Torne Se Quem Voce e Osho
Torne Se Quem Voce e Osho
Torne Se Quem Voce e Osho
dos temas mais instigantes da filosofia. Assim como Osho neste livro,
futuro, o homem novo, dono e senhor das suas vontades e de seu destino,
diz respeito apenas à mente, pelo contrário, ela está profundamente enraizada
interpreta para o mundo de hoje uma das obras mais importantes – e talvez a
Osho já foi descrito como um dos mil realizadores do século xx, como o
homem mais perigoso desde Jesus Cristo e como uma das dez pessoas que
anos.
Sobre o próprio trabalho, Osho explicou que ajudava a criar as condições para
há uma visão que engloba tanto a sabedoria das tradições como o potencial
vida contemporânea.
Prefácio
8 O homem é um devir
9 Elevar-se às alturas
10 A seriedade é um pecado
Prefácio
O
destino do gênio é ser incompreendido. Se um gênio não é
puderem compreendê-lo, significa que ele está falando no mesmo nível em que
Adolf Hitler, por exemplo, era de uma incapacidade mental tão grande que é
interpretado com sua mente imbecilizada – não apenas interpretado, mas por
Guerra Mundial. Quando Nietzsche fala da “vontade de poder”, isso não tem
nada a ver com vontade de domínio. Porém, foi esse o sentido que os nazistas
lhe deram.
dominar as outras só para provar a si mesma que não é inferior, mas superior às
demais. Porém, isso é algo que ela precisa provar. Pois, sem nenhuma
comprovação, ela sabe que é inferior; daí, precisa encobrir isso através de
simplesmente é superior. Por exemplo, será que uma rosa tenta convencer
alguém de sua beleza? Será que a lua cheia se preocupa em provar a sua glória?
O homem superior simplesmente sabe, ele não tem necessidade de provas; daí,
não tem vontade de dominar. Ele tem, sim, “vontade de poder”, mas aí é
preciso fazer uma distinção bem clara. Sua vontade de poder significa que ele
quer atingir a sua expressão máxima. Isso não tem nada a ver com os outros –
sua única preocupação é o seu próprio ser. Ele quer florescer, quer desabrochar
todas as flores que ainda estão ocultas em seu potencial, quer elevar-se o mais
alto possível no céu. Na verdade, não se trata nem de comparação, pois não
tem a ver com elevar-se acima dos outros – trata-se apenas de atingir o seu
quer dançar o mais alto possível no céu, quer conversar com as estrelas, e não
se preocupa em provar que os outros são inferiores. Ela não é competitiva, não
faz comparações.
Como se não bastasse tudo que fizeram, Hitler e seus seguidores, os nazistas,
*
distorcida em relação a todos os outros conceitos de Nietzsche .
Sem dúvida, é uma sina triste, que não se deu em relação a nenhum outro
que se abateu sobre Nietzsche – ser mal compreendido numa escala tão grande,
Entretanto, será preciso que Nietzsche seja interpretado de novo, para que se
possa jogar fora todo o absurdo com que os nazistas encobriram a sua bela
filosofia.
consciência. Nesse sentido, foi uma mera coincidência o fato de Nietzsche ter
caído no gosto dos nazistas. O caso é que eles estavam atrás de uma filosofia
para a guerra, e Nietzsche, por sua vez, louva a beleza do guerreiro; eles
queriam alguma ideia pela qual lutar, e Nietzsche lhes deu uma boa desculpa –
homem. Os alemães e sua raça ariana seriam a nova raça de homens proposta
as ideias de Nietzsche foram muito úteis, pois ele dizia que o anseio mais
E, agora, tinham uma filosofia completa: os alemães arianos são a raça pura e
superior, que dará à luz o super-homem. Eles têm sua vontade de poder e irão
inferior.
Nietzsche nunca poderia ter imaginado que todos os seus belos conceitos se
inteira. Mas ninguém pode evitar ser mal interpretado; não há o que fazer a
respeito disso. Uma vez que você tenha dito algo, o que a outra pessoa vai fazer
Mas Nietzsche é tão imensamente importante, que precisa ser limpo de todo
Mesmo que Nietzsche não tivesse escrito mais nada além de Assim falou
esquecido. Foi Nietzsche quem o trouxe de volta, que lhe deu um novo
podem se encontrar
Prólogo – 1
Aos trinta anos de idade, Zaratustra deixou sua pátria e o lago de sua pátria e foi para as montanhas.
Ali gozou do seu espírito e da sua solidão, e durante dez anos não se cansou. Mas enfim seu coração
mudou – e um dia ele se levantou com a aurora, foi para diante do Sol e assim lhe falou:
“Ó grande astro! Que seria de tua felicidade, se não tivesses aqueles que iluminas?
Há dez anos vens até minha caverna: já te terias saciado de tua luz e dessa jornada, sem mim, minha
Mas nós te esperamos a cada manhã, tomamos do teu supérfluo e por ele te abençoamos.
Olha! Estou farto de minha sabedoria, como a abelha que juntou demasiado mel; necessito de mãos
que se estendam.
Quero doar e distribuir, até que os sábios entre os homens voltem a se alegrar de sua tolice e os pobres,
de sua riqueza.
Para isso devo baixar à profundeza: como fazes à noite, quando vais para trás do oceano e levas a luz
Devo, assim como tu, declinar , como dizem os homens aos quais desejo ir.
Então me abençoa, ó olho tranquilo, capaz de contemplar sem inveja até mesmo uma felicidade
excessiva!
Abençoa a taça que quer transbordar, para que a água dela escorra dourada e por toda parte carregue o
Olha! Esta taça quer novamente se esvaziar, e Zaratustra quer novamente se fazer homem”.
*
– Assim começou a descida de Zaratustra.
F
riedrich Nietzsche talvez seja o maior filósofo que o mundo já conheceu. E
Sua filosofia não diz respeito apenas à mente; pelo contrário, ela está
âmago de seu próprio ser. O seu único azar foi ter nascido no Ocidente; por
conta disso, ele nunca entrou em contato com nenhuma escola de mistérios.
Ele não sabia nada sobre as vias da iluminação, sobre o caminho que conduz
ao centro do próprio ser. E isso acabou criando uma tremenda confusão em seu
espírito. Enquanto seus devaneios se elevam tão alto quanto as estrelas, sua
própria vida permaneceu num nível comum. Ela não teve a aura criada pela
meditação. Com isso, algumas vezes é como se seus pensamentos não fossem,
de fato, o seu próprio sangue, ossos e medula. Eles são lindos, imensamente
belos, mas parece que falta algo. E o que falta é a própria essência da vida – é
como se fossem palavras mortas, que não respiram, que não têm batimento
cardíaco.
Mas escolhi falar sobre ele por uma razão muito especial: seja no Oriente seja
sobre os cumes mais elevados da consciência humana. Ele pode até não ter
pensar sobre isso. Ele também refletiu sobre algo extremamente original: o ato
alturas e vir para a praça do mercado, de baixar das estrelas para a Terra, é algo
**
Zorba : só que ambos são incompletos. Agora, Nietzsche é a única prova de
que Buda e Zorba podem se encontrar, de que aqueles que atingiram os cumes
Na verdade, eles não devem ficar por lá. Eles têm uma dívida com a
humanidade, uma dívida com a Terra. Eles nasceram entre os seres humanos,
viram a luz, têm a obrigação de voltar para despertar aqueles que estão
podem desaparecer na hora. Nós só vivemos nos vales sombrios por escolha
própria. Se decidirmos viver nos picos mais ensolarados, ninguém pode nos
***
Mahavira nunca desceram de volta à terra. Mesmo que tenham feito esforços
ensolarados.
Mas o ser humano é tão surdo, tão cego, que, para ele, é quase impossível
Ele até escuta algum ruído, mas este não faz o menor sentido para ele.
grandeza. Embora ele mesmo não tenha alcançado os picos mais elevados, nem
Quanto a você, escolhi falar sobre alguns fragmentos de Nietzsche, pois eles
escolheu Zaratustra como seu porta-voz. Aliás, há algo acerca de Zaratustra que
Índia. São os parses, de Mumbai, reunidos hoje no que talvez seja a menor
religião do mundo.
pela existência. Ele não é contra os prazeres da vida e muito menos defende
se tenha alegria no mundo, pois, com exceção desta vida e deste mundo, tudo
mais não passa de meras ideologias hipotéticas. Coisas como Deus, céu e
Zaratustra nasceu há mais de 2.500 anos, numa época em que todo o planeta
Í
viveu um grande renascimento. Por exemplo, na Índia, seres como Buda,
****
pessoas como Confúcio, Mêncio, Lao-Tsé, Lieh-Tzu e Chuang-Tzu . Na
assim que algumas pessoas se iluminam, elas geram a mesma transformação nas
outras.
Afinal, todos nós temos esse potencial. Basta apenas uma provocação, um
desafio. Quando você vê tantas pessoas alcançando níveis tão belos de êxtase e
anseio em seu ser: “Preciso fazer alguma coisa. Enquanto fico aqui
Entre todas essas pessoas, Zaratustra é sem igual. Ele é o único que não é
contra a vida, mas a favor dela; é o único cujo deus não se encontra em algum
outro lugar, cujo deus não é senão outro nome para a própria vida. E viver
religião.
Sinto uma profunda empatia e afinidade com Zaratustra. Agora, quem sabe
justamente por ele ser a favor da vida e não contrário a ela, nunca tenha
em relação aos seres humanos: basta alguma coisa ser fácil, e as pessoas já não
consideram que essa coisa é digna de ser um objetivo – uma meta só é válida se
Por trás disso, está a psicologia do ego. O ego sempre quer alguma coisa
continuará atiçando a querer cada vez mais: mais dinheiro, mais ganância, mais
poder, mais austeridade, mais espiritualidade, mais disciplina. Onde quer que
você encontre esse “mais”, lembre-se: essa é linguagem do ego. E não há como
quando o relaxamento é tão grande que você até se esquece de que está bem, é
um sinal de que se tornou tão inocente quanto uma criança – você chegou em
casa. Mas o ego não tem o menor interesse nisso. Esse processo todo é como
uma espécie de suicídio para o ego. É por isso que as religiões que oferecem ao
ego toda sorte de tarefas difíceis, de caminhos árduos, ideias artificiais e metas
Por sua vez, os seguidores de Zaratustra podem ser contados nos dedos. Na
verdade, ninguém jamais havia se importado com Zaratustra, até que, quase 24
séculos depois, Nietzsche finalmente se interessou por ele. Nietzsche era contra
E é muito importante que se entenda isso. Afinal, por que o mesmo homem
que era contra Jesus e Buda seria a favor de Zaratustra? Ora, porque Nietzsche
tem a mesma atitude e a mesma abordagem em relação à vida. Ele viu como
todas essas grandes religiões só ficam criando cada vez mais culpa na
humanidade. Criando cada vez mais miséria, mais guerras. Queimando pessoas
comprovação, bobagens para as quais não existe a menor evidência. Como elas
Não existe uma única crença que não seja cega. Um homem que tem olhos
acreditar. Somente um cego pode crer na luz, pois ele não a conhece. A crença
Nietzsche era contra elas em termos simbólicos. Assim, naquilo que se refere
refere ao Ocidente, escolheu a figura de Jesus. Ele era contra essas religiões pela
simples razão de que elas eram contra a vida. Todas negavam às pessoas o
de amar.
No caso de Zaratustra, Nietzsche sentiu-se atraído por ele pois conseguiu ver
que, em meio a todo o passado, apenas esse homem não era contra a vida;
de uma religião que afirma a vida. Eu sou inteiramente a favor da vida. Não há
nada pelo que a vida possa ser sacrificada. Na verdade, qualquer coisa pode ser
sacrificada em nome da vida; qualquer coisa pode ser um meio para servir à
aforismos. Onde qualquer pessoa poderia ter escrito um livro inteiro, Nietzsche
escreve apenas um parágrafo. Sua escrita é tão sintética, tão condensada, que, se
você não estiver muito atento ao escutar, pode deixar escapar todo o sentido.
Seus escritos são quase como os sutras dos Upanishades . Cada um dos sutras,
assim como cada um dos aforismos de Nietzsche, contém tanto em si, tem
pois ele é um dos pensadores mais mal compreendidos do mundo. E uma das
razões para toda essa incompreensão é o fato de ele ter escrito de forma tão
Ele é um homem muito simbólico. E o motivo pelo qual ele era tão simbólico
é simples: ele tinha tantos insights , tantas ideias novas, que não havia tempo
suficiente para explicar tudo. Nietzsche não tinha a menor condição de ficar
escrevendo tratados, pois a vida é muito curta, e ele tinha muito para dar, para
*****
compartilhar .
Assim, como sua obra era tão condensada e profunda, ele despertava reações
ilegível, pois queriam que tudo fosse explicadinho. A questão é que Nietzsche
não escreve para crianças; ele escreve para pessoas maduras. E maturidade é
algo muito raro – no fundo, a idade mental média não passa de 14 anos. E,
como Nietzsche. Nesse sentido, não é à toa que ele não é compreendido por
seus opositores, assim como não é compreendido por seus seguidores, pois
Aos trinta anos de idade, Zaratustra deixou sua pátria e o lago de sua pátria e foi para as montanhas.
quando tinha 29 anos, e que Jesus, por sua vez, começou seus ensinamentos
aos 30 anos de idade – tal como Zaratustra, que partiu para as montanhas aos
torno dos 30 anos, assim como acontece em relação aos 14 anos, quando nos
setenta anos –, encontramos um dado curioso, que foi comprovado por todos
que se debruçaram de forma profunda sobre o estudo da vida: a cada sete anos,
Os primeiros sete anos são inocentes. Já nos sete anos seguintes, a criança só
Nesses sete anos, dos 14 aos 21, eles poderiam facilmente ter experienciado
que pode despertar em você o anseio de encontrar espaços ainda mais bem-
mente – além disso, nem que seja por alguns segundos, o tempo para.
E essas três coisas é que são importantes. Duas delas desaparecem por
completo. Você não é mais um “eu” – você existe, claro, mas não existe mais a
noção de ego. A sua mente também continua lá, mas não há pensamentos,
despareceu e a mente parou, o tempo para também. Pois, para que você
pensamento para outro, sem cessar, caso contrário você não consegue perceber
o movimento do tempo.
Por exemplo, imagine dois trens de ferro se movendo no espaço vazio,
paralelamente e à mesma velocidade. Se você olhar pela janela do seu trem para
o outro – que tem as mesmas janelas e o mesmo número de vagões –, não vai
Plataformas vêm, estações passam, e logo ficam para trás. É pelo simples fato
É provável que você mesmo já tenha tido uma sensação bem esquisita,
olhar para o outro trem, parece que é ele que está se movendo – isso só não
acontece caso você olhe para a plataforma, ou para outra coisa que permanece
um céu limpo e vazio. O tempo logo para, pois é impossível perceber o tempo
sem o movimento – você não está lá, sua mente também não, e muito menos o
No meu modo de ver, foi a experiência do orgasmo sexual que deu às pessoas
mente não estiver mais presente, então o tempo desaparece. Daí não há
experiência orgástica sozinhos, e ela deixa de ser sexual – ela se torna uma
experiência espiritual.
Enfim, só pode ter sido o orgasmo sexual para dar o insight de que a mesma
verdadeiro crime contra toda a humanidade – pois os jovens que são privados
Retomando, então, aos 21 anos o sexo atinge o seu auge. Isso, claro, se ele for
algo permitido, tal como foi na vida do próprio Buda – todas as mulheres mais
lindas do reino eram trazidas até ele, sem exceção; ele vivia cercado por elas, e
Passada essa fase, durante os próximos sete anos, dos 21 aos 28, chega o
momento em que a pessoa inicia sua própria busca pessoal. Pois o orgasmo é
uma coisa biológica, e logo a pessoa perde toda aquela energia, já não sendo
mais capaz de ter orgasmos como antes. Além disso, é algo que depende de
outra pessoa, seja um homem ou uma mulher. E isso acaba com a sua
permitido –, dos 21 aos 28 anos essa pessoa irá buscar todos os meios possíveis
orgásticas.
A partir daí, começa um novo ciclo de sete anos. Foi no intervalo dos 28 aos
35 anos de idade, por exemplo, que seres como Buda, Jesus, Lao-Tsé, Chuang-
eles se dirigiram para as montanhas – rumo à sua solitude. Mas isso não foi um
como uma gota de orvalho que deslizasse de uma pétala do lótus para o mar.
o período da procura, da busca – sim, uma busca que não é por algo do corpo,
mas do espírito.
Ali gozou do seu espírito e da sua solidão, e durante dez anos não se cansou.
Zaratustra permaneceu nas montanhas por dez anos. Enquanto isso, seu
recolhimento, paz e silêncio foram se aprofundando cada vez mais, e ele vivia
puderam ver que alguma coisa tinha acontecido com os dois, algo muito além
diferente, tinham conhecido algo muito raro. Seus olhos possuíam uma
profundidade que não havia antes, e seus rostos tinham uma graça fenomenal,
absolutamente nova.
Porém, foi aí que se deu o engano: as pessoas acharam que, ao se retirar para
partir de minha própria experiência. Não preciso me preocupar com fatos, pois
sei qual é a verdade. Em momento algum essas pessoas tiveram uma postura
mesmo, Buda não declarou algo assim: “Agora eu já não preciso mais ser um
comum”.
Talvez seja preciso muito mais coragem para regressar ao mundo do que para
se retirar dele. Pois subir a montanha é penoso, mas muito gratificante. A cada
momento, temos a sensação de estar cada vez mais alto. Agora, uma vez que se
tenha alcançado o cume mais elevado, realmente é preciso muita coragem para
descer tudo de novo e retornar aos vales sombrios que você havia deixado para
trás – e tudo isso só para trazer às pessoas uma mensagem: “Vocês não precisam
inferno e no sofrimento”.
Essa jornada de volta pode ser condenada até pelas próprias pessoas a quem
você quer ajudar. Afinal, quando você estava indo para o alto, era tido como
um grande santo. Mas, agora que está descendo de volta, as pessoas talvez
pensem que você falhou, que tenha despencado de sua altura, que tenha
perdido sua grandeza. Sem dúvida, você precisa ter a maior coragem do mundo
para, depois de ter alcançado as alturas do insondável, decidir ser uma pessoa
comum de novo.
E Zaratustra mostra toda essa coragem. Ele não se preocupa com o que as
pessoas irão dizer, se ele será condenado, se os outros pensarão que ele falhou,
que perdeu sua grandeza, que não é mais um santo. Sua única preocupação, no
– e um dia ele se levantou com a aurora, foi para diante do sol e assim lhe falou:
“Ó grande astro! Que seria de tua felicidade, se não tivesses aqueles que iluminas?”
que os pássaros, as flores e todos os seres estão felizes porque o sol nasceu; que
Mas, ao mesmo tempo, nessa frase ele afirma que o sol também deve estar
muito feliz com tantas flores desabrochando, com tantos passarinhos cantando.
Se não fosse pelos pássaros e pelas flores, se não houvesse ninguém esperando
Todo mundo sabe que, se algum dia o sol não nascer, toda a vida no planeta
vai desaparecer. Sem o calor e a energia vital fornecidos pelo sol, nada consegue
suprema felicidade pode se tornar muito pesada”. Sim, até a suprema felicidade
“Ó grande astro! Que seria de tua felicidade, se não tivesses aqueles que iluminas?
Há dez anos vens até minha caverna: já te terias saciado de tua luz e dessa jornada, sem mim, minha
menor receio. E ele mantinha esses dois animais, a águia e a serpente, junto de
si. Pois uma pessoa deve ser tão consciente, sábia e inteligente quanto possível.
“Mas nós te esperamos a cada manhã, tomamos do teu supérfluo e por ele te abençoamos.”
Seja o que for que você tenha nos dado, era tudo supérfluo para você, era algo
Assim como você está cansado de sua luz, e deseja reparti-la com alguém, já
fardo.
“Estou farto de minha sabedoria, como a abelha que juntou demasiado mel; necessito de mãos que se
estendam.
Quero doar e distribuir, até que os sábios entre os homens voltem a se alegrar de sua tolice [...]”
Isso só pode ser dito por alguém que, de fato, atingiu o verdadeiro saber. Por
O que Nietzsche está dizendo através de Zaratustra é isto: “Se vou até os
contrário – ele é uma pessoa alegre, brincalhona, porque sabe que a existência,
geral, as pessoas têm uma ideia fixa do que seja um homem sábio: que ele é
sério, carrancudo, que não sabe brincar, dançar ou sorrir.
Essas coisas seriam apenas para os tolos. Mas o que Zaratustra diz é isto: “Pois
se tornem realmente sábios, a ponto de aceitar até mesmo aquilo que parece
“Quero doar e distribuir, até que os sábios entre os homens voltem a se alegrar de sua tolice e os
geralmente está tão envolvido com o mundo exterior, que talvez nem consiga
homem pobre, por sua vez, está numa condição bem mais afortunada, pois não
Assim, o que Zaratustra mostra é isto: que os sábios devem ser tão sábios, que
“Para isso devo baixar à profundeza: como fazes à noite, quando vais para trás do oceano e levas a luz
Devo, assim como tu, declinar , como dizem os homens aos quais desejo ir.
Então me abençoa, ó olho tranquilo, capaz de contemplar sem inveja até mesmo uma felicidade
excessiva!
Abençoa a taça que quer transbordar, para que a água dela escorra dourada e por toda parte carregue o
Olha! Esta taça quer novamente se esvaziar, e Zaratustra quer novamente se fazer homem.”
que quiseram ser todo-poderosos – que quiseram ser budas, cristos, avatares ou
a suprema sabedoria, mesmo assim, ele deseja descer e ser apenas um homem
como meros homens, aí, sim, eles teriam dado coragem e dignidade à
humanidade; aí, sim, teriam se tornado enormes fontes de inspiração. Mas eles
é tão grande, que acaba desencorajando qualquer pessoa. E não só eles, mas
seus discípulos fazem de tudo para criar uma distância cada vez maior.
em pecado, menos Jesus; apenas ele nasceu de uma mãe imaculada. E, se ele é o
único filho de Deus, então quem é você? Ora, você e ele nem sequer são
primos!
Agora, por que Deus seria tão avarento a ponto de ter um único filho? Será
que ele era a favor do controle de natalidade? Pois os cristãos são contra. Pelo
menos uma filha ele deveria ter tido! Acontece que, para justificar a
humilhação da mulher, Deus nunca poderia ter uma filha, muito menos uma
esposa. Mas, sim, ele tem um filho todo-poderoso. Por exemplo, Jesus caminha
sobre as águas; algo que você não consegue fazer. Ele traz os mortos de volta à
vida; você também não pode fazer isso. Ele chega a ser crucificado e morto,
mas, graças ao milagre da ressurreição, retorna à vida de novo – outra coisa que
mortal; e ele é um deus. Na melhor das hipóteses, você pode louvá-lo e adorá-
lo. No fundo, ele representa uma humilhação para você; ele é um grande
insulto para toda a humanidade. E todos esses milagres não passam de histórias
extremo de inventar essas histórias com um único propósito: criar essa enorme
quando ele morre, não é como um homem comum. Na realidade, ele nem
chega a ter uma morte como a das outras pessoas – ele simplesmente vai direto
para o céu, ainda vivo. E com um detalhe: ele não vai sozinho; Maomé vai
montado em seu cavalo, que também adentra os portais do paraíso com seu
dono. Mas, claro, não se trata de um cavalo qualquer – é o cavalo de
******
Hazrat Maomé. E, obviamente, você não pode sequer imaginar que
Mahavira também tem seus milagres. Por exemplo: dizem que ele nunca
cá, por 42 anos, completamente nu, e nunca transpirou! Ora, uma coisa dessa
só seria possível se o corpo dele não fosse revestido de pele, mas de plástico.
Pois todo mundo sabe que o corpo é coberto de pele, e que o fato de a pele
começam a expelir água do corpo de modo que o calor é usado para evaporar o
temperatura irá aumentando cada vez mais e mais. E você não dispõe de uma
amplitude assim tão grande – algo entre 36,6 ºC e 43,3 ºC. Ou seja, bastariam
impossível ele permanecer vivo. Mas, só para ser ainda mais especial, ele
também não tomava banho. Afinal, já que ele não suava, não havia necessidade
E tem mais. Mahavira é mordido por uma cobra e, em vez de sangue, o que
sai pelo ferimento é leite! Certa vez, dei uma palestra durante uma conferência
jainista e, logo antes de mim, havia falado um monge jainista. E esse monge
minha vez de falar, eu disse: “Esses milagres não existem. Basta pensar um
pouquinho para se perceber que só poderia ter saído leite dos pés de Mahavira
se, em vez de sangue, circulasse leite pelo seu corpo. Só que, se houvesse leite
circulando pelo seu corpo durante 42 anos, esse leite no mínimo teria virado
*******
coalhada, manteiga ou mesmo ghee . Mas não, continuava a ser leite! Saía
leite fresco de seus pés! Bom, mas vamos admitir uma outra possibilidade: que
possa sair leite de seus pés assim como sai dos seios de uma mulher – a questão
Ou seja, até seria possível algo assim, mas só se imaginarmos que Mahavira
possuía órgãos para a produção de leite espalhados por todo o seu corpo!”.
Mas isso é um completo absurdo. E, mesmo assim, todos defendem esse tipo
mãe se encontrava de pé – até aí, tudo bem, pois é algo aceitável, não é
gênero – pois, quando uma criança está nascendo, o melhor é que a mãe esteja
deitada na cama, e não de pé. Mas podemos aceitar que talvez sua mãe fosse
quando vem ao chão, ele já cai de pé. Mais uma vez, até aí, tudo bem, pois
algumas vezes isso acontece. Em geral, é a cabeça que sai primeiro, mas, de vez
em quando, nasce uma criança cujos pés saíram primeiro. Assim, se a história
acabasse aí, seria até plausível – porém, não seria algo com que você se
impressionasse tanto.
mais de 2 metros! Um recém-nascido não consegue nem ficar de pé, mas ele
andou mais de 2 metros. E ele não só caminhou, como, ao fim dos 2 metros,
ainda olhou para o céu e declarou: “Eu sou o maior buda de todos os tempos,
Ora, tudo isso é muito desanimador: ninguém consegue fazer uma coisa
dessa. Em primeiro lugar, você já nasceu. Na próxima vez, quem sabe, você
possa tentar – mas, nesta vida, já era. Não há como você se tornar uma pessoa
iluminada nesta vida; então trate de praticar para a próxima. Mas, claro, trate
No fundo, todas essas histórias, todas essas ficções têm um único propósito. E
o propósito é este: fazer com que estes seres estejam tão distantes de um ser
Nesse sentido, todos os seres iluminados deveriam fazer aquilo que Zaratustra
fez. Todos eles deveriam retornar ao mundo. Pois, sim, eles devem isso ao
mundo, eles têm uma dívida com a humanidade. Todo ser iluminado nasceu
como uma criança comum, humana, e, por isso, não pode ser perdoado por
criar mitos em torno de si mesmo, ou por deixar que outros o façam, tudo para
tanta sabedoria, tanto mel, que só deseja compartilhar – ele quer distribuir
tudo isso. Ele quer se esvaziar novamente, pois agora sabe que, quanto mais ele
doar, mais a existência seguirá derramando em sua taça. Ele pode continuar se
vida, esse homem não condena, não é negativo, não faz com que ninguém se
sinta culpado. Pelo contrário, a todos ele ajuda: “Seja o que for que trago em
mim, isso também está oculto em seu interior”. A sua descida aos homens não
serve senão para encorajar aqueles que estiverem prontos, aqueles que estiverem
seja cada vez mais compreendido. Ele constitui uma bênção maior do que
********
qualquer outra pessoa .
* Os trechos de autoria de Nietzsche foram extraídos da primorosa tradução feita por Paulo César de
Souza, direto do alemão, de Assim falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche (Companhia das
Letras, 2011). Eventuais diferenças se devem à adequação do texto ao sentido proposto por Osho
em suas reflexões. Para tanto, foram cotejadas também a tradução feita por Mário Ferreira dos
Santos, direto do alemão, em Assim falava Zaratustra (Vozes, 2007), bem como a edição
portuguesa Assim falava Zaratustra (Relógio d’Água Editores, 1998) e a edição inglesa Thus
Spake Zarathustra (Penguin Classics, 1961). (N. do T.)
** Referência ao personagem do livro Zorba, o grego, de Níkos Kazantzákis. Segundo Osho, Zorba
seria a representação do ser humano vivo, da Terra com todas as suas potencialidades; Buda, por
sua vez, representaria a realização das qualidades celestiais. Contudo, o “Céu sem a Terra estará
vazio [...] A Terra sem o Céu estará morta”. Só a união desses dois aspectos poderia, de fato,
conduzir à plenitude da existência. (N. do T.)
*** Mestre espiritual indiano que viveu por volta do séc. VI a.C., Mahavira é reverenciado como um
ser iluminado na tradição jainista. (N. do T.)
**** Makkhali Goshalak, Sanjay Vilethiputta e Ajit Keshkambal foram mestres indianos
contemporâneos de Buda e Mahavira. Mêncio foi um dos grandes pensadores da China, sendo
considerado o mais eminente seguidor de Confúcio. Dois dos mais importantes filósofos chineses,
Lieh-Tzu e Chuang-Tzu, estão entre os principais nomes do taoísmo, ao lado de Lao-Tsé. (N. do
T.)
***** Em seu vigoroso ensaio autobiográfico, Ecce homo, o próprio Nietzsche diz: “Quero levar a
humanidade a resoluções que decidirão sobre todo o futuro humano, e pode acontecer que um dia
milênios inteiros façam em meu nome seus votos mais elevados. [...] Conheço a minha sina. Um
dia, meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo – de uma crise como jamais houve sobre
a Terra, da mais profunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada contra tudo que até
então foi acreditado, santificado, requerido. Eu não sou um homem, sou dinamite”. (N. do T.)
****** “Hazrat” é um título árabe usado para honrar uma pessoa. (N. do T.)
******* Tipo de manteiga clarificada muito usada na culinária indiana. (N. do T.)
******** Eis como o próprio Nietzsche se referia ao seu Zaratustra: “Entre minhas obras ocupa o
meu Zaratustra um lugar à parte. Com ele fiz à humanidade o maior presente que até agora lhe foi
feito. Esse livro, com uma voz de atravessar milênios, é [...] nascido da mais oculta riqueza da
verdade, poço inesgotável onde balde nenhum desce sem que volte repleto de ouro e bondade. [...]
É preciso antes de tudo ouvir corretamente o som que sai desta boca, este som alciônico, para não
se fazer deplorável injustiça ao sentido de sua sabedoria. [...] Aí não fala um fanático, aí não se
“prega”, aí não se exige fé: é de uma infinita plenitude de luz e profundeza de felicidade que vêm
gota por gota, palavra por palavra – uma delicada lentidão é a cadência dessas falas. Tais coisas
alcançam apenas os mais seletos; ser ouvinte é aqui um privilégio sem igual; não é dado a todos ter
ouvidos para Zaratustra... [...] Ele não apenas fala diferente, ele é também diferente...”. (N. do T.)
Capítulo 2
A sabedoria traz
a verdadeira liberdade
Prólogo – 2
Zaratustra desceu sozinho pela montanha, sem deparar com ninguém. Chegando aos bosques, porém,
viu subitamente um homem velho, que havia deixado sua cabana sagrada para colher raízes na floresta.
“Não me é estranho esse andarilho: por aqui passou há muitos anos. Chamava-se Zaratustra; mas está
mudado.
Naquele tempo levavas tuas cinzas para os montes: queres agora levar teu fogo para os vales? Não
Sim, reconheço Zaratustra. Puro é seu olhar, e sua boca não esconde nenhum nojo. Não caminha ele
como um dançarino?
Mudado está Zaratustra; tornou-se uma criança Zaratustra, um desperto é Zaratustra: que queres
Vivias na solidão como num mar, e o mar te carregava. Ai de ti, queres então subir à terra? Ai de ti,
“Por que”, disse o santo, “fui para o ermo e a floresta? Não seria por amar demais os homens?
Agora amo a Deus: os homens já não amo. O homem é, para mim, uma coisa demasiado imperfeita.
Respondeu Zaratustra: “Que fiz eu, falando de amor? Trago aos homens uma dádiva”.
“Não lhes dês nada”, disse o santo. “Tira-lhes algo de seu fardo, isto sim, e carrega-o juntamente com
E, querendo lhes dar, não dês mais que uma esmola, deixando ainda que a mendiguem!”.
“Não”, respondeu Zaratustra, “não dou esmolas. Não sou pobre o bastante para isso.”
O santo riu de Zaratustra, e falou assim: “Então cuida para que recebam teus tesouros! Eles
Para eles, nossos passos ecoam solitários demais pelas ruas. E, quando, deitados à noite em suas camas,
ouvem um homem a caminhar bem antes de nascer o sol, perguntam a si mesmos: aonde vai esse
ladrão?
Não vás para junto dos homens, fica na floresta! Seria até melhor que fosses para junto dos animais!
Por que não queres ser, como eu – um urso entre os ursos, um pássaro entre os pássaros?”.
Respondeu o santo: “Eu faço canções e as canto, e, quando faço canções, rio, choro e sussurro: assim
louvo a Deus.
Cantando, chorando, rindo e sussurrando eu louvo ao deus que é meu Deus. Mas o que nos trazes de
presente?”.
Ao ouvir essas palavras, Zaratustra saudou o santo e falou: “Que poderia eu vos dar? Deixai-me partir,
para que nada vos tire!” – E assim se despediram um do outro, o idoso e o homem, rindo como riem
dois meninos.
Mas, quando Zaratustra se achou só, assim falou para seu coração: “Como será possível? Este velho
santo, na sua floresta, ainda não ouviu dizer que Deus está morto! ”.
Z
Z
aratustra tinha ido para as montanhas em busca de solitude. Pois, no
meio da multidão, você pode até se sentir solitário, mas nunca está
sozinho. A solidão é uma espécie de sede pelo outro. Nós sentimos falta do
outro; não somos suficientes para nós mesmos – estamos simplesmente vazios.
É por isso que todos querem fazer parte da multidão, e tecem em torno de si
tempo todo, nenhuma relação consegue ocultá-lo. Pois todas essas relações são
muito tênues, muitos frágeis. No fundo, você sabe muito bem que, embora
para si mesmo.
nosso próprio ser, de que somos suficientes para nós mesmos, de que não
solitude é a cura.
de solidão. Quer estejam sozinhos quer com outras pessoas, estão centrados em
estão sozinhos, pois esta é a sua realização: de que a solitude é a nossa natureza.
por isso mesmo, caiu numa espécie de falácia bem dissimulada: a falácia da
solidão.
Para alguém encontrar sua solitude, é preciso sair do meio da multidão. Daí,
pouco a pouco, à medida que se esquece do mundo, toda a sua consciência vai
mesma.
fora do passado, sem se apegar a ele, assim como uma serpente desliza para fora
de sua pele velha e nunca olha para trás – seu movimento é sempre do antigo
para o novo.
A águia, por sua vez, é um símbolo da liberdade. Ela voa sozinha, sem medo
aos homens, de volta à multidão. Por um único motivo – ele precisa transmitir
dependentes desnecessariamente; são vocês que criam toda sorte de prisões para
mesmos – pois, daí, até a morte é impotente, nem ela pode destruí-los”.
fim.
verdadeira liberdade. Pois não há outra liberdade que não essa; todas as outras
sem medo.
Por ter alcançado esse derradeiro estado de consciência, ele agora deseja
pessoas que ainda estão dormindo, àquelas que ainda estão cegas. O que existe
é uma imensa compaixão em relação a elas. Se ele desce de volta, é porque ama
Este pequeno diálogo de Zaratustra com um velho santo que vive na floresta é
não estar aparentes; mas vamos tentar descobri-las com a maior profundidade
possível.
Zaratustra desceu sozinho pela montanha, sem deparar com ninguém. Chegando aos bosques, porém,
viu subitamente um homem velho, que havia deixado sua cabana sagrada para colher raízes na floresta.
“Não me é estranho esse andarilho: por aqui passou há muitos anos. Chamava-se Zaratustra; mas está
mudado”.
estava adormecido; e, agora, retorna desperto. Ele passou por uma profunda
transformação.
ele atingiu a imortalidade. Agora ele está cheio de alegria, repleto de paz,
compaixão.
montanhas.
A transformação foi tão imensa, tão radical, que, em vez de ser um punhado
de cinzas, ele agora é puro fogo. Se antes ele estava nas trevas, agora está em
chamas.
