitos agentes
de segurança não se importa — casos difíceis. Algumas vezes eles
leva mulheres milhares de quilômetros longe. Eu acha cinco ano
passado. Registros em nosso departamento. Bom sentimento achar
sequestrador, prender ele.
— É disso que se trata — disse Rhyme.
Diante disso Li ergueu seu copo e os dois beberam em silêncio
durante um momento. Rhyme achando que estava se sentindo
contente. A maioria das pessoas que vinham visitá-lo tratavam-no
como uma excentricidade. Ah, elas não pretendiam ser grosseiras.
Mas lutavam para ignorar sua ”condição”, como dizia a maioria
delas, ou celebravam sua deficiência, fazendo piadas e comentários
sobre ela, para mostrar com que intimidade se conectavam com ele.
Quando de fato não se conectavam nada, e assim que vislumbravam
o cateter ou a caixa de fraldas para adulto no canto do quarto
começavam a contar os minutos até poder escapar. Essas pessoas
nunca discordavam dele, nunca contra-atacavam. Nunca chegavam
mais fundo do que a aparência de um relacionamento.
Mas, no rosto de Sonny Li, o criminalista podia ver indiferença
completa para com o seu estado. Como se ele fosse, bem, realmente
natural.
Então percebeu que quase todas as pessoas que tinha conhecido
nos últimos anos, com exceção de Amelia Sachs, eram meramente
conhecidos. Ele conhecia esse sujeito há menos de um dia, mas
Sonny Li já parecia mais do que isso.
— Você mencionou seu pai — disse Rhyme. — Quando ligou
para ele antes, não pareceu uma conversa boa. Qual é a história dele?
— Ah, meu pai... — Li tomou mais uísque, que aparentemente
estava se tornando mais agradável para o policial, assim como
Rhyme tinha se acostumado com o baijiu. A globalização através do
álcool, refletiu Rhyme secamente.
Li serviu-se de mais uma dose.
— Talvez seja melhor tomar aos poucos — sugeriu Rhyme.
— Tem tempo para tomar aos poucos depois de você morrer
disse o policial, e esvaziou o copo rosado, enfeitado com flores. Meu
pai... ele não gosta muito de mim. Eu sou, o que significa... Não
realiza o que ele quer.
— Desapontamento?
— É, eu sou desapontamento.
— Por quê?
— Ah, um monte de coisas. Vou contar nossa história em
pequeno pra você.
— Resumir — disse Rhyme.
— O Dr. Sun Yat-sen nos anos 20, ele unifica China, mas
aconteceu guerra civil. O Kuomitang — o Partido Nacional — estava
sob comando de Chiang Kai-shek. Mas Gongchantang — os
comunistas — luta contra eles. Então Japão invade, tempo ruim para
todo mundo. Depois de Japão perder, nós tem mais guerra civil na
China e finalmente Mao Tsé-tung e comunistas vence, expulsa
nacionalistas para Taiwan. Meu pai, ele luta com Mao. Outubro de
1949, ele junto com o camarada Mao no Portão da Paz Celestial em
Pequim. Ah Loaban, eu ouve essa história um milhão de vezes. Como
ele fica ali parado e bandas tocavam ”A Marcha dos Voluntários”.
Época patriótica pra caralho.
”Então meu pai, ele tem guanxi. Conexões alto nível. Vira figurão
no Partido Comunista em Fujian. Quer que eu vira também. Mas eu
vejo o que comunistas faz em 66 — Grande Revolução Cultural
Proletária Sem Precedentes Históricos —, destrói tudo, machuca
gente, mata gente. Governo e partido não fazendo coisas certas.
— Não era natural. Não estava em harmonia.
— Exato, Loaban — disse Li gargalhando. — Meu pai quer eu
entra pro partido. Ordena. Ameaça. Mas eu não me importa com
partido. Não me importa com coletivos. — Ele balançou os braços.
— Não me importa com grandes ideias. O que eu gosta é de trabalho
policial. Minha irmã, ela importante no partido. Nosso pai orgulhoso
dela, mesmo ela sendo mulher. Ele diz ela não traz desgraça para ele
como eu. Diz isso o tempo todo. — O rosto dele ficou sombrio. —
Outra coisa ruim também é eu não tenho filho, nenhum filho,
quando casei.
— Você é divorciado?
— Minha mulher, ela morre. Fica doente e morre. Uma febre,
coisa ruim. Só casado poucos anos, mas sem filhos. Meu pai disse é
culpa minha. Nós tenta, só não tem filhos. Então ela morre. — Ele se
levantou e andou até a janela, olhou para as luzes da cidade. Meu
pai, ele muito rígido. Bate em mim o tempo todo eu crescia. Nunca o
que eu fazia bom para ele. Boas notas... eu bom aluno. Ganha
medalhas no exército. Casa garota boa, respeitosa, tem trabalho em
escritório de segurança, vira detetive, não só trânsito, estou dizendo.
Vai visitar meu pai toda semana, dá dinheiro, presta respeito em
sepultura de mãe. Mas nunca nada eu faz é suficiente. Seus pais,
Loaban?
— Os dois morreram.
— Minha mãe, ela não tão rígida igual meu pai, mas nunca diz
muita coisa. Ele não deixa ela... Aqui, no Belo País, vocês não tanto,
como diz, sob gravidade dos pais?
Bom modo de colocar, pensou Rhyme.
— Talvez não tanto. Algumas pessoas são.
— Respeito por pais, isso é número um para nós. — Ele assentiu
na direção da estátua de Guan Di. — De todos deuses, mais
importantes são nossos ancestrais.
— Talvez seu pai goste mais de você do que dá a entender. E use
uma fachada, você sabe. Porque ele acha que isso é bom para você.
— Não, ele não gosta de mim. Ninguém para levar o nome de
família, estou dizendo. Isso coisa muito ruim.
— Você vai conhecer alguém e ter uma família.
— Um homem como eu? — Li fez um muxoxo. — Não, não. Eu
só policial, não tem dinheiro. Maioria de homens minha idade em
Fujou, eles trabalha empresas, ganha muito dinheiro. Dinheiro em
toda parte. Lembra, eu disse muito mais homens que mulheres? Por
que uma mulher escolhe homem pobre e velho quando pode ter rico
e novo?
— Você é da minha idade. Não é velho. Li olhou de novo pela
janela.
— Talvez eu fica aqui. Eu fala inglês bom. Eu ser agente de
segurança aqui. Trabalha Chinatown. Disfarçado.
Ele parecia falar sério. Mas então riu e disse o que os dois
estavam pensando: — Não, não, tarde demais para isso. Um monte
tarde demais... não, nós pega o Fantasma, eu vai para casa e continua
sendo detetive bom pra caralho. Guan Di e eu resolve grande crime e
minha foto sai em jornal em Fujou. Talvez chefe de partido me dá
medalha. Talvez meu pai assiste noticiário e ver e acha eu não filho
muito ruim. — Ele esvaziou o copo de uísque. — Certo. Chega de
beber agora. Você e eu, nós faz jogo, Loaban.
— Eu não jogo.
— Mas e aquele jogo em seu computador? — disse Li
rapidamente.
— Xadrez. Eu vê.
— Eu não jogo com muita frequência — corrigiu Rhyme.
— Jogo melhora você. Eu vai mostrar como jogar melhor jogo.
— Ele voltou à mágica sacola de compras.
— Eu não posso jogar a maioria dos jogos, Sonny. Não consigo
segurar direito as cartas, você sabe.
— Ah, jogos de carta? — disse Li zombando. — Isso jogos de
azar. Só bom para ganhar dinheiro. Veja, neles, você guarda
segredos escondendo cartas dos oponentes. Melhores jogos, jogos
onde você guarda segredos na cabeça, estou dizendo. We-Uchi? Já
ouviu falar? Também chamado Go.
Rhyme achou que já.
— E como damas, ou algo assim?
— Damas, não, não — respondeu Li rindo muito.
Rhyme examinou o tabuleiro que Li pegou da sacola de compras
e pôs na mesa ao lado da cama. Era uma grade com uma quantidade
de linhas perpendiculares. Em seguida ele pegou dois sacos, um
contendo centenas de minúsculas pedrinhas brancas, o outro com
pretas.
De repente Rhyme sentiu um desejo enorme de jogar, e se
obrigou a prestar bastante atenção à voz animada de Sonny Li
enquanto ele explicava as regras e o objetivo do wei-chi.
— Parece bem simples — disse Rhyme. Os jogadores se
alternavam colocando suas pedrinhas no tabuleiro, numa tentativa
de rodear as do oponente e eliminá-las do jogo.
— Wei chi como todos grandes jogos: regras simples, mas vencer
difícil. — Li separou as pedras em duas pilhas. Enquanto isso falou:
— Jogo tem muitos anos. Eu estuda melhor jogador todos os tempos.
Nome era Fan Si-pin. Viveu mil setecentos e pouco, data de vocês.
Nunca ninguém melhor que ele vive. Ele fez jogo após jogo com Su
Ting-an, que era quase tão bom. Os jogos costumava empatar, mas
Fan ganha mais alguns pontos, por isso era jogador melhor no geral.
Sabe por que ele melhor?
— Por quê?
— Su era jogador defesa. Mas Fan... ele sempre joga ataque. Ele
ataca sempre, era impulsivo, maluco, estou dizendo.
Rhyme sentiu o entusiasmo do sujeito.
— Você joga muito?
— Eu vou clube minha cidade. Eu joga muito, sim. — Sua voz se
interrompeu um momento e ele ficou pensativo. Rhyme se
perguntou por quê. Então Li puxou para trás o cabelo oleoso e disse:
— Certo, nós joga. Você vê como você gosta. Pode durar muito
tempo.
— Não estou cansado.
— Também não. Agora, você nunca joga antes, por isso eu dá
vantagem. Dá três peças a mais. Parece não muito, mas grande,
grande vantagem em wei-chi.
— Não. Eu não quero vantagem.
Li olhou para ele e deve ter pensado que isso tinha a ver com a
deficiência física, e acrescentou sério: — Eu só dá vantagem porque
você não joga antes. Esse único motivo. Jogadores experientes
sempre faz isso. É costume.
Rhyme entendeu e apreciou a observação de Li. Mesmo assim,
falou inflexível: — Não. Você faz a primeira jogada. Vá. — E
observou os olhos de Li baixando e se concentrando na grade de
madeira entre eles.
IV
CORTANDO O RABO DO DEMÔNIO

Quarta-feira, da Hora do Dragão, 7 da manhã,


até a Hora do Galo, 18h30.

No Wei-Chi, quanto mais os dois jogadores se equiparam, mais


interessante é a partida.

DANIELLE PECORINI e TONG SHU


The Game of Wei-Chi
Capítulo 30
Na manhã do dia em que ia morrer, Sam Chang acordou e achou
o pai no quintal dos fundos de seu apartamento no Brooklyn
realizando os movimentos lentos do tiu chi.
Olhou o velho durante alguns instantes e um pensamento lhe
ocorreu: o septuagésimo aniversário de Chang Jiechi era dali a três
semanas. Na China eles eram uma família tão pobre e perseguida
que não puderam comemorar os sessenta anos dele,
tradicionalmente uma grande festa que significava a passagem para
a idade avançada, a época da veneração. Mas sua família faria a festa
nos setenta.
O corpo animado de Sam Chang não estaria na festa, mas talvez
seu espírito estivesse.
Olhou o velho, que se movia como um dançarino calmo no
pequeno quintal.
O tai chi era benéfico para o corpo e a alma, mas Chang sempre
ficava triste ao olhar o exercício. Fazia-o lembrar-se de uma noite
úmida de junho há anos. Chang e um punhado de estudantes e
colegas professores estavam sentados juntos em Pequim, olhando
um grupo de gente ali perto realizando os movimentos bailados.
Passava da meia-noite, e todos desfrutavam do clima agradável e da
empolgação de estar entre amigos de pensamento parecido, no
centro do que ia se tornando a maior nação da Terra, a nova China, a
China esclarecida.
Chang havia se virado para um jovem estudante perto dele e
apontado para uma mulher idosa e ágil, perdida no feitiço do tai chi,
quando o peito do garoto explodiu e ele caiu no chão. Os soldados
do Exército de Libertação do Povo tinham começado a disparar
contra a multidão na Praça Tiananmen. Os tanques chegaram um
instante depois, empurrando as pessoas na frente, esmagando
muitos debaixo das esteiras (a famosa imagem televisionada do
estudante parando o tanque com uma flor foi a rara exceção naquela
noite terrível).
Chang nunca mais pôde olhar o tai chi sem pensar naquele
momento, que solidificou sua postura como um dissidente explícito
e mudou sua vida — e a da sua família — para sempre.
Agora olhou para a esposa e, perto dela, a menininha, que
dormia com o braço envolvendo o gatinho de pano que Mei-Mei
tinha feito para ela. Olhou-as um momento. Depois, entrando no
banheiro, abriu a água ao máximo. Tirou a roupa e entrou debaixo
do chuveiro, pousando a cabeça nos azulejos que, de algum modo,
Mei-Mei tinha achado tempo para limpar na noite passada.
Tomou banho, fechou a água escaldante e se enxugou com uma
toalha. Inclinou a cabeça,ouvindo os sons de metal batendo na
cozinha.
Mei-Mei ainda estava dormindo e os garotos não sabiam nada
sobre cozinhar. Alarmado, levantou-se da cama, pegou o revólver
debaixo do colchão e entrou cautelosamente na sala do apartamento.
Riu. Seu pai estava fazendo chá.
— Baba — falou. — Vou acordar Mei-Mei. Ela pode fazer isso. —
Não, não, deixe ela dormir. Quando sua mãe morreu eu aprendi a
fazer chá. Sei fazer arroz também. E legumes. Ainda que não muito
bem. Vamos tomar chá juntos. — Chang Jiechi levantou a panela de
ferro, com o cabo enrolado num trapo, pegou xícaras e levou tudo
até a sala. Os dois se sentaram e ele serviu o chá.
Na noite passada, quando tinha voltado, Chang e o pai haviam
apanhado um mapa e localizado o prédio do Fantasma, que, para
surpresa deles, não ficava em Chinatown, e sim mais ao oeste, perto
do rio Hudson.
— Quando você for ao apartamento do Fantasma — perguntou o
pai agora —, como vai entrar? Ele não vai reconhecer você?
Chang tomou um gole de chá.
— Acho que não. Ele só entrou uma vez no depósito do navio. E
estava escuro.
— Como vai entrar?
— Se houver um porteiro, digo que estou indo a negócios e dou o
nome Tan. Eu treinei o inglês a noite inteira. Então só vou pegar o
elevador até a porta dele e bato.
— E se ele tiver guarda-costas? Eles vão revistar você.
— Vou esconder a arma na minha meia. Eles não vão revistar
com muita atenção. Não vão esperar que eu esteja armado. — Chang
tentou visualizar o que aconteceria. Sabia que eles teriam armas
também. Mesmo que atirassem nele assim que vissem a arma, ele
ainda poderia acertar uma ou duas balas no Fantasma. Percebeu que
o pai o estava olhando e baixou os olhos. — Eu vou voltar — disse
com firmeza. — Estarei aqui para cuidar de você, baba.
— Você é um bom filho. Eu não poderia pedir um melhor.
— Não lhe dei toda a honra que deveria.
— Deu, sim — disse o velho e serviu mais chá. — Eu escolhi bem
o seu nome. — O nome próprio de Chang, Jingerzi, significava ”filho
sagaz”.
Eles levantaram as xícaras e Chang esvaziou a sua. Mei-Mei veio
à porta, olhou as xícaras.
— Vocês já comeram arroz? — perguntou. A expressão
significava simplesmente: ”Bom dia”. Não era uma referência à
comida.
— Acorde William — disse Chang a Mei-Mei. — Há umas coisas
que eu quero dizer a ele.
Mas seu pai sinalizou para que ela parasse.
— Não.
— Por que não? — perguntou Chang.
— Ele vai querer ir com você.
— Eu vou dizer que não.
Chiang Jiechi riu.
— E isso vai impedi-lo? Aquele seu filho impetuoso? — Chang
ficou quieto um momento e depois disse: — Eu não posso sair assim
sem falar com ele. É importante. Mas o pai perguntou: — Qual é o
único motivo para um homem fazer algo que você está para fazer,
algo tão tolo e perigoso?
— Os filhos. Seu pai sorriu.
— É, filho, é. Tenha isso em mente, sempre. Você faz uma coisa
assim pelos filhos. — Em seguida ficou sério. Chang conhecia muito
bem essa expressão do pai. Imperial, inflexível. Não a via há bastante
tempo — desde que ele ficara doente de câncer. — Sei exatamente o
que você pretende dizer ao seu filho. Eu faço isso. É meu desejo que
você não acorde William.
Chang assentiu.
— Como quiser, baba — concordou Chang e olhou para o relógio
de pulso. Eram sete e meia. Precisava estar no apartamento do
Fantasma dentro de uma hora. Seu pai lhe serviu mais chá, que
Chang tomou rapidamente. Depois, disse a Mei-Mei: — Preciso sair
logo. Mas quero que você venha se sentar comigo.
Ela se sentou junto ao marido, baixando a cabeça no ombro dele.
Os dois não falaram nada, mas depois de cinco minutos Po-Yee
começou a chorar e Mei-Mei se levantou para cuidar da menina. Sam
Chang ficou contente em permanecer em silêncio e olhar a esposa
com a nova filha dos dois. E então estava na hora de sair e ir para a
sua morte.
— Isso é nojento — gritou.
— O quê? — perguntou Sonny Li, a única outra pessoa na sala. O
policial chinês estava grogue e seu cabelo se espetava comicamente.
Eram 7h30.
— O cigarro — explicou Rhyme.
— Você devia fumar — rosnou Li. — Relaxa você. Bom para
você.
Mel Cooper chegou com Lon Selli o e Eddie Deng logo atrás.
O jovem policial sino-americano estava andando muito devagar.
Até seu cabelo estava murcho, nada do espetado na moda hoje.
— Como vai, Eddie? — perguntou Rhyme.
— Você devia ver o machucado — disse Deng, referindo-se a sua
trombada com uma bala de chumbo na véspera, no tiroteio da Canal
Street. — Eu não quis deixar minha mulher ver. Vesti o pijama no
banheiro.
Selli o, de olhos vermelhos, segurava um punhado de relatórios
da equipe de policiais noturnos que entrevistaram empreiteiros que
instalaram carpete Lustre-Rite Arnold nos últimos seis meses. As
entrevistas nem estavam terminadas e o número de locais de
construção era enorme a ponto de desencorajar: trinta e duas
instalações separadas só na área do Ba ery Park City.
— Inferno — murmurou Rhyme. — Trinta e dois. — E cada um
pode ter vários andares acarpetados.
Trinta e dois? Ele esperava que não fossem mais de cinco ou seis.
Alan Coe, o agente do INS, chegou, entrando animado no
laboratório, não parecia nem um pouco envergonhado e começou a
fazer perguntas sobre como ia a investigação — como se o tiroteio da
véspera não tivesse acontecido e o Fantasma não tivesse escapado
graças a ele.
Mais passos no corredor do lado de fora.
— Ei — disse Sachs cumprimentando e entrando na sala. Deu um
beijo em Rhyme. Ele começou a falar da lista de prédios acarpetados
recentemente, mas Selli o a interrompeu: — Descansou um pouco
esta noite? — A voz do detetive tinha uma tensão clara.
— O quê? — perguntou ela.
— Descansou? Dormiu? Está bem descansada?
— Não exatamente — respondeu ela com cautela. — Por quê?
— Tentei falar com você por volta da uma hora. Tinha umas
perguntas para você.
— Bom, eu cheguei em casa às duas — respondeu ela, com um
clarão nos olhos. — Fui ver um amigo.
— Foi?
— É, fui.
— Bom, eu não consegui entrar em contato com você.
— Sabe, detetive. Eu posso lhe dar o telefone da minha mãe. Ela
pode lhe dar algumas orientações sobre como tomar conta de mim.
Mesmo que não faça isso há uns quinze anos.
— Ei, rapaz, essa foi boa — disse Sonny Li.
— Tome cuidado, patrulheira — disse Selli o a Sachs.
— Tomar cuidado com o quê? — perguntou ela rispidamente. —
Se quer dizer alguma coisa, diga.
O policial recuou.
— Eu não pude contatar você, só isso — murmurou. — Seu
celular estava desligado.
— Estava? Bem, eu estava com meu pager. Você tentou me
mandar um recado pelo pager?
— Não.
— E então?
A discussão deixou Rhyme perplexo.
Certo, quando ela estava trabalhando, Rhyme insistia em que
Amelia ficasse disponível. Mas nas horas de folga era outra coisa.
Amelia Sachs era independente. Gostava de dirigir rápido, tinha
interesses e amigos além dele.
O que quer que a levasse a coçar a pele, lamentar a perda do pai,
lamentar o ex-amante, um policial expulso por ser um dos mais
corruptos da história recente, o que quer que a impulsionasse nas
cenas de crimes — a mesma força a impulsionava sozinha às vezes.
Assim como havia ocasiões em que ele a mandava embora,
algumas vezes pedindo com gentileza, algumas vezes ordenando.
Um aleijado precisa de tempo sozinho. Para ganhar força, para
deixar que o ajudante cuidasse do mijo e da merda e para considerar
pequenas questões como ”será que eu quero me matar hoje”?
Rhyme ligou para o Prédio Federal e perguntou por Dellray, mas
ele estava no Broolkyn verificando pistas do atentado a bomba na
véspera. Depois falou com o agente especial encarregado assistente e
lhe disseram que haveria uma reunião esta manhã para nomear
outro agente do FBI para o FANTASMORTES, em substituição a Dellray.
Rhyme estava com raiva; presumira que o escritório já houvesse
escolhido um agente para a equipe.
— E quanto à SPECTAC?
— Também está no rolo do papo desta manhã — respondeu o
AEAE.
— No rolo do papo?
— Bom, nós precisamos de gente, e precisamos agora — disse
Rhyme bruscamente.
O sujeito escorregadio respondeu: — Temos prioridades.
— Ah, isso é reconfortante pra caralho.
— Perdão, Sr. Rhyme. Não entendi direito.
— Eu disse: ligue assim que souber de alguma coisa. Precisamos
de mais gente.
Logo depois de desligar, o telefone tocou de novo. Rhyme
rosnou: — Comando, atender telefone.
Houve um estalo e uma voz com sotaque chinês pediu: — Sr. Li,
por favor.
Li sentou-se, distraidamente, pegou um cigarro, que Thom tirou
de sua mão ao passar perto. Li se inclinou para o microfone e
começou a falar rapidamente em chinês. Houve uma troca de
palavras explosiva entre ele e a pessoa que ligava. Rhyme pensou
que estavam discutindo, mas finalmente Li se recostou, tomando
notas em chinês. Depois desligou e sorriu.
— Certo, certo, aqui eu tem uma coisa. Era Cai, da tong. Ele
pergunta por aí sobre minorias. Tem um grupo de chineses
chamados de uigures. Eles muçulmanos, turcos. Gente braba. Foram
ocupados pela China — como o Tibete — e não gostam. Maltratados.
Cai descobre que Fantasma contrata gente da comunidade turquestã
e de Centro Islâmico no Queens. O cara que Hongse atirou, ele um
deles. Aqui endereço e número de telefone. Ei, eu estava certo,
Loaban. Eu disse ele de minoria.
— Estava mesmo, Sonny.
Eddie Deng traduziu a informação para o inglês numa segunda
tira de papel.
— Devemos dar uma batida? — perguntou Selli o.
— Ainda não. Pode ser a dica para o Fantasma — disse Rhyme.
— Tenho uma ideia melhor.
Deng estava junto dele.
— O Registro Pen.
— É.
Eram registros das companhias telefônicas, de telefonemas dados
e recebidos de um número particular. Já que não gravavam o
conteúdo da conversa, era mais fácil para o pessoal da lei acessar
esses registros do que monitorar a transmissão através de um
grampo autorizado pelo governo.
— O que isso vai fazer? — perguntou Coe.
— O Fantasma chegou ontem de manhã à cidade e telefonou
para o centro em algum momento, presumivelmente para contratar
os capangas. Vamos verificar todos os telefonemas dados para o
número do centro comunitário, digamos... depois das nove da
manhã de ontem.
Em meia hora a companhia telefônica tinha dado uma lista de
uns trinta números que fizeram contato com o centro uigur no
Queens nos últimos dois dias. A maioria eles puderam eliminar
imediatamente — como os que ligaram antes da chegada do
Fantasma, como Rhyme havia observado —, mas quatro eram de
celulares com números locais.
— E são telefones quentes, certo? Os celulares?
— Totalmente roubados — disse Selli o.
Como os telefones eram roubados, isso significava que não havia
endereço para cobrança no lugar onde o Fantasma estaria. Mas as
operadoras de celulares podiam dar à equipe informações sobre
onde o usuário estava quando cada telefonema fora dado ou
recebido. Um telefone estivera na área do Ba ery Park City e,
enquanto o chefe de segurança da companhia ditava as interseções
para delinear a zona do celular, Thom as desenhava no mapa. O
resultado era uma cunha de cerca de oitocentos metros quadrados
perto do rio Hudson.
— Agora — gritou Rhyme a Sachs, sentindo a empolgação de
estar chegando perto da presa —, algum dos prédios dessa área tem
carpete LustreRite Arnold?
— Estou cruzando os dedos — disse Eddie Deng. Finalmente
Sachs ergueu os olhos da lista e gritou: — Sim! Tenho um.
— É o esconderijo do Fantasma — anunciou Rhyme.
— Um prédio novo — disse ela. — Oito zero cinco na Patrick
Henry Street. Não fica longe do rio. — Ela o circulou no mapa.
Depois suspirou, olhando para a informação da empresa Arnold.
Diabo — murmurou. — Eles instalaram carpetes em dezenove
andares. Há um monte de apartamentos para verificar.
— Então — disse Rhyme impaciente —, é melhor vocês
começarem.
FANTASMORTES

Cena do Crime Easton, Long Island

• Dois imigrantes mortos na praia, com tiros nas costas.


• Um imigrante ferido — Dr. John Sung.
• ”Bangshou” (assistente) abatido identidade desconhecida.
• Assistente confirmado como corpo afogado encontrado perto
do lugar onde o Dragon afundou.
• Dez imigrantes escapam: sete adultos (um idoso, uma mulher
ferida), duas crianças, um bebê. Roubam furgão da igreja.
• Amostras de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Mulher ferida é AB negativo. Requisitando mais informações
sobre seu sangue.
• Veículo esperando o Fantasma na praia partiu sem ele. Um tiro
supostamente dado pelo Fantasma contra o veículo. Providenciado
pedido de marca e modelo do veículo, baseado em marcas de pneus
e distância entre eixos.
• Veículo é um BMW X5.
• Motorista — Jerry Tang.
• Nenhum veículo para pegar os imigrantes foi localizado.
• Celular, presumivelmente do Fantasma, mandado para análise
no FBI.
• Telefone por satélite impossível de ser rastreado. Penetrou no
sistema chinês para ser usado.
• Arma do Fantasma é uma pistola 7.62. Cartuchos incomuns.
• Pistola automática chinesa Modelo 51.
• O Fantasma pode ter gente do governo em sua folha de
pagamentos.
• O Fantasma roubou um sedã Honda vermelho para fugir.
Providenciado pedido de localização do veículo.
• Nenhum traço do Honda foi encontrado.
• Três corpos recuperados no mar — dois mortos a tiros, um
afogado. Fotos e impressões mandadas a Rhyme e à polícia chinesa.
• Indivíduo afogado identificado como Victor Au, o bangshou do
Fantasma.
• Digitais mandadas ao AFIS.
• Nenhuma identificação em nenhum ponto, mas marcas
incomuns nos dedos de Sam Chang (ferimento, queimadura de
corda?)-
• Perfil dos imigrantes: Sam Chang, Wu Qichen e suas famílias,
John Sung, bebê de mulher afogada, homem e mulher não
identificados (mortos na praia).

Furgão Roubado, Chinatown

• Camuflado por imigrantes com o logotipo ”A Loja do Lar”.


• Mancha de sangue sugere que mulher tem ferimento no braço
ou no ombro.
• Amostras de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Mulher ferida é AB negativo. Requisitando mais informações
sobre seu sangue.
• Digitais mandadas ao AFIS.
• Nenhuma identificação.

Cena do Assassinato de Jerry Tang


• Quatro homens arrombaram a porta, torturaram-no e o
mataram a tiros.
• Dois cartuchos de balas — combinam com Modelo 51. Tang
levou dois tiros na cabeça.
• Grande vandalismo.
• Algumas digitais.
• Nenhuma identificada, a não ser a de Tang.
• Três cúmplices têm sapatos menores do que os do Fantasma,
presumivelmente têm estatura menor.
• Traços de substâncias sugerem que o esconderijo do Fantasma
fica provavelmente no sul de Manha an, na área de Ba ery Park
City.
• Suspeita-se de cúmplices de minoria étnica chinesa. No
momento o paradeiro é procurado.
• Uigures de comunidade turquestã e do Centro Islâmico do
Queens.
• Telefonema de celular indica prédio 805 na Patrick Henry
Street, sul de Manha an.

