Seven Seas
Seven Seas
Seven Seas
SUMÁRIO
DEDICATÓRIAS
7
SINOPSE
8
CAPÍTULO
I 9
CAPÍTULO
II 21
CAPÍTULO
III 28
CAPÍTULO
IV 38
CAPÍTULO
V 47
CAPÍTULO
VI 65
CAPÍTULO
VII 80
CAPÍTULO
VIII 94
CAPÍTULO
IX 115
CAPÍTULO
X 131
CAPÍTULO
XI 152
CAPÍTULO
XII 180
CAPÍTULO
XIII 205
CAPÍTULO
XIV 231
CAPÍTULO
XV 254
CAPÍTULO
XVI 276
CAPÍTULO
XVII 302
CAPÍTULO
XVIII 343
CAPÍTULO
XIX 361
CAPÍTULO
XX 380
CAPÍTULO
XXI 397
CAPÍTULO
XXII 414
CAPÍTULO
XXIII 437
CAPÍTULO
XXIV 452
CAPÍTULO
XXV 470
CAPÍTULO
XXVI 476
EPÍLOGO
483
AGRADECIMENTO
488
NOTAS DA AUTORA
Passei dois anos da minha vida escrevendo este livro, imaginando
como seria um dark romance de época com enemies to lovers. Quando
finalmente consegui finalizá-lo, me encontrei perdidamente apaixonada.
Espero que essa paixão te envolva também.
Apresento esta obra para os fãs da Lana Del Rey, que assim como
eu, adora um personagem quebrado, com olhos indomáveis, mente frenética
e um passado triste. Que o fascínio pela tristeza toque nossos corações e a
escrita deste livro satisfaça nosso fetiche pela melancolia.
Sejam bem-vindos a Seven Seas.
Sejam bem-vindos à cidade que foi criada ao som de West Coast.
DEDICATÓRIAS
Livro dedicado a todos aqueles que são apaixonados pelo mar, mas
que se esqueceram que ele é um assassino.
SINOPSE
Por incrível que pareça, o desprezível homem conhecido como
Demônio dos Sete Mares tem a maravilhosa e temida capacidade de amar.
Archiviéste é intensamente apaixonado pelas pequenas marés que o mar
libera quando a lua não está em seu ápice reluzente. Ele também é
apaixonado pelo som alto e aconchegante que ecoa das ondas em
movimentos simultâneos junto ao reflexo luminoso que, com o brilho da
lua, faz o mar refletir e exaltar toda a beleza existente na vida do seu
interior catastrófico. Uma catástrofe tão linda que, para ele, vale a pena
rasgar a carne e sujar a lâmina de sangue. Afundar navios e navegar sob
mentiras.
Segredos. O mar tem muitos segredos.
E isso causa-lhe uma sensação eufórica só de pensar em revelá-los,
em caçá-los pelas ondas magnéticas, desvendá-los pelos mapas silenciados
e resguardados, ter conhecimento sobre suas fraquezas, dominar seus
pensamentos… Isso o deixa enlouquecidamente entorpecido. Ansioso para
destruir aquilo que demorou séculos para ser construído, como uma
pequena criatura pecaminosa.
Ele gosta, posso até dizer que ama, tomar decisões estrategicamente
arriscadas, quebrar as regras que ele mesmo propôs, se deixar levar
emocionalmente por imprudência com um pouco de agitação marítima. E
uma dessas decisões foi se apaixonar por quem não devia, pela mulher que
jurou, na sua honra, matar sem pensar duas vezes, manipular e desfazer. A
mulher que, impressionantemente sozinha, desmanchou todo o império de
sua família contrabandista. Ele se apaixonou por mim.
Sou a guardiã do segredo que ele está desvendando.
Espero que esse garoto saiba que o tempo não está ao seu lado e,
desta vez, o mar também não, porque eu sou o mar que ele está navegando.
E vou naufragá-lo com minhas mentiras.
CAPÍTULO I
Dezembro de 1840, Inglaterra.
CAPÍTULO II
Ele chegou. Respiro fundo, mesmo não sentindo o ar entrar nos
meus pulmões, mesmo não sentindo minha caixa torácica ser preenchida
por completo. Respiro fundo, ainda sentindo que o ar mais corre do que
entra no meu corpo. Pisco, processando, e, aos poucos, analisando a
informação adquirida pelo meu raciocínio. O homem alto de fios negros e
olhos musgos entra com os pés sujos de cristais brancos feito de gelo no
piso madeirado da grande casa, sua grande casa, coisa que sempre deixa
bem claro para mim durante nossas extensas brigas cotidianas. Concebo sua
entrada pela voz afinada de Katharine ecoando, alta e nítida, chamando pelo
nome de Edward enquanto salta em pequenos pulos, feliz pelo homem de
passado sujo ter entrado no local inerte.
Apesar de não me encontrar na sala de recepção, consigo imaginar a
cena perfeitamente através das pálpebras fechadas. O que antes me trazia
paz, neste exato momento é um dos responsáveis pela criação da minha
conjectura, pois, detalhadamente, fantasio a cena que causa guerra: ela
colocando as mãos suaves por cima de seus ombros, pressionando as unhas
afiadas em sua carne, aproximando seu corpo curvilíneo e esteticamente
perfeito para perto de seu peito, encostando os dois corpos, persuadindo as
almas e excitando os olhos. Existe uma química não quântica entre eles,
isso é bem notável aos olhos de qualquer pessoa que visita essa casa, que
sempre lembram-me disso, principalmente quando me analisam com aquele
olhar de pena.
Passo a mão por cima dos meus ombros, aquecendo meu próprio
corpo com os dedos. As correntes de ar glaciais de inverno nunca foram um
atrito significativo para mim, havia algo me incomodando internamente e
eu sei o que é. Começo a caminhar em direção à sala onde se encontra o
casal, ainda com o atrito interno gritando na minha mente e cuspindo o gelo
que esfria minha pele. Coloco uma mecha de cabelo por trás da orelha
enquanto piso no começo do corredor. Dou uma pequena meia-volta com os
calcanhares, virando o meu pé e obrigando meu corpo a virar-se em direção
à escada. Respiro fundo, tensa por não querer identificar a estreita balbúrdia
da sala. Desço o primeiro degrau, os sons já tão explícitos que fica
impossível não perceber que é um beijo, um selar de sentimentos.
Ele faz com ela tudo o que eu queria que fizesse comigo.
Desço o segundo, o terceiro e o quarto degrau. O moreno aperta a
cintura dela. Desço o quinto, o sexto e o sétimo. Desta vez é um gemido de
Katherine que ecoa nos meus ouvidos. Seguro a barra do vestido enquanto
desço o oitavo, o nono e, finalmente, chego no décimo degrau.
— Você é linda — Edward sussurra contra o ouvido da moça,
apertando sua carne e trazendo seu corpo para perto, como fazia comigo
antes de se enjoar, como um brinquedinho velho dentro de um armário
esquecido, objeto usado e substituível. — É, de longe, a mulher mais linda
que eu já vi.
Engulo em seco, querendo sentir a dor descer pela garganta e chegar
ao peito, querendo senti-la se desfazer um pouco abaixo do meu estômago,
se degradando como as borboletas que ele provocava no início do
relacionamento, os mesmos insetos que foram sufocados por seu ego
inflado e traição torturante. Amar o homem que devia estar ao meu lado é
supérfluo: eu demonstro, ele destrói e, quanto mais eu o amo, mais ele me
odeia. Um conflito de emoções opostas que me quebra cada dia mais. Um
amor preenchido de lágrimas e sorrisos. Sangue e vida.
A famosa peça teatral de cura e morte.
Detestável. Viciante. Sempre tive consciência de que Edward me
traía e, querendo ou não, que Katherine era uma dessas amantes. Só que ver
isso ocorrendo diante dos meus olhos é completamente diferente. Os
gemidos, beijos, toques, elogios. A sensação é tão presente que se torna
impossível eu fechar minhas órbitas e dissimular, fingir que nada está
acontecendo. Como de costume, os holofotes estão focados em mim, é
impossível me esconder da plateia então continuo atuando.
Solto meu vestido e levanto a cabeça, descendo o décimo primeiro
degrau com o corpo erguido. Certifico-me de pigarrear estrépito, dando
indício claro de que estou chegando no local. Silêncio. Não ouço gemidos,
beijos e nem a sensação de toques que me incomoda. Aflita, termino de
descer os degraus, vendo os dois corpos separados um do outro, ela,
recostada na mesa cutucando com os dedos, totalmente ansiosa. Já o de
olhos musgos coloca calmamente seu casaco sobre a cadeira de madeira.
Atuando, igual a mim.
— Você por aqui, meu amor? — ironizo, usando o resto de sanidade
que ainda tenho sobre meu corpo. Atraio os olhos provocativos dela, mas
ele sequer olha para mim. Sua íris está fixa naquele maldito casaco sujo.
Não demonstro me abalar com isso e, mesmo se eu demonstrasse, ele teria a
capacidade de perceber. — Achei que só voltaria daqui a algumas semanas,
ou até mesmo meses.
— As estradas estão congestionadas pelo excesso de neve —
explica de imediato, tirando os grãos brancos e gelados do seu casaco
marrom com as mãos cobertas por luvas, fazendo com que os flocos
caíssem e sujassem o ambiente. — Tive que voltar, pois a carruagem
poderia acabar não suportando.
— Olhe para mim enquanto fala, Edward — o repreendo, ríspida,
com a cabeça erguida e o corpo áspero, idêntica a uma raposa. Chamo a
atenção de Katherine, com seus olhos azuis arregalados e cabelo loiro
espalhado pelo rosto, surpresa com a minha reação. O homem pisca
algumas vezes antes de virar as bochechas e realizar o meu pedido.
— Satisfeita, amor? — Lancellotti pergunta com a voz cansada,
olhando para mim e tirando as mãos da peça castanha. Assinto com a
cabeça sem oscilar minhas órbitas negras, movendo somente o pescoço. —
Por que está acordada a essa hora? Amanhã você tem consulta com o
médico, deveria estar descansando.
— Não estou com sono — respondo, colocando os meus fios
escuros e ondulados atrás da orelha. Confesso que fico levemente feliz por
meu marido ter, finalmente, se lembrado de alguma coisa referente a mim.
— Katherine, por favor, nos dê licença. — Pela primeira vez, fico
contente por ele ter tirado os olhos de mim e os ter colado nela. Confusa, a
garota de olhos azuis assente com a cabeça, se retirando da sala e subindo
as escadas. Edward a segue com o rosto até se encontrar com os meus
oceanos luminosos.
Se aproxima em passos lentos. Só para de caminhar quando fica
perto, perto o bastante para que eu possa sentir sua respiração falhar pelo
frio.
— Agora que estamos a sós — o homem inclina a coluna,
aproximando seus lábios do meu ouvido direito. —, podemos fazer algo que
não fazemos há muito tempo.
— Conversar como um casal normal? — brinco, tensa. Ele ri contra
o meu rosto e coloca uma de suas mãos na minha cintura, sem me puxar.
Edward não faz comigo o mesmo carinho que faz quando está com ela.
— Isso deixamos para depois que acabarmos a brincadeira, meu
amor. — Um apelido caracterizado como estranho há algumas horas, mas
que, neste exato momento, não é mais. Volto ao tempo em que sentia que
pertencia a ele, quando as promessas de amor ainda possuíam esperança de
serem cumpridas e as borboletas não estavam mortas. Antes de começarmos
a atuar. Ele interpreta o meu sorriso como um sim e aperta a minha cintura.
— Agora que estamos de acordo, decida aonde quer que eu comece.
Essa frase podia ser interpretada de várias maneiras diferentes, mas
o que todas elas tinham em comum é: eu decidia. Eu mandava. Ele
obedecia. Eu adorava estar no controle, o meu passado mostrava bem isso.
Olho para a mesa de recepção que fica perto das janelas vitrais escuros e,
quando volto aos olhos musgos, Edward entende a minha intenção com a
maior facilidade possível.
— Como você quiser — sussurra mais uma vez, com um sorriso
provocativo nos lábios. Coloco meus braços em volta do seu pescoço,
aproximando nossos corpos ainda mais. Ele leva suas mãos até a minha
bunda, me levantando e me obrigando a entrelaçar minhas pernas em seu
corpo.
Desde que nos conhecemos, Edward sempre foi um homem
fisicamente muito forte, consequência de trabalhar em portos marítimos
quando criança, antes de tomar o monopólio comercial para si e se tornar
um homem de negócios e escritório. Mas estando aqui, em seus braços,
passando a mão pelo seu peitoral, consigo perceber que o homem ainda não
perdeu a sua estrutura. Ele me apoia sobre a mesa, me colocando sentada na
superfície de madeira com as pernas cruzadas ao redor de sua cintura.
Coloco uma mão por trás para apoiar meu tronco e a outra levo ao seu
rosto. O garoto é, de longe, um dos homens mais bonitos de Penzance.
Olhos verdes, cabelos negros e lisos de comprimento médio, mas sem
nenhum corte feito, cílios pretos e boca grossa, olheiras fundas e maxilar
marcado. A estética facial dele sempre me agradou, no entanto, o que fez
com que eu me apaixonasse foi a sua personalidade decidida e objetiva.
Sua função de líder e seu aspecto forte de presença. E como isso
tudo se desfaz quando está comigo. Só há uma pessoa mais bonita que o
meu marido em todo o Submundo, mas não sei o nome do indivíduo
misterioso e não me importa. Agarro os seus fios negros e ele
automaticamente fecha os olhos. Puxo seu rosto para perto do meu,
encostando o meu nariz na sua bochecha ruborizada.
— Meu cachorrinho — digo baixinho contra seu rosto avermelhado,
suas bochechas estão vermelhas como as frutas escarlates do jardim
principal. Lancellotti apenas ri anasalado e abre os olhos verdes, analisando
o tipo de brincadeira que estou jogando.
— Sinto saudades — confessa, direto, apertando a minha cintura
com os dedos tensos. Desta vez, eu quem sorrio em meio a situação,
satisfeita com a fala noturna e sincera do homem. Afasto seu rosto e coloco
uma mecha do seu cabelo liso para trás, desfrutando os pequenos momentos
de toques. Calor.
— Seja mais explícito, Edward — ordeno, endireitando o meu corpo
sobre a mesa. Estou aproveitando para brincar, pois eu sei exatamente do
que ele está falando, sempre fui eu que soube dos seus desejos. — Meu
amor, você sente saudades do quê?
— De estar dentro de você apenas por estar e não porque você
deseja uma criança ridícula. Sempre me senti usado, Morgana.
Minha visão fica turva. Ataque. Edward Lancellotti me ataca. O
gelo que antes me incomodava volta a emergir de forma rápida e sombria.
Os atritos voltam a gritar e eles vêm acompanhados de confusão e distorção
da realidade. É ele quem quer uma criança, é ele quem usa isso como um
pretexto para me trair. É ele, sempre foi ele, o homem que me fez cometer
loucuras para poder dar à luz uma vida. Remédios, líquidos e até mesmo
algumas comidas de origem estrangeira. Tudo isso para realizar o seu
sonho. Só volto a enxergar novamente quando sinto o calor do seu corpo se
afastando, se desfazendo de mim, de novo. Meu marido coloca uma mão
atrás da sua própria nuca, dando pequenos passos para trás sem virar o
corpo, olhando para mim e... sorrindo? O causador da minha tristeza está
sorrindo. O moreno faz um estalo com a língua e nega com a cabeça.
— Achou mesmo que eu iria me submeter a isso novamente? —
pergunta irônico, me julgando com os olhos musgos, que cospem palavras
venenosas só por sua tonalidade se chocar com a minha pele. Arrancando
pedaços da minha sanidade. — Eu nunca mais vou transar com você,
Villain.
Aperto os meus olhos para não chorar pela devastação mental que
meu marido está fazendo em mim. Por segundos, eu pensei que poderíamos
voltar a ser como éramos antes. O desgraçado me deu essa esperança e
agora está massacrando-a. Edward estava apenas quebrando o brinquedinho
substituível. Continue atuando...
— O que aconteceu com a pessoa por quem me apaixonei? —
pergunto sem abrir meus olhos. Atualmente essa é a minha última arma de
defesa: fechar meu campo de visão e fingir que nada está acontecendo,
acreditar que tudo está escuro, criar esperanças de que tudo ficará bem. Mas
não está funcionando.
— O mesmo que aconteceu com o nosso amor — responde e
mesmo, sem enxergar, consigo sentir olhos maldosos sobre mim. —
Morreu.
Espero um tempo para formular outra pergunta.
— Edward — o chamo e ele murmura, frio e violento. —, você
alguma vez quis ter uma criança comigo?
— Sim — responde de imediato. — Antes de eu descobrir que você
não é a pessoa que eu imaginava.
Mais uma bola de neve na montanha escorregadia e abarrotada.
Ouço passos fracos, quase silenciosos. Ele está subindo a escada, ele está
indo até ela.
Formulo a minha última pergunta, mesmo não estando pronta para
ouvir a resposta. Mas, desta vez, eu abro os meus olhos: — Quando você
parou de me amar?
— Há quase oito anos. — O homem para de subir para me
responder, talvez um resquício de respeito. — E você, quando me amou?
Respiro fundo, buscando forças para responder sem gaguejar.
— Eu te amei quando te entreguei o monopólio, eu te amei no nosso
casamento, no nosso primeiro ano juntos, no segundo, no terceiro... Nas
nossas festas do pijama privadas, que sempre davam errado depois de
alguns minutos. — Desço da mesa de madeira. — Eu te amei enquanto
plantava no nosso jardim as suas frutas vermelhas preferidas, eu te amei sob
as estrelas, nua por cima do seu corpo. Vestida e deitada no seu ombro —
continuei falando enquanto andava até às escadas. — Eu te amei nos
navios.
Paro e viro o meu corpo, de frente e distante dele, olhando seus pés
no segundo andar.
— Eu te amei, Edward, principalmente quando você estava
transando com outra mulher no nosso quarto. Eu sempre ficava sentada no
sofá marrom, cutucando os meus dedos e pressionando as lágrimas
enquanto esperava você acabar. Sempre repetia para mim mesma que isso
era necessário, que você estava fazendo isso pelo nosso futuro, para a nossa
criança. — Faço uma pausa. — E, sabe, por toda a vida eu imaginei você
abraçando o nosso filho, correndo atrás dele pela casa, brincando, brigando,
aconselhando, amando.
Engulo em seco e levanto a cabeça, finalmente olhando para o seu
rosto. Perplexo.
— Eu te amei o tempo todo, Edward. Nos últimos dez anos da
minha vida o meu coração pertenceu a você — complemento, pondo um
fim nessa dolorosa conversa. — Então termine logo com isso e quebre-o.
Lancellotti pisca algumas vezes, processando todas as minhas
palavras. Pela primeira vez não me esforço para tentar saber o que ele está
pensando, pois sei que isso me machucaria caso encontrasse o que não
queria. Meu marido vira-se de costas para mim, aperto os meus olhos e o
homem sobe o primeiro degrau e anda até o quarto dela. O atrito grita
estridente sobre minha pele, cuspindo violentamente. Ele decide terminar de
quebrar, e quebra para todo o sempre.
Não sei se ainda sou capaz de amar.
CAPÍTULO III
A crista nívea e harmônica se auto desenhava na madrugada
brumosa, formando retratos abstratos de si própria em cima do ponto mais
alto das perigosas e traiçoeiras ondas noturnas. Uma falsificação artística
muito bem-feita que descreve suas perfeições assassinas, deixando claro o
quão atraentes e eficazes podem ser para o extenso mar. Escondem através
da beleza o verdadeiro motivo de estarem visíveis, ansiando pela atenção
dos habitantes de Penzance. Persuadem o corpo a caminhar até elas, senti-
las nos dedos dos pés, desejá-las passeando por sua pele, deitar-se na água,
se apaixonar por amplitudes, satisfazer vontades, se prender nas
turbulências da sua própria mente, para, finalmente, ser sufocado pelos
vales. Ser morto pela sua própria obstinação.
Aqueles que matam as pessoas que lhe amaram são os piores tipos
de assassinos, porém os mais comuns. E são os que mais passam
despercebidos pela justiça da sociedade.
Os humanos sempre esquecem que não há só uma maneira de
assassinato.
Escondendo suas intenções, expondo seu encanto. Sereias. Defino as
cristas localizadas em cima da agitação marítima como a voz das sereias
sedutoras, prestes a fascinar alguém com a sua melodia venenosa.
Inclino meus lábios, formando um sorriso morto para mim mesma.
Ouço o barulho satisfatório que ecoa do anel dourado sendo empurrado
contra a garrafa de rum quase vazia, são batidas baixas e sincronizadas. O
tanto que o mar me machucou é o mesmo tanto que ainda sou apaixonada
por ele, mesmo sabendo que as ondas negras e raivosas foram responsáveis
pela morte dos meus pais.
Estou alucinada pelo canto das sereias.
E agora, sabendo da decisão definitiva de Edward, tendo noção de
que ele não me ama mais — e de que, talvez, nunca me amou —, estou
atordoada, sinto-me perdida por completo. Estou presa no transe suicida de
minha própria mente, mais uma tempestade de neve na montanha, mais um
atrito arranhando meu ouvido, mais camadas de gelo sobre minha mente.
Acredito que a peça esteja quase se encerrando. Eu, porém, continuo
atuando.
Levo a garrafa de rum para perto do rosto, Balanço-a um pouco
antes de trazê-la até os lábios e derramo o resto do líquido adocicado pela
garganta. Bebo o máximo que consigo, mas não posso controlar que
algumas gotas escapem da boca, molhando meu queixo e a areia úmida da
praia. Não me importo. No momento, não tenho capacidade para isso.
A brisa salgada bate contra minha face, sacode os fios do meu
cabelo negro para trás e os tira do meu campo de visão. Concentro-me no
céu, na madrugada que é iluminada pelas estrelas resplandecentes, sabendo
que daqui a algumas horas a lua minguante estará dando lugar de destaque
ao sol. Isso tornará as coisas mais difíceis de serem feitas. Tornará as
pessoas mais difíceis de serem assassinadas. À propósito, estou viva? Não,
sim ou talvez?
Acredito que esteja na minha hora de ser sufocada pelos vales.
Jogo a garrafa transparente, agora vazia, na areia amarronzada e
úmida. Levo a mão direita até o laço que prende o meu vestido, que se
localiza na parte inferior das minhas costas. Desamarro a fita branca com
facilidade e, automaticamente, o corpete se afrouxa, deixando mais fácil de
ser removido. Depois de retirá-lo do meu tronco, tiro o vestido azul-
marinho, deixando que seu enorme babado exponha meu corpo e encoste
nos meus pés, misturando a sua cor naval com o marrom cascalho da areia.
Agora estou apenas com uma roupa íntima, quase transparente. Bocejo,
preguiçosa e desanimada, não estou nervosa como outras pessoas estariam,
até porque essa não é a minha primeira vez. Está na hora de acabar logo
com isso.
Vou atear fogo no palco. Incendiar a peça.
Começo a caminhar até as ondas marítimas influenciadas pela lua,
as similares ondas que levaram meus pais de mim, as mesmas pelas quais
sou apaixonada desde que me entendo por gente. As lágrimas ameaçam sair
dos meus olhos e simplesmente as deixo sair. Não é hora de segurar a
emoção e, sabendo disso, libero tudo o que aprisionei durante todos esses
anos.
— De todos os assassinos que passam despercebidos pela fraca
justiça social — digo com escárnio, aproximando-me das ondas magnéticas
que gritam pela minha carne. — Você é, de longe, o pior. O mais admirado
pelas pessoas. Elas inconscientemente esquecem o quanto você matou a
partir do momento em que se encantam por sua beleza.
Não ouso parar quando a água morna chega ao meu calcanhar.
— Mas eu não me esqueci. — Continuo caminhando. — Não me
esqueci das noites que passei em claro, chorando pela morte dos meus pais,
chorando ainda mais por amar o assassino deles. — Pela primeira vez, não
havia emoção nas minhas palavras. Estou entorpecida. — Não me esqueci
dos problemas que você me causou. — Neste instante, a água bate nas
minhas coxas. Continue caminhando, minha mente sussurra. Obedeço. Não
protesto. Não sei mais protestar. — Ainda assim, mesmo passando por tudo
o que passei, eu ainda te amo, ainda estou rendida por você. — Sorrio. — É
impressionante a capacidade que o ser humano tem de se autodestruir.
Agora a água bate na altura dos meus seios, deixando-os molhados e
perfeitamente visíveis através da camisola. Eu estou completamente nua
para os vales, balançando as pernas em movimentos coordenados e usando
as mãos como apoio, me forço a dizer entre as lágrimas salgadas: — Me
leve de volta para os meus pais, meu amor.
A amplitude da grande onda que vem em minha direção ultrapassa
duas vezes o tamanho da minha altura. Sempre classifiquei esse tipo de
onda como as “predadoras”. Elas nunca têm cristas, apenas uma força
violenta e uma vontade insaciável de causar o caos. Sede de morte. Arrasta
qualquer ser humano para o fundo do mar sem qualquer esforço, como se
fosse feita para atacar. Aprisionar. A pressão da água força o meu corpo
para baixo, não tento me defender ou nadar até a superfície, apenas fecho os
olhos e relaxo o meu corpo. Deixo-me afundar.
Os vales finalmente me levarão de volta para casa, penso, e então
eu apago.
CAPÍTULO IV
Pressiono o meu ouvido a identificar e captar cada sussurro do vento
ressoando violentamente nas copas aglomeradas de espinhos. Os longos e
chamativos ruídos trovejam como súplicas de velhas estrelas desnorteadas,
prestes a ter um colapso forte o suficiente para causar a exaustão de todos
os astros comparecidos ao seu redor. Os barulhos, estrondos ou qualquer
som alto causado pelo vento em movimento, me lembra o falecer das
estrelas noturnas. Uma associação com os gritos que as pessoas emitem
segundos antes de serem mortas, uma súplica de desespero e piedade ao seu
assassino, estruturada por um sentimento sufocante de medo, o combustível
das chamas incendiárias de fogo explosivo, causador do desabamento de
um prédio.
Porque é exatamente assim que nós, pecadores, nos sentimos
quando estamos perto de conhecer o inferno. As paredes do corpo desabam
e o interior pega fogo, pois é neste exato momento que até seu corpo teme
seu destino.
Sempre me pergunto onde nascem as estrelas, pois nunca acho nada
parecido com seu surgimento. Nunca obtenho respostas para a minha
curiosidade, apenas teorias: talvez elas realmente tenham sido criadas por
um deus aclamado por uma religião, aquele visto como o ser que criou
todas as coisas e que tem o conhecimento de tudo, algo que os seres mortais
nunca vão alcançar; ou elas apenas são formadas em um lugar pacífico, em
uma nuvem grande e extremamente fria, formada por gás e poeira
interestelar. Não tenho certeza e, sinceramente, essa não é uma hora boa
para se pensar nisso.
No momento, estou com uma adaga na mão esquerda, girando-a
entre os meus dedos longos, correndo alto risco de cortar-me. É um pouco
perigoso praticar esses movimentos na mórbida noite de inverno, todavia eu
sei que, no fundo, meu corpo desaprendeu a sentir dor. Paro a oscilação das
garras e começo a dos olhos, analisando a cidade de ponta a ponta,
fotografando a sua beleza antes de causar o caos. À noite, Penzance
ilumina-se com lamparinas pretas e acesas, feitas de ferro, penduradas ao
lado das janelas quadriculadas com vidro transparente. A luz amarelada não
precisa e não chega ao topo das casas, onde se encontram os telhados cinzas
e mal acabados.
Aqui o luar azul reina absurdamente, criando uma brincadeira de
rivalidade entre a cor quente e a fria. Quem vê a cidade de um prédio alto,
considera isso uma verdadeira competição de tonalidades. Pisco e guardo a
faca, que está na em mão, no cinto, umedeço os lábios e inclino a cabeça. A
minha sensibilidade ao ar não me impede de identificar quando alguém ou
algo se aproxima de mim.
— Da última vez em que você fez isso, eu cortei seu pescoço —
digo, calmo, olhando sobre os ombros e vendo o homem de olhos verdes-
musgo parado, imóvel sob minha pequena ameaça memorial. — Se você
estivesse mais perto naquele dia, eu teria lhe decapitado.
— É bom ver você também, primo. — Ele estende a mão para
cumprimentar-me. Apenas o ignoro e volto a olhar a cidade embelezada.
Percebendo isso, o homem resmunga baixo: — Como quiser.
Edward coloca as mãos dentro do bolso da calça preta e me analisa
como se eu fosse um fantasma que veio assombrá-lo no engatinhar da
madrugada. Bom, o moreno não está totalmente errado. Ele limpa a
garganta e põe os seus olhos verdes sobre as casas.
— Como ela está? — pergunto, reprimindo minhas bochechas. Eu
quero ver essa garota no caixão, ela vai pagar por todos os pecados que
cometeu junto com sua família. — Espero que esteja quase morta, tossindo
até o peito doer e as lágrimas a engasgarem.
Ele ergue a sobrancelha, processando devagar.
— Por que você mesmo não desce e a mata logo? Ela não tem
chance, você está em vantagem, sabe disso — o homem diz, parcialmente
confuso. Vira seu corpo para mim e sorri. O filho da puta acha que eu não
sei dos pecados que ele cometeu. Edward, Edward... Depois dela, vai ser
você. E vou pegá-lo de surpresa, da mesma forma que você fez. Quando
seus olhos se fecharem, as chamas vão queimar sua pele do mesmo modo
violento que queimaram a minha no dia em que o barco da minha família
naufragou.
Não tiro os olhos da cidade.
— E acabar com o sofrimento dela? — pergunto, negando com a
cabeça. — Por favor, Edward. Você é mais inteligente que isso.
— Quer fazê-la sofrer mais? Fizemos com que se apaixonasse por
mim a ponto de perder a sua própria personalidade para que depois eu a
traísse. A deixamos infértil, manipulamos a sua empresa. Morgana está
emocionalmente desestabilizada e, daqui a pouco, quando descobrir que
todo o seu dinheiro foi transferido e que o monopólio comercial foi
autenticado e cedido a você, Villain vai estar fodida financeiramente
também. — O seu tom de voz está um pouco alto. Dou-lhe um olhar de
repreensão e ele o abaixa por medo. — Mate-a logo, Archiviéste. A garota
não tem mais saída.
Finalmente meus olhos caem sobre os seus.
— Você realmente não conhece a sua esposa, não é? — indago. O
moreno era marido dela mesmo antes de eu o subornar com dinheiro. É
impressionante como algumas libras e promessas vazias podem mudar a
cabeça das pessoas.
— Ela deixou de ser minha esposa há anos — afirma com convicção
e eu não posso deixar de sorrir. Odeio as mentiras que ele conta a si mesmo
para não aceitar que é sujo. O homem é tão sujo quanto eu.
— Você deixou de ser marido dela há anos — rebato, entediado. —
Já estava corrompido, já traía Morgana antes de eu voltar a aparecer em sua
vida. Antes mesmo de eu ter sido exilado daqui e vocês terem se casado
como dois pombinhos felizes.
Ela sempre foi minha, mas ele a tocava sem minha permissão. Foi a
primeira coisa que mudei quando cheguei há seis anos, reconstruído.
— De qualquer forma, ela não vai durar muito tempo — diz,
sorrindo satisfeito. — Vou poder voltar a ter a vida que quero.
— Quer tanto se livrar dela, porém não mais do que eu, obviamente.
— Inclino a cabeça, desta vez curioso. — Só que eu tenho meus motivos,
mas e você, Edward? Por que quer se livrar da minha raposinha? Até onde
eu sei, ela só lhe amou desesperadamente, como uma idiota. Era até nojenta
a forma como vocês dois ficavam.
— Ela me atrapalha em outros assuntos — afirma, tirando as mãos
dos bolsos.
— Está apaixonado por outra mulher? — Reviro os olhos. — Seus
objetivos com esse plano são fúteis.
— Eu a amo — afirma com tanto gosto que se quem não o conhece
visse isso, acreditaria. Mentiroso a ponto de mentir para si próprio. Os
Lancellottis eram uma família próxima aos Archiviéstes, entretanto éramos
totalmente diferentes. As mentiras não se encaixam com verdadeiros
assassinos, mas em Penzance, a morte sempre bate à porta de quem não
sabe se esconder.
— Como amou a sua esposa? — provoco.
— Nunca a amei, era no máximo uma paixão temporária.
Deixo um suspiro frustrado escapar dos meus lábios.
— Não me importo, só não vou matá-la por agora — aviso, pegando
a faca.
— Por quê? — ele interroga, invadindo-me com os seus olhos
musgos. — Sua família está morta e ela não teve nada a ver com isso. Os
Villains estão mortos. Tirando Morgana, todos eles.
— Eles não foram mortos como nós, que fomos expulsos dos nossos
lares, submetidos à fúria e ao ódio de todos na cidade. Esculachados.
Torturados e mortos em alto-mar sem piedade alguma — explico, sentindo
meu sangue escorrer quente como chamas, todas as minhas veias saltavam,
afogueadas. — Ela, Edward, vai ao menos passar por tudo o que eu passei.
Ela vai sentir cada dor física e emocional, vai chorar todas as noites rezando
para que isso acabe. Vai se aprisionar a esse pesadelo e, no final de tudo,
quando meus joguinhos acabarem, vou vê-la transtornada, suplicando pela
morte e arrancando seus cabelos. Eu irei mantê-la em cativeiro, torturá-la só
mais um pouquinho e, então, vou matá-la.
Ele respira, atordoado ou fascinado, não sei qual dos dois seria
melhor. O sentimento enferrujado de vingança é o único que exala deste
ambiente.
— Arrume uma desculpa, Edward, vá até os aposentos da rainha
para discutir coisas inúteis sobre a transferência do monopólio. Diga a ela
que não poderá levá-la, pois seria uma distração perturbadora e
desnecessária. Fique lá por, no mínimo, quatro meses e depois vá até um
bordel, senão será afetado por tudo o que eu fizer a Morgana Villain —
digo, voltando a brincar com a faca. Percebo que amo correr riscos. —
Fique lá e só volte quando receber a notícia de que sua esposa está morta.
— Agora eu entendo — ele anuncia o seu esclarecimento mental.
Um esclarecimento de todas as suas dúvidas.
— Entende o quê? — interrogo, pretendendo saber o que ele pensa,
mesmo que já tivesse certeza só de olhar em seus olhos.
— O porquê que te associaram ao capitão fantasma do Holândes. —
pontua. — Fiquei ciente do quão grande o seu império se tornou, mas não
acreditei. Lembro-me que, na época, fui alertado sobre um novo e perigoso
navio que navegava com velas pretas, todavia ele se tornava pior que o de
velas vermelhas. Saques contra frotas holandesas e portuguesas, influência
sobre a monarquia britânica e acordo com alguns contrabandistas franceses
e italianos. — O homem sorri. — Não me julgue, é difícil acreditar que um
garoto da sua idade havia alcançado esse patamar, por mais que, no fundo,
eu sempre soubesse que era você. Algo me dizia que o meu priminho
finalmente havia voltado e que a guerra entre as duas famílias reencarnaria.
Você é um demônio, Archiviéste.
— Ela nunca esteve no céu. — Mordo os lábios e não dou
importância às suas palavras, não me importo se Edward sabe ou não sobre
o que descobri, eu vou matá-lo de qualquer forma. Agora que voltei, o
homem não tem mais poder sobre mim. Não sou mais uma criança. — Vai
ser um prazer mostrá-la como é ser refém do meu paraíso.
Abaixo a cabeça, analisando a cidade e deixando os meus fios
brancos pairarem sobre meu olho direito.
— E sobre nossa rivalidade, a família Archiviéste é a vencedora,
pois vou caçar a última Villain que sobrou para finalmente honrar nossa
vitória.
Ele sorri novamente, tímido ou receoso. Eu não me importo, nunca
me importei.
— Bom, sendo assim vou partir agora, não quero fazer parte desse
grande escândalo público.
Levanto as sobrancelhas e nego com a cabeça. Ele gira os
calcanhares, começa a andar para dentro da casa, abre a porta, atravessa-a e
fecha a madeira com cuidado, murmurando algo que não consigo ouvir.
Com o rosto sério e as mãos geladas, guardo o utensílio cortante e ando
para perto do pequeno muro do terraço. Subo com facilidade, caminho em
cima da borda e tento vê-la no andar de baixo. Meus olhos violetas
vasculham por dentro da casa e acho o que estou procurando. Meus
pulmões param de respirar, meu coração bate tão forte quanto o de uma
pessoa que está perto de um bomba em contagem regressiva para a
explosão. A garota está tomando banho em uma banheira branca redonda,
não muito bonita, mas que cabe perfeitamente a sua estrutura.
Observo-a esticando o braço o máximo que pode e pegando o sabão
azul naval ao lado da banheira, um sabão que, tenho certeza, é de essência
de algas marinhas. Ela tem essa mania irritante e, por causa dos anos que eu
passei longe, esqueci-me deste cheiro delicioso que Villain tem. A verdade
é que vinha pressionando-me a esquecer, mas quando eu a tive em meus
braços, quando a agarrei no fundo da água, desmaiada e, pela primeira vez,
vulnerável, eu lembrei, lembrei de tudo. No momento em que a trouxe de
volta à superfície, tudo veio à tona novamente, o seu cheiro, o seu toque, a
cor vibrante dos seus olhos e como essa vibração acelerava meu coração. É
assustador e nojento, até as suas bochechas ruborizadas pela vergonha são
uma facada no meu peito.
Eu preciso me lembrar, reforçar o quanto a odeio. Torturar-me até
que saía água dos meus olhos e sangue da minha alma. Minha consciência
suplica por ajuda. Ela sorri, orgulhosa, brincando com as bolhas de sabão
que escapam da água. Morgana as assopra, porém as coisas não dão certo,
já que a mistura de sabão estouram no seu nariz. Seus olhos brilham e seu
sorriso aumenta. Um nó se forma na minha garganta. Como eu pude me
esquecer disso?
Os olhos dela têm as únicas tonalidades parecidas com o nascimento
de uma estrela.
A mulher é a própria representação de uma nebulosa. Villain nunca
ficou totalmente perdida, ela ainda tem aquele espírito traiçoeiro de uma
raposa. Ainda possui chama nas pontas dos seus dentes e irá lutar até seu
último minuto. Sinto-me mal por pensar que uma parte minha clama por
isso. Já a outra, odeia. E por mais que Morgana lute, eu vou vencer. No
final, o resultado será o mesmo: um tem, o outro é.
Deixo um suspiro escapar e, dando de ombros para a menina, desço
o muro do terraço, andando até a outra borda da mansão Lancellotti. Será
uma pena destruir isso daqui. Respiro fundo, sentindo o vento frio congelar
os meus pulmões, e percebo que uma das lamparinas da rua principal da
cidade está apagada. Pisco, pego uma das facas e atiro-a na parede da casa
em que subi mais cedo, para dar apoio quando descer. Acerto exatamente
entre uma pedra e outra. Subo no telhado com cuidado para não fazer muito
barulho e continuo caminhando. Chego ao casebre atrás da mansão, onde o
terraço é liso e, mesmo se eu correr, não farei estrondo, não quero que ela
pare de brincar com as bolhas. Pulo, quase como um pequeno tigre.
Corro rapidamente até a borda da casa e pego impulso para pular no
telhado da residência que fica à esquerda, perto o suficiente para que não
me machuque. Olho para baixo, analisando a faca que atirei ali. Pulo de
novo e, no momento certo, agarro a faca e coloco os pés no chão. Tiro o
objeto das pedras e guardo, olhando para trás. Identifico uma presença, uma
que não é bem-vinda no momento.
— Esse trabalho todo só para não fazer barulho? Que humilhação,
Archiviéste. — A voz do garoto de olhos azulados ecoa pelo ambiente,
provocativa como sempre. — O que viu de tão interessante?
— Não é da sua conta, Sahil — repreendo-o, tiro minhas luvas
brancas do bolso e coloco-as em minhas mãos. — E o que eu disse sobre
me seguir?
— Disse que iria me matar. — Ele ri, com escárnio.
— Pelo visto você não se importa com isso — ameaço. No meu
mundo, isso era, nitidamente, uma ameaça.
— Talvez — diz, jogando seus fios negros para trás. — No entanto,
não vim aqui para atrapalhar você. Fiquei preocupado com a sua demora,
capitão.
— Achou que ela tinha me matado? — pergunto, arqueando as
sobrancelhas.
— Não, achei que ela tinha feito você mudar de ideia ou algo do
tipo — rebate, com as órbitas azuis quase saltadas com a provocação. —
Ela tem essa influência.
— Te garanto que não tem mais. — Verdadeiro demais para soar
falso, falso demais para soar verdadeiro. Confusão. Estou em um furacão de
pura desorganização.
— Então por que a salvou do afogamento? — indaga, inclinando a
cabeça. Noah e sua língua grande, um dia vou batê-lo por isso. — Você
poderia ter vencido algumas horas atrás e ter, finalmente, acabado com
tudo.
— Quero que ela sofra primeiro — explico de novo. Por que
ninguém pensa nisso? Estou cansado de explicar sempre a mesma coisa
para todos.
Sahil acena com a cabeça, desconfiado. Uma silhueta familiar se
aproxima por trás do homem de cabelo preto e olhos azuis brilhantes: o
garoto mais novo da tripulação, de pele branca e cabelo ruivo. Seus olhos
têm a mesma tonalidade que os planetas congelados.
— Noah? — chamo-o lentamente, que levanta a cabeça,
preocupado, achando ser uma repreensão.
— Sim, capitão — atende, aparecendo em frente a uma lamparina,
deixando todas as suas características marcantes à vista.
— Está tudo bem? — pergunto direto, sem nenhuma expressão no
rosto.
— Sim — responde, sua voz fraca, quase falhando.
Encaro Sahil por alguns segundos, o desafiando a falar.
Pressionando o seu ego contra a sua obediência.
— Depois conversamos sobre isso — digo ao ouvir os barulhos dos
cavalos saindo da frente da casa marcada. Olho para o homem baixo e
moreno, inclinando a cabeça, como uma ordem para andar.
Damos a volta por trás da casa, observando Villain se despedindo do
marido. Teoricamente deveria ser assim, entretanto por trás das cortinas da
peça ninguém sabe o que acontece. As pessoas que passam pela rua e veem
essa cena não imaginam o quanto esse casal é decadente e enganoso.
— Agora que ele está saindo — aviso, baixinho. —, vamos
continuar com o plano.
— E qual é o plano? — ele interroga, com a curiosidade pedindo
para ser saciada.
— Incendiar a casa — respondo, e tenho certeza que meus olhos
estão agitados, sempre estão quando se trata dela. — Com ela dentro.
O moreno sorri, nunca o vi sorrir assim para mim, como se estivesse
orgulhoso da atitude maléfica. Balanço a cabeça, desacreditado do que vejo
e, no fundo, satisfeito comigo mesmo. Agora que o marido vai embora, vou
ter a atenção dela só para mim. Confesso que uma parte minha o mandou
embora só para isso. Eu posso muito bem fazer da vida dela um inferno sem
afetar Edward, posso até usá-lo como chantagem emocional, colocando a
existência dele em risco e, assim, obrigando-a a fazer coisas questionáveis,
só para depois Morgana descobrir que ele é um traidor, isso a destruiria. No
entanto, não é do meu interesse dividir sua atenção.
Nunca foi.
— E esse é só o começo. — Cutuco a bochecha com a língua,
fazendo movimentos circulares perto dos dentes, lembrando-me de tudo o
que pretendo fazer com ela. Céus, vai ser maravilhoso ter essa mulher
submetida a mim. — Morgana Villain é minha, e, a partir de agora, ela vai
ter consciência disso.
CAPÍTULO V
A profunda solidão surge como uma nascente das correntes de um
rio nulo e sombrio, sobreposto à pele da alma. Ela é um terrível e intenso
sentimento supérfluo e opressivo, talvez por ser efeito colateral do medo
que o indivíduo tem de ficar só enquanto presencia os outros
acompanhados. Vem do pavor que ele tem de olhar para os lados e não
encontrar ninguém para desabafar, ninguém para confiar. Para amar. Com
toda a certeza, não ter ninguém para amar é o que mais o assusta. É o que
mais me assusta. Desorienta-me e arruína, até porque como vou tolerar-me
sozinha se nem ele conseguiu com toda a ajuda que eu pude oferecer?
Como vou acordar todos os dias no amanhecer álgido de inverno e olhar-me
no espelho do nosso quarto, consciente de que fui e sou insuficiente para
todas as pessoas que passaram pela minha vida? Sabendo que, no final de
tudo, eles vão embora para longe de mim, de uma forma ou de outra. Eles
nunca ficam.
Não fazem nem esforço para ficar. Nunca fizeram.
Essa bagunça sufocante que a solidão traz consigo é completamente
desnecessária e destrutiva para qualquer ser humano que, obrigatoriamente,
conviva com ela. É forte o suficiente para derrubar castelos implacáveis e
demolir muralhas feitas de aço maciço, vendido na casa mais suja do
Submundo comercial. Ela dói e a dor é ampla, vasta e talentosa. A solidão
mostra mil maneiras de como acabar com si mesmo. E te induz a usá-las.
Afinal ninguém quer ter seu trabalho desperdiçado.
Ela é como uma agulha fina perfurando sua pele, rasgando-a de
dentro para fora. E o material metálico e agudo está intrínseco aos músculos
do meu peito. Ele não sai. Ele não quer sair. E a simples ideia de que a
única pessoa que pode desfazer e melhorar isso sou eu mesma, causa-me
um desespero. Eu desaprendi a me defender de quem ousa me atacar,
desaprendi a manusear agulhas. E é por isso que estou chorando como uma
tola, pelo simples fato de Edward ter levado Katharine com ele na longa
viagem à cavalo até o elegante e antigo palácio pertencente à rainha
britânica, para resolver os problemas jurídicos e constitucionais do
monopólio comercial.
Ele nunca me levou por conta própria nessas reuniões formais com a
rainha e os corruptos parlamentares — muitos menos nas informais, em que
se aproveitava para dormir com outras mulheres — porque sempre julgava
a minha capacidade de inteligência e tomada de decisões com base no meu
gênero social. Tóxico. Repugnante. É humilhante chorar por alguém assim,
no entanto, não consigo controlar as lágrimas que saem dos meus olhos
inchados, escorrem pelo meu rosto e caem como a chuva de neve que
enfeita o chão. Não consigo me controlar, não consigo manipular o meu
coração mais do que eu já manipulei minha mente. Preciso superar essa
traição e voltar a me defender.
Engulo em seco e, com a mão moldada igual uma concha de praia,
pego um pouco de água limpa e jogo sobre as minhas coxas nuas, lavando a
parte que estava ensaboada por uma espuma cerúlea. Respiro fundo,
acalmando-me com o cheiro da essência de algas marinhas do sabonete
azul. Céus, como eu amo esse cheiro. Adoro a forma com que o perfume
fica impregnado no meu corpo por horas… Às vezes, quando os fluxos de
vento trajados passam calmamente por mim, tomam-me um pouco da
essência e o cheiro adocicado se espalha pela casa, infestando-a. De vez em
quando, gosto de imaginar que existem algas marinhas plantadas nas
paredes feitas de pedras, como se um pedacinho do mar estivesse sempre
comigo.
Respiro fundo, saindo da banheira. Pego uma toalha rosa-salmão de
linho que está colocada ao lado da cadeira de madeira, me secando
delicadamente aos poucos. A mansão está mergulhada em um silêncio
gracioso e reconfortante para minha mente barulhenta. Depois que Edward
levou Katherine para Londres, dando-lhe um mês de férias com direito à
viagem paga, achei justo dar o mesmo ao resto dos funcionários. Não irá me
matar cuidar da mansão sozinha. Coloco a toalha sobre a cadeira e abro a
porta do banheiro. Ainda nua, saio do ambiente e caminho pelo corredor até
a porta do meu quarto, sem me preocupar se alguém irá me ver. Eu estou
sozinha em casa e mesmo que sentisse que estou sendo observada, não daria
ouvidos à voz estridente que soa pela cabeça e resfria o meu corpo. Estou
cansada demais para isso. Já tive que passar por humilhação o bastante
ontem e hoje.
Sinto o perfume de gardênias brancas. Ignoro, isso não é
importante.
Abro a porta de madeira marrom talhada com o símbolo da família
Lancellotti no meio. A porta do nosso quarto que, agora, me enoja. Entro no
local enfeitado por tapeçarias leves, bordadas com a cor cinza-fumaça e
preto-opaco. Existem cortinas azul-naval com várias camadas rendadas em
um tom de azul mais claro. O lençol de linho branco da cama está arrumado
e, para minha surpresa, o quarto está quente. Possivelmente por causa das
velas acesas ao redor.
Caminho até a cama e pego um vestido de seda transparente,
coloco-o facilmente pelo corpo e vou até a penteadeira de madeira escura
com detalhes em bronze ao redor do espelho, com a finalidade de arrumar
superficialmente meu cabelo. Pela primeira vez, eu tenho a espontânea
liberdade de me arrumar como eu quero, sem me preocupar com os olhares
julgadores de alguns funcionários que trabalham no escritório com meu
marido. Olho-me no espelho, prendo o cabelo em um coque, analisando o
decorrer da minha vida. Pergunto-me como, como deixei que o medo me
dominasse dessa forma depressiva. Como aquela garota que espionou e
desmanchou toda a família de contrabandistas rivais de Penzance se tornou
isso? Essa derrota ambulante e tosca? Uma mulher que tem medo de ficar
sozinha, que age como se nunca tivesse sido abandonada.
Apaixonada a ponto de submeter-se a coisas que não queria,
simplesmente para agradar terceiros, a ponto de desaprender a se opor com
vigor em todas as situações, a ponto de perder-se de si mesma. E não ser
capaz de se encontrar. Como um espectro de vidro fino e avermelhado,
feito para desorientar-se nos próprios reflexos, nas próprias teorias e
pensamentos, para, no final, não ser capaz de compreender as suas próprias
atitudes. Um grande salão, com uma ampla área livre, mas, em
contrapartida, com enormes pedaços de vidro colados na parede — se é que
existem paredes —, talvez a junção dos vidros sejam a parede. Não sei, só
sei que existem vários caminhos implorando por atenção e você não sabe
qual é o certo, não sabe qual deles quer te salvar, qual deles quer te matar.
Não sabe nem como entrou na sala.