Isso é algo importante de salientar – o velho santo diz: “Você não tem medo
de voltar para o meio dos cegos, agora que tem olhos? De retornar à seara dos
mortos, estando cheio de vida? De regressar aos adormecidos, agora que está
desperto?”.
Quando deixou os homens, você era um deles. Mas agora você é diferente.
Você não acha que está se arriscando demais? Eles certamente irão puni-lo,
ninguém vai lhe perdoar. Pois a sua felicidade e sua bem-aventurança são
muito grandes – e isso é algo que eles não vão conseguir tolerar.
infelicidade das outras pessoas, por mais profunda que ela seja. Na verdade,
sentimos até um certo prazer quando os outros estão infelizes. Por quê?
Simplesmente porque, quando eles estão infelizes, nós nos sentimos superiores.
Podemos mostrar empatia, piedade, e, ainda por cima, nos alegrar com o fato
de não sermos nós que estamos sofrendo. É por isso que, até hoje, nenhuma
algo muito perigoso, pois eles se sentem ofendidos com as alturas que você
alcançou. Você pode ver, e eles não. Eles estão mortos, e você, totalmente vivo.
Isso é insuportável para eles; é preciso que você seja punido. Afinal, você se
“Sim, reconheço Zaratustra. Puro é seu olhar, e sua boca não esconde nenhum nojo. Não caminha ele
como um dançarino?”
Os olhos são muito simbólicos. Eles são uma parte do corpo, mas também
são as janelas da alma. Quando sua alma se torna alegre, pacífica, silenciosa,
seus olhos ganham uma clareza, profundidade, inocência e pureza que nunca
tiveram. Eles se tornam tão límpidos, que você consegue enxergar a própria
alma do homem.
“Puro é seu olhar, e sua boca não esconde nenhum nojo.” Se observarmos as
pessoas, veremos quanto elas estão enojadas com a vida; e ninguém pode culpá-
las. Afinal, o que elas conseguiram realizar? Toda a sua vida não passa de uma
estejam cheias de desgosto e repulsa com toda essa história de viver. Elas nunca
pediram para nascer, nunca pediram para ter um coração que sente, que precisa
estão aqui – e tudo o que lhes foi dado pela existência permanece sempre por
seguinte: “Tenho apenas uma relação com Deus, e é de nojo. Estou revoltado.
Se um dia puder encontrá-lo, a única coisa que farei será lhe dar a passagem de
volta e pedir para que ache logo o caminho para fora desta vida. Isto tudo é
uma piada de mau gosto. Ele nos dá tantos desejos, tantos anseios, e não há
Ao ver Zaratustra, o velho santo afirma: “Agora não vejo a menor repulsa, a
menor agonia; em vez disso, vejo apenas êxtase. Ele caminha como um
arrastando, carregando o seu próprio cadáver nos ombros, e, agora, veja só:
novo, você despertou: “que queres agora entre os que dormem?” . Você é um
irão castigá-lo, isso se não o matarem. A sua simples presença colocará o sono
“Vivias na solidão como num mar, e o mar te carregava. Ai de ti, queres então subir à terra? Ai de ti,
Será que você já se esqueceu do dia em que veio para as montanhas? Você
quer mesmo voltar a ser como era antes? Por que descer novamente, deixando
para trás os picos iluminados pelo sol? Você sabe que nos vales só existe
Nestas quatro palavras está contida toda a filosofia de Zaratustra: “Eu amo os
homens. Sim, eu amo a vida. Eu não renunciei ao mundo, não vim para as
permanecer nas alturas; muito pelo contrário: minha plenitude é tão grande,
“Por que”, disse o santo, “fui para o ermo e a floresta? Não seria por amar demais os homens?”
justamente por amar demais os homens. Mas esse amor se transformou numa
e nada mais”.
Contudo, há uma grande diferença aí. O santo amava os homens demais ...
sim, mas isso quando ele era ignorante, quando ele mesmo estava adormecido.
pedinte: ele quer que você o ame, que você lhe dê cada vez mais e mais amor.
imperador – ele tem tanto, sua abundância é tão grande, que ele quer apenas
lhe dar o seu amor. Ele doa simplesmente pela alegria de doar, é um
uma divisão nas pessoas, ao afirmar que, caso você ame os homens, não pode
amar a Deus. Por exemplo, o Deus do Antigo Testamento diz assim: “Eu sou um
Essa é a postura básica de quase todas as religiões. Caso você ame este mundo,
esqueceu de Deus. A escolha é sua: se amar a Deus, você terá que suprimir o
seu amor pelos homens. Mais que isso; você terá que odiar a humanidade, terá
que odiar a vida e todos os prazeres que ela contém. É uma postura realmente
monopolizadora – Deus quer que todo o amor que há em seu coração seja
“Agora amo a Deus: os homens já não amo. O homem é, para mim, uma coisa demasiado imperfeita.
Essa postura do velho santo condensa toda a atitude religiosa contra a vida,
contra a alegria, contra o prazer. Por que você não pode amar os homens? Ora,
porque os homens são uma coisa imperfeita demais. Apenas Deus é perfeito.
amor não faz nenhuma distinção. Ele simplesmente ama; não porque você
mereça, não porque seja perfeito, não porque seja Deus – o verdadeiro amor
ama simplesmente por amar. O objeto do amor é irrelevante. Você está tão
repleto de amor, que o compartilha com todos que encontrar, mesmo que
sejam eles imperfeitos. Na verdade, são eles os que mais precisam. Os que são
indignos, os que não são merecedores – são eles que, de fato, mais precisam de
amor.
esse Deus perfeito não passa de uma hipótese, ele existe apenas na sua mente.
Você nunca se deparou com ele para poder, de fato, atestar a sua perfeição.
Você já pensou sobre isso? Imagine que, de repente, Deus aparecesse na sua
frente – será que você não seria capaz de encontrar algum defeito nele? Pois
você acharia várias imperfeições nele também. Talvez ele não fosse tão bonito
quanto você imaginava. Talvez fosse chinês, negro, ou, quem sabe, até uma
mulher negra! Talvez fosse muito velho, muito antiquado – e, já que anda por
aí há séculos, talvez não tivesse nenhum frescor em torno de si, apenas uma
velhice malcheirosa.
alguns acreditam que ele tenha quatro mãos. Você acha que esse tanto de mãos
ficaria bem? Pois há quem acredite que, em vez de quatro mãos, ele tenha mil!
Bom, um homem com essa quantidade de mãos pode até ser muito bonito
para se ter como peça de museu, mas para amá-lo... Imagine só, se ele resolver
lhe dar um abraço – com mil mãos! Tão logo você consiga se livrar desse
E há os que acreditam que Deus tenha três rostos. Seria algo até curioso de se
ver, mas um homem com três faces certamente não será nada bonito. Além do
A perfeição de Deus existe apenas na sua mente, pois o próprio Deus é apenas
uma projeção mental. Nesse sentido, como Deus não existe mesmo, você pode
Agora, se for para amar um homem ou uma mulher... aí, se prepare para os
prioridades variam... Por exemplo, você quer ir ao cinema, mas sua esposa
prefere não ir, pois está com dor de cabeça. Coisas desse tipo acontecem o
tempo todo.
tanto? Qual foi a sua motivação?”. E ele respondeu: “Bom, para ser sincero, o
que eu queria mesmo era ver se conseguia ganhar mais dinheiro do que minha
mulher consegue gastar – e, nesse aspecto, tenho que admitir que sou um
fracasso”.
você quer dormir, mas, a seu lado, seu marido não para de roncar. O que você
pode fazer com esse sujeito, que está apenas roncando enquanto dorme? Ele
mesmo não tem o que fazer em relação a isso. Já foram tentados milhares de
métodos para evitar o ronco. O último deles, por exemplo, é uma espécie de
máscara que conta com sensores elétricos e fica dependurada sobre o rosto da
pessoa. Assim que ela começa a roncar, a máscara despenca sobre o seu rosto, e
ela acorda. No seu caso, será que deixaria seu marido passar por isso ou não?
Sempre que ele roncar, a máscara vai cair imediatamente sobre seu rosto,
Ou, quem sabe, você tenha uma esposa cujo cheiro você não consegue
suportar...
Já com Deus, tudo é maravilhoso, pois você não tem que dormir com ele – o
que dirá ouvi-lo roncar –, e muito menos tem que viver a seu lado. Se o corpo
dele cheirar mal, que cheire. Ele não passa de uma hipótese, uma simples
Mas estar em contato com seres humanos reais, com gente de verdade, é uma
amor. Pois é muito fácil amar a Deus; o difícil é amar outra pessoa. Amar a
Deus não custa nada; agora, para amar uma pessoa, é preciso uma tremenda
compreensão.
Nesse sentido, todos que fugiram para o ermo da floresta e das montanhas – e
que só amam um Deus que eles mesmos projetaram em sua mente –, todos eles
optaram por um tipo de vida bastante fácil. Mas o seu amor nunca irá crescer,
homem é, para mim, uma coisa demasiado imperfeita. O amor aos homens me
mataria” . Isso não passa de puro egoísmo. Ele julga a si mesmo um ser
– só que esse Deus é apenas uma alucinação. Se você persistir, pode até ser que,
um dia, consiga ver esse Deus que concebeu – mas isso não vai passar de um
sonho acordado, de uma alucinação; não haverá ninguém diante de você, mas a
É por isso que um cristão verá Jesus, um budista verá Buda, e um hindu verá
Krishna. Mesmo que seja por engano, um cristão nunca terá uma visão de
Jesus nunca aparece para um hindu – eles não aparecem simplesmente porque
não existem. Eles fazem parte da sua mente; foi você quem os criou. A Bíblia
diz que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança. Pois eu digo a você:
Respondeu Zaratustra: “Que fiz eu, falando de amor? Trago aos homens uma dádiva”.
O amor é sempre uma dádiva; caso contrário, não passa de poesia abstrata.
“Que fiz eu, falando de amor? Trago aos homens uma dádiva” . E o velho santo
vai dizer coisas significativas a Zaratustra: “Pois não lhes dês nada; eles nunca
perdoam aqueles que lhes dão algo”.
De fato, o velho santo tem alguma razão naquilo que está dizendo:
“Não lhes dês nada [...] Tira-lhes algo de seu fardo, isto sim, e carrega-o juntamente com eles – será o
Faz parte da psicologia humana: você quer ser alguém que doa, e não alguém
que recebe. Mas há certas coisas que você tem, sim, que receber. Afinal, você
O que você poderia dar a alguém como Buda, Cristo ou Zaratustra? Perto
deles, você não passa de um mendigo – mas, mesmo assim, o seu mecanismo
psicológico faz com que você acredite que precisa lhes dar algo, e, ainda, que
isso o fará feliz. Na verdade, eles poderiam lhe dar tesouros inacreditáveis, mas
você nunca os perdoaria por isso, por serem eles a dar e você a receber. Pois,
nesse caso, você é só um mendigo – e como perdoar alguém que fez de você
um mendigo?
Veja só esta história. Tenho um amigo que nasceu pobre, mas foi adotado por
uma das famílias mais ricas da Índia. Ele é um homem extremamente generoso
e, ao longo dos anos, cuidou de todos os seus familiares, fazendo deles pessoas
ricas e lhes dando uma vida confortável. Ele está sempre ajudando os outros,
sejam eles amigos, sejam parentes ou até mesmo desconhecidos. Certo dia,
bem, eu sempre quis lhe perguntar uma coisa, mas nunca tive coragem de me
expor. Ao longo da vida, sempre ajudei a todos. Dei dinheiro a meus parentes,
que antes eram pobres e agora são todos ricos; ajudei meus amigos; cheguei a
doar até para estranhos que me pediram. Nunca disse não a ninguém – afinal,
tenho tanto dinheiro, que posso passar o resto da vida doando. Mas aí é que
está: essas pessoas todas que ajudei estão zangadas comigo; todas elas falam mal
de mim”.
Então, eu disse:
“É muito simples: por acaso, alguma vez você já permitiu que eles lhe dessem
algo?”
“Sim, e isso explica tudo. Mas, quem sabe, você possa pensar em pequenas
coisas. Por exemplo, você pode telefonar para algum amigo a quem tenha dado
passar em frente à sua casa e vi umas rosas lindas no jardim. Será que você
transformar. Ou, se estiver doente, você pode ligar para alguém e dizer: ‘Estou
de cama, com febre e muita dor de cabeça, e me deu uma grande vontade de
vê-lo, de que você pudesse estar aqui comigo. Seria muito bom se você pudesse
vir aqui, apenas para segurar minha mão e sentar a meu lado’. Esse tipo de
E completei:
“Sei que você possui muitos automóveis, mas talvez possa dizer algo assim a
qualquer um dos seus parentes: ‘Será que pode me emprestar o seu carro, só
por um dia?’. Você nem precisa usar o carro; basta mantê-lo na garagem e
devolvê-lo no fim do dia. Mas, com isso, essa pessoa vai pensar que também
“Tudo bem, vou tentar – mas confesso que estou bem pouco à vontade com
isso. Eu fiz deles tudo que são hoje; por que haveria de pedir algo? Tenho várias
rosas no meu jardim; tenho meus próprios automóveis, sem falar que os carros
deles fui eu quem lhes deu; até as casas onde vivem foram dadas por mim.”
“A escolha é sua. Na verdade, é o seu ego que está magoando todos eles: o fato
de ser sempre você quem dá, e sempre serem eles que recebem. Se realmente
quer mudar a atitude deles em relação a você, é preciso que, de alguma forma,
você se torne aquele que recebe. Deixe que as outras pessoas desfrutem, por
“Funcionou, a sua ideia fez milagres! Nunca tinha visto isso! Está todo mundo
que passei a receber coisas delas, tornei-me uma pessoa generosa. E pensar que,
antes, elas só falavam coisas do tipo: ‘Ele não passa de um grande egoísta. Tudo
que ele nos deu, no fundo, não foi porque precisássemos de algo, não foi para
“Não lhes dês nada [...] Tira-lhes algo de seu fardo, isto sim, e carrega-o juntamente com eles – será o
E, querendo lhes dar, não dês mais que uma esmola, deixando ainda que a mendiguem!”
Sem dúvida, esse conselho do ancião é bastante significativo e baseia-se numa
profunda verdade psicológica. Não lhes dê mais que uma esmola; não lhes dê
demais. Dê-lhes apenas o suficiente para que ainda continuem querendo mais.
Com isso, estarão sempre abanando o rabo em torno de você. Dê-lhes somente
quando mendigarem, e assim ficarão felizes com você, pois sentirão que não os
reduziu a mendigos. Foram eles mesmos que mendigaram; ou seja, a culpa não
Mas um homem como Zaratustra não pode fazer uma coisa dessa.
“Não”, respondeu Zaratustra, “não dou esmolas. Não sou pobre o bastante para isso.”
Que afirmação maravilhosa: “Não sou pobre o bastante para isso” . Sim, pois se
reduzo uma pessoa à mendicância, se lhe dou em quantidades tão ínfimas que
apenas crio nela o desejo por mais, isso revela somente a minha própria
migalhas. Ou você dá, ou você não dá – não tem meio-termo. Agora, se você
der, tem que ser com todo o coração, com inteireza. E pouco importa que
fiquem irritados e aborrecidos com você; não importa nem que o crucifiquem.
O santo riu de Zaratustra, e falou assim: “Então cuida para que recebam teus tesouros!”
fundo, as pessoas querem esses tesouros, mas, quando surge alguém para lhes
se não fosse assim, o que explica o fato de seres como Buda, Mahavira ou Jesus
podem até possuir todo esse tesouro, mas nós não somos tão pobres assim para
aceitá-lo. Vocês podem até ser muito ricos por tê-lo; mas nós somos
“Então cuida para que recebam teus tesouros! Eles desconfiam dos eremitas e não acreditam que
Para eles, nossos passos ecoam solitários demais pelas ruas. E, quando, deitados à noite em suas camas,
ouvem um homem a caminhar bem antes de nascer o sol, perguntam a si mesmos: aonde vai esse
ladrão?
Não vás para junto dos homens, fica na floresta! Seria até melhor que fosses para junto dos animais!”
eles não ficarão aborrecidos com você, não irão rejeitá-lo, não o crucificarão.
também para junto das árvores – eles são mais sensíveis. O homem se tornou
alegria, da dança.
“Por que não queres ser, como eu – um urso entre os ursos, um pássaro entre os pássaros?”.
Respondeu o santo: “Eu faço canções e as canto, e, quando faço canções, rio, choro e sussurro: assim
louvo a Deus.
Cantando, chorando, rindo e sussurrando eu louvo ao deus que é meu Deus. Mas o que nos trazes de
presente?”.
Ao ouvir essas palavras, Zaratustra saudou o santo e falou: “Que poderia eu vos dar? Deixai-me partir,
para que nada vos tire!” – E assim se despediram um do outro, o idoso e o homem, rindo como riem
dois meninos.
Zaratustra disse: “Que poderia eu vos dar?” . Você canta, faz canções, tem
alegria. Na sua solitude, você é plenamente feliz. O que mais eu poderia lhe
dar? Deixe-me ir, pois tenho receio de acabar tomando alguma coisa de você, e
pássaro entre os pássaros, uma árvore entre as árvores. E eu escolhi voltar para
os homens, e viver como um homem. Não tenho nada para lhe dar; você já
tem tudo.
Mas, quando Zaratustra se achou só, assim falou para seu coração: “Como será possível? Este velho
santo, na sua floresta, ainda não ouviu dizer que Deus está morto! ”.
Isto é algo que precisa ser compreendido por todos aqueles que estão em
apenas uma hipótese. Afirmar que “Deus está morto” é só outro modo de dizer
que, na realidade, Ele nunca esteve vivo. Foi somente para satisfazer a
curiosidade humana que algumas mentes astutas inventaram essa ideia de
Foi assim que Zaratustra falou ao seu coração: “Como será possível que um
ancião tão belo e nobre, um homem que canta, que faz canções, que vive em
meio aos pássaros, árvores e animais, como é que ele ainda não ouviu dizer na
sua floresta que Deus está morto? Como será possível que ele ainda esteja
meu modo de dizer é que é um pouco diferente. O que afirmo é que Deus
nunca esteve vivo; nunca existiu nenhum Deus. Essa ideia de Deus é apenas
Deus é uma invenção daqueles que não foram capazes de aprender a arte de
viver.
criaram essa ideia de que a vida é algo ruim – de que é preciso renunciar a ela.
Porém, você só consegue renunciar a alguma coisa caso haja um ganho ainda
obtenha o paraíso.
ignorantes; são invenções daqueles que não foram capazes de aprender a arte de
amar, a arte de viver, daqueles que não sabem cantar e muito menos dançar.
Isso acontece quase que naturalmente: alguém que não sabe dançar condenará
a dança; alguém que não sabe cantar condenará o canto – é uma espécie de
incapacidade e ignorância.
Deus não é uma criação dos sábios, mas dos ignorantes. É uma criação dos
Zaratustra é imensamente apaixonado pela vida e por tudo que ela oferece.
Ele é o único místico que manifesta uma imensa afirmação da vida. E assim
deve ser. Não há lugar para se renunciar a nada – a vida é uma dádiva da
pessoas como elas são, sem julgamento. A partir daí, não é preciso mais
nenhum Deus; não há necessidade de nenhum paraíso após a morte. Sim, nós
divindade é uma qualidade que você pode aprender, que pode cultivar. Deus é
apenas uma ideia. E quanto antes ela for descartada melhor, porque ela só faz
do planeta, sem saber que não há ninguém para ouvir as suas preces. Enquanto
isso, milhões de outras estão venerando estátuas de pedra. Ora, se elas não
conseguem amar os seres humanos, que estão vivos, como é que podem amar
uma estátua? A questão é que estátuas de pedra são algo bastante cômodo. Elas
não criam nenhum problema. Você pode fazer o que quiser: pode derramar
água sobre elas, pode banhá-las com leite, pode oferecer-lhes cocos podres... e
elas sequer reclamarão. Você pode dizer qualquer coisa para uma estátua, seja
em que idioma for, da forma correta ou não, que, para ela, pouco importa.
Agora, o verdadeiro amor precisa que o outro esteja realmente vivo, com a
vida pulsando dentro de si. Mas, para isso, é preciso aprender a arte de viver.
muito inferior ao do amor, da vida, da meditação, do sorriso. Você pode até ser
importa – ainda assim, você precisará ter a maestria na arte de viver, na arte de
amar, na arte de sorrir; você ainda precisará de todas essas qualidades essenciais
em sua vida.
Mas veja só como são as coisas. Tudo que eu ensino é isto: o amor, a vida, o
sorriso, e, como pano de fundo para todas essas coisas, a meditação. Acontece
que o governo indiano não está disposto a reconhecer minha escola como uma
mundanas da vida.
Não estou dizendo que essas disciplinas não devam ser ensinadas, mas, sim,
que não deveriam ser a única forma de instrução. Elas deveriam ser vistas como
uma espécie de educação de nível básico – para além delas, cada universidade
deveria contar com uma faculdade de educação superior, onde você aprenderia
sobre os reais valores da vida. Pois a geografia não pode torná-lo uma pessoa
melhor, a história não pode torná-lo mais amoroso, nem a química pode torná-
pouco de senso de humor. Resultado: você não sabe sorrir, não sabe dançar,
Por outro lado, o que Zaratustra quer é que sua vida seja um imenso jardim
onde o sol nasce com alegria. Zaratustra é absolutamente a favor da vida, e essa
místico tão singular, um mestre cuja única mensagem é o amor e a vida, conta
outras crenças deveriam ser enterradas no cemitério – pois não há outro Deus
e a criança
Três metamorfoses do espírito menciono para vós: de como o espírito se torna camelo, o camelo se
Há muitas coisas pesadas para o espírito, para o forte, resistente espírito em que habita a reverência:
O que é pesado? Assim pergunta o espírito resistente, e se ajoelha, como um camelo, e quer ser bem
carregado.
O que é o mais pesado, ó heróis? Pergunta o espírito resistente, para que eu o tome sobre mim e me
Não é isso: rebaixar-se, a fim de machucar sua altivez? Fazer brilhar sua tolice, para zombar de sua
sabedoria?
Ou é isso: deixar nossa causa quando ela festeja seu triunfo? Subir a altos montes, a fim de tentar o
tentador? [...]
Ou é isso: amar aqueles que nos desprezam e estender a mão ao fantasma, quando ele quer nos fazer
sentir medo?
Todas essas coisas mais que pesadas o espírito resistente toma sobre si: semelhante ao camelo que ruma
Mas no mais solitário deserto acontece a segunda metamorfose: o espírito se torna leão, quer capturar
Ali procura o seu derradeiro senhor: quer se tornar seu inimigo e derradeiro deus, quer lutar e vencer o
grande dragão.
Qual é o grande dragão, que o espírito não deseja chamar de senhor e deus? “Tu-deves” chama-se o
“Tu-deves” está no seu caminho, reluzindo em ouro, um animal de escamas, e em cada escama brilha
um dourado “Tu-deves!”.
Valores milenares brilham nessas escamas, e assim fala o mais poderoso dos dragões: “Todo o valor das
“Todo o valor já foi criado, e todo o valor criado – sou eu. Em verdade, não deve mais haver ‘Eu
Meus irmãos, para que é necessário o leão no espírito? Por que não basta o animal de carga, que
renuncia e é reverente?
Criar novos valores – tampouco o leão pode fazer isso; mas criar a liberdade para nova criação – isso
Criar liberdade para si e um sagrado “Não” também ante o dever: para isso, meus irmãos, é necessário
o leão.
Adquirir o direito a novos valores – eis a mais terrível aquisição para um espírito resistente e reverente.
Ele amou outrora, como o que lhe era mais sagrado, o “Tu-deves”; agora tem de achar delírio e arbítrio
até mesmo no mais sagrado, de modo a capturar a liberdade em relação a seu amor: é necessário o leão
Mas dizei-me, irmãos, que pode fazer a criança, que nem o leão pôde fazer? Por que o leão rapace
ainda tem de se tornar criança?
Inocência é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda a girar por si mesma, um
Sim, para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso um sagrado dizer-sim: o espírito quer agora a sua
Três metamorfoses do espírito eu vos mencionei: como o espírito se tornou camelo, o camelo se
Z
aratustra divide o processo de evolução da consciência em três símbolos: o
revoltar. Ele não sabe dizer “não”. Não passa de um crente, um seguidor, um
e alguém a lhe dizer: “Tu deves fazer isto”. Ele precisa dos dez mandamentos;
pois não confia em si mesmo. Ele não tem coragem, não tem alma, não tem
prisões. O leão não precisa de nenhum líder; ele basta a si mesmo. Ele nunca
permitirá que ninguém mais lhe diga: “Tu deves” – isso é um insulto à sua
dignidade. O que ele sabe dizer é isto: “Eu quero”. O leão simboliza a
*
responsabilidade , e um esforço gigantesco para se libertar de todas as
correntes.
Mas o próprio leão não representa ainda o nível mais alto da consciência
humana. Esse nível máximo só é alcançado quando o leão também passa por
contém.
São todos símbolos realmente belos. E vamos abordar as implicações que eles
Três metamorfoses do espírito menciono para vós: de como o espírito se torna camelo, o camelo se
torna leão e o leão, por fim, criança.
Há muitas coisas pesadas para o espírito, para o forte, resistente espírito em que habita a reverência:
Zaratustra não é a favor dos fracos, dos chamados humildes do espírito. Nesse
forte. Ele é contra o ego, sim, mas não contra o orgulho e a dignidade. O
Na verdade, o ego é algo que nos priva de nossa dignidade, que nos priva de
nosso orgulho – pois o ego é dependente dos outros; ele está sempre
preocupado com a opinião das outras pessoas, com o que elas possam vir a
dizer. O ego é muito frágil. De uma hora para outra, a opinião das pessoas
vinha de muito tempo, e que dizia o seguinte: caso alguém conseguisse obter
ajudaria essa pessoa a descobrir os seus próprios talentos, ou até faria dela
mesma um gênio.
E, imagine só, Voltaire era tão respeitado como grande pensador e filósofo,
ele era tão idolatrado, que precisava de proteção policial até para suas
aparato de proteção policial. Tudo isso porque, onde quer que ele fosse, as
ocasiões em que ele chegou praticamente nu à sua casa, com arranhões por
todo o corpo, pingando sangue. Isso, claro, fez com que ele ficasse bastante
Voltaire escreveu em seu diário: “Costumava achar que ser famoso era algo
formidável, agora sei que é uma maldição. De alguma forma, gostaria de ser
pudesse caminhar pelas ruas sem ser notado. Estou cansado de ser famoso, de
Então, passados mais de dez anos, eis que ele faz outra anotação em seu
diário, com grande tristeza e depressão: “Eu não tinha a menor noção de que
minhas preces seriam ouvidas”. Sim, pois o tempo passa, as modas mudam, a
tomou o posto que antes era ocupado por Voltaire, que foi esquecido pelas
agora, era outro que havia se tornado a bola da vez. Rousseau era contra todas
completamente dele; elas não se davam ao trabalho nem mesmo de lhe dizer
“olá”. Só então ele se deu conta de que, apesar dos pesares, era bem melhor ser
um prisioneiro. “Agora estou livre para ir aonde quiser, mas isso machuca. E a
ferida cada vez aumenta mais – afinal, eu estou vivo, mas parece que, para as
cemitério. E você pode perguntar: mas como assim, três e meia ? Ora, porque
três delas eram, de fato, pessoas – o cachorro dele conta só como metade. Era o
olhar um cervo na floresta para perceber sua graça, orgulho, dignidade. Assim
como um pavão a dançar ou uma águia voando pela imensidão do céu – eles
não têm egos, não dependem da sua opinião; eles são dignos simplesmente
E isso é algo que precisa ser bem compreendido, pois todas as religiões têm
ensinado as pessoas a não se fiarem em seu orgulho e dignidade – a serem
Por sua vez, Zaratustra deixa absolutamente claro que é a favor do homem
forte, corajoso, daquele que se aventura sem medo algum pelo desconhecido,
ficou de ponta-cabeça, mas ainda está lá. Basta olhar para os ditos homens
santos, e vemos como todos eles são muito mais vaidosos e egoístas do que as
Pois é, o ego conhece truques sutis para entrar pela porta dos fundos. Você
pode até expulsá-lo pela porta da frente – mas ele sabe que ainda existe uma
Ouvi contar a história de um homem que, certa noite, num bar, já havia
bebido demais e só estava causando confusão: atirava coisas nos outros, batia
nas pessoas, gritava, insultava todo mundo, e não parava de pedir cada vez mais
e mais bebida.
Finalmente, o dono do bar lhe disse: “Já chega! Você não bebe mais nada aqui
hoje”. E pediu aos funcionários do bar para expulsá-lo pela porta da frente.
Acontece que, mesmo estando na mais completa e total embriaguez, ele ainda
tateando no escuro, ele conseguiu entrar pela porta dos fundos e, lá dentro,
O proprietário lhe disse: “Você de novo? Eu já falei que esta noite você não
E o homem respondeu: “Mas que coisa esquisita. Por acaso você é o dono de
Veja bem, o ego não só conhece a porta dos fundos, como pode entrar até
pelas janelas. Ele pode, inclusive, conseguir entrar após ter retirado uma telha
Zaratustra quer que você passe por uma profunda metamorfose. O camelo
O camelo talvez seja o animal mais feio de toda a existência. Não há o que se
possa fazer para atenuar a sua feiura. Já pensou? É um bicho tão esquisito, que
Nesse sentido, escolher o camelo como símbolo para o nível mais baixo de
deformada; ela deseja apenas ser escravizada. Ela tem medo da liberdade
carregado com o maior fardo possível. Ele se alegra em ser carregado; assim
que não lhe pertence. Agora, nenhum homem digno aceitaria ser carregado
mortos para os vivos. Trata-se apenas da dominação dos mortos sobre os vivos.
“não”. E um homem que não sabe dizer “não” simplesmente perdeu a sua
dignidade – o seu “sim” não significa nada. Você compreende o que estou
você é capaz de dizer “não”. Se você é incapaz de dizer “não”, o seu “sim” é
É por isso que o camelo precisa se transformar num belo e majestoso leão –
sempre pronto para morrer, mas nunca para ser escravizado. É impossível
nenhum outro animal é capaz de reivindicar. Ele não possui reinos nem
tesouros, nada disso importa. Sua dignidade reside apenas no seu próprio
Essa prontidão para dizer “não”, essa rebeldia, purifica o leão de toda a sujeira
deixada pelo camelo – ela apaga qualquer vestígio e pegada deixados pelo
A criança não diz “sim” porque esteja com medo. Ela diz “sim” porque ama,
porque confia. Ela diz “sim” porque é inocente; ela não consegue nem conceber
que possa ser enganada. O seu “sim” nasce de uma tremenda confiança. É um
“sim” que não se origina do medo, mas da mais profunda inocência. E apenas
chamo de divindade.
Há muitas coisas pesadas para o espírito, para o forte, resistente espírito em que habita a reverência:
O que é pesado? Assim pergunta o espírito resistente, e se ajoelha, como um camelo, e quer ser bem
carregado.
O que é o mais pesado, ó heróis? Pergunta o espírito resistente, para que eu o tome sobre mim e me
Mas para o homem verdadeiramente forte, para o leão que existe em você, o
mais pesado assume um sentido e uma dimensão bem diferentes: para que eu o
tome sobre mim e me alegre de minha força – a sua única alegria reside em sua
força. Já para o camelo, sua única alegria reside em ser obediente, servil, em ser
um escravo.
Não é isso: rebaixar-se, a fim de machucar sua altivez? Fazer brilhar sua tolice, para zombar de sua
sabedoria?
Ou é isso: deixar nossa causa quando ela festeja seu triunfo? Subir a altos montes, a fim de tentar o
tentador? [...]
Ou é isso: amar aqueles que nos desprezam e estender a mão ao fantasma, quando ele quer nos fazer
sentir medo?
Todas essas coisas mais que pesadas o espírito resistente toma sobre si: semelhante ao camelo que ruma
nada cresce, onde não existe verde, onde nenhuma flor desabrocha, onde todas
as coisas estão mortas – até onde a vista alcança, tudo é um imenso cemitério.
Mas no mais solitário deserto acontece a segunda metamorfose: o espírito se torna leão [...]
Mesmo no caso dos que estão tateando na escuridão e na inconsciência, há
transformação.
Foi justamente o que se deu com o Buda Gautama, que abandonou seu
pelo imperador, pois ele já estava ficando velho e aquele era seu único filho. E
o seu maior desejo na vida, pelo qual rezava todos os dias, era o de ter um filho
– afinal, quem iria sucedê-lo no trono? Ele tinha passado a vida inteira
para quem? Por isso, houve um enorme regozijo com o nascimento de Buda, e
o rei queria saber, nos mínimos detalhes, como seria o futuro da criança.
soberano não parava de questionar: “Então, qual é a conclusão? Por que tanta
demora?”.
chegado todos à mesma conclusão, mas era algo tão fora do comum, que não
sabiam o que fazer. Mas, por fim, o mais jovem se levantou e disse: “Majestade,
esses homens são veneráveis anciãos, e nenhum deles quer dizer algo que possa
magoá-lo. Mas alguém precisa quebrar o gelo. E o fato é que você tem um filho
realmente singular. Na verdade, o futuro dele não pode ser previsto com
exatidão, por um simples motivo – ele tem dois futuros. Sim, já passamos
horas discutindo sobre qual dessas possibilidades poderia prevalecer, mas ambas
O soberano, então, disse: “Não se preocupe. Diga-me tudo que tem para
chakravartin , ou ele vai renunciar ao trono e se tornar mendigo. É por isso que
estávamos demorando, não conseguíamos achar as palavras certas para lhe dizer
isso. Ambas as possibilidades têm o mesmo peso”.
existe alguma maneira de fazer com que ele não renuncie ao mundo e vire
mendigo?”. Eles, então, sugeriram todo tipo de medidas que poderiam ser
adotadas pelo rei, destacando uma em particular: a de que o garoto não deveria
**
ter consciência de coisas como a doença, a velhice, a morte, os sannyasins . Ele
deveria ser mantido praticamente cego para a existência desse tipo de coisas,
pois todas elas poderiam despertar nele a ideia de renunciar ao trono e virar
E assim foi feito. Foram construídos três palácios imensos para o menino,
cada um para uma época diferente do ano, de modo que ele nunca entrasse em
seguinte ordem: “Ele não está autorizado a ver sequer uma folha morta, sequer
uma flor que esteja murchando. Assim, todas as noites, vocês devem limpar
daquilo que tiver juventude e frescor, como as flores novas a desabrochar”. Para
mais lindas do reino. Toda a sua vida não era nada mais do que prazer,
diversão, música, dança e mulheres deslumbrantes. Ao longo dos anos, ele não
Eis então que, quando ele tinha 29 anos de idade, chegou a época do ano em
abertura era feita sempre pelo príncipe. Já fazia anos que ele dava início ao
festival. Para tanto, além das estradas serem fechadas exclusivamente para sua
dentro de casa. As coisas haviam sempre transcorrido dentro dos planos do rei.
A história é muito bonita. Até aqui, parece que se tratava meramente de algo
preciso que você atente para mais um detalhe: crenças como o jainismo e o
budismo não acreditam que haja apenas um deus, mas, sim, que todos os seres,
um dia, acabarão se tornando deuses. E Zaratustra concorda com eles: todos
nós temos o potencial inato de nos tornarmos deuses. Quanto tempo isso vai
levar, depende apenas de nós mesmos – mas nosso destino é esse. Milhões de
pessoas já conseguiram alcançar esse patamar; elas não têm mais corpos físicos,
fato de já terem se passado 29 anos e, mesmo assim, aquele homem que deveria
se tornar um grande iluminado ainda estava sendo impedido por seu pai.
os tempos, porque isso, no fundo, fará com que se eleve o nível de consciência
Quando digo que os aspectos mitológicos são mais importantes que os fatos
passa com você. Caso você esteja próximo de florescer, a existência fará de tudo
para lhe trazer sua primavera o quanto antes. A vida tem enorme interesse no
seu despertar, pois o seu despertar fará com que muitas outras pessoas
despertem.
despertar. Ele deixará sua marca de grandeza em todo ser humano senciente – é
provável que desperte o mesmo anseio nos outros, que muitas sementes
comecem a brotar, que aquilo que ainda está adormecido torne-se ativo e
dinâmico.