Tiroteio na Canal Street Cena do Crime

• Traços adicionais sugerem que esconderijo é na área de Ba ery


Park City.
• Chevrolet Blazer roubada, impossível rastrear origem.
• Nenhuma identificação de digitais.
• Carpete do esconderijo: LustreRite da empresa Arnold,
instalado nos últimos seis meses; ligando para empreiteiros para
obter lista de instalações.
• Locais de instalações determinados: 32 perto de Ba ery Park
City.
• Encontrada palha de jardinagem fresca.
• Corpo do cúmplice do Fantasma: minoria étnica do oeste ou
noroeste da China. Sem identificação de digitais. Arma era Walther
PPK.
• Detalhes sobre imigrantes:
• Os Chang: Sam, Mei-Mei, William e Ronald; pai de Sam, Chang
Iechi, e bebê, Po-Yee. Sam arrumou trabalho, mas empregador e local
são desconhecidos. Dirigindo furgão azul, marca desconhecida,
placa desconhecida. Apartamento dos Tang é no Queens.
• Os Wu: Qichen, Yong-Ping, Chin-Mei e Lang.
Capítulo 31
Você faz parte dos antigos. Você se arrepende?
O Fantasma estava parado junto à janela de seu apartamento no
prédio alto da Patrick Henry Street no Baixo Manha an e olhava os
navios navegando no porto, cinquenta metros abaixo, a um
quilômetro e meio de distância.
Alguns indo rápido, outros bamboleando desajeitados.
Alguns impecáveis, outros enferrujados como o Fujou Dragon.
... parte dos antigos. Seu modo de vida decadente é nojento...
Ele gostava muito de desfrutar o panorama abaixo. Raramente
tinha vistas assim na China; fora de Pequim e das grandes cidades
de Fujian e Guangdong havia poucos prédios altos. Porque havia
poucos elevadores.
O que era uma condição que o pai do Fantasma chegou perto de
retificar nos anos 60.
Seu pai era um homem abençoado com a rara combinação de
ambição enorme apoiada por esquemas sensatos. O atarracado
empresário tinha as mãos em muitos empreendimentos: vendendo
produtos militares aos vietnamitas, que se preparavam para derrotar
os americanos em seu apêndice de país no sul, operando ferros-
velhos, emprestando dinheiro, construindo moradias particulares e
importando máquinas russas — e as mais lucrativas eram os
elevadores Lemarov, que eram baratos, funcionais e raramente
matavam alguém.
Sob os auspícios de um coletivo de Fujou, Kwan Baba — o
apelido significava ”papai” — tinha assinado contratos para
comprar milhares daqueles elevadores, vendê-los a coletivos de
construção civil e trazer técnicos russos para instalá-los. Ele tinha
todos os motivos para acreditar que seus esforços mudariam a
silhueta das cidades da China e iriam torná-lo ainda mais rico do
que era.
E por que não teria sucesso? Ele usava conformistas ternos
unissex, comparecia a todos os comícios do PCC que podia, tinha
guanxi em todo o sudeste, e sua cooperativa era a mais bem-sucedida
na Província de Fujian, mandando uma cascata de ienes para
Pequim.
Mas sua carreira estava condenada. E o motivo era simples: um
soldado transformado em político, sólido, sem humor, chamado
Mao Tsé-tung, cuja caprichosa Revolução Cultural de 1966 incitou
estudantes de todo o país a se levantar e destruir as quatro coisas
antigas: a antiga cultura, os antigos costumes, as antigas ideias e os
antigos hábitos.
A casa do pai do Fantasma, numa parte elegante de Fujou, foi um
dos primeiros alvos dos jovens vândalos que tomaram conta das
ruas, praticamente tremendo de idealismo, sob as ordens do Grande
Timoneiro.
— Você faz parte dos antigos — gritava o líder. — Você se
arrepende? Confessa que está agarrado aos valores antigos?
Kwan Baba tinha-os recebido na sala de estar, que havia se
encolhido até o tamanho de uma cela de prisão devido ao número de
jovens que gritavam rodeando a família, e olhava-os não somente
com medo, mas também com perplexidade; honestamente, não
conseguia ver nada de mal no que tinha feito.
— Confesse e busque a reeducação, e nós podemos poupá-lo! —
gritou outro.
— Você é culpado de ter pensamentos antigos, valores antigos,
cultura antiga...
— Você construiu um império de lacaio nas costas do povo.
De fato, os estudantes não tinham ideia do que Kwan Baba fazia
para viver ou se a cooperativa que ele comandava se baseava nos
mais puros princípios do capitalismo de J. P. Morgan ou no
comunismo marxista-leninista-maoista. Só sabiam que sua casa era
melhor do que as deles e que ele podia se dar ao luxo de comprar
arte de uma abominável era ”antiga” — arte que não fazia nada para
informar sobre a luta do povo contra as forças opressoras do
Ocidente.
Kwan e sua mulher, junto com Ang, que na época tinha doze
anos, e seu irmão mais velho, estavam sem fala diante da multidão
agitada.
Você faz parte dos antigos...
Boa parte daquela noite foi um borrão terrível e confuso para o
jovem Ang.
Mas uma parte estava permanentemente gravada em sua
memória, e ele pensava nela agora, em pé em seu apartamento
luxuoso acima do porto, esperando o traidor dos Chang.
O alto líder do grupo de estudantes estava parado no meio da
sala, usando óculos de aro preto, lentes ligeiramente tortas porque
tinham sido feitos num dos coletivos locais. Com cuspe voando da
boca, partiu para uma dialética feroz com o jovem Kwan Ang,
parado humildemente ao lado da mesinha de centro em forma de
feijão, onde seu pai tinha-o ensinado a usar o ábaco havia anos.
— Você faz parte dos antigos — gritou o estudante na cara do
garoto. — Você se arrepende? — Para dar ênfase, a cada frase que
dizia ele batia com o porrete grosso, pesado como um bastão de
críquete, no chão entre eles; fazia um barulho alto.
— Sim, eu me arrependo — disse o garoto calmamente. — Eu
peço ao povo para me perdoar.
— Você vai reformar suas atitudes decadentes.
Bam.
— Sim, eu vou reformar minhas atitudes — disse ele, mesmo não
sabendo o que significava ”decadente”. — As atitudes antigas são
uma ameaça ao bem coletivo do povo.
— Você vai morrer se mantiver suas crenças antigas!
Bam.
— Então vou rejeitá-las.
Bam, bam, bam...
E a coisa continuou assim por minutos intermináveis — até que
os golpes que o estudante dava finalmente roubaram a vida do que o
estudante estivera golpeando com o bastão com ponta de ferro: os
pais do Fantasma, que estavam deitados amarrados e amordaçados
no chão, a seus pés.
O garoto não olhou uma única vez para as formas
ensanguentadas enquanto recitava o catecismo que os estudantes
sedentos queriam ouvir.
— Eu me arrependo de minhas atitudes. Rejeito o que é antigo.
Lamento ter sido seduzido pelo pensamento maléfico e decadente.
Ele foi poupado, mas não o irmão mais velho, que fugira para o
barracão do jardineiro e voltara com um ancinho — a única arma
que o garoto idiota conseguiu achar. Dentro de minutos os
estudantes reduziram-no a uma terceira pilha ensanguentada no
tapete, tão sem vida quanto os pais.
Os fervorosos jovens levaram o leal Kwan Ang, recebendo o
garoto no coração da Gloriosa Brigada Jovem da Bandeira Vermelha
de Fujou, enquanto passavam o resto da noite arrancando mais
coisas antigas e perniciosas.
Nenhum dos estudantes notou que na manhã seguinte Ang se
esgueirou para fora do quartel-general improvisado. Parecia que,
com tanta reforma para perpetrar, nenhum sequer se lembrou dele.
Mas Ang se lembrava deles. Seu curto tempo como
revolucionário maoista que desprezava o antigo — não mais do que
algumas horas — fora passado de modo bastante produtivo:
memorizando o nome dos jovens do grupo e planejando a morte
deles.
Mesmo assim, deu-se tempo.
Naixin...
O sentimento de sobrevivência do garoto era forte e ele escapou
para um dos ferros-velhos perto de Fujou. Ali viveu durante meses.
Percorria o lugar enorme, caçando ratos e cães para comer,
rastreando-os através dos esqueletos das máquinas e montes de lixo
com uma lança que ele próprio fizera e um porrete — um para-
choque enferrujado de um caminhão russo em pedaços.
Quando ficou mais confiante e soube que os grupos não estavam
procurando por ele, começou a fazer incursões na cidade para
roubar comida das latas de lixo atrás dos restaurantes de Fujou.
Por causa de sua história marítima e do grande contato com o
resto do mundo, os fujouenses sempre estiveram entre os chineses
mais independentes. O adolescente Kwan Ang descobriu que o
Partido Comunista e os quadros maoistas se mantinham longe do
litoral e das docas, onde cabeças de cobra e traficantes não davam a
mínima para as massas oprimidas, e alardear ideologia era um modo
certo de ser morto. O garoto foi informalmente adotado por vários
daqueles homens e começou a fazer tarefas para eles, ganhando sua
confiança, eventualmente tendo a permissão de comandar alguns de
seus menores esquemas, como roubar nas docas e extorquir dinheiro
de proteção dos comerciantes da cidade.
Matou seu primeiro homem aos treze anos — um traficante de
drogas vietnamita que tinha roubado o cabeça de cobra para quem
Ang trabalhava. E aos quatorze finalmente encontrou, torturou e
matou os estudantes que haviam lhe roubado a família.
O jovem Ang não era tolo; olhava em volta e percebia que os
bandidos com quem trabalhava tendiam a subir até um certo ponto
— principalmente por causa da pouca educação. Sabia que precisava
dominar administração, contabilidade e inglês — a futura língua do
crime internacional. Entrava nas escolas estatais de Fujou, que eram
tão apinhadas a ponto de os professores nunca saberem se um aluno
estava oficialmente matriculado ou não.
O garoto trabalhou duro juntando dinheiro, aprendendo que tipo
de crimes deveria evitar (roubar do Estado e importar drogas, crimes
que garantiriam que você fosse a atração principal nas concorridas
execuções nas manhãs de terça-feira no estádio de futebol) e que
crimes eram aceitáveis: roubar as empresas estrangeiras que estavam
chegando distraídas no mercado chinês, traficar armas e seres
humanos.
Sua experiência no cais tinha lhe dado uma especialização em
contrabando, extorsão e lavagem de dinheiro, e essas eram as áreas
em que ele ganhou seu dinheiro, primeiro em Fujou e depois em
Hong Kong, em seguida se expandindo pela China e o Extremo
Oriente. Transformou num fetiche a ideia de ficar fora dos refletores,
de jamais ser fotografado, as atitudes desesperadas para jamais ser
identificado, quanto mais preso. Ficou empolgado quando soube
que algum escritório de segurança pública havia lhe dado o apelido
de Gui, o Fantasma. Imediatamente adotou o apelido.
Era bem-sucedido porque o dinheiro em si não era o que o
empolgava. Era o desafio em si. Perder era ser envergonhado.
Ganhar era glorioso. A força impulsionadora de sua vida era a
caçada. Nos antros de jogatina, por exemplo, ele só participava de
jogos de habilidade. Desprezava os idiotas que pagavam dinheiro
para tentar a sorte na roda da fortuna ou numa loteria.
Desafios...
Como encontrar os Wu e os Chang.
Não estava insatisfeito pelo modo como a caçada ia acontecendo.
O Fantasma ficara sabendo, com suas fontes, que os Wu estavam
numa casa segura especial — não do INS, mas uma instalação
administrada pelo NYPD —, coisa que ele jamais teria esperado.
Yusuf tinha falado com um colega que verificaria o lugar, para ver
como era a segurança e talvez até matar os Wu se tivesse
oportunidade.
Quanto aos Chang — eles estariam mortos ao anoitecer, traídos
por seu próprio amigo, esse tal de Tan, que, claro, o Fantasma
mataria depois que o homem revelasse o endereço da família.
Também estava satisfeito por ouvir de sua fonte que a polícia não
estava tendo muito sucesso em rastreá-lo. O lado do FBI do caso
estava parado, a maior parte do caso estava com o departamento de
polícia da cidade. Sua sorte vinha mudando.
Essas meditações foram interrompidas por uma batida na porta.
O traidor tinha chegado.
O Fantasma assentiu para um uigur que sacou sua arma da
cintura. Ele abriu a porta lentamente, apontando a pistola para o
visitante.
O homem do corredor disse:
— Eu sou Tan. Estou aqui para ver o homem que se chama de
Fantasma. Kwan é o verdadeiro nome dele. Nós temos um negócio.
É sobre os Chang.
— Entre — disse o Fantasma, adiantando-se. — Quer um pouco
de chá?
— Não — respondeu o velho, entrando com dificuldade, olhando
em volta. — Não vou demorar muito.
Capítulo 32
Com os olhos imóveis por baixo das pálpebras caídas, Chang
Jiechi examinou os homens na sala: o próprio Fantasma e dois
homens de alguma minoria chinesa — uigures ou cazaques. Como
muitos chineses han mais velhos, Chang iechi pensava neles com a
palavra ”bárbaros”.
O velho entrou na sala, pensando: Que jornada tinha sido a vida
até este lugar que seria o local de sua morte! Também pensando no
filho, Sam Chang que, ele esperava, ainda estava inconsciente com o
chá que o velho tinha generosamente batizado com um pouco da sua
morfina.
”Qual é o único motivo para um homem fazer o que você está
para fazer, algo tão tolo e perigoso?”
”Os filhos.”
Nenhum pai, claro, deixaria de boa vontade um filho ir para a
morte. Chang Jiechi tinha decidido, assim que Sam voltou de
Chinatown na noite passada, que ele próprio drogaria o filho e viria
aqui em seu lugar. Sam tinha metade da vida pela frente aqui no
Belo País. Tinha os filhos para criar e agora — milagrosamente — a
filha que Mei-Mei sempre quisera. Aqui estava a liberdade, aqui
estava a paz, aqui estava a chance do sucesso. Ele não deixaria o filho
perder nada disso.
Quando o chá batizado fez efeito e as pálpebras do filho caíram
pesadas e a xícara tombou de sua mão, Mei-Mei se levantou
alarmada. Mas Chang Jiechi lhe contou sobre a morfina e o que
pretendia fazer. Ela tentou impedi-lo, mas era mulher, e era sua
nora; cedeu aos seus desejos. Chang Jiechi pegou a arma, um pouco
de dinheiro e, abraçando Mei-Mei e tocando a testa do filho pela
última vez, deixou o apartamento, com instruções para ela não
acordar William sob nenhuma circunstância. Achou um táxi e usou o
mapa que estivera no furgão da igreja para mostrar ao motorista
aonde queria ir.
Entrou rigidamente no elegante apartamento do Fantasma. O
bárbaro com a arma chegou perto e Chang Jiechi entendeu que teria
de colocar os homens à vontade antes de ter a chance de sacar sua
pistola e pôr uma bala no coração do cabeça de cobra.
— Eu conheço você? — perguntou o Fantasma, olhando-o
curiosamente.
— Talvez — respondeu Chang Jiechi, inventando uma coisa que
ele achava razoável e deixaria o Fantasma com menos suspeitas. —
Eu estou envolvido com as tongs aqui em Chinatown.
— Ah. — O Fantasma tomou um gole de seu chá.
O bárbaro permaneceu perto, olhando cheio de suspeitas para o
velho. O outro jovem, moreno e mal-humorado, estava sentado na
parte de trás da sala.
Assim que o capanga mais próximo desviasse a atenção, Chang
Jiechi atiraria no Fantasma.
— Sente-se, velho — disse o Fantasma.
— Obrigado. Meus pés não estão bem. Umidade e calor nos
ossos.
— E você sabe onde os Chang estão? — Sei.
— Como vou saber que posso confiar em você? Chang Jiechi riu.
— Com relação à confiança, acho que eu tenho mais com que me
preocupar do que você.
Por favor, rezou ele ao espírito de seu pai, um homem que se fora
desta terra há quarenta e seis anos e que era o principal deus no
panteão de Chang Jiechi, mais elevado até do que o Buda: Pai, faça
com que esse homem afaste essa arma e me dê cinco segundos. Deixe-me
salvar minha família. Dê-me a chance de uma bala — só peço isso. Só estou
a três metros de distância, não posso errar.
— Como conhece os Chang? — perguntou o Fantasma.
— Através de um parente em Fujou.
— Você sabe que eu quero fazer mal a eles. Que motivo tem para
traí-los?
— Preciso do dinheiro para o meu filho. Ele não está bem. Ele
precisa de médicos.
O Fantasma deu de ombros e disse ao bárbaro: — Reviste-o.
Deixe-me ver qualquer papel que ele tenha.
Não!, pensou Chang Jiechi, alarmado.
O bárbaro se adiantou, bloqueando sua visão — e sua mira — do
Fantasma.
Chang Jiechi levantou a mão e parou o bárbaro.
— Por favor. Eu sou um velho. Mereço seu respeito. Não toque
em mim. Eu mesmo lhe dou meus papéis.
O bárbaro olhou para o Fantasma com a sobrancelha levantada. E
quando ele fez isso, Chang Jiechi sacou a pistola do bolso e, sem
hesitação, atirou no lado do rosto do bárbaro. Ele caiu e ficou imóvel,
esparramado numa banqueta. Mas o Fantasma reagiu
imediatamente e pulou para trás de um sofá pesado enquanto
Chang Jiechi atirava de novo. A bala atravessou o couro, mas ele não
tinha ideia se havia acertado o cabeça de cobra. Virou-se para o
segundo bárbaro nos fundos da sala, mas o homem já havia
levantado a arma e estava apontando. Chang Jiechi ouviu um tiro e
sentiu um punho enorme acertar sua coxa enquanto a bala pesada o
fazia girar e ele caía de costas no chão. O bárbaro correu para ele. O
velho poderia ter atirado no sujeito e provavelmente acertado. Em
vez disso, virou-se para o sofá e disparou repetidamente na direção
do lugar onde o Fantasma estava escondido.
Então percebeu que a arma tinha parado de disparar.
Estava sem balas.
Teria acertado o Fantasma?
Ah, por favor, Guan Yin, deusa da misericórdia... Por favor!
Mas uma sombra cresceu na parede. O Fantasma se levantou de
trás do sofá, incólume, com uma pistola na mão. Respirando com
dificuldade, apontou o cano preto para Chang Jiechi e rodeou o
móvel. Lançou um olhar para o bárbaro morto.
— Você é o pai de Chang.
— Sou, e você é o demônio que está voltando para o inferno.
— Mas não com o seu bilhete — disse o Fantasma.
O outro bárbaro, gemendo e sussurrando histericamente numa
língua que Chang Jiechi não entendia, curvou-se sobre o corpo do
conterrâneo. Em seguida se levantou e foi na direção do velho,
apontando para ele.
— Não, Yusuf — disse o Fantasma, impaciente, sinalizando para
o sujeito recuar. — Ele vai nos dizer onde estão os outros.
— Nunca — foi a resposta desafiadora.
O Fantasma se virou para o ajudante.
— Nós não temos muito tempo. Alguém deve ter ouvido os tiros.
Teremos de sair. Use a escada, não o elevador. Deixe o furgão
esperando na porta dos fundos.
O homem agitado continuou olhando arregalado para Chang
Jiechi, as mãos tremendo de fúria.
— Você me ouviu? — gritou o Fantasma. — Sim.
— Então vá. Eu chego lá daqui a um minuto. Vá!
Chang Jiechi começou a se arrastar desesperadamente para a
porta mais próxima, que levava a um quarto pouco iluminado.
Olhou para trás. O Fantasma estava na cozinha, pegando uma faca
comprida numa gaveta.
Bem na frente de Amelia Sachs, dirigindo seu Camaro amarelo-
abelha a cento e dez por hora, estava o prédio onde ficava o
apartamento do Fantasma. Mas a estrutura era gigantesca, ampla e
com muitos andares. Achar o apartamento onde o Fantasma estava
seria uma tarefa duríssima.
Um estalo forte em seu comunicador Motorola.
— Atenção, todas as unidades de patrulha nas vizinhanças do
Ba ery Park City, temos um dez-trinta-quatro, informação de
tiroteio. A postos... todas as unidades, seguir para esse dez-trinta-
quatro. Local. Número oito-zero-cinco na Patrick Henry Street.
Todas as unidades na área se dirijam para lá.
O próprio prédio para onde ela estava indo. O do Fantasma. Seria
coincidência? Mas duvidava. O que teria acontecido? Será que ele
estava com os Chang dentro do prédio? Teria atraído eles para lá? As
famílias, as crianças... Ela apertou mais o acelerador e soltou o botão
de seu microfone, preso no para-brisa.
— Cena do Crime Cinco Oito Oito Cinco para Central.
Aproximando-se da cena daquele dez-trinta-quatro. Mais alguma
coisa? Câmbio?
— Nada mais, Cinco Oito Oito Cinco.
— Nenhum número de apartamento, câmbio?
— Negativo.
— Câmbio.
Alguns segundos depois o Camaro de Sachs estava junto ao
meio-fio, deixando espaço para as ambulâncias e outros veículos de
emergência, que logo convergiriam para o prédio.
Enquanto corria para dentro, tendo cuidado com o escorregadio
piso de mármore rosa, notou que os canteiros de flores perto da
porta da frente estavam cheios de palha para proteger do inverno, e
a palha se espalhava na calçada — sem dúvida era a fonte da que
fora encontrada na outra cena de crime.
Não havia guarita de segurança ou do porteiro no prédio, mas
várias pessoas estavam paradas no saguão, olhando inquietas para
os elevadores.
Sachs perguntou a um homem de meia-idade que usava roupa de
trabalho.
— Foi o senhor quem informou sobre os tiros?
— Ouvi alguma coisa. Mas não sei de onde veio.
— Alguém? — perguntou Sachs, olhando os outros moradores.
— Acho que foi no lado oeste — disse uma mulher idosa. — Bem
no alto, mas não tenho certeza de onde.
Duas outras radiopatrulhas pararam na frente, e os policiais
uniformizados entraram. Selli o, Li e Allan Coe estavam atrás deles.
Uma ambulância apareceu e depois dois caminhões da Unidade de
Serviços de Emergência.
— Ouvimos sobre o dez-trinta-quatro — disse Selli o. — Este é o
prédio dele, certo? O do Fantasma?
— É — confirmou Sachs.
— Meu Deus — murmurou o detetive de homicídios. — Deve
haver uns cem apartamentos aqui.
— Duzentos e setenta e quatro — disse a mulher idosa.
Selli o e Sachs conferenciaram. O nome na lista de moradores
devia ser falso, claro. O único modo de achar o Fantasma seria uma
busca perigosa, de porta em porta.
Bo Haumann, de cabelos cortados à escovinha, entrou no saguão
com mais policiais da USE.
— Lacramos todas as saídas — disse ele. Sachs assentiu.
— Que andar? — perguntou ela à mulher idosa.
— Eu estava no décimo nono. Ala oeste. Os tiros pareceram
tremendamente perto.
Um jovem de terno tinha se juntado a eles.
— Não, não, não. Tenho certeza que foram no quinze. Sul. Não
no oeste.
— Tem certeza? — perguntou Haumann.
— Total.
— Não acho — disse a mulher discordando educadamente. —
Foi num andar mais alto. E sem dúvida na ala oeste do prédio.
— Fantástico — murmurou Haumann. — Bom, temos que agir.
Pode haver feridos. Vamos dar busca no lugar todo.
O Motorola de Sachs estalou de novo.
— Central para Cena do Crime Cinco Oito Oito Cinco.
— Prossiga, central.
— Conexão telefônica.
— Prossiga, câmbio.
— Sachs, você está aí? — perguntou a voz de Lincoln Rhyme.
— Estou, prossiga. Estou aqui com Lon, Bo e a USE.
— Escute — disse o criminalista. — Estive falando com a
expedição e correlacionando os relatórios das pessoas do prédio que
ligaram para o nove-um-um. Parece que os tiros vieram do décimo
oitavo ou décimo nono andar, em algum lugar no meio da ala oeste
do prédio.
O alto-falante era o do aparelho, não de um fone de ouvido;
qualquer um por perto podia ouvir a transmissão.
— Certo. Ouviram isso? — perguntou Haumann a seus policiais.
Eles assentiram.
— Vamos fazer uma varredura, Rhyme — disse ela. — Ligo de
volta para você.
Haumann dividiu seus policiais em três equipes, uma para cada
andar — dezoito e dezenove — e uma para se dividir mais ainda e
fazer uma varredura na escada.
Sachs notou Coe ali perto. Ele estava verificando sua pistola, a
grande Glock com que se mostrara um mau atirador — e tinha se
aproximado de uma das equipes da USE. Ela sussurrou a Haumann:
— Mantenha-o longe da entrada. Ele é encrenca numa situação
tática.
Sachs tinha alguma credibilidade com o chefe da USE — ele já a
vira sob fogo — e Haumann concordou. Foi até Coe e falou com ele.
Sachs não ouviu a conversa, mas como esta era uma operação do
NYPD, Haumann devia ter usado o nível de jurisdição e ordenado
que o agente ficasse embaixo. Depois de um momento de discussão
acalorada, o rosto do agente do INS estava quase tão vermelho
quanto seu cabelo. Mas Haumann não perdeu a energia — nem a
postura — do agente de treinamento que ele fora, e logo Coe desistiu
dos protestos inúteis. Virou-se e saiu correndo pela porta da frente,
pegando seu celular, sem dúvida para protestar com Peabody ou
alguém do Prédio Federal.
O chefe da USE deixou uma pequena equipe guardando o
saguão e em seguida ele, Sachs e um grupo de policiais entraram
num dos elevadores e começaram a subir para o décimo oitavo
andar.
Eles se afastaram da porta quando ela se abriu e um policial
olhou para fora com um espelho metálico preso numa vara.
— Limpo.
Saíram, movendo-se cautelosamente pelo carpete, tentando
permanecer silenciosos ainda que seu equipamento chacoalhasse
como material de alpinismo.
Haumann fez o sinal de mão que significava espalhar-se. Dois
policiais armados com metralhadoras MP5 juntaram-se a Sachs e,
juntos, começaram a busca. Ladeada pelos dois policiais
grandalhões, com metralhadoras a postos, Sachs escolheu uma porta
e bateu.
Houve um som estranho lá dentro, baixo, como se alguma coisa
pesada estivesse sendo posta no chão junto à porta. Ela olhou para
os policiais da USE, que apontaram as armas para a porta. Com um
satisfatório zíper de velcro se abrindo, Sachs sacou sua pistola do
coldre e recuou ligeiramente.
Outro barulho dentro, de metal raspando.
Que diabo era aquele ruído?
Uma corrente foi chacoalhada.
Sachs pôs alguns quilos de pressão nervosa no gatilho e se
retesou quando a porta se abriu.
Uma mulher minúscula e grisalha olhou para eles.
— Vocês são da polícia — disse ela. — Estão aqui por causa
daqueles fogos de artifício dos quais eu reclamei. — Ela olhou para
as grandes metralhadoras nas mãos dos policiais da USE. — Ah,
bem. Olhem só isso.
— Tudo certo, senhora — disse Sachs, percebendo que o som
estranho tinha sido de uma banqueta, que aparentemente a mulher
pôs no chão para poder espiar pelo olho mágico.
Ela ficou cautelosa.
— Mas vocês não estariam com essas armas se fossem só fogos de
artifício, não é?
— Nós não sabemos com certeza o que foram, senhora Estamos
tentando descobrir de onde vieram os sons.
— Acho que foi no 18K, ali adiante. Por isso pensei que eram
fogos de artifício, porque um homem oriental mora lá. Ou asiático,
ou sei lá como a gente deve dizer hoje em dia. Eles usam fogos de
artifício na religião deles. Supostamente para assustar dragões. Ou
talvez fantasmas. Não sei.
— Há mais algum asiático neste andar?
— Não, acho que não.
— Certo, senhora. Obrigada. Poderia voltar para dentro e trancar
a porta? Independentemente do que ouvir, não abra.
— Ah, minha nossa. — Ela olhou de novo para os homens
armados e assentiu insegura. — Podem me dizer...
— Agora, por favor — disse Sachs, sorrindo, mas com voz firme.
Ela própria fechou a porta da mulher. Em seguida chamou
Haumann sussurrando: — Acho que é o 18K.
Haumann fez sinais com a mão para a sua equipe, direcionando-
a para o apartamento.
Ele bateu com força na porta.
— Polícia, abra a porta!
Não houve resposta. De novo.
Nada.
Haumann balançou a cabeça para o policial que tinha trazido o
grande aríete da equipe. Ele e outro seguraram as manoplas dos
lados do grosso tubo de metal e olharam para Haumann, que
assentiu.
Os policiais recuaram o aríete e o lançaram com força contra a
porta, perto da maçaneta. A fechadura cedeu imediatamente e a
porta se abriu com violência. Eles largaram o aríete, lascando o chão
de mármore. Meia dúzia de policiais, com armas nos ombros,
entraram correndo na sala.
Amelia Sachs também entrou rapidamente, embora atrás dos
outros, que estavam com proteção à prova de bala no corpo inteiro.
Capuzes Nomex, capacetes e visores. Com a arma na mão, ela parou
na entrada e olhou para o apartamento luxuoso, pintado em cinza e
rosa sutis.
A equipe da USE se espalhou e verificou cada cômodo e cada
esconderijo possível em que um ser humano pudesse se enfiar. Suas
vozes carrancudas começaram a reverberar: — Aqui tudo limpo...
limpo... Limpo na cozinha. Sem entrada dos fundos. Limpo...
O Fantasma tinha ido embora.
Mas, como em Easton Beach na véspera, tinha deixado a morte
em sua passagem.
Na sala de estar havia o corpo de um homem que possuía
alguma semelhança com aquele em quem ela havia atirado diante do
apartamento dos Wu na noite anterior. Outro uigur, presumiu.
Levara um tiro à queima-roupa. Estava deitado perto de um sofá de
couro cravejado de balas. Uma arma de rua — uma automática
cromada, barata, com o número de série raspado — estava no chão
diante do sofá.
O outro corpo estava no quarto.
Era um chinês idoso, deitado de costas, com os olhos vítreos. avia
um ferimento de bala em sua perna, mas a bala não tinha acertado
nenhuma artéria ou veia importante; não tinha sangrado muito.
Sachs não podia ver outros ferimentos, mesmo havendo uma
comprida faca de cozinha perto dele. Colocou luvas de borracha e
tentou sentir a jugular. Nenhuma pulsação.
Os técnicos dos Serviços Médicos de Emergência chegaram e
examinaram o homem, verificando que estava morto.
— Qual será a causa da morte? — perguntou um dos técnicos.
Sachs o observou. Depois se inclinou para a frente.
— Ah, saquei — disse ela, indicando a mão do homem, que
agarrava um frasco marrom. Sachs tirou-o dos dedos dele. Os
caracteres no rótulo eram em chinês e inglês.
— Morfina — disse ela. — Suicídio.
Este podia ser um dos imigrantes do Fujou Dragon — talvez o pai
de Sam Chang, que viera matar o Fantasma. Ela especulou sobre o
que havia acontecido: o pai tinha atirado no uigur, mas o Fantasma
pulou para se esconder atrás do sofá e o velho ficou sem munição. O
Fantasma pegou a faca e ia torturá-lo para ficar sabendo onde estava
o resto da família, mas o imigrante havia se matado.
Haumann prestou atenção ao fone de ouvido e informou que o
resto do prédio estava limpo; o Fantasma tinha escapado.
— Ah, não — murmurou ela.
A unidade de cena do crime chegou — dois técnicos carregando
grandes malas de metal para o corredor diante do apartamento.
Sachs os conhecia e cumprimentou com a cabeça. Abriu as malas,
vestiu o macacão de Tyvek e em seguida anunciou à equipe da USE:
— Preciso processar o cômodo. Pode tirar todo mundo daqui, por
favor?
Durante meia hora trabalhou a cena, e mesmo tendo coletado
alguns indícios, nenhum dava uma indicação óbvia de para onde o
Fantasma poderia ter ido.
Enquanto terminava a busca, Sachs sentiu cheiro de fumaça de
cigarro. Ergueu os olhos e viu Sonny Li parado na porta,
examinando o quarto.
— Eu conhece ele do navio — disse Li, balançando a cabeça com
tristeza nos olhos. — É pai de Sam Chang.
— Foi o que pensei. Por que tentou isso? Um velho contra o
Fantasma e os outros?
— Por família — disse Li em voz baixa. — Por família.
— Imagino que você também queira examinar a cena, não é? —
perguntou ela sem qualquer ironia. A previsão correta de Li em
relação a Jerry Tang e seu surgimento de surpresa no apartamento
dos Wu na véspera tinham aumentado sua credibilidade como
detetive.
— O que você acha eu fazendo agora, Hongse? Eu andando
grade.
Ela riu.
— Loaban e eu conversa ontem à noite. Ele fala sobre andar grade.
Só que eu ando grade na mente agora.
Mais ou menos como Rhyme faz, refletiu Sachs.
— Você encontrando alguma coisa boa?
— Oh, muitas, estou dizendo.
Ela se virou de novo para os indícios mais tangíveis e anotou nos
cartões de cadeia de custódia. Em seguida guardou os indícios para
serem transportados.
No canto do quarto notou um pequeno altar e várias estátuas de
deuses chineses. As palavras da mulher no corredor ecoaram em sua
mente.
Eles usam fogos de artifício na religião deles. Supostamente para
assustar dragões.
Ou talvez fantasmas.
Capítulo 33
Dezenas de luzes cintilantes rodeavam o prédio alto. O Fantasma
se virou e olhou para elas. Yusuf, o turco silencioso, dirigia o carro
pela Church Street, para longe do lugar. Estava sério e muito
abalado pela perda de mais um colega, mas dirigia calmamente e
tinha o cuidado de não atrair a atenção para o furgão Windstar
roubado.
Depois de o velho ter se matado sem revelar nada (ele também
não tinha nada nos bolsos), o Fantasma fugiu descendo a escada e
entrou correndo no estacionamento enquanto ouvia as sirenes na
frente do prédio. Agora ainda estava lutando para recuperar o fôlego
e acalmar o coração.
A polícia tinha chegado rápido demais para estar apenas
reagindo aos sons dos tiros; eles sabiam que ele estava lá. Como?
Olhando distraidamente para as pessoas nas ruas matinais, pensou
nisso. O esconderijo não tinha qualquer conexão com ele. Finalmente
decidiu que provavelmente haviam rastreado o local através de
telefonemas para o centro uigur no Queens. Isso dera à polícia o
número do seu celular e eles haviam rastreado o local do
esconderijo. Provavelmente havia outros indícios também; suas
informações sobre Lincoln Rhyme sugeriam que ele era totalmente
capaz de fazer uma dedução assim — mas o Fantasma estava
perturbado por não ter recebido qualquer aviso antecipado de que a
polícia estava indo Para lá. Achava que seu guanxi era melhor do que
isso.
Yusuf disse alguma coisa em seu túrquico nativo e o Fantasma
falou em inglês: — Repita.
Aonde você vai?
O Fantasma tinha vários outros esconderijos na cidade, mas
nenhum ficava perto. Deu as orientações. Então lhe entregou mais
cinco mil dólares em uma cor.
— Vá arranjar mais alguém para nos ajudar. Pode fazer isso?
Yusuf hesitou.
— Sinto muito pelos seus amigos — disse o Fantasma,
mascarando o desprezo na voz com o máximo de simpatia falsa que
pôde acrescentar. — Eles foram descuidados. Você não é
descuidado. Eu preciso de você para me ajudar. Haverá mais cem
mil para você. Em dinheiro vivo, só para você. Não precisa dividir.
Ele assentiu.
— Certo, vá achar alguém. Mas não no centro uigur. Não volte lá.
A polícia vai estar vigiando. E consiga outro celular. Ligue para o
meu e dê o seu número novo. — E recitou o número de seu telefone,
outro que ele mantivera no apartamento e tinha levado, junto com o
dinheiro, ao escapar alguns minutos antes.
Me deixe ali na esquina.
O turco parou na Canal Street, não muito longe de onde quase
tinham matado os Wu. O Fantasma saiu, inclinou-se e mandou o
turco repetir suas instruções em inglês, certificando-se de que ele se
lembrava do número do novo celular.
O furgão se afastou rapidamente.
O Fantasma se espreguiçou acompanhando com os olhos uma
adolescente chinesa com blusa de tricô justa, saia curta e saltos
implausivelmente altos, que lhe davam um passo hesitante.
Viu-a desaparecer na multidão. Não era o único homem que a
olhava, mas suspeitou que só ele queria machucá-la muito antes de
foder com ela.
Virando-se para o lado oposto, começou a andar pela confusa
Canal Street. Ainda tinha uma longa caminhada até seu outro
esconderijo — ficava quase um quilômetro a leste. Enquanto andava,
pensou no que precisava fazer: o principal era arranjar uma arma
nova — alguma coisa grande, uma INSG ou uma Glock.
Aparentemente essa seria uma corrida cabeça a cabeça para ver
quem acharia os Chang primeiro, ele ou a polícia, e se acontecesse
um tiroteio ele queria ter poder de fogo. Também precisava de
roupas novas. E mais algumas outras coisas.
A batalha estava ficando cada vez mais desafiadora. Pensou nos
dias da juventude, quando se escondia dos grupos maoistas no
ferro-velho, pacientemente espreitando ratos e cachorros doentes
para servirem de comida. Pensou também na busca dos assassinos
do pai que faziam parte da brigada jovem. Aqueles tempos haviam
lhe ensinado a arte de caçar, e uma das lições que tinha aprendido
era: o adversário mais forte espera que você procure explorar as
fraquezas dele, e por isso prepara as defesas de acordo. Mas o único
modo eficaz de vencer um inimigo assim é usar a força dele contra
ele próprio. E era isso que o Fantasma pretendia fazer agora.
Naixin?, perguntou a si mesmo.
Não. O tempo da paciência tinha acabado.

Chang Mei-Mei pôs uma xícara de chá na frente do marido


grogue.
Ele piscou diante da xícara verde-clara, mas sua atenção, bem
como a da esposa e dos filhos, estava totalmente no aparelho de TV.
A matéria do noticiário, como souberam pela tradução de
William, falava de dois homens achados mortos no Baixo Manha an.
Um deles era um imigrante chinês-turquestão do Queens.
O outro era um chinês de sessenta e nove anos, supostamente
passageiro do Fujou Dragon.
Sam Chang acordara de seu sono pesado havia meia hora, com a
boca seca e desorientado. Tentou ficar em pé mas caiu, despencando
no chão, fazendo a mulher e os filhos virem correndo. Assim que
percebeu que a arma havia sumido entendeu o que o pai tinha feito e
foi cambaleando para a porta.
Mas Mei-Mei o impedira.
— É tarde demais — disse ela.
— Não! — gritou Sam, caindo de novo no sofá.
Em seguida se virou para ela. Sua perda e sua tristeza o lançaram
numa fúria enquanto ele gritava irado: — Você o ajudou, não foi?
Você sabia o que ele ia fazer!
A mulher, segurando o gatinho de brinquedo de Po-Yee, olhou
para o objeto. Não falou nada.
Chang fechou o punho e se preparou para golpeá-la. Mei-Mei se
encolheu e se virou, antecipando o soco. William balançou de um pé
para o outro; Ronald gritou. Mas então Chang baixou a mão.
Pensando: eu ensinei a ela e aos meus filhos a respeitar os mais
velhos, principalmente o meu pai. Chang Jiechi deve ter ordenado
que ela o ajudasse, e ela deve ter obedecido.
Enquanto os perniciosos efeitos do medicamento poderoso iam
se esvaindo, Chang ficou sentado um tempo, assolado pela
preocupação, esperando o melhor.
Mas a notícia da televisão confirmou que o pior havia acontecido.
O turquestão fora morto com um tiro, explicou a repórter, dado
pelo velho, que então morreu de uma overdose de morfina,
aparentemente fora suicídio. Parecia que o apartamento era um
esconderijo de Kwan Ang, contrabandista de pessoas procurado por
ligação com o afundamento do Fujou Dragon na madrugada do dia
anterior. Kwan tinha escapado antes da polícia chegar, e ainda
estava à solta.
Ronald continuou chorando e olhava da TV para a mãe e o pai.
— Yeye — disse ele. — Yeye...
Sentado com as pernas cruzadas, balançando ansioso para trás e
para a frente, William cuspia amargamente a tradução das palavras
da bela jornalista. Por coincidência a repórter era sino-americana.
A matéria terminou e, como se a confirmação televisionada da
morte de Chang Jiechi sinalizasse o momento, Mei-Mei se levantou e
foi para o quarto. Voltou com um pedaço de papel. Entregou ao
marido e em seguida levantou Po-Yee até o quadril e enxugou o
rosto e as mãos da menina.
Atordoado, Sam Chang pegou o papel dobrado e abriu. A carta
fora escrita com caneta, não um pincel carregado de tinta rica, mas
os caracteres eram lindamente desenhados; um verdadeiro artista
pode ser bom usando qualquer meio — ensinara o velho ao filho —,
não importa o quão inferior.

Meu filho:
Minha vida foi plena além das minhas esperanças. Estou velho
e doente. Buscar mais um ou dois anos de vida na terra não me
conforta. Pelo contrário, encontro consolo em meu dever para
voltar à alma da Natureza na hora que foi inscrita para mim no
Registro dos Vivos e dos Mortos.
E o momento é agora.
Eu poderia lhe dizer muitas coisas, resumir para você todas as
lições da minha vida, tudo que aprendi com meu pai, minha mãe e
com você, filho, também. Mas opto por não fazer isso. A verdade é
inabalável, mas o caminho para a verdade frequentemente é um
labirinto que cada um de nós deve lutar para decifrar sozinho. Eu
plantei bambu saudável e ele cresceu bem. Continue sua jornada
para longe da terra e na direção da luz, e alimente suas jovens
plantas. Seja vigilante, como qualquer agricultor, mas dê-lhes
espaço. Eu vi a qualidade das plantas; elas vão crescer retas.
Seu pai
Sam Chang foi tomado por uma raiva sem fundo. Levantou-se
rapidamente do sofá e, grogue devido à droga, lutou para ficar em
pé. Jogou a xícara na parede e ela se despedaçou. Ronald se afastou
com medo do pai enraivecido.
— Eu vou matá-lo! — gritou. — O Fantasma vai morrer!
Sua voz fez o bebê chorar. Mei-Mei sussurrou alguma coisa para
os filhos. William hesitou, mas em seguida assentiu para Ronald,
que pegou Po-Yee. Juntos, os dois entraram no quarto. A porta foi
fechada.
— Eu o encontrei uma vez — disse Chang à esposa —, e vou
encontrar de novo. Desta vez...
— Não — disse Mei-Mei com firmeza.
Ele se virou para encarar a mulher.
— O quê?
Ela engoliu em seco e baixou os olhos.
— Você não vai.
— Não fale comigo assim. Você é minha mulher.
— Sim — disse ela, a voz tremendo. — Eu sou sua mulher. E sou
a mãe de seus filhos. E o que vai acontecer conosco se você morrer?
Já pensou nisso? Vamos morar na rua, vamos ser deportados. Sabe
como seria a vida para nós na China quando voltássemos? Uma
viúva de um dissidente sem qualquer propriedade, sem dinheiro? É
o que você quer para nós?
— Meu pai está morto! — gritou Chang. — O homem
responsável por isso tem que morrer.
— Não, não tem — bateu ela, ofegante, juntando mais coragem.
— Seu pai era velho. Estava doente. Ele não era o centro do nosso
universo, e nós temos que continuar.
— Como pode dizer isso? — gritou Chang, chocado com a
ousadia dela. — Ele é o motivo para eu existir.
— Ele viveu uma vida plena e agora se foi. Você vive no passado,
Jingerzi. Nossos pais merecem nosso respeito, sim, mas nada além
disso.
Chang notou que ela usara seu nome próprio chinês. Achava que
ela não fazia isso havia anos — desde que tinham se casado. Quando
se dirigia a ele, usava sempre o respeitoso zhangfu, ”marido”.
Agora, numa voz mais firme, Mei-Mei falou: — Você não vai
vingar a morte dele. Vai ficar aqui conosco, escondido, até que o
Fantasma seja capturado ou morto. Então você e William vão
trabalhar na gráfica de Joseph Tan. E eu vou ficar aqui e ensinar a
Ronald e Po-Yee. Todos vamos estudar inglês, vamos ganhar
dinheiro... E quando houver outra anistia, vamos nos tornar
cidadãos. — Ela parou um momento e enxugou o rosto lavado de
lágrimas. — Eu também o amava. A perda também é minha, não
somente sua. — Em seguida ela voltou a limpar a casa.
Chang se deixou cair no sofá e ficou sentado por longo tempo em
silêncio, olhando para o velho tapete vermelho e preto. Depois foi
até o quarto. William, segurando Po-Yee, olhava pela janela. Chang
ia falar com ele mas mudou de ideia e silenciosamente fez um gesto
para o filho mais novo sair. O garoto foi cautelosamente para a sala,
sentando-se com o pai no sofá. Depois de um momento, Chang se
compôs.
— Filho — perguntou —, você conhece os guerreiros de Qin Shi
Huang?
— Sim, baba.
Esses guerreiros eram milhares de estátuas de terracota de
tamanho natural, representando soldados, condutores de carruagens
e cavalos, esculpidas perto de Xian pelo primeiro imperador da
China, no século III a.C. e postas em seu túmulo. O exército deveria
acompanhá-lo até a outra vida.
— Nós vamos fazer o mesmo para Yeye. — Ele quase se engasgou
com a própria tristeza. — Vamos mandar algumas coisas para o céu,
para ficarem com o seu avô.
— O quê?
— Coisas que eram importantes para ele quando era vivo. Nós
perdemos tudo no navio, por isso vamos desenhá-las.
— Isso vai funcionar? — perguntou o garoto franzindo a testa.
— Sim. Mas preciso da sua ajuda. Ronald assentiu.
— Pegue um pouco de papel ali e aquela caneta. — Indicou a
mesa com um gesto. — Por que não faz um desenho dos pincéis
prediletos dele, o de pelo de lobo e o de cabra? E o bastão de
nanquim também. Lembra de como eram?
Ronald pegou a caneta com a mão pequena. Curvou-se sobre o
papel e começou a tarefa.
— E uma garrafa do vinho de arroz que ele gostava — sugeriu
Mei-Mei.
— E um porco? — perguntou o menino.
— Porco? — replicou Chang.
— Ele gostava de arroz com porco, lembra?
Então Chang notou alguém atrás dele. Virou-se e viu William
olhando o desenho do irmão. Com o rosto sombrio, o adolescente
disse: — Quando vovó morreu, nós queimamos dinheiro.
Era tradição nos enterros chineses queimar papel impresso para
parecer notas de um milhão de ienes, emitidas pelo ”Banco do
Inferno”, para que o falecido tivesse dinheiro para gastar no outro
mundo.
— Talvez eu possa desenhar alguns ienes — disse William.
Chang foi varrido pela emoção diante das palavras dele, mas não
abraçou o garoto, como queria desesperadamente. Disse
simplesmente: — Obrigado, filho.
O garoto magro se agachou junto do irmão e começou a desenhar
as notas.
Quando as crianças terminaram os desenhos, Chang levou a
família para o quintal dos fundos de seu novo lar e, como se fosse o
verdadeiro enterro de Chang Jiechi, enfiou no chão dois palitos de
incenso acesos para marcar o lugar onde o corpo teria ficado, e
então, pondo fogo nos desenhos feitos pelos filhos, eles olharam a
fumaça desaparecer no céu cinzento e a cinza se fundir em formas
pretas e enroladas.
Capítulo 34
— Alguém fez outra tentativa contra os Wu — disse Selli o
olhando para Rhyme depois de falar ao celular.
— O quê? — perguntou Sachs. — Na nossa casa de segurança em
Murray Hill?
Rhyme girou a cadeira para encarar o detetive, que falou: — Um
homem de pele morena, magro, usando luvas, foi visto por uma das
câmeras de segurança no beco. Estava verificando uma das janelas
dos fundos. Coincidência, vocês acham?
Sonny Li deu um riso amargo.
— Com Fantasma, não tem coincidências. Confirmando com a
cabeça, Rhyme perguntou: — O que aconteceu?
— Dois dos nossos foram atrás, mas ele desapareceu.
— Como, diabos, o Fantasma descobriu onde eles estavam?
perguntou o criminalista.
— Quem pode saber? — retrucou Selli o. Sachs pensou nisso.
— Depois do tiroteio na Canal Street, um dos bangshous dele
pode ter me seguido até a clínica, e depois seguido os Wu até a casa
de segurança. É difícil, mas possível. — Ela foi ao quadro branco e
bateu numa anotação. — Ou que tal isto?

• O Fantasma pode ter gente do governo em sua folha de pagamento.

— Um espião? É o que está pensando? — perguntou Selli o.


— Ninguém no escritório sabia que estávamos mandando-os
para Murray Hill. Dellray já havia saído quando pensamos nisso.
Assim resta alguém do INS ou do NYPD.
— Bom — disse Selli o —, não podemos mais manter os Wu lá.
Vou ligar para os U.S. Marshals e pedir que sejam levados a uma
instalação para proteção de famílias no interior do estado. — Olhou
para a equipe em volta. — E esta informação não sai desta sala. —
Em seguida telefonou e acertou para os Wu serem transportados
num furgão à prova de bala.
Rhyme estava ficando impaciente.
— Alguém verifique com o escritório. Onde, diabos, está o
substituto de Dellray? Eddie, telefone para lá.
Deng entrou em contato com o AEAE do escritório. Por acaso
tinha havido algum atraso com a ”feitiçaria” que deveria resultar em
agentes adicionais para trabalharem no FANTASMORTES.
— Eles disseram que tudo vai estar no lugar esta tarde.
— O que é tudo? — perguntou Rhyme causticamente. — E em
que porra de lugar a coisa deve estar antes de termos os agentes?
Eles sabem que há um assassino aí fora?
— Quer ligar para eles de volta?
— Não — disse Rhyme rispidamente. — Quero olhar as provas.
A busca feita por Sachs na cena do crime no esconderijo do
Fantasma na Patrick Henry Street produzira resultados incertos. Um
fato desencorajador era que o celular que tinha sido fundamental
para rastrear o Fantasma fora abandonado no apartamento. Se ele
ainda o estivesse usando, poderiam rastreá-lo. Além disso, o fato de
que ele o deixara significava que provavelmente tinha deduzido que
fora assim que o haviam descoberto, e agora teria mais cuidado ao
usar celulares.
Ao contrário do pistoleiro morto na Canal Street, o uigur do
esconderijo tinha alguma identificação, uma carteira de motorista e
um cartão como endereço do centro cultural turquestão no Queens.
Mas Bedding e Saul e uma equipe de agentes táticos estavam no
centro agora, e o chefe da organização dissera apenas ter ouvido que
algum chinês não identificado tinha contratado algumas pessoas do
bairro para transportar mobília. Não sabia mais nada. Os gêmeos
garantiram que continuariam a pressioná-lo, mas a avaliação deles
era que o sujeito preferiria ir para a cadeia a entregar o Fantasma.
O nome no contrato de aluguel do apartamento do Fantasma
também não ajudou: Harry Lee. O número do Seguro Social e as
referências eram falsos, e o cheque do aluguel era de um banco no
Caribe. ”Lee”, disse Deng, equivalia a ”Smith” na língua inglesa.
Mas o corpo do velho encontrado morto por overdose de morfina
revelou algumas pistas. Ele trazia na carteira um documento de
identidade, muito borrado pela água do mar, que o identificava
como Chang Jiechi. Também acharam um velho pedaço de papel
escondido atrás da carteira de identidade. Deng deu um sorriso
triste.
— Olhem isto. É um autógrafo de Chiang Kai-shek, o líder
nacionalista. A inscrição agradecia a Chang Jiechi por seus esforços
para resistir aos comunistas e manter o povo chinês livre da
ditadura.
Então o olhar de Rhyme se desviou para a fileira de fotos abaixo
das do cadáver do velho. Eram closes de suas mãos. O criminalista
moveu o dedo ligeiramente e levou a Storm Arrow até o quadro.
— Olhem aquilo — disse ele. — As mãos.
— Eu as fotografei por causa das manchas — disse Sachs.
Os dedos e as palmas das mãos de Chang Jiechi estavam cobertas
de manchas azul-escuras. Tinta ou nanquim. Sem dúvida não era o
tom púrpura da lividez pós-morte — que, de qualquer modo, não
ocorreria em tão pouco tempo depois do falecimento.
— Os dedos! — exclamou Rhyme. — Olhem os dedos.
Ela forçou a vista e chegou perto.
— Reentrâncias!
Ela pegou na parede as impressões digitais de Sam Chang e
segurou perto das fotos das mãos do pai dele. As palmas e os dedos
tinham tamanhos diferentes, e as do velho eram muito mais
enrugadas. Mas as reentrâncias que Rhyme tinha visto no polegar e
no indicador de Chang eram semelhantes às linhas claramente
evidentes nos dedos do pai.
Eles haviam presumido que as marcas nos dedos de Sam Chang
eram devido a algum tipo de ferimento. Mas sem dúvida não eram.
— O que significa isso? — perguntou Mel Cooper. — É genético?
— Não, não pode ser — disse Rhyme, com os olhos examinando
a foto das mãos do velho. Fechou os olhos um momento e deixou a
mente voar, como um dos falcões-peregrinos que se empoleiravam
na janela de seu quarto. Tinta nas mãos, reentrâncias... então sua
cabeça saltou para trás na cadeira e ele olhou para Sachs. — Eles são
pintores! O pai e o filho são artistas. Lembra do logotipo da Loja do
Lar no furgão? Um deles o pintou.
— Não — disse Li olhando a foto. — Não pintores. Calígrafos.
Na China caligrafia muito importante. Segura pincel assim. — Ele
pegou uma caneta e segurou-a praticamente na vertical, presa
firmemente num triângulo formado pelo polegar, o indicador e o
médio. Quando soltou-a e levantou a mão, as reentrâncias vermelhas
nos dedos eram idênticas às das mãos de Chang e do pai. Li
continuou: — Caligrafia considerada arte na China. Mas durante
Revolução Proletária artistas muito perseguidos. Muitos calígrafos
arranjaram emprego em gráficas e pintando cartaz. Fazendo coisa
útil. Bom para sociedade. No barco Chang contou ele dissidente e foi
demitido de emprego de professor. Ninguém contrata ele em
escolas. Faz sentido ele trabalha gráfica, ou pintando cartaz.
— E na clínica Wu disse que Chang tinha um trabalho aqui —
lembrou Sachs.
— Sabemos que os Chang estão no Queens — disse Rhyme.
Vamos mandar o máximo de policiais da Quinta Delegacia que
falem chinês começarem a ligar para gráficas ou empresas de pintura
de cartazes que tenham acabado de contratar alguém ilegal.
Alan Coe gargalhou — aparentemente da ingenuidade de
Rhyme.
— Eles não vão cooperar. Não tem guanxi.
— Aqui está uma porra de um guanxi — disse Rhyme com
rispidez. Diga que se eles mentirem e nós descobrirmos o INS vai
dar uma batida na empresa e — se os Chang forem mortos — vamos
acusá-los de cumplicidade no assassinato.
— Agora você pensa como policial chinês — disse Sonny Li
rindo. — Está usando o Sem Precedentes Aguilhão de Gado do Povo.
Deng pegou o celular e telefonou ao seu quartel-general.
Mel Cooper tinha passado algumas das substâncias encontradas
no esconderijo da Patrick Henry Street pelo cromatógrafo a gás.
Estudou os resultados.
— Há uma coisa interessante aqui. — Ele olhou para a sacola que
Sachs tinha marcado com uma caneta de ponta de feltro. — Estava
nos sapatos do pai de Chang. Nitratos, potássio, carbono, sódio...
biossólidos. E em quantidades significativas.
Isso atraiu a atenção de Rhyme. ”Biossólido” era um termo
indubitavelmente inventado por algum especialista em relações
públicas suficientemente esperto para saber que o potencial de
mercado do produto seria seriamente limitado se o negócio fosse
vendido pelo seu nome verdadeiro: merda humana processada.
As quatorze usinas de tratamento de esgotos em Nova York
produziam mais de mil toneladas de biossólidos por dia e vendiam
por todo o país como fertilizante. O fato de haver quantidades
significativas nos sapatos da vítima significava que os Chang
provavelmente moravam bem perto de uma das usinas.
— Podemos fazer uma busca de casa em casa perto das estações
de tratamento? — perguntou Selli o.
Rhyme balançou a cabeça. Havia uma quantidade de usinas de
tratamento no Queens e, dados os ventos volúveis na área da cidade
de Nova York, os Chang poderiam estar morando num raio de
vários quarteirões ao redor delas. Sem uma redução drástica da área
de busca — achando a gráfica onde Sam Chang trabalharia, por
exemplo —, uma busca de porta em porta demoraria uma
eternidade.
O resto das evidências não ajudou muito. A morfina que o
homem usara para se matar tinha vindo de uma clínica na China, e
portanto não era útil para eles em termos forenses.
— Morfina pode matar? — perguntou Selli o.
— Dizem que o escritor Jack London se matou assim — observou
Lincoln Rhyme, cujo conhecimento de técnicas de suicídio era tão
amplo quanto seu domínio de curiosidades criminais históricas.
Além disso, na dosagem certa, qualquer coisa pode matar.
Então Sachs acrescentou que o velho não tinha bilhetes de metrô
ou qualquer outro recibo sugerindo de onde ele viera.
Mas, como Rhyme iria logo se lembrar, Amelia Sachs não era a
única policial a ter trabalhado a cena do crime no apartamento do
Fantasma.
— Ei, Loaban — disse Sonny Li —, eu acha coisas também quando
revista apartamento de Fantasma. Quer ouvir?
— Vá em frente.
— Consegui umas coisas boas, estou dizendo. Certo, tem uma
estátua do Buda em frente da porta, olhando ela. Nenhum aparelho
de som nem cor vermelha no quarto. Corredor pintado de branco.
Estantes tinham portas. Tinha estátua de oito cavalos. Todos
espelhos muito altos para não cortar parte da cabeça quando a gente
olha. Tinha sinetas de latão com cabo de madeira — ele mantém elas
em parte oeste do quarto. — Li fez uma expressão curiosa diante do
aparente significado disso. — Deduziu, Loaban?
— Não — disse Rhyme, irritado. — Continue.
Li bateu na camisa em busca de cigarros, depois deixou os braços
caírem dos lados do corpo.
— Na minha mesa no escritório de segurança em Liu Guoyuan
eu tem placa.
— Outra expressão?
— Ju yifan san. Quer dizer: Aprender três coisas com um exemplo. Do
ditado de Confúcio: ”Se eu mostrar a homem canto de objeto e ele
não pode deduzir como são outros três cantos, então eu não me
importa em ensinar de novo.”
Não era um mau lema para um detetive forense, refletiu Rhyme.
— E você deduziu alguma coisa útil, alguma coisa que possamos
usar a partir de uma estátua de oito cavalos e sinos de latão?
— Feng Shui, estou dizendo.
— Arranjar a mobília e coisas para dar sorte — disse Thom.
Quando Rhyme olhou para ele, acrescentou: — Passou num
programa no Canal Casa e Jardim. Não se preocupe, eu assisti
durante meu horário de folga.
— Então ele mora num apartamento que dá sorte, Li — disse
Rhyme, impaciente. — Qual é o sentido de prova forense?
— Ei, parabéns, Sonny — disse Thom. — Você recebeu o
tratamento pelo sobrenome. Note que eu sou apenas Thom.
— Por falar nisso, Thom, acho que você está aqui meramente
para escrever. Não para ser o editor.
— O sentido, Loaban? Muito claro para mim — continuou Li. O
Fantasma contrata alguém para arrumar seu apartamento, e o cara
que ele aluga faz trabalho bom pra caralho. Conhece serviço. Talvez
conhece outros lugares onde Fantasma tem apartamentos.
— Certo — disse Rhyme. — Isso é útil.
— Eu vai checar homens que faz feng shui em Chinatown. O que
acha?
Rhyme captou o olhar de Sachs e os dois riram.
— Eu preciso escrever um novo livro de criminologia. Dessa vez
vou acrescentar um capítulo sobre woo-woo.
— Ei, sabe o que nosso líder Deng Xiaoping diz? Ele diz não
importa se gato preto ou branco, desde que pegue rato.
— Bom, vá pegar um rato, Li. Depois volte para cá. Preciso de
mais baijiu. Ah, Sonny?
O policial chinês o encarou.
— Zaijian. — Rhyme pronunciou cuidadosamente a palavra que
tinha aprendido num website de tradução do chinês.
Li assentiu.
— Adeus. Sim, sim. Você até pronuncia bem, Loaban. Zaijian.
O chinês saiu e os outros voltaram às evidências. Mas a equipe
não fez progresso, e uma hora se passou sem qualquer palavra dos
policiais que estavam investigando as gráficas no Queens.
Rhyme esticou o pescoço apoiando a cabeça na almofada. Ele e
Sachs olharam para as tabelas, Rhyme com uma sensação familiar
demais: a esperança desesperada de que evidências há muito
recolhidas produzissem só mais uma pepita, mesmo você sabendo
que não havia mais nada para elas revelarem.
— Devo falar com os Wu de novo ou com John Sung? —
perguntou ela.
— Não precisamos de mais testemunhas — murmurou Rhyme.
Precisamos de mais provas. Preciso de algo concreto. Mais provas,
porcaria... Eles precisavam...
Então a cabeça dele girou em direção ao mapa — o original: o de
Long Island. Olhou para o minúsculo ponto vermelho a cerca de um
quilômetro e meio do litoral de Orient Point.
— O quê? — perguntou Sachs, vendo-o forçar a vista.
— Droga — sussurrou ele. — O quê?
— Nós temos outra cena do crime. E eu esqueci dela.
— O quê?
— O navio. O Fujou Dragon.