Continue atuando.
Pisco, perplexa com um pressentimento ruim. Tiro o meu foco do
vidro da penteadeira detalhada e saio do quarto iluminado. Assusto-me com
as pétalas de gardênias brancas, elas se encontram espalhadas pelo corredor
de um modo aleatório e seria até romântico se eu ao menos soubesse quem
foi que as deixou aqui. Olho para a janela aberta e ignoro as flores, elas
devem ter entrado pela abertura. Caminho pelo local e desço as escadas
apressadamente, sentido o gelo do piso, à procura de qualquer diário antigo
ou livro de romance com cenas obscenas para ler. Necessito ler sobre um
relacionamento bom, uma peça de teatro que não precisa ser atuada. Um
amor correspondente e exemplar, em que os dois são terrivelmente
apaixonados um pelo outro e fazem de tudo para ficar juntos, custe o que
custar. Até o impossível, se for necessário. Submergiriam o inferno em
oceanos tempestuosos.
Secariam os rios com chamas infernais.
Ilusório. Delicioso. Reconfortante e com uma possibilidade mínima
de ser real quando aplicado à minha realidade. Estranho o cheiro diferente,
mas não irreconhecível, quando desço até o décimo primeiro degrau,
lembrando-me da memória assassina que rodeava minha mente. A
lembrança do meu marido agarrando Katherine e beijando-a severamente,
logo depois de perder a capacidade de olhar para mim. “Você é linda, é a
coisa mais linda que eu já vi”. A lembrança dele decidindo estilhaçar meu
coração. “Quando você parou de me amar? Há quase três anos”. A
memória drástica dele finalmente escolhendo-a. “Então vá, termine logo
com isso e quebre-o”. O principal motivo que me fez voltar correndo para o
mar.
Para os braços de quem me quer de volta.
Ainda ouço os sussurros baixos e nítidos dele me implorando.
Mordo os lábios, questionando-me internamente. Já me torturei bastante por
hoje, não acha? Tenho que ser mais forte que isso. Aquele homem que não
conheço, me deu uma segunda chance. Uma pequena esperança para
melhorar, para voltar a ser quem eu era. Dou atenção máxima ao odor
repugnante que invade brutalmente meus saudáveis pulmões e me deixa
assustada. Analiso calmamente com os olhos, notando e identificando
rápido a fumaça cinza e asfixiante que vem da cozinha em chamas. Fogo.
Brasa.
Arregalo os olhos, desesperada e conturbada. Mas não porque a casa
está sendo incendiada por fogo vulcânico, pois disso eu poderia dar conta,
mas porque existe um homem alto e elegante andando em meio a fumaça e
ele está vindo pausadamente em minha direção. O garoto usa uma máscara
tingida de branco puro, com lindos detalhes vermelhos resplandecentes e
pretos luminosos. Entre esses detalhes, haviam pétalas de gardênia
espalhadas pela testa, um puxado de olho de gato em vermelho ao redor dos
furos e pequenas e leves correntes da cor preta na beirada, atrapalhando
drasticamente a visão da boca. É uma máscara de raposa.
Eu reconheço aquela máscara. Eu usava aquela máscara.
Uma bagagem de recordações que estava trancada a quatro chaves
de ouro foi despachada do fundo do armário metálico da minha mente e
aberta aos meus olhos. Isso é um gatilho para que meu passado volte à tona
com todas as forças possíveis de serem reunidas. Todas necessárias para
me despertar do meu próprio mundo.
Ela pertence a uma época não muito distante da atualidade — dez
anos atrás — antes de me casar com Edward, antes mesmo de me tornar
uma cidadã correta. Naquele tempo, eu ainda contrabandeava, roubava e
liderava comércios ilegais em nome da minha família biológica. Naquela
época, eu era uma verdadeira Villain, fazia jus ao sobrenome de vilões que a
minha árvore biológica carregou durante séculos. Eu era verdadeiramente
uma deles. Eu ainda pertencia completamente ao mar, planejando saques
contra a frota marinha da Inglaterra, espionando e derrubando todos os
inimigos do Submundo de qualquer um que quisesse nos derrubar ou
assumir o poder. Mas eu parei, larguei tudo quando me apaixonei pelo meu
marido, quando percebi que queria uma família comum, uma família que
não corresse o risco de ser assassinada por vingança ou sequestrada por
informações confidenciais.
Uma que não faria mal a ninguém e que ninguém lhe fizesse mal.
Afastei-me do mar, de toda a adrenalina de estar com ele e abandonei essa
vida desagradável, porém fui avisada. Eu fui alertada que o passado voltaria
para me caçar, eles falaram que não havia como sair desta vida com a
consciência limpa sem pagar um preço. Não tem como. Ele me avisou. E
por muito tempo, acreditei que era mentira. Acreditei que era apenas para
me prender a esse mundo. Deixei-me imaginar que eu teria escapado das
garras grandes e afiadas do perigoso Submundo, teria escapado do
purgatório de todos os meus pecados, da morte súbita que paira sobre
aquele lugar.
Todos os demônios que eu destruí no passado me assombrarão no
futuro.
Eu não considerei, e aqui estou, pagando com o enorme descuido
que tive durante esses dez anos. A casa está em chamas que crescem
descontroladamente e eu estou olhando para um homem cuja estrutura
reconheço e com a qual sou familiarizada. Um homem que me salvou na
noite passada, quando entregava-me ao mar. O garoto cujo nome não
lembro, mas que agora reconheço por conta da máscara e não me sinto
aliviada com isso. O irmão caçula da família Archiviéste. O garoto que me
deu a máscara.
O único sobrevivente da família em que eu desmanchei.
E pelo visto, o pequeno quer vingança. Agora percebo que ele não
me deu uma segunda chance, ele a deu a si mesmo. Percebo porque quis me
salvar, já tinha visto aqueles olhos violetas em algum lugar. É impossível
esquecer-me de algo tão marcante e distinto. Sinto a fumaça tornar-se uma
fraqueza, me obrigando a tossir vigorosamente. Meu peito dói e isso
dificulta a respiração. É inevitável, as chamas estão subindo demais e é
essencial sair daqui com vida. Eu sei que preciso lutar com ele, então
semicerro os olhos e começo a correr. Decido fugir pelo terraço, quando eu
estiver na rua e longe da fumaça penso em uma maneira de lidar com o
garotinho revoltado que está à minha procura. Ele não corre mais que eu.
Subo as escadas o mais rápido que posso, ouvindo seus passos
apressados pela madeira da casa. Sorrio com uma satisfação que deveria ser
preocupante. Então o garotinho quer brincar de pique-pega? Vamos ver
quem é mais rápido. Corro rapidamente pelos corredores da mansão sobre o
tapete de veludo vermelho, derrubando algumas coisas pelo caminho para
dificultar a sua passagem. E uma delas é uma vela que estava pendurada na
lamparina do corredor. Espero que ele não tenha se esquecido do porquê me
chama de raposinha.
Continuo correndo aceleradamente, sentindo a adrenalina dominar
minhas veias, dominar todo o meu corpo a ponto de me sentir eufórica com
a sensação. Não consigo controlar. Faz tanto tempo que eu não sinto isso. A
emoção de ser uma Villain. Uma vilã, mais especificamente. O sentimento
perfeito de ser caçada por alguém que te odeia, que quer te destruir a todo o
custo. Sinto o cheiro de fumaça, entretanto não é forte o suficiente para me
fazer tossir e agradeço por isso. Abro a porta de um quarto e entro no que
está mais à frente. Quase sussurro para ele vir me pegar. Penso em me
esconder debaixo da cama de visitas que está no local, só que seria óbvio
demais. Ele iria me achar. Apenas puxo o colchão para o lado e bagunço os
lençóis, dando a sensação de que alguém pulou pela janela escancarada.
Escondo-me no armário, deixando uma porta aberta de propósito para que
eu pudesse vê-lo pela enorme brecha.
Após alguns segundos, ouço seus passos ficarem mais altos, ele está
próximo, mas não o bastante. É lento demais. Meu sorriso cresce com a
possibilidade do diabo me achar, por mais que eu ache que o menino não
seja capaz. Por mais que lobos sejam ótimos caçadores, uma raposa sabe se
esconder muito bem.
— Morgana, Morgana... Aonde você se escondeu, minha raposinha?
— pergunta com firmeza na voz, como se soubesse onde estou. Ele não
sabe, mas atua. O que deixa tudo isso ainda mais divertido. Escuto um ruído
do seu peito. — O primeiro andar da casa está em chamas e o começo do
corredor também. Graças a você. Que animalzinho é tolo o bastante para
criar uma gaiola de fogo em torno de si mesmo? Se você está no quarto,
Villain, vai ter que passar por mim, viva ou morta.
Entorto a coluna para ter um campo de visão maior. Procuro. Acho.
Quase perco o fôlego quando o vejo andando para perto do colchão
bagunçado. Ele olha para a janela, aproxima-se dela e foca na rua que,
provavelmente, está completamente deserta por causa do horário. O garoto
faz um estalo com a língua, balançando a cabeça negativamente, como se
estivesse decepcionado comigo por ter fugido. Ele cai, cai na gaiola de
fogo que acabou de criticar.
Semicerro os olhos e sorrio, mordendo os lábios e ajeitando a
coluna, até que volto para a posição, ficando escondida dentro do armário
como uma tartaruga dentro do seu casco. Escuto seus passos, que agora
estão lentos, andando para fora do quarto, e olho para cima, observando a
madeira do armário, pensando no meu próximo ato. Agora necessito
encontrar com urgência um jeito de sair daqui sem chamar atenção. Posso
esperá-lo sair de casa, mas demorará muito e tudo está em chamas. Eu não
posso morrer agora, não sabendo que a família Archiviéste voltou para o
jogo. Não posso deixar meu povo nas mãos deles, não de novo, preciso sair
daqui e encontrar uma pessoa.
Espero alguns minutos, coloco as mãos na porta lateral do armário e
abro lentamente. Bom, pelo menos eu tento abrir, pois uma mão enluvada
por um tecido branco coloca-se entre as minhas e puxa a porta, abrindo-a
com força e quase derrubando o meu corpo. Graças ao meu ótimo equilíbrio
eu não caio de rosto no chão frio. Ou no seu peitoral quente.
— Aparentemente não é só você que sabe atuar, minha raposinha —
ele provoca, com os caninos à mostra e olhos violetas fixados em mim.
Além do seu queixo e dos seus dentes, não consigo vislumbrar seu rosto
completamente por causa da máscara de raposa. — Eu acho que você
desaprendeu a fazer a única coisa que sabia fazer direito.
A forma como ele me olha me causa medo, mas eu não posso deixar
isso transparecer. Não posso dar a ele a sensação de que eu sou uma presa,
porque, do contrário, o bastardo vai me caçar e tudo estará perdido. Então
eu sorrio falsamente com súplicas por piedade se escondendo na curvatura
dos meus lábios. Levanto a cabeça para encará-lo e desafiá-lo com firmeza.
— Pode até ser, mas eu fui inteligente o bastante para enganar a sua
família inteira e arruinar o seu império, não? Estou enganada, Archiviéste?
— rebato, sem pensar nas consequências e, aos poucos, vou afastando-me
do seu olhar furioso. Ele está perto da porta, o que dificulta minha saída. Se
eu sair agora, ele irá me agarrar por trás e não me deixará sair dos seus
braços. — Todos vocês fazem a mesma coisa, duvidam da minha
capacidade, mas esquecem que no final eu ganho, eu ganhei e vou ganhar.
Aí está uma confiança que eu realmente queria ter.
— Igual ganhou o seu marido? — O homem ri e o meu sorriso se
desfaz como manteiga no sol do meio-dia. Ele sabe qual o meu ponto fraco
igual eu sei o dele. Praga repugnante. — Me diga, Morgana, como foi ser
trocada por uma mulher mais jovem e mais atraente?
Meu coração é espremido por dois escudos pratas de soldados rivais,
fazendo meu peito doer com o que ele acabou de falar. Uma mulher mais
jovem e mais atraente, mais uma cicatriz para minha pele, mais uma voz
para atormentar a minha mente.
— Não sei, eu que pergunto a você. Aliás, pelo que eu me recordo,
todos da sua família preferiam o seu primo. A pessoa com mais experiência
que diga, não acha, garoto? — Ele ri desnorteado, balançando a cabeça.
Acabo de atacá-lo na mesma medida e tenho certeza que isso doeu o mesmo
tanto que suas palavras doeram em mim.
— Raposinha, do mesmo jeito que eu salvei a sua vida, eu posso
tirá-la em segundos. Se eu resolver te enfrentar, você não vai ter noção do
que te atingiu. — O dono dos olhos violetas praticamente rosna,
ameaçando-me com aqueles olhos opacos e enraivados. — Poupe-me de
fazer esforços por agora, quero tirar a sua vida na hora certa e no momento
certo.
Meu corpo estremece e minha mente quase para, mas lembro que a
casa está pegando fogo e que preciso sair daqui imediatamente. Ele
realmente está falando sério com esse negócio de matar. Archiviéste irá me
assassinar aqui mesmo se eu não reagir. Olho ao redor, preocupada, há anos
que eu não luto de verdade.
— Como pode alguém que nem lembro-me do nome, ter tanto ódio
de mim a ponto de querer me matar? — incito e o britânico volta a rir, as
correntes oscilam conforme seu corpo treme pela risada. Sua mão move-se
até o punho da adaga que está pendurada no cinto da perna e
automaticamente afasto-me. — Para quê tanta agressividade, meu amor?
— Não me chame de meu amor — me repreende, nunca o ouvir
falar com um tom tão sério. Nem mesmo quando eu estava espionando a
sua família. — Não sou seu amor, garota. Sou totalmente o contrário disso e
você sabe. Nada que eu fizer com você vai ser semelhante a amor.
Ele se aproxima, ainda com a faca na mão. Ameaça-me e então abre
a boca e diz:
— Agora você vem comigo, raposinha. — Nem fodendo. Pressiono
os lábios e, por mais que pareça ironia, assinto com a cabeça. Surpreso, ele
ergue o corpo enquanto eu disparo em uma velocidade não calculada para o
corredor, correndo agachada e, ainda por cima, perto do seu corpo
paralisado.
Depois que passo por sua silhueta, o diabo pisca e olha para trás,
com um sorriso cujo sentimento não consigo identificar, o que me deixa
severamente amedrontada. Temos medo do que não conhecemos e eu não
conheço os limites deste homem, então continuo correndo o máximo que
consigo.
— Eu sabia que você estava com medo, Villain — Ouço-o dizer
enquanto corro para o final do corredor, abrindo com facilidade a porta para
o terraço da casa. O cheiro de fumaça está forte e massivo, entrando pelos
meus pulmões. Esse homem não consegue sentir? Eu o ouço tossir apenas
uma vez. Ele é imune a esse gás tóxico? —, mas lhe presenciar neste nível
de pavor só acabou de deixar as coisas mais interessantes. Você sempre me
impressiona, Morgana.
— Vai se foder! — xingo-o alto, estressada com os seus joguinhos
ridículos e com o fato de eu tê-lo deixado perceber o meu medo. Subo as
escadas apressadamente e, quando chego ao terraço, não ouço os seus
passos atrás de mim. Isso deveria me confortar, mas minha respiração está
desregulada o bastante. E o pânico não vai embora, a cena falsa dele
correndo atrás de mim com a faca ensanguentada na mão ainda persegue-
me.
Respiro fundo, purificada pelo ar saudável da atmosfera do planeta,
agradecida pelas correntes de vento que carregam a fumaça para o outro
lado do quarteirão, pelo menos aqui em cima. Ando até a beirada do
terraço, não tenho paciência e nem consciência para admirar minha cidade
agora, por mais que as lamparinas da rua iluminadas ao luar me chamem
atenção. Concentro-me em pensar num plano rápido e eficaz para sair
daqui. Tenho que pular ou arrumar um jeito de descer antes que a casa seja
vastamente demolida por causa das chamas eufóricas que destroem tudo o
que veem pela frente. Que matam tudo que encostam. Irmãs dos vales
tempestuosos que habitam o mar furioso.
Parceiras da morte.
Elaboro o plano que vou realizar Arranco dois pedaços pequenos do
meu vestido de seda, amarro um em cada mão, protegendo-as da loucura
que eu vou fazer. Subo no pequeno muro quase com delicadeza, andando no
peito do pé para não me desequilibrar e cair. Olho para baixo, vendo o chão,
e observo a altura de onde vou precisar pular caso não dê certo. Engulo em
seco, nervosa só de imaginar o meu corpo jogado na rua, com os ossos
quebrados e sangue ao redor em uma circunferência simétrica.
Umedeço os lábios e olho para o comprido e fino cilindro de ferro
preto ao lado da minha casa, que costumávamos enfeitar durante a época
animada e festiva de Natal, quando eu pendurava linhas de linho vermelho,
verde e branco e amarrava laços grandes e decorativos. Sem contar algumas
luzes coloridas que ajudavam a enfeitar os laços. Uma época boa que
morrerá nas minhas memórias, que vou enterrar igual enterrei a mim
mesma. Coloco as mãos sobre o poste de ferro e deixo que meu peso leve-
me para baixo.
Um grito fino e estridente escapa dos meus lábios quando pulo e
agarro o cilindro, usando-o de transporte para descer. Por segundos, meus
pulmões perdem o ar e a adrenalina vem com tudo, até que meus pés se
chocam com força contra o chão duro e a dor alcança um nível suportável,
porém nada prazerosa. Um gemido sai dos lábios e todo o meu corpo
estremece, até tento amenizar o impacto pressionando as coxas alguns
milésimos de segundos antes, mas não adianta muito. A região fica apenas
vermelha e talvez ajude a não causar tanto estrago, já que tive sorte pelo
meu pé não ter quebrado. Apoio meu corpo contra a parede da casa vizinha,
sentindo novamente o cheiro ruim e insuportável de fumaça.
Aparentemente, não vou precisar mais cuidar da casa por um mês. Levanto
a cabeça, esperando a dor passar antes de poder caminhar.
— Céus! O que eu fiz para ser castigada dessa maneira? — pergunto
com irritação e o mínimo de fundamento, meu passado realmente me
condena. Espero alguns minutos para me desapoiar da parede e começar a
andar. Por causa de Edward, eu nunca tive a chance de ter amigas para
confiar. Ele raramente me deixava sair de casa, parece que previa esse tipo
de situação. Penso em vários lugares onde eu poderia passar a noite antes de
voltar para a região favorita da minha cidade natal: o Submundo.
Olho para os lados, caminhando pela rua completamente deserta.
Ninguém passa por aqui, parece até que não passam há anos. Vejo as torres
brancas, pontiagudas e esguias por trás das casas, decido passar a noite na
antiga igreja abandonada e desfeita que existe em Penzance. Decidir é uma
palavra muito forte, eu não tenho outro lugar para ir no momento. Começo
a andar pelos paralelepípedos de tonalidade prata envelhecida, analisando
alguns deles completamente mal encaixados ou levemente inclinados, já
outros estão quebrados ou colocados pela metade. Como uma cidade tão
bonita passou a sofrer essa degradação? E outra, como eu não percebi essa
visível decadência? Será que simplesmente fechei os olhos para tudo o que
acontecia ao meu redor por não conseguir ter meu filho? Fui egocêntrica a
esse ponto?
Sorrio. Não sei por que faço perguntas cujas porras das respostas eu
já sei. Eu sou totalmente egocêntrica, mas não por mim. Penso nos desejos
do meu marido, deixo tudo de lado e hoje sofro as consequências. O cheiro
de neblina se aprofunda no meu nariz e eu percebo que me aproximo do
lugar desejado. Diferente de outras construções abandonadas, esta igreja
não tem uma enorme e falsa história de terror assustadora que afasta todos
os seus integrantes cristãos e espanta a população local. Ela foi abandonada,
porque construíram uma mais chique e luxuosa, com um altar de ouro e
imagens religiosas consideravelmente mais caras, detalhadas e realistas, na
rua que faz fronteira com a outra cidade. Não tem mistério, apenas dinheiro.
Ganância.
O ambiente está conservado, se investissem ou ao menos se
importassem com ele não largariam de mão apenas por algumas paredes
descascadas, altar de madeira ou bancos quebrados. Ela só não satisfaz mais
a necessidade de ostentação. Depois de sete minutos andando e me
questionando como iria encontrar uma saída, viro a direita e entro na rua
onde a igreja está localizada.
Ela possui uma arquitetura gótica, com paredes grossas e pesadas. É
tingida de branco cinzento, com várias janelas e portas espelhadas ao longo
de sua estrutura. Tem vários vitrais transparentes, de formas e tamanhos
variados, sem nenhum sinal de cor. De longe, suas torres pontiagudas, seu
formato de cruz, sua grande rosácea no centro e imagens esculpidas de
gárgulas em alguns pontos altos davam-lhe mais destaque. Não seguem os
padrões de território abandonado, muito pelo contrário, parece até ser
tratado com cuidado. Dou uma risada fraca e logo viro o rosto, estranhando
um barulho baixo e indecifrável que ressoa atrás de mim.
— Você é tão previsível, raposinha. — A voz conhecida ecoa com
um certo tom de arrogância. E, como de costume, perco a porra da minha
capacidade de respirar. É difícil me controlar quando se trata dele. — Não
tem graça se você for brincar assim.
— Isso é uma brincadeira para você, Archiviéste? — interrogo,
incrédula. Começo a vasculhar com os olhos o local onde ele está escondido
e não o encontro. Só ouço o eco da minha voz e a melodia presunçosa da
sua. — Está caçoando da minha cara. Isso é uma guerra, garoto imprudente!
Minha família é rival e inimiga da sua desde o início do século. O que já era
de se esperar de uma criança, você tem quantos anos? Deve ter dezoito,
ainda está na porra de um berço.
— Que família, Morgana? — Desta vez sua voz é mais nítida e
claramente raivosa comigo. Consigo identificar o local onde ele está. —
Das duas famílias, só sobraram eu e você. E quando isso tudo acabar, só vai
sobrar a mim, porque vou te matar com as minhas próprias mãos. Estamos
entendidos, Villain? — pergunta, surgindo das sombras de um beco vizinho
à igreja, ainda com a máscara de raposa. Como um demônio saindo do
inferno. O meu demônio. Céus, ele está vindo me assombrar. Archiviéste é
o meu passado que veio cobrar a conta. O responsável pela minha
avalanche. Está com a adaga metálica em sua mão direita de luvas brancas,
segurando firmemente. Se segurando para não atirá-la em mim, para não
atirá-la no peito e acabar logo com sua vingança. O homem pretende me
saborear. — Aliás, raposinha, eu tenho dezenove. Até te avisaria para não
me subestimar pela idade, mas acho que você já está ciente disso, não está?
Ele acelera os passos, sorrindo. Fitando-me com a adaga na mão,
circulando-a entre os seus dedos longos encapados pelas luvas cujo material
não identifico. O diabo abre mais o sorriso ao ver a minha expressão e
começo a caminhar devagar para trás.
— Meu Deus… — Deixo um suspiro escapar dos meus lábios, estou
quase cambaleando. Meu pé ainda dói pela descida brusca do ferro natalino.
Desta vez, não sei se consigo escapar das suas garras. Me xinguo
mentalmente de todas as formas possíveis. — Você realmente quer me
matar.
— Deus não está aqui para te salvar de mim, minha raposinha. — O
homem começa a correr, vindo rapidamente em minha direção. Viro os
calcanhares e disparo na maior velocidade possível para dentro da igreja
gótica que está com a porta escancarada. — O seu caso é tão precário que
nem o diabo consegue te tirar dos meus braços.
Seja lá quem realmente exista, qual religião está certa, quem for o
ser divino que realmente criou essa terra e tudo o que está em volta, eu
agradeço por ter deixado a porta aberta para mim e, pela primeira vez na
vida, me ter dado vantagem sobre Archiviéste. A criancinha vigarista e
chantagista que está à procura da minha morte. Não dou-me o prazer de
vislumbrar as casas ao redor por conta do desespero que sobe pela minha
cabeça e domina o meu corpo. Nesses momentos, eu não tenho controle
sobre nada que antes possuía.
Meus pés correm sobre a terra do jardim da igreja e cerca de alguns
segundos depois, sinto-os no chão de mármore polido que se encontra
dentro do ambiente abandonado. Uma corrente de ar passa e sinto meu
cheiro de algas marinhas. Ele não me acalma, perdeu a capacidade de
acalmar. O mar não está me acalmando. Isso deixa-me ainda mais
desesperada. Tento colocar um pouco mais de velocidade na minha fuga,
porém meus pés doloridos impedem-me de correr mais rápido. Ouço seus
passos ficarem cada vez mais altos, o garoto está cada vez mais próximo e
eu estou cada vez mais distante da minha vida. Não me lembro dele ter
corrido assim da última vez.
É como se ele estivesse mais rápido, mais eufórico e ansioso. O
homem está se divertindo, mas mesmo assim, desta vez está levando tudo
mais a sério. Passo pelos bancos marrons de madeira da igreja, que, em sua
grande maioria, estão consideravelmente quebrados. Tento correr para o
altar e alcançar a parte de trás do monumento. Perco o fôlego quando sinto
ele atrás de mim, muito perto. O meu demônio está me caçando. E ele não
está mais de brincadeira. Sinto mais uma bola de neve se formar na minha
montanha encharcada. Porra! Esse garoto tem dezenove anos, eu estou
correndo de um pirralho birrento. É inadmissível isso, é inaceitável que eu
chegue a esse ponto tão desprezível.
— Estou ouvindo os seus pensamentos, meu amor — diz,
finalmente alçando-me. Sinto suas mãos na parte de trás do meu pescoço,
apertando as minhas veias. Com força e sem piedade, ele me puxa pela
garganta, forçando o meu corpo a parar de correr, jogando-me contra a
parede. A criança é forte para sua estrutura, muito mais forte do que eu
imaginei. — Quero que fique calada, Morgana. Não gosto de ouvi-la
pensando.
Todos os meus ossos doem quando se chocam contra a parede dura e
purificada. Um gemido doloroso escapa dos meus lábios com o incômodo
inevitável. Respiro fundo, tentando controlar-me e olhá-lo nos olhos,
recuperando a obra falsa que criei para enfrentá-lo, mas sinto que também a
perdi. Consigo abrir os olhos sem cerrá-los, o que já é uma vitória
grandiosa. Pequenas vitórias se tornam maiores quando se trata dele. Um
passo de cada vez. O platinado sorri, mostrando os caninos que ainda ficam
visíveis com a máscara e condeno-me severamente por já ter considerado
esse sorriso uma calmaria para seus olhos de oceano.
“Ele sorri. O olho no meio dos ventos fortes do furacão. A
singularidade gravitacional do buraco negro. As desculpas e juras de amor
depois das brigas. Esse sorriso é a calmaria dos seus oceanos”. Eu estou
enganada, mesmo que seus olhos me causassem agitação, o seu sorriso
causava-me muito mais. Como um tremor que o terremoto causa na Terra,
esse é o efeito que o seus caninos, afiados e à mostra, causa no pé da minha
barriga. Meu marido nunca conseguiu fazer com que eu me sentisse assim.
Repreendo-me por querê-los cravados no meu pescoço.
— Peguei você, minha raposinha — anuncia, colocando a mão
novamente sobre o meu pescoço. Apertando. Aproximando-se do meu
corpo a tal ponto que consigo sentir sua respiração quente. Sua outra mão
está apoiada na parede de pedra cinzenta da igreja. Se continuar assim, eu
perco a sanidade. — Agora me diga, Morgana. Qual é o meu nome?
O nome dele. Eu não sei o nome dele, quer dizer, eu sei, mas não
vou conseguir lembrar-me agora, não sem ajuda. Faz dez anos que eu não o
vejo. Faz dez anos que eu não pronuncio seu nome. E por alguns motivos
desconhecidos, minha memória não está muito boa nesses últimos seis
anos. Desde que as brigas com Edward começaram a ficar mais
prejudiciais, desde que eu comecei a tomar aqueles remédios para
fertilidade.
— Você levou para o coração, meu amor? — pergunto brincalhona,
com dificuldade. Com uma mão, ele tira a máscara e joga no chão da igreja.
Ouvimos o barulho dela chocando-se contra o piso e nenhum de nós dois se
importa. Agora consigo ver os traços presentes em seu rosto. Seus olhos
penetrantes, seu nariz fino e empinado, seus cabelos brancos e ondulados,
pairando sobre a sobrancelha fina. Seus lábios avermelhados cortados pelo
vento. Todas as características que sequestram a minha atenção desde a
primeira vez em que o vi, na noite de solstício de inverno. — Sinto te dizer
que eu não lembro.
— Ah, mas você vai lembrar — expressa, apertando ainda mais o
meu pescoço e inclinando a cabeça para perto do meu ouvido. Feito isso, o
homem sussurra: — Apenas precisa de um incentivo. Posso ser um garoto
bonzinho e te dar uma dica. Ele começa com a letra N.
— Nicolau Archiviéste? — brinco, soltando uma risada com
dificuldade. A criança sorri, pressiona o meu corpo ainda mais contra a
parede e aperta minha garganta, tirando-me uma parte do ar. Acredito que o
neném não gosta de brincar.
— Esse é o nome do meu primo — expressa, aconchegando o seu
rosto no meu. A ponta do seu nariz quase toca a região vermelha da minha
bochecha, faltam poucos centímetros para as duas extremidades chocarem-
se. — E você sabe muito bem disso, Villain. Agora, eu quero o meu.
— Perdoe-me por minha insolência, garotinho. Eu achei que era o
mesmo, até porque você vivia na sombra do seu primo — provoco e, por
alguns instantes, o portador da pele castanha fica totalmente paralisado.
Com uma certa dificuldade, pude sentir o ar voltando então continuo: —
Geralmente os cachorrinhos atendem pelo nome do seu dono.
Eu realmente penso que ele não pode por mais brutalidade na sua
mão para apertar-me, mas acabo de pagar com língua pois a força que o
diabo deposita neste instante é irreconhecível. Levo minhas mãos à sua, que
envolve minha garganta e é responsável por tirar todo o meu ar. Tento
cravar as minhas unhas na sua pele, mas não dá certo, porque ele continua
apertando, mais forte e mais forte. Leva cerca de quatro segundos para
apagar alguém quando a asfixia começa a fazer efeito e o ar é cortado do
pulmão. São quatro segundos ligeiros, com risco de morte cerebral por falta
de oxigênio. Meu rosto deve estar ruborizado a um nível preocupante e os
meus quatro segundos passam a cada tentativa fracassada de respiração que
eu dou.
— Qual é o meu nome, Morgana? — pergunta, folgando o
estrangulamento para que eu possa responder. — Qual é a porra do meu
nome?
— Não sei. Eu realmente não sei, Archiviéste — digo, desamparada.
Vasculho desesperadamente meu cérebro atrás da informação. Caralho.
Procuro na época em que eu estava na sua casa, manipulando seu primo
enquanto ele me olhava com o olhar desconfiado. Como se soubesse das
minhas intenções com a sua família. Como se encarasse uma cobra no seu
ninho de passarinhos.
— Lembre-se, minha raposinha. Lembre-se do dia em que você
estava na caverna submersa comigo, ouvindo-me desabafar. Você disse o
meu nome, soletrou ele com todas as letras — ele informa e eu,
automaticamente, forço-me a lembrar dos detalhes do dia citado em suas
palavras.
Procuro a memória desejada entre a bagagem que acabo de receber.
Lembro-me parcialmente das coisas que aconteceram naquele dia. Lembro
do sangue escorrendo, mas o líquido não era dele. Lembro da água
banhando a minha pele vestida, do calor da gruta aquecendo o meu corpo.
Lembro de seus olhos fixados em mim, vigiando-me atentamente,
fotografando-me como um animal raro encontrado em uma floresta tropical
no outro continente. Lembro da sua voz chamando-me para dentro de casa,
mas eu não lembro da minha ecoando seu nome, pedindo para esperar.
Pressiono os lábios e sinto as lágrimas querendo sair dos meus olhos.
Impeço-as de ter esse privilégio.
— Diga o meu nome, Raposinha. — Ele aperta o meu pescoço,
novamente. Respiro antes de fechar os olhos para segurar. Estou quase
aceitando que esse será o meu fim, e talvez fosse caso a dor de ser asfixiada
não esculpisse cada letra do seu nome na minha pele. Não poluísse os meus
rios com a sua melodia.
— Noeeh — respondo, o mais rápido que consigo. Respiro fundo,
muito fundo, agradecida por não sentir mais a sua mão em volta do meu
pescoço.
— Diga novamente, Villain — pede, com um tom arrogante na voz,
fitando-me com os olhos violetas ativos.
— Noeeh Archiviéste. — Obedeço, satisfeita por ele estar se
afastando do meu corpo. Seu sorriso cresce junto a minha vontade de
quebrar todos os seus ossos e jogá-los nas covas dos leões selvagens.
Noeeh coloca as duas mãos para trás, em uma mistura de elegância e
egocentrismo. À medida que se afasta, ele me olha com um tom vigoroso de
superioridade enquanto volto a controlar minha respiração. Archi está
orgulhoso de si mesmo. Ele caminha para trás com passos lentos, sem dar
de ombros, sem virar as costas para mim. Não sei por quanto tempo fica em
silêncio piedoso, mas vejo a sua boca abrir e movimentar-se, e ouço a sua
voz sair das suas cordas vocais, dizendo:
— Grave o nome do demônio que destruirá o seu pequeno paraíso,
minha raposinha. — Estremeço, minha alma estremece com a sua melodia
vocálica. Todos os rios de sua pele entram em combustão imediata.
Correntes elétricas passam pelas vastas nascentes. Meus joelhos
cambaleiam por causa da fraqueza e meu corpo se apoia na parede para se
manter de pé.
Noeeh gira os calcanhares e continua a andar como se nada tivesse
acontecido. O interior da igreja está em um silêncio tenebroso, só ouço o
som da minha respiração, do meu peito subindo e descendo conforme ele
caminha. Deixo que as minhas costas escorreguem pela parede, sentando no
chão frio de mármore.
— Por que? — formulo a pergunta, com muitas adversidades. O
medo é a principal. — Por que, Noeeh? Por que está fazendo isso?
Ele para e olha para trás, por cima do próprio ombro. Respira e vira
o seu corpo, de frente para mim. Encarando-me. Começa a caminhar na
minha direção. Seus pés andam calmamente, aproximando-se. Arrependo-
me na hora de ter feito a pergunta. Por que eu sou tão idiota? Devia ter
deixado que fosse embora sem explicação nenhuma. Deixo que meu
coração fale mais alto que o meu cérebro, mais uma vez. O homem
platinado para a poucos centímetros da minha estrutura, seus pés entre as
minhas pernas enfraquecidas.
— Não, por favor — imploro, imaginando o que ele vai fazer por ter
feito essa pergunta tola. Meus olhos lacrimejam. A essa altura, não me
importo se ele notar o meu desespero. Eu não aguento outro enforcamento.
— De novo não.
Noeeh não se agacha, apenas inclina a coluna superficialmente e
coloca o dedo indicador por baixo do meu queixo, levantando o meu rosto e
pressionando-me a olhá-lo nos olhos diabólicos. Maldições são lançadas na
minha alma nos pequenos instantes que o homem me analisa.
— Deixe que o oceano domine o seu corpo, mas nunca deixe-o
controlar a sua mente. Defenda seu coração, Villain. Não o confie a
ninguém, porque até o que usamos para limpar está sujo — Archiviéste cita
essas palavras devagar, como se as houvesse decorado por anos e, durante
esse tempo todo, elas suplicavam para serem libertas com os passarinhos
presos na gaiola, dançando na sua garganta toda vez que ele ousava abrir a
boca. Engulo em seco e pisco, perplexa.
Noeeh solta meu queixo e quebra o contato da nossa pele. Umedece
os lábios e vira de ombros e, por incrível que pareça, sinto-o tenso.
— Os moradores da cidade foram evacuados, Morgana — avisa,
sem ter coragem de olhar-me nos olhos. Isso explica a cidade vazia. E ainda
andando, ele complementa: — O Submundo invadiu Penzance e agora
ambos pertencem a mim. E você não está autorizada a sair da fronteira de
nenhuma das duas cidades. Se ousar sair daqui, eu vou te caçar e vou te
matar — ameaça, sério.
Eu estou presa na cidade, como os passarinhos azuis que os
humanos consideram belos, eu sou as palavras trancafiadas na sua garganta.
Isso não é possível. Não! Não! Não! Mais uma vez, não!
— Vai para o inferno, garoto! — esbravejo, o estresse é um
sentimento renovado e não muito usado nas minhas conversas com ele.
Ouço-o sorrir.
— Quando você resolver devolvê-lo a mim — diz, caminhando
entre os bancos quebrados da igreja. — terei o prazer de expandi-lo pelo
caos da Terra.
— Devolvê-lo? — questiono, três sentimentos muito intensos estão
guerreando pelo meu controle. Confusão.
O diabo me olha e sorri, depois sai pelos portões abençoados da
igreja gótica.
O meu demônio.
Eu tinha esquecido que ele é o meu demônio.
Então eu sou o seu inferno.
CAPÍTULO VI
Uma dúvida enigmática passeia pelas ondas cerebrais da minha
mente, confundindo-me e deixando-me completamente desnorteado. Um
receio tenebroso e agitado que instala-se no meio do meu peito e não para
quieto. Não me deixa em paz. Ele bate contra meus músculos e lesiona a
minha pele, confunde minha cabeça e faz questão de atormentar minha
alma. E tudo por causa daquele maldito fogo que habita em seus olhos
opacos, que me incendeiam, sequestram a parte pacífica do meu ser e
queimam-na sem aviso prévio. Sem autorização. Isso faz com que a parte
tumultuosa dobre seus sentimentos de ira. Eu não queria levar adiante, não
pretendia. Eu só iria matá-la, sem nada muito amplo, sem planos
complicados ou jogos irresistíveis. Seria drasticamente fácil e entediante,
mas decidi poupar-me de ter que passar raiva, até ontem.
Até seus olhos pegarem fogo e despertarem algo em mim que eu não
sinto há muito tempo: ondas intensas de prazer, redemoinhos caóticos de
satisfação. Eu senti prazer em caçá-la, em vê-la totalmente vulnerável, mas
lutando com as garras que não possui. Seus olhos encharcados de
indignação, seu peito arfando de raiva, raiva de si mesma por estar
submetida a mim, por ter perdido sua força e vocação. No começo, eu não
estava lhe reconhecendo, seus planetas escuros tinham um aspecto glacial,
gelado, estavam mortos como a neve que enfeita Penzance. Sua carne
estava fraca, as pálpebras inchadas e a pele horrivelmente pálida. Seus
princípios perdidos em águas passadas. Sua situação estava tão ruim que,
por um momento, pensei em deixar a vingança para trás e esquecer tudo. Eu
não preciso fazer nada. Ela está se destruindo, está se arrebentando por
comodismo e responsabilizando seu marido forjado.
Edward pode ter colaborado, mas grande parte da culpa dela estar
assim é de si mesma. Foi decisão dela abaixar a cabeça, foi decisão dela
render-se a ponto de perder sua própria personalidade. O medo de ficar
sozinha que a deixou nesse estado. Um estado em que a pessoa se humilha
por amor, sacrifica rios e mares por alguém que não oferece-lhe uma gota
de água. A linda mulher pode falar o que quiser, mas todas as necessidades
de saciar as expectativas que cobra de Edward foram criadas por ela
mesma. Por muito tempo, minha raposinha quis sustentar um
relacionamento onde só seu coração amava. Pode não enxergar isso agora,
mas, quando perceber, a realidade vai cercá-la de uma forma que não terá
grande retorno ou pequenas fugas, vai prensar seus pulmões e destruir essa
ilusão. Ela vai voltar. Morgana tem que voltar, porque isso destruirá a sua
montanha de neve, e é dessa maneira que vou induzi-la a querer estilhaçar-
se por ter sido tola, para depois caçá-la como um animal selvagem. Estou
ansioso por isso. Estou inquieto e o motivo é muito simples: o motivo é ela.
Sempre ela.
Minha raposinha quer voltar a caçar.
E ela me quer como sua primeira presa.
Vou deixá-la tentar, deixá-la entender que pode revidar. Vou dar a
ela uma chance preciosa de ter tempo para se levantar, visto que isso não
vai tirá-la do meu radar. Independente da situação, Villain nunca deixará de
ser minha presa, de ser um animalzinho tolo e aprisionado por mim. A
minha vilã nunca sairá das minhas garras, pois eu não deixo meus
animaizinhos saírem para passear. Morgana sairá de uma prisão e quando
menos perceber, já estará em outra. Uma bem pior. Esta não será enfeitada
de ouro, mas terá sangue e escombros, as grades serão feitas de ossos e
devastação. Um verdadeiro santuário feito para animais assassinos.
E ela terá que se acostumar, terá que aprender a viver nesse
ambiente, porque eu vou estar preparado para sua rebeldia. Suas tentativas
de fuga. Gritos. Berros. Xingamentos. Agressões. Lutas. Protestos. Sua
chama. Estou definitivamente esperando por sua chama. Isso me causa
atritos de emoção. E como eu senti falta de estar na presença das emoções
que ela causa com a sua oposição fútil.
Senti falta daquela mulher tentando me matar.
Sinto a areia castanha e úmida sob a pele dos meus pés, ela invade
as minhas juntas, fazendo meus dedos friccionarem uns nos outros,
tentando tirá-la dali por um incômodo desconfortável. Balanço a cabeça em
negação, frustrado pela tentativa fracassada. Nasci no mar e mesmo assim
não me acostumei com a sensação de estar na areia da praia. Talvez por eu
estar acostumado com a madeira cedro que é usada para construir meus
barcos de navegação, ou talvez porque simplesmente eu não gosto da
textura úmida e grudenta. Independente do motivo, odeio a areia e a forma
que ela se instala nos meus pés.
Estou na frente de um penhasco com a cabeça levantada e as mãos
para trás. Meus olhos estão fixados em Morgana Villain há cinco horas e
quinze minutos. Observo-a andar de uma ponta a outra da antiga igreja
gótica, ouvindo seus pensamentos murmurando e bagunçando sua cabeça.
Todos eles querendo palpitar sobre sua próxima atitude. Garotinha boba.
Ela pensa que ainda tem controle sobre a própria vida, mal sabe ela que
quem a controla agora sou eu. Não importa o que fizer, ou o que pretende
fazer, sou eu que possuo o domínio das suas escolhas. Sua vida pertence a
mim. Sua existência depende de mim.
Dou-lhe um sorriso, mesmo tendo a noção de que ela não o
retribuiria. Morgana nunca faria isso e nem quero que faça. Villain tem uma
mania ridícula de sorrir para ser simpática. E não sei o porquê, mas uma
parte do meu corpo agradece por isso, provavelmente por eu não querer ter
a visão horrenda dela sorrindo verdadeiramente para mim. Tenho nojo só de
imaginar essa peculiaridade vergonhosa. E isso porque é só a cena
imprestável dela sorrindo, para minha sorte nunca tive a indecência de
imaginar ela despida. Só de pensar em fantasiar aquele corpo nu em minhas
mãos, deitado em minha cama, arfando com o meu toque, arqueando a
coluna e jogando a cabeça para trás, devagar. Tudo terrivelmente devagar.
Só de pensar naquela covinha funda na sua bochecha esquerda —
que, impressionantemente, ela só tem em uma — com seus dentes
pequenos, um pouco amarelados e arredondados, um enjoo passa pela
minha barriga e sinto vontade de vomitar o café da manhã. Jogá-lo para fora
do meu corpo. Vejo-a coçar o pescoço e respirar fundo. Agora ela está
sentada em um dos bancos de madeira no jardim malfeito da antiga igreja.
Sinto sua necessidade de atacar de volta. Sua ambição de ganhar. Sua
rejeição com a possibilidade de perder. Mordo as bochechas e cruzo os
braços, eu não a chamo de raposinha à toa. Ela tem um plano.
E me manter vivo não se inclui nele.
Eu gosto disso.
Agradeço por isso, porque, no meu plano, ela também não ficará
viva por muito tempo. Ouço passos familiares se aproximando e não são os
passos mansos de Morgana. Oscilo a cabeça, despreocupado com o
conhecido atrás de mim. Reconheço os fios vermelhos e olhos azuis, e a
pequena silhueta vindo atrás dele. Sahil e Noah. A duplinha que mais me dá
trabalho entre todos os tripulantes da grande frota de marinheiros. É
inevitável dar bronca nesses dois, só me arrumam problemas difíceis de
serem resolvidos. E tenho certeza de que estão vindo com mais um. Espero
com impaciência, eles chegam mais perto, antes de falar com puro
desprezo, perguntando:
— Que roupas feias são essas? — questiono, descruzando os braços
com uma expressão nitidamente decifrável. Isso foi um ataque à moda.
Assassinaram-na de uma forma cruel e violenta, uma das mais terríveis
mortes que já vi. Uma pena que não posso trocar meus olhos. — Onde
vocês dois compraram essas coisas bregas?
Meu tom de voz é inexpressivo. Meus julgamentos escapam como
uma melodia que usa outra linha sonora, porque eles nunca me escutam.
Sorte dos meninos que os considero como família íntima, porque se fossem
outros, já teriam sido arremessados para o mar no seu ponto mais agressivo
da turbulência. O cheiro de peixe morto invade meu nariz, e
automaticamente eu me afasto dos dois homens que estão à minha frente.
Com rapidez, os repreendo com o olhar. Ambos estão com uma calça
branca, cujo meio do tecido encosta no chão.
O pior, gastaram o meu dinheiro com isso.
Qualquer dia desses, vou jogá-los no mar.
— Que porra é essa? — pergunto, cobrindo o nariz com as mãos. —
Meu Deus, vocês dois não tomam banho? Estamos no continente agora, não
tem desculpa para vocês não se lavarem adequadamente.
— Hoje não é dia de tomar banho. O nosso próximo banho é
semana que vem — obviamente foi o Sahil quem falou. Desgraçado
insolente. Noah só me olha de forma distraída, como se estivesse achando
graça. Provavelmente isso é mais um daqueles planos terríveis que os dois
elaboram para me atormentar.
Esses pestinhas vão me pagar da forma mais cruel possível. Balanço
a cabeça quando uma ideia surgiu na minha mente. Umedeço os lábios e
cutuco a bochecha com a língua, a maldade na ponta vermelha da língua.
— Estávamos indo para casa, até ver o senhor aqui, parado.
Aconteceu alguma coisa? — o ruivo pergunta enquanto me encara
perfeitamente. Seus olhos azuis cobertos de manipulação feita pelos fios
negros. Seguro a vontade de revirar os olhos com sua inocência inadequada.
Esse tipo de inocência induz um pirata a naufragar, e é o que vai acontecer
com Noah se eu não o ensinar a se virar.
— Não precisam se preocupar comigo. Nenhum de vocês dois —
digo, a mão desencostando do nariz. — De qualquer forma, muito obrigado.
E não, não aconteceu nada, mas vai acontecer se não saírem agora. —
Preciso vigiar a minha garota em paz. — Estão dispensados por enquanto.
Ambos levantam a sobrancelha, confusos. Um sorriso travesso
surgiu em meus lábios. Mas antes que eles pudessem se virar
completamente para ir embora, anunciei em voz alta e nítida o suficiente
para ouvirem com atenção, comunicando:
— Por acaso, vocês bateram a cabeça? Não vão entrar em casa até
tomarem banho. Não quero vocês a menos de cinco metros de casa, estamos
entendidos? — Eles se entreolham, confusos.
— Como vamos tomar banho sem estar em casa? — questiona
Sahil, olhando-me com desprezo perceptível.
— Isso já não é problema meu — respondo, o sorriso aumentando
gradualmente, igual ao ódio estabilizado em seus planetas aquáticos. O
moreno se segura para não fechar os punhos. — Tem água duas ruas antes
da nossa casa. Vocês podem tomar banho lá.
— São água para banhar cavalos! — expressa o ruivo, incrédulo
com a minha sugestão, com a minha ordem. Os meninos sabem que não tem
escolha. — Eles ainda bebem naquela água.
— Como eu disse, esse obstáculo não pertence a mim. Já tenho
muitas coisas para fazer e lidar com os seus problemas não é uma delas —
rebato, curto e grosso. Talvez assim eles se lembrem de que ainda sou o
capitão e que, por mais que eu os ame e os considere muito, não vou deixar
de cobrar ordem no meu navio. Não posso dar chance para outras pessoas
pensarem em me tratar assim. — Na próxima vez, quero que pensem bem
nas consequências antes de resolverem enfrentar qualquer uma das minhas
ordens.
— Sim, capitão — murmura o ruivo, cabisbaixo. O homem de olhos
azuis não me encara, apenas assente, observando o mar.
Não gosto de repreendê-los desta forma. No entanto, os meninos
não me deixam outra escolha a não ser puni-los por suas atitudes burras.
Eles sabem as regras. Sabem o código dos piratas. Eles têm consciência de
como tudo funciona. Não posso acobertá-los para sempre e, mesmo se
pudesse, não o faria. Uma pessoa madura lida com os seus atos, uma pessoa
responsável lida com os efeitos deles, sejam bons ou ruins. Desde que
adotei Noah e o inclui na tripulação, ele vem recebendo orientação
adequada de como se comportar, de como sobreviver no nosso mundo.
Enfrentar o mar e navegar à procura de objetos que podem ser valiosos.
Sahil está destruindo toda a educação que dou para esse garoto. Preciso
interferir nisso. Pisco devagar, respirando fundo e encarando os dois com
uma expressão simples, sem muitas feições de raiva ou decepção.
A expressão que quero que eles tenham em mente antes de resolver
aprontar.
— Sahil — o chamo e ele levanta a sobrancelha, pelo menos está
disposto a ouvir. Uma corrente de vento fresco balança seus fios negros. —,
depois vamos conversar sobre esse assunto com calma, mas por que vieram
aqui?
— Eu já disse — interrompe o ruivo. — Encontramos você aqui por
acaso. Estávamos andando e o achamos aqui, encarando o penhasco como
um maníaco obcecado pelo vento.
Ele não está totalmente errado, estou obcecado, mas não pelo vento.
Retiro os olhos dele e os coloco no moreno. Inclino a cabeça e o obrigo a
falar. Meus planetas pressionam a sua garganta, enquanto ele engole a
saliva secamente, obrigando-se a confessar.
