0% acharam este documento útil (0 voto)
10 visualizações18 páginas

Artigo 20502 1 10 20220510

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1/ 18

Reflexões sobre o conceito de terceiros à

luz da obrigatoriedade registai1


Henrique Sousa Antunes

1. O Dccreto-Lei n.° 116/2008, de 4 de Julho, introduziu a obrigato­


riedade do registo predial, «potenciando a coincidência entre a realidade
física, a substantiva e a registai e contribuindo, por esta via, para aumen­
tar a segurança no comércio jurídico de bens imóveis». Com a solução
estabelecida nos artigos 8.°-A a 8.°-D do Código do Registo Predial não
coincidiu uma alteração legislativa ao conceito de terceiros que o artigo
5.°, n.° 4, daquele diploma prevê. Lembra-se, são terceiros, para efeitos
de registo predial, «aqueles que tenham adquirido de um autor comum
direitos incompatíveis entre si». Será esta noção clássica congruente com
um sistema em que a promoção do registo é obrigatória?
A eleição deste regime, o legislador confessa-o, visa promover o
fortalecimento da segurança do comércio jurídico imobiliário. A obri­
gatoriedade tem essa consequência natural, pois é alargado o perímetro
dos factos submetidos ao registo. Reforçado esse amparo, justificada,

1 Com estas breves considerações, pretende-se homenagear o Senhor Professor Doutor


Luís Carvalho Femandes. Devo-lhe o acompanhamento constante e o estímulo intelectual
e pessoal, enquanto seu aluno e, depois, como seu assistente. A fortuna colocou-me na
regência da disciplina de Direitos Reais na Faculdade de Direito da Universidade Católica
Portuguesa (Escola de Lisboa). Assumi o encargo, procurando honrar a excelência do
ensino e da reflexão científica do homenageado. Nestes últimos anos, tenho sido bene­
ficiário da colaboração da Dra. Marta Sá Rebelo, a quem devo agradecer o seu relevante
contributo para a oportunidade e o conteúdo destas notas que agora se publicam. O texto
foi concluído em Janeiro de 2010.
14 HENRIQUE SOUSA ANTUNES

parece, a adopção de um conceito amplo de terceiros2-3. A tese é clara no

2 Na terminologia usual dos autores. Constitui uma síntese feliz dessa utilização a
seguinte passagem de António Quirino Duarte Soares: «(...) classificarei dc conceito res­
trito e conceito amplo, os que, balizando o conceito de terceiro pelos actos centralizados
no mesmo titular inscrito, actos esses que sejam fontes de direitos incompatíveis sobre
o mesmo prédio, admitem só os actos negociais (conceito restrito) ou lhe acrescentam,
também, os actos não negociais, como a hipoteca judicial, a penhora, o arresto, a venda
judicial (conceito amplo)', e reservarei o nome de amplíssimo para o conceito de terceiros
que abrange, também, os que adquiram direitos incompatíveis ou inconciliáveis sobre o
mesmo prédio, provenientes de autores diferentes» (O conceito de terceiros para efeitos
de registo predial, in «Cadernos de Direito Privado», n.° 9, Janciro/Março 2005, pág. 5).
A respeito da aquisição cm venda judicial, sublinha-se que o entendimento clássico a
inclui no conceito amplo de terceiros. E no entanto, em sentido aparentemente diverso,
vejam-se as seguintes considerações de Manuel dc Andrade, a quem se reconhece a
paternidade do conceito restrito: «Na aquisição derivada intervém portanto uma relação
entre o titular anterior e o novo, não querendo isto dizer, todavia, que para se operar
seja sempre necessário o concurso da vontade daquele. Ao anterior titular dá-sc o nome
de autor, causante (causam dans) ou transmitente; o novo designa-sc por adquirente
ou causado (causam habens)» (Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Coimbra,
2003 (9? reimpressão), págs. 14 e seg.) O Acórdão de uniformização de jurisprudência
n.° 3/99 do Supremo Tribunal de Justiça (in «Diário da República», I Série A, de 10 de
Julho de 1999) situou a venda judicial no conceito restrito de terceiros, existindo ampla
bibliografia sobre o tema.
3 O conceito tem recebido manifesto acolhimento na doutrina, mesmo sem dependência
da obrigatoriedade registai. Ver, por exemplo, Eridano de Abreu, Compra e venda (compra
e venda de veículos automóveis - Valor e natureza do registo - Forma - Enriquecimento
sem causa). Acórdão do S.T.de J. de 24-2-77. Anotação, in «Revista da Ordem dos
Advogados», ano 37 (Setembro-Dezembro 1977), págs. 723 e segs., Heinrich Ewald
Hõrster, Anotação - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Março de 1982,
in «Revista de Direito e Economia», ano VIII, n.° 1, Janciro/Junho 1982, págs. 128 e
segs., Antunes Varela/Henrique Mesquita, Anotação -Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça de 3 de Junho de 1992, in «Revista de Legislação c de Jurisprudência», ano 127.°
(1994), n.° 3838, págs. 19 e segs., Luís A. Carvalho Fcmandcs, Terceiros para Efeitos
de Registo Predial, in «Revista da Ordem dos Advogados», ano 57 (Dezembro 1997),
págs. 1310 e segs., e Lições de Direitos Reais, Lisboa, 2009, págs. 136 e segs., Miguel
Teixeira de Sousa, Sobre o Conceito de Terceiros para Efeitos de Registo (A propósito
do AcSTJ-3/99, de 10/7), in «Revista da Ordem dos Advogados», ano 59 (Janeiro 1999),
págs. 36 e segs., A. Menezes Cordeiro, Direitos Reais - Sumários, Lisboa, 2000, págs.
90 e segs., Armindo Saraiva Matias, Efeitos do Registo Predial Português, in «Galileu»
(Revista de Economia e Direito), vol. V, n.° 1, 2000, págs. 59 e segs., António Quirino
Duarte Soares, O conceito de terceiros para efeitos de registo predial, cit., págs. 3 e segs.,
José Alberto González, Direitos Reais e Direito Registai Imobiliário, 3.“ ed., Lisboa,
2005, págs. 423 e segs.. Luís M. Couto Gonçalves, Terceiros para efeitos de registo e
a segurança jurídica, in «Cadernos dc Direito Privado», n.° 11, Julho/Setembro 2005,
págs. 30 e segs., Ana Maria Taveira da Fonseca, Publicidade espontânea e publicidade
REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE TERCEIROS
À LUZ DA OBRIGATORIEDADE REGISTAL 15

entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, que, no citado Acórdão


n.° 3/99, fundamentava a opção pelo conceito clássico de terceiros na
inexistência da obrigatoriedade do registo predial: «As desvantagens (de
um conceito amplo de terceiros) desvanecer-se-iam (...) legislando-se de
forma a tomar o registo obrigatório e a estabelecer-se a obrigatoriedade
de imediata comunicação pelo notário ao conservador do registo predial,
de que uma escritura pública acabara de ser celebrada»4.
Acolhida a obrigatoriedade, o terceiro que consulta o registo é con­
fortado pela circunstância de a situação jurídica do prédio não estar
vinculada ao preenchimento do ónus de registar pelo interessado5.
À natureza facultativa do acto de registar substituiu-se o dever de registar,
pelo que haverá, certamente, um acréscimo de factos a que a publicidade
é conferida. Tendencialmentc, uma concordância plena entre os factos
sujeitos a registo e os factos registados no âmbito objectivo da obriga­
toriedade (artigo 8.°-A do Código do Registo Predial).