FANTASMORTES

Cena do Crime Easton, Long Island


• Dois imigrantes mortos na praia, com tiros nas costas.
• Um imigrante ferido — Dr. John Sung.
• ”Bangshou” (assistente) a bordo; identidade desconhecida.
• Assistente confirmado como corpo afogado encontrado perto
do lugar onde o Dragon afundou.
• Dez imigrantes escapam: sete adultos (um idoso, uma mulher
ferida), duas crianças, um bebê. Roubam furgão da igreja.
• Amostras de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Mulher ferida é AB negativo. Requisitando mais informações
sobre seu sangue.
• Veículo esperando o Fantasma na praia partiu sem ele. Um tiro
supostamente dado pelo Fantasma contra o veículo. Providenciado
pedido de marca e modelo do veículo, baseado em marcas de pneus
e distância entre eixos.
• Veículo é um BMW X5.
• Motorista — Jerry Tang.
• Nenhum veículo para pegar os imigrantes foi localizado.
• Celular, presumivelmente do Fantasma, mandado para análise
no FBI.
• Telefone por satélite impossível de ser rastreado. Penetrou no
sistema chinês para ser usado.
• Arma do Fantasma é uma pistola 7.62. Cartuchos incomuns.
• Pistola automática chinesa Modelo 51.
• O Fantasma pode ter gente do governo em sua folha de
pagamentos.
• O Fantasma roubou um sedã Honda vermelho para fugir.
Providenciado pedido de localização do veículo.
• Nenhum traço do Honda encontrado.
• Três corpos recuperados no mar — dois mortos a tiros, um
afogado. Fotos e impressões mandadas a Rhyme e à polícia chinesa.
• Indivíduo afogado identificado como Victor Au, o bangshou do
Fantasma.
• Digitais mandadas ao AFIS.
• Nenhuma identificação em nenhum ponto, mas marcas
incomuns nos dedos de Sam Chang (ferimento, queimadura de
corda?).
• Perfil dos imigrantes: Sam Chang, Wu Qichen e suas famílias,
John Sung, bebê de mulher afogada, homem e mulher não
identificados (mortos na praia).

Furgão Roubado, Chinatown

• Camuflado por imigrantes com o logotipo ”A Loja do Lar”.


• Mancha de sangue sugere que mulher tem ferimento no braço
ou no ombro.
• Amostras de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Mulher ferida é AB negativo. Requisitando mais informações
sobre seu sangue.
• Digitais mandadas ao AFIS.
• Nenhuma identificação.

Cena do Assassinato de Jerry Tang

• Quatro homens arrombaram a porta, torturaram-no e o


mataram a tiros.
• Dois cartuchos de balas — combinam com Modelo 51. Tang
levou dois tiros na cabeça.
• Grande vandalismo.
• Algumas digitais.
• Nenhuma identificada, a não ser a de Tang.
• Três cúmplices têm sapatos menores do que os do Fantasma,
presumivelmente têm estatura menor.
• Traços de substâncias sugerem que o esconderijo do Fantasma
fica provavelmente no sul de Manha an, na área de Ba ery Park
City.
• Suspeita-se de cúmplices de minoria étnica chinesa. No
momento o paradeiro é procurado.
• Uigures de comunidade turquestã e do Centro Islâmico do
Queens.
• Telefonema de celular indica prédio 805 na Patrick Henry
Street, sul de Manha an.

Tiroteio na Canal Street Cena do Crime

• Traços adicionais sugerem que esconderijo é na área de Ba ery


Park City.
• Chevrolet Blazer roubada, impossível rastrear origem.
• Nenhuma identificação de digitais.
• Carpete do esconderijo: LustreRite da empresa Arnold,
instalado nos últimos seis meses; ligando para empreiteiros para
obter lista de instalações.
• Locais de instalações determinados: 32 perto de Ba ery Park
City.
• Encontrada palha de jardinagem fresca.
• Corpo do cúmplice do Fantasma: minoria étnica do oeste ou
noroeste da China. Sem identificação de digitais. Arma era Walther
PPK.
• Detalhes sobre imigrantes:
• Os Chang: Sam, Mei-Mei, William e Ronald; pai de Sam, Chang
Jiechi, e bebê, Po-Yee. Sam arrumou trabalho, mas empregador e
local são desconhecidos. Dirigindo furgão azul, marca desconhecida,
placa desconhecida. Apartamento dos Tang é no Queens.
• Os Wu: Qichen, Yong-Ping, Chin-Mei e Lang

Cena do Crime Tiroteio no Esconderijo

• Digitais e fotos das mãos de Chang Jiechi revelam que pai — e


filho Sam — são calígrafos. Sam Chang pode estar trabalhando
numa gráfica ou pintando cartazes. Ligando para lojas e empresas
no Queens.
• Biossólidos nos calçados do falecido sugerem que eles moram
perto de estação de tratamento de esgotos.
• Fantasma usa praticante de feng shui para arrumar sua casa.
Capítulo 35
— Mas as provas no navio devem estar bagunçadas, não é, Linc?
— disse Lon Selli o. — Por causa da água.
Sachs falou:
— ”Ainda que a submersão na água possa destruir ou degradar
certos tipos de provas, como substâncias químicas solúveis em água,
outras formas de provas físicas, até mesmo traços de substâncias,
podem ser preservadas e descobertas, dependendo das correntes, da
profundidade e da temperatura da água. De fato, algumas podem
ficar mais bem preservadas do que se a cena estivesse em terra seca.”
Como me saí, Rhyme?
— Bom, Sachs. Estou impressionado. — A passagem era do livro
de Rhyme sobre criminalística.
— Alguém ligue para a Guarda Costeira, coloque-me em contato
com Ransom lá.
Selli o finalmente conseguiu e passou a ligação para o viva-voz.
— Aqui é Fred Ransom. Capitão do Evan Brigant. — O homem
estava gritando; o vento sibilava algo no microfone do seu rádio.
— Aqui é o detetive Selli o, NYPD. Já falei com o senhor antes.
— Sim, senhor. Eu me lembro.
— Estou aqui com Lincoln Rhyme. Onde o senhor está agora?
— Logo acima do Dragon Continuamos procurando sobre
viventes, mas não tivemos sorte.
— Qual é a condição do navio, capitão? — perguntou Rhyme.
— Está virado sobre estibordo, a uns vinte e cinco ou vinte e sete
metros de profundidade.
— Como está o tempo agora?
— Muito melhor do que antes. Ondas de três metros, vento de
cerca de trinta nós. Chuva fraca. Visibilidade provavelmente de
duzentos metros.
— O senhor tem mergulhadores disponíveis que possam verificar
o interior?
— Sim, senhor.
— Eles podem mergulhar neste tempo?
— As condições não são as melhores, mas são aceitáveis. O
senhor sabe, já examinamos toda a área em busca de sobreviventes.
Não há nenhum.
— Não, estou falando em procurar provas.
— Sei. Poderíamos mandar um pessoal. Mas o negócio é que
meus mergulhadores nunca fizeram isso. Eles são de BR.
Busca e Resgate, lembrou Rhyme.
— Alguém poderia ficar orientando-os quanto ao que fazer?
perguntou o capitão.
— Claro — disse Rhyme, mesmo se sentindo desencorajado com
a ideia de explicar a um calouro uma vida inteira de investigação
criminal.
Então a voz de Amelia Sachs o interrompeu.
— Vou fazer a busca.
— Estou falando do navio em si, Sachs — disse Rhyme.
— Eu entendi.
— Ele está a vinte e sete metros debaixo d'água. Ela se curvou e
disse no fone: — Capitão, posso estar no Ba ery Park dentro de
trinta minutos. O senhor pode mandar um helicóptero me levar até a
sua localização?
— Bom, podemos voar nesse tempo. Mas...
— Eu tenho certificado de mergulho em mar aberto. APIM. O
que queria dizer que fora treinada pela Associação Profissional de
Instrutores de Mergulho. Rhyme sabia que ela e seu ex-namorado
Nick tinham feito o curso juntos e realizado uma quantidade de
mergulhos. Mas, de modo pouco surpreendente, Sachs, a amante da
velocidade, achava mais de seu gosto as lanchas de alta velocidade e
o jet-ski.
— Mas você não mergulha há anos, Sachs — observou ele.
— É como andar de bicicleta.
— Moça...
— Eu sou a policial Sachs, capitão.
— Policial, há uma grande diferença entre mergulhos recreativos
e a coisa como está aqui hoje. Meu pessoal mergulha há anos e eu
não me sentiria realmente confortável em mandá-los para um
naufrágio instável nestas condições.
— Sachs — disse Rhyme —, você não pode. Não é treinada para
isso.
— Há um milhão de coisas que eles deixariam passar. Você sabe.
Eles seriam o mesmo que civis. Com todo o respeito, capitão.
— Entendido, policial. Mas minha opinião é de que é arriscado
demais.
Sachs fez uma pausa e em seguida disse: — Capitão, o senhor
tem filhos?
— Perdão?
— O senhor tem uma família?
— Bom, sim, tenho.
— Este bandido que estamos procurando é o homem que
afundou o navio e matou a maioria das pessoas dentro dele. E agora
está tentando matar alguns imigrantes que escaparam, uma família
com dois filhos e um bebê. Eu não vou deixar que isso aconteça.
Pode haver alguma prova dentro daquele navio que nos diga onde
ele está. Minha especialidade é achar pistas. Sob qualquer condição.
— Use os nossos mergulhadores — disse Selli o.
Tanto o NYPD quanto o Corpo de Bombeiros da cidade tinham
mergulhadores experientes.
— Eles não são técnicos em cena de crime — argumentou Sachs.
— Também são apenas BR. — Ela olhou para Rhyme, que hesitou
durante um longo momento. Mas em seguida assentiu, indicando
que sim, ele a apoiaria.
— O senhor pode nos ajudar nisso, capitão? — perguntou
Rhyme. — Ela precisa estar entre as pessoas que vão descer lá
embaixo.
— Certo, policial — respondeu o capitão através do vento. —
Vou lhe dizer uma coisa: vamos mandar o helicóptero para o
heliporto no rio Hudson. Isso vai economizar algum tempo. É mais
perto do que o Ba ery Park. Conhece o lugar?
— Claro — disse ela. Depois acrescentou: — Uma coisa, capitão?
— Sim?
— Em muitos daqueles mergulhos que eu fiz no Caribe...
— Sim?
— Depois, quando estávamos indo para casa, a tripulação fazia
ponche de rum para todo mundo, isso era incluído no custo do
mergulho. O senhor tem alguma coisa assim nos barcos da Guarda
Costeira?
— Sabe, policial, acho que talvez possamos arranjar alguma coisa
para você.
— Estarei no heliporto em quinze minutos. Eles desligaram e
Sachs olhou para Rhyme.
— Ligo para você com o que eu encontrar.
Havia tanta coisa que ele queria dizer, e tão pouco que poderia
falar! Acabou decidindo-se por: — Faça uma boa busca...
— ... mas vigie as costas.
Ela acariciou a mão direita dele — cujos dedos não podiam sentir
nada. Pelo menos ainda não. Talvez depois da cirurgia.
Rhyme olhou para o teto, em direção ao seu quarto, onde o deus
dos detetives, Guan Di, estava atualmente com o copo de vinho doce
se evaporando. Mas Lincoln Rhyme, claro, conteve-se de fazer uma
oração para uma divindade popular, desejando a Sachs uma boa
jornada e mandando essa mensagem diretamente — ainda que
tacitamente — para ela.
Aprendendo três coisas com um exemplo...
Confúcio, hein? Gosto disso, pensou Lincoln Rhyme. E disse ao
ajudante: — Preciso de uma coisa do porão.
— O quê?
— Um exemplar do meu livro.
— Eu não sei direito onde eles estão.
— Então é melhor começar a procurar, não acha?
Com um suspiro alto, o ajudante desapareceu.
Rhyme estava se referindo a um volume em capa dura que ele
tinha escrito havia vários anos, As cenas do crime. Nessa obra tinha
examinado cinquenta e uma antigas cenas de crimes em Nova York,
alguns resolvidos, outros, não. O livro incluía uma análise dos
crimes mais famosos da cidade, indo desde tumultos no bairro
chamado Five Points, considerado em meados do século XIX um dos
locais mais perigosos da terra, até o assassinato do arquiteto
Stanford White, no Madison Square Garden original, a infeliz última
refeição de Joey Gallo num pequeno restaurante de mariscos em
Li le Italy, e a morte de John Lennon. O livro ilustrado foi popular
— ainda que não o suficiente para impedi-lo de sair de catálogo; os
exemplares encalhados tinham sido postos em estantes de ”sebos”
em livrarias por todo o país, a preço de desconto.
Mesmo assim Rhyme era secretamente orgulhoso do livro; era
sua primeira tentativa de voltar ao mundo real depois do acidente,
um emblema de que, apesar do que lhe acontecera, ele era capaz de
fazer alguma coisa além de ficar deitado de bunda e reclamando de
seu estado.
Thom voltou dez minutos depois, com a camisa suja e o rosto
manchado de suor e poeira.
— Estavam no canto mais longe. Debaixo de uma dúzia de
caixas. Eu estou uma sujeira só.
— Bom, acho que se as coisas estivessem mais organizadas lá
embaixo, poderia ter dado menos trabalho — murmurou Rhyme,
com os olhos no livro.
— Talvez se você não tivesse dito para botá-los lá embaixo, que
nunca mais queria vê-los de novo, que odiava aquelas — abre aspas
— porras — fecha aspas, isso não tivesse dado tanto trabalho.
— Diga, a capa está rasgada?
— Não, a capa está ótima.
— Deixe-me ver. Levante.
O ajudante cansado espanou um pouco de poeira das calças e em
seguida apresentou o livro para a inspeção.
— Vai servir — disse o criminalista. Em seguida olhou inquieto a
sala em volta. Suas têmporas estavam latejando o que significava
que o coração, que ele não podia sentir, estava bombeando sangue
com força.
— O que é, Lincoln?
— Aquele touchpad. A gente ainda tem?
Há alguns meses Rhyme tinha ordenado que um touchpad fosse
conectado ao computador, como um mouse, achando que ele
poderia usar o dedo que ainda se movia — o anular esquerdo —
para controlar o computador. Não havia contado a Thom ou Sachs
como fora importante para ele fazer o touchpad funcionar. Mas não
pudera. A amplitude de movimentos do dedo era limitada demais
para mover o cursor de qualquer modo útil, diferentemente do
touchpad que controlava sua Storm Arrow, que fora feito
especificamente para pessoas em seu estado.
Por algum motivo o fracasso o devastara.
Thom saiu da sala um momento e voltou com o pequeno
aparelho cinzento. Ligou no computador e pôs sob o dedo anular de
Rhyme.
— O que vai fazer com ele? — perguntou Thom.
— Só segure firme — grunhiu Rhyme.
— Certo.
— Comando, cursor para baixo. Comando, cursor pare.
Comando, clique duplo. — Um programa de desenho se abriu na
tela. Comando, desenhar linha.
— Quando aprendeu isso? — perguntou Thom, surpreso.
— Quieto. Preciso me concentrar. — Rhyme respirou fundo e
começou a mexer o dedo sobre o touchpad. Uma linha trêmula
apareceu na tela. Suor brotou de sua testa, devido ao esforço.
Respirando com dificuldade, totalmente ansioso, como se
estivesse desmontando uma bomba, Rhyme falou entre os dentes
trincados: — Mova o touchpad para a esquerda, Thom. Com cuidado.
O ajudante obedeceu, e Rhyme continuou dando orientações.
Dez minutos de agonia, dez minutos de esforço exaustivo... Ele
olhou para a tela, finalmente satisfeito com o resultado. Encostou a
cabeça no apoio da cadeira.
— Comando, imprimir.
Thom foi até a impressora.
— Quer ver seu trabalho manual?
— Claro que quero ver — rosnou Rhyme.
Thom pegou a folha e pôs na frente de Rhyme.
"Ao meu amigo Sonny Li — do Lincoln."
— Acho que é a primeira coisa que você escreve desde o
acidente. Na sua letra.
— É uma porcaria de rabisco de criança — murmurou Rhyme
sentindo-se empolgado e realizado. — Praticamente ilegível.
— Quer que eu cole no livro?
— Se der, sim. Obrigado. Depois deixe separado, e vamos dar ao
Li quando ele voltar.
— Vou embrulhar — disse o ajudante.
— Acho que não precisamos ir tão longe — disse Rhyme com
rispidez. — Agora vamos voltar às evidências.
Capítulo 36
Certo, eu posso fazer isso.
Amélia Sachs estava sobre o piso de metal ondulado do
helicóptero Sikorsky HH-60 da Guarda Costeira, quinze metros
acima da antena do barco Evan Brigant, que chicoteava ao vento, e
deixou o tripulante prender o arnês em volta de seu corpo.
Não lhe ocorrera, quando requisitou o helicóptero, que o único
modo de entrar na embarcação seria descendo por um gancho até o
convés em movimento.
Bom, o que ela esperava, refletiu agora, uma escada rolante?
O helicóptero se sacudia no vento feroz e, abaixo dele, através da
névoa, dava para ver as ondas cinzentas se despedaçando em volta
do barco em cristas brancas e serrilhadas.
Envolta num colete laranja e com um capacete velho, Sachs
agarrou o suporte perto da porta aberta e pensou de novo: certo, eu
posso fazer isso.
O tripulante gritou alguma coisa que Sachs não ouviu, e ela
gritou de volta pedindo-lhe que repetisse — um pedido que, por sua
Vez ele também não ouviu, porque achou que as palavras dela eram
Uma confirmação. Então um gancho foi preso ao arnês e verificado
duas vezes. O tripulante gritou outra coisa. Sachs apontou para si
mesma, depois para a porta, e em seguida recebeu um sinal de
polegar Para cima.
Certo...
Eu posso fazer isso.
Seu medo mesmo era a claustrofobia, não a altura, mas ainda
assim...
Então saiu, segurando o cabo, mesmo que não lhe tivessem dado
a ordem. Balançou loucamente devido ao ímpeto da saída pela
porta. Num instante o movimento diminuiu e ela começou a descer,
sacudida pelo vento e pelo sopro forte das lâminas do rotor.
Para baixo, para baixo...
Um lençol de névoa a envolveu subitamente e ela ficou
desorientada. Viu-se pendurada no espaço, sem poder enxergar nem
o helicóptero em cima nem o navio embaixo. A chuva fustigava-lhe o
rosto e ela se sentia cega. A vertigem a consumia e ela não podia
dizer se estava balançando como um pêndulo descontrolado ou
caindo para o navio a cem quilômetros por hora.
Ah, Rhyme...
Mas então o barco ficou visível abaixo.
O Evan Brigant balançava para cima, para baixo e para os lados,
mas quem quer que estivesse no timão mantinha a embarcação
perfeitamente posicionada, apesar das ondas tão grandes que
pareciam falsas — algo criado pela equipe de efeitos especiais de um
filme. Seus pés tocaram o convés, mas no momento em que apertou
o botão de liberação rápida do arnês o navio baixou no nível da base
de uma onda e ela caiu de uma altura de um metro e vinte até o
convés, chocando-se com força, causando-lhe fortes dores de artrite
nas pernas. Enquanto dois marinheiros corriam para ajudá-la a ficar
em pé, ela refletiu que era provavelmente sobre isso que o tripulante
tentara avisá-la.
Andar de barco não é esporte para quem tem artrite, lembrou
Sachs; ela precisava flexionar os joelhos continuamente em busca de
estabilidade, enquanto ia até o passadiço. Teve uma conversa
imaginária com o Dr. John Sung, informando-lhe que a medicina
chinesa ainda tinha de marcar sérios pontos diante do Percoset e dos
anti-inflamatórios.
No passadiço, Fred Ransom, o capitão que aparentava uma
juventude improvável, cumprimentou-a com um sorriso e um aperto
de mão. Deu-lhe as boas-vindas ao navio e levou-a à mesa de mapas.
Bom, aqui está uma foto do navio e onde ele está.
Sachs se concentrou na imagem. Ransom lhe disse onde ficava o
passadiço e onde se localizavam as cabines — no mesmo convés,
mas seguindo por um longo corredor na direção da popa.
— Agora, uma coisa, policial, só para avisar — disse ele
delicadamente. — Sabemos que há uns quinze corpos lá dentro, e
haverá alguma atividade de vida marinha em relação a eles. Pode ser
uma coisa feia de ver. Alguns dos meus tripulantes passaram um
mau bocado...
Mas sua voz foi sumindo quando ele olhou nos olhos de Sachs.
— Obrigada pelo aviso, capitão. Mas eu vivo de examinar cenas
de crimes.
— Claro, policial, entendi. Tudo bem, vamos pegar seu
equipamento.
Outra saída no vento e na chuva. Foram até a popa do navio.
Num pequeno abrigo aberto para a popa, ela foi apresentada a dois
outros oficiais, um homem e uma mulher, ambos usando capas
amarelas e pretas, além de botas. Eram o chefe de mergulho a bordo
e sua imediata.
— Soube que fez a APIM — disse o homem. — Quantos
mergulhos?
— Uns vinte e cinco. Isso os aliviou um pouco.
— E quando foi a última vez?
— Há alguns anos.
Essa resposta teve o efeito oposto.
— Bom, nós vamos repassar todos os passos com você de novo
— disse o oficial —, como se fosse uma caloura.
— Eu esperava que fizessem isso.
— Qual a sua maior profundidade? — perguntou a
mergulhadora.
— Vinte e cinco metros.
— É mais ou menos o mesmo que temos aqui. A única diferença
é que vai estar mais turvo. As correntes estão agitando o fundo.
A água não estava fria demais, explicaram, ainda mantendo boa
Parte do calor do verão, mas ficar algum tempo lá embaixo iria
retirar rapidamente o calor de seu corpo, e ela precisaria usar uma
roupa molhada” que a isolasse não somente com a borracha, mas,
como o próprio nome sugeria, mantinha uma fina camada de água
entre o corpo e a película da roupa.
Ela se despiu atrás de um anteparo e lutou para colocar a
vestimenta.
— Tem certeza que este tamanho não é de criança? — gritou,
ofegando pelo efeito de puxar a borracha apertada sobre os quadris e
os ombros.
— Nós ouvimos dizer isso um bocado — respondeu a oficial de
mergulho.
Então os dois colocaram o resto do equipamento nela: pesos,
máscara e o tanque de ar ligado ao ECF, equipamento controlador
de flutuação, um colete que você inflava ou desinflava com um
controle na mão esquerda, que fazia o mergulhador subir ou afundar
na água. Também preso ao tanque de ar havia um regulador
primário
— pelo qual ela respirava — e um secundário, apelidado de
polvo, que poderia ser usado para um colega mergulhador respirar
de seu tanque se o suprimento de ar do sujeito fosse cortado.
Também prenderam uma luz no capacete.
Repassaram os sinais manuais para comunicação com outros
mergulhadores.
Um bocado de informações, informações importantes, e ela lutou
para guardá-las na mente.
— Que tal uma faca? — perguntou.
— Você tem uma — disse o chefe de mergulho, apontando para o
ECF. Ela pegou a arma e descobriu que não tinha ponta.
— Você não vai esfaquear nada — disse a mulher vendo a
preocupação de Sachs. — Só cortar. Você sabe, uma corda ou alguma
coisa que se emaranhe.
— Na verdade eu estava pensando mais em tubarões.
— Raramente aparecem tubarões nestas águas.
— Praticamente nunca — ecoou o outro oficial. — Pelo menos
não dos grandes.
— Vou me fiar na palavra de vocês — disse Sachs guardando a
faca. — O filme Tubarão não foi rodado aqui?
O chefe de mergulho entregou a Sachs uma grande bolsa de rede
para guardar qualquer prova que achasse. Dentro ela colocou o que
havia trazido para coletar provas — sacos plásticos. Depois ele e a
assistente puseram os respectivos equipamentos e, levando os pés-
de-pato, os três foram andando inseguros até a popa do navio que
continuava oscilando violentamente.
Gritando acima do ruído do vento, o chefe de mergulho disse:
— Está agitado demais para descermos direto do convés. Vamos
entrar na balsa, colocar os pés-de-pato e depois cair de costas na
água. Segure a máscara e o regulador no rosto. A outra mão no
liberador do cinto de peso.
Ela bateu no topo da cabeça — o sinal de mão para OK.
Ele fez o mesmo.
Os três entraram na balsa amarela, que já estava na água e subia e
descia como um cavalo xucro. Sentaram-se na borda e verificaram o
equipamento.
A seis metros de distância havia uma boia laranja. O chefe de
mergulho apontou para ela e disse:
— Há uma corda que vai dali direto ao navio. Vamos nadar até lá
e seguir a corda para baixo. Qual é o seu plano para a busca?
— Quero pegar amostras do resíduo da explosão do casco —
gritou Sachs de volta — e depois examinar o passadiço e as cabines.
Os outros mergulhadores assentiram.
— Vou fazer a parte de dentro sozinha.
Essa era uma violação da regra fundamental de mergulho, em
que você deveria ser capaz de nadar até o colega no tempo de uma
respiração.
— Tem certeza?
— É preciso.
— Certo — disse ele, inquieto. Depois continuou: — Agora, os
sons não funcionam bem debaixo d’água é difícil dizer de onde estão
vindo. Mas se ficar encrencada bata no tanque com a faca e nós
vamos procurá-la. — Ele levantou o MS — manômetro de subversão
— dela, que mostrava quanto ar havia no tanque. — Você tem três
mil libras de ar. Vai queimar esse ar rápido porque vai estar cheia de
adrenalina. Nós saímos do fundo com quinhentas. Não menos do
que isso. Essa é uma regra absolutamente rígida. Sem exceções.
Subimos devagar — não mais rápido do que as bolhas do regulador,
e paramos durante três minutos a cinco metros de profundidade.
Caso contrário, sabia Sachs, havia risco de doença de
descompressão.
— Certo, e qual é a regra mais importante do mergulho? Sachs
lembrava, do curso feito havia anos.
— Jamais prenda o fôlego debaixo d’água.
— Bom. Por quê?
— Porque seus pulmões podem explodir.
Então eles ligaram o ar dela, e Sachs calçou os pés-de-pato e pôs a
máscara. Em seguida apertou o regulador com força nos dentes. O
chefe de mergulho fez outro sinal de ”OK” — o dedo médio e o
polegar num círculo — e ela respondeu do mesmo modo. Em
seguida bombeou um pouco de ar no ECF para que lhe permitisse
flutuar na superfície. Eles sinalizaram para ela rolar para trás.
Sachs agarrou a máscara e o regulador para que não fossem
arrancados na entrada, e segurou o liberador do cinto de peso para
que, se o equipamento de flutuação não funcionasse, pudesse soltar
os pesos e nadar para a superfície.
Certo, Rhyme, este aqui é para o Guiness: o recorde de examinar
a cena de crime mais submersa.
Um, dois três...
De costas para a água agitada.
Quando voltou a ficar de cabeça para cima os outros estavam na
água ao seu lado, fazendo gestos em direção à boia. Dentro de
alguns minutos tinham nadado até lá. Sinais de OK feitos por todos.
Depois um polegar para baixo, o que significava descer. Depois
seguraram os controles dos ECF na mão esquerda e desinflaram os
coletes.
Imediatamente o ruído se transformou em silêncio, o movimento
se tornou imobilidade, o pesado ficou sem peso e os três foram
baixando placidamente ao longo da corda grossa em direção ao
fundo.
Por um momento Sachs ficou impressionada com a paz absoluta
da vida debaixo d’água. Depois a serenidade foi rompida quando ela
olhou para baixo e viu a fraca silhueta do Fujou Dragon.
A imagem era mais perturbadora do que esperava. O navio
tombado de lado, com um rombo preto da explosão no casco, a
ferrugem,. a tinta descascando, as cracas incrustadas nas placas.
Escuro, irregular e agourento — e contendo os corpos de tantas
pessoas inocentes.
Um caixão, pensou, de coração apertado. Um gigantesco caixão
de metal.
Dor afiada nos ouvidos. Ela apertou o nariz através da parte de
plástico macio da máscara e soprou para igualar a pressão.
Continuaram descendo. A medida que chegavam mais perto do
navio começou a ouvir os ruídos — estalos e gemidos enquanto as
grossas placas de metal da embarcação raspavam as rochas.
Odeio esse barulho. Odeio, odeio. Parecia uma criatura
gigantesca morrendo.
Seus acompanhantes eram diligentes. Tinham parado
ocasionalmente na descida e verificado como ela estava. Sinais de
OK foram trocados e eles continuaram para baixo.
No fundo ela ergueu os olhos e descobriu que a superfície não
parecia tão distante quanto esperava, mas lembrou-se que a água
tinha o efeito de agir como uma lente, ampliando tudo. Um olhar
para o medidor de profundidade. Vinte e sete metros. Um prédio de
nove andares. Em seguida um olhar para o manômetro. Meu Deus,
já havia usado 150 libras de ar na descida que não exigira qualquer
esforço.
Amélia Sachs bombeou ar no ECF para neutralizar a flutuação.
Primeiro apontou para o rombo no casco e juntos os três nadaram
para lá. Apesar da superfície agitada lá em cima, as correntes aqui
eram suaves e eles podiam se mover com facilidade.
No local da explosão Sachs usou sua faca sem ponta para raspar
resíduos do metal que se enrolava para fora. Pôs um pouco do
material preto num saco plástico, lacrou e colocou na bolsa de rede.
Olhou para as janelas escuras do passadiço a doze metros de
distância. Certo, Rhyme, vamos nós. Eles nadaram para lá.
E o manômetro lhe deu sua mensagem sem emoção: 2.350 libras.
Com 500 eles saíam do fundo. Sem exceção.
Como o navio estava de lado, agora a porta do passadiço se abria
para cima, em direção à superfície. Era de metal e muito pesada. Os
dois oficiais da Guarda Costeira lutaram para levantá-la e Sachs
nadou pela abertura, descendo ao passadiço. Eles baixaram a porta
para a posição fechada. Ela se fechou com um estrondo arrepiante e
Sachs percebeu que agora estava presa dentro do navio. Sem os
companheiros provavelmente não poderia abrir a porta sozinha.
Esqueça, disse a si mesma. Em seguida tateou a luz montada no
capacete e acendeu. O facho ofereceu pouco conforto. Ela se virou e
nadou para longe da ponte, seguindo por um corredor escuro que
levava às cabines.
Um leve movimento vinha do escuro. O quê? Peixe, enguias,
lulas?
Não gosto disso, Rhyme.
Mas então pensou no Fantasma procurando os Chang, no bebê,
Po-Yee, a Criança Adorada.
Pense nisso, e não no escuro e no confinamento. Faça isso por ela,
por Po-Yee.
Amélia Sachs nadou para a frente.

Estava no inferno.
Não havia outra palavra para aquilo.
O escuro corredor cheio de entulho e fuligem, restos de pano,
papel, comida, peixes com olhos amarelos e penetrantes. E acima,
um tremor, como gelo: a fina camada de ar presa acima dela. Os sons
eram assustadores: algo raspando e rangendo, gemidos. Guinchos
parecidos com vozes humanas em agonia, estalos finos e ásperos.
Batida de metal contra metal.
Um peixe, cinza e esguio, passou rapidamente. Sachs ofegou
involuntariamente e virou a cabeça para acompanhá-lo.
Viu-se olhando para dois olhos humanos opacos, num rosto
branco e sem vida.
Gritou através do regulador e saltou para trás. O corpo de um
homem, descalço, com os braços acima da cabeça, como um bandido
se rendendo, flutuava ali perto. Suas pernas estavam imobilizadas na
posição de um corredor e, quando o peixe passou rapidamente, a
pequena esteira de movimento virou-o lentamente para longe dela.
Clang, clang.
Não pensou. Não posso fazer isso.
As paredes já estavam se fechando sobre ela. Assolada durante
toda a vida Pela claustrofobia, Sachs não conseguia parar de pensar
no que aconteceria se ficasse presa numa daquelas passagens
minúsculas. Enlouquecedor, com certeza.
Duas profundas respirações de ar seco pelo regulador.
Pensou na família Chang. Pensou no bebê.
E continuou nadando.
O manômetro: 2.300 libras de pressão.
Estamos bem. Continue em frente.
Clang.
Aquela droga de barulho — como portas se fechando, lacrando-a.
Bom, ignore, disse a si mesma. Ninguém está fechando porta
nenhuma.
As cabines acima dela — no lado do Dragon virado para a
superfície — não eram do Fantasma, deduziu: duas pareciam não ter
sido ocupadas durante a viagem, e uma era do capitão; nesta ela
encontrou lembranças de viagens no mar e fotos do homem careca e
de bigode que ela reconheceu como sendo o capitão Sen, das fotos
presas na parede de Lincoln Rhyme.
Clang, clang, clang.
Nadou para baixo, para verificar as cabines do outro lado do
corredor estreito — viradas para baixo.
Ao fazer isso, seu tanque se agarrou num extintor de incêndio
preso à parede, e ela se imobilizou na posição. Presa no corredor
estreito, foi tomada num clarão de pânico.
Tudo bem, Sachs, disse a voz de Lincoln Rhyme, aquela voz
profunda e convincente que ela sempre sentia falando através do
fone de ouvido nas cenas de crime. Tudo bem.
Controlou o pânico e recuou, livrando-se.
O manômetro dizia: 2.100 libras.
Três cabines abaixo não haviam sido ocupadas. Só restava uma
tinha de ser a do Fantasma.
Um gemido enorme.
Mais clangs.
Então um gemido tão alto que ela o sentiu no peito. O que estava
acontecendo? Todo o navio estava balançando! As portas ficariam
travadas. Ela ficaria presa ali para sempre. Sufocando lentamente...
morrendo sozinha... oh, Rhyme...
Mas então o gemido parou, substituído por mais clangs.
Parou na entrada da cabine do Fantasma, abaixo de seus pés.
A porta estava fechada. Abria-se para dentro — bom, para baixo.
Ela agarrou a maçaneta e girou. A tranca se soltou e a pesada porta
de madeira se virou para baixo. Olhando para baixo, para a
escuridão. Coisas nadavam dentro da cabine. Meu Deus... Ela
estremeceu e continuou onde estava, pairando no corredor estreito.
Mas a voz de Lincoln Rhyme, clara como se ele estivesse falando
pelos fones de ouvido, soou em seus pensamentos. Ӄ uma cena de
crime, Sachs. Só isso. E examinar cenas de crime é o que nós
fazemos, lembra? Você estabelece agrade, examina, observa, coleta
evidências.
Certo, Rhyme. Mas eu preferiria sem enguias.
Deixou um pouco de ar sair do ECF e baixou suavemente para a
cabine.
Duas visões a fizeram ofegar.
Diante dela um homem flutuava no espaço negro, de olhos
fechados, com o queixo o mais abaixado possível, braços abertos, o
casaco balançando atrás. O rosto estava branco como papel.
A segunda coisa que viu foi menos macabra, mas muito mais
estranha: o que deveriam ser mil notas de cem dólares flutuavam na
água, enchendo a cabine, como flocos num globo de plástico com
neve de mentirinha.
As notas explicavam a morte do homem. Seus bolsos estavam
cheios de dinheiro e ela deduziu que, quando o navio começou a
afundar, ele havia corrido para a cabine para pegar o máximo do
dinheiro do Fantasma que pudesse, mas ficou preso ali dentro.
Ela entrou ainda mais, com as notas redemoinhando em sua
esteira.
Logo o dinheiro acabou se mostrando um gigantesco pé no saco.
Grudava-se nela, obscurecia o local como se fosse fumaça
(Acrescente isso ao seu livro, Rhyme: dinheiro em excesso na cena
do crime pode tornar as buscas extremamente difíceis.) Ela não
podia ver mais do que um metro além da nuvem de notas. Agarrou
vários punhados do dinheiro como evidência e pôs em sua sacola de
coleta. Batendo os pés para ir até onde agora era a parte de cima da
cabine — originalmente a lateral —, notou uma maleta aberta
flutuando no fino bolsão de ar. Achou mais notas dentro —
pareciam chinesas. Um punhado dessas notas foi para a sacola de
coleta.
Clang, clang.
Meu Deus, isso é assustador. Escuridão em volta, coisas
invisíveis acariciando a roupa de mergulho. Ela só podia ver pouco
mais de um metro adiante — o túnel de luz fraca lançada pela
lâmpada minúscula na cabeça.
Então localizou duas armas: uma submetralhadora UZI e uma
Bere a 9 mm. Examinou-as atentamente e descobriu que o número
de série da Uzi tinha sido raspado. Deixou essa arma cair no fundo.
Mas havia um número na Bere a, o que significava que poderia
revelar alguma conexão com o Fantasma. Colocou-a dentro da sacola
de provas. Um olhar para o manômetro: 1.800 libras de ar. Meu
Deus, estava acabando com ele depressa. Respire devagar.
”Ande, Sachs, concentre-se.”
Certo, desculpe, Rhyme.
Clang, clang, clang.
Odeio a porra desse som.
Examinou o cadáver. Nenhuma carteira nem documento de
identidade.
Outro tremor. Por que essa cena era tão horrível, tão
fantasmagórica? Ela havia processado dezenas de corpos. Mas então
percebeu: os corpos naquelas cenas sempre estavam caídos como
brinquedos quebrados no chão, presos pela gravidade, inanimados,
no concreto, na grama ou no tapete. Não eram reais. Mas este
homem não estava imóvel. Frio como a água insensível em volta,
branco como neve, ele se movia como um elegante bailarino em
câmera lenta.
A cabine era muito pequena, e o corpo iria interferir com sua
busca. Assim, com um respeito que não teria sentido em qualquer
outro local fora desse horrível mausoléu, empurrou o corpo para o
corredor acima e para longe. Depois voltou à cabine do Fantasma.
Clang, clang... clang.
Ignorando os gemidos e clangores de dar medo, olhou em volta.
Num cômodo minúsculo como esse, onde alguém esconderia coisas?
Toda a mobília era presa à parede e ao piso. E havia apenas uma
cômoda pequena. Dentro havia material de toalete feito na China,
nada que guardasse evidências óbvias.
Procurou qualquer coisa escondida no armário, mas só achou
roupas.
Clang, clang...
O que pensamos disso, Rhyme?
“Eu acho que nós temos, digamos, umas mil e quatrocentas libras
de ar. Eu diria que, se você não achar nada logo, se mande daí.”
Eu ainda não vou a lugar nenhum, pensou. Pairando, examinou
lentamente o cômodo ao redor. Onde ele esconderia coisas? Tinha
deixado as armas, deixou o dinheiro... Isso significa que a explosão o
pegara de surpresa também. Tinha de haver alguma coisa aqui.
Olhou de novo para o armário. As roupas? Talvez. Foi para lá.
Começou a examiná-las. Nada em nenhum bolso. Mas continuou
procurando e — num dos paletós Armani — achou uma fenda que
ele havia feito na costura. Enfiou a mão dentro e tirou um envelope
com um documento. Apontou a luz para ele. Não sei se vai ajudar
ou não, Rhyme. É em chinês.
”Isso nós é que vamos descobrir aqui em casa. Você achou, Eddie
vai traduzir, eu vou analisar
Para a sacola.
Mil e duzentas libras de pressão. Mas nunca, nunca prenda o
fôlego.
Por que mesmo isso?
Certo. Seus pulmões explodiriam.
Clang.
Certo, vou sair daqui.
Saiu da pequena cabine para o corredor, com os tesouros de
evidências guardados na bolsa amarrada ao cinto.
Clang clang clang... clang... clang... clang.
Voltou pelo corredor escuro e interminável — o caminho pelo
qual poderia escapar desse lugar terrível. O passadiço parecia a
quilômetros pelo corredor escuro.
A mais longa jornada, o primeiro passo...
Sas então parou, agarrando a porta. Meu Deus, Senhor, pensou.
Clang clang clang...
Amélia Sachs percebeu uma coisa nas batidas fantasmagóricas
que vinha escutando desde que entrara no navio. Três batidas
rápidas, três lentas.
Era S-O-S em código Morse. E vinha de algum lugar no fundo do
navio.
Capítulo 37
SOS.
O pedido universal de socorro.
S-O...
Alguém estava vivo! A Guarda Costeira tinha deixado de
perceber um sobrevivente. Será que devia procurar os outros
mergulhadores?
Mas isso demoraria muito; pelas batidas irregulares Sachs
imaginou que o ar preso que o sobrevivente estava respirando
praticamente havia acabado. Além disso, o som parecia estar vindo
de perto. Ela deveria levar apenas alguns minutos para achar a
pessoa.
Mas onde exatamente?
Bom, obviamente o som não viera da direção do passadiço,
através do qual ela havia entrado no navio. Não vinha das cabines
também. Tinha de ser num dos depósitos ou na sala dos motores na
parte mais baixa do navio. Agora, com o Dragon de lado, essas áreas
estavam no mesmo nível que ela, à esquerda.
Sim, não?
Para isso não podia pedir o conselho a Lincoln Rhyme.
Não havia ninguém para ajudá-la aqui.
Ah, meu Deus, eu já estou entrando nisso, não estou?
Restavam menos de 1.200 libras de ar.
Então é melhor mexer esse rabo, garota.
Sachs olhou para a fraca iluminação onde ficava o passadiço,
depois se virou para a escuridão — e para a claustrofobia — e bateu
os pés com força. Seguindo o barulho.
S-O-S.
Mas quando chegou ao fim do corredor escuro, de onde achava
que ouvia o código, não achou um modo de entrar no interior do
navio. O corredor simplesmente acabava. Mas apertou a cabeça
contra a madeira e pôde ouvir claramente o barulho.
Apontando a luz para a parede, descobriu uma pequena porta.
Abriu-a e ofegou quando uma enguia verde passou calmamente por
ela. Deixou o coração se acalmar e olhou para dentro, olhando à
esquerda, para as entranhas do navio. O poço era um monta-cargas,
presumivelmente para transportar suprimentos dos conveses
inferiores para as cabines e o passadiço. Media cerca de setenta por
setenta centímetros.
Confrontando a ideia de nadar naquele espaço estreito, pensou
agora em voltar para pedir ajuda. Mas já havia desperdiçado tempo
demais para achar a passagem.
Ah, cara...
Mil libras de ar.
Clang, clang...
Fechou os olhos e balançou a cabeça.
Não posso fazer isso. De jeito nenhum.
S-O-S.
Amélia Sachs, que ficava absolutamente calma a duzentos por
hora em seu Camaro SS, acordava soluçando de sonhos em que se
via presa em câmaras, túneis e poços de minas.
Não posso fazer isso, pensou de novo.
Depois suspirou através do regulador e se enfiou no espaço
estreito, virou à esquerda do melhor modo possível e bateu os pés
penetrando mais fundo no inferno.
Meu Deus, odeio isso.
Novecentas libras de pressão no manômetro.
Seguiu adiante, pelo poço que tinha largura suficiente apenas
Para acomodá-la e ao tanque. Três metros. De repente o tanque se
agarrou em algo acima dela. Lutou para dominar o tremor de
pânico, trincando os dentes furiosamente no bocal do regulador.
Girando lentamente, descobriu o fio que a havia prendido, e se
livrou. Virou-se de novo e achou outro rosto branco-azulado se
projetando por outra porta do monta-carga.
Ah, meu Deus...
Os olhos do homem, opacos como geleia, espiavam na sua
direção, brilhando na luz. O cabelo dele se projetava da cabeça como
os espetos de um porco-espinho.
Sachs continuou adiante e passou lentamente pelo homem,
lutando para ignorar a sensação arrepiante do topo da cabeça dele
roçando seu corpo enquanto ela nadava.
S...
O som, ainda que frágil, era mais forte aqui.
O...
Continuou descendo pelo túnel até o fundo do monta-carga e,
afastando o pânico enquanto se aproximava da saída, forçou-se a
passar calmamente pela porta para o que era a cozinha do Dragon.
S...
A água negra aqui estava cheia de lixo e flocos de comida — e
vários corpos.
Clang.
Quem quer que estivesse sinalizando nem conseguia mais fazer
uma letra inteira.
Acima, viu a superfície brilhante de um grande bolsão de ar e as
pernas de um homem na água, pendendo. Os pés, calçados com
meias, moviam-se ligeiramente, quase um tremor. Ela nadou
rapidamente para eles e chegou à superfície. Um homem careca e de
bigode que estava agarrado a um conjunto de prateleiras
aparafusadas à parede — agora o teto da cozinha — virou-se com
um grito de choque, e indubitavelmente da dor provocada pela luz
ofuscante brilhando em seus olhos.
Sachs forçou a vista. Reconheceu-o — por quê? Depois percebeu
que tinha visto sua foto no quadro de provas da casa de Rhyme — e
outra na cabine dele há alguns minutos. Era o capitão Sen, do Fujou
Dragon.
Ele estava murmurando incoerentemente e tremendo. Estava tão
azul que parecia cianótico — a cor das vítimas de asfixia. Sachs
cuspiu o regulador para fora da boca para respirar o ar preso no
bolsão e economizar seu estoque de oxigênio, mas a atmosfera era
tão fétida e esgotada que ela se sentiu enfraquecer. Agarrou o bocal
de novo e começou a sugar o ar de seu tanque.
Puxando o regulador secundário do colete, enfiou-o na boca de
Sen. Ele respirou fundo e começou a se recuperar um pouco. Sachs
apontou a água abaixo. Ele assentiu.
Um rápido olhar para o manômetro: 700 libras. E agora eram
dois usando seu suprimento.
Soltou ar do ECF e, com o braço em volta do homem frouxo, os
dois afundaram ao fundo da cozinha, empurrando para os lados os
corpos e as caixas de comida que flutuavam no caminho. A princípio
ela não pôde localizar a porta do monta-carga. Sentiu-se enfraquecer
de pânico por um momento, com medo de que o gemido que ouvira
significasse que o navio estava se mexendo, e que agora a porta
estivesse lacrada. Mas então viu que o corpo de uma mulher jovem
tinha flutuado diante dele. Empurrou gentilmente o cadáver para o
lado e escancarou a porta do monta-carga.
Os dois não cabiam no poço lado a lado, por isso ela empurrou o
capitão na frente, com os pés primeiro. Com os olhos fechados com
força, ainda tremendo violentamente, ele agarrava a mangueira
preta do regulador com as duas mãos. Sachs foi atrás, imaginando
com muita clareza o que poderia acontecer se ele entrasse em pânico
e puxasse o regulador de sua boca ou arrancasse a máscara ou a luz:
Presa nesse lugar horrível e estreito, sacudindo-se em pânico
enquanto respirava a água fétida para dentro dos pulmões...
Não, não, pare de pensar nisso! Continue em frente. Bateu os Pés com
força, movendo-se o mais rápido possível. Por duas vezes
o capitão, flutuando para trás, ficou preso e ela teve de libertá-lo.
Um olhar para o manômetro: 400 libras de pressão.
Nós deixamos o fundo com quinhentas. Não menos do que isso. É
Uma regra absolutamente rígida. Sem exceções.
Finalmente chegaram ao convés superior — onde ficavam as
cabines e o corredor que levava ao passadiço e, depois, ao precioso
Lá.
Fora, com sua corda laranja que os levaria à superfície e a um
suprimento interminável de doce ar. Mas o capitão ainda estava
atordoado e ela demorou um longo minuto para manobrá-lo através
da abertura ao mesmo tempo em que se certificava de que ele
mantivesse o regulador na boca.
Depois estavam fora do monta-carga e flutuando pelo corredor
principal. Ela nadou ao lado do capitão, segurando-o pelo cinto de
couro. Mas quando começou a bater as pernas, parou subitamente. O
botão de seu tanque de ar estava agarrado. Ela estendeu a mão para
trás e descobriu que ele havia se prendido no paletó do corpo que
estivera na cabine do Fantasma.
O manômetro: 300 libras de pressão.
Droga, pensou, puxando com força, batendo as pernas. Mas o
corpo estava agarrado num portal e a aba do paletó havia se
enrolado com força no botão do tanque. Quanto mais ela puxava,
mais ficava presa.
Agora a agulha do manômetro estava abaixo da linha vermelha:
restavam 200 libras.
Ela não conseguia alcançar a parte emaranhada nas costas.
Certo, não há o que fazer...
Rasgou o velcro do ECF e tirou o colete. Mas ao se virar para se
concentrar na dificuldade, o capitão começou a ter uma convulsão.
Chutava com força, e acertou seu rosto com o pé. A luz se apagou e o
regulador caiu de sua boca. O golpe a empurrou para trás.
Escuridão, sem ar...
Não, não...
Rhyme...
Tentou pegar o regulador, mas ele estava flutuando em algum
lugar atrás dela, fora do alcance.
Não prenda o fôlego.
Bom, porra, eu tenho que...
Escuridão em volta, girando em círculos, tentando
desesperadamente pegar o regulador.
Onde estavam as babás da Guarda Costeira?
Lá fora. Porque eu disse que queria fazer a busca sozinha. Como
avisar que estava em dificuldade?
Rápido, garota, rápido...
Bateu na bolsa de evidências e enfiou a mão desesperadamente.
Pegou a Bere a 9 mm. Engatilhou e apertou o cano na parede de
madeira, onde sabia que não acertaria Sen, e puxou o gatilho. Um
clarão e uma explosão alta. O choque e o coice quase partiram seu
pulso, e ela largou a arma em meio à nuvem de entulho e resíduo de
pólvora.
Por favor, pensou... Por favor...
Sem ar...
Sem...

