LACAN, J. (1977) OL30.abr2001.Abertura Da Seção Clínica
LACAN, J. (1977) OL30.abr2001.Abertura Da Seção Clínica
LACAN, J. (1977) OL30.abr2001.Abertura Da Seção Clínica
O que é a clínica psicanalítica' Não é complicado. Ela Tudo isso é bem contemporânL do que chamamos
tem uma base - aquilo que se diz em uma análise. saber. É do inconsciente que se trata. E isso não é brilhante -
A princípio, a gente se propõe a dizer qualquer coisa, é preciso fazer um esforço para não atreditar que se é imor
mas não de qualquer lugar - do que chamarei esta noite o tal. Vejam o que eu radiofonei guarita a isso em Scilicet,
dizvã (direvent) analítico1 . Esse vento tem mesmo o seu onde fiquei bem rhodado (rhodé) 4. !
valor - quando se debulha (vanner), há coisas que voam, Então, é preciso clinicar, quer dizer, deitar-se. A clínica
que escapam. A gente pode também se vangloriar (vanter), está sempre ligada à cama - vamos Jer alguém deitado. E
se vangloriar da assim nomeada liberdade de associação. não se descobriu nada melhor do gJe fazer deitar aqueles
O que quer dizer liberdade de associação quando na que se oferecem à psicanálise na ehperança de tirar um
verdade se especula, contrariamente, que a associação não proveito, que não está garantido de siída, é preciso dizer. É
é absolutamente livre? É cena que ela tem um pequeno certo que o homem não pensa da me�ma forma deitado ou
manejo, mas estaríamos errados em estendê-lo ao fato de em pé, nem que seja pelo fato de que em posição deitada
que sejamos livres. O que quer dizer o inconsciente senão ele faz uma série de coisas, o amor em particular - e o amor
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isso mesmo, que as associações são necessárias' O dito não o leva a toda espécie de declarações. INa posição deitada, o
se sacia (sacie) ao acaso'. Contamos com isso mesmo, que homem tem a ilusão de dizer alguma toisa que seja algo do
o dito se sacia - a cada vez que ele não se dissocia, o que no dizer, ou seja, que importe no real. [
final das contas é concebível -, mas cenamente não é por A clínica psicanalítica consiste �o discernimento de
ser dissociado que ele é line. Nada mais necessário do que coisas que importam e que se tornarão maciças a partir do
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o estado de dissociação quando o imaginamos regendo momento em que se toma consciência delas. A inconsciên-
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aquilo que denominamos a relação com o exterior. eia em que estamos com relação a essas coisas que impor-
Eu disse o exterior. Queremos que esse exterior seja tam não tem absolutamente nada a �er com o inconscien
um mundo. Ora, a pressuposição do mundo não é inteira te, que com o tempo acreditei ter de designar/'une-bévue.
mente fundada, o mundo é mais mundado (émondé) do Não basta de forma alguma que se prelsinta seu inconscien-
que se pensa'. Ele é cosmografado. te para que ele recue - isso seria muito fácil. Isso não quer
,
A palana cosmos tem bem seu sentido, ela o consetvou, dizer que o inconsciente nos guie beln.
ela rraz sua marca nos diversos modos de que se fala de cosmos, Um tropeço (bévue) precisa ser ekplicado? Certamente
fala-se de cosméticos [ ... ]. O cosmos é o que é belo. É o que é não. A psICanálise supõe simplesmenle que estamos adver
feito belo. Pelo quê' Em princípio pelo que chamamos razão. tidos para o fato de que um tropeço é sempre de ordem
Mas a r,viio não tem o que fazer no "fazer bonito", que é um significante. Há tropeço (une-bévue)jquando nos engana
assunto ligado à idéia de corpo glorioso, idéia esta que se mos de significante. Um significanfe, é sempre de uma
imagina a panir do simbólico superposto ao imaginário. Mas ordem mais complicada do que um simples signo. Não é
é um cuno circuito. É preciso Eiwin Rhode para perceber essa porque um significante se escreve em signo que isso é
espécie de debilidade mental de onde nascem essas criancices menos verdadeiro. Tomemos, por dxemplo, uma flecha
(mômeries). É com isso que se fazem as múmias (momies), designando uma orientação. É um s'igno, mas não é um
prova de que essa inacreditável crença de que o corpo dura significante. Escrevendo-se, um significante se reduz ao
para sempre na fonma de alma está enraizada há muito tempo. alcance daquilo que significa. Aquilo que ele significa, com
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efeito, pode ter mais ou menos qualquersentido numa dada na realidade trata-se de Deutung, Bedeuten não faz senão
língua. Para avaliar a coisa, tomem por exemplo o sentido reduplicar o engano (bévue) e, de fato, no que diz respeito
da palavra dever (devoir) em francês - deve e ter, o dever à referência, sabenios bem que o engano é costumeiro.