2. As reservas à inclusão de terceiros que tivessem adquirido direitos


sem transmissão de autor comum fundavam-se na protecção do titular
do direito não registado. Certamente que a falta de promoção do pedido
de registo era sancionada com a inoponibilidade do direito, porém
restringida à aquisição de um autor comum. Lê-se, em declaração de
voto do conselheiro Noronha Nascimento ao referido Acórdão n.° 3/99:
«O conflito de interesses que aqui se desenha é evidente: de um lado o
do credor que confiou na infalibilidade registrai; do outro o do verdadeiro
proprietário, que não tem nada que ver com o diferendo credor-devedor,
mas que não registou em tempo o seu direito. Com a tradição histórica
do nosso país, o seu sistema publicitário de registo, a imperfeição do
cadastro predial, os hábitos sociológicos ainda dominantes no nosso povo,
entendemos que o conflito terá de ser resolvido através da concepção
restrita de «terceiros» que melhor defende o proprietário - não devedor.

provocada de direitos reais sobre imóveis, in «Cadernos de Direito Privado», n.° 20,
Outubro/Dezembro 2007, págs. 16 e segs., e Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago
Sottomayor, Invalidade e Registo - A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé,
Coimbra, 2010, págs. 327 e segs.
4 Pag. 4359.
5 Pela qualificação como um encargo, ver A. Menezes Cordeiro, Direitos
Sumários, cit., págs. 81 e segs.
25 BIBLIOTECA £
16 HENRIQUE SOUSA ANTUNES

E entendemos assim porque os efeitos sociais da concepção restrita são


bem menos perversos do que os da concepção ampla»6.
E significativa a alusão ao sistema de registo. Prevista a obrigatorie­
dade do pedido e a substituição, nesse âmbito, do sujeito activo pelas
entidades que celebrem a escritura pública ou autentiquem os documentos
particulares, entre outras, esmorecem as razões que estruturavam a tutela
do proprietário em detrimento do credor. Para mais, em tempos que
evidenciam a transferência de riqueza da propriedade, nomeadamente
imobiliária, para a circulação creditícia. Assim, outro relevo adquire a
tutela de um terceiro que assentou a garantia do seu crédito em imóvel
sem facto com inscrição incompatível anterior.

3. Esmorecem as razões da preferência do proprietário, é certo, mas a


reforma legislativa impõe, a esse respeito, esclarecimentos adicionais. Em
especial, a transferência do encargo da promoção do pedido de registo
do interessado para outras entidades permite questionar a possibilidade
de sancionar o sujeito activo, agora sem o ónus de registar, com a ino-
ponibilidade do seu direito real, quando não registado.
Expliquemo-nos. Na vigência da lei anterior a 2008, o artigo 5.° do
Código do Registo Predial esgotava as disposições que enformavam
a natureza do pedido de registo. Constituía este um ónus do interes­
sado, pois a promoção, sem ser imposta pelo sistema, permitia ao
titular opor o direito a todos os terceiros, ou seja, aos beneficiários de
direitos conflituantes7. O Decreto-Lei n.° 116/2008 converteu o ónus
num dever.
O artigo 8.°-B do Código do Registo Predial inclui na dimensão
subjectiva da obrigação de registar «as demais entidades que sejam
sujeitos activos do facto sujeito a registo» (n.° 1, al f)). Que o conceito
de entidades é usado em sentido menos rigoroso, incluindo, além das
pessoas colectivas, as pessoas físicas, demonstra-o a remissão do artigo
8.°-D, n.° 3, para o artigo 151.°, n.° 2, ambos do Código do Registo
Predial. Segundo aquele, a respeito do pagamento do emolumento
em dobro como sanção do incumprimento da obrigação de registar,
«a responsabilidade pelo agravamento do emolumento previsto no
n.° 1 recai sobre a entidade que está obrigada a promover o registo e

6 Pag. 4368.
7 Servem, ainda, para caractcrizar o ónus os princípios da legitimação registai e do
trato sucessivo (artigos 9.° c 34° do Código do Registo Predial).
REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE TERCEIROS
À LUZ DA OBRIGATORIEDADE REGISTAL 17

não sobre aquela que é responsável pelo pagamento do emolumento,


nos termos do n.° 2 do artigo 151.°». Dispõe este último que «é res­
ponsável pelo pagamento o sujeito activo dos factos». Qualquer sujeito
activo é, pois, uma entidade.
A mutação do ónus em dever sugeriria a extensão das consequências
negativas que a lei associa ao titular do direito não registado. Ou seja,
a concepção ampla alicerçar-se-ia, por um lado, no reforço da segurança
do comércio jurídico imobiliário, e, por outro, na sanção a que o orde­
namento associaria o incumprimento da obrigação de registar.
O segundo argumento carece, à primeira vista, de fundamentação.
É certo que a lei prevê o dever de os sujeitos activos do facto promove­
rem o registo. Fá-lo, contudo, em último lugar, designadamente depois
de imputar semelhante obrigatoriedade às «entidades que celebrem a
escritura pública, autentiquem os documentos particulares ou reconhe­
çam as assinaturas neles apostas» (artigo 8.°-B, n.° 1, aL b), do Código
do Registo Predial). Ora, de acordo com o n.° 2 do mesmo artigo 8.°-B,
«no caso de, em resultado da aplicação das alíneas do número anterior,
deverem estar obrigadas a promover o registo do mesmo facto mais de
uma entidade, a obrigação de registar compete apenas àquela que figurar
em primeiro lugar na ordem ali estabelecida».
Em face da natureza subsidiária da obrigação dos sujeitos activos,
a construção legal marginaliza a intervenção do titular do direito.
A conclusão parece notória mesmo em relação ao ónus que do artigo
5.° do Código do Registo Predial emerge. Se o notário que celebre a
escritura pública ou o advogado que autentique o documento particular
têm o dever de efectuar o pedido de registo, o titular do direito confia
àqueles, por indicação legal, a publicidade do facto. Estabelece-se uma
relação de confiança que leva o sujeito activo da relação a crer na sufi­
ciência do acto constitutivo, transmissivo, modificativo ou extintivo do
direito, como se o registo fosse meramente enunciativo. O interessado
sente que na titulação do acto se esgota a sua intervenção. O registo,
a outros compete.
18 HENRIQUE SOUSA ANTUNES

Assim entendido o novo regime, construção oposta à concepção ampla de


terceiros se apura8-’. Sacrificar-se-ia, no entanto, a homenagem que a introdução