— Estou curioso — Sahil diz, finalmente exibindo o motivo. —
Quero saber o que tanto Noeeh Archiviéste observa, a ponto de deixá-lo
fora de casa por três dias seguidos. Geralmente você não sai nem por três
horas. Sempre estamos tentando convencer você a sair de casa. Até mesmo
quando estávamos navegando no mar, você nunca saía do navio para gastar
o dinheiro, comprar comida ou roupas. Apenas quando era necessário.
Porém já faz três dias e algumas horas que o capitão não pisa em casa
direito. E desde que chegamos aqui você tem saído mais do que todos nós.
Não entra no bordel e não aparece na maioria dos jantares.
— Estão com saudades de mim? — brinco e ele nega com a cabeça.
Analiso o ruivo, completamente traído, se sentindo indignado.
— Espera — ele resmunga, agora notando as verdadeiras intenções
do moreno. — Não saímos para caçar borboletas?
Uma risada se desprende do meu peito, fazendo meus ombros
tremerem. Noah está com a boca aberta, olhos semicerrados e sua expressão
cheira a vingança. Talvez ele não seja tão bobo assim.
— Obviamente não, eu só quero saber qual foi a cobra que mordeu
o nosso capitão — confessa, cruzando os braços. Devo dizer a ele que desta
vez não foi uma cobra, mas, sim, uma raposa. Uma linda raposa marsala.
— Por isso que você quis sair mais cedo do jardim. — Suspira,
cansado.
— Eu nem queria estar lá — retruca.
— Seu cretino desgraçado — adiciona, seu tom de voz é grosso e
repreensivo.
— Criança manipulável — resmunga o moreno, mas não posso
ouvir o resto da conversa, porque as batidas do coração de Morgana
chamam a atenção dos meus ouvidos.
Sinto seus olhos me queimando, mesmo de costas. Seu cheiro de
algas se mistura com o cheiro de seu nervosismo ao me ver, ao me encarar
aqui, alguns metros abaixo da superfície enfeitada de grama verde e flores
mortas. Levanto a cabeça, meu corpo está tão focado em sua presença que
ignoro completamente a existência dos garotos. Coloco os braços para trás e
semicerro os olhos ao encará-la de uma forma que fizesse seu coração bater
mais forte, e, depois de alguns segundos, dou-lhe um sorriso que mostra os
meus caninos, porque sei o efeito que isso causa na sua mente. Sei os
pontos que atraem Villain e um deles é a minha boca. Morgana não para de
olhar para a porra da minha boca. Vou ter que me lembrar de repreendê-la
por isso, pois corro o sério risco de perder o meu controle.
Observo seu peito arfar, tentando arrumar coragem para descer e me
enfrentar. Suas pernas estão separadas na medida certa e estão tremendo, ela
está forçando os braços a ficarem relaxados, mas não está dando certo, a
morena sabe disso, eu sei disso. Sei que seus músculos ainda estão tensos,
sei que a sua mente ainda é uma bagunça, sei como seu coração ainda bate.
Estão indecisos entre correr e se esconder, lutar ou sobreviver. Atacar ou se
defender. Retomar os seus princípios. Ceder a sua nova escolha. São tantas
opções, mal sabe ela que todas levam até um único caminho. Todas levam-
na até mim.
Somente a mim.
Eu sou lamparina que ela procura, apenas estou enferrujada e não
consigo ajudá-la. Não estou aqui para ouvi-la lamentar sobre o quanto
sofreu na sua vida infeliz. Não que eu não soubesse. Conheço tudo sobre
Morgana Villain, mas não sou o mocinho da sua história, não estou aqui
para dar-lhe flores, beijar suas cicatrizes ou falar que a amo. Não faço
nenhuma dessas coisas e não vou fazer, a única coisa doce que Villain vai
receber de mim é o gosto enferrujado da minha lâmina prateada. A história
dela não é um romance fofinho onde tudo acaba bem no final, é um conto
de terror. E eu sou o vilão, Morgana é a mocinha trapaceira. Uma raposa na
pele de um cordeiro. Minha raposa trapaceira.
O vento que vem da maré bate contra seus cabelos, bagunçando-os
de uma maneira desprezível e, teoricamente, magnífica. Ela reprime os
lábios, segurando a máscara de raposa branca que está em sua mão
esquerda. Seus olhos ainda queimam como o fogo do sol. Villain leva o
braço para perto do rosto angelical e coloca a máscara no rosto devagar.
Depois que o objeto moldado é encaixado perfeitamente, ela levanta a
mesma mão onde antes estava a máscara. Respira fundo e abaixa o dedo
indicador, pressionando os outros três a ficarem juntos.
Surpreso com a audácia impecável da garota, meus ombros tremem
com a risada. Dou outro sorriso e assisto com a cabeça, aceitando sua
proposta irrecusável. Ela abaixa a mão ao mesmo tempo que o vento
balança seu vestido quase transparente. Seu cheiro de algas marinhas
combate o cheiro ruim de peixe morto dos garotos e eu agradeço por isso.
Nunca vou admitir, mas prefiro o cheiro de Villain do que o dos meus
homens. A mulher ainda está com o peitoral levantado, tentando mostrar
um pouco de autoridade, tentando mostrar que ainda não perdeu, que ainda
vai lutar, vai voltar a caçar. Meus braços se cruzam e ela dá de ombros,
virando os calcanhares e voltando para igreja. A morena se esforçou para as
pernas não tremerem. Eu sei disso, porque sua atitude foi de extrema falta
de juízo considerando sua posição, mas é a minha raposinha, é da minha
inimiga que estou falando.
Respiro fundo e repreendo-me por querer o seu cheiro de volta.
— Você sabe o que ela acabou de fazer, não sabe? — questiona um
dos garotos, mas eu estou tão desnorteado pela saudade da sua essência que
não consigo identificar quem foi que formulou a pergunta.
— Sim, sei — respondo de forma monótona. Minha voz não
expressa nenhum dos meus sentimentos, apenas uma suavidade em relação
ao que ela fez.
— E você sabe o que fez quando aceitou, não é?
— Sim, eu compreendo tudo o que aconteceu aqui nos últimos três
minutos — digo, virando-me de volta para eles.
— O que ela fez? — interroga o ruivo, confuso.
— A raposinha acabou de proclamar uma guerra contra o seu dono
— brinca Sahil, cruzando os braços e inclinando a cabeça.
— Ela fez o quê? — ele pergunta novamente, com um tom de voz
um pouco mais alto. Ambos tão surpresos quanto eu.
— Ela abriu uma guerra pelo potentia certamen, que é uma
rivalidade que ocorre pelo comando do Submundo — respondo e eles
abrem os olhos. Eu sabia que ela apelaria às regras, só que, céus, essa
mulher está totalmente destruída e ainda quer lutar. Ela não quer se
recuperar, ou fazer planos, ela quer ação. Ela quer os jogos. Os jogos que
prometi a mim mesmo que não faria. Uma tentação muito grande. Isso já é
uma promessa quebrada. Mais uma, porque Villain já me fez quebrar três
delas. — Fazemos isso há anos, desde que as três famílias resolveram
quebrar o tratado, se separar e lutar pelo poder.
— Três famílias? — pergunta.
— Sim, os Villains, Archiviéstes e Lancellottis — respondo. — As
três famílias sedentas por poder de Penzance.
Tudo isso por causa de um maldito navio que naufragou em alto mar
há vinte e três anos. Tudo isso por causa de um tesouro que ninguém sabe
proteger. A ganância tomou conta e os três grupos brigaram para decidir
quem iria lidar com o ouro. Tudo isso porque ninguém sabe onde está o
guardião das riquezas amaldiçoadas, ninguém sabe qual a sua identidade.
Não se sabe onde ele está, muito menos onde está o navio.
— E quando isso acaba? — Sorrio, fascinado com a sua inocência.
— Quando um de nós morrer — respondo, calmamente.
— Espera…
— Morgana Villain propôs um duelo contra mim. Propôs pelo
domínio do Submundo e de Penzance, uma disputa até a morte —
interrompo. Ele suspira, desnorteado. — E eu aceitei.
Repreendo-me novamente, mas, desta vez, é por estar orgulhoso. E,
infelizmente, não é de mim.
CAPÍTULO VII
Acabo de proclamar uma guerra.
Estou emergindo para minha superfície terrestre uma guerra cruel e
arcaica que foi afogada por sereias e levada com agressividade às
profundezas mentirosas do meu assassino favorito. Esse conflito já estava
submerso — como o barco que possui a riqueza envenenada —, já tinha
sido sufocado pela água e asfixiado pelas fortes ondas. Isso já tinha sido
omitido por toda a cidade encharcada de lamparinas reluzentes. Elas já
tinham parado de sussurrar os segredos, mas ele não esqueceu. Óbvio que
não esqueceu. Como ele poderia esquecer essa enorme tragédia cabalística,
sendo que essa guerra custou a vida da sua família? Como alguém esquece
de algo com essa proporção violenta? Nessa brincadeira de batalhas e
reinos, terras e conquistas, foi ele quem perdeu e isso deve atormentar sua
mente.
Como se esquece algo que não sai dos seus pensamentos? Sua sede
de vingança não o deixa ter paz. Ela martela sua mente já lesionada pelos
traumas, já arranhada pelas as minhas garras. Ela lembra-o todos os dias do
que precisa fazer para saciar essa necessidade devastadora que corre pelos
rios de sangue da sua alma. Lembra-o do que precisa fazer para tentar
preencher esse enorme vazio que pertence ao seu coração. Uma atitude
desesperada de tentar juntar as peças do seu coração estraçalhado. É isso
que uma pessoa que cresceu no berço violento do Submundo se torna: um
ser sem compaixão que não compreende o que é amor. Se for capaz, não
compreende nenhum dos inumeráveis sentimentos saudáveis espalhados
pelo mundo. Não sabe o que é ser bom, acho que nunca presenciou a
bondade.
Uma criatura que aterroriza o medo e a única coisa que teme é a
falta de poder. Saciado pela discórdia e alimentado pela angústia.
Ele se sustenta corroendo e oxidando os atritos metálicos que se
desenham — retratados como raios diabólicos e oceanos glaciais — na sua
magnífica pele castanha.
De certa forma, entendo-o por me querer morta em seus braços,
entendo-o por querer ter o meu corpo arremessado em um túmulo imundo,
por querer ver meus ossos sendo corroídos por insetos. Entendo-o, porque,
se fosse eu no seu lugar, faria a mesma coisa, ou até mesmo pior. Mil vezes
pior. Percebo pelas suas atitudes que ainda luta, que ainda tenta não ceder.
Tenta repreender-se por querer tanto algo que, lá no fundo, entende ser
errado. Luta contra as suas crenças domésticas. Rebate os seus pensamentos
íntimos. E ele perde. Perde, porque, quando menos percebe, suas mãos
estão na minha cintura e sua faca está no meu pescoço, ameaçando perfurar
a minha carne e rasgar as minhas vestes. Quando Noeeh menos percebe,
meu corpo está pressionado contra o seu e as suas mãos estão na minha
garganta, asfixiando-me e enforcando-me com uma força absurda que nem
ele entende de onde vem. Uma parte sua me quer morta. E eu dou razão a
ela.
Eu destruí toda a estrutura da sua família de traficantes, deixei quase
todos os seus segredos expostos para o mundo e tirei-lhe todo dinheiro.
Roubei todas as suas riquezas, saqueei o seu poder. Acertei-os no ponto
fraco, não fui a responsável por sua morte aterrorizante, mas fui por sua
ruína atroz. Fui eu quem construí informações falsas e os acusei de um
crime que não cometeram. Fui eu a responsável por terem sido expulsos do
Submundo pelos próprios moradores, por desconfiar que a família
Archiviéste desapareceu com as riquezas do navio. Eu os fiz serem odiados
a ponto de todos os comércios da cidade os rejeitarem, ninguém queria vê-
los por medo de serem roubados. Mal sabem eles quem era o verdadeiro
ladrão. Trapaceei de uma forma covarde e nunca neguei isso. Joguei com
golpes imundos como água suja de esgoto na rua e eles escorregaram. Usei
toda a confiança que tinham em mim, toda a minha reputação dócil e
protetora a meu favor. E é por isso que ele me chama de raposinha.
Animalzinho trapaceiro, indigno e completamente corrupto. Feito de lindas
promessas sentenciadas a serem quebradas.
E eu quebro, faço jus a minha sentença. Nasci para quebrar aquilo
que demorou anos para ser construído. Quebro todos os malditos acordos
até hoje. Fragmento cada um deles devagar. E não me arrependo, não sinto
culpa ou remorso. Eles precisavam ser detidos e, por mais que eu odeie
admitir que sou a vilã dessa história, não sinto uma partícula sequer de
culpa. A lamentação não escorre pelas minhas veias. Faço o que tenho que
fazer. Realizo o que é necessário para o bem de todos, esse é o meu maior
segredo, esse é o tesouro do mar de mistérios que o garoto quer desvendar.
Vou naufragá-lo com as minhas mentiras.
E se for preciso, se tudo o que eu estiver supondo for verdade e ele
estiver muito perto dessa revelação, vou matá-lo para continuar escondido.
O navio nunca poderá voltar à tona. Vou me assegurar que ao menos uma
das minhas promessas seja cumprida, nem que, para isso, eu tenha que dar a
minha vida, reviver o potentia certamen, causar outra guerra na cidade ou
assassinar friamente Noeeh Archiviéste. Caso ele esteja muito perto, vou
detê-lo com violência. Caso esteja agitando as ondas que não deve, vou
conduzi-lo à maré errada.
Caso não haja mais jeito e eu não conseguir mais nenhum recurso, o
meu demoniozinho terá de ser exorcizado.
E eu vou ser a responsável por esse culto de santificação. Vou ser
responsável pelas águas puras usadas na igreja para purificação. Sem mais
nem menos. Morgana Villain sairá nas notícias como a assassina do último
Archiviéste, e, para se juntar à lista de erros necessários que já cometi,
também receberei o título da disputa pelo trono do Submundo. Eu que
comecei, então eu que finalizarei. Vou extinguir essa guerra ridícula e selá-
la com sangue de rivais extraídos por minha lâmina, contaminados pelo
meu veneno. Uma conquista suja para uma raposinha mais imunda ainda.
Meus pequenos pés estão enfeitados por grãos de areias marrons,
molhados e pegajosos, agarrando-se a mim de uma forma que sinto que
nunca irão se soltar. E se se soltarem — caso alguém tentar tirá-los de mim
—, eles vão lutar, resistir. Vão dificultar ao máximo desvencilhar-se das
juntas dos meus dedos. Nunca vão me abandonar. Vão fazer tudo o que é
possível para cumprir isso. Talvez isso seja o mais importante: saber que
eles não vão me deixar passar pela solidão de não tê-los. Entender que eles
não vão me deixar colocar outra agulha na minha pele. Igual já deixaram.
Conforta-me saber que nunca vou passar pelo sentimento de não poder
possuí-los.
Eles foram embora sem mim.
Continue atuando…
Não deixe que saibam que sua montanha está desmoronando. Não
deixe as lamparinas revelarem seus segredos. Senão elas vão parar de
iluminar as ruas desertas e solitárias da cidade. Sua escuridão vai queimá-
las. Não deixe sua fraqueza mais aparente, Villain. Elas não merecem
passar por isso.
Continuo andando calmamente em direção a zona Oeste de
Penzance, em direção a uma parte que não é tão habitada. Penso que é uma
área mais deserta por conta da longitude do comércio lucrativo e das docas
cheias de navios extensos. Afastando-me do velho edifício de ritos
religiosos e aproximando-me da casa conhecida, entro em um beco estreito
que, teoricamente, devia estar enfeitado por cristais de gelo moldados por
nuvens letais. No entanto, nenhum resquício de luz encontra-se na viela e,
com certeza, não há nada gelado debaixo dos meus pés.
Muito pelo contrário, mesmo com a falta de calor das lamparinas, o
chão nivelado está quente e traz uma sensação de segurança. Uma que eu
tenho certeza que é falsa. Corrompida. O ar está impetuoso e carregado por
uma angústia antiga que insiste em ficar viva. A cada passo cadavérico que
o meu corpo força-se a dar, sinto cacos de vidro transparente arranhando a
pele macia dos meus membros cansados. Essa distorção do pavimento na
realidade não é comum. Isso é uma armadilha. E não é qualquer armadilha,
é uma armadilha que foi elaborada por mim. Eu deveria ter desvendado o
perigo no instante em que pisei no beco quente. Preciso recolocar na minha
cabeça que não há nada de aconchegante em Penzance. Cidadezinha criada
por escárnio e calúnia. Sinto a ressurreição de sensações desagradáveis, o
chão debaixo dos meus pés começa a ser álgido e úmido, então começo a
correr o mais rápido que posso.
Aviso meu corpo de que estamos em um enorme perigo, forço
minhas pernas a correrem rápido e comando os meus pulmões a balancear o
ar. Fecho os olhos e, de alguma forma, lembro-me perfeitamente de como
fazia para sair dessas situações. Eu me perdi, não me forcei a me esconder.
Esqueço-me de tudo, e a adrenalina desliza pelas as minhas veias. O
desespero não se materializa, acho que é porque até ele tem medo dessas
vielas. Disparo para longe do beco antes que as flechas de veneno
atingissem minha carne enfraquecida. Enfraquecida por mim.
Ouço passos leves, mas para o azar dessa pessoa, sempre tive a
audição de um felino. Inclino a cabeça para trás, respirando fundo para que
a coragem entrasse no meu corpo. Coragem de aceitar o que eu fiz.
Coragem para aceitar o tamanho do estrago que fiz comigo mesma.
Levantei a cabeça, pressionando-me a encarar a silhueta desconhecida e
conhecida ao mesmo tempo. Cerro os punhos, coloco o pé esquerdo a
aproximadamente trinta centímetros de distância para o lado e para trás.
Dando-me uma base, dificultando que meu inimigo me derrube. Levanto os
dois antebraços, deixando-os perto do meu rosto, protegendo uma área
sensível e, simultaneamente, facilitando os meus ataques imprevisíveis, ou
que ao menos eram imprevisíveis. O outro corpo neste pequeno campo de
batalha aproxima-se devagar, e antes que ele possa realmente chegar perto
de mim, provoco:
— Posso não estar na minha melhor forma, mas se acha mesmo que
eu vou deixar você me assustar e me perseguir sem tomar um soco na cara,
está terrivelmente enganado — ameaço, ainda tensa. Minhas pernas
cambaleiam, porém as travo com linhas mentais que percorrem e agarram
os meus joelhos. E elas sussurram nos atritos da minha pele: “Você tem que
voltar a caçar”. — Acho melhor sair das sombras, Archiviéste. Você não
consegue acertar ninguém onde está.
Um suspiro escapa dos seus lábios e um sorriso falso cresce nos
meus. Tento manter-me firme, sem mostrar fraqueza. Sem exibir o estrago
que causei em mim por mais que eu sinta que ele já saiba.
— Não sei quem é esse Archiviéste — Sua voz é mansa, não sei se
ele está tentando acalmar-me, pois está falando como se estivesse
conversando com um cachorrinho assustado. Inclino a cabeça, decidindo se
vou acreditar no ser humano à minha frente. —, mas sinto que ele tem sorte
por levar um soco de uma mulher como você, Villain.
Villain. Não é a criança birrenta que me persegue, sei disso porque
essa voz não é penetrante. Ela não invade os meus ouvidos e dilata meus
sentidos, não me causa medo e nem emoção. É uma simples voz, que por
mais delicadamente bonita que seja, não é da pessoa que eu procuro.
— Como sabe o meu nome? — questiono, não desfazendo a
posição. Só abaixarei a guarda quando ele resolver aparecer. — Quem é
você?
— Sinto-me ofendido por você não lembrar-se de mim, minha linha.
— Surge das sombras como um corvo alto e magro, um corvo traiçoeiro
prestes a me capturar. Dou-lhe um sorriso aquecido, desfazendo a posição e
correndo igual a uma criança para os braços do homem que agora, não só
reconheço, como também familiarizo.
— Jacks! — exclamo, levantando os pés e envolvendo meus braços
ao redor do seu pescoço. Seus braços envolvem a minha cintura, apertando-
me contra o seu peitoral. Seu peito subia e descia, mas ele não me largava.
— Céus! Achei que você estivesse morto.
— Bom, você nunca voltou para conferir — ele rebate e meu peito
dói. Dói mais que o frio que grita nos meus ouvidos, dói mais que a perda
do meu marido. Saber que abandonei todos eles, depois do que aconteceu.
Dói saber que não tive coragem de voltar. Todos os meus músculos se
tensionam, endurecem pelas suas afiadas palavras.
— Me perdoa. Eu não queria fazer aquilo, sério mesmo, eu…
— Eu sei, Villain — Jacks comenta, tentando me acalmar, o que foi
um fracasso já que se afastou minimamente de mim. Seus olhos caem sobre
meus cabelos molhados, ele aproxima a ponta do dedo e tira os fios da
minha testa. — Sei do que estava tentando fugir, minha querida.
— Ele me avisou — adiciono, ainda um pouco abalada. Estou feliz
por ele estar vivo e decepcionada comigo, mesmo assim, ainda não quero
aceitar. É muita coisa na minha cabeça, muitos sentimentos para processar.
Uns gritam na minha perna, murmurando conselhos, e outros criticam,
querendo tomar as decisões por mim. Minha montanha está desmoronando
aos poucos e não sei quanto tempo vou aguentar. — Antes de morrer, ele
me avisou.
Eles foram embora sem mim.
— Mas você precisava tentar — Jacks tenta me defender, como
sempre. O homem de cabelos castanhos avermelhados — cacheados na
medida certa — e olhos marrons ensolarados age em minha defesa. Seus
lábios são ovalados, sempre compreensivos e abrangentes. Admiro a sua
capacidade de ser humano. — Precisava tentar e tirar suas próprias
conclusões.
— E aqui estou eu, derrotada pela minha teimosia. — Ele ri,
umedecendo os lábios e arqueando as sobrancelhas ligeiramente angulosas.
Seu rosto é oval e seu nariz tem o osso nasal saltado. E mesmo assim, ele
tem uma beleza exemplar. Não é o homem mais lindo que eu já vi, mas sua
beleza é uma traço marcante. Até porque, infelizmente, esse título vai para
criança birrenta com quem estou lidando. Ele e aqueles malditos traços
delicados, como se tivesse sido beijado por um anjo purificado pelo dom da
beleza em seu ápice de combustão. Acho que nunca vou superar aqueles
olhos violeta-ametista. — Acho que este não é o melhor momento para
você usar a sua capacidade de compreensão, Jacks.
— Você e a sua esplêndida dureza, vejo que isso você não perdeu —
o meio ruivo brinca e, mesmo sendo uma pequena brincadeira, percebo que
ele até captou o que eu perdi. Aparentemente analisa a minha expressão,
porque logo tenta desconversar o que disse. — Não que você não consiga
recuperar, querida.
— Eu sei o que você vai falar — murmuro, dando de ombros e
andando sem definir um caminho. Apenas preciso caminhar. Fiquei parada
por muito tempo. — Que fui burra de confiar em Edward e fui mais burra
ainda ao achar que ele um dia iria me amar. Que perdi o monopólio por
bobeira e que, ainda por cima, abandonei Penzance por causa daquele
maldito navio. Eu sei que enfraqueci, sei que, aparentemente, desisti de
lutar pelo poder do Submundo, mas eu estou… tentando, beleza? Muita
coisa aconteceu nesses últimos três dias. Aconteceu tanta coisa que eu não
sei o que sentir, não sei o que fazer. São muitas vozes na minha cabeça,
murmurando coisas que não fazem sentido. — Eles foram embora sem
mim. — E eu estou completamente perdida. É isso, estou completamente
perdida e não sei mais o que fazer. Sinto-me em um maldito zig-zag.
Quero avançar na mesma intensidade em que obrigo-me a ficar
parada.
Jacks respira, tentando processar tudo o que eu disse nesses últimos
segundos. E eu me sinto tão aliviada, é como se acabasse de livrar-me de
uma parte da bagagem que carrego. Sei que posso confiar nele, por mais
que eu não o veja há dez anos. Sei disso porque ele não mudou. O brilho
inocente continua em seus olhos, em seu jeito de agir, passando suas mãos
pelos meus ombros e tentando me acalmar. Não sei quando ele se
aproximou, só sei que está aqui. Eu não sentia conforto em desabafar com
Edward, então estou guardando tudo para mim há uma década. Todos os
atritos, atuações, as avalanches, lamparinas, segredos. Todas as emoções
estão sendo reprimidas há dez anos. Ele não diz nada, apenas me olha como
um brinquedo perdido durante a infância, quebrado e arrebentado, que
encontrou anos depois. Vejo sua necessidade de consertá-lo. Pelo menos
ele. Isso me deu combustível para continuar a desabafar.
— Uma hora meu corpo quer lutar, quer o derramamento de sangue,
sinto que quero guerra. Quero sair dessa prisão em que eu mesma me
prendi. Já na outra, sinto que não consigo enfrentar o que está por vir, não
consigo enfrentar isso sozinha. Sinto que não vou conseguir proteger tudo e
todos ao mesmo tempo. É muita pressão — digo, balançando a cabeça com
calma. Ele passa os dedos macios pelos meus ombros nus, aproxima o seu
rosto perto do meu ouvido e diz:
— Lembra do que você vivia dizendo, Villain? “Deixe que o oceano
domine o seu corpo, mas nunca deixe-o controlar a sua mente. Defenda seu
coração. Não o confidencie a ninguém, porque até o que usamos para
limpar, está sujo” — Por isso ele murmurou aquelas palavras antes de sair
da igreja. Elas eram tão confusas, mas agora soam tão íntimas. Eu dizia
isso. Sempre tive certeza de que não adianta deixar seu coração ser
dominado, porque a água é suja, independente se é a água assassina que
pertence ao oceano ou se é a letal que sai dos poços. Até a que usamos
para limpar está sujo. E se chegou a esse ponto, em qual pessoa você
poderia confiar? Todos estam propensos a te trair. Então você tem que traí-
los primeiro. — Você está deixando que o oceano domine a sua mente. Tem
que voltar a proteger o seu coração, minha querida.
Jacks me submerge em águas passadas, de novo, e eu não sei qual é
o oceano em que afundei desta vez. Eles foram embora sem mim. Minha
visão fica turva sem permissão. Apoio as mãos nos ombros do homem e
coloco o peso do meu corpo no seu peitoral.
— Não estou me sentindo bem — admito, com a voz vacilante.
Minha mente oscila com minhas memórias, causando-me uma leve dor de
cabeça nas laterais do meu cérebro. — Provavelmente são os sintomas do
frio sobre o meu corpo, ainda estou de camisola e fiquei por muito tempo
com ela úmida nesse frio. Vou pegar um resfriado se continuar aqui.
É uma súplica escondida em um mero pedido de ajuda. Traga-me de
volta à vida. Ajude-me a ser quem eu era. Ele ri, mas tenho certeza de que
não compreendeu. Jacks envolve os braços no meu corpo trêmulo,
aquecendo-me carinhosamente, como meus pais faziam.
— Vou ter que te levar para a nossa casa, pequena. — E então eu
apago, não suportando mais a dor das minhas próprias palavras.
CAPÍTULO VIII
A inconveniente e frequente alternância que a minha
individualidade executa está me causando uma fadiga agudamente
exaustiva. Isso está tão repetitivo, que já chegou num grau que não consigo
mais tolerar. Essa intercalação esgota-me. Obriga-me a tomar decisões que
não desejo. Um excelente exemplo disso foi quando eu procurei o mar para
levar-me embora. Levar-me de volta para aqueles que se foram sem mim,
para ser sufocada pelos vales e mortas pelas minhas escolhas. Porra, eu
realmente iria me matar? Onde, caralhos, eu estava com a cabeça? Quem
era aquela que eu estava tentando sufocar? Será que era realmente eu, ou
era a eu que criei para agradar Edward? Aquela que criei para tentar tapar o
buraco que foi cavado pela morte da minha família? E por que eu tenho o
pressentimento de que ela ainda não foi embora? Por que tenho o
pressentimento de que ainda não superei? Por que me sinto tão impotente?
Eu revivi uma guerra, certo? Por que não me sinto saciada? Isso já não
deveria ter acabado? Essa confusão já não deveria ter sido resolvida?
Meu corpo desmaiava, mas a minha mente nunca chegou a dormir.
Isso fez com que eu atrapalhasse meu raciocínio. Era tanta coisa na
minha mente que eu não sabia mais como diferenciar. Adormecia pensando
nos problemas da empresa, no segredo do navio, nas pessoas do Submundo,
nas sujeiras mais profundas, na morte dos meus pais, no modo que
encontraria para afastar os olhos da monarquia de Penzance, na antiga
guerra das três famílias, nas consequências dos conflitos comerciais. Eram
tantas pessoas que eu protegia. Tantas vidas que dependiam de mim. Tantos
inimigos que eu enfrentava. Tantos problemas que eu tinha comigo mesma.
“Eles estão pesando. Estão me cansando. Sinto que estou prestes a
ter uma avalanche”. Pergunto-me quando vou ter essa avalanche. Estou
ansiosa para tê-la. Devo estar parecendo egocêntrica, mas estou suportando
a neve há muito tempo. Tempo o suficiente para enjoar-me do frio e almejar
o calor. Uma parte de mim quer livrar-se de toda essa confusão e voltar a
ser o que era. Jogar fora todos esses pensamentos e enterrá-los com os
mistérios do navio. Aterrar junto ao interesse que a monarquia tinha na
cidade. Eu omiti tantas coisas. Suportei tantos pesadelos. Para ser sincera,
não conseguir lidar com eles.
No entanto, ter essa alternância e confusão por perto não é mais uma
opção para mim. Ela influencia-me a ter pensamentos que quero abandonar.
Confunde-me de tal forma que eu não sei mais quem sou. Qual é a minha
personalidade? Estou escolhendo entre o fogo e o gelo. O calor e o frio. O
certo e o errado. O falso e o verdadeiro. O problema é que eu não sei
diferenciar os dois. Estou nesse jogo de escolhas há tanto tempo que não as
conheço mais. Não sei se eu tenho a alternativa de atacar.
Espero que tenha, porque se não vou ter que inventá-la, ou vou
acabar sendo morta por minhas próprias mentiras. Sendo naufragada pelo
meu próprio mar e não quero isso, sei que não preciso disso. Compreendo o
fato de eu ter força, capacidade e inteligência. Entendo que tenho que
colocar mais força no andar, a ponto de estraçalhar o atrito que deixa-me
parada. Tenho que fazer isso tendo consciência de que o atrito sou eu.
Como faço para me destruir? Dilapidar algo que eu mesma fiz? Será que foi
por isso que procurei o mar? Para matar a minha segunda camada? Se é que
ela não se fundiu com a outra, tornando as duas falsas. Para afogar a
ausência de certeza? Sinto-me tão guiada, as coisas estão tão claras, mas ao
mesmo tempo tão dispersas e escurecidas.
Estou vivendo em uma galáxia solitária que é só minha, onde eu
ergui, idealizei as regras e desenvolvi a organização. Alimentei sua massa e
acelerei sua velocidade. O transtorno é que eu não sei quais são as suas
cores. É como arquitetar o lugar por anos, e não saber qual é a medida da
parede. Decorar um ambiente e não saber quais são os objetos que estão
enfeitando-o. É como viver às cegas, esperando a ajuda de um cão-guia
Mas não existe nenhum aqui para me ajudar. Sou eu comigo mesma. Já que
meus pais foram embora sem mim. Já que meu marido deixou-me para
atuar a peça sozinha. Já que a criança abandonou o brinquedo e, a cidade, a
esperança.
Será que eles são capazes de me perdoar por tê-los deixado sozinhos
durante todos esses anos? Por tê-los abandonado por um certo período?
Será que eles vão me desculpar por não conseguir arcar com tudo à minha
volta? Ainda não consigo. Eu fechei os olhos igual as famílias dos bêbados
que procuram lamparinas. Eu ignorei Penzance. Deixei-os desprotegidos. E
me culpo profundamente por isso. O que meus pais pensariam de mim?
Foram eles que induziram-me a defender a cidade, porque a monarquia era,
e ainda é, um problema. Eles me criaram para isso. Moldaram-me desde
pequena para ser uma guerreira. E não qualquer guerreira, uma guerreira
trajada na fantasia de uma serva. Uma mentira tão linda. Uma promessa tão
desleal.
Fui criada para ser a própria personificação de traição. E o que foi
que eu fiz? Abandonei os meus conceitos e fugi. Escondi-me atrás de um
casamento com um homem que não amava. Enganei a mim mesma.
Agarrei-me em Edward e o usei para fugir dos meus problemas. Minha
segunda camada o ama, mas ela é ilegítima. Então todas as dores, todas as
lágrimas que saíram dos meus olhos, todos os pensamentos suicidas, todas
as emoções que eu sofri nesses últimos dez anos foram uma grande e
irritante fachada ilusória. Fiz isso para esconder-me de mim mesma. E
agora, como eu faço para me livrar dela? Como eu faço para recuperar o
que destruí? De que maneira posso renascer?
Será que eu tenho a escolha da ressurreição?
Meus pés pisam delicadamente no chão cinzento e consistente do
ambiente. Minhas mãos oscilam ansiosamente, balançam conforme o vento
voa, na direção norte, levando alguns fios do meu cabelo. Ergo os olhos e
os ponho no ruivo amistoso ao meu lado. Meus lábios abrem, pensando no
que iria falar, propondo que deveria agradecê-lo pelo que está fazendo por
mim, mesmo depois de tudo o que aconteceu, mesmo depois de ter
simplesmente fugido e sem dar notícias. Eles se fecham rapidamente,
achando isso uma péssima ideia. Eu não quero ser chata e continuar
insistindo em um assunto que nos incomoda. Ele sabe. No fundo, Jacks
compreende-me mais do que qualquer um.
Continuo caminhando rapidamente e, pelo que me lembro, devemos
chegar ao centro comercial do Submundo daqui a oito minutos. Ouço um
suspiro familiar do ruivo. Levanto a cabeça, analisando-o e esperando seu
questionamento decisivo.
— No que está pensando, minha linda? — questiona, com os olhos
esclarecidos e o corpo em movimento. — Estou vendo uma fumacinha
emocional escapando da sua mente. Escapar é a palavra errada, acho que
ela está fugindo desesperadamente.
Nem ela aguenta mais os meus pensamentos. Sorrio, fascinada com
a sua habilidade de fazer piadas com coisas esgotantes. Me fazer rir com
elas. Jacks está com a mão para trás, os olhos castanhos ensolarados
vidrados em mim, esperando calmamente uma resposta.
— Estou pensando sobre a minha vida — respondo, com uma voz
cansada e monótona. Um suspiro deixa o meu corpo entorpecido.
— Deveria estar pensando em como resolver os problemas dela —
refuta-me corretamente. Como sempre. Seus olhos castanhos observando-
me andar.
— Aceito as suas ideias como sugestão — digo, forçando um
sorriso. Minha boca se transforma em uma linha reta e dura. Estou
aceitando qualquer tipo de ajuda.
— Isso é um problema que você tem que resolver, Morgana. Não
pode passar essa tarefa para mim. Você tem que parar de correr de si
mesma. Além do mais, não foi essa tentativa de aceitar qualquer tipo de
ajuda que a colocou nessa situação? — Desvio o rosto, desfazendo a linha
dura e massageando minha pele.
— Esse é o maior dos meus problemas: o fato de tudo depender de
mim — respondo, mesmo ciente de que o que está fazendo não é bem uma
pergunta, mas sim uma acusação.
— Resolva-o, Morgana. — Isso não é um conselho, é uma ordem.
Por alguns rápidos segundos, posso vislumbrar a imagem embaçada dos
meus pais encarando-me atentamente, ambos cientes da imundice que estou
cometendo. Eles eram rígidos, sempre foram pessoas autoritárias e sérias,
mas não a ponto de serem tóxicos, e, sim, eficientes. Sabiam demonstrar
afeto quando era necessário. E eu não os julgava por isso. Aliás, sou filha
do ex-capitão da Marinha Britânica e da maior contrabandista da época.
Sou fruto do amor proibido, literalmente.
— Estou tentando, Jacks — refuto, aumentando a velocidade dos
passos.
— O que está fazendo para tentar, Villain? — questiona-me. E eu
não sei o que responder.
O que eu estou fazendo? Paro, reflito. O que eu estou fazendo?
Perco o controle da minha respiração. Na verdade, quando foi que eu o
tive? Tudo está ambíguo. Equivocado. Embaralhado e intrincado. O que eu
estou fazendo? Eu não sei o que estou fazendo. Eu realmente estou fazendo
alguma coisa? Mas que porra é essa de labirinto moderno que eu não
consigo me achar. Galáxia desfeita. Brinquedo mal-montado. Quais são as
cores? E por que eu não consigo enxergá-las? Por que para mim está tudo
em preto e branco? Eles — meus pais — realmente foram embora sem
mim?
— Estou me organizando, Jacks. Ajeitando os meus pensamentos —
respondo, de uma maneira inacreditavelmente canalizada. — Não apresse
os meus resultados.
Ele faz um estalo com a língua, assentindo com a cabeça.
Inevitavelmente, olho-o por cima do ombro, mas minha visão fixa-se na
placa informativa ao seu lado. Levanto a cabeça, lendo as palavras escritas
na madeira castanha: “Bem-vindo ao Submundo”. Bem-vindo ao
inferninho. O lugar onde sua decência se fragmenta e a sua compostura se
arruína. O lado sombrio da cidade de que tanto amo. O lugar que a minha
família governava. Inadministrável. Selvagem. Como as baleias assassinas.
Uma orca extremamente sangrenta. O lugar onde eu o matei, mas também
me afundei.
Ainda não estou morta.
Minha boca está entreaberta, respirando com dificuldade. Meu olhar
é persistente, mas também é desmotivado. Não sei o que pensar. O ruivo
encara-me irracionalmente, como se não soubesse o que falar para trazer-
me de volta à realidade.
— Eu estou bem — afirmo, antes que ele diga qualquer coisa.
— Tem certeza, querida? Podemos voltar outro dia — sugere,
pacientemente.
— Não tenho motivos para fazer isso, Jacks — admito, e ele
concorda com a cabeça, sem protestar. Viro-me para cidade, analisando a
diferença. Torcendo a boca, murmuro: — Só não esperava que o local
estivesse tão mudado.
— Passaram-se dez anos, minha linda. Tempo o suficiente para
apodrecer até os corpos que eliminamos.
— Literalmente — brinco. — Um corpo pode demorar até dez anos
para se decompor. — Suspiro, cruzando os braços. Os cantos da minha boca
curvam-se em um sorriso tentador — Será que o corpo do marquês que
matamos aquela vez já se foi?
— Provavelmente. Quer desenterrar para descobrir? — ele pergunta,
aproximando-se.
— Não, é perda de tempo. — Meu olhar é natural e a minha voz sai
dramática. Ele franze os lábios, sorrindo. — Temos milhares de outras
coisas para fazer.
— Acha que existe possibilidade da realeza voltar a nos espionar?
— interroga, mas não está sendo curioso, apenas cuidadoso.
— Espero que não. — Estudo a cidade. Existe uma grande
expectativa disso vir à tona. Mesmo que eu os tenha enganado, colocando
em suas mentes que o guardião do ouro está morto, a nova balbúrdia pode
chamá-los de volta.
— A frota de navios que está estacionando nas docas é cada vez
maior. Sei que você deu a empresa para o seu marido, mas acha que isso
tudo é dele?
— Não, a essa altura, Archiviéste já deve ter roubado a empresa. —
Isso explica o porquê de Edward diminuir suas visitas, ele provavelmente
sabe que Noeeh está aqui. Aliás, o homem ainda é um Lancellotti. Também
participou dessa disputa, mesmo que ainda no começo, porque não demorou
muito tempo até eu o despachar do conflito. A verdadeira guerra sempre foi
entre os Archiviéstes e os Villains.
— O que ele quer, Morgana? — pergunta, curioso.
— Ele quer o tesouro do navio naufragado. Lembra quando as
colônias estavam no ápice da exploração e todo o ouro estava sendo
transportado para a Europa? — Ele acena com a cabeça, afirmando que não
tinha esquecido. — Lembra também que um dos navios tinha afundado na
costa de Penzance? Então, ele quer a riqueza desse navio — respondo,
ocultando a tensão da minha voz. — E a vingança pelo o que eu fiz com a
sua família, é claro.
— Por que Noeeh está atrás de você? O ouro não deveria ser mais
importante? — questiona, frugal.
— Acho que não para ele. Eu sou o seu primeiro desejo. — Ou o
portador da beleza sombria sabe do meu segredo. Sabe que eu escondi
quem protege o ouro. — Independente disso, ele não vai conseguir nenhum
dos dois.
— E como sabe? — Arqueia a sobrancelha, ignorando as vozes da
cidade.
— Porque o guardião das riquezas está morto. E eu já estou
destruída.
— Entendi. — Ele assente com a cabeça. — Então você sabia? Na
época, quem era o guardião?
— E isso faz diferença? — Agora é a minha vez de perguntar. —
Eles já estão mortos. E ninguém sabe onde está o ouro. Nem mesmo eu.
— Eles? — Seu olhar é acusador, como se estivesse montando o
quebra-cabeça mais difícil do mundo.
— Meus pais, Jacks — respondo, esfaqueando a sua diligência. —
Eles eram os guardiões das riquezas envenenadas. E os Archiviéstes tinham
quebrado três das sete promessas. — Eles estavam fuçando onde não
deveriam, isso me levou a ter que caçá-los. — Foi por isso que inventamos
crimes falsos. Você não lembra? — “Não lembra o que fizemos para
saquear o dinheiro?” Seguro a pergunta. Isso não é algo do qual me
orgulho, muito menos do qual gosto de lembrar. Na época, a monarquia
estava de olho em Penzance, mandaram guardas e espiões para nos vigiar.
Isso começou a atrapalhar o comércio de acordos ilegais. Estava começando
a ficar difícil a entrada do dinheiro na cidade. E os Archiviéstes não
estavam colaborando. Então menti e aproximei-me de um dos espiões da
realeza, argumentando que a família Archiviéste tinha encontrado o ouro e
o roubado para si. E eu queria vingança, então fiz um acordo com o
marquês: eu lhe daria a localização do ouro, e ele deixaria Penzance em
paz.
Dei a localização de toda a riqueza que a segunda família tinha e as
tropas britânicas os saquearam. Depois de um tempo, o marquês desconfiou
do meu plano e eu o matei. Tive que o matar, ou tudo estaria acabado. O
matei e acusei os Archiviéstes, alegando que ele teria morrido em uma das
missões de planejamento. No dia seguinte, Noeeh e sua família foram
banidos do Submundo, tendo que fugir ou morrer pelas mãos da realeza e
do parlamento. Misteriosamente, quinze minutos após ter zarpado da costa,
o navio explodiu, matando todos. Ao menos eu achava que tinha matado
todos, até dias atrás, quando o meu inimigo salvou a minha segunda
camada.
Um demônio veio me assombrar.
— Eu lembro que tivemos de destruir algumas estruturas da cidade
para a monarquia tirar os olhos e achar que não havia nada aqui. — Achar
que somos invisíveis. Inúteis a ponto de não valer a pena pagar o transporte
dos soldados para deslocar-se para cá. Uma cidade fantasma. — E depois
disso, acusamos os Archiviéstes de se revoltar contra a cidade, justificando
que eles culpavam os moradores por terem sido expulsos de Penzance pela
monarquia.
Ele não sabia de tudo. Tinha-me esquecido disso. Um passado
erguido sob mentiras. Mentiras inventadas até para os meus próprios
homens.
— Acha que isso não é o suficiente para ele me odiar? — pergunto,
analisando algumas diferenças na estrutura do Submundo.
Há mais cabanas de vendas. Muito mais. Multiplicaram-se em uma
quantidade que me espanta. Incontáveis pessoas andam pelo extenso e largo
corredor, algumas correm, outras caminham lentamente. As cores dos panos
variam entre azul, verde, amarelo e vermelho. As prateleiras das cabanas
são de madeira, como todo o resto. Localizo cestas feitas de palha
penduradas em algumas cordas. Dinheiro circula fortemente, passando de
mão em mão. Placas de vendas e pessoas anunciando com a voz alta é o que
chama mais me a atenção.
— Acho que isso é o suficiente para te caçar — responde. — Se
você não fosse minha amiga, já teria te entregado.
Encaro-o, desviando do ponto comercial.
— Ainda bem que você não vai, certo?
— Se eu fosse te entregar, já teria feito isso. Você vale cinquenta mil
libras, morta. E está completamente indefesa. — Ergo a sobrancelha,
desconfiada.
— Falando nisso, preciso de uma adaga. — Penso melhor. —
Talvez três. Em qual dessas barracas pode-se comprar uma?
— Existe uma barraca localizada no meio desse corredor. Vamos, eu
te levarei até lá. — Ele contrai sua mandíbula, com os olhos menos
carismáticos. — E depois, você poderá abrir o salão.
— Não sei se estou pronta para abrir hoje, Jacks. — Está quase
amanhecendo e faz mais de três dias que eu não durmo direito.
— Está arrumando uma desculpa para enrolar, Morgana? —
pergunta, com a voz estranhamente sarcástica.
— Não, estou tentando calcular meus próximos movimentos. Eu não
sei se você lembra, mas estou correndo o risco de ser morta. Metade dessas
pessoas está me procurando.
— Villain, eles nem devem saber mais como é o seu rosto —
argumenta, e muito bem, por sinal. No entanto, ainda sinto que estou
tornando isso mais perigoso do que já é.
— Ok, você venceu — sussurro. — Depois que eu comprar as
minhas adagas, vou levá-lo até o salão.
Ele abre um sorriso, contente.
— Perfeito.
Começamos a caminhar. Consigo andar sem esbarrar em ninguém.
Desvio de algumas pessoas apressadas e também de crianças atentas. Sendo
sincera, elas que desviam-se de mim. Observo todos que estão ao meu redor
e, por incrível que pareça, ninguém me observa. Não sei o porquê sinto
olhos me vigiando. Não tem absolutamente ninguém me olhando. Eles estão
concentrados em suas compras, analisando os utensílios e os produtos
comestíveis. Alguns compram roupas, outros, temperos, outros compram
armas e objetos duvidosos. Respiro fundo, desviando a minha atenção para
o ruivo. E como eu, ele estuda cada ser que passa ao seu lado. Seus olhos
castanhos flagram cada movimento, desconfiado.
— Por que está agindo assim? — questiono.
— Não confie nas crianças que esbarram em você. Todos aqui são
ladrões. — Sorrio, fascinada com a perspicácia do garoto.
— São crianças — defendo-as, ainda com o sorriso.
— São ladras — acusa, sem a menor preocupação em ser escutado.
— São coisinhas sujas e corruptas.
— Você também é um — refuto, aproximando-me do seu corpo. Ele
repreende-me com o olhar. — Ao menos, era.
— Ainda sou — afirma com convicção.
— Bom, elas não tem nada para roubar de mim. Eu literalmente só
estou vestida com o seu casaco. O vestido debaixo é uma camisola
transparente. Você tem dinheiro? — pergunto, com calma. Ele assente com
a cabeça.
— Ótimo, vou comprar algumas roupas e depois te pago — digo,
virando o rosto. Lembro-me de que a minha casa foi queimada e que meu
marido correu para a capital com a amante. — Vai ter que ser aos poucos, já
que eu não tenho para onde ir.
— O que aconteceu?
— Minha casa foi incendiada por Archiviéste — informo-o e, por
incrível que pareça, não dói. Eu não sinto simplesmente nada. — E o
Edward viajou para a capital com a sua amante.
Ele arregala os olhos, confuso e muito surpreso. Instantaneamente,
seus planetas encharcam-se de pena, como todos os funcionários que
trabalham para o meu marido. Seguro a vontade de revirar os olhos. Seguro
a vontade de revirar os olhos. Eu estou segurando a vontade de revirar os
olhos. Céus! Não tenho vontade de chorar, ou de querer correr. Sinto apenas
uma raiva escaldante correr pelos meus rios.
— Ele tinha uma amante? — pergunta, trincando o maxilar.
— Ele tem uma amante — respondo, colocando ênfase no verbo ter.
Ele ainda a tem. Ainda está com ela. E sinceramente, sinto pena de
Katharine. Ela acha que ele a ama. Que ele a deseja e que esse desejo nunca
vai passar. Edward está apenas brincando com ela. Uma pena que demorei
para reconhecer que fez o mesmo comigo, não que eu tenha sido totalmente
sincera. — E eles estão em lua de mel.
— Não deveria brincar com isso. — Seus olhos piscam,
atormentados. — Deve ter sido um trauma para você.
E foi, não é porque os sentimentos são teoricamente falsos que não
doeu. Eu vivi a vida da minha segunda camada, eu senti cada dor que ela
teve que suportar. Cada angústia que devorou a sua mente. Cada agulha que
ficou na sua pele. Eu senti tudo, eu convivi com tudo. Deve ser por isso que
é tão difícil abandoná-la ou destruí-la. Eu fiz dela uma parte de mim.
— Foram os piores dez anos da minha vida. — Dez anos de maus-
tratos e tortura. — Principalmente nos últimos seis, em que brigávamos pela
minha infertilidade.
A culpa por não conseguir gerar uma criança. Corrijo-me. A culpa
por não conseguir agradar a única pessoa da minha vida que estava viva. É
isso que congela a minha pele. É isso que grita no meu ouvido.
— Que babaca! — xinga, inconformado com a atitude do moreno.
— Como se você tivesse culpa. Ele é um escroto, Morgana.
— Eu sei, é uma pena que fechei os olhos para isso. — E por qual
motivo? O que eu ganhei com isso?
— Espero que não cometa o mesmo erro — diz, parando de
caminhar. — Pessoas precisam falhar para se reerguer. Se isso te ajudar, eu
tentei namorar uma menina por três anos. Consequentemente, foram três
anos recebendo foras.
Minha boca curva-se em um sorriso envergonhado, segurando a
gargalhada que está presa na minha garganta.
— Minha linda, não quero que esconda esse sorrisinho de mim. —
Abro mais a boca, mostrando os dentes. Ele nega com a cabeça, fingindo
estar ofendido. — Estou me sentindo severamente humilhado.
— Não se sinta — conforto-o, apoiando a palma da mão em seus
ombros. — Eu que fui trocada por uma garota mais jovem e mais bonita.
Nem eu acredito nisso.