Então luzes surgiram em silêncio, enquanto o chefe de mergulho


e sua assistente entravam rapidamente no corredor. Outro bocal
regulador foi enfiado entre seus lábios e Sachs começou a respirar de
novo. O chefe de mergulho pôs o segundo regulador na boca do
capitão. O jorro de bolhas era leve, mas pelo menos ele estava
respirando.
Sinais de OK foram trocados.
Então os quatro saíram do passadiço em direção à corda laranja.
Polegares para cima. Mais calma agora que o risco de confinamento
havia acabado, Sachs se concentrou em subir devagar, não mais
rápido do que suas bolhas e inspirando e expirando profundamente
enquanto deixavam os cadáveres para trás.
Estava deitada na enfermaria do barco, respirando fundo; tinha
optado pelo ar da natureza, recusando a verde máscara de oxigênio
que o enfermeiro havia oferecido — achava que ter outra coisa
comprimida contra o corpo só iria aumentar a sensação de
confinamento.
Assim que subira ao convés oscilante, ela tirou a roupa de
mergulho a roupa apertada em si, havia se tornado outra coisa a
provocar a claustrofobia perniciosa —, se enrolando no grosso
cobertor fornecido pelo governo. Dois marinheiros a escoltaram à
enfermaria para verificar seu pulso, que por acaso não estava muito
Machucado.
Finalmente sentiu-se suficientemente bem para se aventurar lá
fora. Engoliu dois comprimidos de Dramamine e subiu a escada até
o passadiço, observando que o helicóptero estava de volta, pairando
acima do barco.
Mas a viagem não era para Sachs, e sim para levar o inconsciente
capitão Sen a um centro médico em Long Island.
Ransom explicou como provavelmente tinham deixado de notar
o capitão durante a busca por vítimas.
— Nossos mergulhadores fizeram uma busca longa, batendo no
casco, e não obtiveram resposta. Mais tarde fizemos uma varredura
por sonar que também resultou negativa. Sen deve ter se enfiado no
bolsão de ar, desmaiado e acordado mais tarde.
— Para onde ele está indo?
— Para o posto da Marinha em Huntington, é parte do hospital.
Lá eles têm uma câmara hiperbárica.
— Vai sobreviver?
— Ele não parece muito bem — explicou Ransom. — Mas se
sobreviveu vinte e quatro horas naquelas condições, acho que tudo é
possível.
Lentamente o frio foi sumindo. Ela se enxugou e vestiu de novo o
jeans, a camiseta e o suéter, depois foi rapidamente ao passadiço
ligar para Rhyme. Deixando de lado a narrativa de suas aventuras
subaquáticas, contou que tinham encontrado algumas evidências.
— E talvez uma testemunha.
— Uma testemunha?
— Achei alguém ainda vivo no navio. O capitão. Parece que ele
conseguiu levar algumas pessoas para a cozinha, depois que o navio
afundou. Mas só ele sobreviveu. Se tivermos sorte, ele pode nos dar
alguma pista sobre a estrutura do Fantasma em Nova York.
— Ele disse alguma coisa?
— Está inconsciente. Eles nem têm certeza de que ele vá
sobreviver, está com hipotermia e doença de descompressão. O
pessoal do hospital vai telefonar assim que souber alguma coisa. É
melhor pedir ao Lon para mandar babás para ele também. O
Fantasma vem atrás dele, se souber que ainda está vivo.
— Venha correndo, Sachs. Nós estamos sentindo sua falta.
O plural majestático vindo de Lincoln Rhyme, ela sabia,
realmente significava ”eu”.
Juntou as provas que tinha achado debaixo d'água, secando a
carta que encontrara no paletó do Fantasma com toalhas de papel da
cozinha do barco. Isso a contaminaria um pouco, mas Sachs estava
preocupada com a hipótese de que mais exposição à água salgada
poderia deteriorar o papel a ponto de inviabilizar a leitura. O
trabalho de cena do crime, dizia Rhyme com frequência, é sempre
uma concessão.
O capitão Ransom entrou no passadiço.
— Há outro helicóptero vindo para você, policial. — Ele trazia
dois grandes copos de isopor cheios, cobertos com tampas.
Entregou-lhe um.
Os dois tiraram as tampas. O dele continha um café fumegante.
Sachs riu. No dela havia suco de fruta misturado, como percebeu
pelo cheiro, com uma generosa dose de rum.
Capítulo 38
Feng Shui, que literalmente significa vento e água, é a arte de
prender a boa energia e a sorte e repelir a má.
É amplamente praticado no mundo, mas, devido ao número
espantoso de regras e a raridade da capacidade de avaliar a
dinâmica do bem e do mal, há muito poucos praticantes de feng shui
realmente talentosos. Implica muito mais do que simplesmente
arrumar a mobília, como sugerira o assistente de Loaban, e o
apartamento do Fantasma claramente fora feito por um mestre.
Sonny Li conhecia muitos praticantes de feng shui na China, mas
não tinha ideia de quem, aqui em Nova York, poderia ter preparado
tão habilmente o apartamento do Fantasma.
Mas em vez de sair correndo por aí feito Hongse em seu carro
amarelo para achar alguém que poderia ajudá-lo, Li permaneceu fiel
ao seu caminho taoista.
O modo de usar a vida é não fazer nada através do agir, o modo de usar
a vida é fazer tudo através do ser...
E assim o detetive Sonny Li entrou na casa de chá de bolhas mais
elegante que pôde achar em Chinatown, sentou-se a uma mesa e se
recostou na cadeira. Pediu uma xícara da bebida estranha: chá
adoçado com açúcar e clareado com leite. No fundo da xícara havia
grandes pérolas pretas de tapioca que você sugava através de um
canudo grosso e comia. Como o famoso (e igualmente caro) chá
gelado espumante muito popular em Fujou esta era uma criação
taiwanesa.
Sonny não gostava muito do chá, mas manteve-o à frente para
comprar o direito de ficar ali sentado pelo que poderia ser um longo
tempo. Examinou o salão chique, que fora planejado por algum
decorador inteligente demais. As cadeiras eram de metal e couro
púrpura, a iluminação era fraca e o papel de parede um Zen
falsificado. Os turistas entravam, tomavam seu chá e saíam correndo
para ver mais coisas em Chinatown, deixando gorjetas enormes, que
a princípio Sonny Li achou que era o troco que eles haviam
esquecido; dar gorjetas é raro na China.
Sentado, bebericando... Trinta minutos se passaram. Quarenta e
cinco.
Fazer tudo através do ser...
Sua paciência finalmente foi recompensada. Uma chinesa
atraente, de quarenta e poucos anos, entrou no estabelecimento,
achou um lugar perto do dele e pediu um chá.
A mulher usava um lindo vestido vermelho e saltos altos finos.
Lia o New York Times através de elegantes óculos de leitura com
lentes estreitas e retangulares e armação azul não mais grossa do que
uma linha desenhada a lápis. A maioria das mulheres chinesas que
faziam compras aqui em Chinatown carregavam bolsas de plástico
baratas, amarrotadas pelo muito uso. Mas essa mulher carregava
uma feita de impecável papel branco. Dentro havia uma caixa
amarrada com barbante dourado. Ele decifrou o nome na lateral da
caixa: SAKS FIFTH AVENUE.
Era exatamente o tipo de mulher que Sonny Li desejava, mas
sabia que sempre lhe seria negada. Esguia, chique, linda, cabelo
brilhante e denso como as penas de um corvo, rosto fino com
algumas características vietnamitas enfatizando lindamente a etnia
chinesa han, olhos brilhantes, lábios vermelhos e unhas combinando.
Ele olhou seu vestido de novo, suas joias, o cabelo com laquê e
decidiu: Sim, é ela. Li pegou seu chá, foi até a mesa da mulher e se
apresentou. Sentou-se, achou que a cadeira que tinha escolhido
estava próxima, mas não na mesa dela, de modo que ela não se
sentisse ameaçada com sua presença. Casualmente iniciou uma
conversa, e os dois falaram sobre o Belo País, sobre Nova York, sobre
chá de bolhas e sobre Taiwan, onde ela havia nascido.
— O motivo para eu perturbá-la — disse ele num tom casual é
que, perdão, mas talvez a senhora possa me ajudar. O homem para
quem trabalho tem má sorte. Acho que é por causa da arrumação do
apartamento dele. A senhora obviamente tem um bom praticante de
feng shui.
Ele indicou com um aceno os emblemas que lhe diziam que ela
de fato seguia com diligência o feng shui: um ostentoso bracelete de
nove moedas chinesas, um broche com a figura da deusa do lar,
Guan Yin, e uma echarpe com um peixe preto. Foi por isso que ele a
havia escolhido — por essas evidências, e porque ela era obviamente
rica, o que significava que só procuraria os melhores praticantes da
arte, homens do tipo que o Fantasma também contrataria.
— Se eu der ao meu chefe o nome de alguém bom para arrumar
sua casa e seu escritório — continuou ele —, ele pode me considerar
mais. Isso pode me ajudar a manter meu emprego e subir às vistas
dele.
Com essas palavras Li baixou a cabeça e manteve os olhos no
rosto dela, e sentiu-se rasgado pelo que viu: pena gerada por sua
vergonha. Mas o difícil para ele naquele olhar era que a falsa
vergonha que emanava de Sonny Li, o policial disfarçado, era
praticamente idêntica à vergonha verdadeira que Sonny Li, o
homem, sentia diariamente sob a cascata de críticas de seu pai.
Talvez, refletiu, por isso ela tenha acreditado.
A linda mulher sorriu e enfiou a mão na bolsa. Anotou um nome
e um endereço — num pedaço de papel que também tinha seu
próprio nome e o endereço, claro. Ela entregou-lhe e retirou a mão
rapidamente, antes que ele pudesse tocar sua palma e agarrá-la em
desespero e fome, coisa que de fato estava em vias de fazer.
— O Sr. Wang — disse ela, apontando para o cartão. — Ele é um
dos melhores da cidade. Se o seu patrão tiver dinheiro, ele irá ajudá-
lo. É muito caro. Mas fará um bom trabalho. Ele me ajudou a me
casar bem, como o senhor pode ver.
— Sim, meu patrão tem dinheiro.
— Então ele também pode mudar a sorte. Adeus.
Ela se levantou, pegou sua sacola brilhante e saiu da casa de chá
sobre os saltos imaculados, deixando a conta em destaque sobre a
mesa, para Sonny Li pagar.

— Sachs! — Rhyme ergueu os olhos da tela do computador.


Adivinhe o que o Fantasma usou para explodir o navio...
— Desisto — gritou ela, divertida ao ver o olhar de prazer que
acompanhava a terrível pergunta.
— Composição 4, Grau A, novo em folha — respondeu Mel
Cooper.
— Parabéns.
Isso tinha posto Rhyme de bom humor porque o C4 — embora
fosse a bomba preferida dos terroristas de cinema — era de fato
muito raro. A substância só era disponível para os militares e
algumas poucas agências da lei; não era usado em demolição
comercial. Isso significava que havia relativamente poucas fontes
para C4 de alta qualidade, o que, por sua vez, significava que as
chances de achar uma ligação entre essa fonte e o Fantasma eram
muito melhores do que se ele tivesse usado TNT, Tovex, Gelenex ou
qualquer dos outros explosivos comercialmente disponíveis.
Mas, mais significativo, o C4 é tão perigoso que, por lei, deve
conter marcadores — cada fabricante do material acrescenta
substâncias químicas inertes, mas distintas, à sua versão do
explosivo. A análise das substâncias no local de uma explosão vai
revelar que marcadores estiveram presentes, e isso revela aos
investigadores quem o fabricou. A empresa, por sua vez, deve
manter registros detalhados dos seus compradores, e estes devem
manter registros detalhados sobre onde o explosivo foi guardado ou
usado.
Se eles pudessem achar a pessoa que vendeu ao Fantasma esse
lote de C4, ela poderia saber onde o cabeça de cobra tinha outros
esconderijos em Nova York ou em outras bases de operação.
Cooper tinha mandado os resultados da análise a Quântico.
— Devemos ter notícias nas próximas horas.
— Onde está Coe? — perguntou Sachs olhando em volta.
— No INS — disse Rhyme, depois acrescentou acidamente: —
Não atrapalhe mencionando o nome dele. Esperemos que ele
continue lá.
Eddie Deng chegou do centro da cidade.
— Vim para cá assim que você ligou, Lincoln.
— Excelente, Eddie. Ponha seus óculos de leitura. Você tem que
traduzir para nós. Amélia achou uma carta no paletó esporte do
Fantasma.
— Não brinca. Onde?
— Vinte e sete metros debaixo d'água. Mas isso é outra história.
Os olhos de Deng eram bons — não precisavam de óculos de
leitura —, mas Mel Cooper entregou-lhe um capacete de leitura
ultravioleta para melhorar a imagem da tinta da carta; os caracteres
tinham sido desbotados pela água do mar e mal eram visíveis. Deng
se curvou sobre a carta e a examinou.
— É difícil de ler — murmurou forçando a vista. — Certo, certo...
É para o Fantasma. O homem que escreveu se chama Ling Shuibian.
Está dizendo ao Fantasma quando o voo charter vai partir de Fujou e
quando e onde esperá-lo na base militar de Nagorev perto de São
Petersburgo. Depois diz que está mandando o dinheiro para uma
conta em Hong Kong — sem número ou banco. Depois descreve o
custo do aluguel do avião. Depois diz que parte do dinheiro segue
anexo — em dólares. Finalmente há uma lista das vítimas, os
passageiros do Dragon.
— Só isso?
— Acho que sim.
— Mande alguém nosso verificar esse cara, o Ling — disse
Rhyme a Selli o, perguntando em seguida a Mel Cooper: — Algum
traço de substâncias no papel?
— Só o que seria de esperar — disse o homem do laboratório.
Água salgada, excremento de animais marinhos, poluição, partículas
de plantas, óleo de motor, óleo diesel.
— Quanto dinheiro havia lá, Sachs? — perguntou Rhyme.
— Muito. Talvez mil. Mas é difícil dizer quando você está
nadando dentro dele.
As notas de dólares que ela havia coletado eram todas de cem.
Impressas recentemente.
— Falsificadas? — perguntou Rhyme.
Cooper examinou uma.
— Não.
Os ienes que ela havia achado — o dinheiro chinês — estavam
desbotados e amarrotados.
— Havia uns trinta maços desse tamanho — explicou ela.
Eddie Deng totalizou a quantia que havia nesse maço. — Trinta
maços, dada a taxa de câmbio — avaliou o jovem detetive —, é igual
a cerca de vinte mil dólares americanos.
— Também achei uma Uzi e uma Bere a — disse ainda Sachs —,
mas ele havia tirado o número de série da Uzi e eu perdi a Bere a no
navio.
— Conhecendo o Fantasma — disse Rhyme —, qualquer arma
dele, mesmo com números de série, será impossível de ser rastreada.
O criminalista olhou para o corredor.
— Thom! Precisamos do nosso escriba! Thom!
O assoberbado rapaz entrou na sala. Anotou as informações que
Rhyme havia ditado sobre os explosivos, sobre a carta e as
substâncias achadas nela e sobre as armas.
Houve um trinado eletrônico quando um celular tocou e — o que
já se tornou um gesto automático hoje em dia — todo mundo olhou
para ver se era o seu. Sachs foi a vencedora, e tirou o aparelho do
cinto.
— Alô?
— Amelia?
Ela reconheceu a voz de John Sung. Seu estômago deu um
pequeno salto mortal ao se lembrar da noite anterior.
— John.
— Como vai?
Tive uma sessão de natação infernal, pensou, mas fora isso estou bem.
— Ótima — falou. — Agora estou meio ocupada.
— Claro — disse o médico. Que voz, pensou ela. Puro estilo de
quem está sempre perto de uma cama. — Tiveram alguma sorte em
encontrar Sam Chang e a família?
— Ainda não. Estamos trabalhando nisso agora.
— Eu estava imaginando se você teria tempo para dar uma
passada aqui mais tarde.
— Acho que posso conseguir. Mas eu ligo daqui a pouco, certo,
John? Estou na casa do Lincoln agora e a coisa está meio maluca.
— Claro. Desculpe a interrupção.
— Não, não, fico feliz por você ter ligado. Eu telefono depois.
Ela desligou e começou a se virar para as evidências. Mas ergueu
os olhos e viu Lon Selli o olhando-a com o que só poderia ser
descrito como uma encarada feroz.
— Detetive — disse ela —, posso falar com você lá fora um
minuto?
— O que pode haver para... — tinha começado Selli o,
carrancudo.
— Agora — atalhou ela, exigente.
Rhyme ainda olhou um instante para os dois, mas logo perdeu o
interesse pela estranha troca de palavras e voltou a examinar as
tabelas de evidências.
Sachs entrou no corredor e Selli o foi atrás, os pés batendo forte
no chão. Thom havia percebido alguma coisa errada.
— O que está acontecendo... — Mas a voz do ajudante se perdeu
quando Sachs fechou a porta com raiva. Os dois continuaram pelo
corredor na direção que ela indicou — os fundos da casa — e
entraram na cozinha.
Ela girou, com as mãos nos quadris estreitos.
— Por que está pegando no meu pé nos últimos dois dias,
detetive?
O homenzarrão puxou o cinto para cima da barriga.
— Você é maluca. É a sua imaginação.
— Babaquice. Se tem alguma coisa para me dizer, diga na cara.
Eu mereço isso.
— Merece? — perguntou ele num tom de escárnio. — O que é
tudo isso?
Houve uma pausa enquanto ele olhava a tábua de cortar carne,
onde Thom havia posto meia dúzia de tomates e uma pilha de
manjericão.
— Eu sei onde você estava ontem à noite.
— É?
— As babás do lado de fora do apartamento de Sung disseram
que você foi lá depois de sair daqui e que só saiu à uma e quarenta e
cinco.
— Minha vida pessoal é da minha conta — disse ela com frieza.
O policial corpulento olhou em volta e depois sussurrou com
veemência: — Mas não é mais só da sua conta, Amelia. É da conta
dele também.
Ela franziu a testa. — Dele? De quem?
— De Rhyme. Em quem você pensou?
— Do que você está falando?
— Ele é forte. Mais do que qualquer pessoa que eu conheço. Mas
a única coisa capaz de despedaçá-lo é você; se continuar do jeito que
está indo.
Ela ficou perplexa.
— Indo?
— Olha, você não o conhecia na época. Aquela mulher por quem
ele se apaixonou, Clare. Quando ela morreu, ele demorou uma
eternidade para se recuperar. Ele ia trabalhar, fazia o serviço, mas
levou um ano para aquela luz voltar aos olhos dele. E a mulher
dele... Eles tinham umas brigas, claro, estou falando de brigas tipo
MGM. Não era o melhor casamento do mundo, mas depois do
acidente, quando ele soube que não ia mais dar certo e se divorciou,
a coisa foi difícil, muito difícil.
— Não sei aonde quer chegar com isso.
— Não sabe? Para mim está bem claro. Você é o centro da vida
dele. Ele baixou todas as defesas para você. Você vai derrubá-lo. E eu
não vou deixar isso acontecer. — A voz dele baixou ainda mais. —
Só pense nisso: se continuar vendo esse cara, isso vai matar Rhyme...
Do que está rindo?
— Está falando de mim e John Sung?
— É, o cara que você tem ido ver escondida.
As mãos de Sachs subiram ao rosto e ela começou a se sacudir
com o riso.
— Ah, Lon... — Em seguida se virou rapidamente para o outro
lado, porque um momento depois, como ela soube subitamente que
aconteceria, o riso se transformou em lágrimas.
Preciso conversar com você sobre uma coisa.
Pelo jeito, está parecendo má notícia, doutor.
Por que nós não nos sentamos ali no canto?
— Meu Deus — disse Selli o, adiantando-se. Depois parando,
com as mãos do lado do corpo, sem jeito. — Amelia, o que...
Ela estendeu a mão e se virou para longe.
— O que está acontecendo?
Finalmente ela prendeu o fôlego, enxugou o rosto e se virou de
novo para o detetive.
— Não é o que você está pensando, Lon.
Outro puxão no cinto.
— Continue.
— Você sabe que Rhyme e eu andamos falando em ter filhos.
— É.
Ela deu um riso azedo.
— Não deu certo. Não é que estejamos tentando tanto assim, mas
eu não estava engravidando. Estava preocupada com a hipótese de
haver alguma coisa errada com o Lincoln. Então, há algumas
semanas, nós nos internamos e os dois fizemos exames.
— É, eu me lembro que ele foi ao médico.
Ela pensou naquele dia na sala de espera.

Ah, Sra. Sachs. Cá está.


Olá, doutor.
Acabei de me reunir com a médica de Lincoln Rhyme.
Sim?
Preciso conversar com você sobre uma coisa.
Pelo jeito, está parecendo má notícia, doutor.
Por que nós não nos sentamos ali no canto?
Aqui está bem. Fale. Seja direto.
Bom, a médica de Lincoln me disse que os resultados do exame de
fertilidade dele estão nos níveis normais. Uma contagem de esperma
ligeiramente diminuída, o que é típico para alguém no estado dele, mas hoje
em dia isso praticamente não prejudica a possibilidade de gravidez. Mas
acho que a senhora tem um problema mais sério.
Eu?
Olhando para a tábua de cortar carne ao seu lado, ela contou a
Selli o sobre essa conversa com o médico. Depois acrescentou: —
Tenho uma coisa chamada endometriose. Sempre tive problemas,
mas nunca achei que fosse tão ruim quanto o médico disse.
— Eles podem curar?
Sachs balançou a cabeça.
— Não. Podem operar, fazer terapia hormonal, mas não ajudaria
na questão da fertilidade.
— Meu Deus, sinto muito, Amelia.
Ela enxugou o rosto de novo. Um sorriso triste brotou nele.
— Secura e calor no rim.
— O quê?
Sachs deu um riso opaco.
— Isso era o que eu estava fazendo no apartamento de John
Sung. Secura e calor no rim, esses são os motivos para a infertilidade,
segundo a medicina chinesa. Ontem à noite ele me examinou e fez
tratamento de acupressura. E está conseguindo algumas ervas que
acha que vai ajudar. Foi para isso que telefonou agora mesmo.
Espere aqui.
Sachs foi até o corredor, enfiou a mão na bolsa e voltou com o
que Sung lhe dera na noite anterior. Entregou o livro ao detetive. O
título era Tratamentos herbários e técnicas de acupressura para ajudar na
fertilidade.
— Por acaso, um monte de médicos ocidentais recomenda que as
mulheres com endometriose usem a medicina chinesa como
tratamento. Ontem à noite, quando levei Lincoln lá para cima,
conversamos. Ele achou uma bobagem, mas notou como ando
perturbada ultimamente por causa disso. Ele está certo: diz que
andei distraída. A coisa me incomoda até quando estou examinando
cenas. Por isso decidimos que eu devia ir em frente e ver o que Sung
podia fazer por mim. — Ela ficou quieta. Finalmente falou: — Há
tanta morte a minha volta, Lon... meu pai, meu relacionamento com
meu namorado, Nick. Quando ele foi para a prisão foi como se
tivesse morrido. Depois todas as cenas de crime que eu examino. Eu
queria um pouco de vida perto de nós, de Lincoln e de mim. Queria
demais consertar o que há de errado em mim.
Independentemente do que custar, cuide primeiro de você. Se não estiver
inteira, nunca poderá cuidar de mais ninguém.
O tratamento de Sung, ela esperava, era um modo de fazer isso, e
se tornar inteira.
Levantando as palmas das mãos, Selli o falou: — Eu não sabia.
Vocês fizeram segredo sobre isso, realmente. Com raiva, ela disse: —
Porque não é da conta de ninguém, a não ser Lincoln e eu. Sachs
assentiu na direção da sala de Rhyme. — Você não sabe o que ele e
eu somos um para o outro? Como pôde achar que eu faria uma coisa
dessas?
O detetive desalinhado não conseguiu sustentar seu olhar.
— Com Be y indo embora e coisa e tal, eu só estava pensando no
que aconteceu comigo. — O casamento do policial grandalhão tinha
acabado havia alguns anos. Ninguém sabia dos detalhes do divórcio
de Selli o, mas era fato conhecido que era difícil ser casado com um
policial, e que muitos cônjuges tinham ido procurar uma alternativa
que rendesse mais atenção. — Desculpe, Amelia. Eu deveria ter
pensado melhor.
Ele estendeu a mão enorme e ela apertou-a com relutância.
— Isso vai adiantar alguma coisa? — perguntou ele indicando o
livro.
— Não sei. — Depois ela deu um sorriso triste. — Talvez.
— De volta ao trabalho?
— Claro. — Ela enxugou os olhos uma última vez e eles voltaram
à sala de Rhyme.
FANTASMORTES

Cena do Crime Easton, Long Island

• Dois imigrantes mortos na praia, com tiros nas costas.


• Um imigrante ferido — Dr. John Sung.
• ”Bangshou” (assistente) a bordo identidade desconhecida.
• Assistente confirmado como corpo afogado encontrado perto
do lugar onde o Dragon afundou.
• Dez imigrantes escapam: sete adultos (um idoso, uma mulher
ferida), duas crianças, um bebê. Roubam furgão da igreja.
• Amostras de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Mulher ferida é AB negativo. Requisitando mais informações
sobre seu sangue.
• Veículo esperando o Fantasma na praia partiu sem ele. Um tiro
supostamente dado pelo Fantasma contra o veículo. Providenciado
pedido de marca e modelo do veículo, baseado em marcas de pneus
e distância entre eixos.
• Veículo é um BMW X5.
• Motorista — Jerry Tang.
• Nenhum veículo para pegar os imigrantes foi localizado.
• Celular, presumivelmente do Fantasma, mandado para análise
no FBI.
• Telefone por satélite impossível de ser rastreado. Penetrou no
sistema chinês para ser usado.
• Arma do Fantasma é uma pistola 7.62. Cartuchos incomuns.
• Pistola automática chinesa Modelo 51.
O Fantasma pode ter gente do governo em sua folha de
pagamentos.
O Fantasma roubou um sedã Honda vermelho para fugir.
Providenciado pedido de localização do veículo.
• Nenhum traço do Honda foi encontrado.
Três corpos recuperados no mar — dois mortos a tiros, um
afogado. Fotos e impressões mandadas a Rhyme e à Polícia chinesa.
• Indivíduo afogado identificado como Victor Au, o bangshou do
Fantasma.
Digitais mandadas ao AFIS.
• Nenhuma identificação em nenhum ponto, mas marcas
incomuns nos dedos de Sam Chang (ferimento, queimadura de
corda?).
Perfil dos imigrantes: Sam Chang, Wu Qichen e suas famílias
John Sung, bebê e mulher afogada, homem e mulher não
identificados (mortos na praia).

Furgão Roubado, Chinatown

• Camuflado por imigrantes com o logotipo ”A Loja do Lar”.


• Mancha de sangue sugere que mulher tem ferimento no braço
ou no ombro.
• Amostras de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Mulher ferida é AB negativo. Requisitando mais informações
sobre seu sangue.
• Digitais mandadas ao AFIS.
• Nenhuma identificação.

Cena do Assassinato de Jerry Tang


• Quatro homens arrombaram a porta, torturaram-no e o
mataram a tiros.
• Dois cartuchos de balas — combinam com Modelo 51. Tang
levou dois tiros na cabeça.
• Grande vandalismo.
• Algumas digitais.
• Nenhuma identificada, a não ser a de Tang.
• Três cúmplices têm sapatos menores do que os do Fantasma,
presumivelmente têm estatura menor.
• Traços de substâncias sugerem que o esconderijo do Fantasma
fica provavelmente no sul de Manha an, na área de Ba ery Park
City.
• Suspeita-se de cúmplices de minoria étnica chinesa. No
momento o paradeiro é procurado.
• Uigures de comunidade do Turquestão e do Centro Islâmico do
Queens.
• Telefonema de celular indica prédio 805 na Patrick Henry
Street, sul de Manha an.

Tiroteio na Canal Street Cena do Crime

• Traços adicionais sugerem que esconderijo é na área de Ba ery


Park City.
• Chevrolet Blazer roubada, impossível rastrear origem.
• Nenhuma identificação de digitais.
• Carpete do esconderijo: LustreRite da empresa Arnold,
instalado nos últimos seis meses; ligando para empreiteiros para
obter lista de instalações.
• Locais de instalações determinados: 32 perto de Ba ery Park
City.
• Encontrada palha de jardinagem fresca.
• Corpo do cúmplice do Fantasma: minoria étnica do oeste ou
noroeste da China. Sem identificação de digitais. Arma era Walther
PPK.
• Detalhes sobre imigrantes:
• Os Chang: Sam, Mei-Mei, William e Ronald; pai de Sam, Chang
Jiechi, e bebê, Po-Yee. Sam arrumou trabalho, mas empregador e
local são desconhecidos. Dirigindo furgão azul, marca desconhecida,
placa desconhecida. Apartamento dos Tang é no Queens.
• Os Wu: Qichen, Yong-Ping, Chin-Mei e Lang.

Cena do Crime Tiroteio no Esconderijo

• Digitais e fotos das mãos de Chang Jiechi revelam que pai — e


filho Sam — são calígrafos. Sam Chang pode estar trabalhando
numa gráfica ou pintando cartazes. Ligando para lojas e empresas
no Queens.
• Biossólidos nos calçados do falecido sugerem que eles moram
perto de estação de tratamento de esgotos.
• Fantasma usa praticante de feng shui para arrumar sua casa.

Cena do Crime Fujou Dragon

• Fantasma usou novo C4 para explodir o navio. Verificando


origem do explosivo através de marcadores químicos.
• Grande quantidade de notas americanas novas achadas na
cabine do Fantasma.
• Aprox. US$20.000 em ienes chineses usados achados na cabine.
Lista de vítimas, detalhes do voo charter e informações sobre
depósito de banco. Verificando nome de remetente na China.
• Capitão vivo mas inconsciente.
• Bere a 9 mm, Uzi. Impossíveis de rastrear.
Capítulo 39
— Fred — disse Rhyme quando Dellray, agora usando a camisa
mais laranja que o criminalista já vira, entrou no laboratório
montado em sua sala de estar.
— Ei — disse Sachs ao agente. — Eles deixam você usar camisas
assim? Diga, essa cor é de verdade?
— Você nos deu um tremendo susto — observou Rhyme.
— Imagine o que eu senti pondo meu rabo em cima de umas
bananas criadas pelo Sr. Nobel. — Ele olhou a sala ao redor. — Cadê
o Dan?
— Dan? — perguntou Rhyme. — O AS.
Observando os olhares vazios, Dellray continuou: — O agente
supervisor, o cara que ficou no meu lugar. Dan Wong Do nosso
escritório em San Francisco. Queria agradecer a ele por ter assumido
o caso.
Rhyme e Sachs se entreolharam. O criminalista tomou a palavra
— Ninguém ficou no seu lugar. Ainda estamos esperando.
— Ainda estão esperando! — sussurrou Dellray, incrédulo. — Eu
mesmo falei com o Dan ontem à noite. Ele é o homem de quem vocês
precisam. Cuidou de uma dezena de casos de contrabando de
pessoas. Ele é uma espécie de especialista em cabeças de cobras e
cultura chinesa. Ia ligar para vocês e vir para cá num jato do exército.
— Não soubemos uma palavra.
A expressão de perplexidade de Dellray se transformou em raiva.
— E quanto à SPECTAC? — perguntou, cheio de suspeitas. Eles
estão aqui, não estão?
— Não — disse Sachs.
Com um rosnado ele tirou o telefone de seu cinto como se
estivesse sacando a arma. Depois de apertar um botão de discagem
automática, estava conectado.
— Aqui é o Dellray... Ponha ele na linha... Não quero saber.
Quero falar com ele agora... Como eu disse, e talvez você não tenha
ouvido. Eu. Quero. Ele. Agora... — Um suspiro enojado. — Bom,
mande ele telefonar para mim. E você me diga: o que aconteceu com
Dan Wong? — Dellray ouviu por um longo momento e depois
desligou o telefone sem se despedir. — Dan foi fazer uma tarefa de
emergência no Havaí. A notícia veio de Washington, de modo que
teve prioridade sobre nosso casinho insignificante de merda aqui.
Alguém deveria ter ligado para mim, e para vocês, mas a coisa ficou
no meio do caminho.
— E a SPECTAC?
— O AEE vai ligar de volta para mim. Mas se eles não estiverem
aqui agora mesmo alguém vai se foder em grande estilo.
— Eles disseram que o assunto estava no ”rolo” para uma
reunião de hoje — disse Rhyme.
— Odeio esse modo de merda como eles falam — rosnou
Dellray. — Vou fazer com que cuidem disso assim que eu voltar ao
escritório. Não tem desculpa.
— Obrigado, Fred. Precisamos dessa ajuda. Temos metade da
Quinta Delegacia tentando encontrar a gráfica ou a empresa de
pintura onde Sam Chang trabalha, e não conseguimos chongas.
— Isso não é bom.
— Em que pé está com a investigação da bomba? — perguntou
Selli o.
— Esse é outro motivo para eu passar aqui. Ninguém sabe nada
A investigação não deu nem um passo de bebê. Meus informantes
estão percorrendo Brighton Beach mas não sacaram nada. Nem Um.
Pio. E eu tenho uma dúzia de informantes lá.
— Tem certeza de que a bomba era russa?
— Quando é que a gente tem certeza de alguma porra?
Isso era verdade. Rhyme acenou para a sacola de papel que o
outro estava carregando.
— O que tem aí?
Ele pegou dentro um saco plástico contendo a banana de
explosivo amarelo-brilhante e jogou para Sachs do outro lado da
sala. Ela pegou com uma das mãos.
— Minha nossa, Fred — gritou Sachs.
— É só dinamite. E se não explodiu com um detonador com
certeza não ia estourar com um pequeno lançamento desses. Ei,
Amelia, quer jogar softball no time do escritório? Essa pegada foi boa.
Ela examinou a banana de dinamite.
— Alguma digital? — perguntou Selli o.
— Limpa. Nenhuma impressão.
Ela estendeu o explosivo a Rhyme, que percebeu os números
pintados na lateral.
— O que os números de lote indicaram?
— Nada. Nossos rapazes disseram que era velha demais para ser
rastreada. Outro beco sem saída.
— O beco sem saída de um homem é a porta da casa de outro —
disse Rhyme, lembrando de contar esse ditado, que ele tinha
acabado de inventar, a Sonny Li, quando o policial chinês estivesse
de volta. — Eles testaram procurando marcadores?
— Não. Disseram que também era velha demais para ter aditivos
de marcadores.
— Provavelmente é. Mas quero testar assim mesmo. — Rhyme
gritou para Mel Cooper: — Mande para o laboratório o mais rápido
possível. Quero que seja analisada. De cabo a rabo.
A cromatografia — o processo analítico preferido para testar
dinamite — geralmente exigia que as amostras fossem queimadas.
Mas Rhyme não iria pôr fogo num explosivo em sua própria casa. O
laboratório do NYPD no centro tinha equipamentos especiais para
isso. Mel Cooper ligou para um dos seus técnicos no centro da
cidade e combinou para que o teste fosse feito, depois entregou a
dinamite de novo a Dellray, dando-lhe instruções sobre onde deixá-
la.
— Faremos o que pudermos, Fred.
Então Cooper olhou para um segundo saco que Dellray lhe
entregou. Continha uma bateria Duracell, fios e um interruptor.
— Tudo genérico, nada útil. Padrão para bombas — anunciou o
técnico. — E o detonador?
Um terceiro saco apareceu. Cooper e Rhyme examinaram o que
restava do pedaço de metal chamuscado.
— Russo, uso militar — disse Rhyme.
Um detonador era basicamente uma cápsula explosiva que
continha um centro de fulminato de mercúrio, ou um explosivo
semelhante, e fios que se aqueciam quando uma carga elétrica
passava através deles e incendiavam o explosivo primário, que por
sua vez acionava a carga principal.
Não restava muito desse; era a única parte da bomba que havia
explodido quando Dellray sentou-se no detonador. Cooper colocou-
o sob o microscópio duplo.
— Não há muita coisa. Uma letra russa A e um R. Depois os
números um e três.
— E nenhum banco de dados tem o registro disso?
— Não, e nós checamos todo mundo: NYPD, ATF, DEA e o
Departamento de Justiça.
— Bem, veremos o que o laboratório acha.
Eu lhe devo, Lincoln.
— Pague de volta conseguindo alguém da sua turma para
trabalhar no FANTASMORTES, Fred.
A quatro quarteirões da casa de chá de bolhas Sonny Li achou o
endereço do Sr. Wang, que a mulher de vermelho tinha lhe dado.
A fachada não dava indicação do que o ocupante fazia para
viver, mas na vitrine empoeirada havia um oratório, iluminado por
uma lâmpada vermelha, e palitos de incenso queimados há muito.
As letras desbotadas diziam, em chinês:

SORTE CONTADA, VERDADE REVELADA, SORTE PRESERVADA.