* Na doutrina, a censurabilidade da omissão do titular do direito serve, amiúde, corno


argumento da exacta definição do conceito de terceiros. Escrevem Antunes Varela e
Henrique Mesquita: «Ora, se a finalidade do regime legal, neste caso, c tutelar ou pri­
vilegiar, em detrimento do adquirente que. por incúria, não procedeu à inscrição do seu
direito, o sucessivo adquirente que agiu cm função da situação jurídica publicitada através
do registo, igual tutela deve ser proporcionada a todos aqueles que, para adquirirem e
registarem detenninados direitos, não necessitam da cooperação ou intervenção do titular
inscrito e podem unilateralmente promover inscrições a seu favor, como sucede no caso
da hipoteca legal ou judicial, da penhora, do arresto, etc.» (Anotação - Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Junho de 1992, cit., pág. 21). Também, Orlando de
Carvalho: «A ideia do registo como ónus do adquirente não se compadece, c claríssimo,
com um dever do terceiro de desconhecer por completo a aquisição não transcrita (...).
Embora a má fé psicológica seja muito difícil de provar, era o caos que se estabelecia
em matéria de impulso às inscrições. E injustamente: quem diz que a crença nos dados
registais, mesmo sabendo-se que há aquisição in adversum, é menos meritória do que o
desprezo pelas exigências da lei ?» (Terceiros para Efeitos de Registo, in «Boletim da
Faculdade de Direito», vol. LXX, Coimbra, 1994, pág. 104). Ainda, acerca da oncrosidadc
da aquisição como condição de tutela do terceiro, Hcinrich Ewald Hõrstcr: «Finalidade
do registo é “dar publicidade aos direitos”, sujeitando para o efeito os respectivos factos
jurídicos a registo. Mas como o registo não é realizado oficiosamente nem é, por via de
regra, obrigatório, é preciso encontrar um expediente que garanta a finalidade cm vista.
Por outras palavras, é preciso encontrar uma sanção eficaz (...) que leve os interessados
a requerer a efcctivação do registo. Ora, essa sanção é o risco da perda parcial ou total
do direito a favor de um terceiro adquirente. Como a não realização do registo conduz
a desvantagens consideráveis para os interessados, estes registam a fim de as evitar,
assegurando-se assim a finalidade do registo. Além disso, este mecanismo está perfei­
tamente de acordo com as linhas orientadoras gerais do direito privado que partem da
pessoa autodeterminada e autoresponsável à qual é entregue a própria defesa dos seus
direitos privados sem a intervenção tutelar e providencial do Estado. Das razões expostas
decorre então que se trata de um autêntico contrassenso exigir-se uma transmissão a título
oneroso para proteger o terceiro adquirente com base no regime do registo» (Anotação
-Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Março de 1982, cit., pág. 133).
’ Sobre a influência das circunstâncias do titular do direito na definição do alcance do
conceito de terceiro, tem cabimento a seguinte passagem de Maria Clara Sottomayor: «O
princípio, segundo o qual os direitos não registados não têm qualquer relevância jurídica
em ordem a assegurar, em plenitude, um sistema registai perfeito e completo, é impossível
de realizar. Haverá sempre que contar com a existência de direitos não registados, pois
haverá sempre pessoas que, por ignorância, pobreza ou discriminação, não têm acesso
ao registo e que, portanto, não podem adquirir direitos, ou são privadas, pelas regras do
registo, dos direitos que adquiriram» (Invalidade e Registo, cit., pág. 159). Em geral,
deve reconhecer-se que a privação do direito de propriedade pela ausência de registo
pode constituir sanção excessivamente onerosa para o titular do direito: «Relativamente
ao pagamento de uma justa indemnização ao seu titular, no contexto das aquisições a
REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE TERCEIROS
À LUZ DA OBRIGATORIEDADE REGISTAL 19
da obrigatoriedade do registo presta à segurança do comércio jurídico
imobiliário, fim essencial do registo (artigo l.° do Código do Registo
Predial). A apreciação não abala, pois, a legitimidade de uma compreensão
alargada do conceito de terceiros, embora justifique algumas cautelas.
O notário ou o advogado que pedem o registo intervêm na execução de
um dever funcional, em lógica aproximada ao mandato com representação.
Da faculdade de escolha da entidade competente para a titulação do acto não
depende, porém, a manutenção da regra da inoponibilidade do direito não
registado. O prejuízo seria justificado, mesmo que essa liberdade não lhe
fosse reconhecida, em virtude da segurança do comércio jurídico imobiliário.
A visão do ordenamento distancia-se, contudo, desta perspectiva
unilateral, motivada pela tutela do terceiro. A prová-lo, a excepcionali-
dade das normas que, em detrimento das regras substantivas, protegem
o terceiro em virtude da prioridade registai10. Ainda, a exigência legal
de boa fé do terceiro e a onerosidade da sua aquisição.

4. A fé pública do registo deve ser acautelada com o reconhecimento


de algumas salvaguardas à regra da inoponibilidade do direito não regis­
tado. Desde logo, a relevância da posse do titular.
O controlo material da coisa em termos correspondentes ao exercício
do direito adquirido é, agora, a única forma de publicidade associável,
directamente, à conduta do interessado. Este facto, a ele aliando a pre­
ferência da presunção possessória à presunção registai, não pode ser
desconhecido pelo intérprete, doutrinal ou judicial.

non domino, a tutela do direito de propriedade não é assegurada peio Estado, correndo
o verdadeiro titular do direito de propriedade, o risco da insolvência do transmitente
sem legitimidade. Questionamos esta solução e defendemos, de iure constituendo,
paralelamente a uma maior protecção do terceiro, uma garantia estadual do pagamento
da indemnização ao verdadeiro proprietário, que sem culpa sua, perdeu o seu direito de
propriedade, em relação a um terceiro de boa fé» (Maria Clara Sottomayor, Invalidade
e Registo, cit., pág. 323).
10 Segue a mesma linha de raciocínio, a limitação da aplicação do artigo 17.°, n.° 2,
do Código do Registo Predial às hipóteses em que o titular do direito não tenha registado
o facto (exemplo: A adquiriu um direito de propriedade. A aquisição não foi registada.
B, exibindo títulos falsos, obtém o registo desse direito em seu favor e vende a coisa
a C. Este, terceiro de boa fé, registou a compra antes do registo da acção de nulidade).
Se o interessado consolidou o seu direito, a confiança que terceiro deposite num registo
nulo é insuficiente para a tutela registai que aquela norma estabelece. Isto claro está,
pressupondo a inexistência de qualquer acto de vontade do titular do direito (o que explica
a diferente solução que para o artigo 291.“ do Código Civil se defende).
20 HENRIQUE SOUSA ANTUNES