Minha pele grita, avisando-me do perigo. Meus sentidos se dilatam,
como um relógio voltando a funcionar. Tic tac. Com força, empurro Jacks
para trás e viro-me rapidamente. Mesmo com o barulho de milhares de
passos rápidos ecoados pelo chão, ouço o som do seu corpo alto chocando-
se nos paralelepípedos cinzas. Também ouço o barulho da faca sendo
arremessada contra a parede. O objeto cortante e agudo que iria acertá-lo, se
eu não tomasse uma atitude rápida. Ofegante pelo giro rápido, levanto a
cabeça. As pessoas estão correndo para todos os lados, atormentadas. Sem
saber de quem veio o ataque. Engulo em seco, correndo para perto da
primeira barraca de armas, com a tenda verde por cima. Pego os cinco
primeiros utensílios de defesa que vejo: três adagas e duas espadas.
Reduzo a distância que há entre o meu corpo e o de Jacks. Jogo as
duas espadas para ele, e coloco uma das três adagas no casaco que está em
meu corpo. O ruivo levanta-se, resmungando de dor. É perceptível o seu
cansaço e olho para ele, eufórica com toda essa confusão.
— Acha que consegue lutar? — Se não conseguir, vou protegê-lo.
Não posso perder mais ninguém.
— Estou com algumas dores na coluna, mas nada que me imobilize
— ele diz. Respiro fundo. As pessoas ainda estão correndo. Afastando-se
do lugar.
Vasculho algum suspeito entre os cidadãos, mas não há nada. Não
há ninguém. Nenhum sinal da criança sangrenta que gosta de caçar, ou de
alguns dos seus homens. Viro-me para trás, encontrando uma viela estreita
com jarros de barro pintados com listras azuis e vermelhas. Também há
alguns tapetes de veludo marrom, cinza e branco, em sua maioria grandes e
pesados. O lugar perfeito para se esconder até toda a balbúrdia passar.
— Vamos até o beco — ordeno, aproximando-me rapidamente.
Jacks concorda, virando de costas e correndo para o lugar. Corro atrás dele,
escondendo-me atrás de um dos tapetes.
— Você se cortou — afirmo, após meus olhos caírem em seu
ferimento. Não há muito sangue, pois é um corte leve e superficial.
— Nada muito grave. — Sua voz sai gélida e sua boca se fecha em
um suspiro. Seus planetas estão modestos, mas rapidamente, ficam
impulsivos. — Abaixe-se!
Meu corpo segue sua ordem direta. Meus joelhos quase tombam no
chão, mas forço minha perna a ficar esticada com intuito de me levantar em
outra direção, longe do lugar que estava. Ergo o corpo, atento-me aos cinco
indivíduos armados que estão à minha frente. Suas mandíbulas estão
trincadas, as armas apontadas para mim, e seus olhos estão precipitados e
sarcásticos. Me viam como uma presa que já tinha sido pega. Um deles
estende a lâmina prata na minha direção, iniciando uma guerra. Inclino a
cabeça, formando um sorriso falso no rosto.
— Ao todo, são cinco. — Minha felicidade escorrega e se desmonta.
Olho na direção de Jacks, com a determinação traçada na íris escura e
abominável. — Três para mim e dois para você.
Um sorriso cresce nos seus lábios e ele pisca. Seus ombros tremem e
o ruivo levanta a espada, na minha direção.
— Dois para cada um. — Seu tom é arisco, juntamente com o seu
olhar. — Quem se sair melhor, fica com o último. Você está muito
espertinha, minha linda. Não pode chegar e achar que vai ficar com a maior
diversão. Não acha que anda muito parada para isso?
Ele acabou de me chamar de sedentária? É isso mesmo? Minha boca
forma um perfeito “O”, meus olhos se estreitam e inclino a cabeça,
claramente ofendida. Minha habilidade de luta é a única coisa que não
deixo ser esquecida. Posso ter perdido tudo, mas ela ainda está aqui.
Sempre a mantive viva. Lembro-me que depois das brigas que eu tinha com
Edward, ia treinar no quarto ou no jardim com as frutas vermelhas. Meu
ritmo de treinamento pode ter decaído, mas nunca se extinguiu. Odiava o
fato de pensar em ficar indefesa. Então não, não estou parada.
— Duvide das minhas palavras, Jacks, mas nunca duvide da minha
habilidade com uma adaga. — Minha voz sai imperativa. Resistente. Não
me dei conta de que sairia desse jeito. Dou-lhe um olhar tentador. —
Veremos quem se sairá melhor, faísca flamejante.
Ele sorri, partindo para cima dos dois homens que se aproximam.
Com cautela, observo os meus. Eles encaram-me como maníacos. Seus
rostos exalam desafio e o seu cheiro é desagradável. Todos os três fedem a
peixe morto, quase na última fase de decomposição. Escuto o aço das
espadas chocando-se umas com as outras por conta da luta ao meu lado.
Excluo esse som insuportável e alto da minha mente cansada,
concentrando-me no homem loiro e velho ao meu lado. Atiro a adaga na
direção oposta, contra os olhos do ser humano de fios castanhos e lisos, que
estava tentando me pegar desprevenida.
Ele grita, sua voz aguda e afiada arranha os meus ouvidos. Reviro os
olhos e pego a adaga que está no casaco, correndo rumo ao loiro. Minha
lâmina pressiona violentamente a sua, causando ruídos. Nossas forças são
desiguais, ele é mais forte do que eu pensei. Coloco um dos meus pés para
trás, dando apoio para o meu corpo enfrentá-lo. Os primeiros raios de sol
estão iluminando o meu cabelo. Firmo o meu pé direito no chão e levanto o
esquerdo na altura do que existe entre suas pernas. Ele grunhe de dor e,
antes que o peso do seu corpo caia sobre o meu, saio de perto da sua
estrutura. O homem cai no chão, batendo a cabeça fortemente. Não acho
que levantará tão cedo. Olho para o outro monstro, que também tem o dom
de ter fios amarelos. É lindo como ouro, mas, literalmente, sua única beleza.
O garoto está indignado pelo que aconteceu com o amigo, seus
olhos encaram-me com uma fúria robusta. Teria medo se já não tivesse
lidado com coisa pior. O velho que foi atingido com a faca nos olhos está
chorando de dor e tentando estancar o sangue, colocando a mão por cima do
rosto. Ele berra, com o corpo estendido no chão.
— Você vai pagar por isso, vadia! — o loiro grita, furioso.
— Vou? — brinco, formando um sorriso sarcástico. — E quem vai
me fazer pagar? Você?
Pessoas estressadas sempre se tornam alvos fáceis. Eles se
concentram tanto em atacar que esquecem de defender, descem a guarda no
momento errado e nunca, nunca sabem o que foi que lhes atingiu. Ele corre
até mim, mas, antes que chegue perto, a ponta afiada de prata acerta a sua
perna. O homem cai de joelhos com a ardência do corte da faca. Sua mão
áspera cobre o ferimento, e, antes que ele possa levantar o rosto para olhar-
me, eu o acerto com um chute de calcanhar. E logo em seguida, deposito
outro no peitoral, derrubando-o.
— Acabei, faisquinha — Gabo-me, firmando o olhar em seus olhos
decorados por tinta clara.
Ele sorri com sutileza, sendo criterioso. Olho em volta, percebendo
a sujeira que fizemos nos tapetes de veludos e nos casacos pintados. Meu
Deus! Eu mataria alguém se fosse dona desses artefatos, a maioria está
manchada de sangue e fedendo.
— Eu acabei primeiro, minha linda — refuta, guardando a espada
no cinto. — Dez segundos antes.
— Eu derrubei os três homens. — Faço um estalo com a língua,
respirando fundo.
— Você venceu, querida. Mas o que vamos fazer com eles? —
pergunta. — Vamos deixá-los aqui?
— Podemos chamar ajuda e pedir alguém para socorrê-los —
proponho, fechando a boca. — Ninguém merece ficar assim.
Ele concorda e continua andando, sigo-o saindo da viela
ensanguentada. Arregalo os olhos quando encontro a imagem implacável
passando em minha mente. Todos estão a mais de três metros dos corpos
jogados agressivamente no chão. Estão três metros longe do homem
desumano que é responsável por matá-los. Seus fios brancos estão pairando
sobre os olhos violetas profanos e negativos. Ele respira lentamente,
enquanto sua mão enluvada em tecido preto está segurando a nuca de um
homem quase morto, que ainda é obrigado a ficar de joelhos perante ele.
Um sorriso demoníaco está brincando em seus lábios, enquanto seus olhos
queimam a cicatriz da vítima. Do resultado da caça. Um dos seus pés está
pressionando a panturrilha esquerda do garoto contra o paralelepípedo. A
caça está virada em direção à viela e o maníaco está ao seu lado.
Ele está olhando para mim, sua dor escorrendo em meus olhos. E
ela é terrível, amaldiçoada. Inabalável. Perco o ar quando o platinado
inclina a coluna, sussurrando algo imperceptível no ouvido do garoto que
me encara. Ele assente com a cabeça, desesperadamente. E então é liberado
das suas mãos e afastado do seu corpo. Archiviéste observa-me. Ele está
vestido com roupas diferentes, mas seguindo o mesmo estilo requintado e
neutro. Ele está todo de preto, com uma calça de couro escura, cintos
envolvidos na perna e botas da mesma cor. Sua blusa é feita de um pano
que desconheço, pois está colada ao corpo, moldando-o como se fosse um
corset masculino. Mordo a língua inconscientemente, advertindo-me por ter
achado isso extremamente atraente. Passam-se alguns segundos até eu
perceber que ele não está olhando para mim, e sim para o ruivo que está
atrás.
— A partir de hoje — o platinado diz em alto e bom tom para todos
aqui ouvirem. —, quem ficar a menos de cinco metros perto de Morgana
Villain será considerado inimigo da família Archiviéste. — Os seus homens
encaram uns aos outros, não entendendo sua atitude, mas nenhum tem
coragem de questionar. Noeeh sorri, mostrando os caninos afiados e
caminhando em nossa direção. — Considerem isso a nova lei do
Submundo. — Suas mãos estão escondidas pelo corpo, por conta da
inclinação do braço. Seu cheiro único exala pelos meus pulmões. Não
consigo identificar o que é, nem encontrar semelhança com qualquer coisa.
Só sei que é presente, forte e levemente adocicado. — E vocês sabem muito
bem o que fazemos com quem descumpre as regras.
Enquanto o homem se move, é impossível não lembrar das imagens
dele perseguindo-me na minha própria casa. Minhas pernas querem
cambalear, mostrar fraqueza. Impeço-as de fazerem isso e,
automaticamente, ajusto o corpo.
— Raposinha — cumprimenta-me, com o tom de voz baixo e
cínico. Levanto a cabeça, de perto ele parece muito mais alto. Se fosse para
chutar, acho que seria um metro e noventa e dois centímetros. Não sou
baixa, tenho um metro e setenta e oito, mas esse cara é maior.
Incomparavelmente. — O que te faz pensar que pode estar aqui, garotinha?
Não ficou sabendo dos rumores sobre sua cabeça?
— Não sabia que você controlava o meu direito de ir e vir. Na
próxima vez, penso em te mandar uma cartinha pedindo permissão —
respondo, trincando os dentes. — É, eu fiquei sabendo que um desocupado
está pedindo a minha cabeça, mas a ameaça soou tão vazia que não dei
importância.
Noeeh abaixou o rosto na minha altura. Perto demais, longe demais.
Não sei o que decidir, mas é totalmente invasivo. Sua cor violeta está
concentrada nos meus traços, captando a imagem do meu rosto. Meus
lábios estão entreabertos. E o seu foco está direcionado a eles. Ele fechou a
boca, afastando-se para que eu pudesse voltar a respirar. Sem desviar o
rosto de mim, seus olhos oscilam para o ruivo.
— Eu realmente não achei que você fosse capaz de trazê-la até aqui.
Subestimei você, Jacks — declara, dando três passos para trás. O platinado
bate palmas como se estivesse celebrando um aniversário. Archiviéste tem
um sorriso lindo e aberto estampado no seu rosto. — Achei que desistiria
nos primeiros segundos que olhasse para ela.
Arregalo os olhos. Mas de que porra ele está falando? Oscilo o rosto
para a direita, negando com a cabeça. Não! Isso não é real! Ele não pode ter
me traído. Encontro a sua expressão imparcial e desequilibrada. Jacks
realmente fez isso? Ele me trocou? Cambaleio para trás, segurando a
vontade de chorar. Mordo as bochechas com força o suficiente para sentir o
gosto ruim e enferrujado de sangue.
— Não — repito. Analiso o ruivo, estudando a sua expressão
coagida. —, você não pode ter feito isso.
— Desculpa, Morgana — ele pede, com a voz vacilante e dolorosa.
— Eu realmente preciso do dinheiro.
Ouço o platinado sorrir, tremendo os ombros. Há satisfação em me
ver sofrer. Prazer em me ver transcender. Seu olhar é impiedoso e
prepotente. Ele assente com a cabeça, devagar. A raiva cega os meus olhos.
A claridade do sol simplesmente desaparece em um culto de ação. A dor
atrapalha meus sentidos. Não estou raciocinando direito. Minha mente está
arranhada. Está sendo arranhada pelas unhas dele. E antes que Archiviéste
tenha a oportunidade de falar qualquer coisa, meu corpo está atacando
Jacks.
Fecho os punhos, mirando um soco no seu olho. Ele desvia-se do
meu golpe, sem revidar. Nunca me senti tão enganada. Nem mesmo quando
descobri as amantes do meu marido. Ele mentiu para mim. Se aproveitou da
minha vulnerabilidade para usar-me e dar-me de brinde para o meu maior
inimigo. Posso tê-lo abandonado, mas nunca lhe fiz mal algum. Nunca o
coloquei em situação de risco. Não em uma em que eu não pudesse protegê-
lo. Tento acertar um chute no seu rosto, mas erro e acerto um dos jarros. Ele
estilhaça-se pela força aplicada no golpe. Meus pés se arranham com o
impacto, machucando a minha carne. E eu simplesmente ignoro a dor, pois
nada se compara à indignação que estou sentindo. Dou uma volta completa,
tentando acertar o meu calcanhar no seu rosto. Se eu acertasse seu osso
malar, faria um belo estrago nesse rostinho bonito. Não acertei. Tento outro.
Não vou parar até acertar. Até presenciar seu rosto sangrando.
— Archiviéste — o ruivo grita, ofegante e cambaleando para trás.
—, pare-a ou ela vai acabar se machucando.
— Acho melhor você cuidar de si mesmo — rebato, pegando as
adagas. — Sua situação está pior que a minha.
— Morgana, minha linda — ele diz.
— Não ouse me chamar assim! — grito, alto o suficiente para todos
ouvirem. — Você me traiu, e apelidos não são para traidores.
Eu iria avançar. Iria atacar. Iria me defender. Mas meu corpo foi
puxado por trás do pescoço antes que eu pudesse respirar, e jogado contra a
parede. Sinto a dor de ser chocada contra as pedras, os ossos do meu rosto
estão doloridos e tenho certeza que a minha pele está avermelhada. Minhas
facas caem no chão. Meus dois antebraços são segurados por uma mão, por
apenas uma mão. Eles são apoiados nas minhas costas, meu peitoral é
encostado na parede, sua outra mão segura o meu rosto, pressionando-o
ainda mais contra o material. Com os joelhos, Noeeh empurra minhas
pernas, forçando-as a abrir-se mais. Deixando-me completamente
vulnerável. Tento revidar, colocando força na movimentação dos braços
para soltar-me das suas garras, mas não funciona. Ouço a sua risada abafada
pelo vento. Estou tão cega de ódio que ainda não enxergo os raios solares.
Archiviéste aproxima o seu rosto perto do meu ouvido e sussurra:
— Quietinha, Morgana. — Seu hálito está diferente, sinto o cheiro
fresco de vinho. Céus! Esse homem está bêbado. — Ou vou ter que forçá-la
a ficar parada de um jeito que você não vai gostar.
— Sai de perto de mim! — ordeno, e não sei o porquê das minhas
bochechas estarem vermelhas. — Cretino! Afaste-se, agora!
— Como quiser. — Ele ri, soltando-me e jogando-me no chão. Não
deixo a dor me abalar. Vejo minhas adagas perto dos seus pés. — Não se
levante, Villain, a não ser que queira que eu te derrube novamente.
Trinco o maxilar, sentando-me por cima dos meus joelhos. Noeeh
oscila os olhos para o ruivo, ordenando-o que fique de joelhos, ao meu
lado. E lá estava aquele lado imperativo e dominador, exalando novamente.
Ouço os joelhos de Jacks baterem no chão, e, instantaneamente, olho para
seus olhos dissimulados.
— Eu vou te matar — ameaço, ainda de joelhos.
— Se sairmos vivos daqui — ele retruca.
É burrice lutar contra o platinado nesse estado, estou sem armas e
ele tem o dobro da minha força. E mesmo que eu seja mais rápida, não vou
conseguir lutar contra todos os seus homens, que até agora observam a
situação atentamente. Esperando o sinal para interferir. Uma culpa cai sobre
os meus ombros quando vejo os corpos mortos. Pergunto-me o que levou o
garoto a matar todos eles, há por volta de cento e quarenta e nove
esqueletos espalhados pelo corredor.
— Por que matou todas essas pessoas? — questiono, sem olhar para
os seus planetas roxos. Não vou dar a ele a satisfação de ver-me
apreendida.
— Elas ameaçaram tocar no que me pertence — responde, pegando
meu rosto firmemente entre seus dedos e o erguendo para cima. Forçando-
me a olhá-lo nos olhos. Sinto o tecido das luvas pretas nas minhas
bochechas, aquecendo-as. — Todas as vezes que for se referir a mim, fale
olhando para o meu rosto. Não gosto de pessoas covardes, minha raposinha.
Então sempre olhe para mim. — Respiro. — Abaixar a cabeça neste
momento só vai me mostrar o quanto você é minha submissa.
Temendo irritá-lo, fecho os olhos. Escuto a sua risada rouca se
infiltrar nos meus ouvidos. Segundos depois, sinto a sua respiração ficar
mais perto. Seu rosto está se aproximando do meu. Minhas bochechas estão
esquentando com o meu corpo. Digo para mim mesma que é por causa do
sol. É por causa dos raios solares. Eles são quentes. E estão incendiando
minha pele. Malditos raios de estrela. Minha respiração está encharcada de
tensão, e ela não é supérflua. Fico absurdamente surpresa quando sinto as
pontas dos seus dentes arranhando a pele do meu pescoço.
Céus! Seus dentes traçam um caminho da minha clavícula até a
parte de trás da minha orelha, lentamente. Como se o tempo estivesse dando
pausas para que eu sinta a sensação de novo e de novo. Para que depois eu
pudesse torturar-me por querê-la. Estou sentindo aquilo que tanto desejei.
Esse homem está realmente muito alterado. Mordo os lábios e abro os
olhos, empurrando-o para longe. Falhei ao tentar. Recuso-me aceitar que me
submeti a isso. Duas traições hoje: Jacks e o meu corpo. Duas coisas em
que eu não posso confiar. Recuso-me — novamente — acreditar que o
quero de novo.
— Agora sim, estamos entendidos — ele diz, inexpressivo, mas
compreendo que ele entende, por isso esse sorriso intocável está em seu
rosto.
— Eu te odeio. — Minha voz vacila, mas não perco o olhar de fúria.
— Morgana, Morgana... Eu sei que você me odeia — Noeeh afirma
mais para si mesmo, afastando-se de mim e colocando as mãos para trás. —
O único problema é que eu não consigo entender por quê. Foi você quem
destruiu a minha família. — Respiro fundo, muito fundo. — É por isso que
você me odeia, Villain? Por ter sobrevivido ao ataque? Por ter se tornado
um problema que você não pode resolver?
Não respondo, e o silêncio perturbador avança com os raios solares,
queimando a minha pele. Como minha boca está fechada em uma linha
dura, ele nega com a cabeça, indignado. E volta a atacar com suas palavras
adormecidas. Sinto que isso está há muito tempo preso em sua garganta.
— Você não tem motivos para me odiar, minha raposinha, mas eu
tenho, e é por isso que você me odeia. Porque eu te lembro que você é a vilã
da sua própria história. — Perco o ar. Prendendo a respiração, eu desfaleço
no meu corpo.
Será que ele tem razão? Eu tenho motivos para odiá-lo? Ele
queimou minha casa e me perseguiu! Mas fez isso por vingança. Fez porque
me quer morta. Será que não tenho motivos o suficiente para rebater? Eu
deveria deixar ele me atacar sem me defender?
— Mas eu não quero, não quero ser como aqueles que todos temem.
— Suspiro, inclinando a cabeça. Penso em levantar-me, mas isso só pioraria
a situação.
— Deveria ter pensado isso quando decidiu se tornar uma assassina.
Estreito os olhos. Não, ele não irá me jogar contra mim mesma. Não
quando eu sei de toda a história. Os Archiviéstes foram avisados antes de
serem atacados, eles foram avisados para se afastar do ouro. Fui a
responsável por algumas mortes, no entanto a família dele não se encaixa
nisso.
— Olhe a sua volta, você matou todos aqueles homens. Quer mesmo
falar de assassinato? — pergunto, rígida. — Você não tem propriedade para
isso, Noeeh.
— Eu me tornei um assassino pelas circunstâncias da vida, Villain.
Tive que fazer isso para sobreviver nesses últimos dez anos. Você nasceu
para ser uma — argumenta, com os olhos entorpecidos. — Nossas
situações são completamente diferentes.
Nego com a cabeça, desacreditada. Desacreditada porque ele está
certo. Lembro-me de Archiviéste quando ele era pequeno, a criança
implicante, tola e inocente. Que vagava pela floresta sozinho à procura de
duendes. Ele era uma das crianças mais criativas que conversei. Gostava de
contar histórias, principalmente as que envolviam o oceano. Ele era uma
criança pura, mas, como sempre, a violência do Submundo o tomou para si.
Se tornando mais um número nas estatísticas. Pego-me querendo saber o
que ele fez para sobreviver nesses últimos anos.
— E você — disse, apontando a adaga prateada para Jacks. Seus
olhos tremem de raiva, seus cílios agitam-se conforme o vento passa. —
Odeio assassinos gananciosos, mas não existe nada que eu odeie mais que
traidores. Esse é o pior tipo de pessoa, e é por isso que não ganhará a
recompensa. Não suporto traidores.
Por fim, ele deposita um corte profundo na barriga de Jacks. Abaixo
da costela. Levanto-me apressadamente para segurar o ruivo. Meus ouvidos
não captam os seus gritos. Meu coração está disparado. Eu o odeio, mas não
quero que ele morra. E eu sei o porquê. Não posso deixá-lo partir dessa
forma crua. Não posso perdê-lo igual perdi os meus pais. Minha mão pousa
sobre o seu ferimento profundo e me xingo mentalmente, tentando
encontrar uma solução rápida que possa me beneficiar.
— Sabe o motivo de eu o escolher para ir atrás de você? —
Archiviéste não me dá chances de responder. Apenas continua com o tom
tenebroso e desprevenido, dizendo: — Porque ele é o único do grupo de
homens da família Villain que sobreviveu. Ele é o único que está vivo,
Morgana. Eu sabia que você procuraria ajuda. Agora, olha, estamos na
mesma posição. Você está na mesma situação que eu dez anos atrás. A
única pessoa que você poderia contar, te traiu. E ela está prestes a morrer.
— Eu vou te matar, Noeeh Archiviéste. — Isso é uma promessa, e
ela não está sentenciada a se quebrar.
— Você vai tentar, Morgana Villain. — Seu sorriso é tão tentador
que criaria mais três fossas oceânicas na extensão do seu domínio. O mar
irá se abrir e curvar-se para ele, tudo por submissão ao anjo caído que o
criou. — Estou extremamente ansioso para isso.
E pela primeira vez, juro algo que não estaria disposta a desistir.
Fiz uma promessa que não está sentenciada a ser quebrada. Depois de
todos esses anos, eu fiz uma escolha.
Eu decidi incendiar a peça e estraçalhar o brinquedo.
CAPÍTULO IX
Dez anos atrás
Atualmente.
Ela me fez quebrar a promessa. Tudo, tudo o que eu recitei
repetidamente, soando e martelando no meu raciocínio. “Não, não posso”.
“Não, não devo”. Tudo isso foi estilhaçado. Infringido. Fui domesticado
pelo poder e entregue à prepotência. Como um banquete. Deixei meu
coração ser manchado pelas sujeiras das águas. Deixei o mar me naufragar.
Como eu queria voltar a viver à deriva. Mas eu me estraguei. Rastejei pela
imoralidade e não cumpri com minha palavra. Tudo por causa dela. Por
causa da mulher que estou observando há três horas e quinze minutos, com
silêncio e cautela.
Paciência e atenção. Morgana Villain. A raposa que entrou no meu
galinheiro e ensanguentou as paredes. O animal delicado e harmonioso que
tem sede de sangue, uma besta raivosa que estou aprendendo a controlar. A
deusa do santuário que estou louco para atear fogo. Raiva.
No mesmo dia, quando seu treinamento acabou, eu a acompanhei de
longe até em casa. Andava por cima dos telhados, delicadamente, sem que
ela prestasse atenção em mim. Meus passos eram leves como os de um gato
com as unhas cortadas. Meu coração acelerava a cada olhar torto que ela
lançava ao céu. Minha raposinha era esperta, mas tinha que melhorar suas
habilidades de caça. Pensei, no momento em que a vi andando para a rua
que ficava à sua direita. Ela era extremamente perigosa. Pulei por cima de
outro telhado, dando uma pequena cambalhota antes de levantar
sorrateiramente, pressionei minhas pernas para levantar meu tronco, ergui
os meus ombros e controlei a minha respiração. Então eu a vi.
Estava distraída com as sementes de frutas vermelhas que a velha
cabana do Submundo vendia. Meu nariz ainda implorava por seu cheiro,
ignorando o das frutas, presos em cápsulas naturais. Meus olhos detectaram
uma sombra furtiva atrás dela, se aproximando rapidamente. Obrigo o meu
coração a ficar consciente. Seja lá quem for, não vai machucá-la. Não vou
permitir que isso aconteça. Não vou permitir que aconteça com ela o que
aconteceu com a minha mãe. E então pego o utensílio afiado preso no cinto
que envolve a minha coxa. Movo-o com delicadeza, entrelaçando o cabo de
madeira em meus dedos longos. Ando até a borda do terraço, sentindo o
vento balançar meus cabelos. E com os olhos semicerrados, eu miro.
Atiro.
Acerto.
A lâmina atravessou seu pescoço. Eu atirei para matar. E quebrei a
minha promessa. Só depois que o corpo robusto com roupas pretas cai no
chão e as nuvens se afastam da lua, que consigo identificar quem é o
indivíduo. Sua barba grande e peluda fica aparente ao extremo, seus olhos
castanhos se iluminam com o luar. Sua testa alta, seu corpo exageradamente
musculoso está imprensado no chão de pedra da cidade. Nicolau
Archiviéste está morto. Totalmente entregue ao inferno.
E fui eu que o levei para lá.
Eu matei meu primo, arranquei um galho da árvore da minha
família. E culpo-me até hoje por não me arrepender disso.
Além do mais, de certa forma, fui responsável pela morte de todos
naquele navio no momento em que me deixei ser guiado por ela.
Pisco, perplexo com a minha rigidez. Sinto seus olhos flamejantes
me queimando com a intensidade de que o sol queima a minha pele. Seus
cílios estão tremendo de raiva. Morgana está me encarando, está na casa do
seu amigo ruivo, em pé sobre o piso de madeira castanha e velha. Seus
punhos estão fechados, cravando fortemente a sua unha sobre a pele macia
e agradável de tocar. Seus olhos estão em brasas, mas os meus já viraram
cinzas. Ela trinca o maxilar enquanto eu desencosto da parede de pedras que
forma o rascunho da chaminé quente da casa vizinha. Mando uma ordem
para o cérebro e começo a caminhar sobre o telhado azul — cujo material
eu não sei qual é —, ainda encarando-a.
E olhando-a daqui, para Villain, neste momento, lembro-me
perfeitamente do que me disse: “Sou a personificação da traição. Feita de
promessas sentenciadas a serem quebradas”.
Ela só não me avisou que faria questão de quebrar as minhas
também.
O atrito em nossos olhos é interrompido quando o vento bate forte
na copa das árvores, enviando uma corrente de folhas amarelas para nos
atrapalhar. E então, sumo da sua vista.
Em 1830 — ano em que tudo isso começou —, eu só tinha visto
Villain duas vezes na minha vida. Na primeira, eu tinha certeza que tinha
me apaixonado por ela, e na segunda, eu finalmente tive certeza do que
Morgana realmente era.
Uma assassina.
Eu quebrei meu coração e o elo de pureza que eu tinha com minha
mãe, o mesmo elo que nunca mais foi restabelecido.
Meu sangue ainda pulsa, meu órgão ainda bate. E aqui estou,
completamente morto.
CAPÍTULO X
Chega a ser engraçado o modo como a mistura de sentimentos reage
quando você não sabe controlá-los. É como uma mistura tóxica de
substâncias que não podem ser misturadas, resultando num gás surreal e
letal, que por coincidência, matou seus próprios criadores. Agora me diz, é
culpa da toxina ou do pequeno vacilo dos pesquisadores medíocres? Quem
devemos culpar? Em um acidente, temos culpados? Se a resposta está tão
clara na sua cabeça a ponto de você não parar, pensar e refletir, troque os
bonecos que você usou para criar esse cenário de dor, ruína e perda.
Coloque duas pessoas com quem você se importa, de preferência as duas
que significam mais para você. Se fossem elas dentro daquele maldito
laboratório? Não iria querer culpar alguém ou algo? Não iria querer
descontar o sofrimento devastador da perda em alguma teoria? Aguentaria
viver sabendo que eles morreram por uma irresponsabilidade alheia? Ou
tudo viraria uma balbúrdia na sua mente e no seu pequeno coração? Alguns
correm para perdoar, tentando anestesiar o estrago doente que causa a
confusão, mas quem você tem que perdoar?
A solidão mostra mil maneiras de acabar consigo mesmo.
E esse é o seu resultado demoníaco. Sua visão fica melancólica e
perde a capacidade de enxergar com clareza. Você não é capaz de se
vislumbrar como alguém digno de viver, o seu verdadeiro eu perde o
domínio sobre o que pensa. Perde a submissão ao furacão caótico que sua
própria personalidade criou. Ele fica à solta e descontrolado. Ele destrói
todas as suas muralhas protetivas e divisórias. E isso é culpa sua. Tudo
culpa sua. Não adianta culpar as toxinas, não adianta culpar os deuses para
quem você reza todas as malditas noites, se lamentando por estar vivo. Para
aqueles que você chora por socorro. Suplica por liberdade.
Você deseja a salvação?
Não adianta. Nada adianta acusá-los de não moverem um dedo para
te ajudar. A culpa é sua por esperar que eles o ajudassem. A solidão pode
até tagarelar na sua mente, mas a culpa é sua por não saber calá-la, por não
querer que ela se cale. É mais fácil se entregar e ter pena de si mesmo, não
é? É mais fácil falar que está morto? É mais fácil condenar-se ao inferno?
Se entregar ao purgatório. Não, não vou fazer isso. Não de novo. Eu tenho
sim a escolha da ressurreição, entretanto, terei que correr atrás dela. Pois
não é uma escolha, é um objetivo. Se tornou uma obrigação. E eu não
pararei até alcançá-la. Não descansarei até me sentir renascida. Isso deveria
ter sido efetuado há anos, mas eu estava cega, ocupada tendo pena de mim
mesma. Agradeço por finalmente livrar-me das nuvens acinzentadas que me
impediam de perceber.
E por incrível que pareça, eu tenho que agradecer à solidão.
Tudo tem um grande propósito. Decisões difíceis têm a abominável
tendência a ter dois lados. A confusão causada pela solidão amedrontadora
é uma praga. Cabe a você saber tirar proveito dela. Cabe a você se
sobressair sobre as consequências. Cabe a você, somente a você, manipular
o seu espírito. Se um dia o mar for tentar te afundar, se entregue a ele.
Naufrague a sua carne imunda e contamine as águas cristalinas. Mate o
conceito de viver à deriva. Se submeta a viver nas suas próprias leis. Crie e
prevaleça sobre a sua pessoalidade.
Chega de temer. Ative a sua personalidade. Está na hora de sair das
sombras e se encontrar. Está na hora de tirar a venda e ir além. Já passou da
hora de sair da antiga sala espelhada que eu criei. Já passou dá hora de
finalmente encontrar o meu caminho. Já passou da hora de eu deixá-los ir
sozinhos. Meus pais morreram há dez anos e em todo esse tempo profundo
e desgastante, tenho criado uma concorrência prescindível com o oceano.
Criando setas terroristas que servem como mísseis afundados em uma
pólvora interescalar, atingindo-o sem pensar em quanto isso pode me
machucar. Há exatamente uma década que eu estou batalhando com o meu
primeiro caso de amor. Discutindo, odiando-o profundamente por ter levado
os meus pais de mim. E hoje, hoje eu espero do fundo do meu coração que
possa perdoar. Preciso deixá-los ir embora.
Não posso entrar em guerra com outra pessoa sendo que já estou
em uma comigo mesma.
Além de tudo, foi assim que esse desalinhamento começou, não foi?
Eu criei uma outra personalidade porque era mais fácil. Era menos
deplorável. Era mais viável lidar com a falsa dor de não agradar meu
marido do que com a dor de perder os meus pais.
Eles foram embora sem mim. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não.
Não. Não. Não. Não. Não. Isso está errado! Eu preciso deixá-los ir embora.
Sinto-me em um grande aquário. Existem piranhas carnívoras acima de
mim. Exatamente. Elas estão acima porque da última vez em que nos
enfrentamos, eu deixei que vencessem. Arrependo-me. Arrependo-me
amargamente.
Uma pequena bolha de sabão estoura sobre o meu nariz e dou um
sorriso imaginário para o vácuo que há entre mim e o enorme espelho
quadrado que se localiza na parede. Céus! Como eu sentia saudades do meu
cheiro único de algas marinhas. Como eu sentia saudades de imaginar que
ele estaria sempre comigo, exalando nos pequenos buracos finos e curtos
das paredes.
Encaro meu reflexo embaçado no vidro transparente, analisando
minha imagem. Meus cabelos negros estão molhados e escorridos por conta
da água, minha pele branca de subtom rosado é iluminada por velas, mas a
uma distância segura ao redor da banheira. Pétalas verdes em várias
tonalidades brincam na água. Passo a mão por cima do tecido orgânico,
obrigando-o a navegar sobre as suaves ondas do médio objeto branco.
Sorrio, entretida com a minha própria brincadeira. Meus olhos redondos
param de controlar meu campo de visão e então, tudo acaba. Como um
barril descendo as cataratas de um ambiente alegre e verde. Há pessoas na
margem esquerda gritando e esperando que o barril caia na água. Há
pessoas do lado direito esperneando e torcendo para que o barril flutue.
Ambos erram. O barril nunca chega ao fundo, pois algo o impede. Há um
par de olhos astuciosos e violetas buscando pelo meu corpo.
Sua visão se estagna em meu cabelo molhado. Solto um suspiro
apreensivo e pesado. Não sei o que pensar. A água está ficando mais
quente. Por favor, deixem o barril cair. Meus olhos piscam e ele desce a sua
visão, pousando-a sobre meu ombro nu. Meu Deus, eu estou completamente
despida. Respire, Morgana! Desta vez, eu não consigo mais fingir. Tem
muito tempo que não sou ousada, mas hoje não vou deixá-lo sobressair a
mim. Vou deixá-lo saber que eu estou vendo-o, provavelmente ele já está
me observando há algum tempo, então vou jogar a mesma partida. Atribuir
os mesmo golpes, talvez assim ele tenha consciência de que não se mexe
comigo. Não sem consequências.
Respiro fundo, contando uma sequência numérica que, segundo
meus pais, ajuda-me a ter coragem. Tem grandes chances de isso ser apenas
uma lenda, ou um pequeno esforço para ajudar uma criança a crescer e
ensiná-la sobre seus deveres. Um empurrão para que caminhe pelo lugar
certo. Isso ainda funciona comigo. Quem sabe, algumas vezes eu ainda me
sinta como uma criança perdida. Um, dois, três e já!
Disfarçando meu nervosismo e minha desestabilidade, levanto meus
joelhos e inclino a coluna para trás, deixando os meus seios e certas áreas
da minha barriga totalmente à mostra. O portador de negros olhos lilás está
em cima do telhado, de braços cruzados e encostado na parede da chaminé.
Não sei como não está quente para ele. Estou a cerca de vinte e nove
metros de distância e, mesmo assim, eu ouço, escuto a melodia da sua
risada. Uma melopeia quase impecável, entraria perfeitamente nos meus
ouvidos se não fosse o uivar das correntes de ar.
E pelo seu tom, pela vibração de um sorriso sacana, posso garantir
que ele está apreciando isso. Está interessado pelo meu novo modo de agir.
A água balança conforme a minha respiração. Meu peitoral sobe e desce,
mostrando uma parte dos meus seios molhados e minhas coxas expostas.
Coloco cada braço em um lado da banheira, movendo-me normalmente. Ele
inclina o rosto e um sorriso sedutor atravessa os seus lábios, sei disso pois a
queimação não está mais no meus olhos, ela está descendo para minha
garganta. Agora está na base do pescoço. Está descendo. Sinto a ardência
no vale dos meus seios e não sei o porquê, mas eles rapidamente ficam
firmes com atenção que o garoto lhes joga. Seu sorriso foge em uma
velocidade extravagante.
Nada, absolutamente nada passa despercebido por Archiviéste, mas
impressionantemente isso passou, ou ele fingiu que não viu. Independente
de qual das duas opções estiverem corretas, agradeço por ter passado
despercebido. Seu campo de visão está vidrado na minha costela. Levanto
um pouco mais o meu corpo. Pergunto diretamente para a minha alma o que
está acontecendo comigo. Por que, caralhos, eu quero a sua atenção? Por
que eu anseio por ter os seus olhos em mim? E por que a minha perna está
vibrando? Sinto as pulsações do meu coração saltitando de alegria ingênua
e elas estão escorregando para baixo, estão deslizando sobre o meu tronco,
descendo para o meu ventre e finalmente, se instalando entre as minhas
pernas.
Tenho que manter os olhos fechados para não perder o estímulo.
Exercer a minha postura. Atuar na minha fantasia. Eu tenho que… Abro os
olhos para matar a minha curiosidade e o encaro, ele está sério e olhando
para meu rosto. Não para o meu corpo, como a segundos atrás. Sua íris é
elegantemente harmoniosa com o luar que está sobre o seu ser. O violeta
elimina o azulado do satélite natural e encantador, mas não posso dizer a
mesma coisa sobre os seus cabelos. Céus! O cabelo de Noeeh está
deslumbrantemente balanceado. Não está arrumado, nem bagunçado. Está
simplesmente insuperável. Se existisse um medidor de beleza e maldições
que ela pode causar nos olhos humanos, os encantos que ela pode atribuir
aos desejos do corpo, o meu garoto devastaria os números e acabaria com a
brincadeira.
Antes eu achava que Archiviéste tinha a beleza de um anjo,
entretanto, sinto-me totalmente enganada. Ele tem, sim, o toque de
venustidade angelical, todavia anjos são cisnes brancos. A sua formosura e
simetria rodopiam em volta da sua sublimidade. A imponência do platinado
lembra-me um cisne negro. Tão igual e tão diferente. Sim, ele iria se
misturar facilmente com os querubins do famoso Deus católico, mas a
prepotência dos seus pecados e da sua dor nunca o deixaria passar
despercebido. É perturbador. Talvez um pouco entusiasmante. Nem mesmo
sendo banhado pelo luar mais limpo e branco que já ocorreu em todos os
anos de Penzance, ele está abstergido.
Seu cheiro de maçã com canela é algo que não esconde o odor da
sua vergonha. Está lá, a sua sede de vingança está lá. Bem na borda da sua
íris, afundada no seu mar amplo e violeta. Por incrível que pareça, só está
presente no oceano de um olho. Tento enxergar esse sentimento forte e
caloroso no outro e não encontro absolutamente nada. Ele está confuso. Eu
estou confusa. Sobreponho as duas mãos no lado direito na banheira,
apoiando meu queixo sobre os dedos. Jogo a cabeça levemente para o lado,
observando o seu corpo rígido, dentes trincados e boca fechada. Braços
cruzados e olhos impenetráveis. Existe um sentimento isolado e
desconhecido por mim que ele está enterrando. Está no fundo do baú dos
seus sentimentos, no navio naufragado mais profundo e destruído da sua
íris.
Eu quero a chave. Eu quero navegar pelos segredos. Quero nadar na
sua heresia. Eu quero lhe conhecer, Archiviéste. Quero saber de todos os
erros, sua culpa, seu passado e seus traumas. Seria justo, já que você
conhece os meus. E, principalmente, ficaria mais fácil para me infiltrar na
sua mente e finalmente aniquilá-la.
Garoto triste, o que você está escondendo de mim?
— O quanto eu te machuquei, Ar? E o quanto você ainda me quer?
— sussurro, facilitando ao máximo minha leitura labial.
Quero que ele me escute. Necessito disso. Ele pisca, novamente se
tornando impenetrável. Elegantemente frio, sério e sempre inalando a
postura de supremacia. Autoridade. Ele melhorou bastante com o passar
dos anos, há dez anos eu podia lê-lo facilmente. Podia saber o que estava
pensando só com um olhar. Noeeh foi de grande ajuda para derrubar a sua
família. Provavelmente, notou isso quando já era tarde demais. Quando a
monarquia já o tinha eliminado. Hoje, a sua preeminência afugenta
qualquer ato de manipulação que eu possa usar. É como se eu fosse uma
sereia tentando encantá-lo com o meu canto. Só que ele está surdo. Ele não
me escuta. O meu britânico favorito está blindado contra minhas mentiras.
Tenho que saber mais sobre ele. Preciso de mais. Preciso que volte a me
ouvir cantar.
Só assim para acabar com o último de sua raça.
Archiviéste está há cerca de cinquenta e oito segundos sem piscar,
apenas me examina igual eu o analiso. Estamos assim por um bom tempo.
Deposito força nos meus braços apoiados na banheira, obrigando-me a
levantar. A água gelada percorre meu corpo despido enquanto ainda
mantenho o contato visual com a criancinha birrenta. Pouso o meu pé
esquerdo no chão de madeira na segunda casa de Jacks, encharcando o piso
com líquido transparente. Não me importo com o fato de que pode estragar,
ele me deve por ter salvado a sua vida mesmo depois de sua traição. Coloco
o meu outro pé, caminhando para perto da vidraça diáfana.
Paro de andar, contemplando melhor o luar e a sua silhueta. E eu
não tinha reparado no quão lindas são as suas pequenas orelhas de borda
redondinha. Elas têm pequenas cicatrizes de cortes feitos por facas. Sua
tonalidade castanha disfarça um pouco, mas se parar e explorar cada detalhe
do seu rosto harmonioso, é possível encontrar coisas que muitos consideram
imperfeitos.
Por alguma razão ilógica, eu queria vislumbrar as suas mãos.
Entender a estrutura dos seus dedos. Me parecem grandes e magros, mas ele
nunca tirou essas luvas. Essas malditas luvas brancas que vestem as suas
mãos, ele nunca as tira. No dia do incêndio, ele também estava com elas.
No dia do ataque no comércio, ele também estava com materiais de algodão
envolvendo suas garras, só que de uma outra tonalidade. Sempre com elas.
Sempre escondendo.
Quantos segredos você tem, meu garoto?
Ele não ousa descer o olhar, está esse tempo todo focado.
Inacessível. Ele está me desafiando, mas o baú continua impenetrável.
Eu não consigo decodificar o seu sentimento, muito menos decifrar
a sua escrita ocular.
Faço uma careta e tremo os cílios de raiva. Archiviéste pisca,
perplexo com a minha rigidez. Incendeio-o com os meus olhos flamejantes,
queimando-o. Estou encarando-o descaradamente. Meus punhos fechados,
cravando fortemente as unhas sobre a pele que, para ele, é macia e
agradável de tocar. Meus olhos estão em brasa, mas os seus já viraram
cinzas. Trinco o maxilar quando ele desencosta da parede de pedras que
forma o rascunho da chaminé quente na casa vizinha. Archiviéste começa a
caminhar pelo telhado azul — cujo material eu sei qual é —, ainda me
encarando.
Uma brisa refrescante enfeitada de folhas amarelas passa pela nossa
troca de prismas e sentidos. Nunca me senti tão conectada e afastada de
alguém. Parece que eu estou apaixonada. As minhas percepções, visões,
ângulos, aspectos, direções, linhas, lados, entendimentos, pontos de vista
são totalmente antagônicos aos dele. E isso faz com que nós sempre nos
esbarremos.
Eu pisco e ele some da minha vista, como um cisne negro. E pela
primeira vez, sou eu que tenho vontade de procurá-lo.
CAPÍTULO XI
A outra parte menos conhecida da solidão é que ela te ensina a
ampliar seu olhar investigativo sobre as pessoas ao seu redor. Ela te ensina
a ler os indivíduos de uma maneira tão furtiva e esperta que, se não fosse
desesperador, seria incrivelmente gratificante aprender esses pequenos
truques com a sua presença. Além do mais, quem não quer ter o dom de
adivinhar os pensamentos dos outros? Quem não quer ter o dom de estar
sempre a um passo de tudo e todos? Esse tipo de pensamento aparenta ser
egocêntrico e traiçoeiro, e é. Não me leve a mal por isso, é um pensamento
chantagista e mecanicamente observador, em certos casos até criticamente
obsessivo. Sempre querer se sobressair. Ser encharcado de pujança. Ser
renomado por aversão e pânico externo. Ter lagos amplos e não podemos
negar que aparenta ser um mundo dos sonhos, mas é exatamente isso,
sonhos. Apenas idealidade.
Eu aprendi a analisar. Desenvolvi a capacidade de entender os
humanos que estão sofrendo de tristeza. Fui obrigada a ampliar essa
superfície do meu conhecimento. Sei disso pois passei dez anos da minha
vida cedendo a ela. Então seria inevitável não expandir e melhorar as
minhas habilidades. Durante boa parte da nossa vida, temos que dar o braço
a torcer para aprendermos certas lições que, infelizmente, são
excepcionalmente essenciais para a nossa sobrevivência. Está cada dia mais
difícil viver. E não digo que seja porque as coisas estão mudando, não digo
isso por causa da evolução moral da nossa sociedade. Também não
pronuncio isso somente para me lastimar pelos meus traumas. Chega de
coitadismo. Essas palavras saem da minha boca por um único e simples
motivo: todos querem ressaltar-se na desonestidade. A cada dia que se passa
existem mais pessoas parecidas comigo.
E até para um indivíduo mortífero e traiçoeiro como eu, essa se
torna uma situação preocupante e nitidamente precária. A verdade é frugal e
fácil de ser entendida, no sistema estrutural em que vivemos, não há espaço
para todos. Uns mandam e outros obedecem. É assim que a instituição
funciona. E eu não sou o tipo de mocinha protagonista dos livros que desfaz
o sistema que extermina a ordem, sou do tipo que manipula a sua base e se
sobressai através das suas próprias regras. Por mais que eu ame o meu povo
e mate por eles, não serei eu que tomarei a frente para mudar isso. Vou
defender os meus e atacar quem ousar ameaçá-los.
Sou a guardiã do tesouro envenenado, não a super-heroína que salva
o planeta e guarda a galáxia com carinho e amor. Não sou a escolhida de
nenhuma profecia, não fui destinada a mudar o modo como as coisas
funcionam. Não vim ao mundo para ser admirada por castidade, vim para
que respeitem a minha autoridade e temam as consequências de
desobedecê-la. Confesso do fundo das impurezas coladas ao meu paladar,
eu não quero. O meu papel sempre foi esconder Penzance. Assassinar por
ela. Morrer por ela. Já falei isso e certamente é uma pena que eu tenha que
repetir. Inúmeras pessoas de lugares variados provavelmente me julgariam
por ter esse tipo de escolha, não é como se eu ligasse para o que elas iriam
pensar. A maioria me julgaria, disso eu não tenho dúvidas ou variadas
alternativas, mas elas não sabem como é estar na minha pele. Muitas não
vão entender, então porque eu me daria ao trabalho de explicar? É perda de
tempo, e eu já perdi tempo demais tentando me explicar para mim mesma.
“Meu corpo sempre desmaia, mas minha mente nunca chega a
dormir”. Isso acontecia, pois as vozes da minha cabeça nunca me
concediam a tão esperada paz que a minha segunda personalidade era
tentada a assumir. Os atritos glaciais que irradiavam da minha pele nunca
paravam de se chocar. Sempre tão barulhentos. Hoje eu não encontro o
silêncio absoluto que gostaria, entretanto tenho que admitir que suas
melodias ecoam com menos frequência. Atualmente eu encontro outros
clamores ressoando das minhas cutículas e elas não veem para me
atrapalhar, apenas sussurram de leve, deixando os meus pelos eriçados de
espavento. E nas suas orações audaciosas ela claramente diz: “Por favor,
Morgana. Não me prenda de novo, não suportaria passar mais tempo sendo
acorrentada por suas garras”.
Quero respondê-la, todavia eu não sei o quê. O que eu devo dizer?
Pedir desculpas?
— Está bêbada, Villain? — Não assusto-me quando a sua voz me
traz de volta à superfície. Não é a primeira vez que isso acontece e sei que
não será a última. O que deveria realmente me assustar é o fato dele
conseguir esse gigantesco feito. O que me atemoriza é essa ocorrência se
tornar algo costumeiro. A minha matéria está se acostumando a acordar
todas as vezes que sua voz se introduz na minha carne.
Pisco. Não sei quantas vezes eu pisquei. Talvez uma. Talvez quatro.
Ele deve ter contado.
— Não — comunico-me afetivamente, respondendo seus
questionamentos. Será que ele sabe quantas vezes eu pisquei? — Por quê?
Seus olhos leem os meus e, automaticamente, respondem-me com
imparcialidade e elegância. A sua radiação violeta se comunicou com a
minha. Sete. Eu pisquei sete vezes. Uma para cada manchinha graciosa que
há no seu osso malar. É como se os nossos olhos fossem dois dragões
celestiais do mais alto e nobre oráculo, duas criaturas místicas que dividem
a mesma chama. Compartilham a mesma recompensa. Somos como o mar e
a lua, rivalizando pela terra.