É por isso que digo que a parte mitológica é muito mais importante que os
festival. E o plano surtiu efeito. Buda não conseguia acreditar no que estava
vendo, e muito menos entender o que teria ocorrido com aquele homem. O
príncipe fora tratado com tantos cuidados, fora sempre tão bem cuidado pelos
maiores médicos da época, que nunca havia tido nenhuma doença. Ele sequer
Imediatamente, outro deus entrou no corpo do cocheiro, pois Buda logo quis
é inevitável. Mais cedo ou mais tarde, o ser humano começa a ficar fraco, velho
e doente”. Nesse exato momento, os dois viram um homem muito velho pela
estrada – era outro deus disfarçado –, e o cocheiro disse: “Veja bem, é isso que
acontece com todas as pessoas. A juventude não é uma coisa eterna; ela é
efêmera e fugaz”.
vermelhas, e Buda imediatamente quis saber: “Por que este homem usa roupas
vermelhas e tem a cabeça raspada? Ele parece estar muito alegre, muito
ele quer conhecer a verdade da vida – quer saber se a vida irá sobreviver à
verdade; é um sannyasin ”.
que serve sermos jovens por alguns anos, se existem a doença e a morte? Outra
Mas no mais solitário deserto acontece a segunda metamorfose: o espírito se torna leão, quer capturar
Ali procura o seu derradeiro senhor: quer se tornar seu inimigo e derradeiro deus [...]
O que ele busca, agora, é a sua própria, suprema divindade. Qualquer outro
deus será para ele um inimigo. Dali em diante, ele não vai se curvar perante
É
nenhum outro deus, porque ele mesmo será o seu único senhor. É esse o
Sem dúvida alguma, surgirá um novo tipo de virtude, mas será algo que vai
brotar da quietude de sua própria voz interior. A sua liberdade implicará uma
enorme responsabilidade, sim, mas essa responsabilidade não lhe será imposta
Ali procura o seu derradeiro senhor: quer se tornar seu inimigo e derradeiro deus, quer lutar e vencer o
grande dragão.
Qual é o grande dragão, que o espírito não deseja chamar de senhor e deus? “Tu-deves” chama-se o
A partir de agora, não existe a menor hipótese de que outra pessoa lhe dê
ordens. Ele não deve mais obediência a ninguém, nem mesmo a Deus.
Zaratustra também afirma algo excelente em relação a isso: “Deus está morto,
e o homem é livre pela primeira vez”. E tem razão. Enquanto essa velha ideia
de Deus existir, o homem nunca poderá ser livre. Ele pode até conquistar a sua
destruí-lo. Se foi ele quem construiu você, pode muito bem resolver desmontá-
lo. Como ele é o grande criador, tem toda a capacidade e potência para ser o
grande destruidor.
Você não tem como impedi-lo. Se você não foi capaz de impedir que ele o
criasse, como pode impedir que ele o destrua? Foi por isso que pessoas como
existência de Deus.
Talvez você se surpreenda, pois o argumento usado por eles para negar a
eles dizem: “Enquanto Deus existir, o homem não tem possibilidade alguma de
ninguém, pois é só uma hipótese. No fundo, você passa a vida venerando uma
argumento plausível para a existência de Deus como uma pessoa que criou o
mundo.
linguagem forte. Por exemplo, ele chama Deus de “o grande dragão” – Qual é o
grande dragão, que o espírito não deseja chamar de senhor e deus? “Tu-deves”
Você deve fazer isso, não deve fazer aquilo – ou seja, você não é livre para
escolher o que acha certo. Pois, imagine só, tudo aquilo que é certo ou errado
já foi decidido, para todo o sempre, por pessoas que estão mortas há milhares
de anos.
metamorfose não pode acontecer –, essa pessoa tem que dizer: “Não, eu farei o
que quero! Farei tudo que minha consciência sentir que é correto, e não farei
nada daquilo que minha consciência sinta ser errado. Além de meu próprio ser,
não terei nenhum outro guia. Além de meus próprios olhos, não acreditarei
nos olhos de mais ninguém. Não sou cego, e muito menos um idiota. Eu posso
ver, posso pensar. Posso meditar e descobrir, por mim mesmo, aquilo que é
consciência”.
“Tu-deves” está no seu caminho, reluzindo em ouro, um animal de escamas, e em cada escama brilha
um dourado “Tu-deves!”.
Valores milenares brilham nessas escamas, e assim fala o mais poderoso dos dragões: “Todo o valor das
“Todo o valor já foi criado, e todo o valor criado – sou eu. Em verdade, não deve mais haver ‘Eu
dragão. Todos eles, sem exceção, afirmam que todos os valores já foram
criados, que já não há necessidade alguma de que você decida qualquer coisa.
Já foi tudo decidido em seu nome por pessoas muito mais sábias que você. Não
Porém, sem o “Eu quero” não existe liberdade. Você permanece um camelo; e
desejam que você seja: um reles camelo – horroroso, sem a menor graça, sem a
apenas para ser escravo. A própria ideia de liberdade é algo que ainda não lhes
ocorreu. Veja bem, isto que estou dizendo não é uma abstração filosófica – é a
Por acaso, alguma vez a ideia de liberdade já foi aventada por hindus, cristãos,
voz, é isto: “Tudo já foi decidido; temos só que obedecer. Aqueles que
Meus irmãos, para que é necessário o leão no espírito? Por que não basta o animal de carga, que
renuncia e é reverente?
O que Zaratustra afirma é isto: todos aqueles homens que você chama de
santos não passam de uns perfeitos camelos. Eles apenas disseram sim para
veneram.
Criar novos valores – tampouco o leão pode fazer isso; mas criar a liberdade para nova criação – isso
O leão, em si, não consegue criar novos valores; mas ele pode criar a liberdade
e a oportunidade para que novos valores sejam criados. E quais seriam esses
novos valores?
Por exemplo, na minha visão de como seria o novo homem, ele não poderia
Outro novo valor seria este: o mundo não será mais divido em nações, pois
Todas as religiões organizadas também serão extintas, pois elas têm impedido
a verdadeira busca individual. O que fazem é entregar verdades pré-fabricadas
encontrá-la pronta por aí. Não existe uma fábrica que a produza nem uma loja
onde se possa comprá-la. Se quiser encontrá-la, você terá que buscar nos
de você mesmo pode ir até lá. A religião é individual – eis um novo valor.
Veja bem, as nações são coisas hediondas; as instituições religiosas são todas
***
irreligiosas; e espaços como igrejas, templos, sinagogas e gurudwaras são
redor. Você não precisa ir a lugar nenhum para rezar, pois não existe ninguém
adoração.
Criar liberdade para si e um sagrado “Não” também ante o dever: para isso, meus irmãos, é necessário
o leão.
A vida toda foi-lhe ensinado que o dever é um grande valor. No entanto, ele
palavrão. Se você amar sua esposa porque esse é o seu dever, então você não a
ama de verdade. Você ama o seu dever, não a sua esposa. Da mesma forma, se
você amar sua mãe só porque é seu dever, você não a ama. O dever destrói tudo
Por exemplo, certa vez me contaram sobre um escritório onde, todos os dias,
Acontece que esse homem conhecia apenas três piadas; mesmo assim, todos os
dias ele contava uma piada para o pessoal, e, claro, todos tinham que achar
que fartas daquelas piadas, pois já tinham escutado cada uma delas milhares de
vezes – apesar disso, elas riam como se estivessem escutando aquelas anedotas
pela primeira vez. Um dia, então, ele contou sua piada e, como era de costume,
todo mundo riu – todo mundo, menos a moça que era datilógrafa e que
O chefe, indignado, perguntou: “Mas qual é o seu problema? Você não ouviu
piada. Pois saiba que só vim aqui para pedir a minha demissão. Eu acabo de ser
contratada por outra empresa, e agora não tenho mais a mínima obrigação de
rir de uma piada que já escutei pelo menos umas dez mil vezes. Esses pobres
coitados que continuem rindo das suas piadas, pois eles ainda precisam manter
Certa vez, quando eu era professor, fui um dos convidados pelo comitê de
alguns temas que, na época, estavam se tornando cada vez mais problemáticos
sobre o tema e, em geral, todos diziam: “Alguma coisa precisa ser feita
ruir”.
Eu não conseguia entender que tipo de debate era aquele; afinal, nem uma
nenhuma objeção ao que estava sendo dito. Na verdade, eu era a pessoa mais
uma universidade. Ele era um dos maiores cientistas da Índia. Enfim, naquela
Mesmo assim, resolvi falar – e disse: “Parece que vou ter que falar alguma
coisa sobre esse tema. Afinal, todos aqui estão insistindo num único ponto, o
falou que, na verdade, o professor é que precisa ser digno desse respeito. Sim,
estão demonstrando respeito, querer impô-lo como uma forma de dever é algo
sugiro que o comitê decida que, a partir de hoje, os professores devem ser
pessoas dignas e merecedoras de respeito, pois, com isso, esse respeito virá de
que estamos diante de uma pessoa com caráter, com dignidade, naturalmente
com que o respeito dos alunos seja uma obrigação formal. Lembrem-se de que
cada aluno a ser uma pessoa livre, atenta, consciente. E cabe exclusivamente
perfeitamente bem que você discorda de tudo, e que, além do mais, você não
Então, eu disse a D. S. Kothari: “Sim, todos eles são professores mais velhos e
experientes, mas nenhum deles foi capaz de responder à pergunta que levantei:
‘Por que vocês anseiam tanto por respeito, a ponto de querer forçá-lo?’ Na
verdade, só as pessoas que não merecem respeito têm esse desejo de ser
repulsivo”.
Criar liberdade para si e um sagrado “Não” também ante o dever: para isso, meus irmãos, é necessário
o leão.
Adquirir o direito a novos valores – eis a mais terrível aquisição para um espírito resistente e reverente.
Ele amou outrora, como o que lhe era mais sagrado, o “Tu-deves”; agora tem de achar delírio e arbítrio
até mesmo no mais sagrado, de modo a capturar a liberdade em relação a seu amor: é necessário o leão
Mas dizei-me, irmãos, que pode fazer a criança, que nem o leão pôde fazer? Por que o leão rapace
Inocência é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda a girar por si mesma, um
Sim, para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso um sagrado dizer-sim: o espírito quer agora a sua
Três metamorfoses do espírito eu vos mencionei: como o espírito se tornou camelo, o camelo se
evolução. Mas ela é apenas um símbolo; isso não significa que as crianças, em
si, sejam o estado mais elevado do ser. A criança é usada como símbolo porque
ela não está abarrotada de conhecimento. Ela é inocente; e, por ser inocente,
está repleta de encantamento pela vida; e, como seus olhos estão cheios de
sagrado “não”. O camelo também diz “sim”, mas é o “sim” de um escravo. Ele é
O leão, por sua vez, consegue dizer “não!” – mas é incapaz de dizer “sim”. Isso
iria contra a sua própria natureza; é algo que o faz lembrar do camelo. Seja
como for, ele conseguiu se libertar da condição de camelo, e dizer “sim” é algo
Já a criança, ela não conhece nada do camelo, nem sabe nada do leão. É por
isso que Zaratustra diz: Inocência é a criança, e esquecimento . Seu “sim” é puro,
mas ela dispõe de toda a potência para dizer “não”. Se não o diz, é porque ela
confia, e não porque está com medo – seu “sim” nasce da confiança, e não do
Estes três símbolos são algo maravilhoso para sempre se ter em mente.
Lembre-se de que você está onde o camelo está; lembre-se de que tem que
leão. É preciso que você avance ainda mais, em direção a um novo começo, à
diferença é gigantesca. A criança, como tal, é ignorante. Ela tem que passar
pelo camelo, pelo leão e, daí sim, voltar a ser criança. Mas, diferentemente da
criança antiga, esta já não é ignorante. Ela passou por todas as experiências da
sendo escritos na Índia, e eles têm uma visão similar. Nos Upanishades , o
****
brahmin é aquele que vem a conhecer a realidade suprema. Nesse sentido,
para se referir a um brahmin nos Upanishades é este: dwij – aquele que nasceu
deus.
* Osho tem uma leitura bastante original da palavra “responsabilidade”. Como ele diz no livro
Vivendo perigosamente (Alaúde): “Em geral, nos dicionários a palavra ‘responsabilidade’ aparece
com a conotação de ‘dever’, de fazer as coisas da maneira que os outros esperam que você as faça.
[...] Sua responsabilidade é cumprir as exigências feitas a você por seus superiores e pela
sociedade. [...] O caso, porém, é que a própria palavra ‘responsabilidade’ (responsibility) precisa
ser dividida em duas. Na realidade, ela significa ‘capacidade de responder’ (response-ability). E
essa capacidade de responder só é possível quando você é espontâneo, quando vive de forma
presente, aqui e agora. [...] Esta capacidade de responder é a verdadeira responsabilidade”. (N. do
T.)
** Sannyasin é o termo com o qual Osho se referia aos buscadores espirituais que, em vez de
renunciar ao mundo – que é o sentido original desse termo no hinduísmo –, permaneciam no
mundo, mas sem se identificar com ele. (N. do T.)
*** Gurudwara é o nome dos templos na religião sikh. (N. do T.)
**** Optamos aqui por manter a grafia original usada por Osho, pois, neste trecho, o sentido que ele
atribui à palavra brahmin tem uma conotação diferente daquela que a palavra assume na forma
como geralmente é traduzida, por “brâmane”, em referência aos membros da casta sacerdotal
indiana, que já nascem nessa condição. (N. do T.)
Capítulo 4
O amor é a dança
da sua vida
Da vida e do amor
Que temos em comum com o botão de rosa, que estremece porque sobre o seu corpo há uma gota de
orvalho?
É verdade: amamos a vida não por estarmos habituados à vida, mas ao amor.
Há sempre alguma loucura no amor. Mas também há sempre alguma razão na loucura.
E também a mim, que sou bem-disposto com a vida, parece-me que borboletas e bolhas de sabão, e o
que há de sua espécie entre os homens, são quem mais entende de felicidade.
Ver esvoejar essas alminhas ligeiras, tolas, encantadoras e volúveis leva Zaratustra às lágrimas e ao
canto.
Não queremos ser poupados por nossos melhores inimigos, nem por aqueles que amamos
Meus irmãos de guerra! Eu vos amo profundamente, fui e sou vosso igual. E sou também vosso melhor
Deveis ser, para mim, aqueles cujos olhos sempre buscam um inimigo – o vosso inimigo. E em alguns
Vosso inimigo deveis procurar, vossa guerra deveis conduzir, por vossos pensamentos! E, se vosso
Deveis amar a paz como meio para novas guerras. E a paz breve, mais que a longa.
Não vos aconselho o trabalho, mas a luta. Não vos aconselho a paz, mas o triunfo. Vosso trabalho seja
Só podemos estar calados e tranquilos quando temos arco e flecha: do contrário, falamos e brigamos.
Dizeis que a boa causa santifica até mesmo a guerra? Eu vos digo: é a boa guerra que santifica toda
causa.
A guerra e a coragem fizeram mais coisas grandes do que o amor ao próximo. Não a vossa compaixão,
Vivei, então, vossa vida de obediência e de guerra! Que importa viver muito tempo? Que guerreiro
Z
aratustra é um amante incondicional da vida. E sua forma de abordar a
preconceito. Pois ele fala contra todos os seus preconceitos, contra todas as suas
religiões, contra todos os valores que, até hoje, você julgava perfeitos.
E, quando alguém fala contra tudo aquilo em que você sempre acreditou, a
sua mente simplesmente para de ouvir; ela fica com medo, se defende, se fecha.
E seu medo é este: de que talvez você esteja errado, de que talvez este homem é
Assim, a primeira coisa que lhe peço é isto: ponha os seus preconceitos de
lado. Isso não significa que você precise concordar com Zaratustra; significa
apenas que, antes de concordar ou não com ele, dê-lhe ao menos uma chance
de expor seu ponto de vista de forma clara para você. A partir daí, você tem
silêncio, com atenção, você ficará surpreso com o fato de que, embora ele fale
mestres, mesmo assim, há uma imensa verdade em tudo aquilo que ele diz. E
toda essa verdade lhe será revelada dentro do seu silêncio, sem a menor
dificuldade.
Uma vez que você o tenha escutado, é quase impossível discordar do que ele
diz, porque aquilo que ele diz é a verdade – mesmo que essa verdade vá contra
crenças da multidão.
desconhecido, que arriscam a própria vida para descobrir o sentido de sua vida,
assim como o da vida de tudo que existe. A multidão quer saber apenas de
coisas que sejam agradáveis aos ouvidos, que sejam confortáveis e acolhedoras;
de coisas que não exijam nenhum esforço de sua parte – pois, assim, ela pode
Por exemplo, a última vez que estive em minha cidade natal foi em 1970.
Assim que cheguei, fiquei sabendo que um de meus antigos professores, com
quem sempre tive uma relação muito afetuosa, estava prestes a morrer. Então, a
Seu filho me recebeu à porta e foi logo dizendo: “Por favor, não o perturbe,
ele está à beira da morte. Nós sabemos que ele tem um grande amor por você,
ele sempre fala de você, mas sabemos também que a sua simples presença pode
lhe tirar toda a paz e o conforto. Por favor, não faça isso com ele agora, no
momento de sua morte”.
Eu disse: “Pois saiba que, se não fosse justamente o momento de sua morte,
eu poderia até atender ao seu pedido – mas eu preciso vê-lo. Mesmo que ele só
mesmo tempo, sentindo um certo receio. Quando soube que você estava
chegando à cidade, fiquei feliz com a possibilidade de poder vê-lo mais uma
antes que você morra, quero jogar fora todas as suas mentiras e falsas
consolações. Caso você consiga morrer inocente, sua morte terá um imenso
valor. Deixe o seu conhecimento de lado, pois ele não passa de algo emprestado
dos outros. Deixe o seu Deus de lado, pois Ele não passa de uma crença, e nada
mais. Abandone de vez qualquer ideia de céu ou de inferno, pois eles são
apenas a projeção do seu medo e da sua ganância. Você passou a vida inteira se
agarrando a essas coisas. Nem que seja só agora, antes de morrer, tenha um
E completei: “Veja bem, um homem à beira da morte não tem nada a perder
– a morte já vai acabar com tudo. Ou seja, é mil vezes melhor que você
abandone seus consolos e mentiras pelas suas próprias mãos, e, assim, possa
clímax da vida”.
“Imagine só”, o velho professor respondeu. “Eu estava com receio da sua
vinda, e agora você me pede justamente aquilo que mais eu temia. Durante
toda a minha vida, eu adorei a Deus, mesmo sabendo que Ele é só uma
hipótese, mesmo sendo algo que nunca experienciei. Eu passei a vida inteira
orando para os céus, mesmo sabendo que nenhuma prece jamais teria resposta,
pois não há ninguém para responder. Mesmo assim, essas coisas serviam como
uma forma de consolo diante dos sofrimentos e das angústias da vida. O que
Eu respondi: “Pois agora você já não tem mais como se sentir desamparado, já
mãos; quem sabe você permaneça só por mais alguns minutos na margem de
Ele, então, fechou os olhos e disse: “Vou tentar, farei o melhor que posso”.
Sua família inteira se reuniu à sua volta; e todos estavam indignados comigo.
Afinal, eles eram brâmanes ortodoxos, da mais alta casta indiana, e não
iminência da morte, isso acaba – você sabe muito bem que barquinhos de
papel não servirão para nada no meio do oceano. Nesse sentido, é melhor saber
logo que você vai precisar nadar, que não tem nenhum barco à sua disposição.
esquecer de nadar. Ou seja, em vez de ajudá-lo a chegar à praia, isso pode ser a
Enfim, todos eles estavam furiosos, mas não podiam falar nada. Foi então
que, com os olhos ainda fechados, o velho homem sorriu, e disse: “É uma pena
que eu nunca tenha lhe dado ouvidos. Estou me sentindo tão leve, tão aliviado.
Já não sinto mais o menor receio; pelo contrário – estou bastante curioso para
Ele morreu logo em seguida, e o sorriso permaneceu em seu rosto. Esse velho
Bastaram aqueles poucos instantes, e a jornada inteira que vai do camelo para
o leão, e do leão para a criança, foi percorrida rapidamente. Sim, pois não se
Escute as palavras dele com muita atenção, pois não se trata de palavras
comuns: são palavras de um homem que conhece a vida a partir de suas raízes
mais profundas, de um homem que não faz concessões, de um homem que não
aceita nenhum tipo de mentira, não importa quanto ela seja confortável ou
consoladora.
Estas palavras são as palavras de uma alma que conhece a liberdade. Elas são
conhecimento, não vêm da cabeça – elas vêm diretamente do âmago de seu ser.
alguém como Zaratustra é muito mais difícil, pois ninguém jamais falou como
ele. E, de fato, ninguém jamais poderia ter falado como ele, porque estavam
e devotos; ele nunca diria algo só para lhe agradar, para atender às expectativas
que a sua própria experiência mostrou ser verdadeiro. Mesmo que ninguém
concorde com ele, mesmo que tenha que seguir sozinho, sem nenhum amigo
Que temos em comum com o botão de rosa, que estremece porque sobre o seu corpo há uma gota de
orvalho?
Alguma vez, logo ao amanhecer, você já viu um botão de rosa com uma gota
Zaratustra quer saber: Que temos em comum com o botão de rosa, que estremece
porque sobre o seu corpo há uma gota de orvalho? Não existe nenhuma intenção
a sociedade atribuem a essa palavra. Mas o botão de rosa está imensamente feliz
E essa dança não vai trazer dinheiro, não vai trazer fama, não fará com que o
botão de rosa se torne respeitável. Ela não precisa dos olhares de ninguém, ela
não está à espera dos aplausos da plateia. Essa dança é valiosa em si mesma –
ela é uma imensa alegria, sem nenhum propósito ou sentido. Não é uma
mercadoria.
É justamente isso que temos em comum com o botão de rosa. Nós também
única recompensa. Você não deve se perguntar: “Mas dançar para quê?”. Não
se trata disso. Na realidade, nós nos esquecemos de todos os valores que são
disso: de que os valores não se encontram fora de nós; eles são algo inerente ao
nosso ser.
algum. Então, eu aproveitava esse horário para sair e corria por vários
poder sentir o vento enquanto corro pela noite silenciosa, cheia de estrelas, sem
nenhum tráfego, cercado pelas árvores que repousam nos dois lados da estrada.
seja só por uma vez, um dia desses vou com você”. Então, em pouco tempo, já
comigo: “A partir de hoje, não vou cobrar mais nada pelo que você consumir –
sua comida, seu leite, seu chá, vai ser tudo de graça; tanto para você quanto
para seus convidados. Mas, por favor, pare com essa história que você
Desse jeito, você vai me arruinar: vinte alunos estão comendo uma quantidade
que, antes, era suficiente para duzentos alunos. Não tenho como fornecer tudo
isso; o valor do meu contrato com a universidade não daria para cobrir os
“Mas é preciso fazer alguma coisa, senão eu vou à falência”, ele respondeu.
“Por favor, pense nos meus filhos, na minha esposa, nos meus pais idosos.”
Daí eu disse: “Vamos falar então com o vice-reitor, pois não tenho mais como
manhã, podemos dizer que nunca tivemos uma experiência tão extasiante
como o fato de nossa inteligência ter ficado mais aguçada; todas essas coisas são
secundárias. Não saímos para essa dança com o vento, em plena madrugada e
saudável’”.
providenciar uma verba suficiente para que ele pudesse continuar o seu
“De fato, isso pode ser um grande problema. Se você atrair todos os alunos
para essa história, não só esse comerciante vai falir, como a universidade inteira
“Bom, venha algum dia para saber, pois não tem nenhum objetivo
específico.”
cantina.
tráfego pela estrada, e sem medo algum de ter alguém nos observando – a
resolver tudo. Você não vai ter nenhum prejuízo, fique tranquilo. Agora
entendo por que não dá para impedir as pessoas que tiveram essa experiência
que ele e alguns outros professores passaram a vir, a coisa toda ganhou
prestígio.
Sempre que chovia, eu também costumava sair para caminhar por alguma
chuva.
“Lá vem você criar mais problemas. Daqui a pouco, será a vez do homem que
cuida da lavanderia vir reclamar conosco. De onde você tira esse tipo de ideia?
Estou aqui há mais de dez anos e, como é de costume, todos os anos chove –
mas, até hoje, ninguém tinha resolvido sair por aí para passear na chuva. E
agora você vem espalhar essa ideia de que sair para caminhar na chuva é uma
experiência extasiante.”
“Minha nossa, você é mesmo um grande vendedor! Mas, dessa vez, eu não
vou, pois sei muito bem que você deve estar certo.”
aconteceu?”.
E ele confessou: “Pois é, não pude resistir à tentação; não consegui evitar o
minha vida, eu nunca tinha saído para caminhar sob a chuva, sob as nuvens,
sob os relâmpagos”.
dúvida. Porém, suas ideias realmente fazem sentido. Mas, por favor, não
espalhe mais essa nova moda pela universidade; senão, todos os alunos
De fato, era uma coisa maravilhosa, pois a universidade ficava numa área
inteiramente rodeada por montanhas, por árvores imensas, onde quase não
Nossa vida não tem nenhum propósito ou razão – é isso o que temos em
comum com o botão de rosa. Porém, pessoas como Buda, Mahavira, Jesus ou
Moisés não lhe dirão algo assim. Todos eles vão lhe apresentar inúmeras razões,
É
É verdade: amamos a vida não por estarmos habituados à vida, mas ao amor.
Preste atenção, não se trata de uma questão de hábito. Isso é algo que merece
ser enfatizado: amamos a vida não por estarmos habituados à vida . Você não
tem como dizer algo do tipo: “Já faz setenta anos que estou vivo; é tanto
continuo a viver por causa disso, porque é muito difícil abandonar um hábito
antigo”.
Não, a vida não é uma questão de hábito. Amamos a vida... não por estarmos
Sem a vida, não haveria o amor. A vida é uma oportunidade: ela é o solo fértil
onde florescem as rosas do amor. E o amor é algo valioso em si mesmo. Ele não
tem nenhum propósito ou sentido; o que ele tem é uma importância enorme,
uma imensa alegria, um êxtase que é só dele – mas nada disso representa um
E a que se deve essa loucura? Ela se deve ao fato de ser impossível você
explicar objetivamente por que está amando. Você não consegue dar nenhuma
explicação razoável para o seu amor. Por exemplo, você pode dizer que trabalha
dinheiro porque precisa de uma casa; e, claro, que precisa de uma casa porque
Em relação à vida cotidiana, tudo tem alguma finalidade, tudo tem alguma
coisa que você pode dizer é isto: “Não sei explicar. Tudo que sei é que amar
significa experienciar o mais belo espaço dentro de nós mesmos”. Ou seja, não
se trata de um propósito, de algo objetivo. Esse espaço não é uma coisa que
possa ser vendida; não se pode transformá-lo numa mercadoria. Esse espaço é
como um botão de rosa, que estremece porque sobre o seu corpo há uma gota
Nesse sentido, todo aquele que não conhece, de fato, o que é o amor no
É
cultivar as rosas de seu próprio ser. É por isso que, para a mente mundana,
Há sempre alguma loucura no amor. Mas também há sempre alguma razão na loucura.
Essa afirmação é tão bonita, tão notável! Sim, para aqueles que nunca o
experienciaram, o amor parece ser apenas uma loucura. Mas, para aqueles que
homem pode ser rico, saudável, famoso, mas não pode ser são – pois, nesse
caso, não conhece nada que tenha valor real. A verdadeira sanidade não é senão
um grande insight ao dizer: “Mas há sempre alguma razão nessa loucura que
Quem ama não precisa de tratamento psiquiátrico. O amor tem o seu próprio
amor, esta, sim, tem um método próprio. E que método é esse? O amor nos
torna mais alegres, preenche nosso ser de graciosidade, transforma nossa vida
numa canção.
Você já reparou como uma pessoa fica quando está apaixonada? Ela não
precisa dizer nada. Podemos ver claramente como seus olhos ganham uma nova
novos, como o seu próprio jeito de andar se torna mais gracioso. Ela é a mesma
em sua vida – a primavera despontou em seu ser, as flores de sua alma enfim
desabrocharam.
O homem que não sabe amar também não pode ser inteligente; assim como
não pode ser belo, nem gracioso. Sua vida será simplesmente uma tragédia.
E também a mim, que sou bem-disposto com a vida, parece-me que borboletas e bolhas de sabão, e o
que há de sua espécie entre os homens, são quem mais entende de felicidade.
podem bater bem forte em você, como uma martelada. Pois, ao longo dos
séculos, todos os religiosos têm lhe dito apenas isto: “Sua vida é totalmente
fútil, ela não passa de uma bolha de sabão. Hoje está aqui, amanhã já se foi. A
vida neste mundo, neste corpo, é algo passageiro, e por isso não vale nada. A
única utilidade dessa vida é que você pode renunciar a ela. Daí, sim, ao
É uma ideologia bizarra! Mesmo assim, há séculos é ela que vem dominando
é considerado uma ilusão. E por que ele seria uma ilusão? Simplesmente
porque está em constante mudança. A ideia é esta: tudo aquilo que muda é
inútil, não presta para nada; só aquilo que é permanente, que se mantém
sempre o mesmo, tem valor. Acontece que você não consegue encontrar uma
Com o predomínio desse tipo de ideologia, é natural que pessoas como Adi
***
Shankara tenham sido as que mais influenciaram o pensamento indiano – a
maioria dos monges que você encontra hoje na Índia, por exemplo, são
que, por ser impermanente, o mundo seria uma ilusão: “Busque o permanente
permanência não passa meramente de uma ideia, porque não há nada que seja
mudança possa ocupar o lugar de Deus, pois é impossível encontrar outra coisa
Zaratustra, de fato, é muito singular. Sua percepção é pura, cristalina. Ele diz:
Por exemplo, imagine que nos reunimos para uma palestra. Ao chegar ao
espaço da palestra, você é uma pessoa; quando vai embora, você já não é mais o
mesmo. Você só aparenta ser a mesma pessoa. Durante essas duas horas de
palestra, tanta coisa pode ter se transformado em você. Assim como acontece
com o rio Ganges, que, nessas mesmas duas horas, percorre quilômetros e mais
o mesmo rio, suas águas já não são as mesmas de duas horas atrás.
Heráclito certamente concordaria com Zaratustra. Ele é o único filósofo
ocidental que chegou a afirmar que a vida é um fluxo contínuo, como um rio.
E lembre-se disto: você não consegue entrar duas vezes no mesmo rio, pois, ao
E também a mim, que sou bem-disposto com a vida, parece-me que borboletas e
bolhas de sabão, e o que há de sua espécie entre os homens, são quem mais entende
de felicidade. Sim, as pessoas que mais entendem de felicidade são aquelas que
diminutas bolhas de sabão que brilham ao sol criando pequenos arco-íris. Essas
basta olhar para o rosto deles. É como se a vida tivesse desaparecido dali;
Por que o prazer é condenado? Porque ele muda o tempo todo. E por que o
amor é condenado? Ora, porque ele está sempre se transformando. A razão pela
razão pela qual todas as religiões mais antigas são contra o divórcio, pois o
A coisa já chegou a tal ponto que, durante milhares de anos, até crianças
pelos pais antes mesmo de nascer, quando ainda estavam no útero de suas
Na Índia, ainda hoje, crianças de apenas sete ou oito anos são colocadas em
casamento pelos pais, mesmo sendo contra a lei. Acontece que, embora seja
contra a lei, não é contra a convenção social. Agora, por que tanta pressa para
casar duas crianças que nem sabem ainda o que significa o casamento? O
motivo é apenas um: o casamento precisa acontecer antes que elas se tornem
nada, pois ambos já estão casados – ele já tem uma esposa, e ela já tem um
qualquer outra coisa, pois ele destrói a única possibilidade real de felicidade,
que é o despertar do amor. O coração das pessoas nunca dança; elas nascem e
morrem sem jamais ter conhecido o amor. Agora, preste atenção: o nascimento
não está em suas mãos; assim como a morte – você não tem controle algum
sobre essas duas coisas. O amor era a sua única liberdade – e isso a sociedade
tirou de você.
Quanto ao seu nascimento, você não tem controle algum – ninguém lhe
relação à morte – ela não se aproxima e pergunta: “E aí, você está pronto?
Venho buscá-lo amanhã”. Não existe aviso prévio; de repente, ela chega, e você
está morto.
Só o amor, e apenas ele, representa a liberdade que se ergue entre esses dois
custo, de modo que toda a sua vida se transforme apenas numa rotina inerte e
mecanizada.
Ver esvoejar essas alminhas ligeiras, tolas, encantadoras e volúveis leva Zaratustra às lágrimas e ao
canto.
O que ele nos diz é isto: que ver bolhas de sabão, borboletas e flores
dançando ao vento, ver esvoejar todas essas coisas que têm tanta leveza, sem
lágrimas são de alegria, por ver que a vida é algo tão vivo que, em hipótese
Quanto mais viva for uma coisa, mais impermanente ela é. E toda essa
impermanência, toda essa constante transformação à sua volta faz com que
outra prova ou evidência. Tudo que ele precisa saber é isto: o seu deus sabe
dançar? O seu deus sabe amar? O seu deus sabe cantar? Ele sabe correr atrás de
chegar às lágrimas e ao canto? Se este for o caso, então Zaratustra estará pronto
para aceitar esse deus, porque um deus assim será uma representação legítima
da vida, tal deus não será nada mais do que a própria vida.
Sim, Zaratustra é para almas fortes. Ele não é para os fracos e impotentes.
Para ele, coisas como alguém ser manso, humilde e servil estão longe de ser
qualidade é isto: é você ser forte, ter orgulho de si mesmo, ter dignidade, ter
do camelo; ele é rigorosamente contra todos aqueles que estão sempre prontos
Não queremos ser poupados por nossos melhores inimigos, nem por aqueles que amamos
Meus irmãos de guerra! Eu vos amo profundamente, fui e sou vosso igual. E sou também vosso melhor
Deveis ser, para mim, aqueles cujos olhos sempre buscam um inimigo – o vosso inimigo.
escolher um inimigo, aí, então, devemos ser bastante cuidadosos. Seu inimigo
tem que ser alguém com as melhores qualidades possíveis, pois é contra ele que
você vai lutar. E, sempre que você luta contra alguém, aos poucos vai se
****
tornando exatamente como essa pessoa .
Ou seja, nunca escolha o inimigo errado. Caso contrário, mesmo que você
vença, terá sido derrotado – porque será preciso que tenha aprendido as
impossível vencê-lo.
Escolha um inimigo que seja sábio, pois, assim, você terá que ser sábio para
lutar contra ele. Escolha um inimigo que seja inteligente, porque, para vencê-
lo, você terá que ser inteligente. Escolha o seu inimigo lembrando-se
perfeitamente bem de que, ao lutar contra ele, você vai ser tornar exatamente
como ele. O fato de você vencer ou ser derrotado é algo secundário – sua
Pois, sem um inimigo, você não tem um desafio. Sei que, a princípio, isso
sempre lhe disseram: “Não tenha inimigos”. Porém, isso só irá impedi-lo de
enfrentar todos os desafios que o farão crescer, que o tornarão uma pessoa mais
Zaratustra não é contra a guerra; esse é um ponto em que ele diverge, por
Mahavira.
covardes que, hoje, não são capazes nem de pensar retrospectivamente sobre o
afundar. Mas, se você escutar Zaratustra, pode entender muito bem a causa
disso. O fato é que tanto Buda quanto Mahavira disseminaram pela Índia a
pessoas estavam prontas para ela não por terem compreendido Buda ou
Mahavira, mas, sim, porque a paz era uma boa forma de consolo para a sua
própria covardia. Sim, “paz” é uma belíssima palavra para você encobrir a sua
fraqueza e impotência.
nem como forma de defesa, foi esta: a Índia foi invadida e conquistada por
mas de vários países. Quem quer que desejasse conquistá-la era bem-vindo.
Um país tão vasto e pujante permanecer escravizado por tanto tempo é algo
para descrever os camelos. Eles se curvavam e, ajoelhados, pediam para ser bem
carregados – mais que isso: eles ainda se alegravam por poder carregar o fardo
mais pesado. Ou seja, o camelo que levava a carga mais pesada tornou-se o
grande herói, e a Índia tornou-se fraca e medíocre; ela perdeu sua coragem.