Alguma jurisprudência fundou a tutela do adquirente do direito não


registado no artigo 1268.°, n.° 1, do Código Civil. Segundo esta norma,
«o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se
existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao
início da posse». Nessa interpretação, embora o art. 5.°, n.° 1, do Código
do Registo Predial determinasse a prevalência da situação jurídica de
um terceiro que, adquirindo de um transmitente comum direito total ou
parcialmente incompatível com o direito resultante de uma aquisição
prévia, beneficiasse de um registo prioritário, a anterioridade da posse
do primitivo adquirente ao registo da segunda transmissão assegurar-
-Ihe-ia a preferência na titularidade do direito. Neste sentido, lê-se no
já mencionado Acórdão n.° 3/99: «Deste modo, a posse susceptível de
prevalecer contra registo anterior ao início da posse, a que o mencionado
artigo 1268.° se refere, não será a que já produziu usucapione, pois que
esta é uma forma concreta de aquisição originária. Por isso, porque é
originária, mesmo que haja registo anterior ao início dessa posse, ele
cede perante aquela forma de aquisição. Assim, a posse a que se reporta
o mencionado artigo só pode ser a que, revestindo-se dos requisitos ine­
rentes ao seu conceito, entre os quais interessa, neste momento, realçar
o da publicidade, ainda lhe falta capacidade aquisitiva por carência do
decurso de tempo necessário. Portanto, às excepções expressas ao prin­
cípio geral de que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra
terceiros, depois da data do respectivo registo, há que acrescentar também
a que resulta da posse ainda não usucapiente, mas já em exercício. Com
uma diferença: no caso da usucapião, como já se disse, ela sobrepõe-se
a qualquer registo, seja qual for o momento - anterior ou posterior - da
sua efectivação; no caso vertente, a posse relevante, em confronto com
o registo, é apenas a que se iniciou antes deste»".
A orientação maioritária, na doutrina e também na jurisprudência,
critica o entendimento citado. O acolhimento do preceito nesta sede
privaria de sentido o disposto no artigo 5.°, n.° 1, do Código do Registo
Predial, norma que, promovendo a segurança do comércio jurídico imo­
biliário, estabelece uma presunção inilidível de titularidade do direito em
beneficio do segundo adquirente que se antecipou ao registo12.

"Pág. 4361.
12 Ver, por exemplo, António Quirino Duarte Soares, O conceito de terceiros para
efeitos de registo predial, cit., págs. 3 e segs. («(...) a solução assentou num equívoco,
qual seja o de que, com ela, se permitiu a invocação triunfante de uma presunção de
REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE TERCEIROS
À LUZ DA OBRIGATORIEDADE REGISTAL 21

5. É nosso entendimento que a discussão deve enquadrar-se noutro


paradigma. A tese é reforçada pelo regime vigente da obrigatoriedade
registai. A norma sobre o conflito de presunções, possessória e registai,
é questionada enquanto exigência de um pressuposto autónomo do efeito
aquisitivo do registo, e, no entanto, proporcionando um critério seguro de
avaliação da boa fé do terceiro, justificar-se-ia que fosse a esse respeito
debatida a sua aplicabilidade13-14.
A orientação desfavorável à exigência do requisito da boa fé para a
prevalência da situação jurídica do terceiro invoca a desconformidade
entre o itinerário probatório dessa condição e a segurança e celeridade
do comércio jurídico imobiliário que o registo predial pretende assegurar.
A fé pública do registo revela-se incongruente com o entorpecimento de
uma acção judicial em que a prioridade é contestada com a alegação de
má fé do terceiro: «A segurança que se pretende garantir ao comércio
jurídico seria fortemente afectada, se o terceiro, adquirente de quem
tem um prédio registado a seu favor, ficasse exposto às delongas, às

propriedade a quem eslava vedado invocar o próprio dircilo presumido, dada a ineficácia
do aclo fundador desse dircilo para com o terceiro que comprou e registou (...)» - pág.
9), c Ana Maria Tavcira da Fonseca, Publicidade espontânea e publicidade provocada
de direitos reais sobre imóveis, cit., págs. 14 e segs. («Sc entendermos que o registo tem
um efeito aquisitivo, enquanto elemento integrante de um facto complexo de produção
sucessiva através do qual é possível ao terceiro adquirir a titularidade do direito, é possível
concluir que o terceiro para efeitos de registo adquire um direito de propriedade sobre o
imóvel e, nessa medida, pode ilidir a presunção de titularidade do possuidor» - pág. 23).
13 Lê-se cm A. Menezes Cordeiro, Direitos Reais — Sumários, cit., págs. 91 e seg.,
cm crítica à escolha da concepção restrita de terceiros: «(...) parece-nos evidente que este
acórdão foi impressionado pelo sentimento do caso concreto aí discutido: um casal compra
uma fraeção autónoma, mas não regista; os credores do vendedor registam, então, uma
penhora sobre essa fraeção: cm princípio, seriam terceiros com melhor registo pelo que
o casal seria despojado do que comprara. Ora é evidente que a solução “justa” poderia
ter sido encontrada pela boa fé: os tais credores deveriam ter reparado que o local estava
habitado e, logo, teria novos donos...».
14 Sobre os antecedentes doutrinais desta proposta, ver, por todos, Gabriel Órfão
Gonçalves, Aquisição Tabular, 2.° ed. (revista e actualizada), Lisboa, 2007, págs. 87 e
segs. Escreve, a respeito do artigo 1268.° do Código Civil, que «a decisão do legislador
foi esta: se há posse, e se ela se iniciou antes da data do registo do terceiro, há sérias
razões para crer que o adquirente registai não podia deixar de saber que o prédio era
possuído por pessoa diferente daquela que consta do registo. Há razões para duvidar da
sua boa fé, em suma. O que, no entanto, também não quer dizer que mesmo num caso
desses (de posse doutrem anterior ao registo) ela não possa existir» (págs. 88 e seg.).
A nossa discordância, como veremos, respeita à persistência da tutela do terceiro em
hipóteses de anterioridade possessória do primitivo adquirente.
22 HENRIQUE SOUSA ANTUNES

incertezas, aos gastos, eventualmente às manobras inerentes a processos


judiciais tendentes a provar que ele conhecia uma alienação anterior»15.
Sensível aos riscos associados à inclusão da boa fé no catálogo dos
elementos estruturantes da protecção registai do terceiro, alguma doutrina
há que, salvaguardando aquela exigência «como facto constitutivo do
direito do terceiro» a restringe, em sentido psicológico, à «prova de que
se consultou o registo antes da aquisição»16. Vejamos.
A prioridade registai, validando um acto que a ordem jurídica, de
outro modo, reprovaria exige a bondade da conduta do favorecido. Que
à ofensa voluntária a um direito alheio deve permanecer estranho um
prémio é um princípio geral do Direito. Reputa-se, pois, exigível a boa
fé. O seu conteúdo deve, no entanto, acomodar-se ao fim, de interesse

