Abraçando A Complexidade

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Abraçando a

complexidade
Uma releitura

Fábio Adiron
1
Um introito necessário

No final de 2023 recebi como sugestão de leitura


um longo artigo do Tony Seale (que se define como
um engenheiro de grafos e que fez carreira como
desenvolvedor de sistemas), que foi publicado na
Medium em 20221

Como é do meu costume, especialmente em textos


mais longos, fui fazendo anotações à medida que
lia o artigo e, quando percebi, minhas anotações já
estavam ficando quase tão longas quanto o texto
original, até porque eu costumo não só anotar as
ideias que mais me chamam a atenção em um
texto, mas rabiscar as ideias correlatas que
identifico com outras coisas que já estudei.

O texto que se segue não é, portanto, nem uma


tradução nem uma resenha do texto original,
talvez a melhor definição que eu possa dar para
ele é que é uma releitura onde alguns pontos são
literalmente o fala Seale, mas a sua maioria é a
minha forma de interpretar o que ele escreve.

1
Quem tiver interesse no original pode ler em:
https://medium.com/experience-stack/embrace-complexity-
part-1-39483f10a47f

2
Por isso, se você achou esse tema relevante,
recomendo muito que também leia o texto
original, cujo link está na nota de rodapé da página
anterior.

3
Uma teia de aranha

Responda rápido: o que curativos cirúrgicos,


tecidos usados na fabricação de paraquedas e
sensores eletrônicos supermodernos têm em
comum? Teias de aranha! Isso mesmo: apesar de
funções completamente diferentes, todos esses
itens buscaram algum tipo de inspiração nas teias
– seja por sua arquitetura ou por sua característica
elástica, pegajosa e resistente.

“As teias são feitas de uma seda composta por


proteínas. Na maioria dos casos, a estrutura é
usada para a captura de presas, como os insetos,
que servem de alimento para as aranhas. Além
disso, são refúgios de proteção e reprodução do
animal”2

Agora me responda, o que uma teia de aranha tem


a ver com arquitetura de redes?

Na língua portuguesa, a palavra rede tem origem


no latim “rete”, termo do século XIII que designava
uma teia de aranha e tem relações com as palavras
laço e sedução (ela atrai e prende as suas presas).

No mundo digital, nos perguntamos porque as


empresas não conseguem atrair (e extrair para sua

2
Antonio Brescovit: pesquisador científico do Laboratório de
Coleções Zoológicas do Butantan

4
alimentação) informações relevantes dos seus
sistemas e, de outro lado as bigtechs são capazes
de prever até a cor da cueca (ou calcinha) que você
está usando nesse exato momento.

A resposta é simples, ainda que a solução não seja.


Até porque a solução está na aceitação e na
imersão na complexidade. Não é uma solução
plug-and-play como muitos esperam, mas a
interconexão das redes infra estruturais em uma
rede super estrutural. Redes de dados e neurônios
artificiais modelando sistemas complexos a partir
de comandos de humanos que, seja do ponto de
vista individual, seja do ponto de vista coletivo e
social, também são sistemas complexos.

Não custa lembrar, complexo não é complicado.

Algo complicado pode ser difícil de entender, mas


segue a lógica cartesiana de disjunção analítica
(dividir em partes para entender o todo). Lógica
necessária para os sistemas complicados, mas
insuficiente para os complexos.

A complexidade, por outro lado, não está


sustentada por pilares, mas enredada em tramas
diversas (criadas por aranhas imaginárias das mais
diversas espécies), a saber: a incerteza, a
emergência, o contraditório, que demanda um
pensamento dialógico (antagônicos que se

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complementam), do hologramático (o todo em um
ponto e cada ponto no todo), na autopoiese (a
auto regeneração interna dos sistemas), no
terceiro incluído.

No complexo não existem respostas binárias


(zero/um, preto/branco, certo/errado). Até mesmo
o ruído que tradicionalmente entendemos como
prejudiciais aos sistemas, na complexidade é um
fator de retroalimentação positiva desses mesmos
sistemas.

O problema é convencer as pessoas disso.