Agora, preste atenção, pois Zaratustra tem que ser compreendido muito
profundamente: ele não está dizendo que você deva ser violento, que você deva
matar, que deva sair por aí destruindo tudo. Se você entendesse assim,
Adolf Hitler. Esse tipo de interpretação equivocada foi uma das causas da
O que Zaratustra diz é isto: você não precisa ser violento, nem destrutivo;
mas precisa estar sempre pronto – se você realmente quer a paz, precisa estar
Ele não fala para você sair por aí matando todos que encontrar. O que ele diz
é isto: se porventura acontecer o pior, é preciso que o inimigo não seja capaz de
Meus irmãos de guerra! Eu vos amo profundamente, fui e sou vosso igual. Se
alguém realmente quer ser uma pessoa não violenta, então precisa ser um
arte de manejar o arco – não para matar ninguém; mas, sim, para proteger sua
No entanto, até hoje a Índia não entendeu isso. Ninguém consegue ver que
foi a nossa ideologia de não violência que nos tornou fracos, indefesos,
vulneráveis; foi ela que roubou toda a nossa força e vigor para lutar contra
E sou também vosso melhor inimigo. Essa frase esclarece tudo que estou
dizendo. Veja bem, por um lado, Zaratustra afirma: Meus irmãos de guerra! Eu
vos amo profundamente, fui e sou vosso igual . Ou seja, eu sou um guerreiro – e,
ainda assim, lhe digo: E sou também vosso melhor inimigo . Por quê? Porque não
precisa ser um guerreiro não violento; só assim será capaz de proteger sua
Deveis ser, para mim, aqueles cujos olhos sempre buscam um inimigo – o vosso inimigo.
contaminada por uma boa dose de ódio – e isso se deve à sua própria fraqueza.
Pois é preciso que você seja um guerreiro, sim, mas sem nenhum ódio. Você
você não luta por ódio, mas por pura alegria. Simplesmente porque um desafio
Vosso inimigo deveis procurar, vossa guerra deveis conduzir, por vossos pensamentos!
E não se trata apenas do tipo de guerra comum, que se luta com armas; você
preconceitos, desafiando todo tipo de opiniões que, a meu ver, não passam de
guerreiros no mundo; ninguém aceita o meu desafio. Pelo contrário, o que eles
fazem é fechar as portas de seu país, é não me deixar entrar – são todos uns
covardes.
sem apoio nenhum. Enquanto isso, esses covardes têm o país inteiro na sua
e mais séculos. Mas eles são tão covardes que, em vez de aceitar o meu desafio,
vertentes costumavam viajar pelo país, desafiando qualquer pessoa que tivesse
uma opinião contrária à deles para um debate público. E esses debates não
tinham o menor traço de ódio, pelo contrário; as pessoas tinham uma enorme
objetivo dos debates não era provar algo do tipo: eu estou certo e você está
errado – nada disso. Os debates eram uma busca, em conjunto, para descobrir
o que é a verdade.
Pois a verdade não é minha, e tampouco pode ser sua. Agora, é possível que a
minha opinião esteja um pouco mais próxima da verdade do que a sua; assim
como é possível que a sua opinião é que esteja mais próxima da verdade do que
a minha.
pensadores digladiando entre si, cada um com sua lógica própria e sutil. Todo
guerra que se trava com armas não passa de uma coisa grosseira, animalesca.
Mas a guerra que se trava entre opiniões, filosofias, doutrinas, essa é a guerra
que, se você disser qualquer coisa que vá contra o preconceito de alguém, essa
pessoa imediatamente irá levá-lo à justiça. Ela não virá falar comigo; ela irá
Agora, essas pessoas não fazem a menor ideia de que, diante da corte,
pornográficas. Vou enviar todas essas páginas para o meu advogado, de modo
que não será preciso nem mesmo discutir. Ele só precisa apresentar essas
páginas para a corte e, então, perguntar aos presentes: “Afinal, elas são
pornográficas ou não?”.
Pois, se elas não forem pornográficas, então nada mais pode ser considerado
pornográficas, significa então que a Bíblia Sagrada é o livro menos sagrado que
relação aos puranas hindus – que, embora sejam considerados textos sagrados,
Quanto a mim, não posso dizer que tenha a mesma sorte – os tempos em que
humanidade. Ora, se por acaso eu disser qualquer coisa que ofenda seu
quem está ofendendo a sua fé não sou eu, é a sua Bíblia . O que faço é
somente a sua própria fraqueza. Você deveria ter coragem suficiente para
deveriam ter escrito artigos contra mim, contradizendo o que eu havia dito; só
que elas não têm como fazer isso, pois sabem que a Bíblia tem vários trechos
estaria pronto para debater com elas, dentro de suas próprias igrejas em
Kanpur.
Para mim, isso não seria nenhum problema – bastaria eu abrir a Bíblia
espalhada por toda parte. No entanto, mesmo que seja para dizer algo da mais
profunda verdade, eles precisam ir até o tribunal. Que tipo de camelo é esse?
Eles precisam sempre do suporte da lei, pois não têm nenhum argumento,
nenhuma lógica que os sustente. Uma pessoa só recorre à justiça quando sabe
que, por si mesma, não tem meios de defender suas ideias com inteligência.
Tenho falado por toda parte, minha vida inteira – e nunca fui ouvido.
Enquanto isso, já escreveram toda sorte de coisas contra mim, toda sorte de
verdade. Apesar disso, nunca fui à justiça, nunca processei ninguém – pois eu
mesmo posso responder a esse tipo de gente. Aliás, quando alguém resolve me
processar, daí, sim, é que faço questão de bater ainda mais forte nessa pessoa; e,
Não se preocupe... “se vosso pensamento sucumbir” ... pois a sua própria retidão
Sim, você não deve se tornar pacifista, pois ser pacifista significa ser vítima
daqueles que não acreditam na paz. Você deve amar a paz, mas deve estar
sempre pronto para novas guerras. Nem é preciso que essas guerras aconteçam,
mas você não pode repousar o seu arco nem esquecer as suas flechas. E muito
menos deixar que sua espada acumule poeira. Você precisa estar sempre pronto
estar sempre de prontidão. Esse próprio estado de prontidão já irá conferir uma
Quanto mais longa é a paz, mais a pessoa relaxa, mais ela começa a achar que
não vai haver nenhuma outra guerra. Você deve estar sempre consciente de que
Não vos aconselho o trabalho, mas a luta. Não vos aconselho a paz, mas o triunfo. Vosso trabalho seja
Só podemos estar calados e tranquilos quando temos arco e flecha: do contrário, falamos e brigamos.
impressionantes.
Dizeis que a boa causa santifica até mesmo a guerra? Eu vos digo: é a boa guerra que santifica toda
causa.
Não se pode falar em boas causas quando falamos de coisas como Deus,
Zaratustra é bem claro em relação a isso: não são as boas causas que
pelo contrário – é a boa guerra, aquela que é uma arte em si mesma, que
Por exemplo, sou estritamente contra todas as armas nucleares, contra todos
esses mísseis e bombas atômicas – essas coisas são hediondas; elas não fazem de
combate, eles podem passar horas e mais horas lutando entre si – e nenhum
Isto é algo que já ocorreu inúmeras vezes na história do Japão: dois samurais
igualmente meditativos que, ao lutar entre si com suas espadas, não foram
batalha, pois ambos puderam demostrar toda a sua arte e intuição. E o mesmo
Tanto a espada quanto o arco são artefatos de valor humano, ambos conferem
lançada até por um avião sem piloto. O avião pode ser guiado por controle
remoto: ele voa até alvo escolhido, despeja a bomba, e volta ao aeroporto. Mas
isso não passa da mais pura e estúpida destrutividade. Não se trata de guerra, é
violência pura; é um tipo de suicídio coletivo que deve ser evitado a todo custo.
desenvolvemos; estas, sim, devem ser condenadas. A guerra, em si, é uma arte
como qualquer outra: pintura, música, dança, arquitetura – todas elas são artes,
Se, algum dia, a paz reinar mansamente sobre a Terra – e não houver mais
cristianismo a transformou em algo tão elevado, que até outras religiões, que
nunca tinham pensado nisso, agora a praticam. E elas têm que fazê-lo, pois a
Por exemplo, quantos dos órfãos de Madre Teresa foram reconhecidos como
O fato é que, desde o começo, eles já haviam sido privados de sua dignidade
– eles não passavam dos órfãos de Madre Teresa; sua alma já tinha sido
ser evitado; não há razão para isso existir. Assim como é perfeitamente possível
acabar com a pobreza; não há necessidade alguma de dar esmolas aos pobres.
Mas a lógica é esta: primeiro, você cria os pobres; depois, então, você cria
sem tamanho. Por exemplo, todos os homens mais ricos do mundo têm as suas
humanidade, que promoveram a paz, que criaram grandes obras literárias, que
onde vem todo esse dinheiro? Pois o homem que criou a premiação, e em
nome do qual é dado o Prêmio Nobel, ganhou toda a sua fortuna durante a
Primeira Guerra Mundial – e fazendo o quê? Fabricando armas; ele era o maior
Por meio de suas armas, milhões e milhões de pessoas foram mortas. Então,
depois de acumular uma riqueza imensa desse modo, ele resolveu criar uma
instituição voltada para a caridade – foi criado um fundo no banco com todo
esse dinheiro acumulado e, desde então, o valor que é dado anualmente com o
Prêmio Nobel vem dos juros e rendimentos desse dinheiro inicial. O montante
importantes da história.
ambiente, dilapidam e arrasam o planeta; daí, dessas mesmas pessoas que estão
Contudo, são justamente as pessoas mais pobres que, ainda hoje, têm muitos
filhos; as pessoas ricas não fazem mais filhos. Por quê? Ora, porque elas têm
outras diversões na vida. O homem pobre, não; quando ele volta para casa após
o trabalho, não tem outro lugar para ir, pois onde quer que ele vá – seja a um
Resultado? Ele tem dezenas de filhos. E a Igreja ainda diz que, se alguém
evitar ter filhos, estará cometendo um ato contra Deus. Com isso, a pobreza
crianças à beira das estradas. Por exemplo, todos os órfãos que são recolhidos
Madre Teresa viaja por todo o mundo recolhendo fundos para criar esses
órfãos. Os mesmos órfãos que, no futuro, vão gerar mais e mais filhos... Sim, é
*****
um jogo muito estranho .
degradação do outro.
A guerra e a coragem fizeram mais coisas grandes do que o amor ao próximo. Não a vossa compaixão,
Vivei, então, vossa vida de obediência e de guerra! Que importa viver muito tempo? Que guerreiro
Sim, o objetivo não é termos uma vida longa. Mesmo que sua vida seja breve,
transforme sua vida numa canção, faça dela uma dança. A duração da vida, em
si, não quer dizer nada. O que realmente importa é a intensidade com que se
vive.
procure entender o que ele está dizendo. Pois, uma vez que você tenha
compreendido, de fato, o que ele quer dizer, verá que Zaratustra não é a favor
guerreiro; que ele não se torne um covarde; que ele não seja incapaz de
respeito a uma batalha que se trava com armas ou que se trava entre opiniões.
O homem precisa estar sempre pronto; ele deve estar sempre com a sua espada
e a sua inteligência afiadas – só assim é possível haver paz. É preciso que todas
as pessoas sejam inteligentes, que tenham maestria na arte de viver, que estejam
conhecerá uma paz que não é a paz dos cemitérios. Será a paz de um lindo
Seu objetivo deve ser a vida, e não a morte. Sim, uma vida que seja
enriquecida pelo amor; uma vida que esteja pronta para qualquer emergência;
uma vida que você possa viver perigosamente, sem ter medo nenhum .
deixe que ele penetre nos recantos mais profundos de seu ser. Daí, então, pode
deixar entrar os seus próprios preconceitos – e você verá como eles são
Zaratustra pode até estar sozinho, mas a verdade está com ele. Você pode estar
com o mundo inteiro ao seu lado, mas a verdade não está com você.
* O próprio Nietzsche diz algo parecido num dos momentos cruciais de Assim falou Zaratustra, em
que, após toda uma série de acontecimentos, este passa por sua grande e derradeira transformação:
“Chegou o sinal, falou Zaratustra, e seu coração se transformou. [...] Tudo isso durou muito tempo,
ou pouco tempo: pois, a bem dizer, não existe tempo para essas coisas”. (N. do T.)
** Típico da culinária indiana, o chapati é um pão que não leva fermento e é assado na chapa. (N. do
T.)
*** Filósofo e mestre espiritual indiano que viveu por volta do séc. VIII, Adi Shankara é considerado
o maior expoente do Advaita Vedanta, uma das principais escolas dentro do hinduísmo. (N. do T.)
**** Em outra de suas obras seminais, o livro Além do bem e do mal, Nietzsche traz uma ideia
similar: “Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E, se
você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você”. (N. do T.)
***** Invocando um pouco mais de Zaratustra, Nietzsche traz uma reflexão primorosa acerca da
consciência que se deve ter em relação à geração de filhos, quando Zaratustra diz: “Eu tenho uma
pergunta somente para ti, irmão: como um prumo eu a lanço em tua alma, para saber quão
profunda ela é. És jovem e desejas matrimônio e filhos. Mas eu te pergunto: és alguém que pode
desejar um filho? És o vitorioso, o vencedor de si próprio, o soberano dos sentidos, o senhor de
tuas virtudes? Assim te pergunto eu. Ou em teu desejo fala o animal e a necessidade? […] Quero
que tua vitória e tua liberdade anseiem por um filho. Deves construir monumentos vivos à tua
vitória e à tua libertação. Deves construir para além de ti. Mas primeiro tens de construir a ti
mesmo, quadrado de alma e de corpo. Não deves apenas te propagar, mas te elevar na
descendência! Um corpo mais elevado deves criar, um primeiro movimento, uma roda que gire por
si mesma – um criador deves tu criar”. (N. do T.)
Capítulo 5
A infinita capacidade
de desfrutar
Dos compassivos
Desde que existem homens, o homem se alegrou muito pouco: apenas isso, meus irmãos, é nosso
pecado original!
Se aprendemos a nos alegrar melhor, melhor desaprendemos de causar dor nos outros e planejar dores.
Por isso lavo a minha mão que ajudou um sofredor, por isso limpo também a minha alma.
Tendo visto o sofredor sofrer, envergonhei-me por sua vergonha; ao ajudá-lo, ofendi gravemente seu
orgulho. [...]
“Sede esquivos no aceitar! Que seja uma distinção a vossa aceitação!” – assim aconselho aos que nada
Eu, porém, sou um presenteador: de bom grado presenteio como um amigo aos amigos. Mas que os
desconhecidos e pobres colham eles mesmos os frutos de minha árvore: isso envergonha menos. [...]
E não com aquele que nos é antipático somos mais injustos, mas sim com aquele que nada tem
conosco.
Se tens um amigo que sofre, sê um local de repouso para seu sofrimento, mas como um leito duro, um
E, se um amigo te fizer mal, dize-lhe: “Perdoo-te o que me fizeste; mas que o tenhas feito a ti – como
poderia eu perdoá-lo?”.
Assim fala todo grande amor: ele supera até o perdão e a compaixão. [...]
Ah, onde foram feitas maiores tolices, no mundo, do que entre os compassivos? E o que produziu mais
Ai de todos os que amam e que não atingiram uma altura acima de sua compaixão!
Assim me falou certa vez o Demônio: “Também Deus tem seu inferno: é seu amor aos homens”. [...]
Desse modo, estai prevenidos contra a compaixão: dali ainda virá uma pesada nuvem para os homens!
Mas notai também estas palavras: todo grande amor ainda se acha acima de sua compaixão: pois ele
“Ofereço-me eu próprio a meu amor, e ofereço o meu próximo como eu ” – eis o que dizem todos os
criadores.
*
Mas todos os criadores são duros. –
P
raticamente todas as religiões abordam a questão do pecado original,
sendo que cada uma delas tem uma ideia diferente sobre ele. Mas a versão
Embora seja uma mentira completa, a versão cristã é até bonita. De acordo
com ela, no princípio de tudo, Deus lançou a proibição de que o homem não
poderia comer das árvores do conhecimento e da vida eterna. Bom, mas só essa
ideia já soa absurda. Por um lado, Deus é apresentado como o grande criador,
o pai supremo; mas, por outro, esse mesmo Deus proíbe seus filhos de serem
muito significativo. Ele diz a Eva que, se ela e Adão não comerem o fruto da
que o temor de Deus vem daí, de que eles comam dessa árvore proibida, pois,
com isso, poderão se tornar deuses. No fundo, Deus estaria com ciúme de seus
próprios filhos; com ciúme e com medo. Ele não quer que eles transcendam a
dependentes – e, tudo isso, enquanto eles têm todo o potencial de ser iguais a
Deus.
Esse argumento do diabo é tão perspicaz que, no fundo, fica parecendo que é
o próprio Deus cristão que não está agindo de acordo com o que é esperado de
um deus. Pelo contrário; o diabo é que estaria agindo de uma forma divina.
sânscrito que quer dizer “divino” – ou seja, as palavras “diabo” e “divino” têm a
Bom, mas o caso é que Adão e Eva se rebelaram. E, assim que Deus percebeu
expulsou do Jardim do Éden, com receio de que, agora, eles pudessem comer
os deuses.
toda a história da humanidade não passa de uma contínua busca por adquirir
Todas as religiões tentam inculcar no homem a ideia de que ele não deve se
homem perde a sua própria alma; ele despenca do nível humano de vida para
Zaratustra lança uma luz totalmente nova sobre a questão do pecado original;
e, dentre todos os místicos do mundo, é o que parece ter a visão mais relevante
sobre o tema. O que ele diz é algo tão puro, tão claro, tão inegavelmente
Ele diz:
Desde que existem homens, o homem se alegrou muito pouco: apenas isso, meus irmãos, é nosso
pecado original!
Sim, pois a verdade é esta: você tem uma capacidade infinita de desfrutar toda
religiões lhe dizem o contrário: que você deve renunciar aos prazeres e às
o mínimo que for possível da vida – aliás, não viva; apenas sobreviva. E foi isso
que se tornou a norma de conduta dos santos, algo que eles chamam de
milhões e milhões de pessoas que nem sequer ouviram falar o seu nome.
Mesmo tendo sido ele que, mais do que ninguém, trouxe os insights mais
Você consegue perceber a originalidade dele? Pois ele diz que o nosso único
homem não vive de forma intensa, louca, total. Ele não vive com todo o seu
Agora, caso resolva desfrutar a vida, prepare-se, pois você vai ser lançado nos
pouquinho, sempre houve muito medo envolvido; foi sempre algo vivido pela
dos prazeres e alegrias, isso é um fato; mas elas obtiveram uma taxa de 99% de
envenenaram. As pessoas até conseguiam desfrutar esse pouco que lhes restava,
mas sabiam muito bem que estavam cometendo um pecado e, com isso,
E por que Zaratustra considera ser este o nosso pecado original? Porque um
homem que se alegrou muito pouco, que não desfrutou a vida ao máximo, em
sua totalidade, nunca saberá, de fato, o que é a vida; ele nunca saberá o que é a
própria natureza mais íntima clama por alegria, júbilo e prazer, mas a sua
quer que você siga em determinada direção, suas religiões exigem que você vá
menos que você conheça a vida em toda a sua amplitude – que os prazeres se
Se aprendemos a nos alegrar melhor, melhor desaprendemos de causar dor nos outros e planejar dores.
novas. Por exemplo, Buda diz assim: “Não faça mal aos outros. Não machuque
a nos alegrar melhor, melhor desaprendemos de causar dor nos outros e planejar
dores .
Da minha parte, posso afirmar com toda a autoridade que, se você é uma
pessoa alegre, que vive em bem-aventurança, será incapaz de fazer mal aos
outros. Uma vez que tenha conhecido a eternidade da existência, que tenha
pois sabe que não existe mais ninguém além de você. Nós não somos ilhas
Zaratustra não o proíbe de causar dor nos outros, ele não faz disso um
pecado. O que ele está dizendo é apenas isto: aprenda a se alegrar melhor,
desfrute a vida ao máximo, e, com isso, você não vai mais ferir ninguém –
um “tu” separados desaparece. Não existe mais essa coisa de “outros” – trata-se
animais, nos seres humanos, nas estrelas – todos os seres que existem são
aventurança. É por isso que Zaratustra diz: O homem se alegrou muito pouco:
apenas isso, meus irmãos, é nosso pecado original! E um homem que se alegrou
consegue tolerar que ninguém mais esteja feliz. Isso dói. O tempo todo ele se
pergunta: por que é que eu sofro tanto, por que sou tão infeliz e os outros não?
constante perigo.
As outras pessoas vão querer destruí-lo. Pois você não é como elas, não
estranho; talvez seja até louco. Afinal, enquanto toda a humanidade sofre
tanto, como você ainda consegue sorrir? Como ainda é capaz de dançar, de
cantar?
Outro dia desses, a minha secretária, Neelam, trouxe vários artigos que
haviam escrito sobre mim: alguns eram contra, outros a favor, e alguns eram
neutros. Todos os dias ela me traz esses artigos. Na verdade, eu nem chego a lê-
apenas a primeira linha. Como ela sabe que tenho noção do tipo de coisa que
costumam escrever as mentiras mais absurdas sobre mim, coisas sem o menor
pingo de verdade. Então, ela apenas disse: “Isto é repugnante, é pura maldade”
mentiras descaradas”.
Veja bem, no começo do artigo, esse homem diz o seguinte: que sou o
texto, seja ele quem for, certamente ficaria chocado por saber que, na verdade,
não faço a menor questão de ser respeitado por ovelhas e carneirinhos, por
querer o seu respeito; para mim, já basta ter o seu desrespeito. Os homens que
Minha vida inteira tem se baseado numa verdade fundamental, em algo que só
pode ser chamado de uma única coisa: desaprender. Todo o meu esforço tem
sido este: desaprender tudo aquilo que a sociedade, por meio de suas escolas,
Nesse sentido, o mais adequado seria dizer que sou o homem mais inculto do
mundo. E, sim, odiaria ser respeitado pela humanidade atual – ela basicamente
isso.
compreendido, sem ser amado e respeitado. Quem sabe, ainda está para nascer
o homem que, de fato, será capaz de amar alguém como Zaratustra. Pois a
E a razão pela qual essas qualidades estão ausentes é esta: os seres humanos
ainda não se permitiram viver o seu próprio potencial ao máximo. Eles não se
permitiram fluir com a corrente. Deram ouvidos apenas às pessoas erradas, que
só as ensinam a nadar contra a corrente, o que faz com que eles sempre se
No exato momento em que uma pessoa fracassa em atingir a sua meta, ela
mundo foi ensinado a ter esse tipo de metas e objetivos – que são sempre
manhãs, ele fica esperando ansiosamente pelo jornal, só para saber quantos
quantas se suicidaram. Afinal, uma boa notícia nunca é notícia; somente aquilo
que for ruim, nefasto e repugnante pode virar notícia. Todas as coisas simples e
naturais da vida, não importa quão bonitas elas sejam, não merecem virar
notícia.
Agora, quando você é uma pessoa alegre, feliz, realizada, acontece o contrário:
você deseja que todas as outras pessoas sejam felizes também, pois a sua própria
juramento solene que você tenha proferido em algum templo, de acordo com
fazer mal a ninguém é apenas isto: uma consequência natural da sua própria
felicidade, da sua própria realização. Quando você sabe que o deleite da própria
vida é alegrar-se consigo mesma, como poderia destruir qualquer outra forma
de vida? Da mesma forma que você desfruta a existência, todos os outros seres
querem desfrutar.
plenitude, isso só faz enriquecer ainda mais o seu próprio êxtase, só faz com
que ele seja ainda mais extraordinário. A recompensa está aqui, agora. Ferir os
outros se torna algo impossível, sim, porque isso significa destruir a sua própria
alegria. Assim como o fato de ajudar os outros a serem felizes, no fundo, não é
um serviço que você presta a eles; é um serviço que presta a si mesmo, pois a
alegria deles vai aumentar ainda mais a sua própria alegria. Quanto mais
celebração. E, num ambiente como esse, você pode dançar mais facilmente,
pode cantar mais facilmente, pode amar e viver mais livremente – esta é uma
Por isso lavo a minha mão que ajudou um sofredor, por isso limpo também a minha alma.
Tendo visto o sofredor sofrer, envergonhei-me por sua vergonha; ao ajudá-lo, ofendi gravemente seu
orgulho. [...]
Zaratustra é sempre original no seu modo de ver as coisas. Uma mesma coisa
já pode ter sido observada por milhões de pessoas, mas ele consegue vê-la por
um ângulo absolutamente inédito. Ele diz: “Sempre que ajudo alguém que está
sofrendo, sei que ofendo o seu orgulho, e que ele se envergonha por sofrer.
Então, por conta de sua vergonha, também me sinto envergonhado – por tê-lo
Em vez de esperar ser recompensado com todos os prazeres celestiais por ter
acumulando crédito por cada ação virtuosa –, ele afirma: “Lavo a minha mão,
pois ofendi o orgulho de alguém. Eu o vi sofrer, vi sua nudez, pude ver todas as
feridas que ele ocultava. E eu o ajudei – mas que ajuda é essa? Seu orgulho foi
gravemente ferido. Por isso, tenho que lavar minhas mãos; preciso fazer alguma
coisa para que ele não se sinta envergonhado, para que não pense que seu
orgulho foi ferido. Pelo contrário; é preciso que ele sinta que sou eu quem está
lhe devendo algo, pois ele me deu a oportunidade de ajudar um irmão. Não é
ele que está em dívida comigo; eu é que estou em dívida com ele”.
coisa de alguém – “Que seja uma distinção a vossa aceitação!” Pode ser algo
um simples “bom dia”, não importa – seja o que for, aceite-o com todo o amor,
com toda a graça e delicadeza. Aquela pessoa o honrou. Deixe claro para ela
motivo de que ninguém as aceita. Todos lhes perguntam: “Você tem algum
valor? Será que tem merecimento?”. Ninguém as aceita como elas são. Mas a
grande questão é esta: uma pessoa só pode ser aquilo que ela é. Ela não tem
culpa se a existência precise que ela seja tal como é; certamente essa pessoa está
cumprindo uma função da qual você não faz a menor ideia. A vida é repleta de
mistérios dos quais você não tem a mínima noção – e, se a própria vida aceita
Entretanto, no planeta inteiro, as pessoas sofrem por achar que não têm nada
para oferecer, por sentir que ninguém as aceita como elas são, por todos sempre
exigirem que elas sejam diferentes – se forem diferentes, daí, sim, serão aceitas.
Mas a verdade é que ninguém pode ser diferente daquilo que é. No próprio
perde a sua graça natural, perde o seu rumo, desvia-se de seu destino mais
“Sede esquivos no aceitar! Que seja uma distinção a vossa aceitação!” – assim aconselho aos que nada
Eu, porém, sou um presenteador: de bom grado presenteio, como um amigo aos amigos. Mas que os
desconhecidos e pobres colham eles mesmos os frutos de minha árvore: isso envergonha menos. [...]
presenteio meus amigos, porque isso não ofenderá o seu orgulho. Eles se
rejubilarão comigo. Pois recebi de bom grado o que eles tinham para me
minha árvore: isso envergonha menos. Com isso, seu orgulho não será ferido, e
E não com aquele que nos é antipático somos mais injustos, mas sim com aquele que nada tem
conosco.
Você pode amar alguém, você pode odiar alguém – mas não seja neutro, não
seja indiferente. Você pode gostar ou não gostar; em ambos os casos, você toma
uma posição. Mas nunca diga: “Isso não me importa”. Pois, no momento em
que assume uma postura neutra, é como se dissesse que, para você, tanto faz
Este é o maior mal que você pode causar a alguém. O próprio ódio não
magoa tanto. Nesse caso, ao menos você odeia, ainda existe algum tipo de
Nesse sentido, olhe para si mesmo: até que ponto você é uma pessoa
indiferente? Quantas pessoas você ama, quantas você odeia? De quantas você
gosta, quantas lhe causam aversão? O número certamente será pequeno. Agora,
sua vida, impassível. Afinal, a Etiópia fica muito longe, é quase outro planeta;
Mas, veja bem, não é uma questão de cuidado. É uma questão de expansão da
mar. E por quê? Porque elas têm uma quantidade enorme de alimentos
Certa vez, o volume de alimentos desperdiçados foi tão grande, que só o custo
pergunto: será que o ser humano realmente tem um coração, ou isso não passa
de mera ficção?
E o mesmo tipo de coisa acontece nos Estados Unidos. A cada seis meses,
tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, bilhões de dólares são gastos
apenas para destruir toneladas e mais toneladas de comida – enquanto isso, nos
cerca de três meses sem comida, só então ele vai morrer. Mas esses três meses
serão um verdadeiro inferno; na verdade, será como se ele tivesse passado três
mesma categoria que ele; todos eles também querem viver, todos querem ser
felizes. E, se eu puder ajudar de alguma forma nesse sentido, não é por causa
deles, não se trata de um serviço – eu ajudo apenas pela alegria de ajudar, pelo
Se tens um amigo que sofre, sê um local de repouso para seu sofrimento, mas como um leito duro, um
E, se um amigo te fizer mal, dize-lhe: “Perdoo-te o que me fizeste; mas que o tenhas feito a ti – como
poderia eu perdoá-lo?”.
Sim, pois o que é que eu poderia fazer? O mal que você me fez, no fundo, é o
mesmo mal que fez a si mesmo. Posso até perdoá-lo pelo que fez comigo, mas
o que eu poderia fazer em relação ao mal que você fez contra si mesmo? Você
quer que seja, ao mesmo tempo estará agindo de forma igualmente repulsiva
consigo mesmo.
mesmo.
Assim fala todo grande amor: ele supera até o perdão e a compaixão. [...]
Sempre que você diz “Eu sinto pena”, isso não é amor; porque, ao mostrar sua
piedade para alguém, você faz com que essa pessoa se sinta inferiorizada. E o
amor nunca faz ninguém se sentir inferior; pelo contrário – o amor só confere
horríveis... nenhuma delas é uma palavra de amor – elas são apenas expressões
Ah, onde foram feitas maiores tolices, no mundo, do que entre os compassivos? E o que produziu mais
Talvez você nunca tenha pensado nisso, que a compaixão também pode
causar sofrimento. Mas é isso que ela tem feito no mundo. Por exemplo, ao
muçulmano será salvo no dia do juízo final. Mesmo que, para isso, seja preciso
você não quiser se converter, então é melhor que seja morto logo de uma vez;
percorrem o mundo inteiro pregando que, se você não for cristão, nunca
poderá se salvar. Existe apenas um salvador, Jesus Cristo. E todos que não
seguem Jesus devem ser trazidos de algum modo para o rebanho. No passado, a
mas a ideia básica permanece a mesma. Antigamente, eles vinham com a Bíblia
em uma mão, e uma espada na outra – agora, na mão direita trazem a Bíblia ,
se eles terão que se converter, se terão que se tornar cristãos – eles não
conhecem nada sobre religião; durante a vida inteira, eles conheceram apenas
uma coisa: a fome. E, nesse caso, uma fatia de pão realmente parece ser uma
bela forma de redenção. Entretanto, ao distribuir pão aos pobres, o que você
faz é comprar as suas almas. Mas, para você, tanto faz. Pois a ideia é esta:
quanto mais pessoas você converter, mais virtudes acumulará. Você não está
preocupado com a salvação deles; a única coisa que lhe importa é salvar a
própria pele.
é apenas isto: uma grande alegria. Se você puder partilhar o pão com um
possui com todos aqueles que precisam e, ainda assim, permanecer digno e
Ai de todos os que amam e que não atingiram uma altura acima de sua compaixão!
Assim me falou certa vez o Demônio: “Também Deus tem seu inferno: é seu amor aos homens”. [...]
Essa declaração de Zaratustra é bem inusitada. Ele fala pela boca do
Demônio, já que ele mesmo não pode dizê-lo diretamente – afinal, ele não
poderia falar algo assim, pois já declarou que Deus está morto. E, se Deus está
morto, o diabo também não pode sobreviver; ambos são meras ficções,
complementares entre si; um não existe sem o outro. No entanto, apenas para
que sua afirmação fique ainda mais contundente, ele usa a metáfora do diabo –
Assim me falou certa vez o Demônio: “Também Deus tem seu inferno: é seu amor
aos homens” .
Isso me faz lembrar de Jean-Paul Sartre, que foi um dos mais importantes
conclusão a que Sartre chegou após viver uma vida longa, cheia de casos
chegou à conclusão de que, não importa quem eles sejam, os outros são o
inferno. Pois o outro tem suas próprias preferências e aversões, seus próprios
harmonia consigo mesmo, como pode estar em harmonia com quem quer que
seja?
parques, nas festas – e só de vez em quando. Porque, assim, tudo vai estar
Agora, basta que decidam viver juntos e esse mar de rosas acaba, pois é muito
difícil sustentar essa falsidade 24 horas por dia. A convivência se torna pesada,
e, pouco a pouco, as máscaras vão caindo; você não consegue mantê-las por 24
horas seguidas. Assim como não consegue continuar repetindo aquela lenga-
Logo, então, você percebe que já não tem mais nada sobre o que falar. O seu
Í
pequeno vilarejo isolado na Índia, nunca havia assistido a um filme. Eis então
que, certo dia, uma companhia de cinema itinerante chegou pela primeira vez
foi logo assistir à matinê inaugural. Só que, quando o filme acabou, todas as
pessoas saíram da sala, menos ele, que continuou sentado em seu lugar. O
gerente então se aproximou e disse: “Aconteceu alguma coisa? Por favor, o filme
que vou continuar exatamente aqui no meu lugar; quero ver o filme de novo.
E, se eu ainda não ficar satisfeito, vou assistir à terceira sessão também”. Havia
O gerente achou que o homem era meio maluco, mas, como havia pago o
valor do ingresso, permitiu que ele assistisse ao filme de novo. Então, ao final
“Satisfeito é uma ova! Tenho que ver a próxima sessão também. Aqui está o
“Mas o que você deseja? O que é preciso para você ficar satisfeito? Por favor,
lago, e ela está se despindo para nadar. Na verdade, ela já está quase nua; falta
apenas uma peça de roupa por tirar. Mas, infelizmente, nesse exato momento
trem venha sempre no mesmo horário. Algum dia, ele vai se atrasar; se não for
hoje, será amanhã, ou depois de amanhã; não importa – eu estarei aqui. Algum
“Meu Deus, mas isso vai ser realmente muito difícil!”, respondeu, atônito, o
gerente.
Sim, e é exatamente isso que acontece em relação à sua vida – você assiste
sempre ao mesmo filme, esperando que, um dia, o trem não passe. Na verdade,
todas as noites, você diz a si mesmo que já basta, que chega dessa monotonia
insana – mas, no outro dia, você já começa a ponderar que talvez não seja bem
assim, que, nunca se sabe, talvez possa acontecer algo diferente... Sua vida
No instante em que alguma coisa se torna uma repetição, você começa a agir
como um robô. E tudo está fadado a se tornar uma repetição; a não ser que sua
inteligência, sua capacidade meditativa e seu amor sejam tão grandes, que tanto
você quanto a pessoa que você ama consigam estar o tempo todo se
haverá algo novo, diferente, original; sim, novas flores terão desabrochado, será
estariam amando, apaixonadas pela vida; porém, estão todas vivendo o seu
fossem quartos conjugados. Para que sua vida não se transforme numa rotina
miserável, para que ela nunca se torne um inferno, é preciso que você se renove
a cada momento, que se liberte do passado, que esteja sempre buscando novas
é preciso que você esteja sempre em busca de novas canções para cantar. Um
princípio básico de sua vida deve ser este: que você não vai viver como uma
máquina – porque uma máquina não tem vida, mas, sim, eficiência. E o
mundo precisa que você se transforme numa máquina por isso – ele precisa de
eficiência.
Mas o seu próprio ser precisa exatamente do contrário; ele precisa que você
Desse modo, estai prevenidos contra a compaixão: dali ainda virá uma pesada nuvem para os homens!
Mas notai também estas palavras: todo grande amor ainda se acha acima de sua compaixão: pois ele
Compaixão, pena, piedade, todas essas coisas são muito inferiores ao amor –
sim, porque o amor é uma experiência criativa. As pessoas que se amam criam-
Nunca engane a pessoa que você ama, pois nenhuma mentira consegue
permanecer oculta, encoberta; mais cedo ou mais tarde, a outra pessoa saberá
que você a enganou. Lembre-se disto: nunca minta para a pessoa que você ama;
seja verdadeiro, autêntico, sincero; seja como um livro aberto – sem esconder
“Ofereço-me eu próprio a meu amor, e ofereço o meu próximo como eu.” Com
autêntica e verdadeira.
redemoinho de criatividade, como uma dança tão intensa, tão veloz, que é
quase impossível diferenciar o amante do ser amado. Uma dança que, a cada
momento, vai se aprofundando mais e mais, até que, por fim, os próprios
transformar a sua vida numa bela dança, e fazer dela um criativo ato de amor.