15 Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.° ed. (por António Pinto
Monteiro e Paulo Mota Pinto), Coimbra, 2005, pág. 368. É também a opinião de Antunes
Varela e de Henrique Mesquita: «Sc os efeitos do registo fossem impugnáveis pelo facto de o
titular inscrito ter sabido ou ter podido saber, antes de requerer a inscrição, que havia direitos
incompatíveis não registados, o instituto do registo deixaria de proporcionar a segurança e
a comodidade que constituem as suas finalidades principais. A quem pretendesse adquirir
determinado imóvel (...) não bastaria averiguar (...) que o prédio se encontrava rcalmentc
insento na conservatória em nome do vendedor. Teria ainda de realizar todas as diligencias
necessárias (segundo o grau de exigência do eventual julgador de amanhã) para investigar
se o titular inscrito no registo não teria disposto entretanto do imóvel a favor de outrem. E,
mesmo assim, por mais que se esforçasse na altura da aquisição, nunca ficaria seguro de que
um dia mais tarde se não viesse a alegar, não obstante o registo do seu direito e do direito
do antecessor, a sua falta de diligência na averiguação dos factos ou não viesse a recorrer-se
a expedientes fraudulentos para demonstrar a existência de uma aquisição do imóvel não
registada, mas anterior à sua» (Anotação - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3
de Junho de 1992, cit, pág. 24). No mesmo sentido, escreve Paulo Videira Henriques: «(...)
operando com a boa fé não temos um catálogo de critérios normalizados que possamos aqui
e agora indicar, sem margem para contraditório, a respeito da solução dos conflitos. Ora a
consequência é esta: só os tribunais podem dizer, caso a caso, com a sua autorictas, quais são
esses critérios; e então todos os casos terão mesmo que ir a tribunal. Mas este cenário não traz
de todo uma boa notícia para as necessidades do comércio. Ao comércio jurídico imobiliário
não basta que o titular da inscrição em vigor beneficie, em juízo, da protecção decorrente
das presunções legais e da fé pública. Enquanto a lide estiver pendente, o comerciante vai
deparar-se com a suspensão ou mesmo com a interrupção do processo produtivo. Convocando
a boa fé para requisito do artigo 5.° n.° 1 frustram-sc as finalidades de segurança, celeridade
e fluidez do comércio jurídico imobiliário» (Terceiros para Efeitos do Artigo 5° do Código
do Registo Predial, in «Boletim da Faculdade de Direito», Volume Comemorativo do 75.°
Tomo do Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 2003, págs. 449 e scg.). Ver, ainda, a
citação anterior de Orlando de Carvalho, Terceiros para Efeitos de Registo, cit., pág. 104.
16 Ana Maria Tavcira da Fonseca, Publicidade espontânea e publicidade provocada
de direitos reais sobre imóveis, cit, pág. 22.
REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE TERCEIROS
À LUZ DA OBRIGATORIEDADE REGISTAL 23

público, que à tutela de terceiros subjaz. A celeridade dos processos


negociais e a segurança do comércio jurídico imobiliário exigem que
seja certo o apuramento da boa fé, que a sua avaliação dependa de factos
simples. Indaga-se um estado subjectivo possível a partir de elementos
objectivos. A efectiva consulta do registo tão-só proporcionaria a aparên­
cia da legitimidade subjectiva, nada acrescentando ao desconhecimento.
Assim, a ausência da inscrição no registo é utilizável no preenchimento do
conceito de boa fé. A falta de publicidade registai é, porém, insuficiente
para presumir, de modo inilidível, a boa fé17. Constitui o outro elemento
objectivo da apreciação a posse do primeiro adquirente.
A lei atribuiu preferência à presunção fundada na publicidade espontâ­
nea (artigo 1268.°, n.° 1). A posse a que o legislador reconheceu prioridade
é a posse pública, ou seja, a que é susceptível de ser conhecida pelos
interessados. Ora, a irrelevância dessa publicidade só se julga aceitável
enquanto ao possuidor é imputável a omissão do registo18. Nesse caso,
entende-se que ao titular do direito deve ser negado prevalecer-se da sua
posse quando negou a contribuição devida ao sistema da publicidade
provocada. Eis a orientação maioritária da doutrina e da jurisprudência,
a que antes aludimos. Diversamente, num regime de obrigatoriedade
registai, se as normas induzem o interessado a colocar-se à margem da
inscrição registai do facto, a publicidade espontânea converte-se no único
instrumento que o titular maneja tendo em vista anunciar a terceiros
o seu direito19. O facto deve ter repercussões na apreciação do estado

17 Pela suficiência, a doutrina italiana, em citação de Messineo, que Antunes Varela e


Henrique Mesquita acompanham: «Em matéria de registo, o terceiro deve considerar-se
em estado de boa fé (ignorância), relativamente à existência de outro título aquisitivo,
quando este não tenha sido registado: ou seja, o terceiro deve considerar-se de boa fé
com base num dado objectivo (falta de registo), mesmo que tenha tido, de facto, conhe-
- cimento da existência do título e, por conseguinte, em bom rigor, a sua boa fé falte
(princípio da aparência do direito...). Em contrapartida, o terceiro deve considerar-se
em estado de má fé (conhecimento) quando um precedente título tenha sido registado:
também aqui, com base num elemento objectivo e, portanto, mesmo que esse terceiro
não tenha tido, de facto, conhecimento da existência do título» (Anotação - Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Junho de 1992, cit., pág. 24).
18 Lembram-se as notas, antes citadas, de Orlando de Carvalho, Terceiros para
Efeitos de Registo, pág. 104.
” A obrigatoriedade poderia ter revestido forma diversa. Lembra-se que o artigo
14.° do Código do Registo Predial de 1967 impunha o dever aos interessados (ver A.
Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lisboa, 1993 (reimpressão das lições de 1979), pág.
273, e Direitos Reais - Sumários, cit., págs. 81 e segs.).
24 HENRIQUE SOUSA ANTUNES

subjectivo do terceiro que registou. Onde se apure uma posse pública


do primeiro adquirente, apura-se a má fé do terceiro20.
Advirta-se que, pelo menos para este efeito, o critério mais seguro
de apuramento de uma posse pública é a posse efectiva, ou seja, carac-
terizada pelo exercício de poderes materiais sobre a coisa. Na verdade,
indícios de uma aparência menos esclarecida sobre a desconformidade
entre a situação registai e a realidade substantiva, revelam-se, por isso,
menos aptas a justificar a presunção inilidível de má fé.
Na vigência do regime de obrigatoriedade descrito, exclui-se a prova
de boa fé do terceiro, demonstrando, por exemplo, que a posse se iniciou
em momento posterior à visita ao local em apreço. Esse constitui um
risco jurídico paralelo ao do adquirente que ainda não viu satisfeita a
sua pretensão de registo. Aliás, a posse efectiva requer a intensidade de
um comportamento, pelo que só uma certa estabilidade temporal permite
identificá-la. Em qualquer dos casos, o registo provisório de aquisição
acautelaria os interesses em presença.
A solução acompanha a lógica de que uma posse anterior é associável
ao conhecimento do terceiro registai21. Acrescenta, porém, a relevância
de uma posse contemporânea do registo (nesse caso, devido à natureza