Lembrando que até 500 anos atrás (quase) todo
mundo acreditava que a Terra era plana. Linhas
retas sempre foram mais fáceis de entender do
que curvas e entrelaçamentos. Complexo, na sua
origem, quer dizer entretecido, algo ainda menos
fácil de imaginar – exceto, é claro, para as aranhas.

Para piorar, curvas e entrelaçamentos podem


surtar e tornaram-se exponenciais. Está feito o nó
górdio nas cabeças cartesianas.

O que funciona bem em relógios, engrenagens e


máquinas, nem de perto funciona em algoritmos,
big data, cloud e nas muitas variações da
inteligência artificial. É preciso ir além da mecânica
analógica, inclusive do ponto de vista
organizacional e de recursos humanos. Juntar

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todas essas informações, que já são complicadas,
bagunçadas e antagônicas, em uma só entidade
super estrutural é um desafio monstruoso.

É preciso ir além das linhas retas que dividem e


hierarquizam as organizações e suas informações
estocadas em silos. A visão sistêmica (onde as
relações entre os pontos são tão ou mais
importantes que os pontos em si) é o caminho
para abraçar a complexidade.

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Abandonando o terraplanismo

Essa não é a única dimensão da complexidade.


Conectar informações que estão em permanente
mudança esperando que elas funcionem
linearmente (ou com relações perfeitas de causa-
efeito) é uma ilusão. Por mais bonitinha que
pareça a analogia da trilha de dominós derrubando
um ao outro de cada vez, é uma falácia.

A realidade é muito mais sutil que isso. A


causalidade pode acontecer em círculos em
retroações3 negativas ou positivas que degradam
ou intensificam as causas originais tornando-as
irreconhecíveis. Isso acontece de forma
desordenada, fragmentada e caótica.

Aprendemos na escola a segunda lei da


termodinâmica que preceitua que a desordem de
um sistema tende a aumentar com o tempo (aliás
a mesma regra que Shannon identificou na sua
teoria da comunicação).

Nos sistemas complexos, no entanto, é possível


também perceber a neguentropia (chamada por
alguns de entropia negativa) que reorganiza os
sistemas. Isso é perceptível no nosso sistema

3
Chamamos aqui de retroações o que Seale denominou de
“feedback loops”, que poderia ser traduzida como uma
retroalimentação circularmente entrelaçada.

8
orgânico que se autorregula em vários aspectos. O
que não significa que a neguentropia restaura
obrigatoriamente o estado original, ao contrário,
muitos vezes ela reorganiza o sistema de uma
maneira que o transforma em outra coisa.

Além disso os sistemas complexos são


autopoiéticos, como identificaram os chilenos
Humberto Maturana e Francisco Varela, ou seja,
tem a capacidade de produzirem a si próprios, algo
que os sistemas mecânicos (ainda) não tem.

Segundo Tony Seale: “uma rede em camadas,


consegue aprender com o passado, de forma que
as predições de futuro podem afetar o presente”. É
como se revertêssemos a flecha do tempo,
desfazendo a entropia e criando uma nova ordem
em um universo cada vez aparentemente mais
confuso. O que também não significa o fim da
entropia (que se complementa à neguentropia de
forma dialógica), afinal, a desordem continua
crescendo à medida que os muitos sistemas
interagem.

A retroações podem agir para restaurar o


equilíbrio de um sistema, que é o que acontece
habitualmente em sistemas complicados a partir
de regras pré-estabelecidas (como é o caso de um
termostato), mas também podem ser retroações
positivas ou reforçadoras de uma mudança natural

9
de um sistema complexo, provocando o
crescimento ou uma queda dentro do sistema. As
retroações positivas, além de forma incerta e
emergente, tendem a ser exponenciais.

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O estado da organização

Toda organização (no sentido mais lato da palavra)


se mantém e se desenvolve sobre o processo de
retroações. Daí a necessidade de abraçar o
pensamento complexo, até porque é ele que vai
ajudar a entender melhor, ainda que não de forma
completa, as mudanças nesse sistema complexo
chamado sociedade.