Dentro, uma jovem chinesa atrás de uma mesa ergueu os olhos


para Li. Na mesa à sua frente havia um ábaco e um laptop. O
escritório parecia pobre, mas o relógio Rolex com diamantes em seu
pulso sugeria que o negócio era bem-sucedido. A jovem perguntou
se ele estava ali para contratar o pai dela para arrumar sua casa ou
seu escritório.
— Fiquei feliz em ver um apartamento que acho que foi feito por
seu pai. Pode me dizer se foi trabalho dele?
— Apartamento de quem?
— Era um conhecido de outro amigo, que infelizmente voltou
para a China. Não sei o nome dele. Mas sei o endereço.
— E onde era?
— Patrick Henry Street, cinco-zero-oito.
— Não, não — disse ela. — Meu pai não trabalha lá. Ele não
trabalha ao sul de Midtown. Só para gente do norte da cidade.
— Mas seu escritório é aqui.
— Porque as pessoas esperam que nós estejamos aqui. Todos os
nossos clientes são do Upper East Side e do Upper West Side. E só
uma parte deles é de chineses.
— E vocês não moram em Chinatown? Ela riu.
— Nós moramos em Greenwich Connecticut. Conhece?
— Não — disse ele. Desapontado, Li perguntou: — Pode me
dizer quem poderia ter arrumado o apartamento dele? Foi muito
bem-feito — Esse seu amigo é rico?
— É, muito rico.
— Então eu diria que foi o Sr. Jou. Ele faz muitos lugares dos
ricos no sul da cidade. Aqui está o nome e o endereço dele. Ele tem
um escritório nos fundos de uma mercearia e loja de ervas. Fica a
uns cinco quarteirões daqui. — Ela anotou o nome em outro pedaço
de papel e acrescentou informações sobre como chegar.
Li agradeceu e ela voltou ao computador.
No lado de fora, para dar sorte, Sonny Li esperou até que um táxi
que vinha correndo pela rua estivesse a três metros de distância,
depois pulou na frente do carro. O motorista xingou e estendeu o
dedo médio.
Li gargalhou. Tinha cortado o rabo do demônio muito perto, e
deixou-o sem poder. Agora, abençoado com a invulnerabilidade, iria
achar o Fantasma.
Olhou de novo para o pedaço de papel e foi pela rua na direção
da Lucky Hope Shop.
Usando seu agasalho leve para esconder a nova Glock 36, um
modelo calibre 45, o Fantasma andava pela Mulberry Street,
tomando a água de um coco que tinha comprado na esquina. Um
canudo curto se projetava do buraco feito pelo vendedor com um
cutelo.
Tinha acabado de receber notícias do uigur que Yusuf havia
contratado para invadir a casa de segurança especial do NYPD onde
a família Wu estava sendo mantida em Murray Hill. Mas a
segurança era melhor do que ele esperava, e os guardas o tinham
visto. Quase o pegaram, mas o turco escapou. Sem dúvida a polícia
já havia mudado a família. Um breve recuo, mas ele acabaria
descobrindo onde estavam.
Passou por uma loja que vendia imagens, altares e incensos. Na
vitrine havia uma efígie de seu protetor, o deus arqueiro Yi. O
Fantasma fez uma ligeira reverência com a cabeça e continuou em
frente.
Enquanto andava, perguntou a si mesmo: Ele acreditava em
espíritos?
Acreditava que os dragões habitavam morros?
Duvidava que sim. Afinal de contas, Tian Hou, a deusa dos
marinheiros, poderia ter sacudido o dedo para o mar tempestuoso e
o Calmado, mas só fizera isso num mito. Na realidade, ela não tinha
salvado os porquinhos presos no depósito do Fujou Dragon.
E suas próprias orações à deusa da misericórdia, Guan Yin,
continuavam sem ser atendidas há anos — ela não tinha impedido a
mão do estudante espinhento de espancar seus pais e seu irmão até a
morte pelo crime ambíguo de fazer parte do que era antigo.
Por outro lado, o Fantasma certamente acreditava no qi a energia
de vida que flui através de todo mundo. Tinha sentido essa força mil
vezes. Sentia-a como a transferência entre ele e a mulher que
estivesse fedendo, sentia-a como o poder da vitória no instante em
que matava um inimigo, sentia-a como um alerta de que deveria
evitar entrar numa determinada sala ou se encontrar com
determinado empresário. Quando ficava doente ou corria perigo,
sentia seu qi debilitado.
Bom qi e mau qi.
E isso significava que você poderia canalizar a força boa e desviar
ou bloquear a ruim.
Seguindo por um beco, depois por outro, depois atravessando
uma rua agitada. Entrando em outro beco escuro e calçado com
paralelepípedos.
Finalmente chegou ao destino. Terminou de tomar a água de coco
e jogou a casca numa lata de lixo. Depois enxugou cuidadosamente
as mãos num guardanapo e passou pela porta, cumprimentando
com um aceno seu especialista em feng shui, o Sr. Jou, que estava
sentado nos fundos da Lucky Hope Shop.

Sonny Li acendeu outro cigarro e continuou por uma rua


chamada Bowery.
Li conhecia os cabeças de cobra e sabia que eles tinham dinheiro
e um senso de sobrevivência feroz. O Fantasma devia ter outros
esconderijos na área, e, como o feng shui era uma questão tão
pessoal, se o Fantasma estivesse satisfeito com o trabalho que Jou
tinha feito na Patrick Henry Street ele usaria o mesmo homem para
os outros locais.
Sentia-se bem. Bons augúrios, bom poder.
Ele e Loaban fizeram sacrifícios a Guan Di, o deus dos detetives.
Ele tinha cortado rabos de demônios.
E tinha no bolso uma pistola alemã automática carregada.
Se esse homem do feng shui soubesse que estava trabalhando para
um dos cabeças de cobra mais perigosos do mundo, talvez ficasse
relutante em falar sobre ele. Mas Sonny Li conseguiria que ele
falasse.
O juiz Dee — o detetive, promotor e juiz fictício na China antiga
— realizava investigações muito diferentemente de Loaban. As
técnicas eram semelhantes às usadas na China moderna. A ênfase
estava no interrogatório de testemunhas e suspeitos, e não em
evidências físicas. A chave das investigações criminais, como tantas
outras coisas na cultura chinesa, era paciência, paciência, paciência.
Até o brilhante — e persistente — juiz Dee reinquiria o suspeito
dezenas de vezes até que fosse achada uma brecha em seu álibi ou
sua explicação. Então o juiz rasgava a história do sujeito até que o
suspeito entregasse o objetivo absolutamente importante da
investigação criminal na China: não um veredicto de juiz, e sim uma
confissão, seguida pelo igualmente importante voto de contrição.
Qualquer coisa que pudesse render uma confissão era justa — até a
tortura (ainda que, no tempo do juiz Dee, se você torturasse um
suspeito e depois descobrissem que ele era inocente, o próprio juiz
seria torturado e morto).
Sonny Li era xará de um grande gângster americano, Sonny
Corleone, filho do chefão Vito Corleone. Era um policial
experimentado e detetive na Primeira Prefeitura, Bureau de
Segurança da República Popular, Liu Guoyuan, Província de Fujian,
era um viajante do mundo e amigo do loaban Lincoln Rhyme. Li
extrairia do especialista em feng shui os outros endereços do
Fantasma, não importando o que custasse.
Continuou pela rua, passando por multidões agitadas, pelos
mercados de peixe onde havia cestos de caranguejos azuis
remexendo-se e caixas de gelo contendo mariscos e peixes — alguns
abertos, com os minúsculos corações pretos ainda batendo.
Chegou à Lucky Hope Shop, um lugar pequeno, mas cheio de
Mercadorias: vidros com raiz de ginseng retorcida, feixes de peixe
Seco, brinquedos Hello Ki y e doces para crianças, macarrão e
temperos, sacos empoeirados de arroz, potes de sementes de melão,
macarrão-estrela, chá para o fígado e o rim, cocoroca seca, molho de
ostra, lótus, geleia e chiclete, bolinhos de chá congelados e maços de
tripa.
Nos fundos achou um homem sentado a uma mesa, fumando
lendo um jornal em chinês. Como Li esperava, o escritório era
perfeitamente arrumado: espelhos convexos para prender a energia
ruim, um grande dragão de jade translúcido (melhor do que madeira
ou cerâmica) e — importante para negócios bem-sucedidos — um
pequeno aquário encostado na parede norte. Nele nadava um peixe
preto.
— O senhor é Jou? — perguntou Li.
— Sim, isso mesmo.
— Estou honrado em conhecê-lo, senhor. Estive no apartamento
de um amigo na Patrick Henry Street, 508. Acho que foi o senhor que
o arrumou.
Os olhos de Jou se estreitaram um milímetro, e em seguida ele
assentiu cautelosamente.
— Um amigo.
— Isso mesmo, senhor. Infelizmente preciso entrar em contato
com ele, e ele não está mais naquele apartamento. Esperava que o
senhor me dissesse onde ele pode estar. Seu nome é Kwan Ang.
Outra contração leve, leve, nas sobrancelhas do homem.
— Sinto muito, senhor. Não conheço ninguém com este nome.
— Que pena, Sr. Jou. Porque se o senhor o conhecesse e indicasse
outros lugares onde ele pudesse ser achado, haveria muito dinheiro
para o senhor. É importante que eu o ache.
— Não posso ajudar.
— O senhor sabe que Kwan Ang é um cabeça de cobra e
assassino. Suspeito que saiba disso. Posso ver em seus olhos. —
Sonny Li podia ler rostos do mesmo modo como Loaban podia ler
evidências.
— Não, o senhor está enganado. — O Sr. Jou começou a suar.
Gotas apareceram em seu couro cabeludo.
— Então — continuou Li — qualquer dinheiro que ele tenha
pago ao senhor tem sangue em cima. O sangue de mulheres e
crianças inocentes. Isso não o perturba?
— Não posso ajudá-lo. — Jou olhou para uma pilha de papéis em
sua mesa. — Agora preciso voltar ao trabalho.
Tap, tap...
Li estava batendo suavemente na mesa com sua pistola. Jou
olhou para ela com medo.
— Então o senhor deve ser considerado cúmplice dele. Talvez
seja sócio dele. O senhor é um cabeça de cobra também. Acho que é
isso.
— Não, não. Honestamente não sei do que o senhor está falando.
Sou simplesmente um praticante de feng...
— Ah — zombou Li. — Eu estou cansado disso. Vou ligar para o
INS e mandar que eles tomem conta a partir de agora. Eles podem
lidar com o senhor e sua família. — Li indicou com um gesto para
um conjunto de fotos de família na parede. Depois se virou para a
porta.
— Não precisa disso! — disse Jou rapidamente. — Senhor... o
senhor mencionou dinheiro antes?
— Cinco mil de uma cor.
— Se ele...
— Kwan nunca saberá sobre o senhor. O senhor será pago em
dinheiro vivo, pela polícia.
Jou enxugou o rosto na manga da camisa. Seu olhar varria o
tampo da mesa enquanto ele pensava.
Tap... tap... tap...
Finalmente Jou começou a falar: — Eu não tenho certeza do
endereço. Ele e o colega me pegaram aqui e me levaram ao
apartamento passando por becos. Mas se o senhor quiser pegá-lo,
vou lhe dizer o seguinte: ele esteve aqui há menos de cinco minutos.
Saiu logo antes do senhor entrar.
— O quê? O próprio Kwan Ang?
— Sim.
— Para onde ele foi?
— Quando saiu da loja eu vi que ele virou para a esquerda. Se
correr ainda pode encontrá-lo. Ele está carregando uma sacola
amarela com o nome da minha loja. Ele... Espere, senhor. Meu
dinheiro! Ei!
Mas Li estava correndo para fora da loja.
Na rua, virou para a esquerda e saiu correndo. Olhava em volta
freneticamente. Então, a cerca de cem metros de distância, viu um
homem de estatura mediana, com cabelos curtos e escuros,
carregando uma bolsa de compra amarela. Seu passo era familiar; Li
recordava-se, do navio. Sim, pensou, com o coração disparando de
empolgação, é o Fantasma.
Pensou que deveria tentar telefonar para Loaban ou Hongse. Mas
não podia se arriscar a que o sujeito escapasse. Foi atrás dele,
pegando a pistola no bolso.
Correndo, sem fôlego, diminuiu a distância rapidamente. Estava
ofegando alto à medida que se aproximava, e quando chegou mais
perto, o Fantasma parou. Enquanto ele começava a olhar em volta, Li
se escondeu atrás de uma lixeira. Quando olhou de novo, o cabeça
de cobra prosseguia pelo beco deserto.
Em Liu Guoyuan, Sonny Li tinha um uniforme azul-claro, luvas
brancas e um boné com aba de couro. Mas aqui ele parecia um
mensageiro. Não tinha nada para indicar que estava trabalhando
com o Departamento de Polícia de Nova York e Lincoln Rhyme.
Estava preocupado com a hipótese de, se alguém o visse prender o
Fantasma, achasse que ele próprio era um agressor, um bandido, e a
polícia iria prendê-lo, e o cabeça de cobra escaparia na confusão.
Por isso decidiu pegar o sujeito ali, no beco deserto.
Quando o Fantasma virou em outro beco, Li certificou-se de que
ninguém estivesse por perto, e simplesmente correu o mais rápido
possível, com a pistola na mão estendida.
Antes que o cabeça de cobra percebesse que estava sendo
perseguido, Sonny Li estava em cima dele, agarrando sua gola e
apertando a arma nas costas do sujeito.
O assassino largou a sacola amarela e começou a enfiar a mão
debaixo da camisa. Mas Li apertou a arma no pescoço do Fantasma.
— Não se mexa. — Pegou uma pistola grande no cinto do
prisioneiro e a enfiou no bolso. Depois girou o cabeça de cobra
rudemente para encará-lo. — Kwan Ang — entoou, depois recitou o
encantamento familiar: — Estou prendendo-o por violação das leis
orgânicas da República Popular da China.
Quando estava para continuar a litania e apresentar as ofensas
específicas, a voz de Li desbotou. Olhou para o pescoço do
Fantasma, cuja camisa tinha aberto quando ele estendera a mão para
pegar a pistola.
Viu uma bandagem branca colada no peito do homem.
E, pendurado numa tira de couro no pescoço do Fantasma,
estava um amuleto de pedra-sabão, na forma de um macaco.
Capítulo 40
Com os olhos arregalados de choque, Sonny Li recuou,
segurando a pistola apontada para o rosto do Fantasma.
— Você, você... — gaguejou ele.
Seus pensamentos estavam travados enquanto ele tentava
deduzir o que estava acontecendo. Finalmente sussurrou: — Você
matou John Sung na praia, pegou os documentos dele e o macaco de
pedra. Você esteve fingindo ser ele!
O Fantasma encarou-o atentamente. Depois sorriu.
— Nós dois andamos nos disfarçando um pouco, parece. Você
era um dos porquinhos do Fujou Dragon. — E assentiu. — Estava
esperando para me pegar no território americano, me prender e
entregar para a polícia daqui.
Li entendeu o que o sujeito fizera. Havia roubado o Honda
vermelho do restaurante na praia. Loaban e a polícia presumiram que
ele tinha ido para a cidade. Mas não, tinha enfiado o corpo de Sung
no porta-malas e escondido o carro perto da praia — onde ninguém
pensaria em procurá-lo. Depois havia causado em si mesmo um
ferimento superficial com sua arma e nadado de volta no oceano,
esperando ser resgatado pela polícia e o INS, que solicitamente o
transportaram para a cidade — primeiro ao hospital, e depois para a
autoridade de imigração.
Dez juízes do inferno, pensou Li de novo. Hongse não tinha a
menor ideia de que o ”doutor” era o próprio cabeça de cobra.
— Você estava usando a policial para descobrir onde estavam os
Chang e os Wu.
O Fantasma assentiu.
— Eu precisava de informação. Ela ficou feliz em fornecer. Agora
ele examinou Li mais atentamente. — Por que você fez isso,
homenzinho? Por que veio até aqui atrás de mim?
— Você matou três pessoas em Liu Guoyuan, minha cidade.
— Matei? Não me lembro. Estive lá há um ano, acho. Por que as
matei? Talvez merecessem.
Sonny Li estava pasmo ao ver que o sujeito nem se lembrava das
mortes.
— Não, você e um pequeno cabeça de cobra começaram a atirar.
Você matou três inocentes que estavam por perto.
— Então foi um acidente.
— Não, foi assassinato.
— Bom, escute, homenzinho, eu estou cansado e não tenho muito
tempo. A polícia está perto de achar os Chang e eu tenho de chegar
lá antes, depois sair do país e ir para casa. Então, cem mil de uma
cor. Dou em dinheiro agora mesmo.
— Não sou como a maioria dos agentes de segurança com quem
você está acostumado.
— Quer dizer que é mais cobiçoso? Então duzentos mil. — O
Fantasma gargalhou. — Você teria de trabalhar cem anos para
ganhar tanto dinheiro assim em Liu Guoyuan.
— Você está preso.
O sorriso no rosto do Fantasma se desbotou, percebendo que ele
falava sério.
— Isso vai acabar mal para sua mulher e seus filhos se você não
me soltar.
— Você vai morrer de barriga para baixo — rosnou Li. — Agora.
— Certo. Um agente de segurança honrado e honesto. Estou
surpreso... Qual é o seu nome, homenzinho?
Meu nome não é da sua conta. O Fantasma se ajoelhou nos
paralelepípedos. Li decidiu usar seus cadarços de sapato para
amarrar os pulsos do Fantasma. Então... de repente percebeu
chocado que a sacola de compras estava entre eles e que a mão
direita do Fantasma tinha desaparecido atrás dela.
— Não! — gritou.
A bolsa da Lucky Hope Shop explodiu na direção de Li quando o
Fantasma disparou através dela com uma segunda arma que tinha
escondido num coldre de tornozelo ou na meia.
A bala passou junto ao quadril de Li. Ele levantou sua mão num
gesto automático, encolhendo-se. Mas quando estava estendendo
sua pistola, o cabeça de cobra a havia derrubado de sua mão. Li
agarrou o pulso do Fantasma e tentou arrancar a Modelo 51 de seus
dedos. Juntos eles caíram nos paralelepípedos escorregadios e essa
arma também caiu no chão.
Desesperadamente, eles se grudaram, gadanhando e dando socos
quando podiam, mas principalmente se agarrando e tentando
alcançar uma das armas que estavam na rua perto deles. O Fantasma
deu um tapa no rosto de Li, atordoou-o e girou para longe, lutando
para tirar a Glock do bolso do policial.
Li se recuperou rapidamente e se chocou contra o Fantasma,
derrubando também esta arma. O joelho do policial acertou as costas
do assassino, tirando-lhe o fôlego. Ainda de costas para Li, ofegando
e gemendo de dor, o Fantasma lutou para ficar de joelhos. O braço
de Li permaneceu em volta da garganta do cabeça de cobra,
sufocando-o.
Sem conseguir ser parado, o Fantasma lutava na direção da
pistola.
Não deixe, não deixe!, pensava Li furiosamente. Ele é o homem que
mataria Hongse, o homem que mataria os Chang.
Que mataria Loaban também.
Não deixe!
Pegou a tira de couro no pescoço do Fantasma, a que prendia o
amuleto do macaco, e começou a puxar com força. O couro esticou.
As mãos do Fantasma balançavam inutilmente, e de sua garganta
vinha um ruído gorgolejante. O cabeça de cobra começou a tremer.
Seus calcanhares estavam quase fora do chão.
Solte, disse Sonny Li a si mesmo. Prenda-o. Não o assassine. Mas
não soltou. Puxou com cada vez mais força.
Até que o couro arrebentou.
A estatueta do macaco caiu no chão e se despedaçou. Li
cambaleou para trás, caindo com força no beco, batendo com a
cabeça nas pedras. Quase desmaiou.
Juízes do inferno...
O policial pôde ver debilmente o Fantasma, também de quatro,
ofegando e tossindo, segurando a garganta com uma das mãos
enquanto a outra tateava o chão em busca de uma arma.
Uma imagem veio à mente de Li: seu pai sério, repreendendo-o
por algum comentário tolo.
Então outra: os corpos das vítimas do Fantasma na cidade de Li,
na China, caídos ensanguentados na calçada diante do café.
E a imagem de outra visão terrível, uma que ainda não
acontecera: Hongse morta, caída no escuro. Loaban também, com o
rosto tão imóvel na morte quanto o corpo estivera em vida.
Sonny Li rolou de joelhos e começou a se arrastar na direção do
inimigo.

O ônibus da cena do crime deixou marcas de derrapagem com


seis metros na rua de Chinatown, que estava escorregadia com o
gelo que derretia das caixas diante de uma peixaria próxima.
Amelia Sachs, com o rosto sério, pulou, acompanhada pelo
agente Alan Coe, do INS, e Eddie Deng. Correram pelo beco de
cheiro forte em direção ao agrupamento de policiais uniformizados
da Quinta Delegacia. Os homens e mulheres estavam parados
casualmente, parecendo tranquilos como a polícia sempre ficava em
cenas de crime.
Até mesmo em cenas de homicídio.
Sachs foi parando e olhou para o corpo.
Sonny Li estava deitado de barriga para baixo nos
paralelepípedos imundos. Olhos parcialmente abertos, palmas
viradas Para o chão ao lado do corpo, no mesmo nível dos ombros,
como Se estivesse para fazer uma série de flexões.
Sachs parou, cheia do desejo de se ajoelhar e segurar a mão dele.
Tinha caminhado pela grade muitas vezes nos anos em que
trabalhava com Rhyme, mas esta era sua primeira cena com um
colega policial e, agora ela podia dizer, amigo.
Amigo de Rhyme também.
Mesmo assim resistiu à tentação do sentimentalismo. Afinal de
contas, esta não era uma cena de crime diferente de qualquer outra e,
como Lincoln Rhyme costumava observar, um dos piores elementos
de contaminação nas cenas eram os policiais descuidados.
Olhe para além, ignore quem é a vítima. Lembre-se do conselho
de Rhyme: desista dos mortos.
Bom, isso ia ser tremendamente difícil. Para os dois. Mas
especialmente para Lincoln Rhyme. Sachs tinha notado que nos
últimos dois dias Rhyme havia formado um elo improvável com
esse sujeito, o mais próximo de uma amizade que ele chegara desde
que ela o conhecia. Agora tinha consciência do silêncio doloroso de
mil conversas que jamais aconteceriam, de milhares de risos que
jamais seriam compartilhados.
Mas então pensou em outra pessoa: Po-Yee, filha de outra
provável futura vítima do homem que havia cometido este crime, se
não o achassem. E assim Sachs afastou a dor, do mesmo modo como
havia trancado e guardado sua pistola de competição Colt 45.
— Fizemos o que vocês pediram — disse outro policial, um
detetive de terno cinza. — Ninguém chegou mais perto do que isso.
Só o técnico legista apareceu. — Um movimento de cabeça na
direção do corpo. — Foi MCC
Iniciais da polícia, significando perfunctoriamente a categoria de
ausência de vida: morte confirmada na cena. O agente Coe andou
lentamente até ela.
— Sinto muito — disse ele, passando a mão pelo cabelo escarlate
dela. Mas parecia haver pouca tristeza genuína em sua voz.
— É.
— Ele era um bom homem.
— É, era. — Ela falou isso amargamente, pensando: e era um
policial tremendamente melhor do que você. Se você não tivesse
fodido com tudo ontem, teríamos apanhado o Fantasma. Sonny
ainda estaria vivo e Po-Yee e os Chang estariam em segurança.
Ela fez um gesto para os policiais.
— Preciso examinar a cena. Todo mundo poderia sair daqui.
Ah, cara, pensou Sachs, consternada pelo que tinha de fazer
agora — ainda que estivesse antecipando não a tarefa difícil e triste
de examinar a cena, e sim algo muito mais árduo.
Pôs o fone com microfone e o ligou ao rádio.
Certo. Vá em frente. Faça isso.
Ligou para a Central e foi conectada ao telefone.
Um estalo.
— Sim? — perguntou Rhyme.
— Estou aqui.
Uma pausa, e depois:
— E?
Ela sentiu-o tentando manter a esperança longe da voz.
— Ele está morto.
O criminalista não respondeu por um momento.
— Sei.
— Sinto muito, Lincoln — disse ela baixinho. Outra pausa e ele
falou: — Nada de primeiros nomes, Sachs. Dá azar, lembra? — A
voz dele quase falhou. — Certo. Continue. Examine a cena. O tempo
está correndo para os Chang.
— Claro, Rhyme. Estou indo.
Vestiu rapidamente o macacão de Tyvek e passou a processar a
cena. Fez as raspagens nas unhas, tirou as amostras de substâncias,
fez a balística, tirou as pegadas, coletou os cartuchos, as balas. Tirou
as fotos, tirou as digitais.
Mas sentiu que estava apenas cumprindo uma rotina. Qual é,
disse rispidamente a si mesma. Você está agindo como uma droga
de um recruta. Não temos tempo para ficar somente coletando
indícios. Pense em Po-Yee, pense nos Chang. Dê a Rhyme algo com
que ele possa trabalhar. Pense!
Virou-se de novo para o corpo e o processou com mais cuidado,
avaliando tudo que achava, exigindo na mente que cada pedacinho
de indícios se explicasse, oferecesse uma explicação do lugar de
onde tinha vindo, do que poderia significar.
Um dos policiais uniformizados foi até ela, mas ao ver seu rosto
Pétreo recuou depressa.
Meia hora depois ela havia terminado de ensacar tudo, tinha
escrito seu nome nos cartões de cadeia de custódia e juntado as
evidências.
Deu outro telefonema ao criminalista.
— Vá em frente — disse Rhyme, sério. Como doía ouvir a dor na
voz dele! Durante anos ela ouvira tanta emoção chapada, tanta
letargia, tanta resignação! Isso fora difícil, mas não se comparava à
dor que havia agora na voz de Rhyme.
— Ele levou três tiros no peito, mas temos quatro cartuchos. Um
cartucho é de uma Modelo 51, provavelmente a que vimos antes. Os
outros são de 45. Ele foi morto com essa arma, parece. Depois achei a
Walther que Sonny estava usando. Havia traços de substâncias em
sua perna — flocos de papel amarelo e algum tipo de planta seca. E
havia uma pilha do mesmo material no chão.
— Qual é sua hipótese, Sachs?
— Acho que Sonny viu o Fantasma deixando uma loja, levando
alguma coisa numa sacola amarela. Sonny foi atrás dele. Abordou-o
no beco aqui e pegou a arma nova do Fantasma, a 45. Presumiu que
fosse a única arma dele. Sonny relaxou e disse ao Fantasma para se
deitar no chão. Mas o Fantasma sacou a arma de reserva, a Modelo
51, e atirou através da bolsa, espalhando a planta seca e flocos de
papel sobre Sonny. A bala errou, mas o Fantasma pulou em cima
dele. Houve uma briga. O Fantasma pegou a 45 e matou Sonny.
— Como o papel amarelo e a planta estavam nas pernas de
Sonny — disse Rhyme, o fantasma estava com a Modelo 51 num
coldre de tornozelo e disparou baixo. O resíduo de pólvora estava
alto no corpo dele, da 45.
É o que parece.
— E como nós usamos essa hipótese?
— Qualquer que seja o lugar onde o Fantasma comprou a coisa
que estava na bolsa, um vendedor deve conhecê-lo e ter ideia de
onde ele mora.
— Quer examinar todas as lojas por aí para ver qual tem sacolas
amarelas?
— Não, isso demoraria demais. Seria melhor descobrir primeiro o
que é a planta.
— Traga, Sachs. Mel vai passar no cromatógrafo.
Não, tenho uma ideia melhor — disse ela. E olhou para o corpo
de Sonny. Forçou-se a desviar a vista. — Provavelmente é uma erva
ou tempero chinês. Vou passar no apartamento de John Sung com
uma amostra. Ele deve poder dizer imediatamente o que é. Ele mora
a poucos quarteirões daqui.
V
TUDO NO SEU DEVIDO TEMPO

Quarta-feira, da Hora do Galo, 18h45,


a Domingo, na Hora do Macaco, 15h.

Para realizar a captura (...) os homens do oponente devem estar


totalmente cercados
sem qualquer local adjacente vazio (...). Exatamente como na guerra,
quando um posto é cercado, os soldados são feitos prisioneiros pelo
inimigo.

DANIELLE PECORINI e TONG SHU


The Game of Wei-Chi
Capítulo 41
Ele olhou pela janela, para o crepúsculo cinzento, prematuro por
causa da tempestade que se aproximava. Sua cabeça tombou para a
frente, pesada, pesada, imóvel. Isso não se devia a fibras nervosas
danificadas, e sim à tristeza. Rhyme estava pensando em Sonny Li.
Quando comandava a unidade forense ele tivera de contratar
dezenas, provavelmente centenas de funcionários e conseguir por
meios tortuosos — ou pressão — homens e mulheres de outras áreas
porque sabia que eles eram policiais muito bons. Não podia dizer
exatamente o que o atraía naquelas pessoas. Ah, claro, elas possuíam
qualificações que estavam no manual: persistência, inteligência,
paciência, energia, grande capacidade de observação, empatia.
Mas havia outra qualidade. Uma coisa que, apesar de todo o seu
eu racional, Rhyme não podia definir, apesar de reconhecê-la
imediatamente. Não havia modo melhor de definir do que o desejo
— até mesmo a alegria — de perseguir uma presa a todo custo
Independentemente de qualquer defeito de Sonny Li — seus
cigarros nas cenas de crime, sua confiança em presságios e no fator
woo-woo, ele possuía esse aspecto essencial. O policial tinha viajado
literalmente até o fim do mundo para pegar seu suspeito. Rhyme
teria trocado uma centena de recrutas ansiosos e uma centena de
veteranos cínicos por um policial como Sonny Li: um homem
pequeno que não queria nada mais do que oferecer aos cidadãos de
sua área alguma retribuição pelos danos que lhes haviam sido feitos,
alguma justiça, algum conforto depois do mal. E como recompensa
Li sentia-se contente em desfrutar de uma boa caçada, um desafio e,
talvez, só um pouquinho de respeito das pessoas de quem gostava.
Olhou para o livro que tinha autografado para Li.
Ao meu amigo...
— Certo, Mel — disse finalmente. — Vamos ver isso. O que
temos? Mel Cooper estava curvado sobre os sacos plásticos que o
patrulheiro tinha trazido rapidamente da cena do crime em
Chinatown.
— Pegadas.
— Temos certeza que são do Fantasma?
— Sim, são idênticas — confirmou Cooper olhando para as
gravuras eletrostáticas tiradas por Sachs.
Rhyme concordou em que eram iguais.
— Agora as balas. — Ele estava examinando duas balas, uma
achatada, uma intacta, ambas ensanguentadas. — Verifique as
ranhuras.
Estava se referindo às marcas angulares deixadas na bala de
chumbo macio pelas reentrâncias no cano da arma — as fendas
espirais que fazem a bala girar para ir mais rápido e com mais
precisão. Examinando o número de fendas e o ângulo de torção, um
especialista em balística costuma ser capaz de determinar o tipo de
arma usada.
Usando luvas de látex, Cooper mediu a bala não danificada e as
marcas gravadas na lateral pelas ranhuras do cano.
— É uma ACP quarenta e cinco. Perfil octogonal nas ranhuras,
torção para a direita. Acho que uma volta completa a cada trinta e
oito, quarenta centímetros. Vou ver isso quando...
— Não se incomode — disse Rhyme rapidamente. — É uma
Glock.
— As pistolas austríacas, pouco sensuais mas confiáveis, eram
cada vez mais populares no mundo, tanto entre criminosos quanto
entre policiais. — Qual é o desgaste do cano?
— Perfil agudo.
— Então é nova. Provavelmente a G36.
Ele estava surpreso. Essa arma compacta mas extremamente
poderosa era cara, e ainda não era muito fácil de achar. Nos Estados
Unidos era mais fácil ser encontrada entre os agentes federais.
Isso é útil, é útil?, perguntou-se.
Ainda não. Tudo que lhes dizia era o tipo da arma, não onde a
arma ou a munição fora comprada. Mesmo assim, era uma prova, e
devia ir para a tabela.
— Thom... Thom! — gritou Rhyme. — Precisamos de você!
O ajudante apareceu imediatamente.
— Há outras coisas que eu tenho que...
— Não. Não há outras coisas. Escreva.
O ajudante devia ter sentido a perturbação de Rhyme com a
morte de Sonny Li e não disse nada em resposta à ordem ríspida.
Pegou o marcador e foi até o quadro branco.
Então Cooper abriu as roupas de Li sobre uma grande folha de
papel jornal limpo. Espanou as peças com uma escova e examinou as
substâncias que tinham caído no papel.
— Poeira, flocos de tinta, as partículas de papel amarelo que
provavelmente eram da sacola e a planta seca — tempero ou erva
que Amelia mencionou — disse Cooper.
— Ela está verificando a planta agora. Só ponha num saco e deixe
de lado por enquanto. — Rhyme, que no correr dos anos tinha ficado
imune ao horror das cenas de crime, mesmo assim sentiu uma
pontada ao olhar o sangue escuro nas roupas de Li. As mesmas
roupas que ele estava usando nesta mesma sala há não muito tempo.
Zaijian, Sonny. Adeus.
— Raspagem das unhas — anunciou Cooper, examinando o
rótulo em outro saco plástico. Pôs a substância numa lâmina no
microscópio duplo.
— Projete, Mel — disse Rhyme, e se virou para a tela do
computador. Um instante depois uma imagem clara apareceu na
grande tela plana. O que temos aqui, Sonny? Você lutou com o
Fantasma, agarrou-o. Haveria alguma coisa nas roupas ou nos
sapatos dele que foi transferida para você? E, neste caso, será que a
coisa vai nos mandar à porta dele?
— Tabaco — disse o criminalista, rindo triste, pensando no vício
do policial. — O que mais vemos? O que são esses minerais aí? O
que acha, Mel? Silicatos?
— Parece. Vamos passar um pouco no cromatógrafo.
O cromatógrafo/espectrômetro de massa determinaria
exatamente o que era a substância. Logo os resultados vieram —
magnésio e silicato.
— Isso é talco, certo?
— É.
O criminalista sabia que pó de talco era comumente usado por
algumas pessoas como desodorante, por trabalhadores que usavam
luvas de borracha apertada e pelos que realizavam certas práticas
sexuais usando roupas de látex.
— Conecte-se e descubra tudo que pode descobrir sobre talco e
silicato de magnésio.
— Vou fazer isso.
Enquanto Cooper digitava loucamente, o telefone de Rhyme
tocou. Thom atendeu e pôs a ligação no viva-voz.
— Alô? — perguntou ele.
— O Sr. ... Rhymes, por favor.
— Meu nome é Rhyme, sim. Quem quer falar?
— O Dr. Arthur Winslow do Centro Médico de Huntington.
— Sim, doutor?
— Há um paciente aqui, um chinês. O nome dele é Sen. Ele foi
mandado para cá depois de ser resgatado pela Guarda Costeira, de
um navio afundado no litoral norte.
Não exatamente pela Guarda Costeira, pensou Rhyme. Mas falou: —
Vá em frente.
— Disseram que devíamos contatar o senhor assim que
tivéssemos novidades sobre ele.
— Isso mesmo.
— Bom, acho que há uma coisa que o senhor deveria saber.
— E o que é? — perguntou Rhyme lentamente, ainda que o que
desejava dizer fosse de fato Vá ao ponto.

Ele tomou o café amargo a contragosto.