20 Sobre a presunção de sentido inverso se o terceiro verifica que o transmitenle é


possuidor, ver Heinrich Ewald Hõrster: «(...) é de dizer que a boa fé se formará, nor­
malmente, a partir das presunções do registo. O registo fomenta a boa fé. Mas não é
indispensável que o registo seja consultado. O adquirente pode acreditar na titularidade
do transmitente, p. ex. apoiado na presunção decorrente da posse (art. 1268.°, n.° 1,1.“
parte, CCiv), sem qualquer consulta ao registo, só é necessário que as presunções do
registo coincidam com a boa fé formada fora dele. Aqui o registo justifica a boa fé. Mas
não é possível que a boa fé se forme em desacordo, contra as presunções do registo.
Isto significaria inutilizar as próprias presunções e a fé pública do registo» (Anotação —
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Março de 1982, cit., pág. 135).
21 Neste sentido, escreve Gabriel Órfão Gonçalves: «Simplesmente, trata-se de
avaliar a realidade por uma perspectiva de normalidade: se alguém se depara com a
5
posse de outrem num prédio que adquiriu, sendo que essa posse é anterior à data do seu
registo, cabe perguntar se o novo adquirente nunca reparou em tal situação, aquando
das normais negociações com vista à aquisição do prédio. A mente legislativa pensou
da seguinte forma: quando tal aconteça, o adquirente registai, muito provavelmente, não
desconhecia - em virtude da publicidade espontânea da posse - a alienação anterior; mas,
aproveitando-se de um registo desactualizado, ainda assim realizou o negócio de aquisição.
De forma ainda mais expressiva: se vem sendo exercida a posse sobre um prédio, a qual
pode por todos ser conhecida, vai dar-se o caso de o principal interessado - um futuro
adquirente - não se dar conta dela? O art. 1268.°/1 CC responde a esta questão de uma
forma insuspeitamente inteligente» (Aquisição Tabular, cit., pág. 89).
REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE TERCEIROS
À LUZ DA OBRIGATORIEDADE REGISTAL 25
circunstancial do facto, o beneficiário do registo desconhece a posse e,
no entanto, a lei confere prioridade à presunção possessória) e dá mere­
cimento à caracterização da posse pública pela mera possibilidade do seu
conhecimento, excluindo, assim, a exigência do efectivo conhecimento
dos interessados22.
Enfim, só a natureza inilidível da presunção de má fé confere sentido
a uma justa interpretação do artigo 1268.°. A titularidade do direito que
a lei infere da publicidade do comportamento encontra assento em facto
legitimante diverso dessa publicidade. A parte que contesta a presunção em
proveito de outrem deve provar o facto constitutivo ou aquisitivo do seu
direito. Na dupla alienação, a inaplicabilidade do artigo 1268.° permite ao
sujeito activo da inscrição registai a recepção do direito, sem que aquela
encontre fundamento cm título válido e eficaz. A aquisição dá-se pela
mera notoriedade do registo anterior e do seu próprio registo, publicidade
anterior ou posterior à posse. E, no entanto, a posse, enquanto forma de
publicidade, é um alicerce da segurança do comércio jurídico imobiliário.
Assim o demonstram os regimes do artigo 1268.° e da retroactividade
da usucapião. O possuidor deve, pois, beneficiar de algum paralelismo

22 Deste modo, cm face da obrigatoriedade registai, é vedado ao terceiro provar o


requisito da boa fé se a posse efectiva do primitivo adquirente antecede o registo daquele.
Diversa é a tese de Gabriel Órfão Gonçalves, orientação que, crê-se, idêntica seria sob
o pressuposto da obrigatoriedade registai. Segundo o autor, estão de boa fé um banco,
pela sua própria natureza, e um terceiro que à posse efectiva do titular antecipasse a
deslocação ao prédio (Aquisição Tabular, cit., págs. 92 e scg.). A prova desse requisito
compete ao beneficiário registai, pois a presunção possessória prevalece sobre a presunção
fundada no registo (artigo 1268.°, n.° 1, do Código Civil - «Do citado art. resulta que
o possuidor, tendo a seu favor a presunção da titularidade do direito correspondente ao
exercício da sua posse, escusa de provar os factos constitutivos desse direito (art. 350 CC).
Por seu turno, será o adversário processual a ter de provar que o direito não pertence ao
possuidor, mas a si próprio. E pode fazê-lo. Terá então de provar factos constitutivos do
direito que invoca. E aqui, contrariamente ao caso em que, por não haver posse doutrem,
a presunção registai (art. 7 CRPr) se aplicava, sem obstáculos, ao pseudo-adquirente, e
em que, como vimos, essa presunção abrangia a boa fé e todos os demais requisitos da
aquisição tabular, aqui, dizíamos, o adquirente registai terá de provar a sua boa fé. Isto
é, terá de vencer a inércia que, cm boa hora, o art. 1268.71 vem colocar à consideração
de que ele é o proprietário» - Aquisição Tabular, cit., pág. 91). Reiterando o que em
texto dizemos, se o autor reconhece que essa solução presta homenagem à prioridade
normal do conhecimento possessório, que lugar reserva à constituição contemporânea
da publicidade espontânea e da publicidade provocada? Ainda, que razão assiste à trans­
formação, para este efeito, da posse pública em posse que o interessado efectivamente
conheça ou deva conhecer? Unicamente, porventura, a incúria de o titular registar, análise
que a obrigatoriedade prevista em 2008 repudia.
26 HENRIQUE SOUSA ANTUNES

tutelar do Direito. É interpretação adequada à diferente contribuição do


registo e da posse reconhecer que a presunção possessória cede perante
a demonstração de um facto aquisitivo válido e eficaz, mesmo posterior,
em proveito de terceiro, e que o registo, se anteceder uma posse efectiva,
vence as consequências do direito substantivo. Já, porém, na ausência
de prova impeditiva do direito, a publicidade possessória é critério de
decisão. Admitir que o registo contemporâneo da posse ou a esta poste­
rior sobre ela prevalecesse negaria à posse a função que, a respeito da
publicidade, o legislador lhe quis atribuir23.
Escreve Paulo Videira Henriques: «(...) parece-nos muito importante
que, mesmo sem instrução, qualquer pessoa possa identificar, sem hesi­
tações, o titular do domínio sobre os bens e os critérios da solução dos
conflitos: escritura, registo e posse. Ao passo que, como todos bem sabemos,
operando com a boa fé não temos um catálogo de critérios normalizados
que possamos aqui e agora identificar, sem margem para contraditório,
a respeito da solução dos conflitos»24. Em sentido diverso, conclua-se, porém,
que a tese que ora se propõe dá cumprimento à trilogia que soluciona os
conflitos relativos à titularidade do direito, operando, pela relevância da
posse em sede diversa da usucapião, com um conceito objectivo, seguro,
de boa fé na delimitação da inoponibilidade do direito não registado.