Não é difícil identificar quem é quem. A grande diferença é que ele
não tem influência sobre mim como a lua tem sobre as ondas noturnas,
selvagens e marítimas. Se for para eu me tornar displicente, consigo fazer
isso por conta própria.
— Você só pode estar alucinando. — Possivelmente.
Hipoteticamente, eu estou insana. Isso se houver diferença entre os dois. —
Não vou tirar as luvas, Morgana. Não faria isso, nem mesmo para você.
Arqueio a sobrancelha, levemente desconfiada. Inclino o rosto para
a direita e forço-me a formar um sorriso. Não sei diferenciar quais as
características dele neste momento, só percebo que elas acertam Archiviéste
da mesma forma que ele sempre me acerta.
— Então você não tiraria as luvas para outra pessoa? — Não sei se
isso foi uma pergunta. Que sentimento estranho é esse?
— Você é a única que sabe como aconteceu aquela noite. Tenho
certeza de que não preciso explicá-la o que eles fizeram comigo, não tenho
que te dar satisfação de nada, Morgana. Você tem uma mente muito fértil,
acho que já consegue imaginar o que fizeram. — Não, eu realmente não
consigo. Ele responde de uma maneira tão fria que congelaria os setes
mares com o seu rancor. Rancor, rancor… Não, esqueça isso. O sentimento
álgido e indiferente que patina em sua linguagem não é o rancor. Segundo
as minhas análises é a dor. Há algo mais
— Eles queimaram as suas mãos? — questiono, moderadamente. E
a única coisa que ele consegue fazer é sorrir. E não é um sorriso daqueles
que fazem meu órgão pulsar de nervosismo, como água em ponto de
ebulição. É um sorriso lastimoso, o mais deprimido que eu já vi em seus
lindos lábios. Provavelmente, também está aborrecido. Desgastado. Os
caninos que eu tanto venero, que talvez desejo, estão com um líquido azul
oceano nas pontas. Quero limpá-los, não fui eu que causei.
— Villain. — Sua fala sai com um desapego inesquecível. Faz
exatamente quinze minutos que ele não me chama mais de raposinha.
Confesse seus traumas para mim, meu cisne negro. Não estou aqui para
libertá-lo. — Lembra da primeira vez que nos encontramos?
— O dia em que você apareceu na minha janela? — Esse não era o
primeiro dia, nós sabíamos disso.
— Achei que não lembrasse desse dia. — Sorrio, desacreditada.
Pergunto-me como esse homem espera que eu o esqueça. Aquele dia se
tornou algo tão cravado na minha memória acabada que meu corpo definiu,
sem minha autorização, que não poderá ser substituído por nenhum outro.
Está arquivada na pasta mais importante. Juntos com os momentos épicos
da minha vida. A voz mansa e passiva que antes pedia por socorro agora
está murmurando:
— Os momentos que eu fiz. — Balanço a cabeça, voltando a prestar
a atenção no garoto mais lindo que já vi. — Mas não, estou falando do dia
da praia.
— O dia em que disse aquelas coisas absurdas para mim? — Quero
acusá-lo de ser um gatinho malcriado, mas ele revidaria com razão e eu não
aceitaria perder.
— Eu não retiro nenhuma delas. — Repreendo-o com olhar, fazendo
uma careta. Uma que faz o seu sorriso triste ganhar um tom fraco e anêmico
de marsala. Ele achou graça, mas o meu intuito não foi fazê-lo rir. — Mas
naquele dia você me pediu para que eu não falasse mais da sua situação
sexual com o seu marido, certo?
Correto. Arqueio a sobrancelha, perguntando-me onde ele quer
chegar com essa conversa. Questiono-me até lembrar que, depois disso, ele
nunca mais a citou. Olho para ele, lembrando da frase: “Como foi,
raposinha? Como foi ser trocada por uma mais jovem e bonita?” E eu não
preciso esperar muito tempo para sua resposta chegar aos meus ouvidos.
— Eu nunca mais mencionei, Morgana, pelo menos a sexual — ele
defende-se. Nunca imaginei Archiviéste se defendendo por algo tão banal.
— Posso ter cutucado a sua ferida e ter te contado mentiras, porém eu
nunca mais citei sua decadência execrável.
— Está citando agora! — acuso, sentindo a vergonha na minha
garganta.
— Pare de se fazer de vítima, Villain — retruca, simples como dias
chuvosos. — É perceptível que isso não te machuca mais. E não estou
falando de forma pejorativa, estou usando como exemplo — explica-se,
mais uma vez. — Mas o ponto não é esse, eu só peço que pare de citar esse
assunto, como eu fiz com o seu grandioso homem.
Ele sorri. Até o filho de uma meretriz é menos desgraçado que esse
garoto.
— Por favor, não me lembre daquele imprestável. — Entro na
brincadeira, cruzando os braços. Continuo, até que me pego falando. —
Acredita que era ele? Esse tempo todo? Era por causa dele que eu não
conseguia ter filhos. E ele ainda me culpava, como se eu fosse a errada.
Usava isso como pretexto para me trair.
— Ah, não. — Noeeh finge lamentação nos seus lábios.
— Sim — digo rudemente, não importando-me com seu sarcasmo.
Ele tomba a cabeça para trás e cruza os malditos braços. Um sorriso
fodido instala-se na sua boca. E então, com os olhos puros de sangue
violeta, ele continua a falar elegantemente:
— Ele levou os créditos pelos meus feitos? — caçoa e eu
automaticamente quero avançar em seu pescoço como uma onça caçando o
seu alimento. Não sei porque estou tão surpresa, meu marido não seria
inteligente o bastante para fazer isso comigo. — Que homem mais mal-
educado, minha paixão.
Minha paixão. Paixão do cão, só se for. Amor que veio direto do
inferno.
— Como é que é? — basicamente grito. Aqueço-me de raiva. Se
antes ele achava que meus olhos personificavam o ódio, hoje eu mostrarei e
farei ele experimentar a chama ácida mais impura de fogo. O fogo
pigmentado de marsala opaca. Algo que nem as suas crenças poderão
explicar. — Foi você que tramou tudo isso. Você sabe quanto tempo eu…
Sou decapitada pelo seu temperamento gelado. Há fogo no alto mar,
mas ele necessita ser saciado. Sua chama precisa de combustível. E eu não
entendo o porquê de não estar realmente brava com ele.
— Você não queria ter filhos, Morgana. Pode parar por aí. Ter filhos
era algo que você nunca quis! — Ele está certo. Certo demais. Aí está o
motivo. Como vou ter receio e raiva por ele se eu mesma não queria aquilo.
Nunca desejei. No fundo eu sei disso, mas é mais fácil culpá-lo e acusá-lo.
Talvez assim eu encontre um motivo para transformá-lo em um homem
ruim e parar de vê-lo como um garoto machucado. — Quem queria era
aquela sua variação ambulante que corria atrás de Edward. Teoricamente,
eu te salvei. Consegue imaginar? Consegue entender o estrago que você
faria com a sua vida quando desse à luz uma criança? Só iria concretizar
ainda mais aquele zumbi. Obviamente eu me diverti com a sua cara de
decepção, entretanto você não suportaria aquilo lá, muito menos eu. Eu te
impedi de cometer um enorme declínio, mas do meu jeito.
Ele queria o quê? Agradecimentos? Não vou dá-los.
— Eu não suportaria uma segunda versão malfeita de você,
raposinha. Não suporto nem a original. — Cogito pensar o mesmo que ele.
Meu orgulho não quer baixar a sua barreira de plástico aerófano.
— O seu jeito foi bem inconveniente. Eu lidaria com isso —
expresso alto o suficiente para que a minha crítica não se camufle no meu
tom de voz. Posso não estar revoltada, porém isso não lhe dá o direito de
manipular a minha vida. O ataque da corpulência ao meu ego está
desgastado. O fato desse garoto saber tudo sobre mim deteriora o meu
pedestal.
Ele morde o lábio inferior. Um músculo do seu abdômen se contrai
na ausência de concordância e seu rosto ganha cor. Minha expressão
continua fechada, e em sua boca encontra-se um meio sorriso.
— Você é inacreditável. — Isso não foi um elogio, entretanto, eu
tenho a certeza de que ele levará como um.
— Implacável seria uma adjetivo mais apropriado para o momento,
meu amor. — Agora é a minha vez de sorrir.
Caminho até ele, mantendo uma distância segura para ambos. Não
quebro o nosso contato visual. Eu não quero. E sei que Noehh também não.
Aquela mesma voz volta à tona quando eu chego perto demais e acaba
sussurrando:
— O salão, Villain. Leve-me até o salão.
— Eu orquestrei o medo no ouvido dos demônios que você temeu,
Archiviéste — rebato, olhando para o caminho. — Uma pessoa implacável
nunca deixaria isso acontecer. Acho que você não conhece o peso do
significado dessa palavra para utilizá-la da forma correta.
— Não estamos no passado. Nunca se esqueça disso. — Levanto a
cabeça, respirando fundo e sentindo o vento levantar os fios do meu cabelo.
— Se bem que eu não posso te culpar totalmente por viver nele, é lá que
está o seu triunfo, não é?
— Você é um excelente cretino. — Até disso ele sabe muito bem.
— Eu realmente não sei se devo levar como uma ofensa, raposinha.
Analisando o seu histórico de relacionamentos passados, é perceptível que
você tem uma enorme queda por cretinos. — Cravo as minhas unhas na
pele. Céus! O que eu não faria para esse garoto parar de falar. — Gosta de
pessoas parecidas, meu amor?
— Vamos logo, antes que eu quebre essa maldita sétima regra. Eu
poderia facilmente matá-lo e jogá-lo no mar, sabia? — pergunto, passando
por ele.
Começo a caminhar sem esperar uma resposta imediata. O que ele
irá responder não entra nas minhas questões de interesse. Temos que chegar
ao salão. Esse é o meu objetivo principal. Viro os calcanhares e ponho um
pé na frente do outro, levantando o que está atrás, me deixando cada vez
mais próxima do local desejado. Tudo ocorre lentamente. Necessito que
seja assim. Quero aproveitar a sensação de estar pisando na areia. Quero
aproveitar esse momento que, querendo ou não, é extremamente importante
para minha vida. Infelizmente não estou na melhor companhia, mas isso
não diminui a montanha de relevância que estou construindo no meu
subconsciente encadeado. Eu não estou caminhando apenas para o salão,
estou atravessando uma astuciosa ponte arcana. Uma impostora que cobiça
o meu declínio.
Ela é feita de pérolas redondas, brancas e ricas em uma extravagante
claridade metálica. Sua aparência grita beleza. Grita pela mais pura
venustidade. Tão linda. Só não se esqueça que as bonitas rolam e caso a sua
agitação seja forte, você cai. Tenho que ir com cuidado. Tenho que
atravessá-la com capacidade e eutimia. Caso esses requisitos não sejam
cumpridos, voltarei a me entregar à penitência.
De um lado, eu ouço as copas das árvores balançarem. E com o
barulho reconfortante que entra na minha cabeça, eu imagino tudo
acontecendo. Fantasio as células produzindo a dextrose, os vasos
condutores distribuindo as substâncias para a corpulência do ser vivo, os
insetos movimentando-se no tronco da árvore, as raízes capturando os
nutrientes da terra, as folhas conquistando o gás carbônico — em período
de fotossíntese — e os passarinhos arrumando os seus ninhos, cuidando dos
seus filhotes. São pequenas coisas que não reparamos no dia a dia. Uma
pena, porque é a coisa mais graciosa de se apreciar.
Noventa por cento dos seres humanos nunca enxergam isso. Eles
vivem valorizando a pilhagem de coisas que a nobreza considera
importante. Se usam, é porque é valorizado. Sinto desgosto por ver um
povo tão manipulável. A reificação da nobiliarquia supera o seu
enaltecimento pessoal. Jamais vou deixar de expressar o quanto isso me
incomoda.
Eles precisam aprender. Às vezes até mais do que eu.
Escuto os ruídos do seus passos caminhando atrás de mim. Meu
cisne negro não falou nada durante todo o percurso. Não sei há quanto
tempo estamos andando. Quinze minutos? E até a sua respiração passou
despercebida pelos meus órgãos. Olho por cima dos ombros, encarando a
sua face estonteante. Um arrepio eletrizante circula os meus lábios no
momento em que encaro a boca simetricamente única do Noeeh. Se eu não
me conhecesse bem, diria que o meu corpo quer beijá-lo. Isso seria loucura.
Então presumo que é apenas pelo fato de eu admirar o seu prodigioso
encanto. Suas luvas pretas ainda vestem as suas mãos e ele não está
interessado em tirá-las. Ergo o meu peitoral e fecho minha expressão, no
intuído atrevido de imitá-lo.
Seu rosto desvia-se do mar e seus lindos olhos pousam em mim. Ele
estreita o próprio campo de visão, tentando entender o que eu estou
fazendo. Suas mãos estão para trás — provavelmente o dedão e o indicador
da mão direita envolvem o pulso da esquerda —, seu queixo está levantado
e o vento dança com as mechas platinadas do seu cabelo.
— O que pensa que está fazendo, Villain? — Eu não espero por essa
facada. O seu tom de voz é tão libertino e lascivo que, se não fosse ele,
encenações eróticas teriam sido efetuadas na minha cabeça.
— Nada — digo, me recuperando do vacilo presente na minha voz.
— Estou apenas pensando.
— E por que está me olhando? — pergunta, sem desfazer a posição.
Continuamos caminhando. Ele sorri, inclina a cabeça e diz: — Está
pensando em mim, minha raposinha?
— Prefiro pensar no diabo. — Pensando bem, eles não são a mesma
coisa? Repreendo-me por estar desequilibrada. Não funciona. Minhas
pernas não param de tremer. — Eu estava te olhando porque…
— Chegamos. — Acho que é a primeira vez que eu realmente
agradeço por sua linda e sensual melodia me cortar enquanto estou tentando
me explicar. Aquele tom erótico não sai da minha cabeça, então não tenho
mais pragas suficientes grudadas no meu cérebro para xingá-lo.
Pisco, desfazendo qualquer tipo de dúvidas e questionamentos
presentes na minha epiderme. Meus fios pequenos, negros e oculares
marcam um rápido encontro uns contra os outros quando eu finalmente
compreendo o que o garoto acabou de falar. Chegamos. Nós finalmente
chegamos. Desvio o olhar de Archiviéste, movendo o pescoço e avistando
as torres altas, pontiagudas e feitas de pedra do grande salão. As torres —
três no total, porque a quarta estava com a coluna oca e destruída pela
metade — e paredes são feitas de pedra branca que hoje contêm algumas
rachaduras grandes e pequenas, musgos verdes e outros tipos de plantas
parasitas. Há várias janelas pequenas sem vidro, apenas uma área
emborcada, permitindo a passagem do ar em sua movimentação necessária.
A porta reforçada por várias tábuas de madeira castanha está fechada e a
corrente ainda está lá, protegendo-a de uma maneira mais simples, mesmo
enferrujada e caindo aos pedaços.
Minha boca se abre com o entusiasmo e meus olhos se iluminam
com a linda visão que eu estou vislumbrando. Minha casa. Meu verdadeiro
lar. Meu primeiro refúgio. O meu castelo.
O lugar onde nasci, cresci e fui treinada para ser quem eu sou hoje.
Relembro algumas memórias que foram trancafiadas pela minha fraqueza.
O que eu já deveria esperar, levando em conta que é impossível visitar o
lugar onde eu me formei, onde construí meu caráter, e nada vir à tona. Era
mais do que óbvio que eu teria essa sensação familiar e aconchegante.
Mesmo assim. Tudo isso que eu estou permitindo-me sentir é maravilhoso.
Não é novo. Não é como se eu estivesse recebendo uma alcova nova, com
material e lençóis que acabaram de ser fabricados. Eu já vivi isso. Céus,
como eu vivi!
— Está vendo isso, Archiviéste? — pergunto, olhando-o com a
maior animação do mundo. Como uma criança que ganha brinquedos
novos. Como uma esposa que achou o seu verdadeiro marido. Como eu.
Como eu estava há dez anos. — Ainda está da forma que o deixamos.
Ele faz um reexame com olhos. Sua íris violeta acata seu julgamento
inclemente. Ele está revisando a casa com a mesma expressão cotidiana,
sem nenhuma vibração ou entusiasmo presente. Muito pelo contrário, a sua
essência ímpia e brutal dilata as minhas narinas. E sinceramente, neste
momento eu não gostaria de ser o meu salão. O seu olhar está sub-humano.
Cruel, insensível, tirânico e desalmado. Como um legítimo rei perverso.
Um imperador que tem uma busca insaciável pelo além-mundo. A
eternidade.
— Noeeh — chamo-o, novamente. Chamando toda a sua intenção
sanguinária para minha pele. Qualquer sofismo fenomenal que eu tenha
agora é eliminado. Honestamente, eu ainda preciso me imbuir em sua nova
personalidade. Ela está mais forte. Mais presente. Noeeh está no ponto mais
elevado que poderia atingir, em seu estado de zênite. Como um terreno
desgastado que acabou de se tornar humoso.
— Villain — ele chama meu nome como tentativa de resposta.
— Temos que entrar. — O fulgor dos seus olhos poderiam
facilmente engolir o inferno. Os anjos caídos se tornam condoídos perto do
seu estado atual.
Ele desvia o rosto e olha para a costa de Penzance. A minha carne
treme pela sua atitude.
— Temos que tomar muito cuidado daqui por diante. Existem várias
armadilhas no salão, insídias em que eu não gostaria de cair. — Archiviéste
filtra as palavras.
— O salão é uma fortaleza da morte — repito as mesmas letras que
os meus pais pronunciavam quando eu era pequena. Quando eu tinha cinco
anos. Quando o navio afundou.
Há vinte e três anos.
— Quem me dera se fosse só isso — o portador de olhos violetas
murmura, cismático. Sinto a influência do seu perfume natural pelas minha
narinas. — A verdadeira ameaça não se encontra dentro do salão,
raposinha. Se encontra no litoral.
— O mar… — Não termino de sussurrar. Não consigo. A voz
áspera do garoto termina por mim.
— Um gaiola feita para os desorientados. — Afável não é uma
palavra que o define no momento. — Um verdadeiro local pronto para ser
incendiado.
— Será que ainda funciona? — questiono. — Será que o pélago de
fogo ainda é um perigo tão grande?
Foi feito para naufragar mais quinze navios de guerra. Foi elaborado
para erradicar a intimação da monarquia.
— Se você quiser chamar a atenção de metade do mundo para
Penzance, recomendo que descubra o passado. Só não acho que esteja
pronta para as consequências que virão depois de libertá-lo. — Quem está?
Olha quantos segredos a minha família possui. — Terá que entregar muito
mais do que o seu corpo e a sua mente.
E como um fantasma vindo me assombrar, ele sussurra:
— Pergunte a ele, Morgana. Pergunte a ele o que mais devemos
entregar.
— Ainda não estou pronta. — Eu respiro com dificuldade e ele
apressa a respiração. Não estou falando com Archiviéste.
— Terá que entregar a ele suas escolhas. O seu poder de decidir. —
Seus olhos pousam em mim, empenhados em continuar sua fala. — Você se
tornará uma marionete. — Não é o meu marido. Não é a população. Não é o
Submundo. Não é o meu trauma ou as consequências da morte dos meus
pais. O platinado está falando do meu primeiro e único amor. — Como um
dia já foi.
E eu parei de ser? Ainda estou apaixonada pelo pior dos assassinos.
Parei. Parei, porque estar apaixonada não é sinônimo de submissão.
Levanto a cabeça, e volto a analisar a minha fortaleza. Passo a língua sobre
os lábios e faço um estalo com a língua.
— Temos que fazer isso primeiro — digo, sabendo que ele
entenderia sem que eu precisasse explicar. Archiviéste assente com a cabeça
e começa a caminhar. — Por favor.
— Acha que está pronta? — ele pergunta, sem parecer muito
envolvente com os meus questionamentos.
Não, não acho. Nunca achamos que estamos prontos para se
despedir de alguém. Principalmente de pessoas importantes.
— Tenho que deixá-los partir — essa é a única coisa que eu
respondo. Ele acelera os passos até ficar ao meu lado, ainda fico levemente
assustada com a diferença de altura. Vai ser difícil eu me acostumar com
isso. Não que eu precise.
— Lembra como se fazem os procedimentos? — Ele continua
caminhando ao meu lado, agora com os olhos fixados na fortaleza.
— Temos que entrar no salão — respondo, dubiamente. — Acho
que lembro-me do básico.
— Acha que os pequenos barcos ainda estão conservados?
— Tenho a certeza que não — digo, pegando no tecido do meu
vestido e o levantando, impedindo que a sua borda encoste na areia
castanha e molhada. Isso ajuda-me a andar mais rápido e poder acompanhá-
lo. Temos que tomar cuidado no local onde pisamos, as nossas famílias
tinham a péssima mania de colocar armadilhas por todos os lugares. E
quando digo todos, são todos. Muitas das vezes nós mesmo caímos nas
emboscadas arcanas ou despreparadas. Quase todo o dia. Algumas situações
faziam a minha barriga doer de tão desastrosas e engraçadas. Outras
faziam-me erguer de preocupação e espanto. Já chegou ao ponto de
membros da nossas famílias terem braços e pernas amputados. — Mas
foram os meus pais que os elaboraram, independente de como esteja a sua
conservação, não poderei substituí-los.
Olho para o chão, evitando algumas áreas suspeitas. Conforme vou
caminhando em direção à fortaleza, alguns pedaços estilhaçados da minha
memória vão se passando pelos meus olhos. Como um copo de vidro
atirado contra o chão de pedra. O responsável achou os caquinhos. Eles
estão sendo atraídos um para o outro, transformando-se em um novo objeto.
Como um ímã. Um renovável ímã que atrai semelhantes. Ele está se
massificando. Está se reformando. Eu estou.
Ainda com o tecido do vestido encostado nas juntas dos meus
dedos, continuo caminhando. Estamos em silêncio. No momento, nossa
conexão está desplugada. Sinto-me carregando um verdadeiro telefone sem
fio. Uma ligação, dois receptores. E ele encerrou a ligação. Archiviéste
voltou a ficar intocável.
— Como vamos entrar? — Mantenho os meus braços nas laterais do
corpo, levantando apenas a cabeça. Ele não me olha, somente encara a porta
de madeira do velho salão. Seus dedos se erguem com a sua luva direita,
tocando no material podre. Seus olhos violetas analisam o lugar. Estudam as
variadas possibilidades em questão de segundos. Um som diferente ecoa da
sua garganta, assim como um suspiro calmo e contemplativo. Ele achou a
solução.
— Quebrando-a no meio — responde frugal, sem mais delongas.
— Como? — Noeeh perdeu a noção, isso é um fato. Nunca ouvi sua
boca sussurrar palavras tão tolas. Se ele fosse um telhado, tenho certeza que
o julgaria por perder as colunas.
— A corrente é uma armadilha, Villain — diz e automaticamente,
meus olhos param sobre o objeto metálico. Sim, metálico. Archiviéste
cerrou os dentes e a minha boca se abre com comoção. — As correntes não
deveriam ser metálicas pelos anos que se passaram. Essas estão pintadas.
Provavelmente de algum ácido ou substância duvidosa que a sua família
passou.
“Poderia ter sido a sua”. Cerco essas palavras na minha garganta e
afundo-as no meu esôfago. Eu não posso usar isso como argumento.
Primeiro porque os Archiviéste não tiveram acesso ao salão nos últimos dez
anos. Segundo que esse tipo de trapaça é uma característica única da minha
família.
— Se colocarmos a mão... — começo a falar e a sua voz conclui o
pensamento por mim.
— Você a perderá. E como conheço os fabricantes, tenho certeza de
que será de uma forma dolorosa. — Lento e tenebroso. — Amarga.
Meu rosto se contorce e meu corpo estremece quando ele soca a
porta sem aviso prévio. Meus ouvidos se assustam com o barulho alto e
dissonante. O golpe que o platinado deposita é tão forte que uma lasca da
madeira aterrissa no chão. O local fica em silêncio por um tempo
incontável, arrebentando qualquer suposição que eu tenha sobre ele. O
homem que está presente a minha frente é mais atlético do que eu
imaginava. Sua aparência era saudável e resistente, mas não parecia ser tão
forte. Pergunto-me como, caralhos, isso era possível. Que feitiçaria negra é
essa?
— Não fique tão abismada — ele diz, mantendo os olhos na porta.
Outro soco, outro pedaço grande de madeira. — O material está fraco. Está
fácil de se quebrar. Não me surpreende eu ter conseguido de primeira.
Todo o meu rosto se ilumina. Eu não acredito cem por cento nisso,
mas entendo que a fraqueza ajuda. Noeeh faz uma careta para mim, como
se soubesse o que eu quero fazer. Sorrio com os olhos, fecho o punho e
tento acertar a porta por pura diversão. Exatamente, eu tento. Antes que a
minha mão acertasse a abertura, ela foi impedida por um tapa do garoto.
Olho-o incrédula e expresso o meu desgosto.
— Você vai se machucar, pode acabar cortando a mão. Comporte-se
como gente.
— Você virou o meu pai? — Inclino a cabeça, cruzando os braços.
O homem revira os olhos. É a primeira vez que eu vejo o portador da beleza
angelical fazer isso.
— Eu ficaria lamentando por horas se você cortasse a mão,
principalmente sabendo que não fui eu que a cortei. Se for para você se
machucar, que se machuque pela ponta da minha adaga — explica-se,
frugal. A única coisa que eu consigo observar são as suas luvas
pigmentadas de escuridão arranhadas nas pontas. — E também não quero
ouvir você resmungando no meu ouvido nas próximas horas.
— Não vamos ficar aqui por horas — retruco. — E eu não
reclamaria no seu ouvido. Reclamaria longe de você, porque nem as minhas
legítimas lamentações você é digno de ouvir.
— Pelos céus, Morgana.
— Pelo mar, Archiviéste. — Temos que ir pelo mar.
Ele nega com a cabeça, locomovendo-se na frente. Eu agradeço por
isso, assim qualquer pedaço robusto e cortante de madeira pegaria nos seus
ombros, não nos meus. Antes ele do que eu. A sua estatura celestial passa,
limpando o caminho para que minha média estrutura possa passar, meus pés
dão pequenos saltinhos dentro do piso liso feito com o tronco das árvores.
Minha cor foge do rosto e ilumina a fortaleza. A estética, arquitetura e toda
a beleza de fora se harmonizam com a formosura de dentro. O encanto
deste lugar exala a imponência. Não existem pequenos resquícios de
benevolência. Tudo entregue e corrompido pelo falecimento. Há sete
gárgulas de pedra espalhadas no cantos das paredes, elas são sustentadas
por uma viga com vários manuscritos, comandos de guerra e, por fim,
escritas antigas e defeituosas de jogadores. Os jogos. Pelos céus! Como eu
pude me esquecer dos jogos?
— Malditos jogos. — Ouço-o murmurar e rapidamente um sorriso
escala o meu rosto.
— Só diz isso porque não era bom neles — rebato, persistente.
— Eu nunca cheguei a jogar, Villain. — Estreito os olhos,
encarando-o. Noeeh está com os braços cruzados, a capa estagnada, bem
como os seus cabelos. O seu cheiro de maçã com canela está cada vez mais
forte. O vento não está me fazendo o mesmo favor que fazia antes. Se as
janelas não fossem penetráveis pela claridade, não teria luz no ambiente
mortífero. Eu consigo vê-lo perfeitamente. — Eles não permitiam crianças
de nove anos. Na época, eu cheguei a insistir para que o meu pai deixasse,
entretanto ele disse que eu não estava pronto. Não estava pronto para
representar a minha família mesmo sendo o melhor nas competições
internas. E quando eu finalmente consegui…
Nós o traímos. Quando ele finalmente conseguiu, nós elaboramos
uma emboscada. Em partes, eu me lembro. Foi o primeiro dia que o vi com
as luvas e foi o último dia que eu o vi.
— Bom, acho que você iria gostar — digo, tentando amenizar a
tensão. Não é como se eu me arrependesse, pois eu não me arrependo.
— Eu iria jogar ao seu lado. Estaria no grupo rival, mesmo
possuindo nove anos — esclarece, ainda com os braços envolvidos no peito.
— Não acho que seria algo muito bom.
— Vocês iriam perder — brinco, olhando-o por cima dos ombros.
— De qualquer forma, eu era a melhor.
— E é por isso que eu queria tanto entrar. — Inclina a cabeça,
dando-me um sorriso prepotente. Desfaz a posição e mantém os braços ao
lado do corpo, livres. — Como seria acabar com a reputação de Morgana
Villain? A garotinha prodígio da sua família?
— Impossível. — Retribuo o sorriso, contemplando ele caminhar
até mim.
— Impossível? — Isso não foi uma pergunta, foi uma provocação.
Estou em um péssimo estado para ouvir esse tipo de coisa.
— Sim, impossível — defendo-me, com mais rigidez na fala. A
distância está se encurtando.
— Nunca saberemos o resultado daquele jogo, Morgana. — O gás
carbônico que sai do seu corpo choca-se com a textura da minha pele. — E
esse é um dos motivos por que eu aceitei fazer isso com você, um dos
motivos por que eu aceitei a sua proposta.
— Você quer provar para si mesmo que pode vencer — concluo,
olhando-o perplexa. — Que pode vencer no meu jogo.
— Está errada, minha raposinha. — Archiviéste inclina a coluna,
deixando o rosto na minha altura. — Eu não quero provar nada a ninguém.
Eu já sei disso e você também.
Apresso a minha respiração, arqueando o meu peito. Pisco
atordoadamente quando vejo a imagem das mãos cobertas por luvas ficar
embaçada. Ele pega uma mecha pequena do meu cabelo e coloca por trás da
minha orelha. Meu corpo se sente apertado com a sua aproximação.
Blasonando. É isto o que ele está fazendo. Ostentando o controle que possui
sobre as minhas antigas posses.
— Isso é coisa de gente insegura, Noeeh — provoco, sabendo que
ele vai cair nas minhas palavras. Não mais. Talvez, não agora.
Preciso recuperar o encanto que eu tinha sobre a sua cabeça.
— Não, Villain. Isso vai ser a minha vingança. Te ver destruída vai
ser a minha libertação. — Suas mãos agarram a minha cintura e ele me
empurra para a sua frente, ainda com as luvas no meu corpo, dando passos
longos na mesma direção. — Por enquanto, preciso de você viva.
E então ele se afasta para que eu possa levantar o rosto, olhar para a
minha frente e observar a enorme insídia que estava escondida no alto da
porta. Uma pedra. Uma ampla e extensa pedra oca em formato quadrado.
Duas vezes maior que o portão. Capaz de esmagar ossos antes mesmo que
entre em contato com a sua matéria branca. E ela está mal amarrada,
algumas cordas que a seguravam estão soltas e outras descascadas. Aquilo é
um enorme perigo. Um perigo que eu não percebi. E o meu ego é muito
grande para dizer obrigada.
Meus olhos vasculham o resto do lugar, vejo a escadaria que leva
para o andar de cima. O piso acima da nossa cabeça não necessariamente
cobre todo ambiente, apenas uma boa parte das laterais. Como uma
passarela que te permite vislumbrar a vista que as janelas te proporcionam.
Há três mesas grandes no meio do salão. Cada uma para cada família. Em
cima delas há vários suportes de velas, bacias de barro e panos decorados,
todos enfeitando o local. Tudo velho. Sinto o cheiro ruim de fruta estragada
e utensílios sujos, como facas e copos. Observo alguns recipientes de vinho,
rum e bebidas que eu não conheço. Umedeço os lábios quando encontro os
pequenos navios de madeira na estante de mesmo material. Caminho até
eles, devagar.
Meu coração acelera. Ou ele para. Minha carne não consegue
decidir quais das situações absurdas quer praticar. E como num passe de
mágica, o local onde me encontro fica odorífico. O porquê é simples, muito
simples. O cheiro dos meus pais toma o lugar de um jeito incontrolável. As
curtas e instáveis lembranças que eu tenho se tornam longas e sólidas. É
como se a água se incorporasse às suas personalidades e desenvolvesse um
dom catártico e portentoso para recriá-las na minha cabeça. Um sorriso
triste instala-se em meus lábios, obrigando-me a segurar as lágrimas. Eu
preciso fazer isso primeiro.
Antes de entrar em uma guerra, antes de selar esse conflito como
algo legítimo. Eu preciso me desatrancar. Preciso me salvar. Minhas mãos
vibram ao pegar o pequeno brinquedo, meus olhos lacrimejam ao ver os
nomes dos meus pais talhados na popa do barco. Aperto a alheta com mais
força, mas não com brutalidade o suficiente para quebrá-la.
— Antes de me salvar, antes de me ressuscitar, eu preciso libertá-
los. Preciso tirar suas vozes da minha cabeça. — “Minhas angústias e
frustrações mensais sempre me atacam nessas horas, quando eu estou
completamente sozinha, à noite ou no começo da madrugada. É nessas
horas que os pensamentos estão em uma onda agitada de turbulência
enigmática, é exclusivamente nessas horas que eu não consigo separar os
meus traumas das minhas frustrações, as decepções das ilusões, tudo se
junta e se transforma em uma grande bola de neve. Existem inúmeros
bonecos de neve nessa montanha. Eles estão pesando. Estão me cansando.
Sinto que estou prestes a ter uma avalanche”. Eles. “Os atritos glaciais
conversavam com a minha pele”. Foram eles. Desde o início, são eles.
Sempre foram. — Para me proteger, eu preciso preservar a mim mesma.
Preciso me despedir de vocês.
Afasto-me da prateleira, abro a porta do armário que está ao meu
lado e pego o arco e depois a flecha. Caminho para longe do local e
encontro o garoto estagnado, também preso nos seus pensamentos. Ele está
olhando para a prateleira da sua família, olhando para os barcos dos seus
parentes. Ele também precisa se despedir. Não preciso chamá-lo para se
libertar do seu mundo. Noeeh vira os ombros, coloca as mãos para trás e
começa a andar, sem dizer absolutamente nada. Seus olhos estão
impiedosos.
— Não vai se despedir? — Não sei o motivo de eu estar
perguntando isso. Não é da minha conta.
Ele para. O garoto simplesmente para. Seus olhos piscam, aturdidos,
como uma trilha que se embaralha todas as vezes que anoitece.
Entristecidos.
— Ainda não estou pronto, Villain. — E esse é o único som que
ecoa do seus lábios cortados pelo vento. Vejo a melancolia nublar as suas
feições.
O garoto passa por mim, caminhando à frente. Sua capa levanta
conforme ele anda apressadamente para fora da fortaleza. Fortaleza da
morte. Em nenhum momento eu disse que ela mata só por fora. Às vezes
ela só precisa cutucar os cadáveres que já estão dentro. Estimular o
sofrimento que já está plantado. Espantar a paz que já está trucidada. Sigo-o
para fora do local, colocando os meus lindos pés na areia dourada e
harmoniosa, convidativa para deitar e rolar.
Minha habilidade auditiva capta o som da maré que está começando
a ficar alta demais. Encaro de perto a influência que a lua tem sobre o mar.
A ampla força gravitacional que o satélite natural exerce sobre a Terra faz
com que a água se movimente de forma irracional. As partículas
transparentes de H2O estão sendo induzidas por sua atração. Agitadas.
Coloco em foco a primeira coisa que eu vim fazer aqui. Locomovo-
me até as cristas marítimas que estão entrando em contato com a areia.
Quando chego perto o suficiente, paro. Inclino a coluna e coloco o pequeno
barco sobre a estatura do meu primeiro, único e verdadeiro amor. Elevo os
olhos na mesma altura que o oceano, observando o pequeno objeto navegar
sobre as ondas, quase sendo engolido.
— Não o afunde — peço, sentindo os meus pés serem molhados
pela água. O tecido branco da minha veste gruda no meu tornozelo. Não me
sinto incomodada. — Sou eu que tenho que fazer isso.
Na última vez em que eu me encontrei às escondidas com o oceano,
eu estava perdida. Lembro-me perfeitamente como era aquela sensação, já
que não é muito antiga. “Não estou nervosa, porque essa não era a minha
primeira vez”. Mas essa será, será a última vez que eu me renderei. “Está
na hora de acabar logo com isso”. Realmente, já passamos do tempo
suportado. “As lágrimas ameaçam sair dos meus olhos, simplesmente as
deixo sair. Não é hora de segurar emoção alguma. Então libero tudo o que
aprisionei durante anos”. Hoje eu estou me libertando, porque o meu
verdadeiro eu foi a única coisa que aprisionei.
“Pela primeira vez, não há emoção nas minhas palavras. Estou
entorpecida. É impressionante a capacidade que o ser humano tem de se
destruir”. Atualmente há emoção, sim, entretanto elas se encontram nas
minhas atitudes. Nunca fui uma mulher que venera as palavras.
“Me leve de volta para os meus pais, meu amor”. Quero devolvê-
los para você, meu amor.
“Os vales finalmente me levarão de volta para casa”. Eu já estou
em casa. Nunca saí daqui. Penzance é o meu lar.
A brisa balança os meus cabelos conforme a direção em que deseja
movimentar. À medida que o tempo corre, o barco se distancia devagar.
Adquiro essa informação nova que o meu cérebro está adorando processar.
À medida que o navio se afasta, as vozes vão ficando mais baixas. Estão
como sussurros de amantes se encontrando em quartos comprometidos.
Eles vão ser pegos. Ela está ganhando espaço. E a criatura familiar diz:
“Não. Não é ela. São eles!” E eles dizem: “Finalmente, meu amor. Já
estava na hora, pequena”.
Não respondo. Pego a flecha e a posiciono perfeitamente no arco. E
com a certeza de que eu iria acertar, miro no barco que veleja pelas ondas
assassinas. Respiro fundo e fecho um dos meus olhos, focando o meu
campo de visão. O alvo balança para o lado e o meu braço inclina
levemente na mesma direção. Meu coração bate três vezes. E com esse sinal
de comando, eu atiro.
Acerto. A ponta aguda e cortante da flecha atinge o mastro do
pequeno navio. E com isso, o pequeno pedaço de madeira se curva e um
buraco se abre no brinquedo. Permitindo-o se entregar.
— Nunca teve hora, porque isso nunca deveria ter acontecido —
digo, abaixando o material de guerra. — Mas de qualquer forma — abaixo
a cabeça levemente. —, eu me despeço de vocês.
As lágrimas saem dos meus olhos. Corrigindo. Lágrimas tristes
deixam os meus olhos, estou expulsando-as. As alegres e reconfortantes
então vêm logo atrás. Estreito os olhos, ingenuamente. Não ouço mais
vozes atormentando a minha pele.
— Leve-os para a casa, meu amor. — E então, o brinquedo que
materializa a liderança dos meus pais é submergido, levando junto minha
segunda personalidade.
Ela está feliz e eu também. Por tempos, eu pensei que iria
desmoronar. Pensei que eu desabaria para poder renascer. Não, o problema
nunca fui eu. Sinto-me contente por saber disso. Eu aqueci a neve que
estava na minha montanha e a transformei em vapor. Agora ela não está
mais sobrecarregada. Não há mais peso nas minhas costas. Eu estou tão
leve e decidida. Tenho que fazer de tudo para continuar assim.
Eles foram embora sem mim. Sim, e desta vez fui eu que os
naufraguei.
Ergo o peito quando ouço o som gracioso dos seus passos andando
sobre a areia. Meus músculos ficam rígidos quando sinto a sua respiração
no meu ombro, a curtos centímetros de distância. Agora que percebo que o
meu maior inimigo me observou no meu momento mais fraco. Não. Ele me
analisou no momento de superação. Não estou fraca, estou renovada.
Existem traumas que nunca vamos de fato superar, apenas aprendemos a
lidar. E é isso o que eu acabei de fazer, aprendi. Ele está estudando um
momento de aprendizado. Meu corpo agradece por Noeeh ter um cheiro tão
gostoso.
— Está pronta, Morgana? — Um rubor sobre pelo meu rosto com a
sensação de tê-lo atrás de mim.
Respiro fundo, recuperando-me. São muitas emoções para um
momento tão pequeno. Preciso de espaço e tempo para absorver isso na
minha cabeça. Não sinto seu peitoral nas minhas costas, então ele está
seguramente longe. Se é que essa expressão existe. Eu não sei.
Abano a cabeça, piscando e me recuperando da bomba caótica de
sentimentos.
— Finalmente, Archiviéste — respondo, inclinando a cabeça e
encarando os seus olhos violetas por cima dos ombros. — Finalmente.
— Está na hora. — Concordo com a cabeça e ele se afasta.
Eu o sigo.
CAPÍTULO XII
A minha individualidade poderia facilmente tolerar a ideia
irrefletida de comparar pessoas quase irreais com as suas fantasias
fantasmagóricas, que atualmente desistiram de viver, como pássaros
vendados que não se cansam de navegar sobre as correntes noturnas,
sombrias e aéreas. Aves brancas com pensamentos caliginosos e asas
perturbadas. Bicos perfurados e garras arrancadas. Criaturas que necessitam
da sua liberdade para serem elas mesmas. Para poderem voar livremente
pelas florestas e viver do modo que lhe foi concedido. Animais que viajam
junto da mais temida e admirada música tocada nas docas que sustentam o
plano territorial de Penzance. Pássaros vendados. Seres vivos cujo sentido
mais primordial lhe foi tirado. Eles o cegaram. A realidade os cegou.
Eu o ceguei.
A dissolução dos seus cenários ilusórios. O contato do pano seco e
grosso apertando suas penas. Pressionando a sua cabeça. Lágrimas
significativas e ácidas encharcando o lenço envolvido no seu corpo, mas
elas são tão insignificantes para o tecido rústico que ele as obriga a se
parecer com as fracas e categóricas rajadas de vento úmido. Sim, o vento
está úmido. Molhado. Archiviéste é um desses pássaros vendados. Passou
tanto tempo absorvendo a escuridão que a superfície colérica o obrigava,
que, quando por fim aqueceu o metal bronzeado que constituía a sua cadeia,
quando por fim conseguiu afrouxar a venda, percebeu que todo o mundo ao
seu redor tinha perdido a cor.
O meu garoto só enxerga as cinzas que restam dos seus olhos
profanos. E as largas e extensas faíscas de tonalidade marsala que saem do
meu.
O inegável tom de pigmento carmim debilita a sua raiva. Se destaca
no ambiente adaptado para predominância do preto e branco. O domínio do
neutro. Um corpo feito para a morte. Eu sou a única coisa com cor que
Archiviéste distingue no seu cosmos grisalho. Ele me rodeia como um
pássaro que tem a venda retirada de um dos lados. Ela está pendurada do
lado direito, agarrada em carne viva. Machucada. O corpo de algodão se
move conforme seu coração bate e as pontas se encontram jogadas. Livres.
Injusto, não é? Conforme ele voa, seu espírito enjaulado intensifica o seu
terror. Ele está me procurando. Ele nunca parou de me procurar, nem
mesmo quando foi privado da sua visão. Sei disso porque ouvia os seus
grunhidos, apenas decidi ignorá-los.
E depois de muito tempo, permiti aos meus ouvidos escutarem o
barulho das partículas mescladas de hidrogênio com oxigênio mantidas em
cativeiros, as suas lágrimas finalmente estão libertas. E eu sou a única
árvore da sua floresta empoeirada que ainda tem as copas verdes e o tronco
castanho. Ele está me rodeando. Está me cercando. Voando
desesperadamente em círculos curtos e infinitos. Está querendo pousar. Está
cansado de voar às cegas. Exausto de sobreviver à deriva. E talvez, talvez,
talvez… Essa palavra é tão banal. Irei corrigir a minha oração. É por isso
que ele é tão obcecado por mim. Eu sou o seu ponto de esperança. O ponto
que acinzentou a sua visão. Eu fui o mar que apagou as suas chamas de
calor. A água cristalina e ousada que desencadeou a calma no seu
redemoinho energizado por desorientação.
Eu sou o centro do seu mundo.
A única flor sobrevivente saudável do seu jardim. Uma formosa e
forte gardênia com folhas vermelhas. Substâncias antibacterianas e enfeites
naturais. Pétalas repousadas e espinhos invisíveis. Presenciei a sua infância.
Atormentei o seu crescimento e estou condenada a enfrentar o auge
acelerado da sua personalidade. A violência transformou o meu pequeno
pássaro em uma águia, ou melhor, um cisne. Um lindo e territorialista cisne
negro. E agora eu vou ter que lidar com sua evolução. Só existe um
sentimento que me define neste momento: petulância.
Quero resistir até que ele se canse de lutar.
Uma fadiga de ansiedade penetra o meu estômago e eu sinto uma
pequena — quase minúscula de tão curta — radiação de orgulho circular
pela minha garganta. Eu gosto disso. Admiro muito isso. E olha que
admiração é uma emoção que eu não vislumbro há muito tempo. Os olhos
das pessoas ao meu redor estão tão tristes. Incapacitados de transmitir
algum tipo verdadeiro de prazer. Vitórias. Triunfos. Todos se sentem tão
derrotados. Até o peso da atmosfera sobrepõe as pedras que carregamos nos
nossos ombros. Uns diriam que isso é impossível, mas nunca viveram em
uma floresta onde os pássaros não cantam, as árvores não procriam e a
ledice não resiste. Somos todos sobreviventes. Principalmente os nossos
caçadores. Os exilados.
Ele. Eu. Nós.
Sempre existiu um nós.
Corro apressadamente em sua direção, tentando acompanhá-lo para
fora da fortaleza. Meus pulmões ainda doem e se esforçam para respirar por
culpa da poeira massiva e prejudicial que atacaria qualquer organismo
saudável, ou meramente estável. Meus sentidos ainda não voltaram a
funcionar cem por cento. Meu campo de visão não enxerga corretamente,
não o meu querido alvo. Minhas pernas ainda tremem da dor de ser jogada
contra o chão, mesmo depois de uma parte dessa agonia amarga ter sido
roubada pelo corpo protetor do meu garoto. Confesso que estaria bem pior
se seus braços não tivessem envolvido minha carne durante a explosão.
Quando seus pés pisaram na linha territorial que dividia as duas
torres de pedras polidas com lágrimas de vingança, sua mão direita,
enluvada por um tecido preto, se levantou, vangloriando-se dos cinco
dedos. Seu rosto não desvia-se do lado de fora, ele apenas inclina a cabeça e
examina o estado do ambiente perigoso. O membro indicativo do seu corpo
reforça a posição, sinalizando-me um sinal de pare. E incrivelmente, minhas
coxas obedecem quando entendo o seu comando. Paro de caminhar. Meu
vestido para de balançar.
Seus olhos violetas voam pelo ambiente, procurando a minha face
suja de terra e levemente machucada por arranhões. Eu sorrio para ele. O
platinado arqueia as sobrancelhas, explicitamente confuso. Sua íris clareia
razoavelmente, mas o seu brilhinho ainda está lá. E logo depois, o cisne
sacode a cabeça, como se não tivesse tempo. Ele move a sua garganta,
analisando os inimigos pela brecha estreita. Seu peito sobe e sua boca
respira de um modo exaustivo. E só agora eu percebo o quão grave ele foi
atingido.
— Archiviéste — murmuro com os olhos arregalados. Seu casaco
preto de couro não esconde a vermelhidão escura e amedrontadora do seu
sangue. Mesmo com uma certa distância considerada mediana, eu consigo
notar a quantidade de líquido que escorre. — Você está ferido. Tipo, muito
mesmo.
Ele bufa, encarando-me mal-humorado. E eu não sei se posso julgá-
lo. Me atrevo a falar antes que ele possa rebater com a sua energia negativa.
— Está fácil matá-lo assim — provoco, dando-lhe um sorriso
sugestivo. E realmente, a minha oração não pode ser chamada de falsa.
Óbvio que um homem como ele ainda me daria um certo trabalho, mas
agora está tão vulnerável. Semicerro os olhos, aproximando-me.
Noeeh não esboça nenhuma reação esperada, apenas sorri. E não é
uma risada debochada, é um riso calmo, desejável e até mesmo calculado.
Eu vou tirar o seu controle, Archiviéste. Ah, como que quero devorar o seu
autocontrole emocional, como uma piranha devora um pequeno peixe. Não
há tubarões nas minhas águas sem ser eu.
— Eu até diria que você não se atreveria a cometer essa atrocidade,
mas é você. Simplesmente você. Eu não ouso esperar algo justo de traíras.
— Meu queixo cai e minhas sobrancelhas se erguem. Não que fosse
mentira, mas eu estou realmente ofendida. — E não troque os papéis,
Villain. Só há um que possui conhecimento sobre o outro. E sou eu que
possuo sobre você.
— Acha que eu não sei nada sobre você. — É para isso ter sido uma
pergunta, mas acabo esboçando um sussurro cauteloso. Talvez atordoado.
— Tenho certeza — afirma, com a convicção que eu juro nunca ter
visto antes.
Outro barulho irritante ecoa do lado de fora da estrutura mortífera.
Não é tão forte quanto a explosão, mas altera os meus sentidos, que já estão
sensíveis. Um suspiro escapa dos meus lábios e eu elevo a cabeça na altura
do poste sem iluminação. Desencosto os meus lábios, procurando o que
falar.
— Archiviéste — uma voz grossa, arcana e conhecida gritou em um
tom desnecessário, chamando pelo garoto. — Eu sei que você está aí,
garoto. Pare de ser um covarde e saia. Venha receber as consequências das
suas atitudes.
Noeeh tomba a cabeça para trás, empurrando os seus fios
esbranquiçados para fora do seu rosto. Sua língua cutuca a sua bochecha e
sua mão pressiona o ferimento que não para de sangrar, mas ele continua
sorrindo como um psicopata. Encaro-o de forma duvidosa, para categorizar
melhor, de um modo dualista. Uma parte minha está apreensiva, posso não
estar na flor da idade, mas não sou velha o bastante para habitar um caixão.
Já a outra quer provocar o homem que está ao lado de fora.
— São cinquenta e sete homens — ele diz. Sua voz falha ao
pronunciar o número de otários que vieram nos pegar. — Eles não são
treinados, dá para perceber por suas ações. Uns não sabem segurar as armas
e outros não sabem onde colocar o pé. Posições erradas. Um mínimo
deslize e arranca a própria mão.