William Chang, de dezessete anos, estava sentado nos fundos do
Starbucks não muito longe do apartamento da família no Brooklyn.
Queria chá Po-nee — como sua mãe o preparava, fervido numa velha
panela de ferro —, mas continuou tomando o café como se fosse
viciado naquela bebida turva e amarga. Porque era isso que o ba-tu
com um topete enorme à sua frente estava bebendo; para William,
beber chá pareceria uma fraqueza.
Usando a mesma jaqueta de couro preto com a qual tinha
aparecido no dia anterior, o garoto — que só se identificou como
Chen terminou a conversa num minúsculo telefone Nokia e prendeu
o aparelho de novo no cinto. Fez questão de olhar a hora em seu
Rolex de ouro.
— O que aconteceu com a arma que lhe vendi ontem? —
perguntou em inglês.
— Meu pai achou.
— Babaca. — Ele se inclinou para a frente, com ar agourento.
Não disse a ele onde conseguiu, disse?
— Não.
— Se contar a alguém sobre nós, nós matamos você.
William Chang, endurecido pela vida como filho de dissidente,
sabia não ceder o mínimo para gente assim.
— Não contei porra nenhuma a ninguém. Mas preciso de outra
arma.
— Ele vai achar essa também.
— Não vai. Vou ficar com ela. Ele não vai me revistar.
Chen olhou para uma garota chinesa de cabelos compridos ali
perto. Quando viu que ela parecia estar lendo um livro de faculdade,
perdeu o interesse. Olhou William de cima a baixo e perguntou:
— Ei, quer um aparelho de DVD? Um Toshiba. É legal. Duzentos.
Uma TV de tela plana? Oitocentos.
— Quero uma arma. É só o que eu quero.
— E por que não arranja umas roupas melhores? Você parece um
merda.
— Vou arranjar roupas depois.
— Hugo Boss, Armani. Posso conseguir o que você quiser.
Tomando o café, ele examinou William atentamente. — Ou pode
vir conosco uma noite dessas. Na semana que vem nós vamos a um
depósito no Queens. Eles vão receber mercadoria. Sabe dirigir?
— É, eu sei dirigir. — William olhou pela vitrine. Não viu sinal
do pai.
— Você tem colhões, não tem? — perguntou o ba-tu.
— Acho que sim.
— Sua tríade roubava lugares em Fujian?
William não tinha exatamente uma tríade, só uns amigos que
ocasionalmente roubavam carros e de vez em quando furtavam
bebidas e cigarros em lojas.
— Bom, a gente atacou num monte de lugares.
— Qual era o seu serviço?
— Vigiava, dirigia na fuga.
Chen pensou um momento e depois perguntou: — Certo. A
gente está dentro de um armazém. Você na campana e vê um
segurança vindo na nossa direção. O que você faz? Mata ele?
— O que é isso, uma porra de um teste?
— Só responda. Você tem colhão pra matar ele?
— Claro. Mas não mataria.
— Por quê?
William deu um riso de desprezo.
— Porque só um idiota seria executado por causa de umas
roupas.
— Quem disse roupas?
— Você. Armani, Boss.
— Bom, há um guarda. Responda. Que porra você faria?
— Eu iria por trás dele, pegava a arma dele e o deixava de
barriga no chão até vocês colocarem todas as roupas no veículo da
fuga. Depois eu mijaria nele.
Chen franziu a testa.
— Mijaria? Por quê?
— Porque a primeira coisa que ele faria seria trocar a roupa —
antes de ligar para a polícia. Para os canas não acharem que ele
mijou nas calças Isso daria tempo pra gente se mandar. E ele não vai
se machucar, de modo que os policiais não podem acusar a gente de
agressão.
Foi o que William tinha ouvido de uma gangue que agia no porto
perto de Fujou.
Chen não ia se deixar impressionar. Mas falou: — Você vai ao
Queens com a gente. Encontro você aqui amanhã à noite. Vou trazer
umas pessoas.
— Vou ver. Preciso voltar agora. Meu pai vai notar que eu saí.
Ele pegou um punhado de dólares no bolso e os mostrou ao ba-
tu. — O que você tem?
— Vendi a você a única boa que eu tinha. A neném cromada.
— Era uma merda. Quero uma arma de verdade.
— Você realmente tem colhão. Mas também tem boca. É melhor
se cuidar. Tudo que tenho é um Colt 38. É pegar ou largar.
— Carregado?
Chen pegou a arma dentro da bolsa.
— Três tiros.
— Só isso?
— Como eu falei, é pegar ou largar.
— Quanto?
— Quinhentos.
William deu um riso áspero.
— Trezentos ou eu vou embora.
Chen hesitou, depois assentiu.
— Só porque gostei de você.
Os dois olharam o Starbucks em volta. A bolsa foi trocada pelo
dinheiro.
Sem dizer palavra, William se levantou.
Chen disse: — Amanhã. Às oito. Aqui.
— Vou tentar.
— Mijar nele! — disse Chen, rindo ao lembrar, e se virou para o
seu café.
Do lado de fora, William começou a andar rapidamente pela
calçada, afastando-se do Starbucks.
A figura saiu do beco, vindo rapidamente em sua direção.
William parou, espantado. Sam Chang foi até o filho.
O garoto começou a andar de novo, depressa, de cabeça baixa.
— E então? — perguntou Chang andando ao lado do filho.
— Consegui, baba.
— Dê para mim.
Ele passou a sacola ao pai, que a fez desaparecer no bolso.
— Não disse a ele o seu nome...
— Não.
— Não mencionou o Fantasma ou o Dragon...
— Não sou idiota — disse William com rispidez. — Ele não faz a
menor ideia de quem somos.
Os dois andaram em silêncio uns minutos.
— Ele cobrou o dinheiro todo?
William hesitou e começou a dizer alguma coisa. Depois enfiou a
mão no bolso e entregou os cem dólares que restavam dos que o pai
lhe dera para comprar a arma.
Enquanto se aproximavam da casa, Chang disse ao filho: — Vou
colocá-la no armário da frente. Só vamos usar se o Fantasma tentar
entrar. Nunca leve com você para lugar nenhum. Entendido?
— Cada um de nós deveria ter uma e andar sempre com ela.
— Entendido? — repetiu Chang com firmeza.
— Sim.
Chang tocou o braço do filho.
— Obrigado, filho. Foi uma coisa corajosa que você fez.
Você realmente tem colhão...
— Yeye teria orgulho de você — acrescentou o pai.
William quase falou: Yeye ainda estaria vivo se não fosse você.
Mas ficou quieto. Chegaram à porta do apartamento. Chang e
William olharam em volta. Ninguém os havia seguido desde a
cafeteria. Entraram rapidamente.
Enquanto Chang escondia a arma na prateleira de cima do
armário — onde só ele e William poderiam alcançar —, o garoto se
deixou cair no sofá perto do irmão e da menininha. Pegou uma
revista e folheou.
Mas prestava pouca atenção nas matérias. Estava pensando no
que Chen havia pedido. Será que ele deveria se encontrar com os
outros membros da tríade amanhã à noite?
Achava que não. Mas não tinha certeza. Tinha aprendido que
nunca era má ideia manter as opções abertas.
Capítulo 42
John Sung tinha trocado de roupa. Estava usando um suéter com
gola rulê — o que parecia estranho no calor, mas fazia-o parecer bem
elegante — e novas calças de trabalho. Estava agitado e parecia
distraído, sem fôlego.
— Você está bem? — perguntou Amelia Sachs.
— Ioga — explicou ele. — Eu estava fazendo exercícios. Chá?
— Não posso ficar muito tempo. — Eddie Deng tinha voltado
para a Quinta Delegacia, mas Alan Coe esperava por ela lá embaixo,
no ônibus de cena do crime.
Ele levantou uma sacola.
— Aqui está o que eu queria lhe dar. As ervas da fertilidade de
que lhe falei ontem à noite.
Ela pegou a sacola distraidamente.
— Obrigada, John.
— O que há de errado? — perguntou ele, examinando o rosto
perturbado de Amelia. Fez um gesto para ela entrar e indicou o sofá-
— Sabe aquele policial chinês que estava nos ajudando? Foi
achado morto há cerca de uma hora.
Sung fechou os olhos um momento e suspirou.
— Foi um acidente? Ou o Fantasma o pegou?
— O Fantasma.
— Ah, não. Sinto muito.
— Eu também. — Ela falou isso bruscamente, descartando a
emoção no melhor estilo de Lincoln Rhyme. Em seguida enfiou a
mão no bolso e pegou um saco plástico com o material que tinha
achado na cena do crime. — Nós achamos isto no lugar onde ele foi
assassinado.
— Onde?
— Em Chinatown. Não muito longe daqui. Imaginamos que
sejam ervas ou temperos que o Fantasma comprou. Rhyme esperava
que, se nós pudéssemos deduzir o que é, talvez pudéssemos achar a
loja onde ele comprou. Talvez um dos empregados possa saber onde
o Fantasma mora.
Ele assentiu.
— Deixe-me ver. — Sung abriu o saco e derramou um pouco do
conteúdo na bancada. Curvou-se, inalou o aroma e examinou a
substância. Ela pensou que Lincoln Rhyme usaria um cromatógrafo
de gás e um espectrômetro de massa para fazer exatamente a mesma
coisa, separando a mistura em seus componentes e identificando-os.
Finalmente ele disse: — Sinto cheiro de astrágalo, gengibre, poria,
talvez um pouco de ginseng e alisma. — Ele balançou a cabeça. Sei
que gostaria que eu dissesse que só é vendida em uma ou duas lojas.
Mas acho que é possível comprar em qualquer herbanário, farmácia
ou mercearia na China. Acho que deve ser o mesmo aqui.
Desencorajada, ela pensou em outra coisa.
— Para que isso serve? Talvez o Fantasma estivesse sofrendo de
alguma doença ou ferimento, e elas poderiam ajudar a rastreá-lo
através de outros médicos, como fizeram com a mulher de Wu
Qichen.
— É mais um tônico comum do que um remédio. Melhora a
resistência, tonifica o seu qi. Muitas pessoas usam para melhorar a
experiência sexual. Supostamente ajuda os homens a manter a
ereção Por mais tempo. Não se destina a tratar de uma doença
específica.
Lá se foi a teoria, pensou Sachs, triste.
— Você poderia verificar as lojas próximo ao lugar onde o
policial foi morto — sugeriu Sung. — Mas acho que já pensaram
nisso.
É o que teremos de fazer — disse ela balançando afirmativamente
a cabeça. — Talvez a gente consiga alguma coisa. — Ela começou a
se levantar e franziu a testa quando a dor atravessou seu ombro um
músculo que havia luxado no Fujou Dragon.
Está tomando seus remédios? — perguntou ele num tom de falsa
censura.
— Sim, estou. Mas sabe como o gosto é nojento?
— Você pode beber cerveja por prazer. Aqui, sente-se de novo.
Ela hesitou posicionando-se doloridamente no sofá. Ele chegou mais
perto, por trás. Sachs podia sentir-lhe a proximidade pelo modo
como o ruído ambiente na sala se calou. Depois sentiu as mãos dele
no ombro quando começaram a apertar — a princípio suavemente,
depois com força, sondando mais.
O rosto dele estava perto de sua nuca, a respiração acariciando
seu pescoço. As mãos subiam e desciam pela pele, apertando com
força, mas logo abaixo do nível de dor. Era relaxante, sim, mas ela se
sentiu momentaneamente desconcertada quando as palmas e os
dedos dele quase rodearam sua garganta.
— Relaxe — sussurrou ele naquela sua voz calma. Ela tentou.
As mãos dele deslizaram até os ombros e desceram pelas costas.
Foram para a frente ao longo das costelas e pararam antes de tocar
os seios, e voltaram de novo à coluna e ao pescoço.
Imaginando se realmente haveria alguma coisa que ele pudesse
fazer por ela — para melhorar a chance de ter um filho com Rhyme.
Secura nos rins...
Fechou os olhos e se deixou perder na massagem poderosa.
Sentiu que ele chegou mais perto, aparentemente para conseguir
melhor apoio. Ele estava apenas a centímetros de distância. Suas
mãos subiram mais uma vez pela coluna até o pescoço, envolvendo-
o. A respiração dele estava saindo rapidamente — pelo esforço,
supôs ela.
— Por que não tira esse cinto com a arma? — sussurrou ele.
— Carma ruim?
— Não. — Ele riu. — Está interferindo em sua circulação.
Ela estendeu a mão para a fivela e começou a abrir. Sentiu a mão
dele fechar-se em volta da grossa tira de náilon para ajudá-la a
remover o cinto.
Mas então um som áspero os interrompeu — seu celular tocando.
Ela se afastou e tirou o aparelho do cinto — Alô? Aqui é...
— Sachs, prepare-se para circular.
— O que você tem, Rhyme?
Por um momento não houve resposta, enquanto ela ouvia mais
alguém na sala falando com o criminalista. Um momento depois ele
voltou à linha.
— O capitão do navio, Sen, está consciente. Eddie Deng está na
outra linha, entrevistando-o... Espere aí. — Vozes, gritos. Rhyme
ordenando: — Bom, nós não temos tempo. Agora, agora, agora!...
Escute, Sachs, o capitão passou algum tempo no depósito do Dragon.
Ele entreouviu Chang falando com o pai. Parece que algum parente
ou amigo arranjou um apartamento e um emprego para a família no
Brooklyn.
— Brooklyn? E quanto ao Queens?
— Sam Chang é esperto, lembra? Tenho certeza que ele disse
Queens para despistar todo mundo. Eu reduzi o âmbito da área
onde acho que eles estão... em Red Hook ou Owls Head.
— Como sabe?
— De que outro jeito, Sachs? Os traços nos sapatos do velho,
biossólidos. Lembra? Há duas estações de tratamento de esgotos no
Brooklyn. Eu tendo a favor de Owls Head. É mais residencial e mais
perto de Sunset Park, a comunidade chinesa de lá. Eddie Deng está
mandando o pessoal dele da Quinta Delegacia ligar para as gráficas
e oficinas de pintura de cartazes em Owls Head. Lon está colocando
a USE em alerta. E o INS também está montando uma equipe. Quero
você lá. Aviso assim que conseguir o endereço.
Ela olhou para Sung.
— John, Lincoln achou o bairro dos Chang. Estou indo para lá
agora.
— Onde eles estão?
— No Brooklyn.
— Ah, muito bem. Estão em segurança?
— Até agora.
— Posso ir? Posso ajudar a traduzir. Chang e eu falamos o
mesmo dialeto.
— Claro. — Sachs disse ao telefone: — John Sung vai comigo e
Coe. Ele vai traduzir. Estamos indo, Rhyme. Ligue quando tiver o
endereço.
Eles desligaram e Sung entrou no quarto. Um instante depois
saiu, usando um agasalho largo.
— Não está frio lá fora — disse Sachs.
— Sempre se mantenha quente. É importante para o qi e o
sangue. Então Sung a encarou e segurou-a pelos ombros. Sachs
reagiu com um sorriso de curiosidade. Com sinceridade na voz, ele
disse: — Você fez uma coisa muito boa achando essas pessoas,
Yindao. Ela parou e o encarou com curiosidade.
— Yindao
— É meu apelido para você em chinês. ”Yindao”. Significa
”grande amiga”.
Sachs ficou muito comovida com isso. Apertou a mão dele.
Depois recuou.
— Vamos achar os Chang.
Na rua diante de seu esconderijo, o homem de muitos nomes —
Ang Kwan, Gui, o Fantasma, John Sung — estendeu a mão e apertou
a de Alan Coe, que, aparentemente, era agente do INS.
Isso lhe deu alguma preocupação, porque achava que Coe fizera
parte de um grupo de policiais chineses e americanos que o
perseguiu na China. A força-tarefa havia chegado perto dele,
perturbadoramente perto, mas o bangshou do Fantasma tinha feito
alguma investigação e descoberto que uma jovem mulher que
trabalhava numa empresa onde o Fantasma fazia negócios vinha
dando ao Si e à polícia informações sobre suas operações como
cabeça de cobra. O bangshou tinha sequestrado a mulher, torturado
para descobrir o que ela dissera ao INS e depois enterrado seu corpo
no terreno de uma construção.
Mas aparentemente Coe não fazia ideia de como era fisicamente
o Fantasma. O cabeça de cobra lembrou-se que estivera usando a
máscara de esquiador quando tentou matar os Wu na Canal Street,
ninguém teria conseguido ver seu rosto.
Yindao explicou o que Rhyme tinha ficado sabendo, e os três
entraram num furgão da polícia — Coe subindo atrás, antes que o
Fantasma pudesse ocupar aquele assento estrategicamente melhor,
como se o agente não confiasse num estrangeiro ilegal sentado atrás
dele. Afastaram-se da calçada.
Pelo que Yindao estava dizendo a Coe, o Fantasma soube que
haveria outros policiais e agentes do INS no apartamento dos Chang.
Quando Yindao chegara ao apartamento dele há alguns instantes,
Yusuf e outro uigur estavam lá. Os turcos haviam entrado no
banheiro antes que o Fantasma abrisse a porta da frente e, mais
tarde, quando ele foi pegar a arma e o agasalho, tinha dito para
seguirem o carro de polícia de Yindao. No Brooklyn os turcos e o
Fantasma juntos matariam os Chang.
Olhando para trás, notou o Windstar de Yusuf atrás deles,
separados por vários carros.
E quanto a Yindao? Ele talvez tivesse que esperar até o dia
seguinte para a conexão íntima.
Naixin, refletiu.
Tudo no seu devido tempo.
Imagens sobre trepar com ela encheram seus pensamentos agora:
rapidamente se perdeu nas contínuas fantasias sobre Yindao, que
haviam se tornado cada vez mais poderosas desde que a vira pela
primeira vez na praia — nadando para salvá-lo. Na noite anterior ele
lhe fizera apenas um casto tratamento de acupressura, acompanhado
por um papo furado dizendo que ajudava no tratamento de
fertilidade. A próxima reunião seria muito diferente. Ele a levaria a
um lugar onde poderia exercer todas as fantasias que vinham se
enredando em seus pensamentos.
Yindao presa embaixo dele, retorcendo-se, gemendo.
De dor.
Gritando.
Agora ele estava muito excitado, e usou a desculpa de se virar
para falar com Coe para esconder a prova de seu desejo. Começou
uma conversa sobre as diretrizes do INS para asilo político. O agente
foi grosseiro, rude e claramente desdenhoso, mesmo com o homem
que ele pensava que o Fantasma era: um pobre médico viúvo, um
dissidente que amava a liberdade, procurando um lar melhor para a
família, inofensivo e disposto a trabalhar duro.
Manter os porquinhos fora do país a todo custo, estava dizendo o
agente. A mensagem por trás das palavras era que eles não serviam
para ser americanos. A política e a moralidade da imigração ilegal
não significavam nada para o Fantasma, mas ele se perguntou se Coe
sabia que havia proporcionalmente menos sino-americanos
dependentes da previdência social do que pessoas de qualquer outra
nacionalidade, inclusive brancos americanos. Será que ele sabia que
o nível de educação era mais alto, a incidência de falências e
sonegação de impostos muito menor?
Ia lhe dar prazer matar esse homem, e lamentava não ter tempo
para que fosse uma morte demorada.
O Fantasma olhou para as pernas de Yindao e sentiu de novo a
agitação no baixo-ventre. Lembrou-se de estarem sentados juntos no
restaurante, na véspera, compartilhando a honesta avaliação que ele
fazia de si mesmo.
Quebra os caldeirões e afunda os barcos...
Por que tinha se aberto para ela desse jeito? Era tolice. Ela podia
ter captado quem ele era, ou pelo menos suspeitado. Ele nunca fora
tão franco com ninguém ao descrever sua filosofia de vida.
Por quê?
A resposta tinha de ser algo mais do que o desejo de possuí-la
fisicamente. Ele havia sentido paixão por centenas de mulheres, mas
mantivera a maioria dos sentimentos íntimos em segredo antes,
durante e depois do ato. Não, havia mais alguma coisa em Yindao.
Ele achava que era o seguinte: o Fantasma reconhecia nela algo de
sua própria alma. Havia muito poucas pessoas que o entendiam...
com quem ele podia falar.
Mas Yindao era esse tipo de mulher, acreditava ele.
Enquanto Coe falava interminavelmente da necessidade de
quotas e do fardo sobre a previdência social devido à imigração
ilegal, chegando a citar fatos e números, o cabeça de cobra estava
pensando em como era triste não poder levar essa mulher com ele
para lhe mostrar as belezas de Xiamen, caminhar com ela em volta
do templo Nanputou — um gigantesco mosteiro budista — e então
levá-la para tomar uma sopa de amendoim ou comer macarrão junto
ao mar.
Mas não havia dúvida de que não hesitaria em fazer o que havia
planejado — levá-la a uma fábrica ou um armazém deserto e passar
cerca de uma hora realizando sua fantasia implacável. E matá-la
depois, claro. Como a própria Yindao tinha dito, ela também
quebraria os caldeirões e afundaria os barcos; depois de saber que
ele era o Fantasma, não descansaria enquanto não o matasse ou
prendesse. Ela precisava morrer.
O Fantasma olhou de novo para Coe com um sorriso, como se
concordasse com o que o sujeito dizia. O cabeça de cobra se
concentrou para além do agente. Yusuf e o outro uigur continuavam
seguindo o carro da polícia. Yindao não tinha notado o furgão.
— O que foi isso? — perguntou-lhe Yindao.
— Uma oração. Espero que Guan Yin nos ajude a achar a casa
dos Chang.
— Quem é esse?
— A deusa da misericórdia — foi a resposta, mas não veio do
Fantasma, e sim do solícito agente Alan Coe, no banco de trás.
Capítulo 43
Dez minutos depois o telefone de Lon Selli o tocou. Rhyme e
Cooper olharam-no numa antecipação fascinada. O detetive atendeu
ao telefonema. Ouviu. Depois seus olhos se fecharam e ele abriu um
sorriso.
— Eles acharam o endereço dos Chang! — gritou e desligou. Era
um dos patrulheiros da Quinta. Ele achou um cara em Owls Head
que é dono de duas gráficas. O nome é Joseph Tan. Nosso sujeito
disse a ele que a família estaria morta dentro de umas duas horas se
não achássemos onde ela estava. Tan abriu a guarda e admitiu que
tinha arranjado um emprego para Chang e o filho, e tinha-os
colocado num apartamento.
— Ele tem o endereço?
— Tem. A dois quarteirões da estação de tratamento de esgoto.
Deus ama a merda, o que posso dizer?
Rhyme pensou na oração igualmente irreverente de Sonny Li
para o deus dos policiais.
Guan Vi, por favor, deixe-nos achar os Chang e pegar a porra do
Fantasma.
Girou a cadeira para a frente do quadro branco. Olhou para as
tabelas, para as fotos de evidências.
— Vou ligar para Bo e o INS e vamos mandar todo mundo —
disse Selli o.
— Espere um minuto — retrucou o criminalista.
— Qual é o problema?
— Uma coceira — disse Rhyme lentamente. — Estou com uma
coceira. — Sua empolgação inicial por ter localizado os Chang se
desbotou.
A cabeça de Rhyme se moveu lentamente de um lado para o
outro enquanto absorvia as anotações feitas cuidadosamente por
Thom, as fotos e as outras evidências deste caso — cada uma se
somando a toda a história lamentável, como hieróglifos em antigas
tumbas egípcias.
Fechou os olhos e deixou essas informações se acelerarem por
sua mente tão depressa quanto Amelia no Camaro.
A resposta está aqui, pensou Rhyme, abrindo os olhos de novo e
olhando as anotações.
O único problema é que não sei qual é a pergunta.
Thom apareceu junto à porta.
— Hora de um pouco de EAM — disse o ajudante.
Os exercícios de amplitude de movimento eram importantes para
os tetraplégicos. Impediam a atrofia dos músculos, melhoravam a
circulação e além disso tinham um benefício psicológico — que
Rhyme desconsiderava em público. Mesmo assim, suas sessões eram
parcialmente baseadas na premissa de que chegaria um tempo em
que ele próprio usaria seus músculos de novo.
E assim, mesmo rosnando, reclamando e atormentando Thom
enquanto o ajudante habilmente realizava os EAM e em seguida
avaliava os resultados, ele secretamente ficava ansioso pelos
exercícios diários. Mas hoje Rhyme lançou um olhar poderoso e o
jovem captou a mensagem. Recuou para o corredor.
— No que você está pensando? — perguntou Selli o.
Rhyme não respondeu.
Imersa em seus próprios exercícios de amplitude de movimento,
sua mente, ao contrário dos músculos, não tinha limitações. Altura
infinita, profundidade infinita, passado e futuro. Agora o
criminalista seguia mentalmente as trilhas de provas que eles
haviam coletado enquanto trabalhavam o caso FANTASMORTES,
algumas largas quanto o East River, algumas estreitas e frágeis como
um fio, algumas úteis, algumas aparentemente tão inúteis quanto os
nervos partidos que iam do cérebro de Lincoln Rhyme até o sul de
seu corpo imóvel. Mas nem mesmo essas ele negligenciava.
A autoestrada fazia uma curva em volta das instalações do
Exército no Brooklyn, e Yindao guiou o furgão da polícia para uma
rampa de saída, quase tão rapidamente quanto o próprio Fantasma
teria feito a curva em seu BMW ou Porsche, e desceu para um bairro
agradável de pátios bem conservados e prédios de tijolo vermelho.
O Fantasma olhou pelo retrovisor lateral casualmente e notou
que Yusuf ainda estava atrás deles.
Depois olhou para Yindao, o perfil de seu rosto bonito, o cabelo
ruivo e brilhante preso num coque, a silhueta dos seios por baixo da
camiseta preta.
Ficou espantado pelo barulho altíssimo do celular dela tocando
de novo.
Ela atendeu.
— Rhyme... é, nós estamos no bairro. Continue. — Amelia ficou
quieta. — Excelente! — Em seguida se virou para o Fantasma e Coe.
— Ele os achou. Um amigo de Chang conseguiu um apartamento
e um emprego aqui perto. Não é muito longe. — Ela voltou a
atenção para o telefone. Mas enquanto ouvia o que Rhyme estava
dizendo a expressão do seu rosto ficou momentaneamente sombria.
Pareceu ao Fantasma que ela havia ficado tensa em reação ao que o
homem estava dizendo agora. O Fantasma imaginou se Rhyme
ficara sabendo alguma coisa sobre ele. Ficou mais vigilante.
— Claro, Rhyme — disse ela finalmente. — Entendi. Yindao
desligou o telefone.
— Droga — disse Coe. — Nunca achei que ele conseguiria. O
Fantasma olhou para ela.
— Então ele conseguiu o endereço exato.
Por um momento ela não respondeu. Finalmente disse: — É.
Depois começou a falar, só jogando conversa fora como uma
colegial, sobre sua vida no Brooklyn. O Fantasma viu imediatamente
que esta não era a sua natureza e ficou com mais suspeitas ainda. O
que quer que Rhyme tivesse lhe dito no fim da conversa, ele
entendia agora, não tinha nada a ver com os Chang.
Percebeu a mão dela roçar na perna, que ela coçou
distraidamente Yindao deixou a mão perto do quadril, e ele percebeu
que o gesto era meramente uma desculpa para levar a mão para
perto da arma.
Com os olhos ainda na rua, agora a mão do Fantasma deslizou
casualmente para o lado do corpo, e depois se enrolou nas costas até
tocar o cabo de sua pistola Glock, que estava no cós da calça debaixo
do agasalho.
Silêncio no carro enquanto eles seguiam durante alguns minutos
através de ruas residenciais. Mas parecia ao Fantasma que Yindao
estava meramente dirigindo em círculos. Ficou ainda mais tenso e
cauteloso.
Outra virada e, olhando para aqueles números, ela chegou junto
ao meio-fio, parou o carro e puxou o freio de mão. Apontando para
um pequeno prédio de pedras marrons.
— É ali.
O Fantasma olhou rapidamente, mas manteve a atenção em
Yindao.
— Não era o buraco de merda que eu estava esperando — disse
Coe com cinismo. — Vamos terminar logo com isso.
Yindao disse casualmente:
— Espere. — E se virou para a direita, olhando Coe por cima do
banco.
O Fantasma pôde ver facilmente que era um disfarce. Ela se
moveu rápido — muito mais rápido do que o Fantasma esperava.
Antes que o cabeça de cobra pudesse ao menos fechar os dedos em
volta da pistola, Yindao tinha sacado a dela do coldre e estava
girando a arma na sua direção.

FANTASMORTES

Cena do Crime Easton, Long Island

• Dois imigrantes mortos na praia, com tiros nas costas.


• Um imigrante ferido — Dr John Sung.
• ”Bangshou” (assistente) a bordo; identidade desconhecida.
• Assistente confirmado como corpo afogado encontrado perto
do lugar onde o Dragon afundou.
• Dez imigrantes escapam sete adultos (um idoso, uma mulher
ferida), duas crianças, um bebê. Roubam furgão da igreja.
• Amostras de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Mulher ferida é AB negativo. Requisitando mais informações
sobre seu sangue.
• Veículo esperando o Fantasma na praia partiu sem ele. Um tiro
supostamente dado pelo Fantasma contra o veículo Providenciado
pedido de marca e modelo do veículo, baseado em marcas de pneus
e distância entre eixos.
• Veículo é um BMW X5.
• Motorista — Jerry Tang.
• Nenhum veículo para pegar os imigrantes foi localizado.
• Celular, presumivelmente do Fantasma, mandado para análise
no FBI.
• Telefone por satélite impossível de ser rastreado. Penetrou no
sistema chinês para ser usado.
• Arma do Fantasma é uma pistola 7.62. Cartuchos comuns.
• Pistola automática chinesa Modelo 51.
• O Fantasma pode ter gente do governo em sua folha de
pagamentos.
• O Fantasma roubou um sedã Honda vermelho para fugir
Providenciado pedido de localização do veículo.
• Nenhum traço do Honda foi encontrado.
• Três corpos recuperados no mar — dois mortos a tiros, um
afogado Fotos e impressões mandadas a Rhyme e à polícia chinesa.
• Indivíduo afogado identificado como Victor Au, o bangshou do
Fantasma.
• Digitais mandadas ao AFIS.
• Nenhuma identificação em nenhum ponto, mas marcas
comuns nos dedos de Sam Chang (ferimento, queimadura de
corda?).
• Perfil dos imigrantes. Sam Chang, Wu Qichen e suas famílias,
John Sung, bebê de mulher afogada, homem e mulher não
identificados (mortos na praia).

Furgão Roubado, Chinatown

• Camuflado por imigrantes com o logotipo ”A Loja do Lar”.


• Mancha de sangue sugere que mulher tem ferimento no braço
ou no ombro.
• Amostras ”de sangue mandadas ao laboratório para tipificar.
• Mulher ferida é AB negativo Requisitando mais informações
sobre seu sangue.
• Digitais mandadas ao AFIS.
• Nenhuma identificação

Cena do Assassinato de Jerry Tang

• Quatro homens arrombaram a porta, torturaram-no e o


mataram a tiros.
• Dois cartuchos de balas — combinam com Modelo 51. Tang
levou dois tiros na cabeça.
• Grande vandalismo.
• Algumas digitais.
• Nenhuma identificada, a não ser a de Tang.
• Três cúmplices têm sapatos menores do que os do Fantasma,
presumivelmente têm estatura menor.
• Traços de substâncias sugerem que o esconderijo do Fantasma
fica provavelmente no sul de Manha an, na área de Ba ery Park
City.
• Suspeita-se de cúmplices de minoria étnica chinesa. No
momento o paradeiro é procurado.
• Uigures de comunidade do Turquestão e do Centro Islâmico do
Queens.
• Telefonema de celular indica prédio 805 na Patrick Henry
Street, sul de Manha an.

Tiroteio na Canal Street Cena do Crime

• Traços adicionais sugerem que esconderijo é na área de Ba ery


Park City.
• Chevrolet Blazer roubada, impossível rastrear origem.
• Nenhuma identificação de digitais.
• Carpete do esconderijo: LustreRite da empresa Arnold,
instalado nos últimos seis meses; ligando para empreiteiros para
obter lista de instalações.
• Locais de instalações determinados: 32 perto de Ba ery Park
City.
• Encontrada palha de jardinagem fresca.
• Corpo do cúmplice do Fantasma: minoria étnica do oeste ou
noroeste da China. Sem identificação de digitais. Arma era Walther
PPK.
• Detalhes sobre imigrantes: · Os Chang: Sam, Mei-Mei, William
e Ronald; pai de Sam, Chang Jiechi, e bebê, Po-Yee. Sam arrumou
trabalho, mas empregador e local são desconhecidos. Dirigindo
furgão azul, marca desconhecida, placa desconhecida. Apartamento
dos Tang é no Queens.
• Os Wu: Qichen, Yong-Ping, Chin-Mei e Lang.

Cena do Crime Tiroteio no Esconderijo

• Digitais e fotos das mãos de Chang Jiechi revelam que pai — e


filho Sam — são calígrafos Sam Chang pode estar trabalhando numa
gráfica ou pintando cartazes. Ligando para lojas e empresas no
Queens
• Biossólidos nos calçados do falecido sugerem que eles moram
perto de estação de tratamento de esgotos
• Fantasma usa praticante de feng shui para arrumar

Cena do Crime Fujou Dragon


• Fantasma usou novo C4 para explodir o navio. Verificando
origem do explosivo através de marcadores químicos.
• Grande quantidade de notas americanas novas achadas na
cabine do Fantasma.
• Aprox. $20.000 em ienes chineses usados achados na cabine.
• Lista de vítimas, detalhes do voo charter e informações sobre
depósito de banco. Verificando nome de remetente na China.
• Capitão vivo mas inconsciente.
• Recuperou consciência, agora sob detenção pelo INS.
• Bere a 9 mm, Uzi. Impossíveis de rastrear.

Cena do Crime Assassinato de Sonny Li

• Morto por nova Glock 36, calibre 45. (Do governo?)


• Tabaco.
• Flocos de papel amarelo
• Planta não identificada (erva, tempero, droga?)
• Silicato de magnésio (talco) sob unhas.
Capítulo 44
O Fantasma se encolheu involuntariamente, meio esperando que
Yindao atirasse nele sem avisar — o que ele, claro, teria feito se as
circunstâncias fossem invertidas.
Mas o cano da arma preta passou por ele num borrão e foi
pousar no homem do banco de trás.
— Nem um centímetro, Coe. Não se mova um centímetro.
Mantenha as mãos onde eu possa ver.
— O que... O que é isso? — perguntou Coe recuando, chocado.
— Não se mexa — disse ela rispidamente. — Se uma das suas
mãos desaparecer, você está morto.
— Eu não... — O agente piscou.
— Está entendendo?
— Sim, estou entendendo, porra — reagiu ele com raiva. — É
melhor você dizer de que se trata.
— Há um minuto, pelo telefone, Lincoln tinha um pouco mais a
me contar do que só o endereço dos Chang. Ele olhou a tabela de
provas mais uma vez e deu alguns telefonemas. Você achou que
tinha disfarçado tudo muito bem, não é?
— Baixe isso, policial! Você não pode...
— Ele sabe de tudo. Sabe que é você quem está trabalhando com
O Fantasma.
O agente engoliu em seco.
— Ficou maluca, porra?
— Você é o anjo da guarda dele. Você o está protegendo. Por isso
deu o tiro perto da casa dos Wu na Canal Street. Não estava
tentando acertar nele, estava tentando avisá-lo. E esteve passando
informações para ele: contou onde os Wu estavam, na casa de
segurança de Murray Hill.
Coe olhou em volta nervosamente, olhou para fora.
— Isso é besteira.
O Fantasma lutou para controlar o fôlego. Suas mãos tremiam.
Ele estava suando furiosamente. Enxugou as palmas nas calças.
— Não se preocupe, John — disse Yindao. — Ele não vai
machucar mais ninguém. — Ela continuou a falar com o agente. — E
você arranjou uma bela arma nova para o Fantasma, uma Glock.
Uma quarenta e cinco nova. Que por acaso é a arma mais usada pelo
INS.
— Você está maluca, policial.
— O tempo todo recebíamos relatórios de que o Fantasma estava
subornando gente no governo aqui. Só que nunca pensamos que
fosse um agente do INS. Por que todas as viagens à China, Coe?
Segundo Peabody, nenhum dos outros agentes de campo viaja para
lá tanto quanto você. Algumas vezes aparentemente pagando do
próprio bolso. Você estava se encontrando com os cabeças de cobra
do seu chefe.
— Porque minha informante desapareceu lá e eu queria pegar o
escroto que fez isso.
— Bom, Rhyme está contatando o escritório de segurança de
Fujou agora mesmo. Ele quer olhar as provas daquele caso também.
— Está dizendo que matei minha própria informante? Uma
mulher com filhos?
— Nós vamos olhar as provas — disse ela com frieza.
— Se alguém disser que me viu junto com o Fantasma, está
mentindo.
— Isso não significa nada. O Fantasma não vai se encontrar
pessoalmente com ninguém que possa testemunhar contra ele. Ele
tem intermediários para fazer isso.
— Você está sonhando, policial.
— Não, só estamos examinando provas. Rhyme acabou de
examinar seu registro de telefonemas pelo celular. Meia dúzia de
ligações para um serviço de recados em New Jersey nos últimos dois
dias.
— Ah, besteira. Eu estava ligando para os meus informantes lá.
— Você nunca mencionou que tinha informantes.
— Porque não tinham nada a ver com este caso. Yindao falou
com rispidez: — Você ia ligar para o Fantasma quando a gente
chegasse ao apartamento dos Chang? Ou só iria matá-los você
mesmo?... E nos matar também?
Coe engoliu em seco.
— Não vou dizer nem mais uma palavra a você. Quero falar com
um advogado.
— Vai ter bastante tempo para isso. Agora, a mão direita na
maçaneta da porta. Se ela se mexer um centímetro, eu acerto uma no
seu braço. Está entendendo?
— Escute...
— Está entendendo?
O Fantasma olhou para os olhos gélidos de Yindao e sentiu um
arrepio. Imaginou se ela estava desejando que o sujeito tentasse
pegar a arma para poder atirar nele.
— Estou — murmurou Coe, furioso.
— Mão esquerda, só com o polegar e o indicador, na sua arma,
puxe pelo cabo. Mexa-se muito devagar.
Com uma expressão de nojo, Coe removeu cuidadosamente a
arma e entregou a ela.
Yindao enfiou-a no bolso e depois disse: — Saia do carro. — Ela
abriu sua porta e saiu. Depois abriu a dele, com a pistola apontando
fixamente para o peito do agente. Devagar.
Ele a seguiu para fora. Ela fez um gesto para que fosse à calçada.
— De cara para baixo.
O coração do Fantasma — que estivera martelando como um
Pássaro numa gaiola de vidro — acalmou-se lentamente. Com medo,
você pode ser corajoso...
Este era o cúmulo da ironia, refletiu. De fato ele tinha americanos
em sua folha de pagamentos, até mesmo dentro do INS — inclusive
um oficial de audiência, motivo pelo qual fora liberado tão depressa
e facilmente na manhã do dia anterior. Mas não sabia o nome de
todo mundo que seus agentes subornavam aqui. E, como Yindao
tinha acabado de explicar a Coe, ele raramente fazia contato direto
com qualquer um deles. Quanto a saber a localização do Sn A, ao
esconderijo dos Wu em Murray Hill — a própria Yindao tinha dado
a informação quando perguntou se ele queria juntar-se a eles lá.
Como Coe estava aparentemente trabalhando para ele, será que
deveria tentar salvar o sujeito agora?
Não, era melhor cortá-lo. A prisão seria uma boa distração. E
Yindao e os outros ficariam menos cautelosos achando que tinham
apanhado o traidor.
Ficou olhando enquanto, na calçada, ela habilmente algemava o
agente, depois puxava Coe em pé. O Fantasma baixou a janela e
assentiu para o prédio de apartamentos.
— Quer que eu vá falar com os Chang?
— Esse não é o prédio deles. Fica a alguns quarteirões daqui. Eu
menti, tinha de manter Coe distraído. Escolhi este porque tem uma
delegacia na esquina. Eles vão segurá-lo até ser apanhado pelo FBI.
O Fantasma olhou para Coe e acrescentou um tom consternado à
voz enquanto falava: — Você ia dizer ao Fantasma onde eles
estavam. Aquelas crianças... você ia deixar que ele matasse aquelas
crianças. Você é desprezível.
O agente o encarou de volta com raiva durante um momento —
até que Yindao o levou rudemente para a esquina, onde foi recebida
por dois policiais uniformizados, que o pegaram sob custódia O
Fantasma olhou para trás e viu, no fim do quarteirão, o furgão de
Yusuf parando junto ao meio-fio.
Cinco minutos depois Yindao voltou, subiu no carro, ligou o
motor. Eles voltaram a se movimentar. Ela olhou para o Fantasma e
balançou a cabeça com um riso sério.
— Desculpe. Você está bem? — Embora um pouco abalada com o
incidente, agora ela parecia dona de si. Relaxada e confiante.
— Sim. — O Fantasma riu também. — Você cuidou disso
perfeitamente. É uma tremenda artista na sua profissão. — O sorriso
dele se desbotou. — Um traidor dentro do INS?
— Toda aquela merda sobre o Fantasma ter matado a informante
dele. Ele nos enganou. — Yindao pegou o celular e deu um
telefonema. — Certo, Rhyme Coe está sob custódia na delegacia...
Não, sem problema. John e eu vamos para o apartamento dos Chang
agora... Onde estão as equipes?... Certo, vou estar lá em três minutos.
Vamos esperar pela USE. O Fantasma pode estar indo para lá agora
mesmo.
Pode mesmo, refletiu o cabeça de cobra.
Yindao desligou.
Então eles chegariam antes de todos os outros. Sua ligação com
Yindao não teria de esperar, afinal de contas. Ele mataria os Chang,
poria Yindao no furgão dos turcos e escaparia. A mão do Fantasma
foi até o ombro dela e apertou. Sentiu a ereção ficar ainda mais
poderosa.
— Obrigada por ter vindo, John. — Ela sorriu para ele. — Qual a
palavra que eu uso para ”amigo”, ”Yindao”
Ele balançou a cabeça.
— Isso é o que um homem diria a uma mulher. Você diria
Yinjing.
Essa era a palavra para a genitália masculina.
— Yinjing — disse ela.
— Sinto-me honrado — disse ele baixando ligeiramente a cabeça.
Olhou seu cabelo ruivo, a pele clara, as pernas compridas... — Seu
amigo Rhyme é um tremendo detetive. Gostaria de visitá-lo quando
tudo isso terminar.
— Eu lhe dou um cartão. Tenho um na bolsa.
— Bom.
Rhyme teria de morrer também. Porque o Fantasma sabia que ele
também era um homem que jamais pararia enquanto não derrotasse
os inimigos. Po fu chen jou... Quebra os caldeirões e afunda os barcos.
Perigoso demais para ficar vivo. Ela lhe dissera que ele era paralítico.
Como é que alguém poderia torturá-lo?, pensou o Fantasma. O
rosto, olhos, língua... haveria modos, dependendo de quanto tempo
ele tivesse. Fogo era sempre bom.
Yindao virou abruptamente numa rua de mão única e parou
Examinou os números nos prédios e continuou até a metade do
quarteirão. Estacionou em fila dupla e deixou uma identificação da
polícia no painel.
— Aquela é a casa. — Ela apontou para um prédio de três
andares, de tijolos vermelhos, um pouco adiante, com as luzes do
apartamento térreo acesas. Modesta, mas, refletiu o Fantasma, muito
mais luxuosa do que as casas de madeira ou blocos de concreto,
amarelas e bege, pelas quais tantos chineses têm de agradecer a Mao.
Saíram do carro e andaram até a calçada. Ali pararam.
— Fique fora das vistas — sussurrou ela, e o guiou para perto de
uma cerca viva. O Fantasma olhou para trás. Yusuf tinha
estacionado e, através da luz fraca do crepúsculo, ele mal podia vê-lo
junto com o outro turco.
Inclinou-se para perto e sentiu o perfume de sabonete e suor na
pele dela. Percebeu que a excitação não havia diminuído, e se
encostou no braço e no quadril dela enquanto Yindao examinava a
casa. Ela indicou a janela de vidro na frente.
— Vamos pelos fundos, se estiver destrancado. Eles podem nos
ver pela frente e talvez fujam.
Fez um gesto para ele acompanhá-la até os fundos do prédio
mais próximo, depois os dois atravessaram os quintais dos fundos
até a casa dos Chang. Seguiam lentamente, para não esbarrar em
nada na semiescuridão e anunciar sua presença.
Na porta dos fundos do apartamento dos porquinhos eles
pararam, e Yindao olhou pela janela — para uma cozinha pequena.
Não havia ninguém dentro.
— Sempre olhe primeiro pela janela dos fundos — sussurrou.
Minha nova regra tática. — E deu um sorriso triste, mas não
explicou por quê. — Venha — falou. — Ande devagar. Não os as
suste. Diga imediatamente que viemos ajudar. Que nós queremos
protegê-los do Fantasma. E diga que há uma boa chance de asilo
político.
O Fantasma assentiu com a cabeça e tentou imaginar qual seria a
reação deles quando Sam Chang e sua mulher vissem quem era o
tradutor da polícia.
Yindao experimentou a porta. Estava destrancada. Ela a abriu
rapidamente — para que não guinchasse, supôs ele.
Como deveria cuidar disso?, pensou. Percebeu que
provavelmente deveria tirar Yindao de combate imediatamente. Ela
era um risco grande demais. A melhor coisa a fazer, decidiu, era
atirar em sua perna — o calcanhar seria irônico, decidiu,
considerando sua artrite. Ele e os turcos matariam os Chang. Depois
voltariam ao Windstar. Iriam depressa a um esconderijo ou um
armazém deserto em algum lugar, para suas horas com Yindao.
Passaram em silêncio pela cozinha pequena e sufocante.
No fogão havia uma panela de água esquentando. Meia cebola
estava sobre uma tábua de cortar e um maço de salsa ao lado. O que
a Sra. Chang estaria fazendo para o jantar?, pensou ele.
Yindao passou pela cozinha. Parou na porta do corredor que
levava à sala e fez um gesto para ele parar.
Os turcos, notou ele, estavam do lado de fora, no beco atrás da
casa. As costas de Yindao estavam viradas para ele, e o Fantasma fez
um gesto para os dois capangas irem para a frente. Yusuf obedeceu,
e os dois homens se moveram.
O Fantasma decidiu que deixaria Yindao ir na frente. Daria cerca
de um minuto a ela dentro da sala de estar com os Chang, para
colocá-los à vontade e dar aos turcos a chance de se posicionarem na
porta da frente. Depois entraria e atiraria nela, o que seria um sinal
para os turcos invadirem e o ajudarem a acabar com a família.
Ficando para trás, o Fantasma enfiou a mão debaixo do agasalho
e sacou a arma da cintura.
Sozinha, Yindao começou a andar lentamente pelo corredor
escuro.
Capítulo 45
Um som perto.
Um passo?, pensou Sam Chang sentando-se no sofá, perto do
filho mais novo.
Na frente? Nos fundos?
Estavam sentados na sala escura do apartamento, agrupados em
volta da televisão onde passava um programa de entrevistas. O
volume estava alto, mas mesmo assim Chang ouvira claramente um
ruído.
Um estalo.
E um passo.
O que era isso?
Uma fênix subindo das cinzas, um dragão irado por essa casa
pesada ter sido construída sobre seu lar?
O espírito de seu pai voltando para reconfortá-los?
Talvez para avisá-los.
Ou talvez fosse Gui, o próprio Fantasma, que os havia achado É
minha imaginação, pensou Chang.
Só que ele olhou para o outro lado da sala e viu William, que
estivera lendo uma revista velha de um ano. O garoto estava se
empertigando, com o pescoço levantado, a cabeça girando
lentamente, como uma garça tentando identificar a fonte do perigo.
— O que é, marido? — sussurrou Mei-Mei, agora vendo o rosto
dos dois. Ela puxou Po-Yee para perto do corpo.
Outro estalo.
Um passo. Ele não podia dizer de onde vinha.
Sam Chang ficou em pé rapidamente. William juntou-se a ele.
Ronald começou a se levantar, mas o pai acenou para o garoto, que
entrasse no quarto. Um movimento firme de cabeça para a mulher.
Ela o encarou por um momento e depois entrou no quarto com o
bebê e o filho mais novo, e fechou a porta em silêncio.
— Faça o que eu disse, filho.
William assumiu posição ao lado da porta que levava aos fundos
do apartamento, segurando um cano de ferro que Chang tinha
achado no quintal. Juntos, pai e filho tinham planejado o que fariam
se o Fantasma viesse pegá-los. Chang atiraria na primeira pessoa que
passasse pela porta — fosse o Fantasma ou seu bangshou. Ao ouvir o
tiro, os outros provavelmente parariam, dando a William tempo para
pegar o revólver do homem caído, de modo que ele também tivesse
uma arma.
Então Chang apagou duas luzes da sala, de modo a não ser um
alvo tão evidente, mas podendo ver o invasor em silhueta na porta.
Tentaria acertar a cabeça; dali não poderia errar.
Sam Chang se agachou atrás de uma poltrona. Ignorava a
exaustão do sofrimento no navio, da perda do pai, da erosão de sua
alma nesses dois dias curtos, e com suas mãos firmes, de calígrafo,
apontou a arma para a porta.