25 Sublinha essa função a tese da legitimidade da acessão de posses a respeito da


prevalência da usucapião, em proveito do titular do direito, sobre a tutela registai de
terceiro. Neste sentido, embora em opinião minoritária na doutrina e na jurisprudência
portuguesas, ver José de Oliveira Ascensão, Efeitos substantivos do Registo Predial na
ordem jurídica portuguesa, in «Revista da Ordem dos Advogados», ano 34 (Janciro-
-Dezembro 1974), págs. 44 e seg., Armindo Saraiva Matias, Efeitos do Registo Predial
Português, cit., págs. 56 e seg., e Gabriel Órfão Gonçalves, Aquisição Tabular, cit., págs.
94 e segs. Em retrato da orientação geral, cita-se, diversamente, o sumário do Acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça de 25-03-2009 (Urbano Dias), consultado em base
de dados disponível on Une: «O adquirente de um direito de propriedade (ou de outro
direito real de gozo) que omita o registo do negócio aquisitivo não pode invocar perante
terceiros protegidos pelo registo, para efeito de afastar a prevalência destes, a posse do
alienante, sob pena da regra da inoponibilidade por falta de registo não ter, na prática,
qualquer eficácia. Em boa verdade, a aceitar-sc a tese da oponibilidade da usucapião, por
via da acessão de posses, bem poderia o adquirente que não registou invocar as posses
que o precederam, inutilizando, assim, por completo o valor c eficácia da presunção
derivada do registo, talqualmente está consagrada no artigo 7.° do Código de Registo
Predial». É clara a associação da irrelevância das posses anteriores a um juízo de valor
sobre a omissão registai. Tem, então, cabimento o debate à luz da recente previsão da
obrigatoriedade registai.
24 Terceiros para Efeitos do Artigo 5.° do Código do Registo Predial, cit., pág. 449.
REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE TERCEIROS
À LUZ DA OBRIGATORIEDADE REGISTAL 27

6. Entretanto, a onerosidade. Importante doutrina exclui a previsão


de uma relação de dependência entre a tutela do terceiro e o sacrifício
económico, a onerosidade do acto que sustenta a sua pretensão. E, pois,
repudiado que os regimes do artigo 17.°, n.° 2, do Código do Registo
Predial e do artigo 291.° do Código Civil constituam normas de moti­
vação análoga à do artigo 5.° daquele diploma. Esclarecida é a posição
de Carvalho Femandes que, apartando a garantia prestada pelo registo
acerca da informação sobre a situação jurídica do prédio de uma caução
a respeito da validade dos actos inscritos ou da inscrição registai, enun­
cia a dissemelhança das previsões normativas em apreço: o registo não
pode «assegurar a bondade dos títulos inscritos ou do próprio acto de
inscrição, ou seja, que os primeiros ou o segundo não sofrem de vício
que os afectem no seu valor jurídico. Isso envolveria uma intolerável
sobrevalorização do registo e acabaria por resultar numa negação da
finalidade de segurança das relações jurídicas que a ele preside. Com
efeito, ninguém estaria seguro de não vir a perder os seus direitos, mesmo
que tivesse diligentemente registado os respectivos factos constitutivos,
por alguém conseguir registar um título falso e de seguida alienar o res-
pectivo direito a terceiro. A presunção fundada no registo não pode ir
tão longe»35. Noutros termos, escreve Paulo Videira Henriques: «(...) o
artigo 5.° não tutela contra outras vicissitudes que afectem a posição do
causante e, por força da invalidade consequencial, acabem por se projectar
também na esfera do beneficiário do registo definitivo. Na verdade, o
interesse geral na publicidade da situação dos bens continua, entre nós,
a subordinar-se ao princípio geral segundo o qual a retroactividade da
declaração de invalidade opera in rem e não apenas in personamvr6.
Segue-se que os artigos 17.°, n.° 2, e 291.° referidos sejam mais
exigentes na tutela do terceiro, requerendo a onerosidade do acto de
aquisição. Acontece que a inaplicabilidade desse requisito em sede
do artigo 5.° do Código do Registo Predial recebe de alguma doutrina
argumento complementar: além da justificação citada para a diferença
de regimes, o desinteresse do adquirente que não regista o facto anula a
tutela que a disparidade entre o seu sacrifício patrimonial e a vantagem
gratuita do terceiro legitimaria. Isto é, verifica-se uma concordância
entre a fundamentação da diferença de regimes e a sanção que a incúria
merece, privando de sentido a argumentação fundada na ausência de

25 Lições de Direitos Reais, cit., págs. 146 e scg.


26 Terceiros para Efeitos do Artigo 5° do Código do Registo Predial, cit., pág. 441.
28 HENRIQUE SOUSA ANTUNES

esforço económico do terceiro e, consequentemente, na preferência da


tutela do acto oneroso. Opera uma lógica idêntica à da culpa do lesado.
Isto, claro está, sem prejuízo da relevância dos efeitos subsequentes de
um acto gratuito: «(...) a ponderação não é apenas entre o interesse do
adquirente por título oneroso não registado e o interesse do donatário
que registou. Num dos pratos da balança devemos colocar o interesse
daqueles que não acautelam os próprios interesses, isto é, não registam;
no outro prato da balança, ao interesse do donatário devemos juntar aquele
interesse geral na publicidade oficial da situação dos bens»27.
Razoável parece, assim, repensar a tese descrita à luz da obrigatoriedade
registai e do modelo para esse efeito desenhado pelo legislador. À presun­
ção de titularidade do direito estatuída no artigo 7.° do Código do Registo
Predial é alheia a garantia da validade dos actos inscritos e do próprio
acto registai. Assim o vimos. Será a resposta diversa se de uma omissão
registai ilícita tratamos? O incumprimento da obrigação registai gera a res­
ponsabilidade de a entidade faltosa pagar o emolumento em dobro, sem a
faculdade de repercutir o agravamento na esfera do sujeito activo dos factos.
Que remédio é, no entanto, prescrito ao interessado? Este perde o direito
que adquiriu, mesmo se a aquisição do terceiro é gratuita? Somos de juízo
diverso. A ausência de registo é o ilícito de que o terceiro se aproveita, em
lógica semelhante à tutela de terceiro perante uma invalidade registai ou
substantiva. Eis o fundamento do requisito da onerosidade.