Zaratustra ensina o amor como a forma mais elevada de virtude. Para ele, o
* Nietzsche faz um uso bastante peculiar dos sinais de pontuação, como no caso dos travessões, dois-
pontos etc. Optamos por manter estas singularidades nas citações de Nietzsche, pois são um
elemento essencial do estilo do autor. (N. do T.)
Capítulo 6
Conhecimento é barato,
Dos eruditos
Pois esta é a verdade: saí da casa dos doutos; e, além do mais, bati a porta atrás de mim.
Por tempo demais minha alma esteve sentada à sua mesa; não fui, como eles, treinado para o
Amo a liberdade e o ar sobre a terra fresca; prefiro dormir sobre peles de bois do que sobre seus títulos
e dignidades.
Sou demasiado aquecido e queimado por meus próprios pensamentos: muitas vezes isso me tira o
Mas eles se acham friamente sentados na fria sombra: querem ser apenas espectadores em tudo, e
Quando se fazem de sábios, dão-me arrepios seus pequenos ditos e verdades: sua sabedoria
Eles são habilidosos, têm dedos espertos: que quer minha simplicidade junto à sua diversidade? De fiar,
tecer e atar entendem seus dedos: assim produzem eles as meias do espírito! [...]
Eles se observam atentamente e não têm confiança uns nos outros. Inventivos nas pequenas astúcias,
esperam por aqueles cujo saber tem os pés mancos – esperam como aranhas. [...]
Também sabem jogar com dados viciados; e os vi jogando tão fervorosamente que suavam.
Somos estranhos uns aos outros, e suas virtudes me ofendem ainda mais o gosto do que suas falsidades
E, quando eu morava com eles, morava acima deles. Por causa disso zangaram-se comigo.
Eles não querem saber de alguém a andar sobre suas cabeças; então puseram madeira, terra e imundície
Assim amorteceram o som de meus passos: e até agora os que pior me ouviram foram os mais doutos.
[...]
Apesar disso, ando com meus pensamentos acima de suas cabeças; e, mesmo se quisesse andar sobre
Pois os homens não são iguais: assim fala a justiça. E aquilo que eu quero não podem eles querer!
U
ma das distinções mais importantes que se precisa fazer é entre
obter; agora, o saber custa caro, é algo arriscado, que requer coragem.
universidades. A sabedoria, por sua vez, não está disponível em lugar nenhum
função da mente, que pode ser facilmente executada por qualquer computador.
O conhecimento é sempre algo emprestado dos outros – não é uma flor que
brota naturalmente da sua alma; é uma coisa plastificada, artificial, que foi
imposta a você. Ele não tem raízes, não pode florescer; trata-se apenas de uma
Os dois termos parecem ser sinônimos; por isso mesmo, criou-se tanta
confusão em torno deles. Mas conhecimento é uma coisa banal: você pode
obtê-lo nos livros, pode recebê-lo de mão beijada de rabinos, de bispos, ou,
esta: todo o seu conhecimento, por maior que ele seja, não modifica em nada a
Com isso, você pode fingir para o mundo que já não é mais uma pessoa
ignorante – sim, mas no âmago de seu ser só há trevas e escuridão. Por trás do
A sabedoria dissipa a sua ignorância; ela é como a luz que dissipa a escuridão.
Por isso, lembre-se bem da diferença que existe entre o erudito e o sábio. O
necessariamente um sábio.
por um simples motivo: ele acumulou tanto conhecimento, que, com isso,
consegue iludir muitas pessoas; só que, por conseguir enganar tanta gente,
acaba sendo ludibriado pela própria ilusão que provoca. Ele começa a acreditar
em algo do tipo: “Se tantas pessoas consideram que sou um homem sábio, é
porque devo ser mesmo. Tanta gente assim não poderia estar enganada”. Por
obstáculo, de uma moeda falsa. E tudo que é falso precisa ser removido antes
que não lhe pertence, que não vem de seu próprio ser. Nesse sentido, é melhor
*
ser ignorante que erudito, pois ao menos a ignorância é sua . E renunciar ao
riquezas, a reinos, à sua família ou à sociedade, porque tudo isso está fora de
quer que você vá, até mesmo nas profundezas do Himalaia, ele estará com
você.
justamente isso que a meditação significa. A meditação não é nada mais do que
ignorância, ela passa por uma transformação tão grande que, a menos que você
criança. Você nasce como criança; sim, mas, até aí, ainda é ignorante. Será
preciso que você passe por muita coisa, que adquira muito conhecimento,
muita memória; então, se tiver sorte, um dia você irá perceber que tudo isso é
Pode até ser que Buda tenha alcançado a sabedoria, assim como Jesus e
Krishna; todos eles podem ter sido realmente sábios, mas o conhecimento que
alcançaram não pode se transformar no meu próprio saber; a vida deles não
pode se transformar na minha; o amor que possuem não pode se tornar o meu
próprio amor. De que forma isso poderia acontecer? Como a sabedoria deles
poderia se tornar a minha própria sabedoria? Será preciso que eu faça essa
trilhados, por mares nunca dantes navegados. Tenho que correr todos os riscos,
livrar de todo esse lixo, de todo esse conhecimento que não lhes pertence, o
simplesmente desaparece. A partir daí, você não existe mais como um ego,
mas, sim, sob a forma mais pura e inocente possível de existência – você
Foi num momento como esse que Sócrates disse: “Só sei que nada sei”. No
**
mesmo estado de consciência, Bodhidharma declarou: “Eu não sei nada. E há
mais: quando digo ‘eu’, é apenas por uma convenção da linguagem, pois dentro
de mim não há nenhuma entidade que possa chamar de ‘eu’. Só utilizo essa
conhecimento”.
traz respeitabilidade, ele faz de você um grande homem, faz com que lhe deem
você mesmo não conhece nada sobre si próprio. É uma situação bem esquisita:
o mundo inteiro sabe quem você é, com exceção de você mesmo. Na verdade,
totalmente contra isso; pois, quando você renuncia a coisas como fama,
sobreviver às custas daquilo que não lhe pertence. O próprio ego, no fundo, é o
realmente profunda:
Pois esta é a verdade: saí da casa dos doutos; e, além do mais, bati a porta atrás de mim.
A questão, aqui, não é só que ele saiu da casa dos doutos – a ênfase, é bom
lembrar, está no fato de que Zaratustra bateu a porta atrás de si. Ele não quer
mais saber dessa história de erudição. Pois a verdade não pode ser encontrada
conclusão. Eles são como conchas vazias – fazem muito barulho, mas esse
barulho não faz o menor sentido. Eles debatem muito, sim, mas a hipótese
sobre a qual ficam debatendo continua sendo apenas isso: uma hipótese –
acima de tudo, como é que você pode discutir sobre algo que nunca
experienciou?
No fundo, os eruditos são como os cinco cegos de uma antiga fábula, que
animal para descobrir como ele era. Um deles tocou uma pata, o outro apalpou
uma das orelhas enormes, e assim por diante; cada um tateou cuidadosamente
determinada parte do bicho. Por fim, todos declararam: “Já sei como é um
elefante”. Então, o cego que havia tocado uma das patas disse: “O elefante é
discutindo sem chegar a nenhuma conclusão. Aquilo que eles dizem soa
elefante.
Os eruditos encontram-se numa situação mil vezes pior. Eles ainda não
fazem muito barulho, gritam uns com os outros... há séculos que fazem apenas
isso.
Zaratustra diz: saí da casa dos doutos . Sim, pois é uma casa de doidos – onde
eles ficam discutindo sobre coisas das quais não fazem a menor ideia. Onde
da escuridão, das cores. Onde aqueles que não têm audição fazem mil
conhecimento, não é a sua via; na verdade, não é a via de ninguém – ela serve
Por tempo demais minha alma esteve sentada à sua mesa; não fui, como eles, treinado para o
Amo a liberdade e o ar sobre a terra fresca; prefiro dormir sobre peles de bois do que sobre seus títulos
e dignidades.
Sou demasiado aquecido e queimado por meus próprios pensamentos: muitas vezes isso me tira o
Mas eles se acham friamente sentados na fria sombra: querem ser apenas espectadores em tudo, e
apreço absoluto por conforto e respeitabilidade, coisas que não significam nada
para um buscador de verdade. Pois ser alguém respeitável quer dizer o quê?
Que você é respeitado por pessoas ignorantes, que nada sabem? É isso? Sim,
elas o respeitam, pensando que você é um homem sábio – afinal, você é capaz
Quanto ao conforto, eis o que ele é: apenas uma morte lenta. Acontece que,
em breve, a morte estará batendo em sua porta; daí, nem o conforto poderá
mesmo.
homem sábio; bom, ainda não. Mas agora iniciarei minha busca, e vou arriscar
tudo que for preciso para ter ao menos um vislumbre de toda a beleza e de
todo o êxtase da realidade. Vivi demais no mundo das palavras; agora quero
algo que nos nutre, que preenche nosso ser. A palavra “amor” não é o amor
real; longe disso. O amor é uma vigorosa dança do seu coração, uma alegria
partilha com todos que estiverem abertos e disponíveis. A palavra “amor” não
Quando se fazem de sábios, dão-me arrepios seus pequenos ditos e verdades: sua sabedoria
Essa suposta sabedoria cheira mal, fede, é realmente nojenta. Quando você
mais putrefato for um cadáver, quanto mais remota for uma escritura, mais
mau cheiro horrível. Por outro lado, o homem autêntico e inocente – que já
não vive sob o peso de livros empoeirados, que não vive enfurnado nas salas
homem tem a mais pura fragrância e frescor em torno de si. A inocência tem
uma fragrância própria, única; assim como o conhecimento, que tem o seu
exuberante.
Eles são habilidosos, têm dedos espertos: que quer minha simplicidade junto à sua diversidade?
Zaratustra afirma: “Eu sou apenas um homem simples, não sou esperto –
ser uma perversão. O homem inocente não é astuto, esperto, habilidoso, ele
não é nada disso; mas seu ser está impregnado da mais absoluta excelência e
esplendor.
Magga Baba. Na verdade, ninguém sabia seu nome verdadeiro. A única coisa
que ele possuía era uma pequena jarra; e a palavra em híndi para jarra é magga .
Então, como ele estava sempre com aquela pequena jarra – que usava para
enquanto algumas pessoas, às vezes, jogavam moedas em sua jarra para ajudá-lo
– mesmo sem ele nunca ter pedido –, outras simplesmente pegavam o dinheiro
de sua jarra e iam embora, e ele nunca fazia nada para impedir. Aquilo
simplesmente não lhe dizia respeito, não tinha a menor importância para ele.
E você não vai acreditar, mas talvez ele tenha sido o homem que mais vezes
foi raptado no mundo – sim, as pessoas não roubavam apenas o seu dinheiro;
elas roubavam o próprio Magga Baba! E ele nunca fazia nada para impedi-las
embora. Ele nem mesmo perguntava: “Mas por que vocês me pegaram? Para
local onde ele vivia se davam conta de que alguém tinha raptado Magga Baba,
saíam à sua procura para trazê-lo de volta. E, quando estes o encontravam, ele
também não lhes dizia nada; eles só tinham que colocá-lo dentro de um carro
Certa vez, contudo, ele ficou desaparecido por quase doze anos, porque, dessa
vez, alguém havia surrupiado o ancião e o levado para bem longe, de trem. Os
por conta de uma viagem de negócios, um comerciante viajou até o local para
hora, ele deixou de lado tudo que tinha ido fazer, colocou Magga Baba dentro
inteira se reuniu para celebrar: encontraram Magga Baba, ele voltou! Imagine
só, já fazia quase doze anos; as pessoas quase nem se lembravam mais dele.
Ele era um homem bem simples, parecia uma criança. Costumava falar muito
realmente quisesse dizer algo, não em resposta a alguma pergunta sua. Mas,
certa vez, quando estávamos sozinhos, ele resolveu falar comigo. Na época, ele
vivia em uma pequena cabana que não tinha portas. E, todas as noites, os seus
não era apenas uma pessoa de cada vez – às vezes, cinco ou seis discípulos
cabeça, outro massageava seus pés... Ele, então, me disse: “Minha nossa, eu
quase vinte anos que não durmo direito porque eles não deixam”.
Na verdade, sempre achei que era preciso acabar com essa estupidez toda.
Então, como ele mesmo se queixou comigo, decidi falar com o proprietário da
cabana: “Você tem que pôr uma porta nessa cabana o quanto antes, o pobre
homem já não aguenta mais. As pessoas ficam lá o dia inteiro, passam a noite
inteira com ele – e ainda chamam isso de ‘servir ao mestre’. Há sempre uma
multidão ‘servindo ao mestre’, mas ninguém se preocupa com o fato de que ele
respondi: “Pois não se trata de uma questão de pensar, é só fazer; é uma coisa
bem simples”.
Ele, então, deu um jeito de instalar uma porta na cabana. Acontece que,
quando ele terminou de fixar a porta, Magga Baba já tinha sido raptado – ao
notar que iriam colocar uma porta, seus discípulos o levaram para uma outra
cabana.
Eu fui até Magga Baba e disse: “Parece que, ao menos nesta vida, vai ser
impossível você dormir direito. Posso até pedir, mais uma vez, para o dono
desta nova cabana colocar uma porta; porém, mais uma vez, seus discípulos
irão levá-lo para algum outro lugar. A única preocupação deles é lhe servir. E,
como você não diz nada...”. As pessoas não lhe perguntavam sequer o que
Era inacreditável. Certa vez, por exemplo, eu cheguei e ele estava fumando
“Não sei; mas, como eles puseram os cigarros em minha boca, o que mais eu
poderia fazer? Nunca tinha fumado antes; mas agora estou fumando. Acho que
Quanto a Zaratustra, ele deve ter sido um homem muito simples, porque
De fiar, tecer e atar entendem seus dedos: assim produzem eles as meias do espírito! [...]
Eles se observam atentamente e não têm confiança uns nos outros. Inventivos nas pequenas astúcias,
esperam por aqueles cujo saber tem os pés mancos – esperam como aranhas. [...]
Também sabem jogar com dados viciados; e os vi jogando tão fervorosamente que suavam.
Somos estranhos uns aos outros, e suas virtudes me ofendem ainda mais o gosto do que suas falsidades
Quando Zaratustra diz essas coisas, ele o faz numa referência direta a todos os
chamados eruditos, a estes seres que são reconhecidos no mundo inteiro como
grandes homens. Só que, para os místicos, todas essas pessoas eruditas não
acreditar, ele não fica pensando sobre as coisas – o místico as experiencia. Veja,
respeito da água, sua tese pode ser aprovada com toda a distinção e louvor, e
você pode ser reconhecido como um grande acadêmico. Mas nada disso pode
matar a sua sede; seus livros, títulos ou conhecimento não podem saciar a sua
sede. Na verdade, uma pessoa que bebe água não tem necessidade alguma de
saber que sua fórmula é H2 O – porque o termo “H2 O” não consegue matar a
sede de ninguém.
tudo que ela contém. E o que ela contém é isto: todas as alegrias, belezas,
coisas. Ele não está com sede de verdade; caso contrário, iria escavar o chão em
busca de água, e não escrever um tratado sobre ela – ele iria atrás de um poço, e
não de uma biblioteca. Sim, enquanto o místico vai ao poço, o erudito vai à
que suas falsidades e seus dados viciados . O erudito não pode falar da verdade
pessoas que a conhecem não são capazes de falar sobre ela; mas, ao menos, elas
podem apontar para a verdade, podem dar algumas dicas, indicar a direção.
Elas podem pegá-lo pela mão e levá-lo até a janela para lhe mostrar as estrelas e
linguagem, de teologia, de filosofia – ele não tem tempo sequer para olhar para
fora da janela. Ele não sabe mais como viver; só sabe pensar.
Mas o pensar é uma falsidade, porque você só pensa quando não conhece. Por
exemplo, ao ver um lindo pôr do sol, você pensa? É bem provável que, apenas
por hábito, ponha-se a pensar: “Que pôr do sol maravilhoso”. Mas, daí, suas
aí você estará realmente presente – em total harmonia com o pôr do sol, como
se fizesse parte dele. Daí, sim, você irá conhecer de fato toda a sua beleza. E
não ao ficar repetindo como um papagaio: “Que lindo”, “Que bonito”, “Que
emprestadas dos outros. Algum dia você escutou essas palavras, e agora as
Mas a verdade é esta: “você” não está lá – a sua mente está vagando em outro
lugar, perdida por aí. Se a beleza não consegue parar a sua mente, significa que
você ainda não sabe o que é a beleza. Se uma apresentação magnífica de dança
não consegue deixá-lo em estado meditativo, é porque você não sabe como
viciados nelas.
Zaratustra diz: suas virtudes me ofendem ainda mais o gosto . Pois suas virtudes
são muito estranhas mesmo. Diferentes eruditos têm virtudes diferentes, que
são peculiares a cada um dos diferentes rebanhos. Veja, por exemplo, a história
que se passou com um dos maiores pensadores que a Índia já produziu, Adi
vieram seus sucessores, assim como acontece com os papas, e todos eles são
que o mundo não passa de uma ilusão, que ele só existe como aparência
Então, numa determinada manhã, ele foi até o rio Ganges para se banhar, pois
era um sacerdote brâmane e assim mandava a tradição – ele foi quando ainda
estava escuro, bem antes do nascer do sol, e não havia ninguém mais à sua
volta. Mas, quando ele estava subindo as escadarias de volta do rio, um homem
apareceu do nada e passou a seu lado, roçando de leve o seu corpo. O homem,
então, parou e disse: “Por favor, me perdoe. Talvez você não me reconheça,
Acontece que os hindus têm a doutrina fascista mais antiga do mundo. Com
o seu sistema de castas, eles reduziram cerca de 25% de sua população a uma
existência quase animal – eles chamam essas pessoas de “intocáveis”. Sabe por
quê? Porque o simples fato de tocá-las, ou mesmo de ser tocado pela sombra
delas, tornaria você impuro. Se isso acontecer, você tem que tomar um banho
indignos e sujos da sociedade. Não é permitido nem que elas vivam nas
cidades; todas têm que morar nas periferias, fora da cidade. Elas são as mais
Adi Shankara, por sua vez, era um brâmane da mais alta casta, um dos
me reconhecido, ainda assim me tocou. Agora terei que voltar ao rio e tomar
outro banho”.
O intocável, então, retrucou: “Mas, antes de ir, você terá que responder a
algumas perguntas minhas; senão, vou ficar aqui e tocá-lo de novo quando
sair”.
Como não havia mais ninguém por lá que pudesse ajudá-lo, Adi Shankara
viu-se realmente em apuros. De fato, o que ele poderia fazer? Se fosse ao rio
continuaria a mesma indefinidamente. Por fim, ele disse: “Muito bem, quais
são as suas perguntas? Você parece mesmo ser uma pessoa bem desagradável e
teimosa”.
O intocável, então, falou: “Pois minha primeira pergunta é esta: eu sou real
ou sou apenas mera ilusão? Afinal, caso eu seja só uma ilusão, você nem precisa
tomar outro banho para se purificar; pode ir embora tranquilo e fazer suas
orações no templo. Agora, se eu for real, então é melhor parar logo com todo
no que poderia responder àquele homem. Ele já havia percorrido o país inteiro
filósofos da Índia; existe até um livro louvando seus feitos – uma obra chamada
Shankara Digvijaya , a vitória do grande Shankara. Onde quer que ele fosse,
sempre conseguia provar, de forma lógica e irrefutável, que o mundo era uma
“De acordo com sua teoria, eu sou uma ilusão; o rio é uma ilusão; o banho que
você tomou é uma ilusão; você mesmo é uma ilusão – tudo que existe não
passa de ilusão. Muito bem, mas gostaria de lhe fazer mais algumas perguntas.
Por exemplo, você me chama de intocável. Mas, diga-me, o meu corpo é que é
intocável? Por acaso você acha que seu corpo é formado de substâncias
diferentes do meu? Será que é possível fazer alguma distinção entre os ossos de
entre o nosso sangue, a nossa pele ou, quem sabe, o nosso crânio? Pois, se
quiser, posso lhe trazer vários crânios, e você me diz qual deles é o crânio de
um brâmane. Você sabe muito bem que todos os corpos são formados a partir
superioridade ou inferioridade”.
E ele completou: “Bom, talvez, então, a minha mente é que seja intocável.
Mas você consegue tocar a minha mente? Pois, veja bem, aquilo que não pode
ser tocado não deveria ser chamado de intocável – porque, nesse sentido, sua
mente também é intocável. Ou, quem sabe, você pensa que a minha alma é
que é intocável? Porque tenho escutado as suas palestras, e você sempre afirma
que só existe uma única alma em todo o universo, a alma suprema, Brahman ,
da qual todos fazemos parte. Mas e quanto aos intocáveis? Eles têm alma, ou
não? Caso tenham, as suas almas também fazem parte da alma suprema, de
Brahman , ou será que têm um lugar separado só para elas, fora da cidade?”.
Então, pela primeira vez em sua vida, o insuperável Adi Shankara, um dos
por fim, ele disse: “Por favor, me perdoe. Você me despertou de um sono
profundo. Eu estava vivendo num mundo de palavras; e você me confrontou
com a realidade”.
estão apenas habitando os castelos que elas mesmas construíram no ar. Elas se
esquecem do mundo real, dos seres reais, da vida de verdade. Suas belas
nascem da realidade em que vivemos. É por isso que Zaratustra diz: suas
Suas virtudes não passam de construções verbais, lógicas, racionais; não têm
nada a ver com a realidade. De fato, você pode transformar qualquer coisa
voltava tarde para casa. Sua esposa lhe dizia: “Preste atenção, eu sei muito bem
aonde você vai, e um dia você vai se arrepender”. Mas ele nem dava ouvidos – e
Mas, finalmente, chegou um dia em que a mulher não aguen tou mais aquilo
tudo e, assim que o marido entrou em casa, ela pegou um facão e decepou o
seu nariz. O sujeito não teve tempo nem de perguntar o que estava
agora, como é que vou viver? O que eu vou falar para as pessoas?”.
poderia fazer para sair daquela situação embaraçosa. Ele sabia que a cidade
inteira ficaria lhe perguntando sobre o que tinha acontecido com seu nariz. O
melhor seria fugir da cidade. Mas, mesmo assim, o problema não seria
“O que aconteceu com seu nariz?”. Ele não sabia o que fazer.
Acontece que esse homem tinha certo interesse por filosofia e religião. E foi
daí que veio a solução. Naquela mesma noite ele fugiu para outra cidade e,
Eles já tinham visto muitos homens santos, mas aquele ali, de fato, era especial
– não tinha nariz, e permanecia sentado exatamente como um buda.
Finalmente, alguém falou: “Embora seja novo aqui, saiba que estamos muito
felizes por ter um grande santo como você entre nós”. As pessoas tinham caído
direitinho no engodo; afinal, ali estava ele, sereno, sentado em silêncio, na mais
absoluta quietude. Mesmo que, por dentro, não houvesse nada de quietude e
E o homem disse:
“Muito bem, mas com uma condição: vocês precisam arrancar o próprio
Sem dúvida, era uma exigência bem difícil de cumprir. Toda gente ficou
pensativa, cogitando no que fazer... Mas, claro, em qualquer lugar você pode
homem olhou para todos os lados em busca de Deus, mas não havia nada de
O mestre respondeu: “Veja bem, é bom você parar com essa história de Deus,
porque não há nenhum Deus aqui, e isso não tem nada a ver com o fato de
você arrancar ou não o seu nariz. Agora, se você disser às pessoas que não viu
Deus, elas simplesmente vão rir na sua cara, achando que você é um idiota, que
perdeu seu nariz à toa. O melhor que você tem a fazer é voltar para o meio das
nossa, é muito simples, é extraordinário! Assim que meu nariz caiu, Deus
Nunca encontrei, e não faço a menor ideia do que seja Deus. Mas você agora
será o meu principal discípulo, será o meu braço direito, e juntos arranjaremos
O homem refletiu por alguns instantes, mas logo se convenceu de que aquela
Então, ele voltou para o meio das pessoas, dançando, feliz, e disse a elas: “Eu
já tinha feito de tudo, mas nunca tinha conseguido encontrar Deus. Mas este
homem descobriu a grande chave: basta o pequeno sacrifício de amputar o
estranho, nunca ouvimos falar de uma coisa dessa... Não existe nenhum texto
sagrado onde esteja escrito algo assim: ‘Arranca teu nariz e verás Deus’”.
Acontece que aquele homem era da mesma cidade que elas, há anos todos se
truque era sempre o mesmo – o mestre levava o futuro discípulo para algum
canto afastado, decepava seu nariz e lhe explicava a situação: “Preste atenção,
não se trata de uma questão de ver Deus, pois não há Deus nenhum aqui. A
questão, agora, é como você vai conseguir se livrar de todo esse vexame. Você é
completamente livre para lhes dizer a verdade, mas eles simplesmente vão
chamá-lo de imbecil. Mas, se fizer o que estou dizendo, você será venerado
como um grande santo, do mesmo modo que todos os meus discípulos têm
sido venerados”.
cidade. Com um detalhe: o resto da população acreditava que elas eram santas,
e todos lhes ofereciam comida, roupas, ou se curvavam para tocar os seus pés.
O rumor tornou-se tão grande que chegou até aos ouvidos do rei.
religião. E ficou bem intrigado com aquilo: “É estranho, nunca li nem ouvi
falar de algo assim... Mas é impossível que tanta gente esteja mentindo. Se fosse
somente uma pessoa, seria uma coisa; mas, só na nossa capital, há centenas de
pessoas que afirmam ter visto Deus. E privar-se da experiência de Deus apenas
para salvar o nariz não parece ser algo muito inteligente. Também irei até lá!”.
mesmo ver esse homem. Todos vamos morrer um dia – com nariz e tudo.
Nesse sentido, se apenas por arrancar o nariz se pode ter a experiência de Deus,
vale a pena”.
ponderou com o rei: “Por favor, majestade, espere só um pouco, não há motivo
para pressa. Amanhã mesmo vossa majestade pode arrancar o seu nariz.
tempos, o homem que tinha descoberto o caminho mais rápido até Deus;
ninguém conseguia sequer imaginar que pudesse haver um atalho mais curto.
O mestre, claro, ficou todo satisfeito com o convite para encontrar o rei, e
dirigiu-se imediatamente para o palácio. Chegando lá, ele foi levado para um
torturá-lo o quanto for possível, até que, finalmente, você diga a verdade”.
a minha mulher que, brava comigo, arrancou o meu nariz. Nunca encontrei
Deus, nunca vi divindade nenhuma. Mas, por favor, não me torture; vou
depois que alguém já não tinha mais nariz, tinha apenas duas opções: ser
iria gargalhar na sua cara; iriam chamá-lo de idiota, por não ter escutado
quando os outros lhe diziam para não fazer uma besteira como essa, de
O trapaceiro, então, foi levado à presença do rei. E, após ouvir a história toda,
o soberano disse: “Minha nossa! Se eu tivesse ido ontem, a esta altura também
Sim, você pode pegar qualquer tipo de ideia estúpida e, se tiver um pouco de
esperteza e malícia, sustentar facilmente essa ideia diante dos outros – o planeta
está tão cheio de idiotas, que você não terá dificuldade alguma em encontrar
seguidores. Todas as religiões que existem não passam de versões diferentes para
a mesma história. Ninguém jamais viu Deus, mas não importa – você imagina
quando vê que, mesmo após ter se autoflagelado tanto, não encontrou Deus,
você sabe que vai parecer um completo idiota se admitir que essa tortura toda
foi inútil. O melhor mesmo é ficar calado. Você se tornou alguém respeitável,
importante – não interessa se foi com ou sem Deus. Antigamente, você não
passava de um inútil, uma pessoa insignificante, ninguém o respeitava; agora,
argumentação e a filosofia podem ser usadas para criar todo tipo de virtudes e
normas morais, mas nas quais você não consegue identificar um único aspecto
plausível sequer. Contudo, essas pessoas sempre lhe apresentam suas evidências
Por exemplo, alguns monges hindus costumam usar uma sandália de madeira
que é uma verdadeira tortura – além de ser pesada, a sandália não tem alças;
tem apenas uma pequena haste, que fica entre o dedão e o segundo dedo do
pé, e que você precisa segurar com os próprios dedos enquanto caminha. Ou
seja, o simples ato de caminhar se transforma numa tortura inútil. Agora, tente
perguntar a algum desses monges hindus: “Mas por que vocês fazem isso, se há
Certa vez, até um grande santo hindu, seu nome era Karpatri, tentou me
“Ora, se alguém aqui não está compreendendo as coisas não sou eu. A
algum que controle a sexualidade. Você pode até cortar a perna inteira de uma
tem mais: todos eles usam uma espécie de cordão sagrado em volta do pescoço;
e, quando vão ao banheiro para urinar, têm que colocar esse cordão por cima
das orelhas.
– onde eu estava por alguns dias – qual a razão de fazerem isso, pois eu não via
sentido algum nessa história. Só resolvi questioná-lo diretamente depois que ele
mesmo resolveu humilhar um jovem que assistia à sua palestra. Esse jovem
tinha se levantado e pedido para fazer uma pergunta – mas o shankaracharya
perguntas”. O caso é que o rapaz estava vestido com roupas ocidentais – calça
por baixo da camisa?”. Ao que o jovem respondeu: “Não, eu não tenho esse
cordão”.
levantou, eu já sabia – com esse tipo de roupas que está usando, é óbvio que
trate de arranjar um cordão sagrado, troque essas roupas. E, sempre que urinar,
lembre-se de colocar o cordão por cima das orelhas”. A plateia inteira caiu na
risada, e o pobre homem ficou com cara de idiota no meio daqueles imbecis.
Perguntei, então, ao shankaracharya : “Mas qual é a ciência por trás desse seu
cordão sagrado? E em que medida o fato de colocá-lo por cima das orelhas ao
sexualidade. Assim, quando você enrola o cordão sagrado em volta das orelhas
Parece absurdo, mas milhões de hindus acreditam nesse disparate. E isso não
esse tipo de ideias estúpidas, de asneiras que vêm sendo difundidas e aceitas há
quê? Porque ninguém quer se sentir de fora do rebanho, ninguém quer perder
o respeito da multidão.
tratar uma pessoa da forma mais torpe possível. A pessoa pode perder seu
emprego, seus amigos podem rejeitá-la, até sua própria família pode lhe virar as
costas. Ela ficará sozinha no meio da multidão – mais que isso: estará sozinha e
condenada. Agora, se estivesse fazendo todo esse tipo de tolice que a massa
considera ser algo espiritual, virtuoso, então seria amada e respeitada pela
multidão.
A meu ver, contudo, ser alguém respeitável nesta sociedade significa apenas
respeitável, finge acreditar em várias coisas que – você sabe perfeitamente bem
– são inúteis, estúpidas ou até mesmo prejudiciais.
E, quando eu morava com eles, morava acima deles. Por causa disso zangaram-se comigo.
motivo: eu lhes mostrei que a maioria das coisas que eles consideram como
virtuosas, religiosas, de caráter, não passam de puro lixo. Eles nunca têm uma
resposta para meus questionamentos; sua única resposta é a raiva. Mas a raiva
não é um argumento; ela não prova nada – na verdade, ela desmente o que
você tenta provar. Se você fica com raiva, isso revela apenas que você se sente
E, quando eu morava com eles, morava acima deles. Por causa disso zangaram-se comigo.
Eles não querem saber de alguém a andar sobre suas cabeças; então puseram madeira, terra e imundície
Assim amorteceram o som de meus passos: e até agora os que pior me ouviram foram os mais doutos.
[...]
Apesar disso, ando com meus pensamentos acima de suas cabeças; e, mesmo se quisesse andar sobre
Pois os homens não são iguais: assim fala a justiça. E aquilo que eu quero não podem eles querer!
homens são iguais. E isso é algo totalmente incorreto; não há sequer dois
Sim, eu concordo que todos devam receber oportunidades iguais, para que
aqueles que não são comunistas; pois, se não a negaram, significa que também
a aceitaram.
Mesmo as pessoas que não são religiosas ou comunistas não têm coragem
suficiente para dizer que os homens não são iguais – por um motivo: elas têm
medo de que a multidão fique zangada. Sim, pois as grandes massas ficam
muito contentes em saber que todos os homens são iguais; que você é igual a
Albert Einstein, que é igual a Bertrand Russell, que é igual a Martin Buber, que
é igual a Jean-Paul Sartre. As grandes massas adoram essa ideia; ela é uma glória
tão grande para o ego, que mesmo quem não é comunista ou religioso tem
receio de admitir que os homens não são iguais. Mas estou completamente de
Pois os homens não são iguais: assim fala a justiça. E aquilo que eu quero não podem eles querer!
próprios talentos, tal qual você tem os seus; e, assim como tenho meu próprio
destino, você possui um destino que é só seu. Na verdade, somente uma cabeça
de gado pode ser igual a outra; só os membros de uma manada podem ser
singularidade única. Mas, quando você diz isso aos homens, consegue apenas
deixá-los zangados.
Por exemplo, anos atrás, quando afirmei numa palestra que os homens não
são iguais, o Partido Comunista da Índia aprovou uma resolução contra mim,
Comunista na época, um certo S. A. Dange, declarou que seu genro, que era
professor universitário, iria escrever um livro para refutar a minha ideia de que
os homens não são iguais. E, de fato, ele chegou a escrever um livro contra
ofensas e mentiras.
Zaratustra está coberto de razão – Pois os homens não são iguais: assim fala a
justiça .
Nesse sentido, tenho a minha própria concepção de como deverá ser uma
sociedade ideal: ela irá garantir oportunidades iguais para todos, sim, mas essa
igualdade de oportunidades será para que cada pessoa seja diferente da outra,
será para que cada um possa se desenvolver de acordo com a sua própria
singularidade.
suposta igualdade entre todos. Pois ele já foi sacrificado inúmeras vezes por
É uma coisa tão simples de se perceber; qualquer pessoa sabe que ninguém é
igual. Porém, por causa da inveja que a maioria dos homens sente – a inveja
que o fraco sente do forte, a que o mesquinho sente do nobre, a que o pigmeu
sente do grandioso –, eles gritam a plenos pulmões: “Os homens são todos
aceitação do aspecto único e singular de cada indivíduo que faz com que, de
fato, uma sociedade se torne fértil e abundante, que ela floresça em toda a sua
plenitude, nos mais variados tipos de flores, com as mais variadas cores e
fragrâncias.
coisas muito antes de seu tempo. Na sua época, por exemplo, ninguém falava
sobre essa questão da igualdade entre os homens; Karl Marx só iria aparecer
com essas ideias séculos mais tarde. Porém, quanto mais meditativa e silenciosa
é uma pessoa, mais clara se torna a sua visão, e ela é capaz de enxergar o que
ainda está por vir. Nesse sentido, as afirmações de Zaratustra vão diretamente
contra as teorias de Marx, embora ele nunca tenha ouvido falar de nenhum
Na realidade, Marx era apenas um erudito, e nada mais. Ele passou a vida
fechamento. Sem falar que, por diversas vezes, ele chegou a desmaiar em pleno
provinha dos livros; e não do contato com as pessoas, com a vida real, e muito
menos do contato consigo mesmo. Pois os homens não são iguais: assim fala a
* Em outro trecho de Zaratustra, Nietzsche também afirma: “Melhor nada saber do que saber muita
coisa pelo meio! Melhor ser um tolo por conta própria do que um sábio na conta dos outros! Eu –
vou ao fundo: – que importa se ele é grande ou pequeno? Se é denominado céu ou pântano? Um
palmo de chão me basta: se ele for realmente chão e fundamento! – um palmo de chão: sobre isso
pode-se ficar em pé”. (N. do T.)
** Bodhidharma foi um monge budista que viveu no século VI, sendo considerado o fundador do
zen-budismo. (N. do T.)
Capítulo 7
A rebeldia
é a única esperança
Da redenção
Em verdade, meus amigos, eu caminho entre os homens como entre pedaços e membros de homens!
Isso é o mais terrível para meus olhos, encontrar o homem destroçado e disperso como sobre um
E, quando o meu olhar escapa do agora para o outrora, depara sempre com o mesmo: pedaços e
O agora e o outrora sobre a terra – ah, meus amigos! –, eis o mais insuportável para mim; e eu não
saberia viver, se não fosse também um vidente daquilo que tem de vir.