entendido no sentido dos costumes, do que é devido (du) Deuten quer dizer "o sentido", é o que de-quer-dizer (de-
[...I. Que sentido dar ao que Freud avançou na sua veut-diie). Esses joguinhos entre o francês e o alemáo
Traumdeutung, onde ele cozinhou seu inconsciente em servem para elasticizar a conversa, embora a conversa
banho-maria, senão o de que há palavras que nele se consenre toda sua cola.
representam como podem? A iíngua é, qualquer que ela seja, chiclete. O inusitado é
Devo dizer que, mesmo que se tenha querido fazer de que ela guarda suas coisas (trucs). Elas se tornam indefiníveis
Freud um escritor, a Paumdeutung é excessivamente por conta do que chamamos a linguagem e é por isso que
confusa. É realmente tão confusa que não se pode dizer que me permiti dizer que o inconscienteestava estmturado como
seja legível.Queria saber se alguém verdadeiramente já a leu uma linguagem. Um psicanalista não pode não levar em con-
de ponta a ponta. Eu, por dever, me obriguei a isso. Em todo ta a lingüística - a ex-sistência do significante na lingüística -
caso, traduzida em francês, ela não tem as mesmas qualidades mas ela deixa escapar como a verdade se mantém naquilo
que em alemão. Em alemão ela se sustenta, nias nem por que, é preciso dizer. é seu lugar, seu lugar topológico -
isso torna mais clama noção de inconsciente,do Unbewu'te. razão pela qual me permiti falar eni um dado momento
Vocês conhecem o esquema. Há a \Vahrnehmung no de toros.
início - é o que se utiliza em alemão para designar a percep- Então, o inconsciente não é de Freud, é preciso que eu
ção - em seguida algo passa, faz progressos, há diferentes o diga. Ele é de Lacan. Isso não impede que o campo, esse
caniadas de Wahr>zebmunge depois há o UBY o inconsci- sim, seja freudiano.
ente e, depois dissol o Vorbewust, o pré-consciente e, des- O sonho difere, disfreud (dzréreud), a diferenciação!
se ponto, esse algo passa a consciência,Bewustsein. Então decerto não manifesta e totalmente enigmática - basta ver a
eu diria que, até um certo ponto, pus de pé V'airenzissur trabalheira de Freud -entre o que se deve chamar uma de-
p i e 4 o que diz Freud. Se falei de "retorno a Freud e para manda e um desejo. O sonho demanda coisas! mas ai ainda
que se convençam do quanto é capenga. E me parece uma vez a língua alemã não serve a Freud, pois ele não
que a idéia de significante de alguma fornia explica como encontra outra maneira de designá-la senão de chaniá-Ia
isso funciona. um anseio, Wnscb, que está, em suma, entre demanda
O significante não significa absolutamente nada. É as- e desejo.
sim que de Saussure expressou a coisa - ele falou de arbi- Para cada um, não sabemos por qual via alguma coisa
trário e, de fato, não há nenhuma espécie de ligação entre caminha dessas primeiras falas escutadas, fazendo com que
um significante e um significado. Há soniente uma espécie cada um tenha seu inconsciente. Freud envio tinha razáo,
de depósito, de cristalização que se faz e que podemos tan- mas não podemos dizer que o inconsciente tenha sido por
to qualificar de arbitrário como de necessário, no sentido ele verdadeiramente isolado, isolado como faço, pela função
em que Benveniste agitava essa palavra. O que é necessário que chamei de simbólico e que está apontada na noção
é que a palavra tenha um uso e que esse uso seja cristaliza- de significante.