Archiviéste desencosta da parede, afastando-se das muralhas da
fortaleza. O garoto caminha até mim com uma certa dificuldade. Seus
passos se tornam mais perceptíveis que os ruídos enjoados que ecoam pela
teimosia na minha mente. Eu adquiri a habilidade de processar somente a
eles.
— Consigo lidar com garotos que estão lá fora. — Seu corpo para
na minha frente, levanto o queixo e examino o seu rosto. Há um corte na
sua região malar, perto das pequenas manchinhas castanhas. Seus lábios
também estão machucados e encontramos alguns hematomas roxos no seu
rosto. Que as almas falecidas e suavizadas dos meus pais me perdoem, mas
eu me deixaria ser queimada por esse dragão. — Mas não quero a minha
garotinha espertinha me atrapalhando.
Estufo o peito, enfrentando-o. Afronto-o com o olhar e bato o pé.
Fecho os punhos e miro na minha indignação. Como um homem
machucado acha que eu vou ser problema? Mordo a língua e travo uma
guerra entre os dois seres celestiais.
— E o que você pensa que vai fazer, pirralho? — pergunto para o
miúdo que, não ironicamente, é maior que eu, seus olhos violetas verificam-
me por completo. Um sorriso melancólico instala-se no meio dos seus
lábios. Ele quer e não quer. Recusa e aceita. Transforma-se e retrocede.
Sua coluna se inclina para frente, aproximando o seu rosto
transparente. Deixando-o perto demais do meu. O gás carbônico que sai dos
seus pulmões acariciam a minha necessidade de tocá-lo. A minha tentação
de segurá-lo. Sentimento estranho. Acho que eu nunca quis encostar em
alguém como quero agora. Não há distância entre a sua boca e meus
ouvidos atentos. Sua mão agarra a minha cintura, obrigando a minha perna
a andar para frente. Eu respiro fundo, sem preocupação com os homens
esperando alguma resposta. Engulo em seco e ele sussurra:
— Bons sonhos, Morgana. — Quero analisar, mas meu corpo mal
consegue respirar. Sinto uma força sendo depositada na lateral do meu
pescoço. Aproximadamente nove centímetros abaixo do meu ouvido. Foi
tudo muito rápido. Acelerado demais para eu tentar processar. A
desorientação nubla a minha mente, obrigando-me a apoiar no peitoral do
meu oponente. Eu sinto dor, entretanto não se compara com a decepção.
Forço-me a ficar acordada a manter-me firme. Falho, pois desmaio nos
braços do diabo. — Tudo vai estar resolvido depois que você acordar,
minha raposinha.
E eu naufrago.
Não estou acordada. Não estou dormindo. Quero saber dizer onde
eu estou, no entanto eu também não tenho conhecimento disso. Archiviéste
diria que eu estou no fundo dos meus próprios olhos, já que, segundo o
garoto, eles parecem uma galáxia se preparando para o nascimento de uma
estrela. Tudo está escuro. Estou submersa em trevas. Envolvida pelo mar
preto que habita na escuridão. Estou flutuando nesta enorme poça de água
negra e desta vez, os meus olhos estão abertos. Estou atenta, por mais que
uma parte de mim sinta medo. Ouço passos no meu subconsciente. Passos
cujo dono eu reconheço. Aliás, quem não reconheceria o próprio som? Essa
sou eu, mas não a de agora. A Morgana que um dia eu já fui. A que estou
tentando recuperar. Ela está se aproximando calmamente. Seu cheiro exala
algas marinhas recém-nascidas. Novas. Violentas.
Não posso confiar nesse cheiro.
Meus músculos se contraem quando sinto o toque dela. A cor fugiu-
me do rosto e só sobrou o meu vestido de tingimento claro. Seus dedos
ariscos andam sobre o meu antebraço, perturbando a minha epiderme.
Examino-a, admirando sua beleza. A garota tem olhos negros, de um preto
tão escuro que aparenta ser possuído pela noite. Seus fios trevosos e
levemente acinzentados pairam sobre a testa pequena. Ela é tão linda. Bom,
eu sou muito bonita. Nunca neguei isso. A aparência nunca foi algo que me
abalou profundamente.
— O que está acontecendo, Morgana? O que está acontecendo com
a gente? — Ela se abaixa, apoiando-se em cima dos joelhos. Sua calça preta
de couro dobra junto das suas pernas. As bordas de trás do vestido branco
que usava por cima encostam no chão. Se é que há chão. Sua vestimenta
pálida tem uma fenda na parte da frente, permitindo-me ver os cintos e as
facas que envolvem a sua coxa. Há uma bússola abaixo no utensílio afiado.
— Quando foi que nós nos perdemos?
— Sinceramente, eu não sei — digo, suspirando. — Aconteceu tudo
tão rápido.
— Você lembra daquela noite? — Sua voz hipnotizadora brinca com
os meus ouvidos. Nem acredito que sou eu.
— E eu tenho a opção de esquecer? — retruco, de forma categórica.
— Acho que nunca tive.
— Quem que está te atacando, Morgana? — Isso está me parecendo
um interrogatório.
— Como eu vou saber? — e estou novamente rebatendo.
— Raciocinando — a morena responde rude. — Não é tão difícil, já
fizemos isso antes.
Reviro os olhos, minha versão antipática nunca esteve tão legível.
Respiro fundo, sentando-me no breu. Fecho os olhos e começo a marear as
memórias da minha mente. Não é uma pessoa nova. Eu reconheço aquela
voz. Cruzo os dias de glória que passam por meus olhos. Dias tristes que
moram na água das minhas lágrimas noturnas. Nos protestos. Reclamações.
Brigas. Controvérsias. Disputas. Pendências. E, finalmente, chego nas
desavenças com o indivíduo que tinha aquela voz, ou melhor, que toma esse
tipo de atitude. Bombardear tudo e todos que quisessem entrar no seu
caminho e não pensar nas consequências e impactos negativos que viriam
depois. Um horrível bastardo que não chega a conclusões coerentes.
— Johnny — cochicho para mim mesma. Abro os olhos
desesperadamente, levantando-me em uma velocidade que agora juro ser
recorde. Meu coração está acelerado e o ar não entra, ele simplesmente não
entra.
— Minha garota. — Ouço o seu burburinho, mesmo sendo muito
baixinho. Exploro-a com os olhos e agora, estando de pé, consigo enxergar
melhor. Seus seios medianos, sua clavícula vagamente marcada e seu colar.
O colar de búzio carmim que o garoto me entregou no dia do seu exílio. Seu
presente de cor marsala. O mesmo presente que hoje ele usa como brinco.
Um único brinco. Tingido com o seu sangue. Para lembrá-lo de quem o
traiu.
— Mas se for o Johnny, isso é uma enrascada — esclareço,
querendo despertar. Quero sair dessa galáxia cerebral. — Certamente
aqueles cinquenta e sete homens são para atraí-lo para fora. Há muito mais.
— Archiviéste não é burro, Morgana, mas é muito teimoso. —
Naturalmente, ele já sabe disso. Já entende que é uma armadilha. A
desconfiança compõe a sua índole. — Noeeh não vai deixar Johnny tocar
no que é dele.
— Dele? — pergunto, cruzando os braços.
— Talvez essa seja a verdadeira disputa entre vocês dois —
responde-me, culta. Essa não é a resposta que eu quero ouvir. Muito menos
a nova linha de raciocínio que eu quero criar. Afasto-a, depois eu penso
nisso.
— Só há uma maneira de derrotá-lo — declaro, trincando os dentes
e balanceando a raiva.
— Acionando os explosivos que estão na terra — ela afirma,
lembrando-me da alavanca que está escondida debaixo da areia. Guardada.
O lado direito acende o pélago de fogo e o lado esquerdo, os explosivos do
saibro.
— Mas se eu fizer isso, vou destruir a fortaleza. — Qual o preço
para acabar com esse ser humano? O quanto eu vou ter que pagar para tê-lo
morto?
— Não se souber fazer direito. — Mar. Ar. Pedra. Pedra. — Ou
você se esqueceu da sua origem? Lembre-se de como você foi criada,
Villain. Não esqueça dos seus princípios.
— Uma contrabandista — sussurro, faíscas cintilantes brilham no
meu negrume.
— Ou melhor, uma traidora. — Impostora. Ardilosa. Traiçoeira.
Não vou esperar o entardecer. — Não deixe a nossa concha astuciosa
morrer, Morgana. Ela foi a única coisa que nos deixou vivas por todo esse
tempo.
É quem nós somos. Sempre foi. E sempre vai ser.
Uma gladiadora.
— Acorde, Morgana. — Aprofundo meus olhos no seu rosto. — E
não me deixe aqui de novo. Faça-me outro favor, não admita que ele ganhe.
É guerra. Sempre foi uma divergência. Aceno com a cabeça,
obrigando o meu corpo a despertar.
No auge dos meus dezessete anos, quando minha vida ainda era
guiada pelas ordens profundas e rígidas dos meus pais, quando minha pele
estava encharcada de brasa e meus olhos eram o ápice das galáxias, quando
tudo era diferente, eu era a personificação do prodígio. Vestígios
antagônicos. Energia pura e dedos ágeis. Eu ainda amava a areia. Adorava
sentir os fragmentos molhados grudando nos pés. E uma certeza que eu
tenho, talvez uma de várias, é que eu nunca vou deixar de adorá-la. Amá-la
como nos contos ilusórios de fadas. Nos romances. Nas migalhas de amor
das fantasias. Nas obscuridades dos darks. Perseguição. Amarração. Mesmo
que seja uma forma diferente de amar, ainda é uma forma. Ainda é amor. E
eu, eu a amo. Quase tanto quanto amo o mar.
Retiro meus pés do pequeno caixão natural feito para o descanso da
minha carne. Começo a percorrer a extensão da areia, admirando as docas.
Elogiando mentalmente o território do meu maior inimigo. Vários barcos de
madeira flutuando com a âncora lançada no fundo da água. As pequenas
ondas com cristas invisíveis batem contra a popa e a proa. O estribos sendo
molhados, lavados. Apenas assim ele se sente limpo com tanto bastardo
nojento que sobe na sua madeira. O sol está quase se pondo e eu preciso
chegar aos navios de medicamentos o mais rápido possível. Preciso
encontrar Jacks e contar o meu plano. É um risco, mas pode dar certo.
Muito certo.
Silenciosamente, eu persigo a corrente de vento que passa
assombrando os meus cabelos. É tão gostoso sentir essa sensação
novamente. Sentir o gosto de estar de volta. Sei que não voltei a ser aquela
mulher, mas sou uma mulher. Já sou uma. Me encaminho apressadamente
até um dos navios. Jacks não está nesse, ele não conseguiria ser cem por
cento silencioso. Ando pelas docas, não ecoando nenhum tipo de barulho.
Corro para o próximo navio e levanto o rosto, ouço pequenos passos e o
acho. Eu reconheço aquela faísca flamejante em qualquer lugar.
Ergo a coluna e concentro-me em chegar no navio. Uso a corda
como apoio, levantando os braços e ganhando equilíbrio. Não olho para
baixo, apenas continuo. Continue a caminhar, Morgana. Atuei durante
anos, isso não deve e não pode ser difícil. Cerca de alguns segundos depois
eu chego na primeira madeira, apoio-me no piso e pulo para dentro. O ruivo
se assusta, olhando-me atordoado. Sua adaga está apontada para o meu
rosto e seu coração está saltando para fora do seu corpo. Consigo vê-lo
pulando nas velas do barco.
— Morgana — ele chama-me, assustado. Faço uma careta e
empurro a lâmina para longe das minhas bochechas. Elas ainda são muito
bonitas para serem cortadas. — O que está fazendo aqui?
— Tirando você daqui — respondo, estreitando os olhos. Olho para
sua bolsa que está vazia. Onde estão os remédios?
— Quê? Por quê? — interroga.
— Eu não confio no seu potencial. — Seu brilho some e meu sorriso
se abre. — Estou brincando. — Ou não. — Eu tenho um plano e quero que
você me ajude.
Ele para, pensativo. Muito pensativo. Tadinho, ele acha que isso é
uma escolha.
— Você me deve, Jacks — relembro-o, frugal. — Isso não é um
pedido.
— Eu sei que te devo a minha vida — protesta, rolando os olhos.
— Diria que me deve a sua alma — brinco, falando com a voz
apagada. Minhas feridas se contraem e eu não entendo o porquê.
— Tanto faz, as duas não valem muita coisa mesmo.
— Por que a sua bolsa está vazia? — questiono, curiosa.
— Não achei os remédios. Não há nada aqui, Villain. Não há nada
nesses navios. — Inclino a cabeça, entretida.
Será que… Não, isso não é possível. Não tem como eles entrarem
de outra maneira a não ser pela empresa.
— Eles já devem ter descarregado os navios.
— Por que fariam isso? — Encaro-o, olhando-o de cima a baixo.
Por que será?
— Ladrões — respondo e ele assente. Isso faz sentido.
— Não é mais fácil colocar vigias?
— Isso chamaria muita atenção dos ladrões. É mais fácil esconder.
— Sempre foi mais fácil esconder.
— E então, você topa? — complemento perguntando.
— Tenho escolha? — Nego com a cabeça. — Mesmo se eu tivesse,
gosto da ação.
Por hoje, chega! Talvez amanhã. Sorrio, liberando-o para passar. O
ruivo começa a caminhar para sair do barco, passa pelo meu corpo e sobe
nas bordas do navio. Depois do seu impulso ridiculamente feio, o ruivo
examina-me.
— Você não vem, minha linda? — interroga, com a sua voz
monótona. Seus cachos ruivos balançam, seus olhos piscam e brilham com
o luar que persiste sobre nossas cabeças.
— Pode ir — asseguro. — Eu te acompanho depois. Volte para casa.
Ele assente e desaparece da minha visão. Viro-me para a madeira
latejando, pedindo pelos meus toques. As pontas dos dedos tocam o
material castanho e deslizam pela sua estrutura dura. Batuco os ossos da
minha mão na matéria de lenha, responsável pelo transporte de água e sais
minerais. A ligação. Ponte. O sustento de todo um ser vivo que virou um
lindo navio usado para velejar sobre as ondas. Naufragar com tesouros.
Fecho os olhos e aproveito o pressentimento de que logo voltarei a navegar.
A comandar. Afundar. Tenho um palpite forte de qual será o primeiro que
eu irei dirigir. Estupefacção das ondas. O espanto das tempestades.
Abro os olhos e vasculho o céu. Aqui não existem estrelas. Não
existem nuvens. Só existe eu. Minha coluna se apoia na madeira e eu
continuo a olhar para cima. Mesmo não tendo nenhum elemento da
natureza que chame a atenção dos seres humanos. Olhando somente para
um ponto. Mentalizando um mapa.
Algo me chama a atenção. Abaixo meu rosto, examinando o
rumorejo. Estreito a distância e ando até a borda do navio. Sorrio ao olhar a
figura masculina com olhos violetas e cabelos platinados que está se
cuidando no outro barco. No barco vizinho. Noeeh se torna o centro da
minha atenção. O garoto está com luvas, no entanto não se encontra vestido
na parte de cima. Ele realmente não as tira. Há um jarro de água na mesa do
navio. Há também velas, panos e algumas pastas. Eu conseguia enxergar os
dois cortes — que agora estão limpos e cuidados — pela distância em que
me encontro. Um aparenta ser um pouco fundo, já o outro é razoável.
Um razoável que derrubaria alguém treinado.
Seu peitoral nu sobe e desce conforme ele pressiona o pano molhado
na ferida. Um gemido dolorido ecoa da sua boca e logo após ele cutuca o
dente com a língua, suportando-a com força. O pano é tirado do machucado
e ele aproveita para respirar. Archiviéste inclina o crânio para trás,
aproveitando o pouco tempo que tem. Seus olhos fecham. As gotas de água
escorrem, molhando o resto do seu tronco. Ele inspira e eu expiro. Os
cantos da sua boca transformam-se em uma linha dura, mas verdadeira.
Legível.
— Morgana, Morgana... Você parece estar bem curiosa. —
Cambaleio para trás, engolindo em seco. — Está surpresa com o quanto eu
estou crescidinho? — Céus! Eu não sei o que falar. — Quer que eu troque
de posição para você me ver melhor, minha raposinha?
Fujo o mais rápido possível, passando pela borda. Ando pela corda,
quase, quase caindo. Chego às docas e passo pela passarela.
— Isso mesmo, Villain. Escape — ele ordena, trazendo-me um
pouco de medo pela voz imperativa. — Porque da próxima vez que eu te
ver, vou pegá-la para mim.
Nem nos seus sonhos. Deposito força nas minhas pernas e, minutos
depois, consigo alcançar o ruivo. Que, ao me olhar, começa a correr
também.
— O que foi? — pergunta-me, acelerado.
— Ele. — Não preciso entregar-lhe mais informações. Não há outro
ser que me faça correr assim.
— Puta que pariu! — o ruivo xinga com os passos apressados.
Rapidamente chegamos no fim das docas, entrando na praia e perto
das florestas. Meus pulmões pedem por ajuda, necessitando respirar.
Concedo-lhes essa dádiva que o universo nos deu, contente por amar um
processo tão simples. E agora eu posso falar o meu plano.
— Vamos explodir a empresa — digo, e fico espantada com a sua
reação. O queixo do garoto cai, suas sobrancelhas se espantam e sua pele
quase desaparece.
— Vai explodir a sua própria empresa?
— Não. — Ela não é mais minha. Nunca foi. Fui eu que conquistei,
no entanto ela nunca participou da minha lista de posses. — Vou explodir o
sustento de Archiviéste. Vamos ver como ele vai se sair sem seu maior pilar.
— Pelos céus, Morgana — ele exclama. — O que pensa que está
fazendo?
— Destruindo um inimigo.
E vou começar dilapidando o seu principal pilar: o dinheiro. Depois
eu vou atacar o seu emocional e, por fim, vou fazer o que nasci para fazer.
Eliminar as ameaças de Penzance. Não há cisne em um ninho de raposas.
Estamos na selva e vou fazê-lo se lamentar por ter saído dos lagos. Ele
nunca deve se esquecer disso.
Um exilado sempre continuará sendo um exilado.
Archiviéste nunca deveria ter voltado.
CAPÍTULO XIII
Inalo o ar álgido e árduo que faz honra ao ambiente castigado onde
ele nasce. Revive e se forma. Meus ossos se desconectam dos meus
músculos, espantando suas cinzas e despertando a minha energia. A minha
energia. Ela. Eu. Não tenho certeza se isso é orgulho ou ansiedade. Se é a
reconstrução da minha dignidade ou a falência da minha ignomínia.
Pergunto-me se é possível ser os dois. A efetividade de um pode trazer o
outro como consequência. Gosto de pensar nisso. O que é um enorme salto,
ainda mais sem paraquedas. Ultimamente eu estou gostando de pensar.
Aquela famosa luz no fim do túnel está cada vez mais perto. Será que eu
devo alcançá-la ou pedi-la para me esperar. Ela quer que eu a encontre,
acho que isso já não importa uma vez que eu quero encontrá-la. Vou me
priorizar, coisa que eu não faço há anos. Aliás, já determinei que passou da
hora de priorizar os meus quereres. Esse é o primeiro e mais essencial passo
para recuperar a minha personalidade.
Estou reaprendendo a andar com minhas próprias pernas.
Como um velho neném que acaba de sair do útero da sua mãe. E
isso não é uma vergonha, muito pelo contrário, é a minha esperança. Estou
saindo do meu berço. E quando eu coloco as mão no suporte de madeira,
quando coloco força nas pernas bambas, obrigo o meu corpo a se levantar,
pressiono os meus olhos a se abrirem e meus pulmões a respirarem, eu vejo
uma saída. Há tanto tempo eu não enxergo a possibilidade de um futuro. Eu
vejo uma pequena viela. Tenho que engatinhar até ela. Pode demorar
segundos, horas, meses, anos e até décadas. Eu fiquei perdida por um tempo
finito que parecia não ter fim. Um sofrimento que parecia ser perpétuo.
Eterno. Mas não é assim que as vítimas se sentem? Como diamantes
corrompidos por uma tinta cinza que não tem fraqueza. Adoecidos por
bactérias unicelulares que não têm cura. Bem sabe eles que o álcool destrói
a sua menor e única unidade de funcionamento. Pergunto-me se eles
querem realmente passar. Não é mais fácil sentir pena de si mesmo do que
enfrentar o pavor de mudar? De tentar mudar o que está ao seu redor? Me
diz, do que temos tanto medo? De nada dar certo e voltarmos para onde
estávamos, só que mais machucados? Mas já não estamos lá? Já não
estamos machucados?
Passamos tanto tempo pensando nas consequências do que ocorrerá
se algo der errado que não nos esforçamos o suficiente para fazer dar certo.
Eu não sou mais uma vítima.
E nunca mais vou me colocar como uma.
Por isso eu estou atacando.
Archiviéste que lute para lidar com a personalidade que ele mesmo
ergueu das profundezas marítimas da minha mente. A brasa que atiçou nos
meus olhos. Ele ateou fogo no meu santuário e acordou uma divindade
agressiva com que não pode lidar. Se Noeeh quer o ouro, vai tê-lo quando
parar de respirar. Terá que aprender a nadar. Igual eu aprendi.
Meus médios e delicados dedos passeiam sobre o pano de algodão
tingido de branco amarelado, retirando as pequenas partículas de sujeira
indevida que se aglomeram no material quente. Ajeito minha postura,
levantando os ombros e erguendo o queixo. Estreito os olhos e deixo que o
vento folie os fios rebeldes e desajeitados do meu cabelo. Minha expressão
se encontra extremamente séria e, neste momento em específico, ela
necessita estar assim. Daqui a alguns minutos, vou ter uma conversa séria
com o meu terceiro maior inimigo. Não é como se eu tivesse poucos, no
entanto tenho consciência de que vou dialogar com um indivíduo que se
acha traiçoeiro. Mas não se espalha mentiras para quem já espera que sua
confiança seja uma elaborada ilusão.
Ele está fraco.
Ele sempre foi fraco. Johnny nunca foi um homem que desafiava os
comandos dos meus pais. Era mais como uma pedra no sapato, ou uma
pequena e indefesa formiga picando patas de lobos. Ursos. Algas marinhas
que liberam oxigênio para a atmosfera. Irrelevante para os seres que
respiram gás carbônico. Se adaptaram a isso. Só que, mesmo sendo
facilmente quebrável, ainda pode incomodar. O tipo de pessoa que cresce
pela derrota dos outros. Não se pode fechar os olhos para o chão que pisa,
você pode acabar acertando o formigueiro. E eu estou de olhos bem abertos.
Não vai ser ele que vai me derrubar.
O velho deve estar enfurecido com a perda dos seus homens. É até
uma pena o fato dele ter sobrevivido a explosão, mas, como não foi possível
matá-lo, vou tirar um pequeno proveito da situação. Não vou me juntar a
ele, muito pelo contrário, vou usá-lo para conseguir atingir Noeeh. O
homem me odeia, com toda a certeza me odeia, mas para alguém que
perdeu seus soldados, sua dignidade e a fama que tinha por toda a
Penzance, que está sendo humilhado por ter sido massacrado por alguém
novo no contrabando, ele consideravelmente odeia Archiviéste muito mais.
A raiva violenta e lógica que ele sente pelo lindo anjo de asas negras e luvas
brancas vai atrapalhar os seus raciocínios. E se eu souber domá-lo, vou
derrotá-lo ainda hoje, enquanto ele trabalha para mim.
Um pequeno, aparente e inofensivo vírus domina o organismo do
ser humano, enquanto usa as suas células para se reproduzir.
Vou atacar os dois ao mesmo tempo.
Pisco apenas uma vez, assombrando a face melancólica do velho
com os meus olhos harmoniosos. Dou-lhe um sorriso afiado como o vidro
pontiagudo estilhaçado pelas mãos de um assassino. Ele me encara,
tentando devolver-me o mesmo tipo sorriso. Fracasso. Pura derrota. O que
eu poderia esperar? Uma vitória de alguém que sempre foi destroçado? Não
estamos em uma conta de fadas. Ele é apenas um peão no tabuleiro.
Pressiono os lábios para não sorrir com a sua tentativa e mudo o meu
comportamento quando ele se aproxima.
— Você está com cara de derrotado — comento quando seu corpo
está a uma distância clara. Passo a ponta da língua sobre os lábios
inferiores, querendo sorrir. Somente isso. — Sabe, Johnny, quando eu era
pequena, os meus pais me ensinaram que não são os problemas da vida que
são pesados, nós que somos fracos. Não somos resistentes o suficiente para
carregá-los. Para abatê-los utilizando força bruta. — Suspiro, observando
de perto o quanto ele está desgastado. Archiviéste sabe fazer um estrago
quando quer. Talvez ele não seja uma criança tão manipulável assim, no
entanto, não é tão forte quanto eles pensam. — E quanto mais fraco o
indivíduo, mais peso ele carrega. Mais exausto ele fica enquanto caminha
pelas vielas da vida. Me diz, Johnny, você se considera um homem forte?
O homem continua em silêncio. Seus lábios não se movimentam
para me dar a resposta da pergunta retórica, entretanto sua mente viaja
como moradores nômades nos tempos antigos. Sempre procurando por
algum alimento. Ele está buscando alguma tentativa de responder. Eles
nunca param no lugar. E ele nunca vai encontrar. Não até ele entender o real
motivo de eu estar aqui.
— E você acredita nas coisas que seus pais te disseram? — Uma
boa pergunta. Uma ótima pergunta. Levanto a cabeça, analisando-o por
completo. Não há dúvidas nas suas expressões, então isso significa que ele
quer causar confusão nas minhas. Funcionaria há alguns meses atrás, mas
os tempos mudam, e é isso que acontece quando você não se adapta.
— Ideologias são ideologias. Meus pais nem sempre estavam certos,
porém estamos jogando com as regras deles. — Ou seja, não me importa se
eu acredito ou não, se eu o sigo ou não. No momento, não temos outro
caminho a não ser seguir os seus julgamentos. Para ser sincera, eu acho
que existem milhares de lados em uma mesma moeda. — Existem milhões
de pensamentos ou lógicas diferentes e colocar apenas uma como cem por
cento correta pode ser egoísta da sua parte. — Há casos em que isso se
aplica, já em outros, não. — Mas o que penso não importa para você,
Johnny. Não sou eu que tenho que considerá-lo imbatível.
— Eu… — Ele respira profundamente, se sobrecarregando com o
que vai dizer. Seu peito se ergue e ele me encara. — Eu não sei mais o que
pensar.
Xeque-mate para Archiviéste.
A derrota começa quando o medo entra em cena.
— Você o subestimou, não foi? — Essa pequena disputa entre os
dois não começou ontem, já vem se arrastando há algumas semanas. Então
é isso que ele faz quando não está me vigiando? Johnny acena com a
cabeça, envergonhado. Sempre fomos ensinados a reconhecer o inimigo,
para não aumentar ou abaixar as suas forças. Uma luta real para a vida real.
Não brinque com as suas ilusões, elas podem te colocar no terreno errado. E
se isso acontecer, sua morte irá ocorrer de forma certeira e dolorosa. — E
depois o superestimou. — Balanço a cabeça negativamente. — Archiviéste
não é tão aterrorizante quanto parece. Quanto a imagem que está na sua
cabeça. Sua expressão e comportamento são impecáveis. Isso eu não posso
negar, mas duvido que ele seja tão inteligente. Sua postura aumenta a sua
intelectualidade, mas não posso dizer o mesmo da sua personalidade. Ele é
muito cuidadoso para um assassino e não é tão tenebroso assim.
Uma melodia cotidiana e conhecida entra nos meus ouvidos, mas
não são palavras, é apenas o som esquisito e indecifrável que sai da sua
garganta. Os cabelos tingidos de casca de laranja se movimentam quando
Jacks balança a cabeça, atordoado. Seus braços cruzados apertam-se em
volta do seu corpo, endurecendo o seu tronco. E quando eu arqueio as
sobrancelhas, perguntando o que foi, ele murmura como resposta algo que
não é necessário de se ouvir.
— Diga por você, lindinha — repreendo-o com o olhar, mas isso
não o faz calar a boca. Precisamos usar linguagem de sinais a partir de hoje,
ou de ontem, porque o que esse homem tem de beleza, tem de bobeira. —
Ele me parece bem assustador. Principalmente quando ergue aquele olhar
de morte sanguinária.
Johnny acena com a cabeça, concordando com o ruivo. Dois idiotas.
— Por isso que vocês dois foram derrotados — comento, um pouco
maldosa. Mas porra, que mal eles viram no Noeeh? No começo eu até
entendo, nós não sabíamos até que ponto ele tinha chegado em termos de
poder, mas agora não o considero nada mais que um garoto triste e
traumatizado. — Mostraram temê-lo apenas por um olhar.
— Fica fácil falar quando ele não lança aquele olhar para você,
gatinha — Jacks retruca, lançando-me um olhar de julgamento. Retribuo,
olhando-o por inteiro. — Ou você acha que eu não percebi? Não sou tão
burro, Morgana. “Minha raposinha” — diz, imitando o tom de voz garoto
de fios platinados, ou ao menos tentando. — Repito, minha linda. “Minha
raposinha”. Falta pouco para ele beijá-la.
— Ele é o meu inimigo — expresso minha indignação quando
lançam aquelas palavras. Meus dentes estão fechados e minha mandíbula
pressionada. Quero dar um soco neles, mesmo sabendo que isso não é
verdade. — Um traidor. Não vou deitar na cama do meu rival, faisquinha.
Jacks me olha com uma expressão zombeteira, umedecendo os
lábios e descruzando os braços. Seus ombros tremem quando ele sorri.
Minhas bochechas ganham uns sete tons de carmesim. Um para cada
manchinha castanha que há no seu rosto da região malar.
— Ele é sexy, Morgana. Até a forma que ele anda é sensual e,
dependendo da mente que o olha, erótica. — Arregalo os olhos quando suas
palavras acertam meu coração. Como substâncias ilícitas acertam a nossa
mente. Eu não estou acreditando nisso. Ele parece um demônio apontando
os meus pecados. “Seu rosto desvia-se do mar e seus lindos olhos pousam
em mim. Ele estreita o próprio campo de visão, tentando entender o que eu
estou fazendo. Suas mãos estão para trás, provavelmente o dedão e o
indicador da mão direita envolvem o pulso da esquerda, o seu queixo está
levantado e o vento dança com as mechas platinadas do seu cabelo. O que
pensa que está fazendo, Morgana? Eu não esperava por essa facada. O seu
tom de voz é tão libertino e lascivo que, se não fosse ele, encenações
eróticas teriam surgido na minha cabeça”. Engulo em seco, querendo
enfiar a minha cabeça na terra e esperar que essa tempestade de vergonha
passe. — Não vou culpá-la se você escorregar e cair no colo dele.
Não sei como devo reagir a essa fala. Paro, penso e dou um jeito de
aumentar meu raciocínio. Céus, mas o que eu fiz?
— Eu nunca vou me sentar no colo dele. — Bufo, revirando os
olhos que antes estavam arregalados como duas jabuticabas maduras. Tento
esconder o meu constrangimento, mas, para o meu azar, Jacks percebe que
algo errado com certeza não está certo. — E ele não é sexy.
Alucinações são fracas para classificar essas ilusões. O ruivo
arqueia a sobrancelha, mordendo as bochechas para não rir.
— O que está acontecendo, Morgana? — Quero colar a boca dele
com látex de jaca, ou empurrá-lo de um penhasco. Para mim, qualquer um
dos dois serve. Encaro-o, um pouco confusa. — Antes eu achava que você
era uma ótima mentirosa. Está desaprendendo a esconder, minha
raposinha?
— Eu vou te matar — ameaço, descontente. Não sei o real motivo
de eu estar com raiva.
— Acalme-se, Morgana, eu estou apenas brincando — defende-se,
retraído com as sensações das minhas ameaças vazias. — Eu sei que isso
não vai acontecer, eu te conheço.
— Isso não importa — comento, envergonhada. Viro-me para o
velho, que nos analisa calmamente. O escárnio nubla suas feições fora do
padrão, como nuvens rosas que nublam o céu de uma fantasia infantil. Ele
continua nos examinando por longos segundos, até eu perder a minha
paciência. — Eu vou derrotá-lo para você.
— Como? — questiona, indeciso e confuso. — Como você vai
destrui-lo?
— Da mesma forma que destruímos a sua linda família — confesso,
transparente nas minhas intenções. — Vamos atingi-lo no ponto fraco. A
essa altura, acredito que Archiviéste seja o homem mais rico de Penzance.
— Não só de Penzance, como de toda Inglaterra. Se for capaz, até já
participa da elite europeia — ele admite, abaixando um pouco o olhar. Um
suspiro trêmulo escapa dos seus lábios mordidos. — Acredito que ficou
ainda mais rico quando ganhou a sua empresa.
— Há quanto tempo que ele a controla? — pergunto, olhando-o de
forma tolerante. Eu deveria ter tomado muito mais cuidado, mas esta não é
uma hora boa para se lamentar por erros já cometidos.
— Seis anos e alguns meses. Isso é o que eu sei — resmunga,
passando o seu pé imundo pela areia. A minha areia. Meu coração dispara
em um nível consideravelmente perigoso. Seis anos é o suficiente para se
firmar e saber quem são os traidores, os possíveis traidores e os leais. Um
problema que tem solução.
— Acha que a empresa está indo bem? — Coloco o meu dedo
indicador na boca e o dedão no meu queixo, cruzando o outro braço pela
minha barriga e o usando de apoio para a mão que toca o meu rosto. Minha
face está neutra. Estou tentando deixá-la assim.
— Muito bem — lamenta, negando com a cabeça. Chateado pela
nossa situação. — Não demorou muito para que as docas se enchessem de
trabalhadores a ponto de termos que expandir a empresa no litoral.
— Então vamos ter que mudar isso — digo, sorrindo. Johnny
arqueia a sobrancelha e Jacks se aproxima. — Se eu não posso ter aquela
empresa, ele com certeza não vai.
— O que vai fazer? — interroga, curioso.
— Vou bombardeá-la. — Caminho até o homem à minha frente. —
Com as dinamites que ele usou para te destruir.
— Nem todas explodiram. — Ele finalmente pega o que eu quero
falar.
— Como eu disse, estamos jogando o jogo que os meus pais criaram
— gabo-me, inclinando a cabeça. — E a regra é clara, sempre foi: nós
jogamos com as mentiras.
— O que você quer que eu faça, Villain? — Meus lábios se curvam
e formam um sorriso lindo. Como uma dama querendo atrair um duque. —
Eu ainda tenho alguns homens e contatos que me ajudariam a explodir
aquela empresa. Quero vê-lo em ruínas.
Coloco minhas mãos no seu ombro, suspirando com a sua
solidariedade. Mal sabe ele que depois que sair, também vou explodir a sua
casa. Eu disse que iria matá-lo por ver o meu garoto ajoelhado diante dele.
E por mais algumas coisas, afinal notícias correm rápido e ele vai se
arrepender por ter me difamado pelos lugares inapropriados. Jacks já sabe o
que tem que fazer depois que tudo pegar fogo.
— Naufrague aquela empresa, Johnny — murmuro, apertando os
seus ombros. — Faça isso pelo seu filho querido.
Vejo a raiva clarear seus olhos escuros, ele está furioso. Muito
bravo. Posso entender e capturar a sua sede de vingança exalando no ar. A
rocha está quebrando, trancando-se pouco a pouco. Não vou parar até não
sobrar nada mais além de água salgada. Ensanguentada. Ergo o olhar e
afasto-me do seu corpo trêmulo de puro ódio.
— Jacks. — O ruivo se aproxima quando eu o chamo. — Leve
Johnny e o que sobrou dos seus homens para a base de Archiviéste. Destrua
a minha antiga empresa. Vamos tirar a maior fonte de sustento dele.
— Como quiser — ele disse, passando por mim e levando o homem
com ele.
— Não vacile comigo, Johnny. — Inclino o rosto, olhando-o de um
modo apreensivo. — É uma oportunidade única. — Quase quero sorrir com
o que estou presenciando. Vou acabar com um inimigo antigo enquanto ele
trabalha para mim.
— Isso nunca mais irá acontecer, Villain — ele garante, seguindo o
ruivo e me deixando sozinha no seu território. Olho para a base construída
por tábuas de madeiras avermelhadas, não sei a qual madeira pertence, mas
me parece resistente. Há três cômodos grandes e algumas plantas rasteiras
penduradas, também lamparinas com velas encaixadas por dentro. Mesas,
cadeiras e mapas colocados nas paredes. Examino-o de uma forma dualista.
— Eu garanto.
Eu tenho certeza disso.
CAPÍTULO XIV
Acho que essa é a primeira vez em muito tempo que não tenho
pavor da solidão. E não estou falando da angústia e do sofrimento que ela
causa na minha consciência sabulosa. Não estou me referindo à sensação de
corte profundo por uma faca de metal afiada — por pedras que habitam no
fundo do oceano — sobre a pele antiga e enfraquecida pelo medo. Agulhas.
Furos. Pedaços. Sangue. Não, isso já é passado. Estou falando mais
precisamente do escuro. Da emoção no fato de você estar sozinha, mas não
se sentir solitária. Estou novamente pensando. Estou amando conseguir
raciocinar. Minhas ideias estão circulando vigorosamente como um espectro
arcano e astuto que ficou enterrado em um chão de vidro durante dez anos
da sua extensa vida e que agora, após muitos anos que mais pareceram
centenas, está livre por completo. Liberto para voar e desocupado para
assombrar.
Desamarrado para todo o sempre, cobiçando vingança para acabar
com aqueles que o trancafiaram e que o viram naquele porão subterrâneo,
abaixo do material translúcido e gélido, suplicando por ajuda e socando a
porta da sua prisão, sem a mínima esperança de que ela pudesse estilhaçar.
Eles não fizeram nada, nada para ajudá-lo. Apenas olharam-no
inapropriadamente e sorriram, analisando o lindo espírito vital se
afundando, sendo agarrado pelos outros fantasmas desesperados, engolido
pela multidão desnorteada. Manipulação. Limitação. Ele está sedento para
elaborar justiça com as próprias mãos. Seus olhos iluminados de raiva estão
pedindo uma pequena oportunidade. Uma chance de virar a roda gigante
para o lado contrário. De poder arrancar o sorriso daqueles que zombaram
com ele. De amaldiçoar e fazer sangrar os ouvidos daqueles que o ouviram
e nada fizeram. Que ignoraram-no. Eu não quero isso, ou quero? Talvez eu
queira, mas não estou conseguindo raciocinar bem no momento. E eu sei
muito bem o motivo, compreendo muito bem a organização caótica da
minha cabeça.
Sou uma garota ciumenta.
Muito, muito ciumenta.
Agressiva, astuta e injusta. A visão que estou tendo agora aborrece
uma pequena parte possessiva do espectro que não se reacende há anos.
Não me leve a mal, eu quero revanche, quero muito fazê-lo pagar pelo que
aconteceu comigo nesses últimos dias, mas ao contrário do que aconteceu
com a alma presa no chão, alguém olhou para mim. Ele atirou uma flecha
de fogo na porta da minha cela e isso fez com que eu me recordasse de
todas as formas que eu poderia usar para sair dali. Um cisne negro me
libertou de um lago congelado. E agora esse lindo indivíduo está
conversando com outra mulher e eu estou enciumada. Tenho os meus
motivos, além do mais, ele é meu inimigo e uma batalha se luta a dois.
Dois. Apenas dois. Nós dois.
Eu nunca soube como é sentir esse tipo de contorção. A região da
minha intelectualidade que exige que o tango seja dançado a dois está
perturbada. Não gostei. Odiei. Ele não está perto o bastante de mim, seus
braços estão cruzados sobre o peito e seus olhos violetas não desgrudam
dos dela. Não desgrudam dos dela. Meu coração bate como se ele estivesse
a beijando. Nunca senti isso com o Edward, nem mesmo quando ele
transava com Katherine no meu quarto. Na minha cama. Isso me faz pensar
que provavelmente eu nunca tenha considerado ele como meu. Eu só posso
estar enlouquecendo. Não! Estou apenas com inveja já que ela pode se
aproximar dele e esfaqueá-lo até a morte. Pouco espaço para respirar e
muito tempo para projetar loucuras. Aliás, estou aqui há mais de duas horas.
Será que estou novamente entorpecida?
Apenas dois.
Movimento minhas pernas para chamar a atenção do bastardo
negligente que me pendurou nessa corda. Como uma galinha feita para a
porra do sacrifício. Amarrada e coagida, esperando o mínimo de piedade do
seu assassino. Ele está enganado se acha que vou lhe pedir compaixão. Está
terrivelmente enganado se está achando que vou suplicar por clemência.
Garoto iludido. Eu não sou um animal amedrontado que vai pedir por
condolência, mesmo que meus pulsos estejam envolvidos por uma corda,
erguidos acima da minha cabeça e minhas pernas estejam livres. Estou
sendo segurada por uma barra de ferro e, abaixo de mim, há uma grande
piscina cheia de líquido translúcido e indolor. Isso é uma sala de tortura.
Vasculho e analiso o lugar com meus olhos escuros, mesmo que eu
já tenha feito isso centenas de vezes nas últimas duas horas. As paredes são
feitas de pedras negras, que não aparentam ser polidas corretamente. Há
vigas de ferro finas e longas por todo o teto. Isso parece mais uma caverna
habitada do que uma casa. Só há luz no local por conta das lamparinas
espalhadas pelas paredes. Existe uma cadeira e uma mesa na lateral, perto
da porta que está entreaberta, por onde vigio o meu garoto. Inclino um
pouco mais o rosto, tentando entender o que eles estão conversando. Meus
braços doem pela posição desconfortável, mas já suportei coisas piores. Eu
não sei o que ele quer comigo aqui, mas não vai me causar medo. Não vai
me manipular. Sou eu que controlo essa dança a dois em que bailamos.
Sou eu que domino as ondas que o naufragam e isso não pode
mudar.
— Você é uma garota bem curiosa — diz uma voz desconhecida.
Existe um outro sentimento no seu tom, mas eu não consigo identificá-lo.
Desvio o rosto do anjo caído que dialoga com a meretriz e desloco o meu
campo de visão até o garoto de fios negros e olhos azuis. O tingimento do
seu globo ocular é encantador, um azul tão precioso e místico que eu
adoraria roubá-lo para mim. Seu cabelo liso bate em seus ombros esguios,
magros e longos. Diria que ele é quase tão alto quanto Archiviéste. Quase.
Um homem muito bonito, comparado aos outros da minha cidade, mas
ainda não chega a essência de um cisne rebelde. — Tão curiosa. Tome
cuidado — alerta, perigosamente. Ele anda como um predador. — Dizem
que a curiosidade matou o gato.
Por sorte, eu sou uma raposa.
— A curiosidade me manteve viva por muito tempo. — Também
tenta me matar, mas isso não se revela para alguém que sempre é mais
esperta e travessa que ela. Como entornar líquido em um recipiente que está
transbordando. Ele não pega. — Ela só mata gatos que não sabem caçar.
— E você sabe? — pergunta, criterioso. O homem apoia o ombro na
parede e cruza os braços. — Você sabe caçar, garotinha?
— Estou viva, não estou? — Um sorriso profano se instala nos meus
lábios enquanto ele se desapoia da parede. Meus pulsos pedem por
liberdade, mas nenhum som ecoa da minha boca.
— Será que vai ficar por muito tempo? — Uma pergunta um pouco
arisca, quase soou como uma ameaça. Talvez se ele fosse um homem
assustador, teria passado essa impressão. Ele não me aterroriza.
— Vou até onde eu conseguir. — Até onde o universo permitir. Só
não posso esquecer que sou uma das favoritas dele. — Mas o seu chefe
cairá primeiro, isso eu te garanto.
Agora é sua vez de colocar um sorriso na face. Ele brinca com uma
mecha do cabelo antes de arrumá-la atrás da orelha. Seus olhos azuis se
iluminam com o meu afrontamento e seu queixo treme de ansiedade. Ele
está muito eufórico por essa briga. Crente que vai me destruir. É um homem
que gosta de ver sangue derramando.
— Você tem muito mais inimigos do que pensa, Morgana —
expressa de uma forma calmamente suja. Ele sabe o meu nome? Como?
Não me recordo dele no meu passado. — Archiviéste não te quer morta,
acredito que não por agora. E não parece que vai querer tão cedo.
— Ele incendiou a minha casa. — Minha melodia sai um pouco
vaporosa. O homem colocou fogo na minha casa, mesmo que ele não me
queira morta, ainda é um ato imperdoável.
— E depois lhe perseguiu para ter certeza de que você sairia viva —
rebate, como se isso justificasse o que ele fez. — Mas você fez coisas bem
piores. Sabe disso. Mesmo com Noeeh colocando fogo na sua residência,
roubando sua empresa, te fazendo acreditar que é infértil e tudo mais, você
ainda consegue ser mais imunda. Não pode julgá-lo por estar pisando na
terra se você já estava enterrada na lama.
— Ele… — digo, ou tento dizer.
— Ele lhe salvou de um afogamento e ainda fez com que todos os
homens vigiassem o litoral depois da sua tentativa fracassada de suicídio —
informa-me de algo que eu não fazia ideia. — E fez questão de passar a
noite em claro vigiando a praia todos os dias depois do ocorrido.
Tum, tum, tum. As vibrações do meu corpo estão aceleradas em um
nível assolador. Eu pisco uma, duas, três vezes. Nada melhora. As coisas
estão piorando para o meu lado. Porque se antes a parte possessiva do meu
espectro já o considerava meu, agora ela está inquieta e muito certa.
Tentando convencer as outras partes.
— Sabe, eu sempre me perguntei por que o capitão não transa com
as meretrizes. Até porque ele é o chefe. — Não, por favor, não diga o que
eu acho que você vai dizer. — As meretrizes são loucas para se entregar a
ele. Até as que não têm o costume de se deitar com os clientes — expressa,
andando pelo local. — E Noeeh sempre negando. Sempre saindo. Sempre
comprando gardênias brancas no dia do exílio. Eu sou muito curioso e
descobri coisas sobre esse homem que você agradeceria por saber.
— Agradecer? — interrogo, um pouco irônica. Eu não me importo
se ele não quer transar com elas. Não, eu não me importo. Gardênias, eu me
lembro das gardênias brancas que Archiviéste me entregou no dia em que
foi exilado. No dia em que o traí. Como posso me esquecer? Eu fiquei
abismada, aliás Noeeh me entregou depois de descobrir a facada que eu dei
em suas costas. Mas não me arrependi. Nunca. Também me lembro de
algumas delas aparecerem no meu jardim, mas eu as deixava morrer por
querer cobrir o passado. Sequer me perguntei o significado, mesmo me
recordando de algumas falas suas. Sequer queria saber, mas e agora? Eu
quero?
— Eu já teria lhe matado — expressa. A força das duas palavras
eram lentas e precisas, entretanto elas não me acertaram. Eu não engulo
veneno facilmente.
— Você não é o Noeeh — defendo-me do seu ataque verbal.
— Por isso mesmo que você deveria agradecer. — Seus olhos
disparam para a porta, tentando analisar se o platinado estava vindo.
— Está chamando seu chefe de fraco? — Tento fazê-lo escorregar
na lama onde ele diz que estou enterrada. Quero vê-lo comigo.
— Não — diz, rapidamente. Algo que é nitidamente verídico. — Eu
sei muito bem das coisas que o capitão é capaz — anuncia, abaixando o tom
da voz. — Eu só não aceito o que compreendi nesses últimos anos.
— E o que foi, Doutor Holmes? — interrogo, sincera, mas com um
pouco de escárnio. Uma veia salta para fora do seu pescoço e seu rosto
transforma-se em algo peculiar e corrosivo.
— Ele adora jogos. E hoje você vai experimentar uma parte
superficial dessa paixão desconhecida. — Sorri de um modo diabólico,
aproximando-se de mim. — Mas ele não parece jogar quando se trata de
você, ou não parecia, até eu entender tudo.
— O que quer dizer? — pergunto, curiosa.
— Noeeh já sabe onde está o ouro, Morgana. Archiviéste não é
burro e demorou demais para descobrir algo que tinha muita facilidade, ou
você acha que é a primeira vez? Ele passou todos esses anos na sua sombra,
construiu um império bem debaixo do seu nariz e ainda cresceu nesses
ramos sem trapaças. — Meu coração não dispara. Não dispara porque eu sei
que, se o cisne soubesse, já teria pego. Noeeh ainda não descobriu a outra
parte do mapa e está tentando me conduzir. É uma pena para o homem lindo
de olhos azuis que isso não funcione comigo. — Estou me perguntando
porque o bonitão não quer pegá-lo.
— Você está superestimando demais o seu chefe, não acha? —
Irrito-o, deixando claro que sua brincadeira não funciona. — O garoto é um
homem esperto, eu não posso discordar. Cresceu em meio aos
contrabandistas, sem deixar que o enxergassem como uma ameaça e,
quando menos esperam, ele toma tudo. Foram o quê? Dez anos de
planejamento? Dez anos desconstruindo a influência dos outros? Foi uma
tacada de mestre, mas ainda não ganhou a guerra.
E não vai ganhar. Eu sou a rainha, mas não estou aqui para proteger
o rei. No xadrez do Submundo, é cada um por si.
Não existe família quando se envolve dinheiro.
— Você acha mesmo? — provoca, afastando-se. Inalo um cheiro
estranho, quase quero jogá-lo para fora, mas não consigo. Não sei que
cheiro é esse.
— Tenho certeza — confirmo, sentindo uma leve tontura.
— O que acha disso, capitão? — Meu coração estremece como a
pele de um pinscher no frio após o banho. Meus olhos piscam, eu umedeço
meus lábios e mordo a língua. Eu não sei porque não senti seus olhos me
queimando. Eu sempre os sinto.
Movimento o rosto e encaro o garoto da beleza extraordinária. Seus
braços estão cruzados e ele está novamente todo de preto, mas com um
outro modelo de blusa e alguns cintos a mais envolvidos na perna. Seu
porte de armas é muito maior que das outras vezes.
Há muitas facas de vários tamanhos. E ele ainda está com aquelas
malditas luvas, e o novo modelo de blusa deixa apenas o pescoço e uma
pequena parte do colo à mostra. O anjo não fala nada, apenas descruza os
braços e os coloca para trás quando começa a andar. Silencioso como um
escorpião querendo injetar seu veneno para matar. Sua mandíbula inferior
está rígida e seus olhos estão clamando vingança. Meu cisne negro é
rancoroso quando quer e isso deveria me amedrontar, até aterrorizaria se
não estivesse extremamente sedutor me olhando dessa forma. De uma
forma que não olha para ela.