Um vidente, um querente, um criador, um futuro ele próprio e uma ponte para o futuro – e, ah,
E também vós vos perguntastes muitas vezes: “Quem é Zaratustra para nós? Como devemos chamá-
Eu caminho entre os homens como entre pedaços de um futuro: aquele futuro que enxergo.
E este é todo o meu engenho e esforço, eu componho e transformo em um o que é pedaço, enigma e
apavorante acaso.
E como suportaria eu ser homem, se o homem não fosse também poeta, decifrador de enigmas e
redentor do acaso?
Redimir o que passou e transmutar todo “Foi” em “Assim eu quis!” – apenas isto seria para mim
redenção!
Vontade – eis o nome do libertador e mensageiro da alegria: assim vos ensinei eu, meus amigos! E
Querer liberta: mas como se chama o que acorrenta até mesmo o libertador?
“Foi”: assim se chama o ranger de dentes e solitária aflição da vontade. Impotente quanto ao que foi
A vontade não pode querer para trás; não poder quebrantar o tempo e o apetite do tempo – eis a
Querer liberta: o que inventa o próprio querer, para livrar-se de sua aflição e zombar de seu cárcere?
[...]
Assim a vontade, a libertadora, converteu-se em causadora de dor: e em tudo que pode sofrer ela se
Isto, e apenas isto, é a própria vingança : a aversão da vontade pelo tempo e seu “Foi”.
Em verdade, uma grande loucura habita em nossa vontade; e tornou-se maldição para tudo que é
O espírito da vingança : meus amigos, até agora foi essa a melhor reflexão dos homens; e onde havia
Pois “castigo” é como a vingança chama a si própria: com uma palavra mentirosa, ela finge ter boa
consciência. [...]
E uma nuvem após a outra rolou sobre o espírito: até que finalmente o delírio pregou: [...]
“A menos que a vontade finalmente redimisse a si própria e o querer se tornasse não querer –”: mas vós
Eu vos levei para bem longe dessas cantigas fabulosas, quando vos ensinei que “a vontade é criadora”.
[...]
A
s palavras de Zaratustra expressam claramente o modo como as religiões
brigam entre si. O maior crime já cometido contra a humanidade foi praticado
foi esta: você não faz parte deste mundo, não pertence a ele de verdade – o
mundo não passa de uma forma de castigo para você. Sim, você só está aqui
para ser punido. Sua vida não é, e nunca poderá ser, uma alegria – ela só pode
atingir três objetivos: fazer com que o homem se curve diante da ideia de Deus,
que não passa de uma ficção poética; fazer com que ele anseie pelo céu, que é
uma mera projeção da ganância humana; e, por fim, fazer com que viva com
humano, uma parte viva desse mundo. Nós estamos tão profundamente
enraizados na Terra quanto cada uma das árvores que se erguem do chão – este
*
Zaratustra disse várias e várias vezes: “Nunca traias a Terra” . E o que todos
os credos fizeram foi basicamente isso, eles traíram a Terra. Eles traíram sua
própria mãe, traíram a sua própria fonte de vida. Eles condenaram a Terra, e
estão sempre pregando que todos devem renunciar a ela – a tônica de seu
Mas como você pode renunciar à sua própria natureza? Na verdade, você
pode até fingir que renunciou à vida, pode ser um grande hipócrita; ou, quem
sabe, pode até começar a crer que já não faz parte do mundo que o cerca.
forma que os seus maiores pecadores. Todos eles precisam de comida, de água,
Ela simplesmente cria uma divisão profunda dentro das pessoas; elas ficam
por sua vez, ficam brigando o tempo todo entre si. Essa é a principal causa do
institucionalizada, pois já faz milhares de anos que a única coisa que as pessoas
predeterminado: “A nossa sina é essa, sim, é esse o nosso destino. Não há nada
que se possa fazer”. Mas a grande verdade é esta: não se trata da nossa sina e
nossa falta de inteligência, por termos sempre dado ouvidos a esses sacerdotes
ficções.
E o fato é que essas ficções têm sido muito proveitosas para os sacerdotes. Eles
bem a seus interesses. Pois um homem sadio, pleno e inteiro não pode ser
esperança de que, talvez, Deus possa ajudá-lo. Para que Deus possa existir, o
homem precisa sofrer; para que essa ideia de Deus possa se tornar cada vez
mais uma realidade, o homem precisa se tornar cada vez mais esquizofrênico.
Quanto mais mergulhado na dor ele estiver, mais facilmente poderá ser
convencido a rezar e a cumprir rituais religiosos, pois a única coisa que vai
vive em plenitude e bem-aventurança, que leva uma vida de alegria, esse ser
não precisa de nenhum Deus. Um homem que vive verdadeiramente a sua vida
E Zaratustra está longe de ser um sacerdote. Ele talvez seja um dos primeiros
Ele diz:
Em verdade, meus amigos, eu caminho entre os homens como entre pedaços e membros de homens!
Sim, é muito difícil encontrar um homem que seja inteiro; as pessoas estão
século XIX , por exemplo, houve um grande movimento religioso nos Estados
tudo mais seria apenas uma ilusão; todas as coisas seriam meros frutos do nosso
Certo dia, um jovem cujo pai era membro dessa igreja caminhava pela rua
quando, por acaso, cruzou com uma velha senhora que também fazia parte do
A mulher soltou uma risada, e disse: “Imagine só, a doença não passa de um
pensamento, de uma ilusão. Ele apenas pensa que está doente, é só isso. Como
a alma poderia estar doente? Por favor, diga a ele para parar com isso, pois não
caminhavam pela rua. E a velha senhora foi logo perguntando: “Mas, e aí, o
Imagine só, agora ele começou a pensar que está morto! Nós até tentamos
acreditando nos seus pensamentos; isso tudo é uma ilusão. Vamos, comece logo
a respirar!’ – mas ele nem escutou. Ele acredita de tal forma nesse pensamento,
que tivemos que levá-lo para o cemitério. Não teve outro jeito...”.
Por toda parte é assim: há pessoas que negam a existência do corpo; outras
alma, dizendo que só o corpo é real, que tudo mais é pura ilusão. Agora, todas
ponto: nenhuma delas aceita que o homem viva em seu estado natural, como
uma unidade orgânica, inteira, completa; elas sempre têm que descartar
alguma coisa. Porém, tudo aquilo que você pensa descartar continua à sua
volta, é parte de você. Pode até ser que, por meio de uma contínua
consiga acreditar em seu próprio engodo. Porém, se a sua crença não está de
que toda essa miséria existencial, todo esse padecimento se deve, sobretudo, a
quando o sofrimento desaba sobre a sua cabeça, eles dizem: “Veja só! Não
usam esse mesmo martírio como argumento para defender a ideia de que você
Já que Adão e Eva desobedeceram a Deus, hoje você tem que padecer, tem
que pagar por esse crime. É uma lógica muito bizarra. Veja bem, mesmo que
nada – eles apenas comeram uma maçã. Sem falar que ninguém sabe ao certo
se Adão e Eva existiram mesmo ou não. Seja como for, por conta dessa simples
mordida na maçã, ocorrida há milhares de anos, ainda hoje você tem que
passar por todo esse suplício, pois carrega a herança pecaminosa de Adão e Eva.
Sim, você pertence à mesma linhagem que eles; e, se eles foram pecadores, você
também é. Uma prova disso é todo sofrimento que existe na vida; senão, por
homem mais feliz que já existiu, e receberá todas as bênçãos que este planeta
E por que um homem inteiro pode ser tão pleno e feliz? Porque ele vive de
forma inteira, completa, total; a cada momento, ele extrai todo o sumo da
existência, bebe até a sua última gota. A sua vida é uma dança, uma constante
celebração.
E, quando a sua vida se torna uma celebração, você não consegue mais
acreditar nessa baboseira de que ela seja uma punição. A partir daí, você
consegue descortinar todo o véu de mentiras dos religiosos, e não tem mais
agora. Você não tem que adiar essa experiência para um futuro distante, que só
Isso é o mais terrível para meus olhos, encontrar o homem destroçado e disperso como sobre um
Zaratustra vê as coisas com muita clareza, com uma lucidez rara e inigualável.
batalha e matadouro .
todas elas falta uma parte que lhes é absolutamente essencial, e que lhes
suportam ver ninguém feliz; basta encontrar alguém assim, e eles já partem
para cima dessa pessoa, condenando a sua alegria, censurando o seu prazer. De
alheia.
alegrias são todos efêmeros, mudam a cada minuto – por isso, não se deixe
enganar por eles, não caia na tentação, porque, se o fizer, perderá a felicidade
eterna do paraíso. Ou seja, fica evidente que o preço a pagar é muito alto. Só
por conta de um simples prazer, como o de desfrutar o seu chá matinal, você
não iria querer arruinar as chances de desfrutar a felicidade sem fim do paraíso,
mesma. Ninguém precisa desses prazeres grandiosos do céu. Além disso, essa
própria ideia de um paraíso onde reina a felicidade eterna não passa de ficção,
de poesia, pois ninguém jamais viu um lugar assim. Ninguém jamais foi até lá
E, quando o meu olhar escapa do agora para o outrora, depara sempre com o mesmo: pedaços e
O agora e o outrora sobre a terra – ah, meus amigos! –, eis o mais insuportável para mim; e eu não
saberia viver, se não fosse também um vidente daquilo que tem de vir.
humanidade é algo tão doloroso, é tamanha agonia, que nunca pensei ser capaz
de sobreviver a isso. É uma dor tão excruciante, que poderia ter partido meu
torna passado. Mas ainda existe a esperança de que, um dia, o homem consiga
se libertar das cadeias da religião, de que ele possa enxergar quanto tem sido
mantém vivo é a esperança de que o super-homem está por vir. Se não fosse
por isso, eu não sobreviveria; pois olhar para o passado e o presente é algo tão
E Zaratustra está certo. Há que se manter viva esta esperança: de que, um dia,
ele ainda pode permanecer nas prisões criadas pelos religiosos? Pois podem
chamá-las de templos, igrejas ou mesquitas, não importa; seja qual for o nome
que derem, essas coisas não passam de prisões. É tão doloroso ter que assistir,
dia a dia, a seres humanos sendo marcados a ferro como gado: este é hindu;
encontrar um único ser humano que não tenha sido rotulado, que ainda não
faça parte da manada, que ainda seja livre dos apelos da multidão, enfim, que
ainda seja ele mesmo – um ser inteiro, completo, que vive sem nenhum receio
Pois não há outra religião senão a natureza. E você não tem que se preocupar
em aprender o que é a natureza. Quando está com sede, você sabe que precisa
de água; quando sente fome, sabe que precisa comer. A sua própria natureza
está o tempo todo a guiá-lo. Não há outro guia senão a natureza. Todos os
outros guias são falsos, servem apenas para desorientá-lo. Eles o afastam do seu
próprio caminho, do rumo natural que deveria tomar; e, tão logo isso acontece,
quem vai querer saber de igreja? A vida é algo tão exuberante, é uma alegria tão
grande – quem vai querer deixar toda essa exuberância, todo esse júbilo, para
quem vai querer entrar num lugar assim: onde a tristeza é confundida com
que desate a rir será taxado de maluco; onde não se pode dançar; onde é
proibido amar; onde você tem que ficar sentado ouvindo palavras mortas,
seu ser, que não fazem o seu coração vibrar – sim, quem vai querer entrar num
lugar desses? Entretanto, são espaços como esses, são todas essas igrejas e
E, assim como todo místico verdadeiro, o que Zaratustra espera é que isso
não dure para sempre. Algum dia, a inteligência do homem vai se rebelar.
A rebeldia é a única esperança. Um dia, o ser humano irá destruir todas essas
verdade, e esse templo é a própria Terra, é este planeta com o seu céu coberto
verdadeiramente vivo, e esse Deus é a própria vida que pulsa nas árvores, nos
o mundo, já que os seus próprios deuses são criados pelo homem. Elas dizem
seus pés. Você consegue pensar em algo mais idiota? Ah, sim, eles ainda
começam a rezar!
Quando vemos alguma criança deslumbrada com seus brinquedos, a gente até
entende; afinal, ela é uma criança, e crianças adoram seus brinquedos, elas
Mas a questão é que você é um adulto, mas não cresceu – você continua
estão nos templos, nas igrejas, nas sinagogas. Mas não importa quanto você os
venere, eles são apenas isto: bichinhos de pelúcia – eles cumprem a mesma
função psicológica.
Se não estiver com seu bichinho de pelúcia, a criança se sente muito sozinha.
Por exemplo, certa vez recebi a visita de um garotinho que tinha vindo com sua
Grécia, eu e ele ficamos muito amigos. Bom, e adivinhe o que ele me trouxe de
presente: um ursinho de pelúcia! E veja só o que ele havia dito para sua mãe:
“Eu só vou embora da Índia se puder dar o ursinho para o Osho, senão eu não
saio daqui – mamãe, o Osho vive sozinho, ele precisa de alguém para lhe fazer
companhia”.
E com você é a mesma coisa. Pois o que são os seus deuses? Eles são apenas
celestial que estará sempre a seu lado. Ele é onisciente, onipresente, onipotente
– pode fazer qualquer coisa. Sim, mas ele é só uma forma de consolo, e nada
mais. Todos que acreditam nessa ideia de Deus, no fundo, ainda não
Na verdade, a própria vida, em si, já basta; você não precisa de mais nada.
Pois a vida é algo tão maravilhoso, tão abundante, ela está sempre prenhe de
para crescer e para ser quem você é. Ela não lhe dá uma tábua com dez
mandamentos, não fica criando confusão a respeito de como você deveria ser.
A vida o aceita do jeito que você é; o amor e respeito que ela tem por todos os
motivo: elas são infelizes. Porque a estratégia é esta: não deixem que as pessoas
seguinte: “Se o mundo inteiro for feliz, posso garantir que não haverá mais
religiões”. E há uma profunda verdade nisso que ele diz. As religiões querem
óbvio, o sacerdote estará sempre pronto para oferecer. Ele está sempre de
prontidão para interceder junto a Deus: “Senhor, este homem precisa de sua
foi atendida.
Mas até em relação a isso os sacerdotes são bem ladinos. Eles dizem: “Suas
preces não são atendidas porque vocês não têm merecimento suficiente. Vocês
não são dignos da graça de Deus, pois não passam de pecadores, que estão
“ausência de paladar” – coma, mas não aprecie o sabor. Ou seja, o ser humano
fica numa situação realmente complicada. Afinal, ele conta com várias papilas
gustativas na língua – a não ser que faça uma cirurgia plástica para remover
essas papilas, ele vai sentir o sabor das coisas; não tem como ser diferente.
Quando uma coisa amarga entra em sua boca, imediatamente você sente o
sabor amargo; e o mesmo acontece no caso de algo doce ou azedo. Isso ocorre
algo errado. E não teria como fazer de outro modo, pois o paladar é um
sentido inerente ao corpo. Mas isso não importa: tudo que vem do corpo é
mundo acaba sendo considerado indigno mesmo, não tem saída. E, se você é
uma pessoa indigna, significa que todos os seus desejos e anseios também são, e
devem ser condenados. Acontece que você tem uma matriz biológica; você
nasceu de forma biológica, cada célula de seu corpo é pura energia sexual, é
Assim, é mais do que natural que você queira amar alguém, isso é parte da sua
própria biologia – mas todas as religiões são contra isso: se você amar essa
pessoa, irá para o inferno! Apesar disso, a sua própria biologia o impele a amar;
e o resultado é este: você ama pela metade, com medo, com uma grande
plena, você sempre quer mais; e, como sempre quer mais, vai se tornando uma
pessoa cada vez mais pecadora. Por isso, não é preciso nem olhar para a
biografia de uma pessoa, seja ela quem for, para dizer que ela é uma pecadora,
que é indigna de receber as graças de Deus – e essa é única razão pela qual suas
Agora, a grande realidade é esta: suas preces não são ouvidas simplesmente
porque não existe ninguém para escutá-las, não há ninguém para atendê-las. O
saber qual seria, em média, a idade mental dos soldados. E eles ficaram
apenas 13 anos! E a grande questão é que o nível mental dos soldados daquela
época, ainda hoje, não é inferior ao nível médio de inteligência de todo o resto
da população.
idade. De fato, pode ser que você já tenha 80 anos de idade, mas, quando se
curva.
preocupou em perguntar por que a idade mental fica empacada por volta dos
13 anos de idade, mas a resposta é muito simples: essa é a fase em que meninos
desenvolva.
A menos que você faça um esforço nessa direção, sua idade mental
inteligência que possui já é mais do que suficiente para conseguir procriar e ter
filhos. Se quiser ser mais inteligente, então terá que se esforçar nesse sentido,
terá que aprender a meditar, terá que fazer tudo para afiar a sua inteligência.
Mas os religiosos não querem que você seja inteligente, pois o ensinamento
nenhuma inteligência. A não ser que você aprenda a duvidar, a sua inteligência
idade mental média não passa dos 14 anos – e todos esses “meninos” e
a perceber que tudo aquilo que costumavam chamar de religião não passa de
ter sérias dúvidas em relação aos sacerdotes e sua dita religiosidade; começarão
a fazer perguntas sobre tudo. E nenhuma crença tem respostas para essas
perguntas.
fundamentos da sua religião, se isso é algo superior, então por que a natureza
frente; é proibido olhar mais adiante. Com isso, ele nunca caminha com a
cabeça ereta, está sempre olhando para o chão. E qual é o motivo? Se ele
caminhar com a cabeça ereta, pode ser que, de repente, veja o rosto de alguma
mulher bonita. A questão é apenas essa. Olhando até 1 metro de distância à sua
frente, o máximo que ele poderá enxergar será o pé de alguma mulher, e nunca
o seu rosto.
Agora, se o amor entre um homem e uma mulher fosse realmente uma coisa
errada, se fosse realmente uma depravação, por que a natureza lhes daria esse
tipo de anseio? Isso é algo que qualquer pessoa com o mínimo de inteligência
nascido. É uma bênção que o pai de Buda não tenha sido um monge budista;
contemporâneo. Ele teve uma vida longa – chegou quase aos 100 anos de idade
mantinha jovem e inteligente como nunca. Ao longo da vida, ele foi sempre
começou a duvidar de todo tipo de ideias absurdas que haviam lhe dito na
Essa obra é um marco filosófico, e até hoje, mais de cinco décadas após sua
publicação, ainda não foi refutada por ninguém ligado ao universo cristão.
Eis o que ele diz: “A única coisa que me mantém vivo é a esperança de que,
um dia, essa noite sombria vai acabar; por mais longa que ela seja, um dia virá
o amanhecer. Pois a cada noite segue-se uma nova alvorada. Essa noite
sempre”.
Mas, enquanto isso, ele descreve sua condição atual: como um vidente , pois
homem; um criador , pois fará tudo que for possível para criar o novo homem
que vai suceder essa humanidade decadente; e, ainda... um futuro ele próprio e
uma ponte para o futuro – e, ah, também como que um aleijado nessa ponte .
E o que ele está dizendo é isto: “Eu sou o futuro, sim, pois consigo vê-lo. Para
mundo não está tão distante, e faço todo esforço possível para aproximá-la cada
vez mais. Eu sou a ponte entre essa humanidade decrépita de hoje e o super-
homem do futuro; sim, mas também sou um aleijado nessa ponte. Não posso
E também vós vos perguntastes muitas vezes: “Quem é Zaratustra para nós? Como devemos chamá-
É ele um prometedor?
Tal como tantos outros, que prometeram muito e não cumpriram nada...
médico? Ou um convalescido?
Eu caminho entre os homens como entre pedaços de um futuro: aquele futuro que enxergo.
E este é todo o meu engenho e esforço, eu componho e transformo em um o que é pedaço, enigma e
apavorante acaso.
Ele afirma: “Só há uma coisa a se lembrar a respeito de mim – eu não lhes
salvador ou mensageiro divino. Só posso dizer que... este é todo o meu engenho e
esforço, eu componho e transformo em um o que é pedaço, enigma e apavorante
acaso ”.
engenho e o meu esforço estão voltados nessa direção. Quero reunir todos as
simplesmente como uma criança, desfrutando a vida sem nenhum medo e com
toda a sinceridade.
E como suportaria eu ser homem, se o homem não fosse também poeta, decifrador de enigmas e
redentor do acaso?
Redimir o que passou e transmutar todo “ Foi” em “Assim eu quis!” – apenas isto seria para mim
redenção!
Vontade – eis o nome do libertador e mensageiro da alegria: assim vos ensinei eu, meus amigos! E
Até aqui, Zaratustra vinha ensinando a vontade de poder. Mas, agora, ele vai
uma prisão”.
Você pode ser aprisionado por ela, ficar enredado em suas tramas; é preciso
relaxe. Esqueça-se da vontade, não pense mais no poder – e seja apenas como
está sempre pronto para se ajoelhar e ser carregado com o máximo de peso
possível. Em seguida vem o leão, que representa a vontade de poder. Por fim,
então, vem o terceiro e último estágio, que é o da criança – a forma mais alta
Querer liberta: mas como se chama o que acorrenta até mesmo o libertador?
“Foi”: assim se chama o ranger de dentes e solitária aflição da vontade. Impotente quanto ao que foi
A vontade liberta, mas ela não consegue esquecer o passado. Ou seja, mesmo
que a vontade liberte o homem, ele ainda permanece íntima e secretamente sob
o jugo das memórias dos tempos antigos de trevas e escravidão. Pois a vontade
não tem a mínima condição de mudar o passado; não há o que ela possa fazer
criança.
provável que até os 4 anos, 3 anos de idade, no máximo. Até esse ponto, em
que tinha 4 anos de idade, é possível se lembrar das coisas. Mas, e antes disso, o
que acontece? Por que você não consegue se lembrar do que aconteceu nesses
primeiros quatro anos? Afinal, você estava vivo, e com certeza passou por várias
experiências.
permanece sempre intacta, sem nenhum arranhão, como uma folha de papel
em branco.
É por isso que você consegue se lembrar de todo o seu passado, mas só até um
certo ponto em que, de repente, não consegue mais seguir – e, geralmente, essa
maturidade sexual aos 14 anos. Os meninos estão sempre um passo atrás; pois,
Quando estão esperando um bebê, as mães que já são mais experientes – que
já tiveram mais de dois ou três filhos – sabem dizer muito bem se aquela
criança que está crescendo dentro delas é um menino ou uma menina. Isso
futebol ainda na barriga da mãe! Parece que esse impulso para estar sempre
fazendo alguma coisa é parte da natureza dos garotos. Para eles, sentar-se em
silêncio por alguns momentos é algo quase impossível; eles são muito
inquietos.
As meninas são mais centradas. Quem sabe, isso se deva ao fato de estarem
grande mãe, elas um dia também serão mães. As meninas conseguem entrar em
meditação muito mais facilmente do que os meninos; elas são naturalmente
mais calmas e serenas. No caso dos garotos, não; eles estão o tempo todo
correndo por todo lado, eles nunca param. Todos os meninos amam a
velocidade; não lhes pergunte aonde estão indo, pergunte apenas se estão indo
idade, no máximo. Mas, e antes disso? O que aconteceu nesses primeiros anos?
durante esses primeiros anos, você era tão inocente que não juntou uma
memória sequer. Você vivia cada momento de forma tão plena, tão completa,
experiências incompletas, que ficam o resto da vida pairando à sua volta. Elas
“É preciso fazer alguma coisa; essa experiência ainda está incompleta, não foi
vivida totalmente”. Por outro lado, a mente inocente vive cada momento de
forma tão inteira, com tanta completude, que não deixa sequer um vestígio
para trás. É como acontece com os pássaros, que voam pelo céu e não deixam
“Foi” : assim se chama o ranger de dentes e solitária aflição da vontade. Impotente quanto ao que foi
A vontade não pode querer para trás; não poder quebrantar o tempo e o apetite do tempo – eis a
Querer liberta: o que inventa o próprio querer, para livrar-se de sua aflição e zombar de seu cárcere?
[...]
Assim a vontade, a libertadora, converteu-se em causadora de dor: e em tudo que pode sofrer ela se
Isto, e apenas isto, é a própria vingança : a aversão da vontade pelo tempo e seu “Foi”.
Em verdade, uma grande loucura habita em nossa vontade; e tornou-se maldição para tudo que é
O espírito da vingança : meus amigos, até agora foi essa a melhor reflexão dos homens; e onde havia
Pois “castigo” é como a vingança chama a si própria: com uma palavra mentirosa, ela finge ter boa
consciência. [...]
Alguém comete um homicídio – por conseguinte, a sua lei, suas cortes e sua
polícia irão assassinar o assassino. Mas eles farão isso com todo método e
espetáculo, afinal: “É preciso fazer justiça”. Mas isso tudo não passa de
Só que ela tenta camuflar essa vingança sob o manto de suas belas e nobres
palavras de justiça.
Mas que tipo de justiça é essa? Um homem foi morto, isso é fato; mas
mandar o assassino para a forca não fará com que o primeiro homem
isto: em vez de um assassinato, agora são dois. É a isso que chamam de justiça!
Agora, caso ele não fosse morto pela justiça, será que alguém tem ideia do que
ainda poderia ocorrer com esse homem? Pois ele ainda teria um futuro, poderia
mudar. Talvez pudesse até se tornar um grande santo; quem sabe o próprio fato
ser.
pura. Acontece que tudo é feito de acordo com um elaborado ritual, nos
sociedade conduzirão uma cerimônia da mais alta pompa – chamada por eles
Nietzsche mostra quanto tudo isso, no fundo, não passa do tipo mais rasteiro e
ordinário de vingança.
Pois “castigo” é como a vingança chama a si própria: com uma palavra mentirosa, ela finge ter boa
consciência. [...]
E uma nuvem após a outra rolou sobre o espírito: até que finalmente o delírio pregou: [...]
“A menos que a vontade finalmente redimisse a si própria e o querer se tornasse não querer –”: mas vós
uma criança; porque, para alguém ser inocente nesse mundo de mentira e
falsidades, essa pessoa não pode ser um covarde – isso só é possível para um
Um dos segredos da vida é este: quando se é uma pessoa que exala confiança e
Por exemplo, vou descrever uma situação que é bastante comum e pela qual
você mesmo já deve ter passado; eu já presenciei algo assim inúmeras vezes,
pois faz anos que viajo por toda a Índia, sempre esperando pelos trens nas
plataformas das estações. Se você está aguardando pelo trem na estação e, por
curiosamente você confia num total desconhecido que está sentado a seu lado e
lhe diz: “Por favor, pode tomar conta da minha bagagem por um momento?
Eu já volto”. Pois é, já passou pela sua cabeça que você não faz ideia de quem
seja aquela pessoa, e que ela pode roubar todas as suas malas?
Mas, de fato, isso nunca acontece; ninguém jamais rouba a sua bagagem.
Deve haver alguma razão misteriosa por trás disso. A sua própria confiança se
ele tem que lhe provar que realmente é confiável. Só que, na verdade, ele é um
completo desconhecido, não tem necessidade alguma de lhe provar nada; ele
pode simplesmente roubar sua bagagem e você nunca mais irá vê-lo de novo.
Pode até ser que ele seja um ladrão, um criminoso; você não faz ideia de quem
ele seja. Mesmo assim, quase todo mundo confia em desconhecidos que
encontra nas plataformas de trem: “Por favor, pode dar uma olhadinha nas
minhas malas? Eu volto num segundo” – e, até hoje, nunca ouvi ninguém
sua bagagem.
A sua própria confiança cria uma espécie de aura a seu redor, que acaba
que as pessoas o enganem. É mais fácil enganar uma pessoa que seja, ela
mesma, uma enganadora; é mais fácil trapacear um homem que seja, ele
mesmo, um trapaceiro. Agora, uma pessoa inocente, que confia, que não se
Eu vos levei para bem longe dessas cantigas fabulosas, quando vos ensinei que “a vontade é criadora”.
[...]
Nesse aspecto, Zaratustra está de acordo com Buda. Eles apenas seguiram por
Quando isso acontece, você entrou em casa. Não há mais nada a desejar, não
* Eis um exemplo de como Nietzsche traz esse tema na voz de Zaratustra: “Eu vos imploro, irmãos,
permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças supraterrenas! São
envenenadores, saibam eles ou não. São desprezadores da vida, moribundos que a si mesmos
envenenaram, e dos quais a terra está cansada: que partam, então! […] Permanecei fiéis à terra,
irmãos, com o poder da vossa virtude! Que vosso amor dadivoso e vosso conhecimento sirvam ao
sentido da terra! Assim vos peço e imploro. Não os deixeis voar para longe do que é terreno e bater
com as asas nas paredes eternas! [...] Trazei, como eu, a virtude extraviada de volta para a terra –
sim, de volta ao corpo e à vida: para que dê à terra seu sentido – um sentido humano!”. (N. do T.)
Capítulo 8
O homem é um devir
O andarilho
Eu sou um andarilho e um escalador de montanhas, eu não gosto das planícies e, ao que parece, não
E, seja lá o que ainda me aconteça, como destino e como vivência – sempre haverá uma caminhada e
Passou o tempo em que me podiam suceder acasos; e o que poderia ainda me tocar que já não fosse
meu?
Ele apenas retorna para casa, regressa para mim – meu próprio Eu, e o que dele há muito tempo se
E ainda uma coisa eu sei: agora me acho diante de meu último cume, e daquele que mais longamente
me foi poupado. Ah, devo encetar meu caminho mais duro! Ah, comecei minha mais solitária
caminhada!
Mas quem é de meu feitio não foge a esta hora: aquela que lhe diz: “Só agora segues o teu caminho de
Segues teu caminho de grandeza: tornou-se teu último refúgio o que até então era teu último perigo!
Segues teu caminho de grandeza; essa deve ser agora tua maior coragem: que não haja mais nenhum
Segues teu caminho de grandeza; aqui ninguém te acompanhará furtivamente! Teus próprios pés
E, se todas as escadas te faltarem doravante, terás de saber como subir sobre tua própria cabeça: de que
Sobre tua própria cabeça e além do teu próprio coração! O mais suave em ti deve agora se tornar o
mais duro.
Quem sempre se poupou muito termina por adoecer do seu muito poupar-se. Louvado seja o que
Olhar para longe de si é necessário, a fim de ver muito : – todo escalador de montanhas necessita essa
dureza.
Mas quem, como homem do conhecimento, olha de maneira importuna, como poderia ver, em todas
Mas tu, ó Zaratustra, querias ver a razão e o pano de fundo de todas as coisas: então tens de subir
acima de ti mesmo – para o alto, para além, até que tenhas inclusive tuas estrelas abaixo de ti!”
Sim, olhar do alto para mim mesmo e até para minhas estrelas: apenas isso eu chamaria de meu cume ,
Da visão e enigma
O homem, porém, é o animal mais corajoso: assim superou qualquer animal. Ao som de fanfarras
superou também qualquer dor; mas a dor humana é a dor mais profunda.
A coragem também mata a vertigem ante os abismos: e onde o ser humano não estaria diante de
A coragem é o melhor matador: coragem também mata a compaixão. Mas compaixão é o abismo mais
profundo: quanto mais fundo olha o homem no viver, tanto mais fundo olha também no sofrer.
Mas coragem é o melhor matador, coragem que ataca: ela mata até mesmo a morte, pois diz: “Isso era
Mas há muita fanfarra num dito como esse. Quem tem ouvidos, que ouça. [...]
U
ma das coisas mais fundamentais a ser compreendida por todos aqueles
um sentido para a vida, enfim, que estão em busca de si mesmos – é isto: eles
ficar parados sempre no mesmo lugar. Eles têm que aprender a ser um
da vida, eles não ficam mais evoluídos, só ficam mais velhos. Por exemplo, um
cervo nasce como um cervo e morrerá como um cervo. Não existe um processo
transformação.
único ser que, a cada dia, é capaz não só de ficar mais velho, mas também de
Assim, lembre-se disto: o homem não deve ser entendido como um “ser”,
pois a palavra “ser” passa uma ideia errada, como se o homem já estivesse
O homem é um devir.
O homem é o único animal que não está completo. Mas, ao contrário de ser
uma maldição, isso é precisamente a sua glória, a sua grande bênção. Ele nasce
Sim, e, obviamente, quando alguém como Zaratustra fala consigo mesmo, ele
o faz de uma forma ainda mais autêntica e sincera do que quando fala com os
condescendência, senão estaria falando uma língua que ninguém seria capaz de
entender. É preciso que ele desça das alturas onde se encontra para os vales
Porém, ao falar consigo mesmo, ele pode fazê-lo a partir dos próprios cumes
contemporização. Ele pode dizer exatamente o que quer, pois está falando ao
seu próprio coração, e a ninguém mais; não há risco algum de que seja mal
completamente diferentes.
O filósofo Martin Buber, por exemplo, que foi um dos pensadores judeus
monólogo tem uma dimensão que nenhum diálogo é capaz de alcançar. Por
isso, sempre que Zaratustra fala consigo mesmo, procure escutá-lo de uma
forma ainda mais atenta e cuidadosa, pois ele está falando a partir do próprio
âmago do seu coração – e, nesse caso, ele o faz sem a mínima complacência,
entendido ou não.
Ele está falando ao seu próprio coração, e as coisas que diz são as mais
tremendamente significativas.
Eu sou um andarilho e um escalador de montanhas, eu não gosto das planícies e, ao que parece, não
O que ele diz representa o anseio mais íntimo e profundo de todos os seres
humanos. Eles são todos andarilhos, embora ainda não tenham ousado iniciar
sua jornada, nem se atrevido a escalar as mais altas montanhas. E talvez este
seja um dos principais motivos pelos quais ainda sejam tão infelizes: o seu
anseio mais profundo continua sempre por se realizar; eles permanecem
atrelados às planícies.
mais confortável, mais conveniente, mais seguro, não se corre tantos riscos. Só
que isso está em completo desacordo com o anseio mais íntimo da alma. Pois a
alma quer voar nas alturas do céu, ela quer desbravar territórios desconhecidos,
quer percorrer caminhos pelos quais ninguém passou, quer escalar montanhas
Isso faz parte da própria essência do ser humano; cada um de nós já nasce
com esse anseio. Você pode até conseguir mantê-lo reprimido, mas
permanecerá sempre triste, infeliz, sentindo que falta algo em sua vida. Você
pode até se tornar uma pessoa respeitável, pode acumular todo o dinheiro, o
poder e a fama imagináveis, mas, no mais íntimo de seu ser, ficará sempre algo
palavra “lunático” vem de luna , o termo em latim para “lua” – todos nós
trata-se apenas de chegar até lá. A alegria está na própria jornada em si, e não
na conquista do objetivo.
O objetivo não passa de uma desculpa para iniciar a jornada; pois, tão logo
para a próxima jornada, para uma nova peregrinação. Aquela meta inicial já
movimento é algo tão essencial que, tão logo você pare de se mover, significa
que está morto. Você pode até continuar respirando, mas isso não significa que
está vivo. Vida é sinônimo de movimento – é ele que nos traz todas as danças e
Índia, mas em todo o planeta. E ele escreveu um poema bem singular, que é
humano.
Nesse poema, Tagore diz que, há tempos, está em busca de Deus. Aliás, Deus
talvez seja a justificativa mais perfeita e insuperável para se iniciar uma jornada
de busca, pois você jamais conseguirá encontrá-lo; com isso, a jornada nunca
beleza de Deus – você pode ansiar por ele, mas nunca conseguirá encontrá-lo;
forma obtusa e ignorante, não têm consciência da psicologia profunda que está
por trás da ideia de Deus. Elas não sabem que, ao renegar mecanicamente as
está certo ou errado, isso não importa; a grande questão é que, se essa noção de
movimento que você tem na existência – ela negaria o seu direito inato de
Enfim, no poema que mencionei, Tagore descreve a sua procura por Deus
mais ou menos assim: “Já faz muitas e muitas vidas que estou em busca de
para algum outro lugar. A busca, então, continuava. Mas eis que, um dia, para
por ter, enfim, chegado aonde queria – era uma emoção indescritível, e subi
pensamento me deixou paralisado – fiquei ali, com a mão congelada no ar, sem
bater à porta, com o seguinte pensamento: ‘Mas, se esta for mesmo a morada
de Deus, então será o meu fim. Toda a minha alegria está nesta jornada, todo o
Criador, se, quando a porta se abrir, Deus estiver diante de mim, o que é que
eu vou fazer?”.