7. Ainda a respeito da protecção que o primitivo adquirente mereça


no contexto da obrigatoriedade registai, quid iuris se, inexistindo registo
provisório de aquisição, terceiro beneficia de um registo incompatível
promovido no prazo que a lei preveja para o cumprimento do dever de
registar em proveito do interessado? A necessidade do prazo de espera
que emerge da conjugação entre a confiança do sujeito activo na entidade
obrigada a registar e do tempo que a lei prevê para o cumprimento desse
dever permitiriam equacionar a legitimidade da exposição do interessado
ao risco da perda do direito. Penso que a resposta acompanha as reflexões
anteriores acerca de um registo de terceiro permitido pelo incumprimento

27 Paulo Videira Henriques, Terceiros para Efeitos do Artigo 5° do Código do Registo


Predial, cit., pág. 440. Sobre o reflexo da conduta do interessado na dispensa do requisito
da onerosidade para a tutela do terceiro, ver, ainda, as considerações de Heinrich Ewald
Hõrster, Anotação - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Março de 1982,
cit., pág. 133 (texto citado em nota deste artigo).
REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE TERCEIROS
Á LUZ DA OBRIGATORIEDADE REGISTAL 29

do dever de registar, porventura, mesmo, por maioria de razão. É certo


que a entidade obrigada à promoção da publicidade permanece alheia ao
conflito relativo à titularidade do direito real, pelo que, dir-se-ia, ter ou
não incumprido o seu dever seria, para o efeito, irrelevante. Sublinha-se,
porém, que a entidade em apreço tem um dever para com o interessado.
O seu incumprimento gera, certamente, a obrigação de indemnizar, ser­
vindo a perda do direito real de fundamento à sanção negativa da ordem
jurídica. Há uma desconformidade com o Direito que inexiste se está
por vencer o prazo de cumprimento do dever de promover o registo. Na
ausência dessa desconformidade, apura-se tão-só um risco de perda do
direito em prejuízo do interessado, se a este não aproveita um registo
provisório de aquisição ou a posse efectiva da coisa controvertida.

8. Em suma, é inelutável a congruência da obrigatoriedade registai


com um conceito de terceiro que exceda a exigência de um transmitente
comum. São repetidos os ensaios que, procurando incluir naquele conceito
adquirentes em venda judicial e credores beneficiários de uma penhora,
de um arresto, de uma hipoteca legal ou judicial, vêem, consoante as
hipóteses, no devedor um transmitente comum ou, pelo menos, de acordo
com a terminologia legal, um autor comum28. A reforma do registo,
introduzindo a obrigatoriedade, é incompatível com a persistência de
dúvidas. São terceiros, para efeitos do artigo 5.° do Código do Registo
Predial, aqueles que legitimam direitos total ou parcialmente incompatíveis

2S Neste último sentido, escrevem, por exemplo, Luís M. Couto Gonçalves («O
legislador cm vez de escolher a expressão transmitente (mais própria da transmissão da
propriedade) escolheu o termo autor que pode englobar outro tipo de constituição não
voluntária de direitos sobre o bem, nomeadamente direitos decorrentes da penhora e da
venda executiva» - Terceiros para efeitos de registo e a segurançajurídica, cit., pág. 28),
Ana Maria Taveira da Fonseca («(...) apesar de a penhora não pressupor um acto volun­
tário do devedor, a verdade é que se funda num incumprimento deste. Consequentemente,
ainda que este não tenha transmitido voluntariamente o bem que anteriormente alienou,
deu origem à penhora. Entendemos, por isso, que não pode deixar de se considerar
que o direito do adquirente que não registou a sua aquisição e o direito do penhorante
procedem de um autor comum» - Publicidade espontânea e publicidade provocada de
direitos reais sobre imóveis, cit., pág. 20) e Rui Pinto Duarte («Ao referir, no n.° 4 do
art. 5.°, “autor comum” — e não “transmitente comum” - o legislador parece ter querido
abranger mais do que as transmissões voluntárias, possibilitando, pois, a defesa da tese
da prevalência, na situação-tipo discutida, do direito do penhorante» - Curso de Direitos
Peais, 2." ed., Estoril, 2007, pág. 150).
30 HENRIQUE SOUSA ANTUNES

no mesmo registo29. Esclareça-se, porém, que, apesar do silêncio da


lei, na ausência de fundamentação substantiva, a prioridade registai só
aproveita ao terceiro de boa fé que adquiriu a título oneroso. Reitera-se
que assim o impõe a reconfiguração do ónus de registar em confiança
no cumprimento do dever de registar por terceiro. Lembra-se, por fim,
que, em nosso aviso, exclui a boa fé a posse efectiva do interessado.
A composição mais apropriada dos interesses que a publicidade regis­
tai envolve pressupõe, no entanto, uma mudança de paradigma sobre os
efeitos do acto de registo. A previsão do alcance constitutivo desse acto
permitiria evitar os riscos que a dilação entre a aquisição do direito real
e o anúncio público dessa transmissão ou constituição cria. Em suma,
prevenir-se-ia a escolha, delicada, de uma tutela macro-económica, de
certa forma difusa, em detrimento de um interesse que, embora particular,
possui, quantas vezes, significativa relevância social 3O-31.

29 Sobre a impropriedade de um conceito fundado na confiança em registo comum, tem


relevo as considerações de Oliveira Ascensão: «O fundamento geral do registo atributivo
está na fé pública do registo. Fala-se frequentemente na “confiança no registo”, atribuindo-
-Ihe função equivalente. Mas essa confiança teria de ser totalmcnte dcssubjcctivada, o
que tira todo o valor à referencia. Pouco interessa que o terceiro tenha historicamente
feito fé ou não num registo preexistente; basta o facto objcctivo da preexistência do
registo desconforme. mas assegurado pela fé pública do registo. A confiança no registo
seria quando muito um fundamento da regra (logo abstracto) e não da sua aplicação
(logo concreto). Havendo registo preexistente, só se exige do beneficiário a boa fé. O
fundamento do instituto está na própria fé pública do registo, e não cm qualquer princí­
pio da confiança, que não tem significado geral na ordem jurídica portuguesa» (Direito
Civil - Reais, 5.“ ed., Coimbra, 2000 (reimpressão), pág. 376).
30 Escreve Maria Clara Sottomayor que a salvaguarda do crédito é exccpcionável por
razões sociais: «(...) na hipótese de o imóvel penhorado servir de habitação a pessoas
carenciadas, nomeadamente, a mulheres com crianças, idosos ou pessoas portadoras de
deficiência, a cargo, por força da aplicabilidade directa, das normas constitucionais que
defendem direitos, liberdades e garantias, e tendo cm conta a função social do património
como fonte de subsistência» (Invalidade e Registo, cit„ págs. 365 c seg.).
31 A rapidez da circulação dos bens, a migração das pessoas para centros urbanos e a
adequação do registo às novas tecnologias de comunicação justificam a primazia que em
relação à posse lhe deva ser reconhecida (neste sentido, Mouteira Guerreiro, Publicidade
dos direitos reais - posse, registo e prova dos direitos, in «Scientia Ivridica», tomo
LVI, n.° 30 (Abril/Junho 2007), págs. 309 e segs). Essa prevalência só é, no entanto,
compatível com um regime em que o direito acompanhe o registo, subtraindo à posse a
legitimação substantiva que a ligação à coisa confere c que a sujeição à obrigatoriedade
registai de terceiros acentua. Há um plano de vida que o beneficiário executa e que o
direito substantivo ratifica. Se, em proveito do comércio jurídico em geral, ao registo
se associa melhor sistema de publicidade deve ele condicionar a titularidade do direito.

Você também pode gostar