Ele continua. Seus pés locomovem-se gradualmente enquanto
Noeeh se aproxima, formal. Quem diria que alguém que quer se mostrar
ameaçador possa ser tão elegante, mas eu sei que ele não vai me machucar,
o homem deixou isso bem claro. E eu sei tirar proveito de situações em que
o homem não tem o controle.
— Você acha que eu sou superestimado, Morgana? — Frio e calmo.
Seu tom de voz nunca se alterou de uma forma tão gélida e excêntrica.
Tenho que tirá-lo do seu domínio se quiser conseguir alguma coisa. Só que
nesse jogo de tabuleiro com facas e flechas, também não posso correr o
risco de perder o meu.
— Você me ouviu gaguejando? — provoco, minhas pernas
tremelicando um pouco. Seguro-as para não mostrar fraqueza enquanto o
diabo diminui a distância entre nós. O garoto para de andar quando chega à
beira da piscina, levanta o rosto, olhando-me friamente como uma nebulosa
guardada e protegida pelo universo. Ainda por cima eu não o ouço respirar
quando diz:
— Não, raposinha. Eu não te ouvi gaguejando. — Abaixo um pouco
o rosto, tentando não demonstrar fraqueza, e respondo:
— Então acho que você tem a resposta. — Há fogo em seu olhar.
Em questão de segundos, sua mão se desloca para o tecido do meu
vestido curto e preto. O nó feito com corda que me prende no ferro é
deslocado para frente. Para ele. Próximo demais. Quando pisco, o pano está
perto do seu rosto. Minhas pernas podem se apoiar em seus ombros, seu
queixo está quase encostando no meu ventre e sua boca… Sua boca está
muito próximo de um lugar onde ela não deve estar. Espasmo são enviados
para ambientes cujo controle eu também não possuo. Todo esse ocorrido
está ultrapassando a linha invisível que eu traço no chão aquático.
— Tenho? — pergunta, baixinho. Uma de suas mãos está no meu
quadril, apertando os dedos com força para me manter no lugar e a outra
está ao lado do seu corpo. Pergunto-me por que ela não está em mim.
— Sim, você tem a resposta. — Fraquejando na consciência e
permanecendo na fala, eu olho para Noeeh com firmeza. Seus olhos violetas
são tão lindos e fortes que eu acho que daqui eu já me entrego para o anjo,
mas lembro-me de que é o meu inimigo. — Você disse que me conhecia
muito bem. Cadê a sua grande habilidade, garoto?
— Eu passei dez anos da minha vida vigiando você, Morgana —
declara, deslocando a mão que não localiza-se no meu quadril. A mão
esquerda. Ela move-se para a região onde se encontra o cisto de baker e o
segura. Sobe mais um pouco e o puxa meu joelho para o seu ombro,
apoiando-o no seu tronco. Quero ser agressiva e chutá-lo para longe de
mim. Eu quero. Quero. Não consigo. Meu corpo traidor está gostando do
que Archiviéste está fazendo. Minha coxa está amando envolver o seu
pescoço, os meus outros lábios estão adorando ficar perto da sua boca. O
garoto ainda entende muito bem o que eu cobiço. — Eu tinha conhecimento
de cada passo que você dava. E até hoje eu tenho consciência de tudo o que
rodeia a sua vida. Dos tipos de livros que você lia, dos dias em que treinava,
das noites que passava em claro, de quantas vezes você chorava por não ser
forte o suficiente para aceitar a dor, de tudo. Sei que você gostava de cuidar
do jardim em dias nublados, que comprou frutas vermelhas porque Edward
se encantava, mesmo as odiando. Você sabia que Elaine era amante do seu
marido antes mesmo de Katherine se relacionar com ele, só se fazia de
sonsa para continuar o casamento. Aquela boa e doce garota de cabelos
cacheados, tão mentirosa.
O ar pesa uma tonelada e meia antes de eu processá-lo e ele se
dispersar nos meus pulmões. Archiviéste vasculha-me com seus olhos para
verificar se suas palavras estão tendo efeito, o pior de tudo é que ele
consegue o que deseja e usa isso para continuar me atacando.
— Mas não, mesmo eu tendo noção da sua personalidade, não
descobri onde está o ouro — admite, sincero. E por mais que eu esteja
aliviada com isso, não posso esquecer-me nunca mais de que o rapaz sabe
muita coisa. E só não sabe onde está o ouro porque eu mesma decidi
esconder essa informação das minhas memórias durantes todos esses anos.
Se eu a tivesse revisitado somente uma vez, Noeeh já teria pego. — Por
enquanto. — Archiviéste sorri lindamente, ou talvez como um lunático,
difícil distinguir quando o homem consegue transformar o sorriso de um
atormentado em algo magnífico e apreciado, enquanto sua mão esquerda
dança até o cabo de uma das suas facas. Ele envolve o objeto cortante com
suas garras humanas e a retira do material que envolve sua perna. — Um
erro grave da família Villain é que vocês não confiam em ninguém por
serem traiçoeiros, nem em si mesmos. E isso faz com que toda chave que é
dada a um, possui uma cópia entregue a todos, ou escondida em um lugar
que todos possam achar.
Ele achou essa cópia. Não vai levá-lo ao tesouro, mas, se for um
homem inteligente, vai saber muito bem onde está. E Noeeh é um garoto
esperto. O membro do seu corpo que está com a faca a levanta lentamente,
aproxima a lâmina do utensílio cortante na polpa da minha bunda e o
encosta, arranhando-me levemente. Suspiro muito profundamente, muito
mesmo, quando sinto um raso corte ser feito na minha bunda, descendo
pelo resto da pele. Rastejando de um modo demorado na minha carne e
estremecendo o meu corpo em apuros. Por céus… Eu não estou em posição
de opinar sobre isso. Sobre tudo. E para piorar, eu não consigo desviar os
meus olhos do seu rosto sereno. Ele age como se nada estivesse
acontecendo.
— Seus pais confiavam cegamente em você, Villain? — Mordo a
língua quando o encaro, pensando seriamente em sufocá-lo com as minhas
coxas. Está tão perto. Tão fácil. — Eu descobri muita coisa nos últimos dez
anos e questiono-me até hoje. Seus pais confiavam em você, meu amor?
— Está tentando brincar com a minha mente, Archiviéste? — acuso-
o, usando uma simples pergunta para retrucar a sua fala ingênua e tola.
Óbvio que os meus pais confiavam em mim. Ele guarda a faca no cinto e
segura o meu quadril, para que eu não desvie ou desencoste dos seus
ombros.
— Posso ter muitas características, Villain, mas manipulador não é
uma delas — o homem de fios brancos rebate, astuto com o pensamento. —
Peço que não me confunda com você novamente. Sempre fui um rival, não
um traidor.
— Não fale como se vocês fossem inocentes — expresso, já
estressada com isso. A família dele era tão suja quanto a minha.
— Ah, nunca! — começou a falar. — Tenho conhecimento profundo
da família que eu tinha. Nenhum deles era inocente, muito pelo contrário,
eram violentos, injustos, assassinos profissionais e eu nunca poderia
depositar qualquer traço de confiança neles. Além de que eram seres que
não tinham compaixão ou piedade. Não como tive com você naquela noite,
mas eu não citei a minha família, citei? — perguntou, rígido. — Estou
falando de mim, Morgana.
Analiso os seus olhos e encontro a dor das lembranças. É nítido que
ele não gosta que eu o compare com os parentes. Pergunto-me como posso
não ter recordado do que aconteceu com o garoto naquela época. Do que ele
teve que passar por causa dos abusos sexuais que sua mãe sofreu antes de
morrer e o que ele teve que presenciar durante o resto do outro ano e,
principalmente, daquele dia. O dia em que matou seu primo e começou a
usar luvas. O ano do exílio. 1830. Ele quer vingar a sua família, mas não
pela honra do seu pai ou do seu avô. Noeeh quer justiça pela mãe. Talvez
esse seja o motivo por que o cisne negro tenha me pedido desculpas quando
o bastardo arrogante me deixou desconfortável: ele sabe como é isso, teve
capacidade o suficiente de absorver as dores da mãe e culpa por não ser
forte o bastante para conseguir ajudá-la. Ela está morta. A única pessoa que
poderia tirar isso da sua cabeça por completo, está morta.
— Existe diferença entre mim e eles, mas há também entre mim e
você. — Pisco rapidamente e, quando menos percebo, não estou mais perto
do garoto. Noeeh me empurrou e agora, vejo os meus pés no meio da
piscina. O portador de olhos violetas se afasta da borda e começa a
caminhar para longe. Archiviéste anda como se amasse o perigo, seu
pequeno e curto momento de redenção se esvazia como um rio em época de
sol. Ele coloca a mão para trás e se aproxima do homem de olhos azuis
marítimos. Ambos tão lindos e tão encantadoramente ameaçadores. Penso
que tenho um grande problema com cores fortes.
— Solte as enguias — ordena para o ser humano de fios negros ao
seu lado. Meus olhos se abrem com o comando brusco e mortal. Eu não
acredito no que Noeeh acabou de falar. — Vamos saber como a minha linda
raposinha interage com outros animaizinhos.
Desvio o rosto e olho para baixo quando um estalo sai do fundo da
piscina. Eu não sei como o garoto faz isso, mas uma névoa preta e
aparentemente quente sai do chão do recipiente que comporta a água. Eu
não posso respirar, não quando vejo os peixes magros e finos que têm a
capacidade desgraçada de soltar descargas elétricas. Eles não possuem um
padrão de cores único e original, alguns são verdes e pretos, e outros são
marrons, azuis e até amarelos. Seus olhos são pequenos e desafiadores. As
malditas cobras aquáticas são aterrorizantes e algumas delas estão ansiosas
para me matar. Para injetar a sua eletricidade e enforcar o meu coração com
seu veneno. Estou rezando para isso ser um pesadelo causado por demônios
que assombram a noite, mas quando olho para Archiviéste, seu sorriso
profano, braços cruzados e olhos brilhantes deixam isso mais real do que
desejo. Por favor, que seja um pesadelo.
Acho que nunca estive tão desesperada quanto agora. As enguias me
examinam como uma presa que necessita ser devorada. A corrente aparenta
ser fraca. A dor dos meus braços se torna irrelevante. Meu coração pula,
salta, corre, mas nunca bate. Eu não sei respirar. Lágrimas quentes e sem
esperança ameaçam descer pelo meu rosto. Eu não posso chorar na frente
dele. Eu não devo demonstrar o mínimo de fraqueza. Nunca mais. Engulo
em seco e levanto a face, estreitando os olhos e o desafiando com o mínimo
de coragem que me resta. Minha pele se arrepia e minha carne treme
quando um dos peixes salta e quase, quase abocanha o meu tornozelo.
Engulo em seco mais uma vez, sentindo o terror cavar uma cova no meu
cérebro. Como um pequeno roedor. Um grande monstro.
— Não sabia que você tinha tanto medo desses bichinhos indefesos,
meu amor — mente calmamente. É claro como a luz solar que o rapaz
sabia. Ele sempre soube. Conversamos sobre isso na noite em que me
defendeu. Provavelmente, caso fosse outro homem, eu ficaria admirada,
mas é esse cretino desgraçado que sabe dessa informação. Não é romântico,
muito menos admirável. Quero muito batê-lo. — Você está pálida como um
fantasma. Acho que já posso te declarar falecida.
— O que você quer? — interrogo, mal-humorada. A cor foge do
meu rosto rosado por causa da vergonha que passei antes. Não suporto
pensar que senti ciúmes desse ser humano imprestável e arrogante.
— Quero muitas coisas — responde, cínico. Cerro os dentes com
uma pequena gota de raiva em uma chuva de repreensão. Noeeh descruza
os braços e inclina a cabeça. Archiviéste morde o lábio inferior e pergunta:
— O que você acha que pode me dar?
— Você ainda precisa de mim viva. — Encaro-o, com os lábios
tremendo por causa de várias emoções embutidas em um tapa só. Estou em
uma cela de ossos e foi ele quem a construiu para mim. — Precisa encontrar
o ouro. Algo que você cobiça muito, lembra?
Noeeh pensa por alguns segundos, olhando para as paredes do
ambiente. Depois se vira e me analisa completamente. Amarrada e servida
como uma presa. Novamente. Quero tanto, tanto que o diabo pague por
isso. Um estalo sai da sua boca quando murmura:
— Não. Eu não preciso de você para isso — nega, caminhando para
frente. — Me ofereça outra coisa. Algo que seja realmente útil. — O garoto
está brincando comigo. — Por que, Villain? Me diga um motivo para te
deixar viva.
Minha linha de raciocínio se embola de tanto eu procurá-la. Passo
por memórias e mais memórias. Nenhuma tem utilidade com o homem. Eu
realmente não sei qual motivo plausível o cisne não me matou. Eu não sigo
as regras. Ele também não precisa seguir. Uma vez que o ataquei, Noeeh
também tem esse direito. Está na vez dele jogar a peça em direção ao meu
campo. Penso mais um pouco. Paro. Respiro. Não, não e não! Essa não sou
eu. Não vou me rebaixar a isso.
— Se pensa que vou suplicar por piedade, está terrivelmente
enganado. — O portador de olhos violetas endireita a cabeça. Posso estar
ficando louca ou paranoica, mas é quase como se o diabo estivesse
gostando mais do que eu. — Não vou baixar a cabeça para você,
Archiviéste. Se quiser me matar, me mate. Eu adoraria morrer sabendo que,
no final de tudo, ainda não me submeti a você.
— Prefere? — pergunta. Sua melodia é baixa e quase sedutora.
Quase. Talvez eu não queira admitir que a sua voz tenha ecoado de uma
maneira tão lasciva. Novamente erótica.
— E você ainda tem dúvidas? — afronto, encarando-o com as
garras que estou fingindo possuir. Na posição em que me encontro, não
tenho nada além de unhas afiadas e curtas.
— Solte-a. — Vira-se para o homem ao lado, sorrindo. Ele tenciona
todas as veias da minha estrutura catalisada pela pressão. Seus lindos olhos
ardem com algo muito parecido com orgulho e os meus escureceram com a
ordem que acabou de pronunciar. Estou prestes a morrer. Quero descrever
como é a sensação de saber que nunca mais poderei abrir meus olhos, de
saber que nunca mais tocarei o mar, mas como faço isso? Não estou
sentindo absolutamente nada. Como um buraco no manto universal e não
como um buraco negro, que provavelmente te leva para outra dimensão ou
outro espaço do mesmo universo, estou me sentindo como um buraco sem
fim e finalidade, que está aqui apenas para representar o vazio místico dos
meus olhos.
— Como quiser, chefe. — O portador dos olhos azuis caminha até
mim e chuta a coluna frágil que segura a viga em que estou pendurada. Não
sei o que sentir. Não caio. Prendo a respiração e fecho os olhos,
endurecendo todos os músculos da minha estrutura. O vazio ainda é amplo
e protagonista do segundo. Escuto outro chute contra a coluna. O ferro
balança fortemente, tremelicando o resto dos meus pelos corporais. Ainda
não sinto nada. Posso ouvir o som das enguias nadando na piscina. Posso
ouvi-las sussurrando, disputando para decidir quem vai me matar. Suspiro,
mordendo a bochecha. Outro detestável chute. O ferro corroído pela
oxidação se desencaixa e se solta, deixando o meu corpo cair rapidamente
na água mortífera. Pronta para levar-me para o Duat.
Encolho-me o máximo que consigo, com medo do que vai acontecer
daqui alguns segundos. Sinto a água molhar a minha epiderme e o tecido do
meu vestido, junto da pressão de ser jogada na piscina. Estou
completamente encharcada, ainda com os olhos fechados e amedrontada.
Finalmente estou sentindo alguma coisa. Forço mais um pouco as minhas
pálpebras. Um, dois, três, quatro e cinco batidas do meu coração. Nada
aconteceu. Não sinto nada me mordendo. Nada me tocando ou tentando me
matar. Não sinto nem a presença delas aqui. Quero comemorar ou entender
o que aconteceu?
Estranho a sensação de estar sozinha na piscina e abro os olhos, não
vejo nada. Estico as pernas e olho para cima, movimentando-as como se
fossem nadar. A corda que estava me amarrando se afrouxa e eu consigo
retirá-la com os truques que aprendi quando pequena. Vasculho mais uma
vez a piscina, confusa. O cheiro estranho que eu havia sentido antes quando
aquele homem se aproximou de mim. Aquilo não era um fedor normal de se
sentir. Parecia mais um medicamento, mas eu estava tão perdida em meus
pensamentos que nem notei. Filho da puta. Desgraçado. Meu corpo implora
por ar, então nado rapidamente até a superfície para obter o oxigênio de que
tanto necessito.
Coloco a minha face para fora da água e respiro profundamente com
os olhos fechados e quando os abro, não me surpreendo com o que vejo.
Pela primeira vez, eu não fico assustada com Archiviéste me encarando. Já
esperava esse arrombado me examinando como um animal. Seus olhos
estão iluminados, seu sorriso está estampado, seu braço está atrás das costas
e suas bochechas estão levemente vermelhas. Suas manchinhas castanhas
na região do osso malar estão se juntando uma com a outra por causa da
risada aberta. Ele está se divertindo com isso. Muito. E está tão lindo. Forço
a raiva a nublar a minha expressão. Às vezes preciso lembrar-me de que o
anjo é meu maior inimigo.
Preciso constantemente relembrar a mim mesma que ele é o maior
êmulo. Inimigo. Inimigo. Inimigo. Inimigo. Somos adversários de alma e
feitiços. A água escorre pelo meu rosto e tenho certeza de que essa imagem
vai ficar na sua cabeça. Não sou burra. Sei que sou bonita. E Noeeh também
acha isso. Quando nos conhecemos, eu poderia soletrar com todas as letras
e dizer à criança birrenta que eu era um anjo. Um lindo e submergido anjo.
Dizer a ele que as estrelas fofocam sobre a minha beleza. E o bobão
acreditaria nisso. Archiviéste não tira os olhos de mim, nunca tirou. Pode
até ter ficado com outras mulheres, mas, desde pequeno, não para de olhar
para mim. Estreito os olhos e coloco a mão na pedra, aproximando-me dele
sem sair da piscina. Como uma sereia prestes a naufragar um marujo. Como
uma maravilhosa sereia traiçoeira. Estou chamando-o para se aproximar do
meu corpo.
E ele está vindo.
A criança birrenta que usa um brinco de búzio vermelho em uma
das orelhas marcha até a sua sirena. Ar está com o rosto neutro,
caminhando como um duque sombrio da realeza mais obscura de toda a
linha do tempo de um conto de fadas. Não tem prepotência, somente
pânico. Aversão a sua pessoa. Hipnotizado pela minha canção, Noeeh
umedece os lábios e destrói a distância. Seus pés estão na borda da piscina,
prontos para serem puxados para baixo. E eu vou, vou derrubá-lo na água.
Seu rosto está concentrado nos meus olhos, fixamente distraído com a
escuridão dos meus globos oculares. Sua mão paira sobre a minha face,
delicadamente, e seus dedos tocam meu queixo. Forço meus braços a me
levantarem um pouco mais, para poder tocar-me com mais facilidade.
Humilhante, mas ele é tão encantador.
Seus planetas estão como estrelas em dias limpos de nuvens. Tão
ostensivos e luminosos. Seus fios platinados compõem perfeitamente o seu
rosto, caem exatamente na posição certeira para atingir o auge da beleza
humana. Um cisne negro, clareado por uma porção de consagração e
aquiescência. Acho que nessa posição, não sou eu que sou a sereia. Ele
acaricia as minhas bochechas com o dedão, como se estivesse pegando em
algo extremamente valioso. Eu não sei mais como piscar e tenho certeza
que Noeeh também não. Archiviéste abaixa um dos joelhos, o colocando no
chão, enquanto o outro é usado de apoio para o seu cotovelo.
Ele continua sem tirar as suas mãos de mim.
Seus olhos piscam e ardem com algo que eu desconheço. Esse
sentimento não é comum na íris magnífica desse anjo, mas eu já o
presenciei nos seus globos antes. Há muito tempo. Quando tinha nove anos.
Quando tinha acabado de me entregar gardênias brancas, minutos após
descobrir a traição. A manipulação. Quando me olhava de longe, analisava-
me na superfície do barco da sua família, enquanto o transporte aquático
saía da costa de Penzance. E aqui está o motivo que o fez cair do céu puro e
santo: obsessão. Porque recordo-me perfeitamente daquele momento, seus
punhos fechados, as flores nas minhas mãos, seus olhos escreviam
promessas no ar, sentenças negras que diziam:
— Mesmo com a traição, você pertence a mim, Morgana. E eu vou
voltar para te pegar.
Pode não parecer nitidamente, mas Archiviéste é um homem
terrivelmente possessivo. E ele me considera dele desde do dia em que me
viu. Sua boca se aproxima do meu ouvido e eu o ouço sussurrar:
— Estou te sentindo muito molhada. — Isso pode ser interpretado
em tantos sentidos. — Você pode acabar pegando um resfriado, minha
raposinha.
Antes que eu possa respondê-lo, ele me corta e continua:
— Quer que eu te seque, Villain? — questiona sem sorrir. Meu
corpo estremece com a capacidade avançada da minha imaginação. Estou
alucinando. Fantasiando detalhadamente o diabo passando a ponta da sua
língua na minha barriga e depois descendo. Descendo. Abaixando até
chegar em um lugar pequeno, pulsante e específico que grita por ele. Está
chamando-o tão alto que até a lua consegue ouvir. — Posso fazer isso
usando a minha língua.
Estou completamente em choque. Paralisada. Estática. Bloqueada
para tentar retrucar. Meus olhos estão arregalados e meus lábios estão
abertos, já os seus, se transformaram em um sorriso indecente. Sacrílego e
artístico. Um rubor escarlate sobe pelo meu rosto, pintando-o para ele. O
pirata de olhos roxos arqueia a sobrancelha, tentando conduzir-me a falar.
Como se aquela pergunta realmente fosse séria. Eu quero? Ou não, talvez
sim, ou apenas um talvez. Não sei. Não alcanço dom de formar uma linha
de raciocínio média. Sua língua cutuca a sua bochecha e, como eu não falo
nada, como o silêncio predomina no local, ele leva isso como um sim. Sim,
sim, sim, sim. Eu posso querer um sim? Dúvidas. Muitas escolhas e
nenhuma me parece a certa. Correta. Aperfeiçoada para a minha pessoa.
Respeitável para a nossa concorrência.
Sinto a sua boca tocar a minha pele.
A partir de hoje decreto que não quero sentir mais nada além disso.
E todo o respeito, a vontade de me aperfeiçoar e as questões que parecem
enigmas me escapam da mente. Archiviéste está secando-me com os seus
lábios, mas ainda sinto-me extremamente molhada. E não estou falando do
líquido esbranquiçado que se mescla com a água e localiza-se entre as
minhas pernas. Meu Deus, não! Estou me referindo ao excelente impacto
que a sua cavidade bucal causa na minha epiderme. Céus, acho que estou
sendo beijada por águas noturnas que habitam o mar. Estou sendo
acariciada pelas cristas marinhas das piores ondas traiçoeiras e assassinas.
Estou sendo tocada pelos vales. Atraída pela sereia. Outro beijo é
depositado na região do meu pescoço e prendo o som prazeroso que cobiça
sair da minha garganta.
O diabo não pode ouvir isso.
Quanto mais ele me seca, mais difícil fica segurá-los na minha boca.
Eu não quero que isso acabe. Estou aprofundada nessa sensação. Estou no
fundo da piscina sem ao menos perceber. Noeeh sela a minha pele
novamente. Meus ossos tremem com a sensibilidade da minha estrutura.
Considero isso como uma traição. Quero agarrar os seus fios brancos e
fazer com que o homem segure a minha cintura. Desejo sentar em seu colo
novamente. Quero encostar. Imprensar. Cobiço ser tocada. E ele sabe,
entende tudo só pela forma como eu o seguro. Seus olhos disparam para a
minha face desnorteada. Necessitada. Os cantos da sua boca se elevam com
a vitória. Isso para Noeeh é uma vitória. Ver-me decaída e carente por algo
que somente a sua boca pode me entregar. Reprimo os meus lábios e pisco,
olhando descaradamente.
O seu sorriso escorrega e o cisne fica com uma expressão fechada.
Encrenqueira. Sinto o material da sua luva na minha pele. Primeiro na
região da bochecha, depois descendo pelo pescoço. Lentamente. De uma
forma quase tão demorada como o caminhar de uma tartaruga. Noeeh para
no meu ombro, movimentando somente os dedos naquele local, brincando
com algumas gotas de água. Pergunto-me o porquê dele não ter tirado tudo.
Odeio serviços pela metade, mas não posso questioná-lo por isso. Respiro
profundamente, o capitão para de brincar com as partículas líquidas de
hidrogênio misturadas com oxigênio e me encara. Fitando-me naturalmente.
Quando eu menos espero, quando o homem percebe que eu estou
hipnotizada, ele me empurra novamente para dentro da piscina. Estragando
as consequências da sua voz e me deixando afundar na água.
Acho que nunca o xinguei tanto quanto o estou xingando neste
momento. A pressão da água bate novamente na minha epiderme, me
fazendo ficar extremamente irritada. Quero que esse filho da puta pague
por isso. Balanço as pernas de um lado para o outro, ganhando impulso
contra água, e nado até a superfície. Meus cabelos estão jogados para trás e
meus ombros tremem com a rajada de vento que passa pela casa que
aparenta uma caverna. Trinco o maxilar e estreito os olhos, respirando
fundo para me levantar daqui. Analiso-o parcialmente, seu rosto está
iluminado e seus caminhos estão à mostra para a atmosfera, enquanto ele
caminha para fora, devagarinho, me deixando aqui. Ao menos era o que eu
pensava que fosse fazer. Mas ele vira os calcanhares, tira a jaqueta e vem
até mim. Noeeh para perto da borda piscina, com a vestimenta no
antebraço, me esperando sair.
— Você vai pegar um resfriado se continuar na água fria. Saia daí,
Villain — ordena, frugal. Não há nada na sua face que eu possa interpretar,
ele apenas manda. — Não quero ter que cuidar de você depois. — Sua
respiração está apressada. — Saia antes que eu resolva te tirar à força.
Forço os meus braços a servirem de apoio ao meu sistema.
Pressiono os músculos a aguentarem o peso e tiro as pernas da água, que
resfria conforme o tempo passa. Apoio o joelho na pedra do piso e levanto-
me logo em seguida. Passo os braços em volta do meu corpo, sentindo o ar
gélido arrepiar os pelos da minha pele, mas essa sensação glacial e horrível
não permanece por muito tempo, não quando o garoto de olhos violetas
coloca o casaco de couro e me cobre com a vestimenta. Desvio os olhos e o
encaro, perguntando:
— O que pensa que está fazendo? — Minha melodia sai trêmula e
fraca. Archiviéste se afasta de mim e para ao meu lado.
— Evitando problemas para a minha cabeça — diz, sem explicação
lógica.
— Eu te odeio — expresso, vasculhando um defeito no seu rosto.
Minha garganta aquece quando não acha. Será que ele é mesmo tão perfeito
assim?
— Eu não sei se você percebeu, mas eu também não sou o seu fã
número um — provoca, rebatendo a minha pirraça.
Meu rosto se ilumina ao respondê-lo de forma adequada e justa,
dizendo:
— Você me testou, me caçou e depois me perseguiu pela cidade —
começo a falar, chamando a sua atenção. — E alguns dias após isso, me
colocou sentada no seu colo e traçou selares no meu pescoço. Eu não sei se
já percebeu, mas você é, sim, o meu fã número um. — Archiviéste arqueia
a sobrancelha. — Só tem que melhorar nos presentes e nos beijos.
Ouço uma risada sinistra ecoando pelo lugar, muito ruim mesmo.
Inclino o rosto para o lado e flagro o homem de olhos azuis fitando-nos
com um sorriso estampado que mostra as suas gengivas. Seus ombros
tremem com a risada sincera que ele elabora.
— E eu jurando que você era bom de cama — o príncipe dos sete
mares repreende o homem em uma velocidade estonteante. Seu olhar é tão
aterrorizador que quase posso classificá-lo como maligno. Ah, mas com
isso eu concordo. Noeeh deve ser muito bom na cama. Sorrio com o
pensamento e o examino. Sou pega de surpresa quando já o encontro me
olhando. Expressão séria e olhos furtivos. Um dos seus olhos diz que quer
me matar. Já o outro coloca a proposta ainda de pé.
— Você não tem mais nada para fazer, Sahil? — questiona,
cruzando os braços. Seu rosto se virou, dizendo: — É impressionante como
os seus conceitos mudam conforme o ambiente, Villain. Você não achava
isso quando estávamos na fortaleza da morte.
Quando eu queria dançar para ele.
— Seu marido não sabia te dar prazer, coisinha atrevida? —
pergunta-me, me deixando boquiaberta. Um sorriso demoníaco se instala
em seus lábios cortados pelo vento e ele começa a caminhar para longe.
— Vamos. — Ele continua e depois para perto da porta, esperando-
me passar primeiro. Não sei se porque ele é um cavalheiro ou se quer olhar
para minha bunda. Até porque eu dei permissão para que ele olhasse
naquele dia. — Tenho que te mostrar um lugar antes de colocá-la para
dormir.
— Não sou uma criança — murmuro, quase com uma pirraça. —
Sou oito anos mais velha que você.
— Se fosse, seria muito mais fácil de cuidar. Não me traria tantos
problemas — ele rebate, cínico. — Agora, vamos, antes que eu mude de
ideia e te tranque em um quarto.
Reviro os olhos, ainda querendo enforcá-lo com as minhas próprias
mãos. Começo a andar, devagar, ainda sentindo um pouco de frio nas
pernas. O couro me aquece muito bem, mas não cobre os meus tornozelos.
Puxo a vestimenta e seguro com mais firmeza. Reviro os olhos quando
passo pelo cisne negro, caminhando em sua frente sem saber para onde
tenho que ir. Mordo a língua por ser muito orgulhosa e não querer perguntá-
lo onde vamos. Deixe-o tentar me atacar de fascínio. Tentar espantar minha
vontade de matá-lo. Tão lindo e ficaria mais bonito ainda morto em um
caixão decorado com as mesma enguias que ele supostamente colocou no
poço de água. Amaldiçoados sejam aqueles remédios que ele contrabandeia.
Tenho que ficar mais esperta quanto a isso, não posso deixá-lo me dominar
novamente. Não dessa forma. Nunca mais.
Inalo o ar em movimento que se encontra em uma temperatura
glacial e demoradamente respirável. Meus pelos estão eriçados e meu
tornozelo ainda se encontra descoberto. A areia da costa de Penzance me
abraça, não querendo me deixar sair dali. Ansiando pela minha volta e
algumas, cobiçando pela volta de Archiviéste. Almejo repreendê-las pela
troca de lado. Quero avisá-las que isso deveria ser considerado uma
hipocrisia e desonestidade, mas eu seria consideravelmente maluca se
conversasse com a areia, mesmo sendo uma das únicas matérias que deram
ouvidos a minha segunda personalidade. O meu lábio inferior treme com a
corrente de vento que passa perto das ondas e rebola de um modo
desengonçado para brincar com as copas das árvores verdes. Como um
compositor que dá voltas e mais voltas com a letra da sua música,
escondendo o seu verdadeiro significado de uma forma caliginosa.
Noeeh Archiviéste está atrás de mim, acompanhando-me da mesma
maneira de sempre. Silencioso e protetor. Seus passos são silentes e sua
boca se encontra calada. Ele observa o mar sossegadamente enquanto
caminha pela areia. A única diferença de hoje e aquele dia em que fomos
para fortaleza da morte é que, desta vez, sou eu que me encontro com o seu
casaco de couro. Sinto uma pressão contra os meus pés e quase tropeço na
areia, piso fortemente em uma outra região e estabilizo as minhas pernas. E,
sem olhar-me diretamente, ele murmura:
— Isso é o que acontece quando você não olha para frente —
repreende-me, como se não fizesse o mesmo.
— Você está olhando para o mar! — acuso, levemente irritada.
— A diferença é que eu sei andar — revida, ainda sem desviar das
águas. Sinto uma mão nas minhas costas e elas não estão enluvadas, meu
campo de visão se desvia e eu analiso Sahil. O garoto sorri como uma
cobra. Ele é uma cobra. Ele intimida as minhas pernas a andarem quando
coloca força e me empurra para frente. Reciclo a minha paciência e a
coloco novamente no meu cérebro, apenas revidando o homem de fios
negros.
— Eu sei andar, bastardo — resmungo, dando-lhe um sorriso falso.
Sahil devolve-me na mesma intensidade e faz um sinal com as mãos, como
se fosse me jogar novamente.
— Pare de empurrá-la. — A voz conhecida e hipnótica ecoa,
fazendo o garoto abaixar as mãos e não repetir a ameaça. Seu rosto se
contorce e a expressão se fecha. Pergunto-me por que ele está aqui.
— Achei que gostasse de me ver sendo empurrada — brinco,
lançando-lhe um olhar de desprezo. Noeeh morde os lábios e sorri, ainda
sem olhar para mim. Ele ama tanto observar o oceano e talvez eu goste de
observá-lo admirando, por mais que prefira seus olhos em mim.
— Somente quando eu estou a empurrando. — Algas de fogo
queimam o meu rosto de vergonha. Ouço uma risada do garoto atrás, mas
decido ignorar para não perder o pouco de controle.
— Você fala palavras tão bonitas, Archiviéste. É uma pena não
poder dizer o mesmo sobre suas atitudes. — Tento mudar de assunto,
desesperadamente, aflita por ficar vermelha tão fácil, ou por não ter uma
mente pura.
— Faça de novo — ele pede, deixando-me confusa. Fazer o quê?
Por céu, fale a minha língua, garoto!
— O quê? — pergunto, de uma maneira inexplicável.
— Minta para si mesma — responde, analisando os vales
assassinos. — É divertido ver você fazendo isso, principalmente quando eu
te conheço tão bem.— E aqui está o maldito tom vermelho que eu quero
afastar. Quero discutir com minhas bochechas por desconsiderar as minhas
vontades.
— Se apaixonar pelo mar é como amar um assassino potencial. — O
cisne soletra as palavras, dolorosamente. Como se se identificasse com elas.
Como a dor de agulhas ferindo a sua pele. Ele muda a posição da cabeça,
refletindo essa corrosão na sua íris violeta. Não é sobre o mar que ele está
falando. — Você não se arrepende, talvez seja isso o que mais me dói.
Mentir para mim mesma é a melhor coisa que eu sei fazer. E nessa
situação específica, vou continuar mentindo. Não quero enfrentar isso por
agora. Ignoro as últimas palavras do garoto e prossigo nos passos lentos. O
silêncio está aterrorizado pelas frases que se instalaram na nossa
caminhada. Ninguém fala nada. Até mesmo as ondas estão caladas. Essa ida
até o local desconhecido parece ser eterna, mas agora, parece uma
verdadeira corrida perpétua. Como rodar o mundo achando que ele é plano.
Não há buraco onde eu possa me esconder. Quero sair voando daqui.
Cerca de alguns minutos depois, avisto um lugar que se parece com
um enorme precipício. E é. Há um amplo buraco profundo na parte interna
da parede que compõe a região alta do relevo. As docas. O centro do pilar
econômico de Archiviéste se encontra dentro das grutas de Penzance.
Arregalo os olhos quando avisto imensas passarelas de madeira quase
submergidas nas águas noturnas. Elas são baixas, mas muito resistentes.
Foram feitas para contrabandear nas madrugadas. Com silêncio e
muitíssimo mistério, tudo por debaixo dos panos caros e vermelhos da
monarquia. Elas estão muito bem escondidas. O ambiente é tão grande e
bem elaborado que aparenta ser uma fortaleza soterrada. Há várias pessoas
circulando pelo local, barcos pequenos e amarrados no material que se
forma através do tronco das árvores. Imagino que os navios maiores se
localizam dentro das grutas, escondendo-se de tudo e todos.
Principalmente de mim.
Quanto mais perto chegamos, mais visíveis ficam as caixas com os
variados objetos que não se assemelham uns com os outros. Há vários
recipientes de inúmeros tamanhos, cada um com uma substância diferente.
O anjo caído nunca precisou da minha empresa, muito pelo contrário, os
meus negócios perdidos só serviram como um manto invisível para que o
seu pudesse trabalhar sem ser atrapalhado. Ele tem uma instituição muito
maior. Quanto mais meu corpo caminha, mais consigo avistar a
profundidade do buraco no precipício. Ando apressadamente até a entrada
do ambiente, perturbada com a novidade que ainda está sendo processada
pelos meus neurônios. Coloco a mão em uma pedra qualquer para ajudar-
me a apoiar e continuar de pé, e recebo tudo lentamente.
Vasculho o início da gruta com os olhos arregalados, assombrada
com a extensão da localidade em que se instala a sua corporação. Se antes
eu tinha uma pequena esperança de que ele não ser o homem mais rico da
cidade, agora ela foi completamente estilhaçada. Nem a própria Penzance
conseguiria bancar uma instituição como essa. Há barcos enormes dentro do
estabelecimento, que se parece quase como uma caverna organizada e
evoluída. Escondida e avançada. Finalmente algo em que eu não posso
tocar. Há abundantes lamparinas nas paredes, milhares de baús, caixotes
espalhados de um modo categoricamente organizado, substâncias
medicinais e, óbvio, ouro. Há muita riqueza e moedas na gruta, e olha que
estou apenas no começo.
Ele é um homem fodidamente rico.
E eu não posso destruí-lo ou tomar os seus bens, porque se eu
acabar com isso daqui, eu acabo com todo o território do Submundo. E foi
algo que eu jurei proteger. Ou quebro a minha promessa mais valiosa, a
única que eu deixei de pé, ou acabo com a raça da família Archiviéste.
Estou entre o que amo e o que mais odeio. O cisne negro entra nesse lago já
controlando o monstro que há no fundo. Ele entra nesse jogo sabendo que
eu não posso ganhar. Colocou-me em um navio sabendo como escapar caso
ele afundasse. Noeeh me encurralou economicamente e agora,
emocionalmente, e ainda está pretendendo encurralar fisicamente. Meus
pensamentos estão em uma linha dupla entre hidrófobo e temor. Ele coloca
uma arma na minha cabeça sem possuir uma. Deve ser por isso o fato de ser
considerado tão inteligente.
Escuto passos conhecidos e marcados se aproximando de mim. Ele
estaciona ao meu lado, com as mãos para trás e olhos extremamente
ardentes. Fixo o meu campo de visão na sua face e engulo em seco quando
o pego sorrindo. O mar está fazendo barulho novamente e, por favor, que
ele nunca mais fique calado. Meu coração acelera quando uma das mãos do
garoto encurta a distância que tinha entre meu rosto. Ele coloca uma mecha
do meu cabelo atrás da minha orelha, arrumando-o.
O anjo me fita por alguns segundos, sua luva escorrega e para no
meu queixo. Seu dedo indicador sobe um pouco mais na minha face para
que ele possa inclinar e a analisar da forma que quer. Archiviéste muda o
peso do corpo de um pé para o outro e depois aproxima seus lábios do meu
ouvido. Se eu acabar com este lugar, Penzance cai sob terra. Se eu acabar
com este lugar, Penzance cai sob terra. Se eu pensar em destruir este lugar,
a cidade afunda no mar, porque as grutas são as colunas que sustentam o
Submundo no continente. É como dar um tiro na própria perna e torná-la
incapaz de qualquer movimento. O ponto estratégico perfeito.
Extraordinariamente perfeito. Qualquer vacilo da minha parte e a única
coisa que me resta e que eu mais amo irá afundar-se na minha primeira
paixão. Todos irão morrer. Tudo o que meus pais construíram será
destruído. Ele colocou uma faca no meu coração.
Passou esses anos todos projetando algo que demora décadas ou até
mesmo séculos para se pensar. Noeeh criou raízes na terra que eu achei que
fosse uma areia movediça, e é por isso que ele venceu este jogo. Prendeu o
meu rei.
— Xeque-mate, Morgana — diz no meu ouvido, baixinho. Tão
baixo que mal posso escutar. Ele passa mais uma vez a luva nas mechas
soltas e molhadas do meu cabelo, acariciando-as, logo depois o garoto se
afasta e começa a se distanciar.
E pela primeira vez depois de ter submergido aquela aberração tosca
que foi a minha segunda personalidade, eu me vejo sem saída. Como
enterrar uma faca em mim mesma sem machucar o meu coração? Como
sair de um labirinto sem saída sem precisar quebrar as paredes? Como tirar
uma bomba das mãos de uma criança que acha que é um brinquedo? Como?
Como? Pelo amor, como? Eu não sei o que devo fazer. Mordo as
bochechas, tentando prosseguir com o pensamento. Será que devo...
Suspiro, atormentada por uma nave que veio do espaço, mas que seria uma
ideia ótima e perigosa. Xeque-mate, Archiviéste?
CAPÍTULO XV
A sensação fria e perturbadora de agonia e prejuízo mental — que
recebo como punição dos oceanos por ser desobediente por tantos anos, que
ganho como dádiva por não escutá-los, por não voltar a habitar as suas
cristas, por recusar-me a afundar os marinheiros — rodopia freneticamente
como as brisas dos mares em pedestais de ventos violentos e sanguinários, e
acerta a minha vitalidade como a água dos oceanos que atinge as pedras da
costa oeste de Penzance. Consigo vê-la passeando centímetros acima das
ondas colaterais da movimentação terrestre. Elas comportam-se como
tsunamis.
Derrubam como gladiadoras.
Mesmo não tendo um terço da força de um vale. Mesmo não tendo
metade da agilidade de uma sereia. Mesmo assim conseguem, e são piores
que os dois juntos. Um exemplo de movimentação. Uma perfeita
personificação da minha pessoa. Além do mais, eu consigo ver o meu amor
balançando com as sensações. Eu também estou ali. Bailando com a
melodia do líquido transparente feito da mistura de hidrogênio e oxigênio.
Caminhando com o vento que carrega as minhas emoções. Dançando como
uma viúva que rezava pelo fim do seu casamento. Estou movendo-me.
Movendo-me. Movendo-me. Movendo-me.
Não sei onde estou, não sei quais são os tipos de pisos em que meus
pés rodopiam, se são venenosos, tóxicos, quebrados, instáveis, perigosos ou
mortíferos, só sei que estou me movendo. Só entendo que quero continuar
oscilando. Desviando-me dos cacos de vidros que há entre os meus dedos,
que perfuram o maior órgão do meu corpo. E mesmo vendada, mesmo com
uma faca na minha garganta, estou me desfazendo dos pressentimentos de
mortes que assombram — assombravam — a minha mente. Estou em uma
mudança de estado físico, como a água fria colocada em uma chaleira
incinerada pelo fogo eterno. As partículas do líquido transparente
simplesmente evaporando, mudando a sua forma física.
Estou seguindo os passos da mesma substância translúcida que
compõe setenta por cento da Terra.
Mas eu disse, não disse? Eu não disse a você que voltaria a andar?
Não prometi a Archiviéste que voltaria a pegar fogo?
Talvez eu tenha até que agradecê-lo, já que só voltei a queimar pela
combustão das cinzas em seus olhos. Eu tenho que lembrar da minha
origem. E não é nada mais e nada menos do que uma linda e magnífica
traição. Realeza. Fui criada para ser uma arma e ele sabe disso. Fui moldada
para ser a dama perfeita vestida de marsala. Ele soube no momento em que
nós nos conhecemos. E provavelmente o homem de olhos violetas também
compreende o próximo passo que eu vou dar. Não adianta eu tentar
combatê-lo com o que eu não tenho. O cisne negro é um garoto
extremamente inteligente. Noeeh também foi uma criança prodígio que se
destacou na estratégia, raciocínio lógico e habilidades corporais como força,
agilidade, rapidez e resistência, ou seja, um ser humano completo, elegante
e ideal para uma mulher solteira que pretende se casar.
Ele é o indivíduo implacável.
Como ele próprio já se definiu para mim uma vez.
Tentar reduzir os seus neurônios ou duvidar da sua capacidade não
vai me ajudar a derrotá-lo. Tentar ser mais inteligente ou usar Penzance
para expulsá-lo também não vai funcionar mais. Archiviéste — além de ter
me colocado em uma gaiola muito bem-acabada — têm muita influência,
autoridade, poder, e o pior, lealdade e fidelidade. O meu diabo tem o
respeito da população local. E isso é muito mais difícil de se conseguir do
que o temor dos outros, mas também muito mais complicado de se derrubar.
Noeeh fez da minha cidade um território seu. Tenho que levá-lo para fora de
Penzance ou buscar alguém muito mais forte para colocar todos em risco.
Vou ter que destruir o Submundo e depois reconstruí-lo com minhas
próprias mãos.
Vou ter que colocar Penzance de volta no mapa monárquico.
Fazê-la ser novamente vista pela realeza. Até porque não é verdade
que existe ouro aqui? E eu sei onde está. Fui eu que escondi com a ajuda de
uma amiga bem íntima e importante do portador dos olhos violetas. Uma
pessoa que hoje não se encontra mais entre os vivos. Eu era bem pequena,
mas lembro-me perfeitamente da linda mulher de fios brancos, cheios e
ondulados, como os do garoto. Aqueles lindos olhos roxos fortes,
sufocantes e invasivos, que fariam a lua despejar solidão e o mar secar com
a fragrância do seu cheiro. Ela era uma mulher extremamente impecável
para uma Archiviéste, isso todos os Villains tinham que admitir. E até tomar
um certo cuidado, já que além de esperta, era extremamente leal àqueles em
quem ela confiava. Calia Archiviéste teve um fim triste. Muito injusto para
uma pessoa tão esbelta. Ela foi assassinada a mando do seu marido, na
frente do próprio filho.
O anjo negro tinha apenas cinco anos quando presenciou todo o
ocorrido, mas duvido que ele tenha se esquecido. Na última vez em que
conversamos, Noeeh ainda se lembrava de todas as cenas. Elas retornavam
incansavelmente a sua cabeça. Talvez esse seja o grande motivo da tristeza
nublar nitidamente o seu olhar violeta. Se eu me encontro vazia, Archiviéste
se encontra morto. As suas pulsações ainda pulsam, o seu órgão ainda bate.
E ele está aqui, completamente morto. Andando e falando como um cadáver
ambulante. Esse é o principal motivo de eu denominá-lo com o olhos das
cinzas. Tão lindo. Tão falecido. De um jeito que só ele consegue ser.
Apenas ele.
Viro-me novamente no tecido macio e gelado da cama em que estou
deitada. Sinto o lençol de linho azul apertar minha pele, encontrando-me
presa na própria coberta. Um gemido matinal pula dos meus lábios secos
pela falta de água, fazendo-me bocejar logo depois de liberá-lo. Ouço um
barulho — muito parecido com um estalo — ecoando dos meus ossos e
então sinto o prazer de estar viva. Por mais que eu esteja presa em uma
jaula para bestas. Uma prisão com sangue e escombros. As grades são feitas
de ossos e devastação. Estou aprisionada em um verdadeiro santuário feito
para animais assassinos, no entanto, ele disse que me colocaria aqui, não
disse?
Não pretendo ficar por muito tempo.
Tento rolar novamente na cama, desprendendo-me dos lençóis em
que Noeeh me colocou. Acredito que a porta do quarto esteja trancada. É
óbvio que está trancada. Mordo a língua e abro os olhos, deparando-me
com a estrutura branca da sua casa. Não sei do que é feita, talvez alguma
espécie de madeira? Pedra? Parece ser muito liso para uma pedra. Isso é
muito estranho e muito diferente da minha casa. Vasculho o lugar com os
olhos e encontro a parte de cima da minha cama. Parece o ambiente de uma
princesa, mas uma princesa fria, solitária e obviamente cuidada. Há cortinas
azuis e brancas no local, tanto na janela quanto de decoração na cama. Há
tapetes no quarto e alguns móveis de madeira na lateral. Espelhos limpos,
livros duvidosos, perfumes doces, quadros sem cores quentes enfeitam
certas partes da parede oposta à janela. E há um vestido branco sobre a
cadeira de madeira. Ele é lindo, lindo demais para ser real.
Estreito os globos oculares quando sinto os seus olhos observando-
me. Encaro o escuro, tentando identificar algo. Algo não, alguém.
Archiviéste me examina de volta, totalmente calado. Seus braços estão
cruzados na região do seu peitoral. Sua expressão está séria e, pelo pouco
que eu consigo enxergar, seu cabelo está perfeito. Não preciso descrever
algo que já passei horas recitando o quanto é gracioso. Se bem que eu
poderia ficar horas especificando quão lindo é esse garoto. Facilmente
escreveria um livro com as mais lindas poesias descrevendo cada detalhe,
principalmente as suas sete manchinhas castanhas no osso da região malar.
O seu brinco de búzio vermelho. A sua boca. Seus cílios cheios. E suas
luvas, luvas que me escondem o que aconteceu com a sua mão. Desta vez,
Noeeh está com luvas brancas. Incrivelmente brancas. Sem manchas ou
qualquer subtom. Estou olhando para o perigo.
Uma angústia incrivelmente magnífica. Sua calça é branca. Tudo é
branco. O casaco. A bota. Seu cabelo. Com exceção dos seus olhos, a única
coisa com cor é a pele castanha e o brinco ensanguentado. Pergunto-me se
ele está tentando ser confundido com os anjos puros do famoso Deus.
Pergunto-me se ele está tentando limpar-se de toda a morte que exala e
cobre o seu ser. De todas as memórias ruins. Casos perdidos. Corações
quebrados. Mente devastadas.
Será que está tentando se limpar do sangue de sua mãe?
O campo de visão desvia do seu rosto e para nas suas mãos e então,
pego-me querendo sussurrar novamente no seu ouvido. Dizer que ele pode
confiar em mim.
Agir como a cobra que agia dez anos atrás. Seguro a minha língua
dentro da boca e então apenas pergunto:
— O que quer, Archiviéste? — questiono, direta. Se correntes de ar
estivessem dentro desse quarto elas estariam brincando com o seu casaco
que chega até os joelhos, ou dançando com seus fios platinados. Eu não sei
o que queria ver mais. — Não acha que já me atormentou o suficiente essa
semana?