do: cristalizado por esse amalgamar que é o nascimento de Supor que a clínica psicanalítica é isso, indica unia dire-
uma nova língua. Acontece que, não se sabe conio, há um ção aqueles que se dedicam a ela. É preciso definir: o in-
certo número de pessoas que no final das contas fazem uso consciente será ou não aquilo que chamei na época de
dela. O uso que se faz de uma língua, o que o determina? blá-blá? É difícil negar que Freud, ao longo da "Ciência
É um fato. Existe esta coisa que, retomando uni termo dos sonhos", só fala das palavras, palavras que se tradu-
de Freud, chanio condensação. O curioso é que a conden- zem. Nessa elocu-bração do inconsciente há somente lin-
sação dá lugar ao deslocamento. O que é contíguo não elimi- guagem. Ele faz lingüística sem saber, sem ter a menor
na o deslize, ou seja, a continuidade. ATraumdeutung não idéia. Ele chega até a se perguntar se o sonho tem uma
é absolutamente o que se imagina. Foi traduzida como a maneira de expressar a negativa. Ele diz primeiramente
"Ciência dos sonhos"; desde enrão, uma senhora corrigiu que não: em se tratando das relações lógicas. Depois diz
Meyerson e chamou-a de "Interpretação dos sonhos". Mas que, apesar disso, o sonho encontra um jeito de designar
II
a negação. Existe o "não" no sonho? É uma questão que Marcel Czeiinak: Por um lado o registro simbólico é
Freud deixa em suspenso, sobre a qual é ceno que ele se
contradiz. Isso não é suficiente para que o peguemos no
desmembravel, por outro lado [. ..]
I
JacquesLacan:Existe um certo numero de palavras no
flagra, mas é espantoso que nem por isso a clínica psica- dicionário mas que não são suficientks para dar conta do
nalítica esteja assegurada. Por que não pedimos ao psica- uso da língua.
nalista que dê conta da maneira pela qual se dirige nesse Marcel Czennak: [...I por outro,lado: o real é dificil-
campo freudiano? mente desmembrável. Como a clínica pode então ser objeto
Evidentemente, não estou muito animado esta noite de uma transmissão?
para dizer que quando fazemos psicanálise sabemos onde Jacques Lacan: Certo. Uma das que deixei de
estamos indo. Apsicanálise, como todas as outras atividades enfarizar é que há um campo que designei com o nome de
humanas, participa incontestavelmente do abuso. Nós nos o gozo do Outro, que deve ser representado pelo que é: ou
conduzimos como se soubéssemos alguma coisa. Não é, seja, como inexistente. O que se develia fazer é dar corpo -
porém, nada ceno que a hipótese do inconsciente tenha é o caso de dizer - a esse gozo
. do outjo ausente e fazer um
mais peso do que a existência da linguagem. pequeno esquema, em que o imaginárib estaria em continui-
Ai está o que eu queria dizer esta noite. dade com o real. O imaginário evidentemente faz parte do
Proponho que a seção que se intitula em Vincennes "da real, o fato de que hajãcorpos faz do real. Sobre o
clínica psicanalítica" seja uma forma de interrogar o psica- fato de que existe vida podemos few6rosamente cogitar e
nalista, de forçá-lo a declarar suas razões. mesmo elocubrar - não é pior que oltras coisas, como o
Que aqueles que tenham algo a dizer sobre o que DNA e sua dupla hélice - nada muda o b t o que é a partir daí
desenvolvi esta noite o declarem. que é concebível que existam corpos que se reprodu-zam.
Os corpos fazem, então, parte do real'. Com relação a essa
realidade do corpo que sonha e que não sabe fazer nada
Perguntas e respostas além disso, com relação a essa realidade, quer dizer à sua
continuidade com o real, o simbólico certamente a única
Marcel C z m k :No pequeno pedaqo de papel destina- coisa que a essa história dá seu nó, o qual, de tudo isso, faz
I
do a essa Seção Clínica que o senhor redigiu está escrito que nó borromeano.
a clínica é ao real enquanto ele é o impossível de supottarn. Jacques-Alain Miller: A clínica das neuroses e a clínica
Jacques Lacan: Escrevi isso e não renego as coisas que das psicoses necessitam da5 mesmas Icategorias, dos mes-
escrevi. Isso me levaria a complicaçóes. mos signos? Uma clínica dai psicoses bode, segundo o se-
Marcel Czermak: hlas ela é também tomada numa nhor, iniciar-se com uma proposição komo .o significante
dialética de faia e isso não é sem relaçâo com a verdade. representa um sujeito para um outro significante., com o
JacquesLacan:O mais impressionante é que Freud não que se segue no que concerne o objeto a?$, a, Si e S?, esses
acredita jamais que alguém lhe diga a verdade. Basta ler a termos seriam apropriados à clínica dd psicótico?