Então, tomado por um imenso pavor, ele tirou os sapatos e, segurando-os nas
magnífica escadaria. Seu medo era o de que, mesmo não tendo batido à porta,
Deus pudesse ouvir o barulho de seus passos e, com isso, viesse pessoalmente
abrir a porta – e Deus diria: “Mas aonde você vai? Eu estou aqui”.
mais depressa do que jamais havia corrido antes. E, agora, estou novamente em
busca de Deus. Como já sei onde ele mora, posso evitar aquele lugar e
minha aventura segue seu curso, o amanhã permanece fazendo sentido – sem
falar que ainda tenho a sorte de saber que nunca mais chegarei até aquela casa
de novo, nem por acidente. Pois, assim como sei onde é a morada do Criador,
também sei que Deus é só uma desculpa para a jornada; o que realmente desejo
é explorar o desconhecido”.
Sim, Deus era apenas um nome; e o poeta compreende que nunca tinha
refletido de fato sobre todas as implicações que esse nome envolve. Afinal, se
pudesse, de fato, se encontrar com Deus, o que você faria? O que iria dizer?
Com certeza, seria uma situação bem embaraçosa. Além disso, já não haveria
mais um amanhã, você já teria atingido um ponto final, pois não existe nada
Sempre fui apaixonado por esse poema de Tagore; ele traz uma visão
anseio de saber mais, de ser mais, um anseio de navegar por mares nunca
próprio esforço que se faz, que é um esforço árduo, perigoso. Tão logo alcance
determinada meta, será preciso arranjar uma nova desculpa para a jornada; caso
contrário, isso seria o seu fim, seria um suicídio; você estaria cavando a sua
própria sepultura.
está falando sobre algo que diz respeito a cada um de nós. Ele está falando
E, seja lá o que ainda me aconteça, como destino e como vivência, – sempre haverá uma caminhada e
Não aceitarei nenhum outro destino que não seja esse, pois qualquer outra
jornada possa sempre continuar, em que eu encontre cordilheiras cada vez mais
e à medida que você prossegue em sua busca pela verdade, por Deus, por um
sentido para a vida, percebe que todas essas coisas não passam de justificativas
diferentes que se dá para a própria busca, pois você não conseguiria dizer que
está simplesmente em busca de nada. Para isso, seria preciso ter um nível
Mas a realidade é esta: qualquer objetivo não passa de uma desculpa para
precisa mais de justificativas para a sua busca. Não precisa mais se preocupar
com coisas como Deus, o sentido da vida, a verdade – você pode simplesmente
Mas isso, claro, pode ser um pouco difícil. Imagine se alguém lhe perguntar
algo do tipo: “Mas você está em busca de quê?”. Com certeza, vai parecer um
buscador; o objeto da busca não importa, mas apenas a busca em si”. Assim,
para não ficar numa situação embaraçosa, você escolhe uma meta qualquer:
pessoa que lhe fez a pergunta. Com isso, nem ela nem você ficam
Agora, de acordo com Zaratustra, o que é que você encontra com toda essa
busca, com toda essa jornada, com todo esse incansável escalar de montanhas?
Até um dia em que, finalmente, pode dizer: “Eu não sou nada mais do que
consciência de que ele não pode ser alcançado, e é por isso que sentem ser tão
bem que o impossível nunca foi nem jamais poderá ser alcançado
humana se eleve a patamares cada vez mais altos. Pode até ser que você nunca
encontre nada – mas, um dia, irá se tornar aquilo que Nietzsche chama de
super-homem.
Passou o tempo em que me podiam suceder acasos; e o que poderia ainda me tocar que já não fosse
meu?
Zaratustra já não está mais suscetível a nenhuma forma de acaso – o que ele
quer dizer com isso? Veja bem, as situações que chamamos de acasos, de
viagem, você decide pegar o trem das 11h; mas, por um motivo qualquer, se
atrasa para chegar à estação e acaba perdendo esse trem. Pois é, que falta de
sorte, foi um imprevisto. Agora, quando você não tem nenhum objetivo
específico, a não ser a própria viagem em si, não tem como se desviar do
queremos que ela seja de determinado jeito, que tudo aconteça de acordo com
que as coisas fossem diferentes, mas a vida revela o contrário – é por isso que
E Zaratustra afirma: Passou o tempo em que me podiam suceder acasos ... Sim,
nada mais pode ser um acaso ou fatalidade para mim, pois aceito todas as
coisas como elas são. O próprio imprevisto, para mim, é uma coisa
desviar desse caminho, está ótimo também – eu não tinha nenhum objetivo
específico mesmo.
chegar a uma concordância tão grande com a vida, a um nível tal de harmonia
certa. Ele não exige que as coisas aconteçam de determinada maneira, ele
aconteça, essa é a coisa certa; aconteça o que acontecer, é isso que ele estava
perturbados.
“aceitação daquilo que é”. Diante de qualquer situação, não importa qual seja o
acontecimento, ele diz: “Tal é a natureza das coisas”. Se você esperava que o
resultado fosse outro, certamente ficará triste, frustrado, achando que a vida
não foi bondosa com você. Agora, para Buda, a vida sempre é bondosa, a
existência sempre é compassiva, pois, não importa o que aconteça, é assim que
tinha que ser. Buda não tem nenhum outro desejo senão a própria vida.
“Tal é a natureza das coisas” – essa expressão usada por Buda é realmente
magnífica. A palavra original usada por ele é tathata , e Buda a usava o tempo
chegado a sua hora”. E é assim mesmo; ninguém morre fora da hora, mesmo
que em todas as lápides ainda se leia: “Este pobre homem faleceu antes do
hora, da forma exata que devem morrer. E Buda usava tanto essa expressão
tathata , “tal é a natureza das coisas”, que passou a ser chamado de Tathagata –
totalmente. Não há nenhuma resistência, não existe nenhuma aversão. Ele não
Quando se vive nesse estado de total aceitação, já não acontecem mais acasos
onde tudo é exatamente como deveria ser. Você se torna uma pessoa centrada,
serena, silenciosa. Não existe agitação alguma em seu ser. E somente a partir
mesmo.
Ele apenas retorna para casa, regressa para mim – meu próprio Eu, e o que dele há muito tempo se
Eu agora estou reunindo em mim todas as partes que haviam sido dispersas.
Mas lembre-se disto: quando ele diz que volta para casa não significa que
isso que ele chama de “voltar para casa”, de tornar-se um de novo: reunir todas
E ainda uma coisa eu sei: agora me acho diante de meu último cume, e daquele que mais longamente
me foi poupado. Ah, devo encetar meu caminho mais duro! Ah, comecei minha mais solitária
caminhada!
Até aqui, Zaratustra ainda estava com seus discípulos. Agora está
Mas quem é de meu feitio não foge a esta hora: aquela que lhe diz: “Só agora segues o teu caminho de
partir na mais longa das viagens, sabendo muito bem que vai sozinho e que
essa jornada talvez nunca termine, este homem sente, no fundo do coração,
mais elevado e o mais baixo – ambos juntaram-se num só, pois, agora, nada é
elevado ou baixo demais para mim. Se eu cair no mais profundo dos abismos,
isso será parte da caminhada; se alcançar o mais altaneiro dos cumes, também
será parte da peregrinação. Sim, minha jornada não tem mais nenhuma meta
ou objetivo. Cume e abismo tornaram-se um, eles juntaram-se agora num só! ”.
Quando uma experiência como essa acontece, significa que você integrou
elevado – ambos são você, ambos são uma coisa só. Você manifesta em si toda
“Segues teu caminho de grandeza: tornou-se teu último refúgio o que até então era teu último perigo!”
seu grande refúgio: estar sozinho numa jornada que, no fundo, ninguém sabe
se terá fim, se levará a algum lugar ou não – o grande perigo sempre foi esse. E
seguir seu próprio caminho, ficam sempre no meio de alguma multidão – são
As pessoas estão sempre se agarrando a algum tipo de manada, seja ela uma
nação, uma religião, uma ideologia política, seja uma organização qualquer.
Tudo isso só para evitar o sentimento de solidão, de não fazer parte do grupo –
certas. Mas o grande problema é que todo mundo pensa exatamente assim.
Veja a história que o rei Akbar, que foi um dos grandes imperadores da Índia,
conta em sua autobiografia, Akbar Nama . Certa vez, ele mandou construir
amigos do rei sugeriu: “Em vez de encher a lagoa com água, deveria enchê-la
com leite, como uma forma de honrar ainda mais esses majestosos cisnes que
chegar ao lago Manasarovar, pois ele fica escondido bem no meio do Himalaia,
numa altitude superior à de qualquer outro lago no mundo. Talvez seja o lago
mais sereno que existe, e apenas esses cisnes vivem por lá.
Bom, o soberano até gostou da sugestão de boas-vindas dada por seu amigo,
mas havia um problema: onde eles arranjariam tanto leite? A lagoa era muito
avisar por toda a capital que amanhã de manhã, sem falta, todos têm que trazer
um balde de leite para a lagoa do rei. Os cisnes sagrados já estão por chegar, e
nossa capital tem o dever de lhes dar as boas-vindas com essa oferenda”.
Ao saber da sugestão, um dos homens mais sábios do reino, e que era bastante
íntimo de Akbar, lhe disse: “Pois amanhã de manhã você terá uma grande
surpresa”.
E o homem disse: “Basta esperar um pouco e verá. Já não falta muito para a
manhã chegar”.
Dito e feito – quando Akbar chegou à lagoa de manhã, mal pôde acreditar no
que via: pois, para sua grande surpresa, a lagoa inteira estava cheia, sim, mas de
água!
meio de milhões de baldes de leite, quem vai perceber que alguém jogou um
balde de água? A água vai se misturar rapidamente com o leite”. Pois é, só que
todo mundo teve a mesma ideia! Não houve uma única pessoa sequer que
levou leite. E ninguém percebeu que o truque não iria dar certo – pois, para
que não fossem vistos, já que levavam apenas água nos baldes, todos eles foram
até a lagoa de manhã bem cedinho, antes de o sol nascer, quando ainda estava
escuro. Chegando lá, todos despejaram seus baldes de água e voltaram felizes
O sábio que era íntimo do rei já estava sentado à beira da lagoa quando este
chegou pela manhã – e disse ao soberano: “Olhe só, aí está a sua lagoa cheia de
Quando alguém faz parte de uma multidão, pensa assim: “Um número tão
grande de pessoas não pode estar errado”. Acontece que todas essas pessoas
pensam exatamente o mesmo: “Tanta gente assim não pode estar errada”. Todo
pessoa ainda se sente sozinha, sua solidão permanece intacta. Por que, então, as
pessoas ainda teimam em continuar no meio de multidões? Por que têm tanto
Zaratustra diz: “Antes, meu maior perigo era estar somente comigo mesmo;
porque, aí, você começa a refletir: ‘Será que estou no caminho certo? O que
estou fazendo é, de fato, aquilo que deveria fazer na vida?’ – e não há ninguém
a quem se possa pedir conselho”. Sim, quando você está só consigo mesmo,
começam a surgir mil e uma perguntas, e não tem ninguém para respondê-las.
É por isso que as pessoas adoram viver rodeadas de gente. Tem sempre
alguém disposto a lhes dar algum conselho, não importa se essa pessoa sabe
realmente alguma coisa ou não. Dar conselhos para os outros é uma alegria tão
grande, é quase um esporte mundial. Na verdade, todos sabem que a coisa que
assim, as pessoas continuam a dar seus sábios conselhos por aí, totalmente de
graça.
tanta gente, ela sempre pode pensar: “Tudo quanto estou fazendo deve estar
certo, pois todo mundo faz isso também”. Agora, quando você está só consigo
escuridão a seu redor: “Essa ideia de Deus é real? O que estou fazendo da
minha vida? Esse caminho que escolhi leva mesmo a algum lugar, ou estou
Mas Zaratustra afirma: “Aquilo que antes representava o meu maior perigo
tornou-se, agora, o meu último e grande refúgio. É algo que aprecio; é meu
abrigo, meu lar. Sim, descartei todos os supostos objetivos, e fiz da própria
“Segues teu caminho de grandeza; essa deve ser agora tua maior coragem: que não haja mais nenhum
Segues teu caminho de grandeza; aqui ninguém te acompanhará furtivamente! Teus próprios pés
A não ser que você aceite o desafio do impossível, sua grandeza nunca poderá
impossível. Mas a ideia de Deus perdeu essa qualidade, pois você se acostumou
demais com ela – você nunca pensa em Deus como algo impossível. Você
começou a encarar Deus como algo possível de ser alcançado. Com isso, ele
Nesse sentido, o melhor a fazer é trocar essa ideia de Deus pela palavra usada
por Zaratustra: Impossibilidade . Aí está o seu lar, o seu refúgio, a sua jornada. É
“E, se todas as escadas te faltarem doravante, terás de saber como subir sobre tua própria cabeça: de
É preciso que você transcenda a si mesmo; que deixe para trás tudo que já foi
Tudo aquilo que você é, ou pensa que é, precisa ser deixado para trás – seus
compõe a sua personalidade atual. Você tem que deixar tudo isso para trás,
assim como faz uma serpente, que descarta a pele velha e sai deslizando sem
impossível. Você não será capaz de viver a suprema busca, a suprema jornada;
Lembre-se disto: você é apenas uma flecha, para a qual não existe alvo algum.
E compreender que você é só uma flecha – que voa a toda a velocidade, sem
Zaratustra faz um desafio que só pode ser aceito por aqueles que são
verdadeiramente corajosos.
Sim, você tem que transcender sua própria lógica e razão, tem que ir além do
Quem sempre se poupou muito termina por adoecer do seu muito poupar-se. Louvado seja o que
Olhar para longe de si é necessário, a fim de ver muito : – todo escalador de montanhas necessita essa
dureza.
Mas quem, como homem do conhecimento, olha de maneira importuna, como poderia ver, em todas
Mas tu, ó Zaratustra, querias ver a razão e o pano de fundo de todas as coisas: então tens de subir
acima de ti mesmo – para o alto, para além, até que tenhas inclusive tuas estrelas abaixo de ti!”
Sim, olhar do alto para mim mesmo e até para minhas estrelas: apenas isso eu chamaria de meu cume ,
O homem, porém, é o animal mais corajoso: assim superou qualquer animal. Ao som de fanfarras
superou também qualquer dor; mas a dor humana é a dor mais profunda.
A coragem também mata a vertigem ante os abismos: e onde o ser humano não estaria diante de
abismos?
Onde quer que você esteja – e não importa quanto tente enganar a si mesmo
beira de um abismo. Todas as formas de consolo, todas as defesas que você usa
para negar essa realidade não passam de meras ilusões. Pense bem, será que
existe algum momento da sua vida em que você não esteja à beira de um
Quanto mais você enxerga a realidade, mais vê os abismos a seu redor. Uma
pessoa cega pode ficar alegremente parada bem ao lado de um abismo, sem a
menor ideia de que ele existe. Porém, basta um passo em falso, e ela já era. Ou
próprio enxergar é ver abismos – o desvelar da visão é a visão dos abismos. Mas
é aí que está: se você realmente quer enxergar as alturas de seu ser, terá que ver
os abismos também.
mesma, quando a própria descoberta de novas esferas, dentro e fora de seu ser,
já é uma bênção – daí, então, cume e abismo não fazem mais a menor diferença.
Eles tornam-se um; eles são uma coisa só. E cada ser humano traz, em si, a
que se encontra.
E, assim que a sua coragem desperta, assim que ela começa a rugir como um
leão, você consegue sentir, pela primeira vez, toda a exultação da vida, toda a
A coragem é o melhor matador: coragem também mata a compaixão. Mas compaixão é o abismo mais
profundo: quanto mais fundo olha o homem no viver, tanto mais fundo olha também no sofrer.
Mas coragem é o melhor matador, coragem que ataca: ela mata até mesmo a morte, pois diz: “Isso era
agente da KGB chega no meio da madrugada a uma casa, bate à porta com
“Por acaso você é doido ou o quê? Você acaba de me dizer que o Ginsberg
está morto!”
O homem, então, soltou uma risada e disse: “Você chama isto de vida? Nem
Pense bem: se, na hora em que você estiver para morrer, a morte aparecer e
lhe perguntar: “Você gostaria de viver a sua vida de novo? Quer viver essa
mesma vida que tem levado mais uma vez?”. O que você acha que vai
responder? Porque, da minha parte, não acho que nenhuma pessoa inteligente
vá querer viver toda esta tragédia de novo – com exatamente a mesma esposa, o
existencial.
Agora, no caso de alguém que, de fato, viveu a sua vida não como um
traz dentro de si, despertando o seu melhor – uma pessoa assim talvez possa
Mas só alguém que viveu de forma intensa e total, que consumiu a chama de
sua vida até o fim, em vez de levar uma existência morna, frouxa, indiferente –
só uma pessoa assim estará pronta para viver a sua vida novamente, pois ela
sabe que poderá criar algo totalmente novo. Sabe que poderá encontrar novos
**
sabe que viver perigosamente é a única forma de viver .
Mas há muita fanfarra num dito como esse. Quem tem ouvidos, que ouça. [...]
É preciso viver de tal forma que, se a vida lhe for confiada mais uma vez, ela
não será uma repetição. Agora, a grande questão é esta: a sua vida já é uma
constante repetição. Você nem precisaria de outra vida para repeti-la; esta
Por exemplo, ouvi falar de um homem que se casou nada menos que oito
vezes. Essa história, claro, só poderia ter se passado na Califórnia, pois não se
verdade, para aqueles que são realmente inteligentes, não é preciso se casar nem
uma vez. Imagine, então, oito vezes... Bom, mas o caso é que, cerca de dois
meses após ter se casado com a sua oitava esposa, eis que o sujeito se deu conta
de um pequeno detalhe: ele já tinha sido casado com aquela mesma mulher
Outra coisa de que ele se deu conta foi esta: embora tenha sempre buscado se
casar com uma mulher diferente das outras, bastavam seis meses de
compreendia aquilo; pois ele tinha chegado até a viajar para outros países em
busca de uma esposa diferente, mas era sempre a mesma coisa: ao cabo de seis
meses, a nova esposa era igualzinha à anterior. Agora, o que ele nunca
compreendeu, de fato, é que justamente ele é que era o mesmo – seu olhar era
sempre o mesmo, e assim eram suas escolhas. Ou seja, sempre que encontrava
uma esposa “nova”, no fundo era uma mulher idêntica àquelas das quais já
mesmo homem que escolheu a primeira esposa foi quem escolheu a segunda, e
pelas mesmíssimas razões. No fundo, ele só se sentia atraído por certo tipo de
por todo tipo de coisas estúpidas que, na essência, não fazem a menor
diferença. E o resultado, claro, é que, uma vez após a outra, ele sempre caía na
Aliás, isso é algo que parece estar acontecendo na vida de muita gente hoje
entediada com o emprego, com a esposa, com o marido, com a cidade, com os
amigos. Ela, então, resolve mudar tudo – só para descobrir, alguns meses
depois, que está vivendo as mesmas novelas de novo. E, passados três anos, a
apenas uma vida, mas várias. Por sua vez, as três maiores religiões nascidas fora
profunda que está por trás desta noção defendida no Oriente: de que você terá
muitas e muitas vidas; de que já teve inúmeras vidas no passado, e terá outras
fazendo o mesmo tipo de coisas idiotas, uma vida após a outra, as mesmas
imbecilidades que faz ainda hoje, e que certamente fará no futuro. Várias e
várias vezes, por milhares de vidas, você estará ali, sentado numa mercearia,
tomando conta da loja, brigando com sua esposa, com seu marido, reclamando
bem clara do mais puro tédio. Pois, com isso, não tem como ficar protelando:
se você quer mudar, mude agora! Caso contrário, você sabe que continuará
girando em círculos, como se estivesse preso a uma imensa roda, que sobe e
Se você realmente quer mudar a sua vida, então não fique adiando para
nunca seja repetitivo; procure sempre por algo novo, que tenha frescor, que
traga vitalidade – pois não há outro objetivo senão a própria vida, a própria
jornada. Por isso, tire o máximo de proveito dela. Torne a sua vida o mais viva
possível. Faça o que puder para que ela seja o mais bela, encantadora e criativa
quanto for possível. Lembre-se: você tem uma capacidade infinita para isso; ela
jamais foram trilhados e que, talvez, ninguém além de você jamais venha a
trilhar.
Só uma vida com esse nível de vitalidade, de curiosidade, de busca pelo novo,
pode ser considerada uma vida autêntica – se não for assim, significa que você
está simplesmente vegetando. E não interessa que tipo de vegetal você é – por
dizer que a única diferença entre um repolho e uma couve-flor é que as couves-
Para ser uma pessoa autêntica é preciso coragem; porque ser uma pessoa
incessante. Onde o pôr do sol o deixar, ali não deve achá-lo a alvorada; e, onde
profundos da consciência.
Será realmente uma bênção se você puder compreender este ser, Zaratustra,
pois ele pode lhe dar o incentivo que falta para você empreender uma longa
* Essa ideia se liga a um dos conceitos centrais que perpassa toda a obra de Nietzsche: o amor fati –
“amor ao destino”. Trata-se da aceitação integral de todos os aspectos da sua vida, não importa
quão desafiadores eles sejam; é um completo “sim” à sua vida, tal como ela se apresenta. Nas
palavras do próprio Nietzsche: “Quero dizer o que desejo para mim mesmo e que pensamento, este
ano, me veio primeiramente ao coração – que pensamento deverá ser para mim razão, garantia e
doçura de toda a vida que me resta! Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é
necessário nas coisas: – assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati [amor
ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! [...] E, tudo somado e em suma: quero ser, algum
dia, apenas alguém que diz Sim!”. (N. do T.)
** No livro Vivendo perigosamente (Alaúde), Osho define o que isso representa: “Viver
perigosamente significa isto: sempre que houver alternativas, tome cuidado – não opte pelo
conveniente, pelo confortável, pelo respeitável, pelo socialmente aceitável, pelo honroso. Opte por
aquilo que faz o seu coração vibrar. Opte por aquilo que gostaria de fazer, apesar de todas as
consequências”. (N. do T.)
Capítulo 9
Elevar-se às alturas
Vou agora pôr na balança as três coisas mais ruins e sopesá-las humanamente bem. [...]
Volúpia, ânsia de domínio, egoísmo : essas três foram até agora as mais bem amaldiçoadas e mais
terrivelmente caluniadas e aviltadas – essas três vou agora sopesar humanamente bem. [...]
Volúpia: um adocicado veneno apenas para o emurchecido, mas para os de vontade leonina o grande
Volúpia: a grande imagem de felicidade para uma superior felicidade e suprema esperança [...] para
muitos que são mais estranhos a si mesmos que o homem à mulher: – e quem compreendeu
Ânsia de domínio: tição e açoite dos mais duros entre os duros de coração; o horrendo martírio
reservado ao mais cruel; a sombria chama das fogueiras que vivem. [...]
Ânsia de domínio: ante seu olhar o homem rasteja, se curva, se submete e se torna mais baixo do que
serpente e porco: – até que finalmente o grande desprezo grita de dentro dele [...]
Ânsia de domínio: que, no entanto, também sobe sedutoramente aos puros e solitários e até alturas
que bastam a si mesmas, ardente como um amor que sedutoramente pinta purpúreas bem-
Ânsia de domínio: mas quem chamaria “ânsia” quando o que é alto desce, desejando o poder? Em
Que a altura solitária não permaneça eternamente solitária e bastando a si mesma; que a montanha
Oh, quem encontraria o nome certo de virtude para batizar esta ânsia? “Virtude dadivosa” – assim
E também aconteceu então – em verdade, pela primeira vez! – que sua palavra beatificasse o egoísmo , o
– de uma alma poderosa, a que pertence o corpo elevado, o corpo bonito, vitorioso, animador, em
Com suas palavras sobre o que é bom e ruim, esse prazer-consigo se protege como com bosques
sagrados; com os nomes de sua felicidade, bane de sua presença tudo que é desprezível.
Bane para longe de si tudo que é covarde; diz: “Ruim – isso é covarde!”. [...]
A desconfiança timorata vale pouco para ele, assim como todo aquele que prefere juramentos a olhares
e mãos [...]
Menos ainda vale para ele o obsequioso fácil, o ser canino, que imediatamente se deita de costas, o
humilde [...]
É-lhe odioso, e até mesmo nojento, quem jamais quer se defender, quem engole escarros venenosos e
olhares maus, o ser demasiado paciente, com tudo tolerante, com tudo satisfeito: pois isso é maneira
de servo.
Seja alguém servil ante os deuses e os pontapés divinos ou ante os homens e as estúpidas opiniões
Ruim: assim chama ele a tudo que se curva e é tacanho-servil, aos submissos olhos que pestanejam, aos
corações oprimidos e àquela falsa maneira indulgente que beija com lábios amplos e covardes. [...] –
E que precisamente isto fosse considerado e chamado virtude, pregar terríveis peças no egoísmo! E
“sem-ego” – assim desejariam ser, com bom motivo, todos esses covardes [...] cansados do mundo!
Mas para todos eles está chegando o dia, a transformação, a espada da justiça, o grande meio-dia :
aquilo que sabe e profetiza: “Vê, ele está chegando, ele está próximo, o grande meio-dia! ”.
T
odos os mestres antes de Zaratustra, e mesmo os que vieram depois dele,
humana a ver tudo apenas de uma determinada maneira. Nesse sentido, uma
sobretudo, esclarecedores. Não à toa, algumas vezes você pode até ficar
chocado, pois o que ele fala vai contra todos os seus preconceitos. É preciso
que você tenha coragem suficiente para deixar todos os seus preconceitos de
lado.
Sim, é preciso coragem para se compreender um homem com uma visão tão
preconcebida, mas olha para cada coisa tal como ela realmente é. Ele não
ensina é isto: a enxergar com clareza. Em vez de mostrar o que você deve ver,
Pois é a sua própria clareza de visão que irá lhe revelar a verdade. Zaratustra
não vai lhe entregar a verdade de bandeja, como se fosse uma coisa que se
encontra em qualquer esquina. Ele nunca permitiria que a verdade fosse assim
tão barata. Porque tudo que é barato e fácil demais não pode ser verdadeiro. A
verdade exige que você seja um jogador habilidoso e destemido, que esteja
disposto a arriscar tudo que está em jogo em nome dela. Mas lembre-se: a
verdade nunca poderá ser sua, você não tem como possuí-la. Pelo contrário –
somente se estiver pronto para ser possuído pela verdade é que poderá chegar
até ela.
religiões e as supostas regras morais, que, se você não deixar a sua mente de
lado, não será capaz sequer de ouvir o que ele tem a dizer, que dirá, então, de
compreendê-lo. Zaratustra lança os mais puros diamantes para que você possa
encontrá-los pelo caminho. No entanto, pode ser que você permaneça cego,
que prefira manter os olhos fechados a tudo isso, simplesmente para que
você não for incomodado, se ninguém perturbar a sua pasmaceira, você não
estrelas mais distantes, nunca será atiçado pelo anseio de se tornar um super-
homem. É preciso que você seja sacudido – e sacudido sem a menor piedade.
Isso é algo que só mais tarde você terá condições de compreender, mas, um dia,
irá compreender: que, na verdade, tudo que ele faz é por compaixão – a
verdadeira compaixão.
convenientes não é amor. Isso pode até fazer com que você se sinta bem, mas é
ser humano precisa transcender a si mesmo. Agora, por que ele iria querer
precisa ser destruído; seu comodismo tem que ser destroçado; seus preconceitos
têm que ser chacoalhados e extirpados pela raiz. Suas crenças, seus deuses e
ideologias devem ser incinerados. É preciso que o ser humano seja deixado
homem – a única esperança que nos resta – poderá surgir e, enfim, tomar o
nos acostumando com a sua podridão, acabamos nos habituando ao seu mau
cheiro insuportável.
O escritor Khalil Gibran tem uma história que ilustra bem esse fato. É sobre a
esposa de um pescador que, certo dia, sai do vilarejo onde vivia com o marido
para vender seus peixes na cidade. Após vender todos os peixes, ela tomou o
caminho de volta para casa, mas acabou cruzando com uma antiga conhecida
pelas ruas da cidade. Elas tinham sido colegas de escola, mas essa amiga havia
se tornado uma mulher muito rica, e já fazia anos que não se viam. Feliz por
e ela tinha certeza de que sua velha amiga ficaria muito contente.
Então, antes de irem dormir, ela mandou que trouxessem muitas e muitas
jeito nenhum, só ficava se revirando na cama, para lá e para cá. E, como ela
não dormia, sua anfitriã também não conseguia pregar o olho. Finalmente, a
A esposa do pescador, então, disse: “Você terá que me perdoar. Por favor,
apenas me traga aqueles sacos de pano que usei para levar os peixes ao
peixe, vou cair no sono imediatamente. O perfume dessas rosas é que não me
deixa dormir”.
sujos foram borrifados com água e, em pouco tempo, o quarto inteiro já estava
fedendo a peixe. A hóspede ficou radiante: “Agora, sim, vou conseguir dormir
humanidade atual – essa é a razão pela qual não percebemos quanto ela é
repugnante. Não enxergamos toda a sua feiura, toda a sua avareza, toda a sua
humanidade.
Zaratustra diz:
Vou agora pôr na balança as três coisas mais ruins e sopesá-las humanamente bem. [...]
Gostaria que você reparasse bem na palavra usada por ele: humanamente –
inimigo; pelo contrário, é o melhor amigo que ela poderia ter. Ele só execra o
estado em que vivemos hoje porque sabe que, na realidade, temos o potencial
para ir muito mais longe, para alcançar estágios muito mais elevados. Não
do seu profundo amor por aquilo que ela poderá ser no futuro, pela chegada
Se você analisar os textos sagrados dos mais diferentes credos, ficará surpreso:
o que eles exigem de você é algo tão contrário à sua própria natureza, que,
mesmo que quisesse, você nunca seria capaz de cumprir. Agora, o que
certamente você não sabe é o verdadeiro motivo pelo qual lhe fazem tal tipo de
exigências impossíveis; afinal, eles sabem muito bem que você nunca teria
condições de cumpri-las. Mas, se é assim, por que então fazem esse tipo de
exigência? O propósito oculto por trás de tudo isso é apenas um: fazer com que
você se sinta culpado. E a única forma de fazer com que você viva cheio de
natureza, coisas que, não importa quanto tente, você nunca conseguirá realizar;
Veja uma outra história que me contaram, sobre um homem que tinha ido a
uma loja de brinquedos atrás de presentes para seus filhos. Ele já estava havia
madeira. Porém, ele tentava de um jeito, tentava de outro, mas não conseguia
resultado era sempre um fracasso. Ele, então, disse ao vendedor: “Veja bem, eu
descobrir o segredo disso. Como é que você espera que crianças pequenas
cabeça não foi feito para ser solucionado. Ele foi criado como uma
que você fizer, não importa quanto tentar, o enigma não pode ser resolvido.
No caso das religiões, o que elas sempre fizeram foi lhe dar quebra-cabeças
indigno, não merecedor. Elas querem destruir o seu orgulho, a sua dignidade –
pois, quanto mais o seu orgulho e dignidade forem destruídos, mais você se
com o maior peso possível. Estará sempre conformado e resignado com a sua
triste sina de camelo – sim, esse é o seu destino; você não é um leão, e não vale
a pena ficar sonhando que, algum dia, poderá ser forte como um leão.
Você nasceu para ser escravo – todas as crenças e ideologias políticas querem
que você chegue a essa conclusão a respeito de si. Elas têm uma única intenção:
fazer com que cada ser humano sinta que nasceu para ser um escravo, para se
prostrar diante de ordens superiores, para venerar deuses fictícios, para ajoelhar
de que não tem nenhum valor ou merecimento, você perde todo o respeito e o
amor que tinha por si próprio. E, se você não é capaz de amar a si mesmo,
como pode esperar que alguma outra pessoa o ame? Na verdade, é quase
sempre um choque quando alguém lhe diz: “Eu te amo”. Você não consegue
todos pensam assim: “Eu mesmo não consigo me amar, e agora chega essa
pessoa dizendo que me ama. Coitada, isso só pode significar uma coisa: ela
família ou alguma outra coisa atravessam o seu caminho e o casal não pode
ficar junto. Todas as grandes histórias de amor são sobre casais que não
conseguiram ficar juntos. É algo curioso: não há uma única história de amor
famosa que fale da vida dos amantes após o casamento. Todas terminam
quando o casal de apaixonados se casa – elas dizem: “E, então, eles viveram
felizes para sempre”. Mas não ficamos sabendo de nenhum detalhe a mais; a
Agora, de uma coisa tenho certeza: se, por acaso, os protagonistas das
conseguido ficar juntos, em pouco tempo já estariam diante do juiz para pedir
o divórcio. Não haveria nenhuma grande história para contar sobre eles.
Todo o esforço que, há séculos, vem sendo feito no mundo visa a um único
objetivo: fazer com que você odeie a si mesmo, com que nunca se aceite tal
Mas Zaratustra deixa bem claro o quanto essa gente é dissimulada, o quanto
Volúpia, ânsia de domínio, egoísmo : essas três foram até agora as mais bem amaldiçoadas e mais
terrivelmente caluniadas e aviltadas – essas três vou agora sopesar humanamente bem. [...]
Zaratustra cita mais uma vez a palavra humanamente . Isso é algo que ele
sua própria natureza humana, valores antinaturais que irão apenas deixá-lo
estropiado, mutilado, que irão apenas cortar as suas asas, que irão apenas
submetê-lo a um tal nível de escravidão psicológica, que será muito difícil você
própria escravidão – pois é algo que parece ser mais seguro, mais conveniente,
para exibir virtudes que são contrárias à sua própria natureza humana, mais ele
lo, as pessoas irão olhar para ele como se fosse um santo. Afinal, nenhuma delas
é capaz de ter a disciplina e as virtudes que ele tem; elas até tentaram, mas esse
homem deve ser excepcional mesmo, pois ele, sim, tem tudo isso. Acontece
que, muito provavelmente, o que esse homem tem é dupla personalidade. Ele
tem duas caras: uma que exibe para o mundo, e outra de uso privado, que ele
vive em segredo. O ser real vive escondido, nos subterrâneos. Enquanto isso, na
superfície, ele finge ter todas essas virtudes que são humanamente impossíveis.
Porém, quando se olha humanamente para a volúpia, para o prazer advindo dos
Uma delas é esta: se você renunciar ao prazer sensual, que é aquilo que os
ditos santos e beatos lhe pedem que faça, ficará cada vez mais insensível, sua
sensibilidade ficará a cada dia mais atrofiada. É o prazer que mantém os seus
prazer sensual, você estará abdicando da sua própria sensibilidade. Você vai
olhar para uma rosa, mas será incapaz de enxergar a sua beleza; vai olhar para a
lua cheia no céu, mas será incapaz de ver o seu esplendor – pois, para enxergar
Se você não consegue ver a beleza de uma mulher, como poderá ver a beleza
estiver com todos os sentidos vivos e vibrando, nunca será capaz de realmente
escultura, de um poema.
dia estará morta. E, a partir do momento em que todos os seus sentidos estão
Pois qual é a diferença entre um cadáver e uma pessoa que está realmente
viva? A pessoa que está viva tem sensibilidade; todos os seus sentidos estão
ela é capaz de reconhecer a beleza mais profunda de uma obra de arte; ela pode
sentir a imensa alegria de um grande poema. Mas tudo isso só é possível se ela
também permitir que a sua experiência do prazer sensual se mantenha viva, que
E Zaratustra segue falando sobre isso que, até hoje, está entre as três coisas
Volúpia: um adocicado veneno apenas para o emurchecido, mas para os de vontade leonina o grande
verdade, ele o faz sem a mínima preocupação de se alguém irá escutá-lo ou não.
Mesmo que seja algo que vá contra o mundo inteiro, ele sustentará essa
Ele afirma que a volúpia é um adocicado veneno apenas para o emurchecido ...
vida que os inteligentes devem seguir. É a grande massa quem cria as doutrinas
que todos devem abraçar, os mandamentos a que todos devem obedecer. Todas
Na verdade, pode até ser que essas regras sejam bastante adequadas para eles –
todos são ovelhinhas; também existem leões. E um leão não pode ser forçado a
viver como uma ovelha. A única coisa que se pode fazer é colocá-lo numa jaula,
fracos e medíocres, que foram enjauladas pela multidão. Pois não há dúvida de
impor um estilo de vida que pode ser adequado para elas mesmas, sim, mas
que significa apenas escravidão e morte para os que são fortes. Na realidade, há
uma distinção bem clara a fazer: a mesma coisa que para alguém pode ser um
remédio para outra pessoa pode ser um veneno. Depende apenas de a quem
*
essa coisa é oferecida .
reservado . Ele transforma o próprio prazer em algo sagrado. Se, para você, o
prazer é um veneno, não é culpa do prazer, mas, sim, da sua fraqueza. Seja
forte! É isto que ele diz: seja forte! Porém, todos os autoproclamados líderes
religiosos lhe dizem exatamente o contrário: seja fraco, seja manso; renuncie
aos prazeres sensuais, renuncie a tudo que diz respeito aos sentidos. Acontece
que, quanto mais você renunciar a eles, mais fraco se tornará, pois perderá todo
cova.