Dentro da casa Amelia Sachs pisou lentamente no corredor


escuro.
— Espere aqui um minuto, John — sussurrou.
— Sim — veio a resposta fraca.
Ela deu um passo no corredor. Hesitou só um momento e em
seguida chamou: — Agora.
— O quê? — perguntou o Fantasma, hesitando.
Mas em vez de responder ela girou de volta para ele, levantando
a pistola tão rapidamente que o movimento da arma preta parecia
um borrão cinza. O abismo do cano se apoiou firme no peito do
Fantasma antes que ele pudesse ao menos levantar sua Glock.
O chamado de Sachs não era dirigido ao Fantasma, mas à meia
dúzia de homens e mulheres totalmente vestidos em trajes de
combate — Bo Haumann e outros policiais táticos da Unidade de
Serviços de Emergência —, que entraram na cozinha pequena, com
as armas apontadas para o rosto chocado do Fantasma, gritando sua
litania ensurdecedora: — No chão, no chão, no chão, polícia, largue a
arma, para baixo, no chão!
A pistola foi arrancada de sua mão e ele foi jogado de cara no
chão e algemado e revistado. Sentiu um puxão no tornozelo, e a
Modelo 51 sua arma da sorte, foi tirada, depois seus bolsos foram
esvaziados.
— Estamos com o sujeito imobilizado — gritou um policial. —
Cena limpa.
— Do lado de fora temos dois, no chão e trancados. — O que
significava que estavam de barriga para baixo e com algemas ou tiras
de plástico nos pulsos. Eram os dois homens do Windstar que Sachs
tinha visto seguindo-os. Mais uigures do centro cultural no Queens,
presumira ela.
— Tem mais alguém? — Sachs se abaixou e sussurrou
asperamente no ouvido do Fantasma.
— Alguém?
— Pegamos os dois homens que estavam nos seguindo. Tem mais
alguém?
O Fantasma não respondeu, e Sachs falou no rádio: — Só notei
um furgão. Provavelmente é só isso.
Então Lon Selli o e Eddie Deng se juntaram e eles vindos do
andar de cima, onde tinham estado esperando, fora do caminho da
equipe de combate. Examinaram o Fantasma deitado no chão, sem
fôlego pelo choque e pelo tratamento rude. Amelia Sachs achou que
ele parecia inofensivo — só um asiático bonito mas minúsculo, o
cabelo ficando ligeiramente grisalho.
O rádio de Selli o berrou a mensagem: — Atiradores de elite Um
e Dois para a Base. Podemos descer?
Ele baixou o volume de seu Motorola e disse: — Base para
atiradores. Tudo bem. — O detetive grandalhão acrescentou para o
Fantasma: — Eles estavam com você na mira desde que saiu do
furgão. Se apontasse a arma na direção dela, estaria morto agora.
Homem de sorte.
Arrastaram o Fantasma para a sala de estar e o empurraram para
uma poltrona. Eddie Deng leu seus direitos — em inglês, putonghua
e em minnanhua. Só para se certificar.
Ele confirmou que entendia, com surpreende pouca emoção,
observou Sachs, considerando as circunstâncias.
— Como estão os Chang? — perguntou Sachs a Selli o.
— Estão bem. Há duas equipes do INS no apartamento deles. A
coisa quase ficou feia. O pai conseguiu uma arma e estava pronto
para atirar, mas os agentes viram através de uma janela com visor
noturno. Conseguiram o número do apartamento e ligaram para
dizer que eles estavam cercados. Assim que Chang percebeu que era
uma equipe legítima do INS, e não o Fantasma, desistiu.
— E o bebê?
— Ela está bem. O pessoal do serviço social está a caminho. Vão
mantê-los no apartamento em Owls Head até terminarmos com esse
merda — indicando para o Fantasma. — Depois podemos ir lá e
interrogá-los.
A casa onde estavam agora, a cerca de um quilômetro e meio da
dos Chang, era um lugar bem decorado, cheio de flores e frescuras.
Uma surpresa para Sachs, considerando que era habitada por um
dos melhores detetives de homicídios da cidade.
— Então esta é a sua casa, Lon? — perguntou ela, pegando uma
estatueta de porcelana de Li le Bo Peep.
— É da minha cara-gêmea — respondeu Selli o na defensiva,
usando o apelido que tinha dado a Rachel, sua namorada (ele havia
combinado ”cara-metade” com ”alma gêmea”, numa rara
demonstração de frivolidade). Os dois foram morar juntos havia
alguns meses. Wa herdou metade disso aqui da mãe dela. — Selli o
pegou a estatueta com Sachs e a recolocou cuidadosamente na
prateleira.
Foi o melhor que conseguimos como um local para fazer a Prisão
num tempo tão curto. Achamos que se fôssemos para muito longe
de Owls Head o sacana começaria a suspeitar.
— Era tudo mentira — disse o Fantasma, achando divertido
Parecia a Sachs que o inglês dele era melhor do que o sotaque que
fingia quando representava John Sung. — Vocês armaram para cima
de mim.
— Acho que foi.
O telefonema de Lincoln Rhyme — enquanto eles circulavam
pelo Brooklyn, a caminho do verdadeiro apartamento dos Chang em
Owls Head — fora para dizer a Sachs que ele agora achava que o
Fantasma estava disfarçado de John Sung. Outra equipe de policiais
do INS e do NYPD estava a caminho do verdadeiro apartamento dos
Chang para detê-los. Selli o e Eddie Deng estavam armando um
local de ataque na casa de Selli o, onde eles poderiam prendê-lo sem
o risco de inocentes serem mortos num tiroteio com o cabeça de
cobra homicida e capturar seus bangshous com ele. Rhyme presumiu
que eles estariam seguindo Sachs a partir da casa em Chinatown, ou
então seriam convocados pelo cabeça de cobra através de um celular
quando chegassem à casa dos Chang.
Enquanto ouvia a voz de Rhyme, Sachs precisara de toda a força
emocional para assentir e fingir que Coe estava trabalhando para o
Fantasma e que o homem que supostamente era seu amigo, seu
médico, o homem sentado junto dela e sem dúvida armado, não era
o assassino que eles vinham procurando nos últimos dois dias.
Ela pensou também na sessão de acupressura da noite anterior —
procurando-o com seu segredo, com sua esperança desesperada de
se curar. Estremeceu de repulsa diante da lembrança das mãos dele
nas suas costas e em seus ombros. Também pensou com horror que
ela havia mencionado para ele o local da casa de segurança onde os
Wu estavam, quando perguntara se queria juntar-se a eles.
— Como foi que seu amigo Lincoln Rhyme soube que eu não era
Sung? — perguntou o Fantasma.
Ela pegou o saco plástico com o conteúdo dos bolsos do
Fantasma. Dentro estavam os fragmentos do amuleto do macaco,
despedaçado. Sachs segurou-o perto do rosto dele.
— O macaco de pedra — explicou. — Eu achei alguns traços sob
as unhas de Sonny Li. Era silicato de magnésio, como talco. Rhyme
descobriu que vinha de pedra-sabão, material do qual o amuleto era
feito. — Sachs puxou rudemente a gola rulê do Fantasma, revelando
a linha vermelha deixada pela tira de couro. — O que aconteceu? Ele
o arrancou de seu pescoço e o macaco se partiu? O Fantasma
assentiu devagar.
— Antes de eu atirar nele, ele estava arranhando o chão. Achei
que estava implorando por misericórdia, mas então ele levantou os
olhos e sorriu para mim.
Então Li havia raspado um pouco da pedra macia com as unhas
intencionalmente, para lhes dizer que o Fantasma era Sung.
Assim que o relato de Cooper sobre o silicato de magnésio lhes
disse que a substância podia ser pedra-sabão, Rhyme lembrou-se da
contaminação nas mãos de Sachs no dia anterior. Percebeu que
poderia ter vindo do amuleto de Sung. Ligou para os policiais que
guardavam o apartamento de Sung e eles confirmaram que havia
uma porta dos fundos, o que significava que o Fantasma pudera
entrar e sair sem que eles o vissem. Também perguntou se havia
uma loja de jardinagem por perto — a fonte provável da palha que
haviam encontrado — e eles lhe contaram do florista no térreo do
prédio. Depois verificou as ligações para o telefone de Sachs; o
número do celular que fora usado para ligar para o centro uigur
apareceu nos registros dela.
O verdadeiro John Sung era médico, e o Fantasma, não. Mas,
como Sonny Li dissera a Rhyme, todo mundo na China sabia um
pouco sobre medicina oriental. O que o Fantasma tinha
diagnosticado sobre Sachs e as ervas que ele dera a ela eram do
conhecimento comum de qualquer pessoa que tivesse sido tratada
regularmente por um médico chinês.
— E o seu amigo do INS? — perguntou o Fantasma.
— Coe? Nós sabíamos que ele não tinha nenhuma ligação com
você. Mas eu tive de fingir que Coe era o espião, precisávamos
garantir que você não pensasse que estávamos na pista certa. E
precisávamos que ele ficasse fora do caminho. Se descobrisse quem
você era, poderia ter tentado pegá-lo de novo, como fez na Canal
Street. Queríamos uma prisão limpa. E não queríamos que ele fosse
Para a cadeia por matar alguém. — Sachs não pôde resistir a
acrescentar: — Nem mesmo você.
O Fantasma meramente deu um sorriso calmo.
Quando entregara Coe aos três policiais da delegacia, explicou-
lhe o que estava acontecendo. O agente, claro, ficou chocado ao saber
que estivera sentado a centímetros do homem que matara sua
informante na China, e começou a reclamar, irado, dizendo que
tinha de fazer parte da prisão. Mas a ordem de mantê-lo sob
custódia protetora fora emitida pela central de polícia, e ele não iria
a lugar nenhum enquanto o Fantasma não estivesse preso.
Então ela o examinou. Balançou a cabeça enojada.
— Você atirou em Sung, escondeu o corpo e depois atirou em si
mesmo. E nadou de novo para o mar. Você quase se afogou.
— Eu não tinha muita escolha, tinha? Jerry Tang me abandonou.
De jeito nenhum eu iria escapar da praia sem fingir que era Sung.
— E a sua arma?
— Enfiei na meia, na ambulância. Depois a escondi no hospital e
peguei depois que o agente do INS me liberou.
— Agente do INS? — pensou ela, assentindo. — Você realmente
foi liberado com uma rapidez espantosa. — O Fantasma não disse
nada, e ela acrescentou: — Bom, essa é outra coisa que vamos
examinar. Tudo que você contou de John Sung... foi inventado?
O Fantasma deu de ombros.
— Não, o que eu contei era verdade. Antes de matá-lo eu o
obriguei a falar dele, de todo mundo que estava na balsa, de Chang e
Wu. O suficiente para tornar meu desempenho verossímil. Joguei
fora a carteira de identidade com a foto e fiquei com a carteira de
dinheiro e o amuleto.
— Onde está o corpo?
Outro sorriso plácido foi a resposta.
Sua serenidade a enfurecia. Ele tinha sido apanhado e ia passar o
resto da vida na cadeia e possivelmente seria executado, mas parecia
estar sentindo apenas o incômodo de um trem atrasado. A fúria
dominou-a e ela recuou a mão para lhe dar um soco no rosto. Mas
quando ele não reagiu — não se encolheu, não piscou —, ela baixou
o braço, recusando-se a lhe dar a satisfação de observar estoicamente
o golpe.
O telefone de Sachs se intrometeu, tocando. Ela se afastou e
atendeu.
— Sim?
— Todo mundo está se divertindo? — perguntou a voz de
Rhyme sarcasticamente.
— Eu...
— Está fazendo um piquenique, talvez? Assistindo a um filme?
Esquecendo o resto de nós?
— Rhyme, nós estávamos no meio de uma prisão.
— Acho que alguém ia me ligar eventualmente e contar o que
aconteceu. Em algum momento... Não, não vou, Thom. Eu estou
puto.
— Nós estivemos meio ocupados aqui, Rhyme — respondeu ela.
— Só imaginei o que estaria acontecendo. Eu não sou
paranormal, você sabe.
Ela entendeu que ele já sabia que ninguém da equipe estava
ferido — caso contrário não estaria cheio de sarcasmo. Respondeu:
— Você pode meter essa sua atitude...
— ”Meter”? Falou como um verdadeiro marinheiro, Sachs.
— ... porque nós o pegamos. Tentei fazer com que ele me contasse
onde está o corpo de John Sung, mas ele...
— Bom, nós podemos deduzir isso, Sachs, não é? É óbvio, afinal
de contas.
Para algumas pessoas, talvez, refletiu ela, mas estava deliciada em
ouvir as ferroadas características dele, em vez da voz chapada de
antes.
— No porta-malas do Honda roubado — disse o criminalista.
— E que ainda está na ponta leste de Long Island? — perguntou
ela entendendo finalmente.
— Claro. Onde mais estaria? O Fantasma roubou o carro, matou
Sung e depois dirigiu para leste, para escondê-lo. Nós não íamos
procurar naquela direção. Presumiríamos que ele veio para oeste,
para a cidade.
Selli o desligou seu telefone e apontou a rua.
— Tenho que ir ver umas pessoas, Rhyme — disse Sachs.
— Ver umas pessoas? Olha só, você está tratando isso como uma
porcaria de piquenique.
Ela pensou um momento e disse: — Uns amigos.
Capítulo 46
Ela encontrou a família parada diante de uma casa em péssimo
estado perto do Owls Head Park. O cheiro de esgoto era forte no ar
— vindo da estação de tratamento que ao mesmo tempo havia traído
e salvado suas vidas.
Ninguém da família estava algemado, e Sachs ficou satisfeita com
isso. Também ficou satisfeita porque dois policiais uniformizados do
DPN Y conversavam bem-humoradamente com o garoto que devia
ser o filho mais novo dos Chang.
O pai, Sam Chang, estava de braços cruzados, sério e silencioso,
de cabeça baixa, enquanto um asiático-americano de terno — um
agente do INS, ela presumiu — conversava com ele, tomando notas.
Ao seu lado estava uma mulher de aparência infeliz, estoica, de
quarenta e poucos anos, segurando a mão de Po-Yee. Sachs sentiu
uma enorme sacudida por dentro quando viu a Criança Adorada. A
menininha era linda. De rosto redondo, com cabelo preto e sedoso
cortado com franja e curto dos lados. Usava calça de veludo cotelê
vermelho e um suéter Hello Ki y pelo menos uns dois números
maior do que ela.
Um detetive reconheceu Selli o e foi até ele e Sachs.
— A família está bem. Vamos levá-los à detenção do INS no
Queens. Parece que com o registro de atividade dissidente de Chang
ele esteve na praça Tiananmen e tem uma história de perseguição há
uma boa chance de asilo.
— Vocês pegaram o Fantasma? — perguntou Chang em seu
inglês inseguro ao se juntar a eles. O homem devia ter ouvido a
notícia mas compreensivelmente precisava de mais confirmação de
que o assassino realmente estava em segurança, preso.
— Sim — disse ela, com os olhos não no homem com quem
estava falando, mas em Po-Yee. — Ele está preso.
— Você foi importante com a captura dele? — perguntou Chang.
— Eu fazia parte do grupo, sim — respondeu Sachs sorrindo.
— Obrigado. — O homem parecia querer acrescentar alguma
coisa, mas a língua inglesa talvez fosse desafiadora demais. Ele
pensou um momento e disse: — Posso perguntar? O homem, o
velho, morto em apartamento de Fantasma? Onde é corpo?
— Seu pai? — Sim.
— No necrotério da cidade. Na parte sul de Manha an.
— Ele precisa ter enterro decente. É muito importante.
— Vou me certificar de que ele não seja removido — disse Sachs.
— Depois de vocês terminarem no INS, podem conseguir uma
funerária para pegá-lo.
— Obrigado.
O pequeno Dodge com brasão da Prefeitura de Nova York parou
perto. Uma mulher negra de terno marrom saiu, carregando uma
pasta de executivo. A mulher falou com o agente do INS e com
Sachs.
— Eu sou Chiffon Wilson. Sou assistente social dos Serviços para
a Infância. — Uma carteira de identidade foi mostrada.
— Veio por causa do bebê?
— Certo.
Chang olhou rapidamente para a esposa.
— Você veio pegá-la? — perguntou Sachs.
— Temos de fazer isso.
— Ela não pode ficar com eles?
Chiffon Wilson balançou a cabeça, com simpatia.
— Sinto muito, não. Eles não têm direitos sobre ela. Ela é uma
criança órfã, de outro país. Terá de voltar à China.
Sachs assentiu lentamente e depois puxou a assistente social de
lado.
— Ela é uma menina — sussurrou. — Você sabe o que acontece
com as meninas órfãs na China?
— Ela será adotada.
— Talvez — disse Sachs em dúvida.
— Eu não sei disso. Só sei que estou seguindo a lei. Olhe, nós
fazemos isso o tempo todo, e nunca ouvimos falar de nenhum
problema com as crianças que voltam ao país receptor.
País receptor... A expressão a perturbou tanto quando o rude
”sem documento” de Coe.
— Você já ouviu alguma coisa sobre elas depois de voltarem?
perguntou Sachs.
A mulher hesitou.
— Não. — Depois fez um sinal para o agente do INS, que falou
em chinês com os Chang. O rosto de Mei-Mei ficou imóvel, mas ela
concordou e levou o bebê até a assistente social.
— Ela vai... — disse Mei-Mei. Depois franziu a testa, tentando
pensar nas palavras em inglês.
— Sim? — perguntou a assistente social.
— Ela vai ser bem cuidada?
— Vai, sim.
— Ela bebê muito bom. Perdeu mãe. Faça ela bem cuidada.
— Vou garantir isso.
Mei-Mei olhou para a menina por um longo momento e depois
voltou a atenção para o filho mais novo.
Chiffon Wilson pegou Po-Yee, que franziu a vista diante do
cabelo ruivo de Sachs e tentou pegar uma mecha, com curiosidade.
Quando ela puxou com força, Sachs riu. A assistente social começou
a ir para o carro.
— Tingi — veio uma ansiosa voz de mulher. Sachs reconheceu a
Palavra como sendo ”espere” ou ”pare”. Virou-se e viu Chang
MeiMei andando para eles.
— Sim?
— Aqui. Aqui isso. — Mei-Mei entregou-lhe um bichinho de
Pano, tosco. Um gato, pensou Sachs.
— Ela gosta isso. Faz ela feliz.
Chiffon pegou o brinquedo e deu a Po-Yee.
Os olhos da criança estavam no brinquedo, os de Mei-Mei na
menina.
Então a assistente social pôs a criança numa cadeirinha do carro e
foi embora.
Sachs passou meia hora falando com os Chang, entrevistando-os,
vendo se poderia descobrir mais alguma coisa que pudesse ajudar a
montar o processo contra o Fantasma. Depois a exaustão dos últimos
dias tomou conta e ela soube que estava na hora de ir para casa.
Subiu no ônibus de cena do crime, olhando para trás uma vez e
vendo os Chang subirem no micro-ônibus do INS. Por acaso ela e
Mei-Mei se entreolharam um instante, depois a porta se fechou, o
ônibus foi pela rua, e os desaparecidos, os porquinhos, os sem
documento, a família começou sua jornada para outro lar temporário.

Provas existem independentemente dos criminosos, claro, e


ainda que o Fantasma estivesse preso, Lincoln Rhyme e Amelia
Sachs passaram a manhã seguinte processando as informações que
continuavam a chegar do caso FANTASMORTES.
Uma análise química dos marcadores no C4 feita pelo FBI tinha
determinado que a fonte provável para o explosivo plástico usado
para explodir o navio era um traficante de armas norte-coreano, que
regularmente vendia armamentos para a China.
Mergulhadores do Evan Brigant tinham trazido para cima os
corpos dos tripulantes e dos outros imigrantes que estavam no Fujou
Dragon, bem como o resto do dinheiro — cerca de 120.000 dólares. O
dinheiro foi registrado como prova e ficou guardado num cofre do
FBI. Além disso, eles ficaram sabendo que Ling Shuibian, o homem
que havia pagado o dinheiro ao Fantasma e escrito a carta que Sachs
achou no navio tinha um endereço em Fujou. Rhyme presumiu que
fosse um dos pequenos cabeças de cobra ou sócios do Fantasma, e
mandou por e-mail o nome e o endereço para o escritório de
segurança pública de Fujou com uma anotação falando do
envolvimento de Ling com o Fantasma.
— Quer que ponha isso na tabela? — perguntou Thom, fazendo
um gesto para o quadro branco.
— Escreva, escreva! — disse Rhyme com impaciência. Ainda
teriam de apresentar as provas aos promotores, e o modo mais
conciso e útil de fazer isso seria reproduzir as informações como
estavam escritas no quadro branco.
O ajudante pegou o pincel atômico e anotou as informações que
tinham acabado de chegar.

• Fantasma usou novo C4 para explodir o navio. Verificando


origem do explosivo através de marcadores químicos.
• Traficante de armas norte-coreano é a fonte.
• Grande quantidade de notas americanas novas achadas na
cabine do Fantasma.
• Total é de aproximadamente US$120.000.
• Aprox. US$20.000 em ienes chineses usados achados na
cabine.
• Lista de vítimas, detalhes do voo charter e informações
sobre depósito de banco. Verificando remetente na China.
• Ling Shuibian mora em Fujou. Nome e endereço
mandados à polícia local.
• Capitão vivo mas inconsciente.
• Recuperou consciência, agora em detenção pelo INS.

Enquanto Thom escrevia no quadro, o computador de Rhyme


soltou um bipe.
— Comando, e-mail — disse ele.
O computador aceitou seu tom carrancudo sem afronta e lhe
ofereceu a lista das novas mensagens.
— Comando, cursor para baixo. Comando, clique duplo.
Leu a mensagem que tinha acabado de chegar.
— Ah — anunciou Rhyme. — Eu estava certo.
Ele explicou a Sachs que o corpo de John Sung tinha de fato sido
achado no porta-malas do Honda que o Fantasma roubara. Como
Rhyme havia previsto, o carro fora encontrado no fundo de um
pequeno lago a duzentos metros apenas da praia de Easton.
Então havia mais uma acusação de assassinato para acrescentar
às outras contra Kwan Ang.
Havia outra mensagem que o interessava. Esta era de Mel
Cooper, que estava de volta à sua sala no laboratório forense no
Queens.

De: M. Cooper
Para: L. Rhyme
Assunto: Resultados de análises cromatográficas e espectro
métricas de Amostra do Indício 345202 ERIF, Departamento de
Justiça.
O cabeçalho de aparência oficial contrastava com a mensagem
informal embaixo: Lincoln:
Nós vimos a dinamite e ela era falsa.
A bunda de Dellray não correu nenhum perigo. O bandido se
ferrou e usou explosivo de mentira — material usado para
treinamento. Tentei acompanhar qualquer traço dele, mas
ninguém tem um banco de dados sobre bombas falsas. Talvez seja
alguma coisa em que pensar.

Rhyme riu. Algum traficante de armas tinha enganado o sujeito


que atacou Fred Dellray vendendo-lhe explosivos falsos. Ele ficou
aliviado ao saber que o agente não correra perigo de verdade.
A campainha tocou e Thom foi ver quem era.
Passos pesados na escada. Duas pessoas. Ele achava que seriam
Selli o e Dellray — o policial andava com passos distintos, pesados,
e o agente subia de dois em dois degraus com suas pernas
compridas.
Por um momento Rhyme, que afora isso era recluso, ficou feliz
em vê-los reunidos ali. Ia contar sobre a bomba falsa. Todos iam rir
um bocado. Mas então notou outra coisa, e uma campainha de
alarme disparou em sua cabeça. Os homens tinham parado do lado
de fora da porta e estavam sussurrando. Era como se estivessem
decidindo quem deveria dar a má notícia.
Ele estava certo em relação aos donos dos passos. Um momento
depois o policial desalinhado e o esguio agente do FBI entraram no
quarto.
— Oi, Linc — disse Selli o.
Um olhar para os rostos disse a Rhyme que também estava certo
em relação à má notícia.
Sachs e Rhyme trocaram um olhar perturbado. Rhyme olhou de
um para o outro.
— Bom, meu Deus, um de vocês diga alguma coisa.
Finalmente o detetive falou: — Tiraram o Fantasma da nossa
jurisdição. Ele está sendo mandado de volta para a China.
— O quê? — ofegou Sachs.
Com raiva, Dellray falou: — Vai ser escoltado até um avião mais
tarde, ainda hoje — disse Dellray sem esconder a raiva.
O agente ainda balançou a cabeça.
— Assim que decolar, ele estará livre.
Capítulo 47
— Extraditado? — perguntou Rhyme.
— É o nome que estão dando — rosnou Dellray — Mas não
vimos nem um único solitário mandado de prisão contra ele emitido
por um tribunal chinês.
— O que isso significa, não haver mandado de prisão? —
perguntou Sachs.
— É a porra do guanxi salvando o rabo dele — disse Rhyme,
amargo.
— A não ser que o país que quer a extradição mostre um
documento válido — disse Dellray —, nunca mandamos ninguém
para fora. De jeito nenhum.
— Bom, eles vão julgá-lo, não vão? — perguntou Sachs.
— Não. Falei com o nosso pessoal lá. Os figurões na China o
querem de volta. Deixe-me citar: ”por interrogatório relativo a
questões irregulares de comércio exterior”. Nenhuma palavra sobre
contrabando, nenhuma palavra sobre assassinato. Nenhuma.
Palavra. Sobre. Nada.
Rhyme estava pasmo.
— Ele vai estar de volta aos negócios dentro de um mês. — Os
Chang, os Wu e quem sabe quantos outros estavam subitamente
correndo risco de novo. — Fred, você pode fazer alguma coisa? —
Perguntou ele. Dellray era bem considerado no FBI. Tinha amigos na
sede da esquina da Pennsylvania Avenue com a Décima em
Washington, e uma boa pilha de guanxi pessoal.
Mas o agente balançou a cabeça, apertando o cigarro que estava
atrás da orelha direita.
— Esta decisãozinha foi tomada no Departamento de Estado em
Washington. Não na minha Washington. Eu não tenho pistolão lá.
Rhyme lembrou-se do homem silencioso e de terno azul: Webley,
do Departamento de Estado.
— Droga — sussurrou Sachs. — Ele sabia.
— O quê? — perguntou Rhyme.
— O Fantasma sabia que estava em segurança. Durante a prisão
ele ficou surpreso, mas não pareceu preocupado. Diabo, ele me falou
sobre ter matado Sung e apanhado a identidade dele. Sentia orgulho
disso. Se outra pessoa fosse presa assim, teria ouvido os direitos e
calado o bico. Ele estava cantando vantagem, droga.
— Isso não pode acontecer — disse Rhyme, pensando nas pobres
pessoas flutuando mortas no Fujou Dragon e caídas ensanguentadas
na areia da praia em Easton. Pensando no pai de Sam Chang.
Pensando em Sonny Li.
— Bom, isso está extremamente acontecendo — disse Dellray. Ele
vai partir esta tarde. E não há nenhuma coisa que a gente possa
fazer.

No Centro Federal de Detenção para Homens na área sul de


Manha an, o Fantasma estava sentado a uma mesa, diante de seu
advogado, numa sala de reunião particular, que o scanner de mão
do advogado garantiu não estar sendo grampeada.
Falavam em chinês minnanhua, baixo e rapidamente.
Quando o advogado terminou de falar sobre o procedimento
Para a sua entrega nas mãos do escritório de segurança pública de
Fujou, o Fantasma assentiu e se inclinou para perto.
Preciso que você me consiga uma informação.
O advogado pegou um pedaço de papel. O Fantasma olhou para
o papel uma vez e franziu a testa. O advogado guardou-o.
— Há uma mulher que trabalha para o departamento de polícia.
Preciso do endereço dela. O endereço de casa. O nome dela é Amelia
Sachs, e ela vive em algum lugar no Brooklyn. S-A-C-H-S. E Lincoln
Rhyme. Ele mora em Manha an.
O advogado assentiu.
— E há duas famílias que eu preciso encontrar. — Ele não achou
sensato descrevê-las como pessoas que estava tentando matar,
mesmo na ausência de equipamentos de escuta, por isso falou
simplesmente: — Os Wu e os Chang. Do Dragon. Eles podem estar
sob detenção pelo INS em algum lugar, mas talvez não.
— O que você...
— Você não precisa fazer perguntas como esta.
O homem magro ficou quieto. Depois pensou.
— Para quando precisa das informações?
O Fantasma não tinha muita certeza do que o esperava na China.
Achava que estaria de volta a um de seus apartamentos de luxo
dentro de três meses, mas poderia demorar menos.
— O mais cedo possível. Você vai ficar monitorando-os, e se os
endereços mudarem deixará um recado com meu pessoal em Fujou.
— Sim. Claro.
Então o Fantasma percebeu que estava cansado. Vivia para o
combate, vivia para jogos mortais como este. Vivia para vencer. Mas,
minha nossa, como a gente fica cansada quando quebra caldeirões e
afunda barcos, quando simplesmente não aceita a derrota! Agora
precisava descansar. Seu qi precisava tremendamente ser
reabastecido.
Em seguida dispensou o advogado e se deitou no catre da cela
antissepticamente limpa e quadrada, que o fazia lembrar de uma
funerária chinesa, porque as paredes eram azuis e brancas. O
Fantasma fechou os olhos e visualizou Yindao.
Deitada num quarto, num armazém, numa garagem, que fora
arrumada por um artista do feng shui do modo oposto à maioria dos
praticantes: a natureza de seu quarto de fantasia maximizaria a
raiva, o mal e a dor. A arte do vento e da água também pode fazer
isso, acreditava o Fantasma.
Yin e yang, opostos em harmonia.
A mulher de corpo forte amarrada no chão sólido.
Sua pele clara na escuridão.
Dureza e maciez...
Prazer e agonia.
Yindao.
Pensar nela ia levá-lo através das difíceis semanas seguintes.
Fechou os olhos.

— Tivemos nossas diferenças, Alan — disse Rhyme.


— Acho que sim.
Coe, o agente do INS, mostrava-se cauteloso. Estava sentado no
quarto de Rhyme, numa das desconfortáveis cadeiras de vime com
que o criminalista havia mobiliado o cômodo, com esperança de
desencorajar os visitantes de ficar por longos períodos. Coe havia
suspeitado do convite, mas Rhyme não queria que houvesse
qualquer chance de alguém ouvi-los. Esta precisava ser uma
conversa totalmente particular.
— Você ouviu falar da libertação do Fantasma?
— Claro que ouvi sobre o Fantasma — murmurou o sujeito com
raiva.
— Diga: qual é o seu verdadeiro interesse no caso? Sem besteira.
— A minha informante que ele matou — disse Coe depois de
hesitar um instante. — Só isso.
— Eu disse sem besteira. Há mais, não há?
— É, há mais — concordou Coe.
— O quê?
— A mulher que era minha informante, Julia... nós... nós éramos
amantes.
Rhyme examinou com atenção o rosto do agente. Apesar de ter
uma crença firme no valor supremo das evidências, não era
totalmente cético em relação às mensagens nos rostos e olhos. Viu
dor viu tristeza.
Depois de um momento difícil, o agente falou: — Ela morreu por
minha causa. Deveríamos ter sido mais cuidadosos. Saímos juntos
em público algumas vezes. Fomos a Xiamen a cidade turística ao sul
de Fujou. Há um monte de turistas ocidentais lá, e eu achava que
não seríamos reconhecidos. Mas acho que talvez tenhamos sido. —
Agora havia lágrimas em seus olhos. — Nunca a mandei fazer nada
perigoso. Só olhar agendas de programação de vez em quando. Ela
nunca usou um microfone, nunca invadiu nenhum escritório. Mas
eu deveria conhecer o Fantasma. Ninguém pode se livrar nem
mesmo com a menor traição.
Eu vem de ônibus para a cidade, estou dizendo. Vê corvo na estrada
bicando comida. Outro corvo tenta roubar e primeiro corvo não só espanta o
outro; ele persegue e tenta bicar olhos. Não deixa ladrão em paz.
— O Fantasma a pegou — disse Coe. — Ela deixou duas filhas.
— Foi isso que você fez fora do país quando tirou licença?
Ele balançou a cabeça, afirmativo.
— Estava procurando Julia. Mas depois desisti e passei o tempo
tentando colocar as crianças num lar católico. Eram meninas, e você
sabe a dificuldade que uma menina órfã passa por lá.
Rhyme não disse nada a princípio, mas estava pensando num
incidente de sua vida semelhante à tragédia de Coe. Uma mulher de
quem ficara íntimo antes do acidente, uma amante. Ela era policial
também, especialista em cenas de crime. E morreu porque ordenara
que ela entrasse numa cena onde havia uma armadilha. A bomba
matou-a instantaneamente.
— Deu certo? — perguntou o criminalista. — Com as meninas?
— Não. O Estado pegou-as e eu nunca as vi de novo. — Ele
levantou a cabeça e enxugou os olhos. — Então é por isso que eu fico
em cima dos sem documento. Enquanto as pessoas pagarem cinquenta
mil pratas por uma viagem ilegal para a América, nós teremos
cabeças de cobra como o Fantasma matando qualquer um que fique
no seu caminho.
Rhyme levou a cadeira para perto de Coe.
— Quer mesmo impedi-lo?
— O Fantasma? Com toda a minha alma.
Essa pergunta fora fácil. Agora Rhyme fez a difícil: — O que está
disposto a arriscar para isso?
Mas não houve hesitação quando o agente disse: — Tudo.
Capítulo 48
— Pode haver um problema — disse a voz de homem pelo
telefone.
Sentado no banco do meio de um grande furgão do INS a
caminho do Aeroporto Kennedy, o suarento Harold Peabody
concordou com a cabeça como se a pessoa do outro lado da linha
pudesse vê-lo.
Ele não precisava de problemas, não com este caso.
— Problema. Sei. Continue.
O homem ao lado de Peabody estremeceu ao ouvir essas
palavras, o homem quieto de terno azul-marinho, Webley, que
trabalhava para o Departamento de Estado e que tornara a vida de
Peabody um incômodo desde que viera de Washington na tarde do
dia em que o Fujou Dragon afundara. Webley virou a cabeça para
Peabody, mas permaneceu com o rosto de pedra, uma habilidade em
que era extremamente bom.
— Alan Coe desapareceu — disse o homem que telefonava, o
agente especial assistente encarregado do escritório do FBI em
Manha an. — Recebemos um relatório de que ele esteve
conversando com Rhyme. Depois desapareceu de novo.
— Certo. — Peabody tentou deduzir o que isso significava. Atrás
de Peabody e Webley estavam dois agentes do INS armados de cada
lado do Fantasma, cujas algemas ficavam tilintando enquanto ele
tomava seu café do Starbucks. O cabeça de cobra, pelo menos, parecia
não se perturbar com a conversa sobre problemas.
— Continue — disse Peabody ao telefone.
— Estávamos de olho em Coe, como você disse. Porque não
tínhamos certeza se ele tentaria causar algum dano ao elemento.
Causar dano ao elemento... Que modo escroto de falar, pensou
Peabody. — E?
— Bem, não conseguimos encontrá-lo. E não encontramos
Rhyme.
— Rhyme está numa cadeira de rodas. Qual é dificuldade em
segui-lo? — O pastoso Peabody estava encharcado. A tempestade
passara e, apesar de o céu continuar nublado, a temperatura estava
por volta dos trinta graus. E o furgão do governo tinha ar-
condicionado do governo.
— Não havia ordem de vigilância — respondeu calmamente o
AEAE. — Nós tivemos que cuidar disso... informalmente. — Sua
equanimidade, pensou Peabody, pôs o agente do FBI no controle da
situação e ele se lembrou de tentar obter mais poder.
A burocracia era uma merda.
— Qual é a sua avaliação situacional? — perguntou Peabody.
Pensando: Que tal esse jargão, seu babaca?
— Você sabe que Coe tinha como prioridade máxima pegar ele
próprio o Fantasma.
— Certo. E?
— Rhyme é o melhor detetive forense do país. Estivemos
farejando o pensamento de que ele e Coe podem estar planejando
pegar o Fantasma.
Como é que se fareja um pensamento?, pensou Peabody.
— O que quer dizer?
— Com o domínio de Rhyme da ciência forense, eles podem
imaginar algum modo de tornar impossível condenar Coe.
Manipular as evidências de algum modo.
— O quê? — zombou Peabody. — Isso é ridículo. Rhyme não
faria isso.
Essas palavras provocaram alguma emoção em Webley. Ele
franziu a testa.
— Por que não? — prosseguiu o AEAE. — Desde o acidente ele
não é a pessoa mais estável do mundo. Sempre teve um negócio de
se matar. E parece que ficou muito chegado àquele policial chinês.
Talvez, ao matar Li, o Fantasma tenha derramado a gota d'água.
Isso parecia maluquice, mas quem podia saber? Peabody pegava
gente tentando entrar ilegalmente no país e mandava para casa.
Nada sabia do funcionamento da mente criminosa. De fato, não
tinha qualquer experiência com psicologia, a não ser ao pagar,
ressentido, as contas do analista da esposa.
Quanto a Coe, bem, ele definitivamente era instável o bastante
para tentar acabar com o Fantasma. Já havia tentado matá-lo —
diante do apartamento dos Wu na Canal Street.
— O que Dellray diz? — perguntou Peabody.
— Neste momento ele está operacional no campo. Não está
ligando de volta.
— Ele não trabalha para você?
— Dellray quase que só trabalha para Dellray.
— O que você está sugerindo que a gente faça? — perguntou
Peabody, usando o paletó marrom e amarrotado para enxugar o
rosto.
— Acha que Coe pode estar seguindo vocês?
Peabody olhou em volta, para os bilhões de carros na via
expressa Van Wyck.
— Como se eu pudesse saber, porra — respondeu, desistindo
totalmente da linguagem governamental de alto nível.
— Se ele tentar fazer alguma coisa, será no aeroporto. Diga ao
seu pessoal para procurá-lo. Vou avisar à segurança da Autoridade
Portuária também.
— Eu simplesmente não acho que isso vá acontecer.
— Obrigado pela avaliação, Harold. Mas não podemos esquecer
que quem pegou o sacana foi Rhyme, e não você. — A linha ficou
muda.
Peabody se virou e examinou o Fantasma, que perguntou: — O
que foi?
— Nada. — Peabody perguntou a um dos agentes: — Temos
coletes à prova de bala lá atrás?
— Não — respondeu um. Depois: — Bom, eu estou usando um
colete.
— Eu também — disse o outro agente.
O tom de suas vozes dizia que eles não estavam dispostos a cedê-
los.
Tampouco Peabody pediria a seus agentes para fazer isso. Se Coe
tentasse pegar o Fantasma e tivesse sucesso, bem, a coisa era assim.
Ele e Rhyme teriam que assumir as consequências.
Inclinou-se e falou ríspido ao motorista: — Você não pode fazer
droga nenhuma com esse ar-condicionado?

As algemas em seus pulsos pareciam leves como seda.