Traumdeutung para perceber que ele não acredita que ja- JacquesLacan:A paranóia, quero dizer, a psicose é para
mais possa atingir a verdade. Dizer que a verdade está liga- Freud absolutamente fundamental. A psicose é isso diante
da a essa espécie de nós: a essas cadeias que faço, explica do que um analista não deve recuar em nenhum caso.
precisamente o lado meio desesperado dessa busca, na Jacques-AlainMiller Na paranóia 'o significante repre-
Traumdeutung, do que é realmente a verdade. A verdade senta um sujeito para um outro signifidante?
não é sem relação com o que chamei de real, mas é uma Jacques Lacan: Na paranóia o significante representa
relação frouxa. A forma mais clara em que se manifesta a um sujeito para um outro significante:
verdade é a mentira - náo há um analisante que não minta Jacques-AlainMiller: E o senhor pode situar nelafading,
em fluxo contínuo, até mesmo na sua boa vontade de se objetou [...I?
encaixar exatamente nos quadrados que Freud desenhou. Jacques Lacan: Exatamente.
É por isso que a clinica psicanalitica consiste em reinterrogar Jacques-AlainMiller: Isso é algo a s e demonstrar.
tudo o que Freud disse. É assim que entendo a coisa e que Jacques Lacan: E certamente a se demonstrar, é verda-
no meu blá-blá eu a ponho em prática. de, mas não o demonstrarei esta noite.
Solange Faladé:O que se deve pensar sobre o fim de aná- dizer a verdade, até que ponto o senhor leva a sério o
lise de um paranóico se esse fim é a identificação ao sintoma? que disse.
Jacques Lacan: É certo que não somente o paranóico Jacques Lacalz: Eu disse isso com seriedade.
se identifica ao sintoma como o analista se identifica igual- Jacques-AlainMiller: h$psicoterapias não valem a pena?
mente. A psicanálise é uma prática delirante, mas é o que Jaques Lacan.: Com certeza. Não vale a pena terapeu-
temos de melhor para conferir paciência a essa situação tizar o psiquismo. Freud também pensava isso. Ele pensava
incômoda de ser homem. É em todo caso o que Freud que não deveríamos nos apressar eni curar. Não se trata de
encontrou de melhor. E ele sustentou que o psicanalista sugerir, nem de convencer.
não deve nunca hesitar em delirar. .[acques-AlainMiller: E ainda por cima ele pensava que
A
Ut?~participante:O senhor até mesmo disse um dia que para o psicótico isso não era possivel, pura e simplesmente.
era psicótico. ! -[acques
. Laca??:Exatamente. Ninguém tem outra coisa
Jacques Lacan: É, enfim, tento ser o menos possivel! para acrescentar como tempero? Aclinica psicanalítica deve
Mas não posso dizer que isso me sirva. Se fosse mais psicó- consistir não somente em interrogar a análise, mas em in-
rico eu seria provavelmente melhor analista. O que Freud terrogar os analistas, afim de que eles dêem conta do que a
fez de melhor é a história do Presidente Schreber. Nela ele prática deles tem de acaso: o que justifica que Freud tenha
está conio um peixe na água. existido. -4 clínica psicanalítica deve nos ajudar a relativizar
Jacques-Alain Miller: Mas ali ele não foi ao pé de uma a experiência freudiana. É uma elocubração de Freud. Co-
cama, ele tomou um texto. laborei com isso, mas não é uma razão para que me agarre
Jacques Lacan: É bem verdade. Ele não foi fazer o a isso. É preciso perceber que a psicanálise não é uma cién-
Presidente Schreber falar E é notável que ele nunca é tão cia. não é uma ciência exata.
!
feliz quanto com um texto.
Jaques-Alain Miller: Tenho ainda uma coisa a lhe per-
guntar que diz respeito a prática da psicoterapia sobre a qual Texto publicado com a amável
falaremos nessa Seção Clínica. Em um dado momento o se- autorizagio de Jacques-Alain Díiller
nhor soltou, sem peso, essa fórmula: .a psicoterapia leva ao
piam Isso deveria ter como conseqüência que não se pode
ao mesmo tempo dizer-se lacaniano e psicoterapeuta. Per- Taio estabelecido por j.A Miller e traduzido por hlarcus André Vieira e Núria
gunto-me até que ponto devemos levar isso a sério e: para Malaiovich Munor.
'N.T.: Direiienl é um neologismo que condensa dire (dizer) e oent (vento) e que
mantém uma cena homoíonia com "diia.
'N.T:Lacan utiliza o termo nao dicionaiizado socie que guarda com asocier as
mesmas relagóes que sociar e disscxiar em ponuguès
'N.T.: Einonder significapodar, tim o que é supérfluo e, por analogia. civili7ar, [ria,
separar as sementes, o que, no original. mantém tanto a homofonia coin mundo
quanto o campo semântico de colheita e triagem.
"N.: Etre rodé significa ser amaciado, estar no ponto.