O que Zaratustra lhe diz é isto: se o prazer lhe cai como um veneno, significa
apenas que você precisa se fortalecer. Você precisa aprender a disciplina que o
ajudará a ficar mais forte. Pois não é ao prazer que devemos renunciar, mas à
nossa fraqueza. Sim, todos nós devemos nos fortalecer ao ponto de poder
apreciar o vinho dos vinhos sem sermos envenenados por ele, mas, pelo
A sensualidade tem sido condenada de tal forma, há tanto tempo, que os seres
arrancadas; deixaram apenas umas poucas raízes, para que você possa ao menos
Volúpia: a grande imagem de felicidade para uma superior felicidade e suprema esperança [...]
O prazer deve ser compreendido como um indício de que uma forma ainda
maior de felicidade é possível. Tudo vai depender da sua própria maestria nisso,
do modo como você usa a sua própria energia vital – se você não vai ficar
frivolamente preso à esfera da volúpia. Pois o prazer sensual é apenas uma seta
como se, durante uma jornada, você deparasse com uma seta no caminho,
parasse ali. Não faça isso, siga em frente! Os renunciadores, claro, lhe dirão o
contrário: “Destrua essa seta, apague esse sinal; ignore essa indicação”. Agora,
se você fizer isso, quem irá lhe mostrar que ainda há um longo caminho a
percorrer, que ainda há uma longa jornada até que, finalmente, alcance a
O prazer é apenas o começo, não o fim. Porém, se você negar o começo, terá
que, às vezes, a coisa mais óbvia é a primeira a ser ignorada. Enquanto isso, os
qual se pode subir – se você retirar a escada, nunca poderá alcançar o nível
renunciar, não haverá nada para transcender”. Desfrute os prazeres que vêm
preciso ir mais além”. Mas o prazer dos sentidos lhe mostrou o caminho. Você
ficará grato ao prazer – e não contra ele. Pois sabe que ele não roubou nada de
Volúpia: a grande imagem de felicidade para uma superior felicidade e suprema esperança [...] para
O prazer é uma ponte entre o homem e a mulher. Sim, porque não há dúvida
Mas isso está longe de ser um infortúnio. Quanto maior é a distância entre o
entre eles, maior é o impulso de se juntarem. Quanto mais estranhos eles são
mutuamente.
esse aprendizado, você nunca será capaz de alcançar níveis mais elevados de
– e quem compreendeu totalmente quão estranhos um ao outro são o homem e a mulher? [...]
exemplo, por que uma mulher tem que assumir o sobrenome do marido após
eles se casarem? Trata-se apenas de uma maneira sutil de deixar claro para ela
que, a partir de agora, ela é secundária. Ela não tem mais uma identidade
própria; a partir de agora, sua identidade é seu marido. Não é à toa que
nenhum casamento consiga ser pacífico. Onde quer que exista algum desejo de
um dominar o outro, haverá conflitos e hostilidade. Essa é uma das razões pelas
**
quais os casamentos só criam um inferno .
Ânsia de domínio: tição e açoite dos mais duros entre os duros de coração; o horrendo martírio
reservado ao mais cruel; a sombria chama das fogueiras que vivem. [...]
Ânsia de domínio: ante seu olhar o homem rasteja, se curva, se submete e se torna mais baixo do que
serpente e porco: – até que finalmente o grande desprezo grita de dentro dele [...]
Ânsia de domínio: que, no entanto, também sobe sedutoramente aos puros e solitários e até alturas
que bastam a si mesmas, ardente como um amor que sedutoramente pinta purpúreas bem-
Ânsia de domínio: mas quem chamaria “ânsia” quando o que é alto desce, desejando o poder? Em
Aqui, é preciso enxergar as coisas de forma bastante ampla, por todos os seus
dominar é algo que arde no coração de cada pessoa. Mas Zaratustra não é a
favor desse tipo de vontade – isso não passa de algo destrutivo e horrendo.
fizeram essa distinção – para elas, só existe ânsia de domínio, e não há nada
nela que possa trazer alguma contribuição positiva para a humanidade. Por sua
vez, Zaratustra sabe que essa vontade carrega um potencial tão grande em si
mesma, que ela pode se tornar a maior força criativa do planeta. Mas, para isso,
não pode ser uma ânsia; na verdade, não poderia nem ser chamada de ânsia.
Ânsia de domínio: mas quem chamaria “ânsia” quando o que é alto desce,
Â
Ânsia de domínio significa poder sobre os outros; vontade de poder significa
poder sobre si mesmo. A vontade de poder não tem nada a ver com dominar os
mesmo, cada vez mais poderoso, cada vez mais radiante, cada vez mais forte,
cada vez mais integrado, cada vez mais parecido com um leão – você se torna
A vontade de poder não tem nada a ver com o outro. Ela é o seu próprio
potência máxima de seu ser. Ela não destrói ninguém; pelo contrário, ela pode
ser uma tremenda inspiração para os outros. Aliás, não há como ela não ser um
grande incentivo para os demais. Quando uma pessoa que costumava viver no
ímpeto em você, no seu ser – uma vontade que, até então, estava adormecida,
hibernando em seu interior –, isso pode lhe mostrar que, sim, você também é
capaz de elevar-se às alturas, você também tem todo o potencial para isso.
vontade de eternidade.
Eles condenaram o lado negativo da ânsia de domínio, o que foi correto, mas
Que a altura solitária não permaneça eternamente solitária e bastando a si mesma; que a montanha
Oh, quem encontraria o nome certo de virtude para batizar esta ânsia? “Virtude dadivosa” – assim
E também aconteceu então – em verdade, pela primeira vez! – que sua palavra beatificasse o egoísmo , o
– de uma alma poderosa, a que pertence o corpo elevado, o corpo bonito, vitorioso, animador, em
Com suas palavras sobre o que é bom e ruim, esse prazer-consigo se protege como com bosques
sagrados; com os nomes de sua felicidade, bane de sua presença tudo que é desprezível.
Bane para longe de si tudo que é covarde; diz: “Ruim – isso é covarde!”. [...]
A desconfiança timorata vale pouco para ele, assim como todo aquele que prefere juramentos a olhares
e mãos [...]
Menos ainda vale para ele o obsequioso fácil, o ser canino, que imediatamente se deita de costas, o
humilde [...]
É-lhe odioso, e até mesmo nojento, quem jamais quer se defender, quem engole escarros venenosos e
olhares maus, o ser demasiado paciente, com tudo tolerante, com tudo satisfeito: pois isso é maneira
de servo.
Seja alguém servil ante os deuses e os pontapés divinos ou ante os homens e as estúpidas opiniões
Ruim: assim chama ele a tudo que se curva e é tacanho-servil, aos submissos olhos que pestanejam, aos
corações oprimidos e àquela falsa maneira indulgente que beija com lábios amplos e covardes. [...] –
E que precisamente isto fosse considerado e chamado virtude, pregar terríveis peças no egoísmo! E
“sem-ego” – assim desejariam ser, com bom motivo, todos esses covardes [...] cansados do mundo!
Contudo, os covardes fazem de tudo para que coisas como altruísmo e serviço
Por exemplo, se você for até a Índia, irá encontrar milhares e milhares de
mendigos espalhados pelo país inteiro. E cada um deles irá lhe dizer: “Por
favor, me dê alguma coisa. Doar aos necessitados é uma virtude, e você será
imensamente recompensado por isso; Deus vai lhe dar em dobro”. Agora, a
vivemos numa sociedade insana, que, entre outras coisas, continua produzindo
crianças que ela mesma não tem como alimentar. É algo inacreditavelmente
Para você ter uma ideia, mais da metade de toda a riqueza da Índia está
menos uma refeição por dia já é considerado uma pessoa de sorte. Há milhões
de pessoas que sobrevivem apenas das raízes das árvores – como não têm
quase meio bilhão de pessoas terá morrido de inanição somente na Índia. Nem
Enfim, dar esmolas está longe de ser uma virtude. A inteligência, sim, deveria
estas coisas é que deveriam ser consideradas virtudes. Dar esmolas aos
mendigos só faz com que eles continuem a existir. Os mendigos de hoje geram
têm muitos filhos – afinal, o fato de ter filhos acaba sendo economicamente
esmolas. Quanto mais filhos você tiver, melhor para a sua profissão.
única virtude. Todo esse altruísmo servil é fruto apenas do desejo de covardes –
de que alguém cuide de suas doenças; enfim, de que exista sempre alguém
Uma sociedade realmente sadia irá evitar que existam pessoas que necessitem
Nós podemos ter uma sociedade perfeitamente saudável. Podemos ter uma
Mas isso só será possível se todas as pessoas carregarem nos próprios ombros a
É isso que Zaratustra chama de egoísmo sadio. E, se, por acaso, você tiver
muito para compartilhar, deve fazê-lo por alegria, e não por dever. O seu
compartilhar deve ser um prazer, não uma obrigação. Trata-se de uma alegria,
aquilo que sabe e profetiza: “Vê, ele está chegando, ele está próximo, o grande meio-dia!”
como sendo o grande meio-dia – quando o egoísmo será algo sadio e bem-
aventurado; quando tudo aquilo que antes era condenado será redimido, e
tudo aquilo que for humano e natural será declarado sagrado, será a nossa nova
natureza; não existe necessidade de nenhuma outra forma de religião a não ser
a natureza.
* Em um dos aforismos do livro A gaia ciência, que antecede o seu Zaratustra, o próprio Nietzsche
traz uma ideia semelhante: “O veneno que mata as naturezas fracas é um fortificante para o forte –
e ele nem o chama de veneno”. (N. do T.)
** Em relação à questão do matrimônio, Nietzsche define de forma lapidar qual deve ser a essência
de uma união consciente, quando, através de Zaratustra, afirma: “Matrimônio: assim chamo à
vontade a dois de criar um que seja mais do que aqueles que o criaram. Reverência de um pelo
outro, daqueles animados de tal vontade, chamo eu ao matrimônio. Que seja este o sentido e a
verdade de teu matrimônio. […] Assim aconselho a todos os indivíduos honestos; […] Não apenas
a vos propagar, mas a vos elevar – a isso, ó meus irmãos, vos ajude o jardim do matrimônio!”. (N.
do T.)
Capítulo 10
A seriedade é um pecado
Qual foi, até agora, o maior pecado aqui na terra? Não foi a palavra daquele que disse: “Ai daqueles
Ele próprio não achou na terra motivos para rir? Então procurou mal. Até mesmo uma criança
encontra motivos.
Ele – não amou o suficiente: senão teria amado também a nós, os risonhos! Mas ele nos odiou e
Deve-se amaldiçoar quando não se ama? Isso – parece-me de mau gosto. Mas assim ele fez, esse
E ele próprio não amou bastante: de outro modo, não se zangaria tanto por não o amarem. O que
Evitai os intransigentes como esse! É uma espécie doente e pobre, uma espécie plebeia: eles veem a vida
Evitai os intransigentes como esse! Eles têm pés pesados e corações carregados: – eles não sabem
Esta coroa do homem que ri, esta coroa de rosas: eu mesmo a pus em mim, eu mesmo declarei santa a
minha risada. Nenhum outro encontrei, hoje, forte o bastante para isso.
Zaratustra, o dançarino, Zaratustra, o leve, que acena com as asas, pronto para o voo, fazendo sinal a
Zaratustra, o profeta, o adivinho risonho, nada impaciente, nada intransigente, alguém que ama saltos
Ó homens superiores, o pior que há em vós é: não aprendestes a dançar como se deve dançar – indo
Quanta coisa é ainda possível! Então aprendei a rir indo além de vós mesmos! Erguei vossos corações, ó
Esta coroa do homem que ri, esta coroa de rosas: a vós, irmãos, arremesso esta coroa! Declarei santo o
“Esta é a minha manhã, o meu dia raiou: sobe, então, sobe, ó grande meio-dia! ” –
Assim falou Zaratustra, e deixou sua caverna, ardente e forte como o sol matinal que surge por trás de
escuras montanhas.
Z
aratustra tem toda a razão quando pergunta: Qual foi, até agora, o maior
pecado aqui na terra? Não foi a palavra daquele que disse: “Ai daqueles que
agora riem!”?
Uma das maiores crueldades feitas contra a humanidade foi fazer com que os
homens se tornassem sérios, graves, tristes e soturnos. E isso tinha que ser feito
porque, se não fosse assim, seria impossível fazer com que o homem se tornasse
físico, pois alguém que não pode rir nunca poderá ser realmente saudável e
inteiro.
nosso ser. Quando você ri, o seu corpo, a sua mente e o seu espírito também
desaparece. Isso, porém, vai contra todos aqueles que sempre quiseram
ardilosos. O único intento desses seres sempre foi fazer com que o ser humano
se tornasse fraco, doente, incapaz – o lema deles é este: faça com que as pessoas
uma castração espiritual. Por exemplo, você já viu a diferença entre um touro e
para puxar carroças por aí. Você não consegue colocar um touro para puxar
sob controle; ele tem uma individualidade própria. O boi, por sua vez, é apenas
um eco muito distante daquilo que um dia ele foi; ele não passa de uma
sistematicamente condenada como sendo algo infantil, como sendo uma coisa
mesma que existe entre um boi e um touro. O riso verdadeiro é total. O sorriso
maneirismo, uma afetação fingida de boas maneiras. A risada pura não conhece
O riso traz a sua energia de volta para você. Cada fibra do seu corpo ganha
vida de novo, cada uma de suas células começa a dançar. Zaratustra tem razão
quando diz que o maior pecado cometido contra o ser humano neste planeta
foi ele ter sido proibido de rir. As implicações dessa interdição são profundas,
pois, quando você está proibido de rir, significa que, consequentemente, está
Ao se proibir o riso, destrói-se tudo aquilo que é mais belo na existência, tudo
aquilo que dá sentido à vida, que faz com que ela seja uma experiência viva e
humanidade.
diferente de seriedade. Um homem sério não sabe rir, não sabe dançar, não
sabe brincar. Ele está sempre controlando a si mesmo; ele foi educado de tal
forma que se transformou no carcereiro de seu próprio ser. Por outro lado, um
homem íntegro sabe rir de forma sincera, verdadeira, sabe dançar com
sinceridade, sabe alegrar-se com autenticidade. Seriedade não tem nada a ver
necessitam é de seres humanos que não sejam rebeldes, que estejam sempre
Ele próprio não achou na terra motivos para rir? Então procurou mal. Até mesmo uma criança
encontra motivos.
gargalhando por aí são as crianças. Mas, nesse caso, com toda a indulgência e
superioridade, os adultos conseguem perdoá-las por isso; afinal, elas ainda são
fazer com que as crianças se tornem civilizadas, sérias, obedientes, é para fazer
Você está proibido de ter opiniões próprias. Deve ser apenas cristão, hindu ou
de pensar por si mesmo – está proibido de ser você mesmo. A sua única
permissão é fazer parte de uma multidão. Acontece que fazer parte de uma
E Zaratustra lhe pergunta: “Ora, será que você não é capaz de encontrar nada
no mundo que o faça rir, que o faça dançar, que lhe traga alegria? Até mesmo
uma criança consegue achar motivos para isso”. Mas o fato é que a sua mente
foi entulhada com tantos preconceitos, que, hoje, seus olhos estão quase cegos,
seu coração está praticamente morto. Você foi transformado num cadáver
ambulante.
Ele – não amou o suficiente: senão teria amado também a nós, os risonhos!
A realidade é que, na nossa sociedade, alguém que ria de forma total – que
estar sempre sério, com a aparência mais sóbria e grave possível, pois isso
mostra que você, de fato, é uma pessoa sã, civilizada. Essa coisa de dar risadas é
Não consigo nem imaginar, por exemplo, que uma figura como a que
apresentam de Jesus tenha alguma vez soltado uma gargalhada na vida. Claro,
pregado na cruz ele não consegue rir mesmo; para isso, seria preciso um
gente que foi capaz de rir na cruz. Mas experimente entrar em qualquer igreja e
repare na imagem de Jesus pregado na cruz. Ele invariavelmente está sério, com
o semblante grave, e toda essa seriedade e essa gravidade espalham-se pela igreja
inteira; soltar uma risada ali parece ser algo realmente fora de contexto. Na
verdade, não se encontra uma única menção a que Jesus tenha rido alguma vez
na vida. Bom, mas o filho primogênito de Deus tinha que ser muito sisudo
mesmo; afinal, ninguém jamais ouviu dizer que Deus tenha soltado alguma
gargalhada também.
Esse Jesus dos cristãos nunca conseguiria rir por um simples motivo: ele está
ainda ficou à espera de um milagre – que, do meio das nuvens, surgiria uma
grande mão celestial que o tiraria da cruz, deixando claro para o mundo
inteiro: “Não posso assistir a meu próprio filho ser crucificado. Eu o enviei
para que ele os salvasse, mas eis que, em troca, vocês o tratam dessa maneira
Então, ao olhar para o céu e ver que nada acontecia, ele gritou do alto da
esperar, um homem assim nunca será capaz de rir. Sua vida será uma repetição
As crianças, por sua vez, têm plena capacidade de rir – pois não esperam por
nada em particular. Como não estão ocupadas esperando por algo, seu olhar é
suficientemente claro para ver tudo que se passa a seu redor – e o mundo é
cheio de coisas absurdas e ridículas das quais se pode rir. Há tantas escorregadas
em cascas de banana, há tantas trapalhadas por aí, que uma criança não
consegue deixar de ver tudo isso! São as nossas expectativas e suposições que
A verdade é esta: como todos os poderes constituídos são contra a vida, eles
não têm como ser a favor do riso. Pois o riso é uma parte essencial da vida e do
amor. E todos esses religiosos, políticos e governantes são contra a vida, contra
o amor, contra o riso, contra a alegria – eles são contra tudo que possa fazer da
humanidade inteira. Eles arrancaram tudo que existe de vivo no ser humano. E
todos devem seguir. Acontece que esses homens não passam de figuras
escada perfeita, o modo infalível para alguém se tornar cada vez mais
Mas o fato de você torturar a si mesmo significa apenas isto: que você é
nada a se venerar nessa atitude; trata-se apenas de uma forma lenta de suicídio.
Porém, faz séculos que temos nos sujeitado a esse suicídio prolongado, e isso só
acontece porque foi cravada em nossa mente a ideia de que o corpo e a alma
são inimigos entre si. Quanto mais você torturar o corpo, mais espiritual você
será – quanto mais permitir que o seu corpo se deleite, se alegre, ame e ria,
menos espiritual você será. Essa dicotomia é a principal razão pela qual o riso
*
desapareceu da face dos homens .
Ele – não amou o suficiente: senão teria amado também a nós, os risonhos! Mas ele nos odiou e
Média. A função básica do padre era fazer com que as pessoas ficassem
por lá. As descrições dos sacerdotes eram tão intensas, que muitas mulheres
chegavam a desmaiar nas igrejas. Acreditava-se que o melhor padre era aquele
que fazia o maior número de pessoas desmaiar – esse era um dos parâmetros
ideia de céu. Não há saída: aqueles que porventura se divertirem aqui na Terra
medo – imagine só, por causa de alguns simples prazeres e alegrias, desfrutados
ao longo de uns meros setenta anos de vida, você terá que padecer no inferno
escreveu o livro Por que não sou cristão . Ele disse: “A primeira coisa que me fez
tomar essa decisão foi a ideia absolutamente injustificada de que, por conta de
meus pequenos pecados, posso ser punido por toda a eternidade. Se eu somar
que cometi apenas na imaginação – mas não de fato –, até o juiz mais rigoroso
não pode me mandar para a prisão por mais de quatro anos e meio. Ou seja, eu
poderia até ser preso, mas não teria que sofrer por toda a eternidade só por
causa desses simples pecados. Nesse sentido, que tipo de justiça é essa praticada
pelos cristãos? Não parece haver a menor relação entre o crime e o castigo”.
Já faz décadas que esse livro foi publicado e, até hoje, não foi refutado por
nenhum teólogo cristão. Na realidade, não há como ele ser refutado. Por
exemplo, que argumento poderia ser usado para defender essa ideia de uma
punição eterna no inferno? Como se pode justificar uma coisa dessa? Afinal, de
sabe, após viver milhões de vidas, uma pessoa consiga acumular tantos pecados
Bertrand Russell, dizendo que ele estava condenado ao inferno. Mas isso não é
certamente será um lugar muito mais saudável do que o céu – porque, no céu,
você só vai encontrar essas figuras cadavéricas que têm sido chamadas de
santos, essas criaturas lastimáveis que não fazem nada além de torturar a si
Por outro lado, no inferno você vai encontrar todos os poetas, pintores,
escultores, filósofos, místicos – enfim, você vai encontrar todas essas pessoas
fascinantes cuja companhia será uma verdadeira bênção. Sócrates estará por lá;
da mesma forma que o Buda Gautama também estará – uma vez que ele foi
condenado ao inferno pelos hindus, por não acreditar em muitas das coisas
escritas nos Vedas , que são a base de todo o hinduísmo. Outro que você vai
encontrar por lá é Mahavira, que também foi mandado para o inferno por ter
grandes cientistas, místicos e artistas que fizeram desta Terra um lugar mais
bonito.
Ao contrário de todos esses santos penitentes, que até hoje não deixaram
contribuição alguma para a humanidade. Eles são o tipo de gente mais tola e
estéril que existe. Há séculos, não passam de um fardo para as outras pessoas;
eles são como parasitas, sempre sugando o sangue dos pobres seres humanos. A
única coisa que fizeram foi torturar a si mesmos e, ao mesmo tempo, ensinar
todas essas criaturas hediondas, todos esses censuradores que não sabem amar,
que não sabem rir, que não sabem cantar, que não sabem dançar – todos esses
alegria, por menores que sejam. Uma gente doente para quem a dor é algo
Hoje em dia, a psiquiatria moderna já sabe perfeitamente bem que todos esses
não tem que venerá-los. Pelo contrário. Se você cruzar com algum deles por aí,
própria existência é algo que causa náuseas. Apesar disso, há tempos têm sido
inteira sentir algum tipo de náusea – eles criaram uma atmosfera fétida e
Deve-se amaldiçoar quando não se ama? Isso – parece-me de mau gosto. Mas assim ele fez, esse
Por exemplo, não consigo imaginar que alguém como Jesus não tenha
que eu realmente sou o único filho de Deus?”. É impossível que ele não tenha
se questionado sobre isso... Na verdade, quando mais ele repete que é o único
filho de Deus na Bíblia , mais tenho certeza de que essa repetição serve apenas
para reprimir a sua própria dúvida. Inconscientemente, ele teme que, se não
repetir o bastante, sua dúvida possa vir à tona. Essa repetição toda não é para
que possam convencer a si mesmas. Quando Jesus vê que algumas pessoas estão
convencidas de que ele é o filho de Deus, isso faz com que a sua própria dúvida
convicção dos outros. Mas ele precisa ficar repetindo isso o tempo todo, pois
qualquer intervalo mais longo pode ser perigoso – sim, porque nesse intervalo
crença só existe para que se consiga reprimir a dúvida; a única função da crença
é essa. Por exemplo, você nunca diria que acredita no sol; você nunca subiria
no topo de um telhado para gritar lá de cima: “Eu acredito no sol”, “Eu creio
Se fizesse algo assim, as pessoas simplesmente lhe diriam: “Desça logo daí e
trate de arranjar alguma coisa útil para fazer. Por que está desperdiçando o seu
tempo? Nós também acreditamos na existência do sol, da lua e das rosas. Qual
alto dos telhados e anunciem a toda gente que o profeta pelo qual todos
único filho de Deus, de que ele traz uma mensagem direta do Criador.
que lhes falo”. Mas o fato é este: somente onde há dúvidas, onde existem
Nesse sentido, eu sou um homem absolutamente sem fé – pois tudo aquilo que
é não precisa de fé; tudo aquilo que é requer apenas o saber, e não a crença.
os ateus estão em melhor situação do que os crentes, mas não muito, pois o seu
ateus não podem provar que Deus não existe. Os crentes optaram por uma
forma positiva de crença; e os ateus optaram pelo contrário – por ter uma
mente mais propensa à negação, eles escolheram a crença negativa; a única
diferença é essa. Agora, o fato que ninguém parece ser capaz de perceber é este:
um homem que seja honesto consigo mesmo não pode ter nenhum tipo de
crença.
A existência da dúvida é algo saudável, pois é essa dúvida que irá despertar em
você o anseio para sair numa jornada de busca. A dúvida, em si, representa
verdade. E, assim que você conhece a verdade, essa questão de crença perde
lógica – eles não estão dispostos sequer a escutar algo que vá contra as suas
desatino. Nas escrituras jainistas, encontra-se esta norma para os fiéis: “Mesmo
que tenhas um elefante enfurecido atrás de ti, mesmo que a morte seja certa e
possas salvar a tua vida entrando num templo hindu que esteja ao lado, é
melhor que morras – é melhor que sejas morto por um elefante enlouquecido
do que buscares abrigo num templo hindu”. Veja a que nível de intransigência
exatamente a mesma coisa: “Mesmo que possas salvar a tua vida, é melhor que
sejas morto por um elefante enlouquecido do que buscares abrigo num templo
jainista”.
Imagine só, que tipo de pessoas religiosas são essas? Que tipo de textos
sagrados são esses? Qual é o mal que um templo jainista pode causar para um
hindu? E vice-versa, que mal um templo hindu pode fazer para um jainista?
Pois o mal terrível é este: pode ser que você escute algo que vá contra a sua
crença, e isso pode abalar a sua fé. Ou seja, é melhor morrer do que ter a sua fé
abalada! Agora, a meu ver, uma fé que pode ser abalada simplesmente não tem
o menor valor. E qualquer fé sempre será abalada, a não ser que ela consista no
seu próprio saber – mas, daí, já não é algo que possa ser chamado de “fé”.
Mas... esse homem intransigente. Ele veio da plebe . E a plebe vive no nível mais
baixo de inteligência.
de ter ofendido a sua fé – tudo porque, certo dia, eu disse que a Bíblia contém
página, e ler.
teriam me chamado para um debate. Mas inteligência parece ser algo bastante
raro hoje em dia. E a plebe é isso, a multidão é isso – uma massa mentalmente
terá vergonha de suas próprias vestes, terá vergonha de ocultar qualquer coisa.
Ele será como um livro aberto”. Bom, mas, caso você cruze com Zaratustra por
aí, não se esqueça de lhe dizer: “É melhor não deixar o seu super-homem ir até
a Índia, pois os comissários de polícia indianos não permitirão que ele tenha
falsos moralismos defendidos por eles não estão só na Bíblia – por exemplo, há
vários textos sagrados do hinduísmo que são repletos do que podemos chamar
disso. E não é só nas escrituras que há pornografia – se você for aos templos
esculturas tão obscenas que é quase impossível acreditar. Que tipo de pessoas,
que tipo de mentes, que tipo de gente reprimida criaria tal tipo de coisa? São
Bom, mas pelo menos as pessoas ainda têm a permissão de fantasiar – ainda
Konarak, ficará estupefato; você não vai acreditar no que vê. Que tipo de
mentes doentias, que tipo de gente terá feito aquelas esculturas? Você encontra
todo tipo de sexo grupal, todo tipo de orgias e bacanais esculpidos nos
templos. Devem ter gasto centenas de anos para construir todos esses templos,
para esculpir toda essa pornografia. E não há um único devoto hindu que faça
nenhuma objeção a isso. Porém, se você levantar alguma questão, vão acusá-lo
Ora, se por acaso eu disser algo errado, em vez de me processar, essas pessoas
irem correndo para o tribunal revela apenas a sua própria fraqueza, só mostra
que elas precisam sempre do suporte da lei, do governo, pois não têm
Todo dia alguém abre algum processo desse tipo contra mim. Já faz décadas
que isso acontece; são tantos processos que até já perdi a conta. Porém, em
nenhum desses processos, por uma única vez sequer, eles foram capazes de
provar alguma coisa contra mim – simplesmente porque tudo que eu havia
Ou seja, se eles acham que é preciso abrir um processo contra alguém, que
Veja outro caso desses que abriram contra mim, dessa vez na cidade de
corte do Tribunal Superior de Justiça, e a pessoa que me acusava disse que meu
Himachal Pradesh. Só que o juiz que conduzia aquela audiência deve ser um
homem inteligente, pois, após ouvir a acusação, ele disse: “Veja bem, eu
também vivo em Himachal Pradesh, e também sou hindu, mas não me sinto
nada ofendido pelas afirmações que estão nessa obra. Desse modo, não fale em
nome de todos os hindus que vivem em Himachal Pradesh. Fale apenas em seu
não me sinto ofendido. Aliás, esse livro foi publicado há quase duas décadas –
línguas do mundo. Bom, mas o juiz pediu para ver o exemplar que aquele
homem havia levado como prova de acusação. Acontece que, ao notar que o
homem. Ao que o juiz replicou: “Então onde é que conseguiu este livro? Por
acaso ele foi roubado? Pois está claro que este exemplar não lhe pertence”. E o
sujeito ficou completamente mudo. É bem provável que ele tenha roubado
aquele livro!
verdade, esse meu livro fala unicamente sobre como transformar a energia
sexual em energia espiritual. Nesse sentido, não acredito que nenhuma pessoa
verdadeiramente religiosa poderia sentir-se ofendida por ele. Pelo contrário. Ela
E o juiz, além de inteligente, também foi bem paciente, pois o sujeito logo
foram ofendidos, pois esse homem afirma que através do sexo se pode alcançar
experimentou fazer o que ele diz? Se ainda não o fez, em que está se baseando
para afirmar que ele está errado? Experimente primeiro; daí, quem sabe, possa
afirmar algo”.
“Além disso, o que tudo isso tem a ver com o hinduísmo? Não importa se você
não tem nada a ver com religião. E, se alguém está dizendo que há uma forma
de transformar essa energia em algo espiritual, você deveria ficar contente por
isso, em vez de ficar zangado e exigir que essa pessoa seja presa”.
Esse caso ilustra bem o que digo. No entanto, é muito raro encontrar um juiz
com esse nível de inteligência, porque a maioria desses juízes também pertence
à plebe, à multidão. E eles tomam todo cuidado para não emitir um veredicto
que vá contra a vontade da multidão, que vá contra o partido político que está
no poder.
E ele próprio não amou bastante: de outro modo, não se zangaria tanto por não o amarem. O que
O que todo grande amor deseja não é amor – sim, pois não há necessidade
disso; ele já é um grande amor. Ele deseja mais; ele quer algo ainda mais
porém: a outra pessoa ainda está lá, ainda existe uma dependência do outro. A
liberdade suprema ainda não é possível – ela é concebível, mas não possível.
O que todo grande amor deseja não é amor – ele deseja algo mais. Ele já
conheceu o amor; agora, quer transcender o próprio amor. Ele quer subir mais
um degrau, quer se elevar ainda mais. E o amor é o último degrau – para além
Evitai os intransigentes como esse! É uma espécie doente e pobre, uma espécie plebeia: eles veem a vida
Evitai os intransigentes como esse! Eles têm pés pesados e corações carregados: – eles não sabem
No dia em que o ser humano não souber mais dançar, no dia em que não
souber mais rir, no dia em que não souber mais brincar, significa que ele já não
livre; é o riso que lhe dá asas – dançando com alegria, o ser humano pode tocar
vida.
Esta coroa do homem que ri, esta coroa de rosas: eu mesmo a pus em mim, eu mesmo declarei santa a
minha risada. Nenhum outro encontrei, hoje, forte o bastante para isso.
deixam numa grande solitude. E não há como ser diferente – pois a plebe vive
Zaratustra, o dançarino, Zaratustra, o leve, que acena com as asas, pronto para o voo, fazendo sinal a
Zaratustra, o profeta, o adivinho risonho, nada impaciente, nada intransigente, alguém que ama saltos
Ó homens superiores, o pior que há em vós é: não aprendestes a dançar como se deve dançar – indo
Sim, aprenda a... dançar como se deve dançar – indo além de vós mesmos! Esse é
Zaratustra quer que você passe por uma profunda metamorfose – ele quer que
você se torne realmente quem você é. Ele sabe quanto você ainda pode realizar,
que você pode atingir a realização máxima de seu ser. Ele sabe que você tem
todo o potencial para transformar a sua vida em uma celebração, onde todas as
coisas se alegram, cantam, dançam e riem. Zaratustra declara ser ele mesmo o
Quanta coisa é ainda possível! Então aprendei a rir indo além de vós mesmos! Erguei vossos corações, ó
Esta coroa do homem que ri, esta coroa de rosas: a vós, irmãos, arremesso esta coroa! Declarei santo o
“Esta é a minha manhã, o meu dia raiou: sobe, então, sobe, ó grande meio-dia! ” –
Assim falou Zaratustra, e deixou sua caverna, ardente e forte como o sol matinal que surge por trás de
escuras montanhas.
* Em outro trecho de Zaratustra, Nietzsche também alerta contra essa dicotomia entre corpo e alma,
quando diz: “Uma vez a alma olhava com desprezo para o corpo: e esse desdém era o que havia de
maior: – ela o queria magro, horrível, faminto. Assim pensava ela escapar ao corpo e à terra. Oh,
essa alma mesma era ainda magra, horrível e faminta: e a crueldade era a volúpia dessa alma! [...]
Que o vosso espírito e a vossa virtude sirvam ao sentido da terra, irmãos: e que o valor de todas as
coisas seja novamente colocado por vós! [...] Sabendo purifica-se o corpo; tentando com saber ele
se eleva; para o homem do conhecimento, todos os instintos se tornam sagrados; para o elevado, a
alma se torna alegre”. (N. do T.)
Osho International Meditation Resort
Localização
Localizado na cidade de Pune, na Índia, a aproximadamente 160 quilômetros a
bairro residencial.
Meditação
Uma programação diária e personalizada de meditações inclui tanto métodos
™
Meditations . As meditações acontecem no que talvez seja a maior sala de
Osho Multiversity
Sessões individuais, cursos e workshops que abordam temas diversos, como artes
que os seres humanos são mais do que apenas a soma das partes.
dos arredores.
Cozinha
Diferentes áreas destinadas às refeições servem deliciosos pratos vegetarianos
das culinárias ocidental, asiática e indiana – a maioria dos alimentos é cultivada
Programação noturna
É possível escolher entre diversos eventos – e dançar está no topo da lista! Há
Serviços
É possível comprar todos os produtos de higiene básica na galeria. O Osho
gostam de fazer compras, Pune tem diversas opções de lojas, que oferecem
Acomodações
Pode-se ficar nas elegantes acomodações do Osho Guesthouse ou, para estadias
www.osho.com/meditationresort
www.osho.com/guesthouse
www.osho.com/livingin
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oshointernational@oshointernational.com
Sobre o tradutor
Nascido em Belo Horizonte (MG), Lauro Henriques Jr. vive em São Paulo.
traduzido para o espanhol. Entre suas obras estão a trilogia Palavras de poder
prosa fragmentos do sol chuvoso (Ateliê Editorial), que conta com prefácio de
Título original: In Love with Life - Reflections on Friedrich Nietzsche’s Thus Spake Zarathustra
O material que compõe este livro consiste em capítulos selecionados a partir de duas séries de palestras
dadas ao vivo por Osho – Zarathustra: A God That Can Dance, capítulos 1, 2, 7, 9 e 21; e Zarathustra:
The Laughing Prophet, capítulos 3, 5, 8, 14 e 23. Todas as palestras de Osho foram publicadas na íntegra
em forma de livro e estão disponíveis em gravações originais. As gravações e todos os textos podem ser
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – em
qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico –, nem apropriada ou estocada em sistema de
o
O texto deste livro foi fixado conforme o acordo ortográfico vigente no Brasil desde 1 de janeiro de
2009.
e-ISBN 978-85-7881-488-5
2017
www.alaude.com.br
Vivendo perigosamente
Osho
9788578813208
200 páginas