Deixar de atentar para essas mudanças pode


colocar qualquer organização em risco. É
impossível fingir que nada está acontecendo lá fora
(como se a organização fosse um sistema fechado).
Ficar enfurnado no castelo não vai resolver, até
porque ele não passa de um castelo de cartas.

Também não é possível imaginar essas retroações


complexas irão comportar-se como sistemas
controláveis. Acreditar que são como aquele
termostato que regula a temperatura é acreditar
que tudo continuará como sempre foi (business-as-
usual).

A vida seria fácil em um sistema de retroações


previsíveis, onde poderíamos estabelecer regras de
equilíbrio pré-determinadas. Em um mundo que é
incerto, contraditório, de mudanças emergentes,
não linear e não binário a história é outra.

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Nossa civilização já passou por várias mudanças
estruturais profundas. Como identificou Bauman,
essas etapas destruíam a estrutura anterior e
construíam uma nova de forma sólida. Isso não
acontece mais, tanto que ele definiu esse século
como o do advento da modernidade líquida – a
mudança é uma constante e não mais apenas uma
fase.

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Sociedade tecnologicamente em rede

Alguns acreditam que o que estamos passando


nesses dias de digitalização e inteligência artificial
é mais uma dessas mudanças gigantescas, como
foram a passagem do nomadismo para a
agricultura, dessa para industrialização, dessa para
a mecanização e, agora da mecanização para a
sociedade tecnologicamente em rede (STR).

Só que essa “fase” já passou por uma coleção de


intrafases que sempre a transformam em algo que
não existia e em prazos cada vez mais curtos. Seale
entende que a STR tem três intrafases: dados,
nuvem e IA. Elementos profundamente
interconectados e que, combinados, produzem
retroações ainda mais intensas, mas não menos
incertas e contraditórias.

As bigtechs estão criando ferramentas de IA


fascinantes, mas precisaram de bases de dados
que beiram o ilimitado e um poder de
processamento quase bélico. O problema é que
isso não é a realidade do resto do mundo que não
tem (e nem vão ter) essa riqueza de dados. Pode
até possuir dados internos de últimos 10, 20, 100
anos. Um datacenter armazenando quaquilhões de
bytes – mas isso ainda é apenas uma pequena
(muito pequena) parcela dos volumes de dados de
uma OpenAI, um Google ou Meta.

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Por outro lado, dá para fazer muita coisa com esses
dados limitados. Desde que eles estejam
interconectados, o que, infelizmente, ainda está
muito longe da realidade. Empresas onde os dados
financeiros não conversam com os de marketing,
onde dados de AT (automação industrial) não tem
nenhuma interface com os dados de TI. Como
poderiam dar o próximo grande passo que é
conectar as redes de dados (data), com as redes de
computação (cloud) com as redes neuronais (IA)?

Além disso, como ter alguma intenção de navegar


na complexidade sem que essas partes
importantes ainda nem conversem entre si?

Como pretender mapear retroações recorrentes


sem uma estrutura mínima de “leitura” do
universo organizacional?

A complexidade nunca vai permitir que tenhamos


sucesso absoluto em prever todas as emergências,
em reduzir totalmente as incertezas, nem eliminar
os conflitos dialógicos.

Mas certamente existe muito espaço para


melhorias.

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Fábio Adiron é um leitor e escritor compulsivo.
Desde 2007 escreveu em quatro blogs de
diferentes assuntos, além de artigos e capítulos de
livros sobre marketing em inclusão.

Em 2021 publicou “O mito de um mundo melhor”


e, em 2022, “O dragão da inteligência artificial
contra o guerreiro da desinteligência natural” e,
em 2023, “Espelhos ilógicos – dialógica, conflitos e
decisões” e também o e-book “Reflexões sobre a
liberdade”, a partir da parábola do Grande
Inquisidor de Dostoiévski, e em 2024 “Dentro da
mosca azul” em parceria com Gab Piumbato.

É profissional e professor de marketing e aprendiz


da teoria da complexidade, e um eterno curioso
sobre os mais diferentes ramos do conhecimento.

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