Elas sairiam assim que ele estivesse na porta do avião que ia levá-
lo de volta do Belo País para casa e, como sabia disso, as contenções
de metal já tinham deixado de existir.
Andando pelo corredor internacional do aeroporto JFK, ele
refletia em como havia mudado o estilo de voar no Extremo Oriente.
Pensando nos velhos tempos em que ele viajava pela companhia
aérea nacional da China, a CAAC — que todo chinês que falava
inglês sabia que significava ”Chinese Airlines Always Crash”
(Aviões Chineses Sempre Caem). Agora as coisas eram diferentes.
Hoje era a Northwest Airlines para Los Angeles, depois um voo da
China Air para Cingapura com conexão para Fujou classe executiva
a viagem toda.
O grupo era curioso: o Fantasma, dois guardas armados e os dois
homens encarregados — Peabody do INS e o homem do
Departamento de Estado dos Estados Unidos. Agora juntaram-se a
eles dois guardas armados da Autoridade Portuária, homens
grandes, nervosos como esquilos, que mantinham as mãos perto das
armas enquanto examinavam a multidão.
O Fantasma não sabia exatamente a que se deviam a inquietação
e o poder de fogo, mas achava que tinha havido ameaça de morte
contra ele. Bom, isso não era novidade. Convivera com a morte
desde a noite em que os Quatro Velhos assassinaram sua família.
Passos atrás.
— Sr. Kwan... Sr. Kwan!
Eles se viraram e viram um chinês magro de terno andando
rapidamente na sua direção. Os guardas sacaram as armas e o
homem parou, olhos arregalados.
— É meu advogado — disse o Fantasma.
— Tem certeza? — perguntou Peabody.
— O que quer dizer com tem certeza?
Peabody assentiu para o homem, revistou-o apesar dos protestos
do Fantasma e deixaram-no se afastar com o Fantasma para o lado
do corredor. O Fantasma virou o ouvido para a boca do advogado.
— Vá em frente.
— Os Chang e os Wu estão soltos sob fiança, até a audiência.
Parece que vão receber asilo. Os Wu estão em Flushing, Queens. Os
Chang voltaram para Owls Head. O mesmo apartamento.
— E Yindao? — sussurrou o Fantasma.
O homem piscou diante da palavra grosseira. O cabeça de cobra
se corrigiu.
— Quer dizer, a tal de Sachs.
— Ah, eu tenho o endereço dela também. E o de Lincoln Rhyme.
Quer que anote para você?
— Não, só me diga devagar. Eu me lembrarei deles.
Depois de apenas três repetições o Fantasma havia memorizado.
Falou: — Você vai encontrar seu dinheiro na conta. — Não era
preciso dizer quanto dinheiro nem que conta.
O advogado assentiu e, com um olhar para os guardas do
Fantasma, virou-se e foi embora.
O grupo continuou pelo corredor. Em frente o Fantasma podia
ver o portão, as funcionárias bonitas atrás do balcão de check-in.
Pela janela captou um vislumbre do 747 que logo o levaria para
oeste, como o Macaco fazendo sua peregrinação, no fim da qual
encontrou esclarecimento e contentamento.
Seu bilhete de embarque estava se projetando do bolso da
camisa. Ele tinha 10.000 ienes na carteira. Tinha a escolta de um
homem do governo americano. Ia para casa, para seus apartamentos,
suas mulheres, seu dinheiro.
Estava livre. Ele...
Então um movimento súbito...
Alguém estava se movendo para ele rapidamente, e os guardas o
empurravam para o lado, as armas saindo dos coldres de novo. O
Fantasma, ofegante pelo choque, pensou que ia morrer. Murmurou
uma prece rápida ao seu guardião, o arqueiro Yi.
Mas o atacante parou. Com a respiração insegura, o Fantasma
começou a rir.
— Olá, Yindao.
Ela estava usando jeans, camiseta e agasalho, o distintivo no
pescoço. Mãos nos quadris, uma das quais muito perto da pistola. A
policial ignorou o Fantasma e olhou para os nervosos e jovens
agentes do INS.
— É melhor vocês terem um motivo muito bom para estarem
sacando contra mim.
Eles começaram a guardar as armas, mas Peabody sinalizou que
não o fizessem.
O Fantasma concentrou o olhar além de Yindao. Atrás dela havia
um negro alto, de terno branco e camisa azul espalhafatosa. O
policial gordo que o havia prendido no Brooklyn também estava lá,
bem como vários policiais municipais uniformizados. Mas a única
pessoa desse grupo que capturava toda a sua atenção era um homem
bonito de cabelos escuros, mais ou menos de sua idade, sentado
numa cadeira de rodas complicada e de um vermelho brilhante, à
qual seus braços e pernas estavam amarrados com correias. Um
rapaz bem cuidado — seu ajudante ou enfermeiro — estava atrás da
cadeira.
Claro, aquele era Lincoln Rhyme. O Fantasma examinou o sujeito
curioso — que milagrosamente havia descoberto a localização do
Fujou Dragon no mar, que tinha achado os Wu e os Chang e que
tinha obtido sucesso em capturar o próprio Fantasma. Coisa que
nenhum outro policial do mundo pudera fazer.
Harold Peabody enxugou o rosto com a manga, examinou a
situação e fez um gesto para os guardas recuarem. Eles guardaram
as armas.
— Do que se trata, Rhyme?
Mas o sujeito o ignorou e continuou a examinar cuidadosamente
o cabeça de cobra. O Fantasma sentiu uma pontada de inquietação,
mas dominou a sensação. Ele possuía guanxi no nível mais alto.
Estava imune até mesmo à magia de Lincoln Rhyme, a quem
perguntou com brusquidão: — Quem exatamente é você?
— Eu? — respondeu o aleijado. — Sou um dos dez juízes do
inferno.
O Fantasma gargalhou.
— Então você escreve nomes no Registro dos Vivos e dos Mortos!
— É, é exatamente o que eu faço.
— E veio me ver partir?
— Não.
Peabody falou cautelosamente: — E o que você quer?
O burocrata do Departamento de Estado disse com impaciência:
— Todos vocês, agora... simplesmente saiam daqui.
— Ele não vai entrar naquele avião — disse Lincoln Rhyme.
— Ah, vai, sim — disse a autoridade inexpressiva. Em seguida se
adiantou, tirando do bolso a passagem do Fantasma e indo para o
funcionário no portão de embarque.
— Se der mais um passo para aquele avião — disse o policial
gordo ao sujeito —, estes agentes estão autorizados a prendê-lo.
— A mim? — murmurou Webley, irado.
Peabody deu um riso agudo e olhou para o agente negro.
— Dellray, que merda é essa?
— Provavelmente você deveria ouvir o meu amigo aqui, Harold.
No seu melhor interesse, acredite.
— Cinco minutos — disse Peabody.
Uma expressão lamentosa atravessou o rosto de Lincoln Rhyme.
— Ah, acho que vai demorar um pouquinho mais.
Capítulo 49
O cabeça de cobra era muito menor e mais compacto do que
Lincoln Rhyme tinha esperado. Este era um fenômeno que ele
recordava dos dias em que comandava a unidade forense do NYPD;
os criminosos que ele perseguia tinham estatura desproporcional em
sua mente, e quando os via em pessoa pela primeira vez —
geralmente no julgamento — costumava ficar surpreso ao perceber
como eram pequenos.
O Fantasma estava algemado e rodeado de policiais. Preocupado,
sim, mas ainda no controle, sereno, ombros e braços relaxados. O
criminalista entendeu imediatamente como Sachs podia ter sido
enganada por ele: os olhos do Fantasma eram os de um curandeiro,
de um médico, de um homem espiritual. Eram capazes de exprimir
conforto aparente e convidar à revelação de segredos. Mas,
conhecendo o sujeito agora, Rhyme podia ver no olhar plácido
evidências de um ego implacável e violência.
— Certo, senhor, de que se trata tudo isso? — perguntou o amigo
de Peabody, Webley, do Departamento de Estado, como Rhyme
pensava nele agora, ecoando a identificação pomposa que o próprio
sujeito fizera na sala de Rhyme no outro dia.
— Sabem o que acontece algumas vezes na nossa linha de
trabalho, cavalheiros? — indagou Rhyme aos dois. — Quer dizer, na
ciência forense.
Webley, do Departamento de Estado, começou a falar, mas
Peabody sinalizou que ficasse quieto. Rhyme não deixaria ninguém
apressá-lo mesmo. Ninguém apressava Lincoln Rhyme quando ele
não queria ser apressado.
— Algumas vezes perdemos de vista o quadro geral. Certo, eu
admito que eu perco de vista mais do que, digamos, minha Sachs
aqui. Ela olha para a motivação, olha os motivos por que as pessoas
fazem o que fazem. Mas esta não é a minha natureza. Minha
natureza é examinar cada peça de indício e colocá-la no lugar a que
pertence. — Ele olhou o Fantasma com um sorriso. — Como colocar
uma pedra num tabuleiro de wei-chi.
O cabeça de cobra, que tinha trazido tanta tristeza para tantas
vidas, não disse nada, não admitiu que reconhecia a expressão. O
funcionário do portão de embarque anunciou o pré-embarque do
voo da Northwest Airlines para Los Angeles.
— Nós deduzimos as pistas muito bem. — Um movimento de
cabeça para o Fantasma. — Afinal de contas, ele foi apanhado, certo?
Graças a nós. E conseguimos provas suficientes para condená-lo à
morte. Mas o que acontece? Ele está indo embora, livre.
— Ele não está indo embora livre — interveio Peabody. — Ele
está voltando para ser julgado na China.
— Livre da jurisdição onde cometeu vários crimes sérios nos
últimos dias — corrigiu Rhyme incisivamente. — Nós precisamos
discutir?
Isso foi demais para Webley, do Departamento de Estado.
— Vá ao ponto ou eu vou colocá-lo naquele avião.
Rhyme continuou ignorando o sujeito. Estava no centro do palco
e não abriria mão disso.
— O quadro geral... quadro geral... eu estava pensando em como
eu me sentia mal. Olhem, eu tinha descoberto onde o Fujou Dragon
estava e mandei a Guarda Costeira atrás, mas... o que aconteceu? Ele
afundou o navio, matando todas aquelas pessoas.
Peabody balançou a cabeça.
— Claro que você se sentiria mal — falou com alguma simpatia.
— Nós todos nos sentimos mal, mas...
Rhyme continuou com todo o pique: — O quadro geral... Vamos
pensar nisso. É terça-feira, logo antes do amanhecer, a bordo do
Dragon. Você é o Fantasma, um homem procurado, procurado por
crimes capitais, e a Guarda Costeira está a meia hora de abordar seu
navio de contrabando. O que você teria feito?
O funcionário do portão continuava fazendo o embarque.
Peabody suspirou. Webley, do Departamento de Estado,
murmurou algo baixinho; Rhyme soube que não era elogio. O
Fantasma se remexeu, mas ficou quieto.
Como ninguém ia ajudá-lo, Rhyme continuou: — Eu,
pessoalmente, teria pegado meu dinheiro, ordenado que o Dragon
voltasse ao mar a toda velocidade e escapado para o litoral numa
balsa. A Guarda Costeira, os policiais e o INS ficariam tão ocupados
com a tripulação e os imigrantes que eu facilmente poderia chegar a
terra e estar a meio caminho de Chinatown antes que eles
percebessem que eu tinha ido embora. Mas o que o Fantasma fez?
Rhyme olhou para Sachs, que disse: — Trancou os imigrantes no
depósito, afundou o navio e depois caçou os sobreviventes. E se
arriscou a ser apanhado ou morto ao fazer isso.
— E quando não matou todos na praia — Rhyme retomou a
narrativa —, ele os seguiu até a cidade e tentou assassiná-los lá. Por
que, diabos, faria isso?
— Bom, eles eram testemunhas — disse Peabody. — Ele tinha
que matá-los.
— Ah, por quê? Esta é a pergunta que ninguém está fazendo. O
que isso lhe renderia?
Peabody e Webley, do Departamento de Estado, ficaram quietos.
Rhyme continuou: — Tudo que os passageiros do navio podiam
fazer era testemunhar num processo de contrabando de pessoas.
Mas já havia uma dúzia de mandados contra ele em todo o mundo,
relativos a contrabando. E também acusações de homicídio, é só
olhar o Boletim Vermelho da Interpol. Não fazia sentido correr tanto
risco para matá-los só porque eram testemunhas. — Ele parou
alguns segundos histriônicos. — Mas matá-los faz todo o sentido se
os passageiros fossem as vítimas que ele pretendia fazer.
Rhyme pôde ver duas reações diferentes nos rostos deles.
Peabody ficou perplexo e surpreso. Nos olhos de Webley, do
Departamento de Estado, havia um olhar diferente. Ele sabia
exatamente aonde Rhyme queria chegar.
— Vítimas — continuou Rhyme. — Esta é a palavra-chave. Vejam
bem, minha Sachs achou uma carta quando foi nadar um pouquinho
no Dragon.
O Fantasma, que estivera olhando Sachs, virou-se lentamente
para Rhyme ao ouvir isso.
— Uma carta? — perguntou Peabody.
— Ela dizia, mais ou menos: aqui está seu dinheiro e uma lista
das vítimas que você vai levar para a América... Estamos captando o
quadro geral, cavalheiros? A carta não dizia ”passageiros”,
”imigrantes” ou ”porquinhos”, nem o seu termo pouco delicado,
Peabody, ”sem documentos”. A carta dizia, entre aspas, ”vítimas”. A
princípio, quando pedi que a carta fosse traduzida, eu não percebi
que essa foi a palavra exata usada pelo remetente. E o quadro geral
se torna muito mais claro quando olhamos quem eram as vítimas:
eram todos dissidentes chineses e suas famílias. O Fantasma não é
simplesmente um cabeça de cobra. Também é um assassino
profissional. Ele foi contratado para assassiná-los.
— Este homem está maluco — disse o Fantasma rispidamente. —
Está desesperado. Quero ir embora agora.
— O Fantasma estava planejando o tempo todo afundar o
Dragon — disse Rhyme. — Só estava esperando que o navio
chegasse suficientemente perto da costa, para que ele e seu bangshou
pudessem chegar a terra em segurança. Mas algumas coisas deram
errado. Nós achamos o navio e mandamos a Guarda Costeira, de
modo que ele teve que agir antes do que havia planejado; alguns
imigrantes escaparam. E o explosivo era forte demais, e o navio
afundou antes que ele pudesse pegar suas armas e o dinheiro e achar
o ajudante.
— Isso é absurdo — murmurou Webley, do Departamento de
Estado. — Pequim não contrataria ninguém para matar dissidentes.
Não estamos mais nos anos 60.
— Pequim não fez isso — respondeu Rhyme —, como suspeito
de que você provavelmente sabia, Webley. Não, nós descobrimos
quem mandou as instruções e o dinheiro ao Fantasma. O nome dele
é Ling Shuibian.
O Fantasma olhou desesperado para o portão de embarque.
— Mandei um e-mail à polícia de Fujou, com o nome e o
endereço de Ling, e disse que achava que ele era um dos parceiros
do Fantasma. Mas eles mandaram uma mensagem de volta dizendo
que eu devia estar enganado. O endereço dele era um prédio do
governo em Fujou. Ling é o secretário de Comércio do governo de
Fujou.
— O que isso significa? — perguntou Peabody.
— Que ele é um déspota corrupto. Não é óbvio? Ele e seu pessoal
estão recebendo milhões em suborno de empresas de todo o sudeste
da China. Provavelmente ele está trabalhando com o governo, mas
não tenho provas disso. Pelo menos ainda não.
— Impossível — sugeriu Webley, ainda que com muito menos
empáfia do que antes.
— De jeito nenhum — disse Rhyme. — Sonny Li me contou sobre
a Província de Fujian. Ela sempre foi mais independente do que
agrada ao governo central. Tem a maioria das conexões com o
Ocidente e com Taiwan, e mais dinheiro também. E os dissidentes
mais ativos. Pequim vive ameaçando intervir na província,
nacionalizar as empresas de novo e colocar gente deles no poder. Se
isso acontecer, Ling e seus rapazes perdem os ganhos. Então, como
manter Pequim feliz? Matando todos os dissidentes que se
manifestam muito. E que modo melhor do que contratando um
cabeça de cobra? Se eles morrerem a caminho de outro país, a culpa
é deles, não do governo.
— E muito provavelmente — disse Sachs — ninguém sequer
saberia que eles haviam morrido. Seria apenas um barco cheio de
desaparecidos. — Assentindo para Webley, do Departamento de
Estado, ela lembrou: — Rhyme?
— Ah, certo. A última peça do quebra-cabeça. Por que o
Fantasma está indo embora em liberdade? — perguntou a Webley.
— Você o está mandando de volta, feliz, para Ling e o pessoal dele
em Fujian Para garantir que nossos interesses comerciais não sejam
afetados. O sudeste da China é o maior polo de investimentos dos
Estados Unidos no mundo.
— Isso é besteira — respondeu o sujeito com rispidez.
— Isso é ridículo — disse o Fantasma. — É a mentira de um
homem desesperado. — E dirigiu-se a Rhyme. — Onde está a prova?
— Prova? Bom, nós temos a carta de Ling. Mas se você quiser
mais... Lembra, Harold? Você me disse que outras cargas de
imigrantes do Fantasma desapareceram no último ano. Eu verifiquei
as declarações dos parentes deles no banco de dados da Interpol. A
maioria das vítimas também era de dissidentes de Fujian.
— Isso não é verdade — disse o Fantasma rapidamente.
— E há o dinheiro — continuou Rhyme, ignorando o cabeça de
cobra.
— Dinheiro?
— O pagamento pelo contrabando. Quando Sachs foi dar seu
mergulhinho no Atlântico achou cento e vinte mil dólares
americanos e cerca de vinte mil em ienes velhos. Convidei um amigo
meu do INS para me ajudar a examinar as provas. Ele...
— Quem? — perguntou Peabody incisivamente. Depois
entendeu. — Alan Coe? Foi ele, não foi?
— Um amigo. Deixemos assim.
De fato, o amigo era o agente Coe, que também passou o dia
roubando documentos secretos do INS, o que provavelmente lhe
custaria o emprego, se é que não uma sentença de prisão. Esse era o
risco ao qual Rhyme havia se referido antes, e que Coe ficou feliz em
correr.
— A primeira coisa que ele notou foi o dinheiro. Ele disse que
quando os imigrantes contratam a viagem com cabeças de cobra eles
não podem fazer o pagamento em dólares — porque não há dólares
na China, pelo menos não o bastante para pagar a passagem para os
Estados Unidos. Eles sempre pagam em ienes. Com uma carga de
cerca de vinte e cinco imigrantes, isso significa que Sachs devia ter
achado pelo menos meio milhão de ienes; só pelo pagamento inicial.
Então por que havia tão pouco dinheiro chinês a bordo? Porque o
Fantasma cobrou praticamente nada, para garantir que os
dissidentes da lista pudessem fazer a viagem. O Fantasma estava
lucrando com o pagamento para matá-los. Os cento e vinte mil
dólares? Bom, esse era o pagamento inicial feito por Ling. Eu
verifiquei o número de série de algumas notas e, segundo o Federal
Reserve, aquele dinheiro foi visto pela última vez indo para o Bank
of South China em Cingapura. Que por acaso costuma ser usado
regularmente pelos ministérios do governo de Fujian.
Mais filas iam embarcando. Agora o Fantasma estava realmente
desesperado.
Peabody tinha ficado quieto e estava pensando em tudo aquilo.
Parecia estar hesitando. Mas o funcionário do Departamento de
Estado se mostrou decidido.
— Ele vai entrar naquele avião, e é só isso que interessa.
Rhyme franziu o cenho e inclinou a cabeça.
— A que altura estamos na escada de provas, Sachs?
— Que tal o C4?
— Certo, o explosivo usado para afundar o navio. O FBI o
rastreou até um traficante de armas norte-coreano, que regularmente
o vende... adivinha a quem? Para as bases do Exército de Libertação
Popular em Fujian. O governo deu o C4 ao Fantasma. — Rhyme
fechou os olhos por um breve momento. Eles se abriram de repente.
— E há o celular que Sachs achou na praia... era um telefone por
satélite, de uso exclusivo do governo. A rede que ele usou era
baseada em Fujou.
— Os caminhões, Rhyme — lembrou Sachs. — Fale a eles dos
caminhões.
Rhyme assentiu, jamais conseguindo resistir a dar uma aula
sobre seu trabalho.
— Uma coisa interessante no trabalho nas cenas de crime...
algumas vezes o que você não acha numa cena é tão importante
quanto o que acha. Eu estava olhando para a nossa tabela de provas
e percebi que faltava uma coisa: onde estavam os indícios dos
caminhões para os imigrantes? Meu amigo do INS disse que o
transporte terrestre faz parte do contrato de contrabando. Mas não
havia nenhum caminhão. O único veículo na praia era o de Jerry
Tang, para pegar o Fantasma e seu bangshou. Bom, por que não havia
caminhões? Porque o Fantasma sabia que os imigrantes nunca
chegariam vivos a terra.
A fila de passageiros embarcando estava encolhendo. Webley, do
Departamento de Estado, se curvou e sussurrou maligno no rosto de
Rhyme: — Você está se metendo no que não deve, moço. Não sabe o
que está fazendo.
Rhyme o encarou de volta fingindo contrição.
— Não, não sei de nada. Não sei nenhuma palavra de política,
nem de les affaires d’état... não passo de um cientista. Meu
conhecimento é lamentavelmente limitado. A coisas como, digamos,
dinamite falsa.
O que calou instantaneamente Webley, do Departamento de
Estado.
— É aqui que eu entro — disse Dellray. — Infelizmente para
vocês.
Peabody pigarreou inquieto.
— Do que está falando? — perguntou, mas só porque o roteiro
exigia que ele fizesse a pergunta, cuja resposta era a última coisa no
mundo que ele queria ouvir.
— A bomba no carro de Fred, lembra? Bom, os resultados sobre a
dinamite vieram do laboratório. Era serragem misturada com resina.
Falsa. Usada para treinamento. Meu amigo do INS disse que a
Imigração tinha seu próprio esquadrão antibombas e sua instalação
para treinamento em Manha an, e passou lá hoje cedo. Eles têm
explosivos falsos para ensinar os recrutas a reconhecer e manusear.
As bananas no carro de Fred combinavam com as amostras de lá. E
os números no detonador são semelhantes a alguns que ele achou
num armário de evidências do INS — foram confiscados no ano
passado quando alguns agentes prenderam uma dúzia de russos
ilegais em Coney Island.
Rhyme adorou a rápida expressão de terror nos olhos de
Peabody. O criminalista ficou surpreso ao ver que Webley, do
Departamento de Estado, ainda conseguia parecer muito indignado.
— Se está sugerindo que alguém do governo federal machucaria
um colega...
— Machucaria? Como um detonador pequeno poderia machucar
alguém? Na verdade era só uma bombinha de festa. Não: a
importante acusação criminal em que eu pensaria seria de
interferência criminosa numa investigação, porque parece que vocês
queriam Fred fora do caso temporariamente.
— E por quê?
Dellray, com seu terno branco, assumiu a vez, adiantando-se e
empurrando Webley, do Departamento de Estado, contra a parede.
— Eu estava agitando demais. Montando a equipe SPECTAC que
pegaria o Fantasma sem frescura, sem fazer merda como o pessoal
do INS estava fazendo. Diabo, acho que era por isso que eu estava no
caso, para começar. Eu não sabia nada de contrabando de pessoas. E
quando arranjei um especialista para assumir o caso, Dan Wong,
ficamos sabendo que ele estava com o rabo sentado num avião indo
para o oeste.
Rhyme resumiu:
— Fred tinha que sair para que vocês pudessem fazer o que
queriam com o Fantasma, pegando-o vivo e tirando-o em segurança
do país como parte de um trato entre o Departamento de Estado e
Ling, em Fujian. — Um movimento de cabeça para o avião. —
Exatamente como o que aconteceu.
— Eu não sabia de nada sobre matar dissidentes — disse
Peabody com brusquidão. — Isso nunca me foi dito. Juro!
— Cuidado — murmurou Webley, do Departamento de Estado,
ameaçadoramente.
— Eles só disseram que precisavam manter o Departamento de
Justiça minimizado. Havia questões importantes de segurança
nacional em risco. Ninguém mencionou interesses comerciais,
ninguém mencionou...
— Harold! — Webley, do Departamento de Estado, estalou o
chicote. Depois se virou de costas para o burocrata suarento e disse
numa voz razoável: — Olhem, se — e eu estou dizendo se — alguma
coisa disso for verdade, você tem que perceber que há muito mais do
que apenas este homem, Lincoln. O disfarce do Fantasma foi
destruído. Ele não vai afundar mais navios. Ninguém mais vai
contratá-lo como cabeça de cobra depois disso. Mas — o diplomata
continuou com voz macia — se nós o mandarmos de volta, isso vai
manter os chineses felizes. Pequim não vai intervir nas províncias e o
resultado será uma economia melhor para o povo de lá. E com mais
influência americana haverá melhoria nos direitos humanos. — Ele
ergueu as mãos, com as palmas para cima. — Algumas vezes nós
temos que fazer escolhas difíceis.
Rhyme assentiu.
— Então o que você está dizendo é que é essencialmente uma
questão de política e diplomacia.
Webley, do Departamento de Estado, sorriu, satisfeito porque
finalmente Rhyme entendia.
— Exato. Pelo bem dos dois países. É um sacrifício, claro, mas um
sacrifício que eu acho que precisa ser feito.
Rhyme pensou um momento. Depois disse a Sachs: — Podíamos
chamar de Grande Sacrifício Historicamente Sem Precedentes Pelo
Bem do Povo.
O rosto de Webley, do Departamento de Estado, se retorceu com
o sarcasmo de Rhyme.
— Veja bem — explicou o criminalista —, a política é complicada,
a diplomacia é complicada. Mas o crime é simples. Eu não gosto de
coisas complicadas. De modo que o trato é o seguinte: ou você nos
entrega o Fantasma para ser processado neste país ou o deixa ir livre
para casa. Se fizer isso, revelaremos ao público o fato de que vocês
estão soltando um perpetrador de múltiplos homicídios. Por
motivos políticos e econômicos. E que vocês agrediram um agente
do FBI ao fazer isso. — E acrescentou lépido: — A escolha é sua. Está
com você.
— Não nos ameace. Vocês não passam de umas porras de
policiais municipais — disse Webley, do Departamento de Estado.
O funcionário do portão anunciou o embarque final do voo.
Agora o Fantasma estava apavorado. Suor na testa, rosto sombrio de
fúria, ele foi até Webley e levantou as mãos, com as algemas
chacoalhando. Sussurrou furioso com ele. O burocrata o ignorou e se
virou de novo para Rhyme.
— Como, diabos, você vai a público? Ninguém vai estar
interessado numa história assim. Você acha que isso é a porra do
Watergate? Nós estamos mandando um chinês de volta para ser
julgado por vários crimes.
— Harold? — perguntou Rhyme.
Arrasado, Peabody falou:
— Sinto muito. Não há nada que eu possa fazer.
— Então esta é sua resposta — respondeu Rhyme, sorrindo
levemente. — Era só o que eu queria. Uma decisão. Você tomou uma
decisão. Bom. — Ele pensou, divertido e com tristeza, que isso era
muito parecido com um jogo de wei-chi. — Thom, poderia mostrar
por favor a ele o nosso trabalho manual? — pediu Rhyme ao
ajudante.
O rapaz tirou um envelope do bolso e entregou a Webley, do
Departamento de Estado. Ele o abriu. Dentro havia um longo
memorando de Rhyme a Peter Hoddins, repórter internacional do
New York Times. Descrevia em detalhe exatamente o que Rhyme
tinha contado a Peabody e Webley.
— Peter e eu somos bons amigos — disse Thom. — Eu lhe disse
que talvez nós pudéssemos dar uma exclusiva sobre o afundamento
do Fujou Dragon e sugeri que as implicações iam até Washington. Ele
ficou muito intrigado.
— Peter é um bom repórter — disse Rhyme, e depois acrescentou
com orgulho: — Ele esteve na lista final para o Puli er.
Webley, do Departamento de Estado, e Peabody se entreolharam
por um momento. Depois se afastaram para o canto da área de
embarque, agora vazia, e cada um deles deu alguns telefonemas.
— Precisamos colocar o Sr. Kwan a bordo da aeronave agora —
disse o funcionário do portão.
Finalmente os dois telefones federais se desligaram e um
momento depois Rhyme teve sua resposta: Webley, do
Departamento de Estado, se virou sem dizer palavra e seguiu pelo
corredor na direção do saguão principal.
— Espere! — gritou o Fantasma. — Havia um trato! Nós
tínhamos um trato!
O homem continuou andando, rasgando o memorando de
Rhyme enquanto andava, sem nem mesmo parar ao jogá-lo numa
lixeira.
Selli o disse ao funcionário do embarque para fechar a porta do
avião. O Sr. Kwan não ia viajar.
Os olhos do Fantasma se cravaram nos de Rhyme, e seus ombros
se curvaram, uma clara bandeira de derrota. Mas um instante depois
parecia que o desespero dessa perda era imediatamente equilibrado
pela esperança da vitória futura, o yang se aprumou com um jorro de
yin, como teria dito Sonny Li. O cabeça de cobra se virou para Sachs.
Olhou-a de cima a baixo com um sorriso gélido.
— Eu sou paciente, Yindao. Tenho certeza de que vamos nos
encontrar de novo. Naixin... Tudo no seu devido tempo, tudo no seu
devido tempo.
Amelia Sachs devolveu o olhar e disse: — Quanto mais cedo,
melhor.
Os olhos dela, decidiu Rhyme, estavam infinitamente mais frios
do que os dele.
Os policiais uniformizados do NYPD assumiram a custódia do
cabeça de cobra.
— Juro que eu não sabia do que se tratava — disse Harold
Peabody. — Eles me disseram que...
Mas Rhyme estava cansado da esgrima verbal. Sem dizer uma
palavra, moveu o dedo ligeiramente no touchpad para virar a Storm
Arrow para longe do burocrata.
Foi Amelia Sachs quem proporcionou a interação final entre os
vários ramos do governo em relação a Kwan Ang, Gui, o Fantasma.
Ela estendeu a mão para o perturbado Harold Peabody e perguntou:
— Pode me dar as chaves das algemas, por favor? Se quiser as
algemas de volta depois de ele ser fichado, eu as deixo para você na
Detenção Masculina.
Capítulo 50
Vários dias depois, o Fantasma tinha sido indiciado e estava
preso sem direito a fiança.
A lista de crimes era longa: acusações estaduais e federais de
assassinato, contrabando de pessoas, agressão, posse de armas de
fogo, lavagem de dinheiro.
Dellray e seus chefes no Departamento de Justiça tinham mexido
os pauzinhos na promotoria federal e, em troca de seu testemunho
contra o Fantasma, Sen Zi-jun, capitão do falecido Fujou Dragon,
recebeu imunidade para as acusações de contrabando de pessoas.
Ele testemunharia no julgamento do Fantasma e, depois disso, seria
deportado para a China.
Rhyme e Sachs estavam no momento sozinhos no quarto dele, e a
policial se olhava no espelho de corpo inteiro.
— Você está ótima — gritou o criminalista. Ela deveria
comparecer ao tribunal dentro de uma hora. Era uma sessão
importante e ela estava preocupada, pensando em seu desempenho
diante da juíza.
Balançou a cabeça, incerta.
— Não sei.
Amelia Sachs, que não olhou para trás quando desistira de ser
modelo, dizia-se uma ”garota de jeans e suéter”. No momento estava
vestida com um conjunto azul impecável, blusa branca e, meu Deus,
observou Rhyme agora, um par de altamente apreciáveis Joan
Davies de saltos altos que elevava sua altura a bem mais de um
metro e oitenta. Seus cabelos ruivos estavam perfeitamente
arrumados no topo da cabeça.
Mesmo assim continuava sendo a sua Sachs; os brincos de prata
tinham a forma de balas minúsculas.
O telefone tocou e Rhyme disse em voz alta: — Comando.
Atender telefone.
Clic.
— Lincoln? — perguntou uma voz de mulher pelo alto-falante.
— Dra. Weaver — disse Rhyme à neurocirurgia.
Sachs voltou a atenção para longe da roupa e se sentou na beira
da cama Flexicair.
— Recebi seu telefonema — disse a médica. — Meu assistente
disse que era importante. Está tudo bem?
— Ótimo.
— Está seguindo o regime que eu dei? Sem álcool, com muito
sono? — Depois ela acrescentou com algum humor: — Não, diga
você, Thom. Você está aí?
— Ele está no outro quarto — disse Rhyme rindo. — Ninguém
está aqui para abrir o bico contra mim.
A não ser Sachs, claro, mas ela não iria dedurá-lo.
— Gostaria que você viesse ao consultório amanhã, para o exame
final antes da cirurgia. Eu estava pensando...
— Doutora?
— Sim?
Rhyme sustentou o olhar de Sachs.
— Decidi não fazer a operação.
— Você...
— Estou cancelando. Abro mão do depósito pelo quarto —
brincou ele — e do pagamento adiantado.
Silêncio por um momento. Depois: — Você queria isso mais do
que qualquer paciente que eu já tive.
— Eu queria, verdade. Mas mudei de ideia.
— Você deve se lembrar de que eu disse o tempo todo que os
riscos eram altos. Foi por isso?
Ele olhou para Sachs. Falou somente: — No fim das contas, creio
que sim. Não sei se o benefício será tão grande.
— Acho uma boa escolha, Lincoln. A escolha sensata. — E
acrescentou: — Estamos fazendo muito progresso com os danos na
coluna vertebral. Sei que você leu a literatura...
— Eu mantenho o dedo no pulso, certo — respondeu ele,
gostando da ironia da metáfora.
— Mas acontecem coisas novas todas as semanas. Ligue quando
quiser. Podemos pensar sobre opções no futuro. Ou só ligue para
bater papo, se quiser.
— Sim. Eu gostaria disso.
— Eu também. Adeus, Rhyme.
— Adeus, doutora. Comando, desligar.
O silêncio encheu o quarto. Então um ruflar de asas e uma
sombra perturbaram o lugar quando um falcão-peregrino pousou na
janela. Os dois olharam o pássaro.
— Tem certeza disso, Rhyme? — indagou Sachs. — Eu estou cem
por cento com você, se quiser ir em frente.
Ele sabia que sim.
Mas também sabia, sem dúvida, que não queria a cirurgia agora.
”Abraça suas limitações... Destino faz você assim, Loaban. E faz você
assim com propósito. Talvez você melhor detetive por causa do que
aconteceu. Sua vida equilibrada agora, estou dizendo.”
— Tenho certeza — disse Rhyme.
Sachs apertou a mão dele. Depois fechou a janela de novo para o
falcão. Rhyme olhou a luz pálida, oblíqua, acertar o rosto dela com a
iluminação recatada de uma pintura de Vermeer. Finalmente
perguntou: — Sachs, você tem certeza que quer fazer isso?
Ele indicou com a cabeça a pasta de papel na mesa ali perto, que
continha uma foto de Po-Yee, várias declarações e documentos de
aparência oficial.
A folha de cima tinha o título: PETIÇÃO DE ADOÇÃO.
Depois ela olhou para Rhyme. Seu olhar lhe disse que ela
também tinha certeza da decisão que havia tomado.
Sentada na sala do juiz, Sachs sorriu para Po-Yee, a Criança
Adorada, que estava a seu lado na cadeira onde a assistente social a
havia posto há alguns instantes. A garota brincava com seu bichinho
de pano.
— Sra. Sachs, este é um procedimento de adoção muito pouco
ortodoxo. Mas presumo que saiba disso.
A juíza Margaret Benson-Wailes, uma mulher pesadona, estava
sentada atrás de sua mesa absolutamente atulhada no escuro
monólito da Corte Familiar de Manha an.
— Sim, meritíssima.
A mulher se curvou para a frente e leu mais um pouco.
— Só posso dizer que nos últimos dois dias falei com mais
pessoas dos Serviços Humanos, Serviços de Família, da prefeitura,
de Albany, da Central de Polícia e do INS do que falo durante um
mês na maioria dos julgamentos de adoção. Diga, policial, como
uma garota magrinha como você tem tanto pistolão nesta cidade?
— Acho que eu tenho sorte.
— Mais do que isso — disse a juíza voltando à pasta. — Ouvi
coisas boas sobre você.
Aparentemente Sachs tinha bom guanxi. Suas conexões iam de
Fred Dellray a Lon Selli o e a Alan Coe (que, longe de ser demitido,
estava assumindo o lugar de Harold Peabody que havia se
aposentado precocemente do Serviço de Imigração). No espaço de
vários dias os quilômetros de papelada burocrática que
acompanham a maioria das adoções tinham sido picotados.
— A senhora entende, claro — continuou a juíza —, que o bem-
estar desta criança vem antes de tudo, de qualquer coisa, e que se eu
não estiver convencida de que esta adoção seja para o bem dela, não
assinarei os papéis.
A mulher tinha o mesmo ar benevolente e carrancudo que
Lincoln Rhyme dominava.
— Eu não aceitaria de outro modo, meritíssima.
Como muitos juízes, aprendera Sachs, Benson-Wailes tendia a
fazer sermões. A mulher se recostou na cadeira e se dirigiu à plateia.
— Bom, o procedimento de adoção em Nova York implica exame
do lar, treinamento e passar tempo com a criança e, geralmente, um
período de três meses de teste. Eu passei a manhã inteira revendo
papéis e relatórios, falando com as assistentes sociais e com a
guardiã legal que nomeamos para a menina. Recebi relatórios muito
bons, mas isso esteve se movendo mais rápido do que a queda dos
Bull's depois da saída de Michael Jordan. De modo que pretendo
fazer o seguinte: vou dar a guarda por um período de três meses,
sujeito a supervisão por parte do Departamento de Serviços Sociais.
No fim desse tempo, se não houver problemas, darei a adoção
permanente, sujeita ao período padrão de três meses de teste.
— Parece bom, meritíssima — concordou Sachs.
A juíza examinou cuidadosamente o rosto de Sachs. Depois, com
um olhar para Po-Yee, apertou o botão do interfone e disse: —
Mande entrar os requerentes.
Um instante depois a porta se abriu e Sam e Mei-Mei Chang
entraram cautelosamente. Ao lado deles estava seu advogado, um
chinês de terno cinza-claro e camisa tão ousadamente vermelha que
poderia ter vindo do armário de Fred Dellray.
Chang acenou para Sachs, que se levantou, adiantou-se e apertou
a mão dele, e depois da mulher. Os olhos de Mei-Mei se arregalaram
ao ver a criança, que Sachs lhe entregou. Ela abraçou PoYee
ferozmente.
— Sr. e Sra. Chang — disse a juíza —, vocês falam inglês?
— Eu falo, um pouco — disse Chang. — Minha mulher, não bom.
— O senhor é o Sr. Sing? — perguntou a juíza ao advogado.
Sim, meritíssima.
— Poderia traduzir, por favor?
Certamente.
— Geralmente o processo de adoção neste país é árduo e
complicado. É praticamente impossível um casal com status de
imigração incerto conseguir uma custódia de adoção.
Uma pausa enquanto Sing traduzia. Mei-Mei assentiu.
— Mas nós temos algumas circunstâncias incomuns aqui. Outra
pausa e a língua chinesa brotou explosivamente da língua de Sing.
Agora Chang e a esposa assentiram. Permaneceram quietos. Mas os
olhos de Mei-Mei se iluminaram, e sua respiração estava saindo
rápida. Ela queria sorrir, Sachs podia ver, mas se continha.
— O pessoal do Serviço de Imigração e Naturalização disse que
vocês pediram asilo e que, por causa do status de dissidentes na
China, ele provavelmente será dado. Isso me garante que vocês
podem trazer alguma estabilidade à vida da criança. Assim como o
fato de que tanto o senhor quanto o seu filho, Sr. Chang, estão
empregados.
— Sim, senhor.
— Senhora, não ”senhor” — corrigiu séria a juíza Benson-Wailes,
uma mulher cujas ordens no tribunal sem dúvida só precisavam ser
dadas uma vez.
— Desculpe, senhora.
Agora a juíza repetiu para os Chang o que dissera a Sachs sobre o
período de teste e a adoção.
A compreensão do inglês por parte dos dois era aparentemente
boa o bastante para que entendessem o significado final das palavras
da juíza sem necessidade de traduções completas. Mei-Mei começou
a chorar baixinho e Sam Chang a abraçou, sorrindo e sussurrando
para ela. Depois Mei-Mei foi até Sachs e a abraçou.
— Xieyde obrigada, obrigada.
A juíza assinou um documento que estava diante dela.
— Podem levar a criança agora — falou dispensando-os. —
Advogado Sing, fale com o escrivão sobre a disposição da papelada.
— Sim, meritíssima.

Sam Chang levou sua família, agora oficialmente acrescida de


mais um membro, até o estacionamento do prédio de pedra negra da
Corte Familiar. Era o seu segundo comparecimento a um tribunal
nesse dia. Mais cedo Chang havia testemunhado na audiência
preliminar da família Wu. O asilo deles era menos garantido do que
o dos Chang, mas seu advogado estava discretamente otimista de
que eles permaneceriam nos Estados Unidos.
Agora os Chang e a policial pararam junto ao carro amarelo dela.
William, que estivera carrancudo e mal-humorado o dia inteiro, se
iluminou ao vê-lo.
— Um Camaro SS — disse ele.
— Conhece carros americanos? — perguntou a mulher, rindo.
— Quem dirigiria outra coisa? — replicou ele, com ar superior. O
garoto magro examinou atentamente o carro esporte. — Isso é uma
doçura, caralho.
— William — sussurrou Chang ameaçadoramente e recebendo
de volta um olhar frio e pouco compreensivo do filho.
Mei-Mei e as crianças continuaram andando até o furgão deles, e
Chan ficou perto da policial. Traduzindo as palavras lentamente,
falou à ruiva: — Tudo você faz por nós, você e o Sr. Rhyme... eu não
está sabendo como agradece. E o neném... Veja, minha esposa, ela
sempre quis...
— Eu entendo — disse a mulher. Sua voz estava embargada, e ele
percebeu que, mesmo apreciando a gratidão, ela estava sem jeito por
recebê-la. Ela se sentou no banco do carro, encolhendo-se
ligeiramente devido a uma junta dolorida ou um músculo
distendido. O motor foi ligado com um barulho forte e ela saiu
rapidamente do estacionamento, cantando os pneus ao acelerar.
Num momento o carro havia desaparecido.
A família deveria chegar pouco depois a uma funerária do
Brooklyn, onde o corpo de Chang Jiechi estava sendo preparado.
Mas Sam Chang continuou onde estava, olhando para o complexo
de tribunais e prédios cinzentos em volta. Precisava de um momento
de solidão, este homem apanhado entre o yin e o yang da vida.
Como ele queria abandonar os aspectos duros, masculinos,
tradicionais, autoritários — os aspectos de sua vida passada na
China — e abraçar o artístico, o feminino, o intuitivo, o novo: tudo
que o Belo País representava! Mas como era difícil fazer isso! Mao
Tsé-tung, refletiu, tinha tentado abolir os velhos costumes e ideias
com um simples decreto, e em resultado praticamente destruíra seu
país.
Não, refletiu Chang, o passado estava sempre conosco. Mas ele
não sabia, ainda não, como achar um lugar para esse passado em seu
futuro. Isso poderia ser feito. Olhe como ficavam próximos o Palácio
Proibido, com seus antigos fantasmas, e a praça Tiananmen, com seu
espírito muito diferente. Mas ele suspeitava que essa reconciliação
seria um processo que duraria o resto de sua vida.
Aqui estava ele, a meio mundo de distância de tudo que era
familiar, pisando na confusão e assolado por desafios.
E também golpeado pela incerteza da vida numa terra estranha.
Mas algumas coisas Chang sabia: Que no festival de varrer túmulos
em outubro ele acharia conforto em arrumar a sepultura do pai,
deixando uma oferta de laranjas e conversando com o espírito dele.
Que Po-Yee, a Criança Adorada, cresceria e se tornaria uma
mulher em completa harmonia com este lugar e esta época notáveis:
o Belo País no início de um novo século, facilmente abraçando as
almas de Hua e Meiguo, China e América, mas transcendendo cada
uma delas.
Que William finalmente teria um quarto só seu e descobriria
outra coisa diferente de seu pai contra a qual se enfurecer, mas que
pouco a pouco sua raiva iria se alçar como uma fênix subindo das
cinzas que esfriavam, e ele também acharia um equilíbrio.
E que o próprio Chang trabalharia duro em seu emprego,
continuaria seus esforços como dissidente e seus dias teriam
prazeres modestos — caminhando com Mei-Mei pelo bairro,
visitando parques e galerias de arte, passando horas em lugares
como A Loja do Lar, onde fariam compras ou simplesmente
andariam pelos corredores, examinando a riqueza nas prateleiras.
Finalmente Sam Chang deu as costas para os prédios altos e
voltou ao furgão, convocado pelo desejo de estar de novo com a
família.
Ainda vestida para seu trabalho disfarçada como executiva de
Manha an, Amelia Sachs entrou na sala de estar.
— E então? — perguntou o criminalista, girando para encará-la.
— Trato feito — respondeu ela, desaparecendo no andar de cima.
Voltou alguns minutos depois, tão jeans e suéter quanto possível.
— Sabe, Sachs — disse ele —, você própria podia ter adotado o
bebê, se quisesse. — Fez uma pausa. — Quer dizer, nós podíamos ter
feito isso.
— Eu sei.
— Por que não quis?
Ela pensou na resposta, e disse: — Um dia desses andei trocando
chumbo com um criminoso num beco de Chinatown, depois fui
nadar a vinte e sete metros debaixo d'água, depois fui participar de
uma prisão... Eu não posso não fazer coisas assim, Rhyme. — Ela
hesitou, como se pensasse no melhor modo de resumir seus
sentimentos, depois riu: — Meu pai me disse que havia dois tipos de
motoristas: os que verificam o ponto cego quando mudam de pista e
os que não fazem isso. Eu não sou de verificar. Se eu tivesse um bebê
em casa, ficaria olhando por cima do ombro o tempo todo. Não daria
certo.
Ele entendeu exatamente o que ela queria dizer. Mas perguntou
em tom brincalhão: — Se não verificar seu ponto cego, não vai se
preocupar com um acidente?
— O truque é simplesmente andar mais rápido do que todo
mundo. Assim não há chance de alguém estar no seu ponto cego.
— Quando você se move, eles não podem pegá-la.
— É.
— Você seria uma boa mãe, Sachs.
— E você seria um bom pai. Isso vai acontecer, Rhyme. Mas
vamos dar uns dois anos. Neste momento temos umas outras coisas
para fazer da vida, não acha? — Ela indicou o quadro-branco, onde
estavam escritas as tabelas do caso FANTASMORTES, o mesmo quadro
branco que estivera coberto de anotações de uma dúzia de casos
anteriores e que seria enchido com dezenas de outros futuros.
Claro, ela está certa, refletiu Lincoln Rhyme; o mundo
representado por aquelas anotações e imagens, este lugar que eles
compartilhavam à beira do abismo eram a natureza deles — pelo
menos por enquanto.
— Eu fiz os arranjos — disse ele.
Rhyme estivera ao telefone fazendo planos para mandar o corpo
de Sonny Li de volta ao pai em Liu Guoyuan, China. Os detalhes
estavam sendo cuidados por uma funerária chinesa.
Havia mais uma tarefa relativa à morte que Rhyme precisava
fazer. Abriu um programa editor de textos. Sachs sentou-se ao lado.
— Vá em frente — disse ela.
Depois de cerca de meia hora escrevendo e reescrevendo, ele e
Sachs finalmente chegaram a isto:

Caro Sr. Li:


Estou escrevendo para expressar meus sentidos pêsames pela
morte de seu filho.
O senhor deveria saber o quanto meus colegas policiais e eu
agradecemos o privilégio de termos podido trabalhar com Sonny
no caso difícil e perigoso que resultou na perda de sua vida.
Ele salvou muitas vidas e levou um criminoso maligno à
justiça — uma tarefa que, sozinhos, não poderíamos ter realizado.
As ações dele trouxeram a mais elevada honra à sua memória, e
ele sempre terá um lugar de grande respeito na comunidade
policial de Nova York.
Sinceramente espero que o senhor sinta tanto orgulho de seu
filho, pela coragem e sacrifício, quanto nós.
Lincoln Rhyme, det. cap., NYPD (apos.)
Rhyme leu e resmungou:
— Está demais. Emocional demais. Vamos recomeçar.
Mas Sachs estendeu a mão e apertou a tecla para imprimir.
— Não, Rhyme. Deixe assim. Algumas vezes, demais é bom.
— Tem certeza?
— Tenho.
Sachs deixou a carta de lado para Eddie Deng traduzir quando o
jovem policial chegasse mais tarde naquele dia.
— Quer voltar às provas? — perguntou ela, fazendo um gesto
com a cabeça na direção dos quadros brancos. Havia muito trabalho
preparatório a ser feito para o julgamento do Fantasma.
— Não — disse Rhyme —, eu quero jogar.
— Jogar?
— É.
— Claro — disse ela fingindo timidez. — Estou no clima para
ganhar.
— Vai querendo — zombou ele.
— Que jogo?
— Wei-chi. O tabuleiro está ali. E aqueles sacos de pedras.
Ela achou o jogo e o arrumou na mesa perto de onde Rhyme
estava estacionado. Olhou para os olhos dele, que examinavam a
grade do tabuleiro, e disse: — Acho que estou sendo passada para
trás, Rhyme. Você já jogou isso antes.
— Sonny e eu jogamos algumas partidas — disse ele em tom
casual.
— Quantas?
— Três. Nem de longe sou um especialista.
— Como se saiu?
O criminalista falou meio na defensiva: — Demora um tempo até
a gente pegar o jeito de um jogo.
— Você perdeu. Todas.
— Mas a última foi por pouco.
Ela olhou o tabuleiro.
— Vamos jogar valendo o quê?
Com um sorriso enigmático, Rhyme respondeu: — Vamos pensar
em alguma coisa. — Depois explicou as regras e ela se inclinou para
a frente, absorvendo fascinada as palavras. Finalmente ele disse: — E
isso... Agora, você nunca jogou, de modo que vai ter uma vantagem:
pode fazer a primeira jogada.
— Não. Nada de vantagens. Vamos tirar na cara ou coroa.
— É o costume.
— Sem vantagem — repetiu Sachs. Depois pegou uma moeda no
bolso. — Escolha.
E jogou a moeda no ar.
Muito obrigado a Kim Arthur e ao pessoal da Invacare e a Cheryl
Lehman pelas informações extremamente úteis sobre o tratamento e
os equipamentos disponíveis para pacientes de lesão na medula
espinhal. E, como sempre, a Madelyn.
Digitalização e Correção: Vítor Chaves.

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