O Homem Do Castelo Alto Philip K Dick
O Homem Do Castelo Alto Philip K Dick
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PHILIP K. DICK
COLEÇÃO ASTERÓIDE — 2
Direção de JOSÉ SANZ
Sobre o autor
...Para citar um santo ocidental conhecido de todos nós: "De que adianta a
um homem ganhar o mundo inteiro se perde a alma?
O rádio parou. Frink, dando o nó na gravata, também
parou. Era a ablução matinal.
Tenho que entrar em algum acordo com eles aqui,
decidiu. Boicotado ou não, seria a morte para mim deixar o
território controlado pelos japoneses e aparecer no Sul ou
na Europa — em qualquer parte do Reich.
Vou ter que entrar num acordo com o velho Wyndam-
Matson.
Sentado na cama, com uma xícara de chá morno ao
lado, Frink tirou o I Ching da prateleira. Do tubo de couro,
tirou as quarenta e nove varetas de yarrow. Refletiu, até ter
os pensamentos sob controle e as perguntas formuladas.
Disse em voz alta: "Como deverei aproximar-me de
Windam-Matson de maneira a conseguir um acordo decente
com ele?" Escreveu a pergunta na tabuinha e começou a
passar as varetas de uma mão para a outra até obter a
primeira linha, o início. Um oito. Metade dos sessenta e
quatro hexagramas eliminados de saída. Dividiu as varetas
e obteve a segunda linha. Como tinha prática, logo
conseguiu todas as seis linhas; o hexagrama estava
formado e nem era preciso consultar o quadro. Reconheceu-
o como o Hexagrama Quinze Ch'ien. Modéstia. Ah! Os
humildes subirão, os soberbos cairão, as famílias poderosas
serão humilhadas; nem precisava consultar o texto — já o
sabia de cor. Um bom presságio. O oráculo estava dando
conselhos favoráveis.
Apesar disso, sentiu-se um pouco decepcionado. Havia
uma certa infantilidade no Hexagrama Quinze; muito
ingênuo. Claro que tinha de ser modesto. Talvez fosse esse
o negócio. Afinal, ele não tinha nenhum poder sobre o velho
W.M. A única coisa que podia fazer era adotar o ponto de
vista do texto do Hexagrama Quinze; o momento era
daqueles em que é preciso solicitar, esperar, aguardar com
fé. O céu na hora certa faria com que fosse readmitido ou
talvez até promovido.
Não tinha para ler nenhuma linha, pois não tirara
nenhum seis ou nove; era um hexagrama estático. De modo
que estava terminado. Não ia começar outro hexagrama.
Uma nova pergunta, então. Preparando-se, disse alto:
"Será que ainda verei Juliana?"
Era sua mulher. Ou melhor, sua ex-mulher. Juliana
divorciara-se dele há um ano, e não se viam há meses; ele
nem sabia onde ela estava morando, obviamente, deixara
São Francisco. Talvez até os E.A.P. Os amigos comuns não
tinham recebido notícias ou as estavam escondendo dele.
Dividiu as varetas de yarrow com atenção, os olhos fixos
nas combinações. Quantas vezes indagara sobre Juliana, de
uma forma ou de outra? Lá vinha o hexagrama, surgido da
divisão das varetas ao acaso. Indefinido, mas enraizado no
momento que estava vivendo, em que sua vida estava
ligada a todas as outras vidas e partículas do universo. O
hexagrama representava necessariamente, com seu padrão
de linhas inteiras e partidas, a situação. Ele, Juliana, a
fábrica de Gough Street, a autoridade das Missões
Comerciais, a exploração dos planetas, os bilhões de corpos
amontoados na África, que agora não eram nem mais
cadáveres, mas matérias-primas químicas, de criaturas
vivendo em torno dele nos barracos de São Francisco, os
dementes de Berlim, com seus rostos calmos e planos
maníacos — todos ligados a este momento de jogar as
varetas para selecionar a sabedoria apropriada num livro
iniciado no século XXX a. C. Um livro criado pelos sábios da
China num período de cinco mil anos, burilado,
aperfeiçoado, aquela soberba cosmologia — e ciência —
codificada antes que a Europa tivesse aprendido a extrair
raiz quadrada.
O hexagrama. Seu coração parou. Quarenta e quatro.
Kou. Vir ao Encontro. Seu julgamento ponderado. A donzela
é poderosa. Não se deve casar com tal donzela. Mais uma
vez saía isso em relação a Juliana.
Oy vey, pensou, tornando a deitar. Então não era feita
para mim; eu sei. Não foi isso que perguntei. Por que o
oráculo tem que me lembrar disso? Uma falta de sorte para
mim, tê-la encontrado e me apaixonado — e estar
apaixonado — por ela.
Juliana — a mulher mais bonita com quem já se casara.
Sobrancelhas e cabelos negros: leves traços de sangue
espanhol distribuídos em pura cor, até em seus lábios. Seu
andar leve e silencioso; usava sapatos de tênis do tempo de
colégio. Mesmo suas roupas tinham todas um ar meio
arruinado, deliberadamente usadas e muito lavadas. Eles
passaram tanto tempo sem dinheiro que, apesar de sua
beleza, ela tivera que usar suéter de algodão, jaqueta de
pano com fecho-ecler na frente, saia castanha de tweed e
meias curtas de colegial; e ela o odiava porque dizia que
desse jeito ficava parecendo uma daquelas mulheres que
jogam tênis ou (pior ainda) recolhem cogumelos nos
bosques.
Mas acima e além de tudo, ele fora atraído de início por
seu ar aloucado; sem a menor razão. Juliana cumprimentava
gente totalmente estranha, com um portentoso sorriso à
Mona Lisa, que as pessoas ficavam surpresas e paravam,
antes de responder, fosse para dizer alô ou não. E ela era
tão atraente que na maioria das vezes diziam mesmo alô,
diante do que Juliana passava ereta. No início, chegou a
pensar que ela fosse míope, mas depois verificou que era
mesmo uma profunda estupidez cuidadosamente
escondida. E assim, finalmente, começou a irritar-se com
seu cumprimento de relance a estranhos e com a maneira
vegetal, silenciosa, que tinha de ir e vir como se estivesse
em alguma missão secreta. Mas, mesmo assim, mesmo no
final, quando brigavam tanto, ele nunca deixou de encará-la
corno uma invenção direta, literal, de Deus, surgida em sua
vida por motivos que não lhe eram dados a conhecer. E por
isso — uma espécie de intuição religiosa ou fé em relação a
ela — não se conformava de tê-la perdido.
Parecia tão próxima agora... como se ainda fosse sua.
Aquele espírito, ainda ativo em sua vida, girando
silenciosamente pelo quarto em busca de fosse o que fosse
que Juliana buscava. E também em sua mente, cada vez
que apanhava os volumes do oráculo.
Sentado na cama, cercado da desordem de sua vida
solitária, preparando-se para sair e começar seu dia, Frank
Frink se perguntou quem mais na vasta e complicada São
Francisco estaria naquele exato momento consultando o
oráculo. Teriam recebido conselhos tão tétricos quanto ele?
Seria o teor do Momento tão adverso para eles quanto o era
para ele?
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