Seus ombros tremem e ele sorri. Sorri como um lunático que sabe
exatamente o que quer. Ainda encostado na parede do local, Noeeh
simplesmente responde:
— Você atormentou a minha mente por dez anos — disse, desviando
o rosto e olhando pela janela que mostra a neve caindo sobre as ruas
acabadas de Penzance. — Só está pagando pelos seus atos.
— Se você não entrar na guerra do Submundo como rainha, se torna
um peão descartável para ela — expresso. Como esse garoto não entendeu
que estávamos em guerra? Ainda estamos. Inimigos. Para sempre inimigos.
— Cadê a sua autopreservação, Archiviéste?
— Autopreservação não está no meu vocabulário, Villain. — Isso já
era de se imaginar. — Aliás, não há nada aqui que alguém possa preservar.
Está tudo acabado. Restou algo dele que alguém possa amar?
O cisne negro me analisa como alguém que quer dizer algo além do
que a sua boca permite, mas seu olhar desvia novamente para a neve.
— Arrume-se e venha tomar café da manhã — ordena,
pacificamente. — Se perder o horário, não vai ter mais comida. — O
homem se desapoia da parede, descruzando os braços. Ainda não olha para
mim. — Só não posso garantir que não esteja envenenado
— Faria isso com uma mulher? — interrogo, ironicamente.
— Não faz ideia das coisas que eu faria com você. — Parece ser
uma ameaça. Parece. — Independente de ser uma mulher. Se eu me casasse
contigo, Morgana, eu obviamente te envenenaria.
Respiro fundo. Tão fundo que meus pulmões se sentem satisfeitos.
— E se eu aceitasse me casar com você, Archiviéste, beberia o
veneno — confesso, frugal. — Mas também te envenenaria, só que com o
antídoto do meu veneno.
Ele finalmente olha para mim. Como uma borboleta pousa em uma
flor, delicado e simples.
— Você não sabe o que a cura faz com quem não está doente. — A
filosofia ressoa na minha melodia.
— Mata, raposinha — Noeeh responde, totalmente certo. —
Procurar algo que não lhe cabe no momento te adoece. Querer algo que à
primeira vista te faria bem, te engana. Corrói o seu coração. E no final, é
você por você e a sua dor.
Fico totalmente em silêncio quando o capitão volta a caminhar para
a porta. O homem umedece os lábios mais uma vez, passando apenas a
ponta da língua.
— Apresse-se, Villain. A comida não vai te esperar. E os homens
esfomeados que estão em uma espécie de refeitório também não. — Mudou
o tom de voz para algo mais independente.
Aceno com a cabeça, devagar. Não sei por que estou cogitando
descer lá e comer junto de todos eles. Só que, parando para pensar melhor,
seria burrice ficar fraca por algo tão frugal quanto não querer comer, ainda
tenho que ter forças para correr quando precisar fugir daqui. Só tenho que
achar uma brecha pequena e estreita nessa funda e extensa caverna. Uma
grade com os ossos trincados. Uma pequena saída. Solto a respiração
pesada e envolvo os braços em torno de mim, alisando os meus músculos.
— Noeeh? — chamo-o, fazendo parar de andar.
— O que deseja de mim, Morgana? — pergunta, como se tivesse
recebido uma dose grande de anestesia.
— Você ficou me observando a noite toda? — interrogo,
examinando as pequenas olheiras roxas ao redor da parte inferior dos seus
olhos. Isso não o deixa menos bonito, nunca. Acho que não há algo decente
neste mundo que deixe esse garoto menos bonito. E saber que ele ficou
comigo neste mesmo quarto, me observando por horas mais uma vez,
entender que aquele pigmento levemente arroxeado está estampado no seu
rosto por minha causa, apenas por mim, deixa-me animada de uma forma
que eu não deveria estar.
— Vista-se logo, mulher. — O anjo caído ignora totalmente o meu
questionamento. — Eu não vou impedi-los de comer e também não vou
fazer mais para você.
— Você não respondeu a minha pergunta. — Insisto pelo bem da
verdade. Acho que é uma das primeiras vezes que eu quero ouvi-la. Gosto
de ouvir coisas que me beneficiam.
— O que quer que eu diga, Villain? — Seu tom de voz não está tão
alto, apenas rígido. Noeeh não é o tipo de homem que levanta o tom de voz
para uma mulher. — Quer que eu minta para você?
Ele não respira. Sua pele perde toda a cor castanha que possui.
Archiviéste está tão vazio.
— Quer que eu diga que eu sentia vontade de entrar lá e te levar
para o outro quarto? Que eu não queria te fazer esperar? Sofrer? —
Continua, com a mesma melodia. Acredito que o homem está mencionando
as vezes em que eu estava sentada no sofá, esperando Edward acabar com
suas amantes. — Enquanto seus dedos batucavam um no outro, eu sentia
vontade de arrombar aquela porta e beijá-los até você parar de tremer.
Sentia vontade de secar as suas lágrimas com os meus toques, até que você
parasse de chorar. Quer que eu diga que sentia vontade de te fazer feliz?
Que eu sempre senti? É isso que você quer que eu fale? Quer que eu soletre
com todas as letras e dores o quanto paguei por não ser capaz de esquecer
você?
Agora sou eu que não respiro. O coração que eu não acreditava mais
que tinha, agora está doendo.
— Só quero que diga se me observou à noite, garoto — expresso.
Não, apenas falo. Não sou capaz de expressar o nó corporal que ele causa
em mim.
— Não — responde. — Eu não perderia meu tempo vigiando você.
Então por que passou noites em claro, vigiando a costa depois que
eu tentei me afogar? Quero que ele me diga um motivo. Apenas um. Noeeh
volta a caminhar, passa pela porta, um pouco desnorteado, mas três
segundos depois o homem volta, mas não entra no quarto. Apenas coloca a
mão na madeira e mostra o seu lindo rosto.
— Eu não sou um demônio, Morgana. — Eu até teria dúvidas, mas
ele é um anjo, um anjo negro. Nada mais celestial entra na minha mente. —
Para a sua sorte, sou apenas um humano, porque se eu fosse, marcaria a sua
alma e te perseguiria até o purgatório, e lá eu te domaria e te prenderia
como minha condenada. Mas não se iluda, a falta dessas regalias não irá me
impedir de te assombrar.
Tenho certeza que não. Para um humano, ele está sendo bem
espiritual.
— Somos inimigos — reforça, mas isso não precisa ser colocado na
minha mente. Se não fosse loucura, diria que precisa ser colocado na dele.
— Se eu te dissesse todas aquelas palavras, estaria mentindo. Nunca
pertencemos ao mesmo mundo e isso não irá mudar. Além do mais... —
Seus olhos pousam sobre a minha coxa, mirando o corte superficial que ele
mesmo fez. O platinado sorri e com a maior indecência que já existiu em
um homem, o diabo pergunta: — Pelos céus, minha raposinha! Quem foi
que fez isso com você?
Sua mente é tão cretina que quero transformá-la em um raio redondo
e jogá-la no Ponto Nemo. Para que assim ninguém possa ter acesso aos seus
discursos falsos e manipuladores. Talvez assim, eu não fique enciumada
quando ele chegar perto de outra mulher.
— E por que você se importa, garoto? — Entro na brincadeira. Dois
cretinos. Fomos feitos um para o outro, destinados a se matar para dominar
o que ambos desejam e amam. Laços atados que, juntos, se transformam no
enfeite perfeito. — Pelo que sei, você tenta me matar desde que se entende
por gente.
Sua risada é a coisa mais verdadeira que já vislumbrei durante todos
os anos da minha vida. Meus ouvidos suplicam por mais sons assim,
autênticos, estou cansada de tanta falsidade.
— Estou perguntando porque quero elogiar esse indivíduo que fez
um excelente trabalho. — O homem umedece os lábios, caminhando até
mim. — Mas, é claro, depois que o deixasse engasgando com o próprio
sangue num beco sujo da cidade. — Archiviéste agarra as minhas
bochechas com as mãos enluvadas, dizendo: — Aliás, já avisei a todos que
só eu posso machucá-la. Se alguém que não seja eu a ferisse naquele dia,
Morgana — fala, referindo-se ao deslumbrante dia da minha vida que
denomino como o capítulo do bordel. O dia em que me senti renascida. —,
eu juro por todas as crenças que existem neste mundo que caçaria e mataria
todos que estavam presentes naquele lugar.
Noeeh solta as minhas bochechas e se afasta, percebendo o que
acabou de falar. O portador dos olhos mais lindos que já vi some como uma
gota de água perto do calor. Demorou alguns segundos para eu conseguir
processar tudo o que aconteceu. Tudo o que acabou de acontecer. Arrasto os
pés pela cama e os coloco no chão, indiferente. Sinto o tecido gostoso da
tapeçaria e pressiono meus pés contra o chão, fazendo-os suportar meu
peso. Caminho pelo quarto e pego o vestido branco que estava apoiado na
cadeira. Ele é simples. Sem muitos detalhes. Apenas mangas compridas,
decote comportado e forro. Não há babados. Jogo a peça de roupa sobre a
cama e deixo a camisola deslizar até ao chão, colocando a vestimenta logo
depois. Encaro-me em um dos espelhos, passo a mão pelos meus fios de
cabelo negros, abaixando-os levemente.
Muitos dizem que se parecem com um leão quando acordam, mas
eu não, eu me pareço um bicho-preguiça: sonolento e com os fios
levantados. Não importa, porque ainda continuo linda. O meu garoto sabe
muito bem disso.
Começo a caminhar para fora do quarto e me deparo com uma
espécie de mansão com traços da realeza. Onde, caralhos, eu estou? E
porque a casa do garoto é tão linda? Aparenta ter sido projetada pelo melhor
arquiteto da realeza. Preparada para receber um verdadeiro lorde das
correntes marítimas. Tudo parece ter sido feito para abrigar o oceano. Quero
descer as escadas e escorregar pelo corrimão, ou observar a madeira
refinada que compõem os móveis estranhamente azuis. Parece um tipo de
casa do Papai Noel, mas com ares de pertencer a piratas e contrabandistas.
Suja e traiçoeira. Exatamente como eu defini o lugar em que nós crescemos.
Não recordo-me de tantos enfeites — talvez seja porque estava de noite e
não eu conseguia enxergar nada —, mas eu realmente não vi por onde
passei. Agora que fui entender o tipo de prisão de bronze — com toque
índigo e branco — onde eu estou. É tudo tão esplêndido e fabuloso quanto
uma árvore perfeitamente podada. Suas folhas e galhos estão cortados
simetricamente. Há bambolês enfeitando a sua copa.
Há bancos decorando a sua raiz.
É tudo tão encantador que eu esqueço que foi o meu homem triste
quem traçou cada detalhe dessa residência. Enquanto voltava para o meu
quarto, seus marujos me diziam o quão era inteligente e genial por
conseguir elaborar o projeto de um local tão fantástico. E realmente, este
lugar parece ter sido construído por um anjo da luz. Um servo que não
aceita a escuridão. Desço as escadas do ambiente, segurando-me na madeira
que foi feita para auxiliar a descida. Sinto o cheiro de algas marinhas
exalando pelo local. Estranho, já que sou eu que me apaixonei por essa
essência. De um modo abstêmio, eu continuo caminhando até o final da
escada. Vasculho o local com os olhos, notando que não há sujeira no
ambiente.
Não há um grão de poeira neste lugar.
Mas que porra é essa?
Por que isso está me parecendo tão fora do comum? Estou
reconhecendo um lado desse menino que eu não sabia que existia. Ignoro-o.
Tenho que ignorá-lo. É necessário para minha saúde mental e para o lado
emotivo que há no meu corpo. Até porque a conclusão a que cheguei
analisando-o por completo é um pouco medíocre. Muito ordinária e
hipócrita da minha mente. Noeeh é o meu inimigo, porque se não fosse…
Eu facilmente me apaixonaria por ele.
Termino de descer e paro no primeiro andar da casa. As flores
tomam a minha memória. Inclino a cabeça, ouvindo sussurros e mais
sussurros de conversa. Outra coisa sem sentido: geralmente piratas
conversam muito alto. São gritos e escândalos por todo o local. Fofocas
quentes. Gardênias brancas tocam a minha pele. Informações frias.
Segredos impuros. Tesouros amaldiçoados. Contrabandistas marinhos tem o
maldito costume de gritar, espernear e fazer alvoroço por coisas simples e
fáceis de serem resolvidas. A sua lealdade grita nos meus ouvidos. Que
mundo é esse em que eu estou entrando? Eles sequer falam alto. Parecem
até homens civilizados. Quem ensinou isso a eles?
Pelos céus! O que eu estou me perguntando? Quem mais seria além
dele mesmo?
Tenho que ignorá-lo.
O bordel. As prostitutas. A negação de se deitar com outras
mulheres. Flores. Frases. A rejeição. A lealdade. Começo a caminhar —
evitando tudo isso —, aproximando-me das conversas baixas. Diminuo a
distância que há entre mim e a sala de jantar dos homens do capitão.
Quando chego na grande sala, alguns deles olham para mim. Outros apenas
fingem que não veem e continuam comendo. Há vários recipientes de frutas
sobre a mesa. Há pães de inúmeros tamanhos e formatos perto delas.
Algumas comidas eu não consigo identificar, têm formatos e aparências
diferentes de tudo o que eu já imaginei. Queijo. Leite. Procuro mais um
pouco, encarando uma jarra de chá e… Limonada? Limonada? Desço o
olhar e pego Sahil examinando-me pacificamente.
Archiviéste não está no ambiente. E até agora, nenhum dos seus
homens teve coragem de se aproximar de mim.
— Olhar não mata a fome — diz, sem nenhuma argúcia. — Sente-se
com a gente, Morganinha. Não mordemos. O capitão soube nos ensinar a
nos comportarmos.
Alguns homens ao seu lado dão risada. Tremendo os ombros.
Estreito os olhos, sentindo uma pontada de raiva subir pelo peito. Respiro
fundo, deixando-a passar. Esquece. Eu não sou capaz disso.
— Parece que não ensinou bem o suficiente — retruco,
aproximando-me do garoto de olhos azuis. — Está agindo como um animal
enjaulado e não educado, moreno. Vou ter que falar com o seu chefe para
ensiná-lo melhor. Está falhando nisso.
Seu sorriso abre. Suas bochechas ganham cor. Diversas cores, mas a
que mais predomina é a vermelha.
— É incrível — resmunga, limpando a boca no pano que estava ao
lado do prato. — Você é a única louca o suficiente para insultar um homem
dentro de sua própria casa. E pior, ainda sendo serva dele.
Arqueio a sobrancelha. Como?
— Acha que eu me submeti a isso? — interrogo, me sentindo
ofendida.
— Os humanos são selvagens, raposinha. — Verdade, isso é uma
completa e única verdade. Os humanos criam suas próprias leis, mas eles
mesmos não conseguem mantê-las. — A partir do momento que você perde
uma guerra, seu superior se torna o seu vencedor. E pelo que estamos vendo
aqui, você perdeu, não perdeu?
Pressiono os lábios, assentindo com a cabeça. Não vou falar demais
por coisas que não são úteis. Um corpo de boca calada tem uma mente
ativa. Observar. Entender. Analisar e derrotar. Não é assim que o meu rival
age? Há várias formas de assassinato na minha mente. Esse garoto de olhos
azuis deve tomar muito cuidado.
— Examine como quiser, Sahil. — Deixo-o livre de respostas.
Apenas desfilo pelo local e aproximo-me da cadeira vazia que há a sua
frente, depois da mesa. — Mas não me chame de raposinha.
Agora é a vez dele levantar as sobrancelhas. Arrumo o cabelo atrás
da orelha e respiro fundo, continuando a falar de uma forma neutra:
— Falta de criatividade não é para ganhadores, pirata. — Os seus
olhos disparam até mim, olhando-me de uma forma ameaçadora. Uma pena
que isso não funciona. Até porque umas das coisas de que eu tenho mais
certeza é que cachorro que late não morde. E Sahil late pelos cotovelos. Seu
latido está me irritando. Arranhando os meus ouvidos. Sento-me na cadeira
elegantemente, como se não tivesse discutido nos primeiros segundos em
que pisei na sala. — Você é um ganhador ou apenas aproveita a fama
implacável do seu querido chefe?
Você sabe aterrorizar estando sozinho?
Ele tamborila os seus dedos sobre a superfície da mesa, passando a
língua sobre os lábios rosados. Ele está gostando disso. Acha que pode dar
uma resposta digna o suficiente, mas antes que continue falando asneira, eu
prossigo, nitidamente cortando-o e concluindo:
— Um tipo de lobo que não é nada sem o seu bando — provoco,
instalando um sorriso diabólico nos meus lábios. Sahil também sorri. Seus
olhos azuis ardem como água quente. — Talvez?
Inclino a cabeça como o diabo entrando no quarto de uma garotinha.
Totalmente astucioso e maldoso. Quero continuar provocando, quero
continuar debatendo, mas eu sei que não posso ganhar muita atenção. Já
tenho o suficiente e isso pode piorar as coisas para mim quando eu resolver
fugir.
— Por que você não me pega quando eu estiver sozinho, Morgana?
— ameaça, tentando não parecer ofendido. — Se quer tanto saber que tipo
de lobo eu sou, não vejo problema.
— Perigos vazios não me chamam atenção — respondo, pegando
uma pequena maçã que está no recipiente. O moreno tomba a cabeça para
lateral, sorrindo. — Emoção não é algo que se finge.
— Eu gostei dela — ele diz, virando-se para o homem ao seu lado.
Noah concorda com cabeça, respondendo:
— Ela é mais legal que você — pronuncia o ruivo, totalmente sério.
Lembro-me da última vez em que conversamos. Ele não falou muito bem
do seu amigo.
— Ninguém é mais legal que eu, Noah — retruca Sahil,
defendendo-se.
— Todos são mais legais que você, trapaceiro.
— Só diz isso porque eu peguei a mulher que você gosta — brinca,
sendo totalmente babaca. Mordo um pedaço da maçã, sentindo o seu suco
na minha boca. Como eu amo, amo maçãs. Acho que é minha fruta favorita.
— Já disse que não lembrava que era ela?
— Não — ele nega, mas seus lindos olhos azuis afirmam
inconscientemente. Noah tem uma seriedade e frieza muito parecida com a
de Archiviéste, ele aparenta ser mais um outro garoto traumatizado. Não
tanto, mas a angústia ocular se assemelha. — Vocês dois se merecem. E não
estou falando isso porque estou com raiva, Sahil. Estou falando porque
estou chateado com ela e muito mais decepcionado com você. Éramos
melhores amigos. E você simplesmente esqueceu disso por um minuto de
excitação.
— Noah… Eu…
O ruivo se levanta bruscamente, largando o pão que estava em sua
mão e andando até outra parte da cozinha. Uma em que você tem que
atravessar uma porta para entrar. Acompanho-o, calmamente. Resmungo
um pouco por ter largado a maçã, mas isso não vem ao caso. Tenho que
conquistar a confiança de alguém deste lugar. Só uma pessoa de dentro sabe
como e que horas sair. Sigo-o silenciosamente enquanto sinto a sua raiva
exalando do corpo. O garoto entra na área e quase fecha a porta, mas me
examina rapidamente, ignorando-me e não batendo o objeto no meu rosto.
Agradeço por isso. Passo pela porta e logo depois a fecho, devagar,
deixando-nos sozinho neste pequeno cômodo fechado.
— O que está fazendo aqui? — pergunta, levantando a cabeça. Seu
tom está baixo e instável. — Você não tomou café da manhã direito.
Archiviéste não vai gostar disso. Volte para mesa e coma. Vai passar mal se
continuar assim.
— Eu vim ajudar você — minto. Uma bela mentira para alguém
desamparado. — Aquela briga não foi nada legal.
Seus ombros tremem e ele sorri, desnorteado. Comporta-se como
alguém que ama ser iludido, mas não é bem assim. Noah parece ser bem
espertinho. Seus olhos azuis me analisam, delicadamente. Suas órbitas me
examinam complementarmente, dos pés à cabeça, e então voltam, pousando
no meu rosto.
— Não minta para mim, Morgana. — Pisco, inocentemente. —
Posso não ser o mais velho, posso não ser um idiota mesmo sendo dois anos
mais novo que Sahil, mas sou o mais íntimo do capitão. Não vou te
provocar ou duvidar da sua capacidade.
— Eu deveria te agradecer? — ironizo. O ruivo estremece e sua face
fecha-se, dura.
— Não me leve a mal, Villain. Você é linda — defende-se.
Pergunto-me o porquê, uma vez que eu ainda não o ataquei. —, mas
também quero que entenda que eu não sou Archiviéste.
Expresso ao máximo minha careta de confusão.
— Eu não tenho fetiche pelo seu amor, nem gosto de ser machucado
por uma mulher bonita — completa, afastando-se de mim. — Não sou um
homem que fica com várias, que se entrega para qualquer uma, como faz
Sahil, mas eu também não sacrificaria tudo o que ele perdeu por você. Não
colocaria a minha mão no fogo ou a minha cabeça na frente dos seus
inimigos por alguém que me traiu ou que me trairia. Não sou nenhum dos
dois.
Meu rosto fica contorcido e a cor escapa das minhas bochechas.
— Se as palmas das minhas mãos fossem cortadas com a faca que
matou a minha mãe porque eu defendi a garota que me traiu… — O ruivo
faz uma pequena pausa. E eu não sou capaz de escutar mais nada. A
informação invade a minha cabeça e tapa os meus ouvidos. — você já
estaria morta, Villain. Se eu tivesse a metade da competência dele, você não
estaria mais aqui. Eu ainda gosto daquela garota, mas não a amo a ponto de
passá-la por cima do meu próprio eu.
Como eu disse, eu não escuto mais nada. Os lábios dele se
movimentam conforme os segundos passam, mas eu não sou capaz de
entendê-lo. Acho que também não sei enxergar mais. Ele teve a palma das
suas mãos cortadas, por isso usa aquelas luvas. Há várias cicatrizes de
cortes na palma de Archiviéste e é por isso que ele usa aquelas luvas. Por
isso que ele usa aquelas luvas. E eu nunca conseguiria imaginar. E o pior,
foi com a mesma faca metálica que assassinou a sua mãe. Pergunto-me
quais os tipos de crueldade eles podem ter feito com aquela criança. Até
onde eles foram para punir aquele garoto? Puni-lo por me defender.
Pelo que conheço da família Archiviéste, eles não parariam tão
cedo. Aconteceu mais. Aconteceu muito mais. Eles eram bem impiedosos
com quem queriam, ou pior, com quem sua cabeça dizia que merecia. Eram
desumanos a ponto de me assustar. Pouco, mas estremecia meu interior.
Ninguém sabia quais são os tipos de tortura que faziam naquela casa. Foi
isso que ele ganhou por me amar. Engoli em seco e liberei-me do meu
mundo privado. Voltei a escutar o ruivo de olhos azuis e ele dizia:
— Eu não te perdoaria. — Eu também não.
— Ele teve a mão cortada pela mesma faca... — soletro as palavras
com dificuldade. Isso foi muito longe. E ele disse que eu era capaz de saber.
Nunca, nunca imaginaria esse tipo de desumanidade. — que matou a…
— Ele tem essa faca até hoje. Noeeh a coloca na coxa direita, mas
nunca a usa. — Um fato que nunca fui capaz de perceber. — O capitão se
recusa a usá-la.
— Há muitas cicatrizes na palma da mão dele? — Não sei. Eu não
quero saber o motivo de estar perguntando isso. Não é da minha conta.
— Eu não sei — diz a absoluta verdade. — Nunca vi as mãos de
Archiviéste. Ele só tira as luvas para dormir. E para entrar no quarto dele à
noite, precisamos bater à porta.
Respiro. Apenas respiro.
— Não sei o quão forte foi o estrago que fizeram na sua mente —
expressa. —, mas imagino que não tenha sido pequeno. Noeeh não pode ver
muito sangue de mulheres nas mãos. A primeira vez que viu uma prostituta
sangrando porque cortou profundamente a barriga, Archiviéste pediu para
Sahil ajudá-la. E depois deu um breve resumo do porquê. Ele não tem pavor
de sangue feminino, desde que ele não esteja em suas palmas.
— Um medo estranho, eu diria — admito, mas sei que tem mais
coisas nessa roda gigante de informações. Ela nunca para de girar.
— Todas as suas atitudes têm consequências. E essas foram as que
ele sofreu por te querer — afirma, assentindo com a cabeça.
— Acha que tem mais?
— Acredito que sim. — Observa a situação. — Mas agora vamos
voltar. Demoramos demais conversando aqui.
Movimento os calcanhares, ainda pensativa. Ainda tentando travar
um raciocínio lógico. Quero os dois ao mesmo tempo. Dou de ombros para
Noah, abro a porta e como sempre, pego o próprio diabo olhando para mim.
Parece que o universo o joga contra meu corpo. Que o mar quer afogar a
sua sereia mais valiosa. Archiviéste está parado na porta. Seus braços estão
para trás, escondendo uma parte do seu antebraço e das suas luvas. Seu
rosto está erguido, sério e calado. E sua beleza, como sempre, é estonteante.
Se antes eu notava a tristeza em seu olhar, agora está muito pior, afinal eu
sei porque o pigmento violeta é tão frio e distante. Eu entendo que é por
motivos muito mais profundos que esses olhos eternos e imperdoáveis. A
beleza desse ser humano é incapaz de ter defeitos de tão caprichado que são
os traços profanos do seu rosto.
O capitão pirata está com as mesmas roupas, o mesmo semblante e
não está encarando-me, está olhando ardentemente para o garoto ao meu
lado. Sahil está atrás dele, sorrindo como um tolo. Repreendo-o com o
olhar, mas isso só faz o rir mais. Quero socá-lo.
— Capitão… eu posso explicar… — gaguejando para falar, Noah
estremece sob o olhar do chefe. O garoto é muito mais alto do que os dois.
Incomparável. Assustador.
— Eu confio em você, Noah. — Seus olhos pousam em mim. —
Mas tenha muito cuidado com ela. Não se esqueça de que Villain não é
confiável. Para ela é muito fácil tentar fazer a sua cabeça para levá-la para
fora.
Ele não está errado, está?
— E se fosse você nessa cozinha, Sahil — ele diz, desviando o rosto
para o garoto de olhos azuis. —, eu já teria te matado.
— Longe de mim trancar a porta de um lugar onde está a mulher do
chefe. — O homem sorri como um sádico. — Conheço a fama que eu
tenho, bonitão.
Ele nega com a cabeça, fingindo-se inocente.
— Já terminou de comer, Villain? — Reparo no tom forte e firme do
garoto.
— Não — respondo, passando por ele e aproximando-me da mesa.
Há poucos homens aqui, diferente de antes, imagino que a maioria foi
trabalhar. Vasculho o que restou da comida e olho para limonada, a única
que está intacta. — Posso tomar a limonada?
Ele não diz nada, apenas assente com a cabeça. Meu vestido encosta
no material da mesa e eu pego um copo limpo que está sobre a superfície do
móvel.
— Mas é claro que pode. — Ouço a voz de Sahil. — O chefe não
deixou ninguém pegar e ainda disse que foi feito especialmente para voc…
Um grito alto e doloroso sai da sua boca, impedindo-o de terminar a
fala. Desvio o rosto e encaro o homem, deitado no chão e com a mão na
barriga. Resmungos fortes saem dos seus lábios. Archiviéste está ao seu
lado, ainda com as mãos para trás. Olhando-me inocentemente como se não
tivesse feito nada. Observo, extremamente desconfiada. Ignoro e volto a
minha concentração para o suco de limão. Levo o copo com líquido
esverdeado a minha boca e o experimento. Como essa bebida está perfeita.
— Quem foi que fez? — pergunto, impressionada.
— Fui eu, Villain — responde o homem de fios brancos. — É a
minha bebida favorita.
— Está horrível — minto e ele arqueia a sobrancelha, sabendo que
eu estou mentindo.
— Termine o seu café e volte para o quarto — ordena, acabando
com a minha saída furtiva. Noeeh muda o peso do corpo de um pé para
outro e diz: — Daqui a dez minutos eu vou visitá-la com uma coisinha e
quero que esteja lá.
Silencioso. O ambiente está silencioso e protetor.
— Entendeu, minha raposinha? — interroga, como um manipulador.
— Entendi, meu garoto.
Não sei qual foi a sua expressão, porque eu continuei bebendo
limonada.
CAPÍTULO XVI
O vigoroso sentimento convicto e impaciente de vazio urgente —
que necessita ser ligeiramente preenchido com o líquido da afeição — causa
um estresse precipitado na camada de pele que cobre meus olhos escuros. A
irritação presente se mescla com o nervosismo do passado e a ansiedade de
saber o futuro, ambos encharcando as minhas pálpebras de preocupação,
impedindo-me de fazer o que todos os seres humanos precisam efetuar para
sua sobrevivência: dormir. Eu não estou conseguindo dormir. Há cerca de
seis horas que estou deitada nessa cama, encostada no travesseiro encapado
por um tecido macio e branco, revirando meus ossos neste cobertor
aconchegante e, surpreendentemente, quente, também pigmentado por uma
cor clara. Encaro o esplêndido brilho do grande satélite natural que orbita a
Terra e que, junto do planeta, rodeia o sol, achando que ele, magicamente,
resolverá as minhas dificuldades. O tempo não está ao meu lado da mesma
forma que o mar não está ao lado dele.
Estou me sentindo traída pelas forças universais.
Mas o que eu queria? Que todos estivessem ao meu lado? Seria
gracioso, mas não justo. Eu não me importo com o que é certo. Também
não é como se eu precisasse de ajuda do cosmos ou algo do tipo. Eu não me
importo com o que é certo. Archiviéste que necessita dele no momento, não
eu. Eu não me importo com o que é certo. Não sou eu que vou ter os
assassinos do meu pai à minha volta, perseguindo-me, não só fisicamente,
mas emocionalmente. Além de que essa é uma das dores mais profundas
que alguém pode sentir. Eu não me importo com o que é certo. Não sou eu
que vou ter as minhas lembranças usadas como armas para enfraquecer-me,
sendo apontadas para a minha cabeça e dando um tiro certeiro.
Eu não me importo com o que é certo. O meu objetivo se mantém o
mesmo de sempre e não vou mudar isso por um sacrifício compacto e
doloroso que provavelmente custou a harmonia da sua alma. Eu não posso
me importar com o que é certo. O entendimento da sua ideologia transforma
o caos imenso em sua essência. Que decora de mágoa os seus lindos olhos
violetas. Eu não posso, eu não posso. Não vou alterar a serenidade do que
quero conquistar e do que mais cobiço no momento: a sua ruína.
A queda da sua persistência e, junto dela, dos bens materiais que ele
passou todos esses anos construindo.
Cobiço que ele caia, como sempre esteve destinado a acontecer,
desde o dia em que nasceu. Desde o instante em que me entregou aquelas
flores brancas e cheirosas, desejando que compreendesse a sua dor. Eu não
me importo com o que é certo. Quero que ele naufrague e, para isso, não
devo me importar com os seus sentimentos e com tudo o que sofreu. Tenho
que dar valor a mim mesma, porque quando estiver na mesma situação
complicada — na deplorável peça teatral de cura e morte na qual eu fiz
questão de tacar fogo —, ele sequer teve a vontade de me tirar do desgosto,
muito pelo contrário, ajudou Edward, moveu oceanos e lagos para piorar
meu sofrimento. Tudo aquilo que Noeeh me contou na manhã de ontem é
uma mera provocação. Quero que ele sofra o mesmo que eu sofri.
Uma mentira, mentira, mentira, mentira e mais mentira.
“Enquanto seus dedos batucavam um no outro. Sentia vontade de
arrombar aquela porta e beijá-los até você parar de tremer. Sentia vontade
de secar as suas lágrimas com os meus toques, até que você parasse de
chorar. Quer que eu diga que sentia vontade de te fazer feliz? Que eu
sempre senti? É isso que você quer que eu fale? Quer que eu soletre com
todas as letras e dores o quanto paguei por não ser capaz de esquecer
você?” Ele não me salvou daquele casamento tóxico em que meu próprio
marido gostava da ideia de me ver partir deste mundo. Uma relação
amorosa em que ele não se comunicava comigo. Não me perguntava se eu
estava bem. Ele sequer me olhava de longe, já Archiviéste não desviava a
sua atenção de mim.
Isso é mentira. Falsas palavras, legítimos sentimentos. Meus olhos
estão secos como o corpo de uma planta que não recebe água há séculos,
mas eles doem como se estivessem chorando. Ardem como se tivessem
passado pimenta na sua superfície. Meu peito está no mesmo estado. Minha
garganta não se encontra diferente.
“Quer que eu soletre com todas as letras e dores o quanto paguei
por não ser capaz de esquecer você?”
Talvez eu queira.
Maldita seja essa nova feição confusa e dualista que está se
formando na minha cabeça.
Eu não me importo com o que é certo. Eu realmente preciso saber
disso.
Um suspiro cansado e velho escapa da minha garganta que está um
pouco desestabilizada pelo frio de Penzance. Os cobertores aquecem a
minha carne, mas não se tornam muito úteis quando o grande problema
sempre foi a minha linha de raciocínio. Antes eu não conseguia dormir
porque me sentia morta e presa a minha única realidade. Eu, habitualmente,
era prisioneira da minha própria mente, e não controlava nada, não
conseguia me prender ou me soltar do transe, era ele que me encurralava na
madrugada e me soltava quando queria, só quando queria. Hoje eu sou tão
dona de mim que a sensação de controle está dispersando o caráter montado
pelos meus pais. Nunca me perguntei quem eu sou, já que não me dei ao
trabalho de incomodar-me com essa característica. Eu vivenciei a guerra
com os meus próprios olhos, vi pessoas morrendo, ganância escorrendo,
ouro e prata passando de mão em mão. Observei pessoas matando aqueles
que diziam amar por dinheiro. Pequeno pedaço de material precioso. Que
corrói o coração. Enferruja a alma. Então eu deixei que os meus
responsáveis fizessem comigo, porque eu queria, eu queria mudar aquela
realidade.
Talvez seja realmente nisso que eu tenha me perdido.
Meu querido, eu nunca serei boa o suficiente para você.
Balanço a cabeça negativamente. Mas que porra eu estou pensando?
Não posso desperdiçar o meu único momento tranquilo pensando em como
seria se estivéssemos em outras circunstâncias. Será que estaríamos
apaixonados para sempre? Não poderíamos escutar o passado, já que
estaríamos esperando por esse momento de trégua desde que nos
encontramos. Eu não me importo com o que é certo. Será que ele estaria
pronto para ouvir mais mentiras? Acordados a noite toda pela claridade da
manhã. Meu querido, eu nunca serei boa o suficiente para você. Talvez eu
ame essa montanha-russa. Não sou boa, mas eu te quero tanto. Eu quero
você. Eu quero você. Eu quero você. Eu quero você. Eu quero você. Será
que ele estaria pronto para ouvir mais mentiras?
Eu não me importo com o que é certo.
Ao menos não deveria me importar.
Pisco os olhos e jogo os meus braços para cima da cabeça, com os
olhos lacrimejando pelo esforço de ficarem acordados por tanto tempo, mas
eu não quero dormir. Provavelmente amanhã vou ficar com marcas roxas
em volta dos olhos, refletindo a minha noite mal dormida, mas eu não
importo, sou linda de qualquer jeito. Mas não é com a minha aparência que
eu tenho que me preocupar no momento, tenho que achar uma solução para
sair daqui. Estou neste lugar há semanas e essa casa miserável parece ter a
segurança de um castelo fodidamente rico do maior reino do mundo.
Ninguém entra e ninguém sai dessas paredes sem a supervisão de
Archiviéste.
Todos os produtos estão sendo criteriosamente analisados e os
veículos que os carregam também, até mesmo as trocas entre os guardas são
bem fiscalizadas e projetadas. Os homens, até mesmo bêbados, são muito
mais espertos que a maioria dos soldados com quem eu já trabalhei. Deixo a
palma da minha mão cair sobre a minha testa, indecisa com o que fazer
daqui em diante. Umedeço os lábios e pisco, pisco, pisco, pisco, pisco e
pisco. Sempre piscando e ainda sem nenhuma resposta na língua. Meu peito
cai quando eu libero a respiração pesada do meu peitoral, no entanto ele se
enche novamente quando eu ouço um ruído ecoar através da porta,
chamando o meu nome e dizendo:
— Abra a porta, Morgana. — Reconheço essa voz da classe
proletária. Ergo levemente a minha cabeça enquanto coloco força para
impulsionar meu tronco a levantar. — Se eu for pego aqui e morrer, a culpa
é sua.
Sorrio fracamente, ainda olhando para o teto. Desvio o rosto da
cobertura que protege essa casa e jogo as minhas pernas para fora da cama.
Deposito os pés no chão e caminho silenciosamente até a porta do quarto,
abrindo-a logo em seguida, analisando os seus cachos ruivos e, segundos
depois, sussurrando:
— O que pensa que está fazendo? — Era para esse indivíduo estar a
milhares de quilômetros daqui. Noeeh já o mandou embora e o alertou do
que aconteceria caso ele voltasse sem permissão. Meu coração salta de
felicidade ao vê-lo, mas não vai saltar por muito tempo se Jacks ter o
desprazer de encontrar o anjo negro pelos corredores, mas a grande
pergunta que eu quero fazer é como ele conseguiu passar pela segurança?
— Você vai acabar morrendo — expresso, aceitando a linda e
extensa ponta do fio de esperança que cai sobre os meus olhos. Eu posso
sair daqui. Não que eu esteja sendo maltratada nessa casa, muito pelo
contrário, pessoas que vivem ou já viveram em situações precárias, sabem
como isso é o paraíso. Tenho roupa limpa, diversos livros para ler que
abordam os meus temas favoritos, minhas comidas favoritas estão sendo
preparadas quase todos os dias, sem contar naquela limonada... Céus!
Aquele líquido meio esverdeado e ácido virou a minha bebida preferida.
Parece ter sido feito pelas mãos de um deus. Um ser que teve as mãos
cortadas... Os guardas sequer tocam em mim e eu posso sair do quarto a
hora que quiser, desde que peça permissão para o garoto de olhos violetas
algumas horas antes. E sempre que eu quero sair, é só chamar um dos
homens que ficam nos corredores e pedir para chamá-lo.
Archiviéste levou-me à gruta umas três vezes, mostrando-me a
estrutura. E eu sempre reforçando mentalmente que preciso bombardear
aquele lugar. Fazer o fogo consumir o ambiente não é mais uma opção,
passou a ser necessidade. A única saída que eu tenho para fugir dessas
presas. Na primeira vez, lembro-me perfeitamente das suas mãos tocando a
minha cintura por cima do vestido, seu corpo atrás do meu, pressionando-
me. Recordo-me da sua boca na minha orelha, da pedra grande, alta e
arredondada que, na superfície, encontrava-se em um tabuleiro de xadrez,
onde a rainha das peças brancas estava cercada e o rei já havia sido
eliminado.
— Xeque-mate, minha raposinha — o rei das peças negras cochicha
no meu ouvido. Tenho a impressão de que ele quer morder a ponta da
minha orelha.
— Deveria confiar mais em mim, Noeeh — brinco, audaciosa. Essa
é a melhor coisa que eu sei fazer.
— Somos inimigos e estamos em um campo de batalha. — O cisne
aperta um pouco o meu quadril. Acho que ele gosta disso, acho que ele
gosta muito disso. — Como terei certeza que você não criará um campo de
batalha falso e voltará a ser minha inimiga? — pergunta, sorrindo. — Não
posso confiar em você, Morgana. Compreendi isso há anos.
— Se acha que eu vou lhe jurar lealdade, está muito enganado —
digo, virando-me de frente para o menino.
— Ficaria decepcionado caso você fizesse isso.
E aqui, eu volto para realidade e saio da minhas lembranças,
escutando:
— Se você não me deixar passar, vou mesmo. — Dou alguns passos
para trás, permitindo-o entrar no meu quarto antes que alguém o veja. Jacks
vasculha o corredor com os olhos e entra no cômodo pintado de branco. O
ruivo fecha a porta e seus olhos castanhos piscam, examinando-me. — Você
está bem? Ele machucou você?
— Ele quase me matou de tédio, serve? — O peito do garoto treme
com a brincadeira, mas é sério. A minha outra personalidade conseguiria
ficar em casa o dia inteiro, só tomando conta das coisas e observando o
marido me trair com mil e quinhentas mulheres, mas essa quer sair, quer a
liberdade. Necessito ser um pássaro que volte a voar. — E como conseguiu
passar pelos guardas?
— Estou observando-os há mais de seis semanas e realmente parece
que não existir erro nas trocas de turno, mas hoje eles vacilaram — explica-
me, delicadamente, como se estivesse contando uma história para um idoso.
— Um dos guardas precisou ir no banheiro rapidamente, saiu e deixou a
área livre, e outro, que é o seu parceiro, teve que ajudar a empregada com
um prato quebrado. Foram quase dois minutos de passe livre.
Aparentemente, aquela aberração de olhos violetas não é tão perfeita assim.
Isso me parece estranho, isso me parece muito estranho, mas não
vou contestar porque é Jacks quem está falando. Ele era um dos melhores
observadores do grupo, então estou falando com um espião profissional que
já teve a audácia de se camuflar na monarquia. E também, estamos falando
de um garoto de dezenove anos de idade, não é como se alguém
conseguisse ser perfeito nessa idade. Vou dar um voto de confiança aos seus
lindos olhos castanhos.
— Acha que pode arrumar um jeito de me tirar daqui? — Vou direto
ao ponto que me interessa.
— Quem está de guarda hoje é Archiviéste — ele comunica,
atencioso com os detalhes. — Posso tentar te tirar hoje, mas eu preciso que
você o distraia por alguns minutos para conseguir roubar uma das
carruagens. — Seus ombros caem conforme eles respira calmamente. —
Será que você consegue me fazer esse favor para eu poder te fazer um
maior?
— Por quanto tempo você quer que eu o distraia? — questiono,
mudando o peso do meu corpo de um pé para o outro. — Por quanto tempo
quer que eu converse com Noeeh?
— Uns vinte minutos — responde, fazendo-me arregalar os olhos.
Como eu vou arrumar assunto para enrolá-lo por vinte minutos? Ele pode
ser novo, mas não posso considerá-lo burro ou idiota. Vai desconfiar que
algo está errado. E não posso deixar isso acontecer. Eu não posso. Tudo
depende de mim.
— Vinte minutos? — interrogo novamente, ainda um pouco
desnorteada. E quem não estaria? Essa pode ser a minha primeira e última
chance de escapar.
— Estou tentando salvar a sua vida, facilite o meu trabalho e vá
conversar. — Isso é uma repreensão? Parece ter sido uma pequena e suave
bronca. Quem esse resto de combustão acha que é? Encaro-o, fitando-o com
o olhar. Jacks umedece os lábios, respirando fundo e continuando: — Olha,
eu sei que é difícil, mas você salvou a minha vida, Morgana. Me ajude a
salvar a sua. Conte uma história, faça algo, nem que para isso você toque na
ferida dele, ou na sua.
Agora é a minha vez de umedecer os lábios e respirar fundo. Passo a
minha unha de leve pelo pescoço, tombando-o para trás alguns segundos
depois. Um resmungo escapa da minha garganta e ajeito o pescoço,
assentindo com a cabeça. Não deve ser tão difícil, não pode ser tão difícil.
Recuso-me a aceitar que ele ganhe dessa forma.
— Considere feito — digo, mordiscando levemente a minha boca,
nervosa com a proposta que acabei de aceitar. — Vou atrás dele. E você…
Encaro-o com aquele sorriso satisfeito na face. Arqueio as
sobrancelhas, conforme analiso a situação. Balanço a cabeça
negativamente, fechando os olhos e os abrindo logo depois, ainda alterada
com a ansiedade.
— Faça o que tiver que fazer. — Uma corrente longa e ondulada de
ar frio passa pela brecha da porta, fazendo-me tremer com a temperatura. —
Ache uma forma de me tirar daqui, por favor.
— Vou, Morgana — ele diz, calmo e fraco como farfalhar de verão
em uma cidade sem vento. — Só preciso da sua ajuda nesse quesito. Só
preciso que tire a atenção dele desse local. Faça Noeeh focar em outra
coisa.
Coloco uma mecha rala de cabelo atrás da orelha, erguendo o queixo
e olhando para frente.
— Boa sorte, Jacks — digo com sinceridade, talvez uma das coisas
mais sinceras que eu já disse em toda a minha vida. Permito que o ar encha
meus pulmões. Permito que minha mente volte a pensar. Permito que meu
corpo volte a se movimentar. Permito. Permito. Permito. Começo a
caminhar para fora do quarto, segurando na madeira da porta e retirando
uma parte da minha constituição física do local. Um pé para fora do
cômodo e outro dentro, desvio o olhar e o pouso no ruivo. E então, em
questão de segundos eles pacificamente responde:
— Desejo o mesmo a você, Morgana. — Assinto com a cabeça,
cobiçando que o ruivo ainda esteja vivo quando eu voltar. — Vai precisar.
Fecho a porta do quarto lentamente, sem fazer muito barulho. A
atmosfera esfria e pesa com a falta de calor no cômodo em que me
trancafiou o portador da beleza mais deslumbrante que já tive a
oportunidade ver. Colocou-me em uma gaiola, fechou a tranca e guardou a
chave vermelha no seu coração. Há garras afiadas arranhando as grades. Há
abutres comendo a sua carne. E elas estão cedendo. Ainda estranho o fato
de não ter guardas no corredor da casa, geralmente essa moradia se parece
mais com um alistamento para guerreiros da monarquia de tantos homens
fortes habitando um mesmo lugar. Nenhum tão bonito quanto, mas isso é
óbvio, onde vou encontrar um homem com a mesma formosura que essa
criança birrenta? Inaceitável. Tão irreal que eu duvido que a matéria do
universo seja capaz de criar outro como Archiviéste. Gastaria muita energia,
um vigor que poderia ser usado para construção de outra realidade. Um
planeta não tão correto quanto a sua estrutura, mas uma tentativa fracassada
de se formar algo similar.
Um inacreditável e extenso temporal elaborado por adrenalina e
receio fecha a minha mente com as suas nuvens encharcadas de desespero e
perturbação. E toda essa emoção está escorrendo para minha cabeça, já
desestabilizada por essas últimas semanas em que o garoto vem me
atormentando. Meus olhos querem liberar o líquido marsala que chove das
bolinhas grandes e brancas que parecem feitas com um grosso algodão, mas
eu os prendo antes de entrarem em contato com o mundo fora de mim.
Minha primeira chance. Minha última chance. Única alternativa. Não posso
errar. Levanto a cabeça e relaxo os músculos do meu corpo, caminhando
silenciosamente para as escadas que vão levar-me em direção ao meu anjo.
Transportar-me em orientação às cinzas dos seus tristes olhos violetas.
A minha linha de raciocínio — que, diferente das defeituosas,
funciona casualmente bem — ajuda-me a tentar achar uma solução para o
meu possível problema. O ambiente exala algas marinhas, mas, no
momento, a única coisa que sinto enquanto desço as escadas lentamente é o
seu cheiro único de maçã com canela. Posso passar-me por uma mulher
carente e falar sobre os meus falsos traumas, no entanto o demônio saberá
que eu o estou enrolando. Meu maior erro foi deixá-lo me conhecer muito
bem. Agarro o projeto de corrimão que há no ambiente onde se juntam os
degraus enquanto o seu perfume mexe com minha circulação sistêmica —
também conhecida como grande circulação —, responsável por levar
nutrientes e oxigênio aos tecidos e receber os produtos finais do
metabolismo. Estou sentindo-me calma, entretanto ainda levemente tonta.
Termino de descer as escadas, soltando o objeto ao qual me
segurava. Meus braços estão ao lado do meu corpo. Meus pés também estão
juntos, mas os meus olhos não decidem se reparam na beleza de Archiviéste
sentado em uma cadeira de madeira avermelhada, com o cotovelo direito
apoiado na mesa de mesmo material, enquanto os dedos enluvados do
mesmo braço servem de apoio para o seu rosto, já que estão encostados na
região da bochechas, perto das suas sete manchinhas infernais — aqueles
sete lindos passos que damos antes de chegar ao inferno, os sete lindos
mares que secariam em um instante ao vê-lo belo desse jeito, chamas de
águas ardentes, vento de fogo gelado — ou se reparam no copo de vinho
que está localizado na mesa, ao lado do mapa em que o cisne negro está
exageradamente concentrado. Pisco. Ele ainda não olha para mim, todavia
sabe que encontro-me aqui. Noeeh não quer olhar para mim.
Vasculho mais um pouco o ambiente em que, mesmo exalando o
cheiro de algas marinhas, a canela abafa e a maçã evacua. Hoje o local quer
retratar a sua prepotência. Simbolizar seu autoritarismo. A madrugada quer
colocá-lo para dormir e todos nós sabemos que ele não dorme comigo aqui.
E olha onde eu estou. Estou fazendo-o pagar um pouco pelo que cometeu.
Analiso seu outro braço, o que está com o antebraço apoiado na quina da
mesa e com a pena na mão. Há um pequeno pote de tinta perto dos seus
dedos, juntamente com alguns outros papéis espalhados na mesa. Inclino a
cabeça para lateral, examinando-o melhor, tentando captar o que eu posso.
Ainda sou sua inimiga, ainda quero vê-lo de joelhos perante mim, não me
importo com ele e esta essência ainda não me conquistou. Respiro fundo e
então eu o ouço, dizendo:
— Estou tentando entender por que você está aqui, Morgana. —
Todos os meus sentidos se encolhem com a influência presente na sua
melodia tirânica. Meu corpo entra em modo de sobrevivência. Meus pés
estão gelados e as minhas mãos estão do mesmo modo glacial, meu coração
está bombardeando sangue apenas para os meus órgãos vitais. E está ciente
de que se eu continuar aqui com esse homem, minha constituição física irá
entrar em estado vegetativo.
Ele ainda não olhou para mim.
Ele não quer olhar para mim.
— Não estou conseguindo dormir — respondo, o que não é bem
uma afirmação falsa, apenas duvidosa. Não posso mentir para ele, porque
tenho consciência de que o cisne negro perceberia. Ele fará questão de
entender o meu plano mesmo estando alterado com o vinho da mesa. Eu
não sei quantos copos esse homem já bebeu essa noite. Julgando pela forma
em que ele se encontra, acredito que tenham sido muitos. O suficiente para
que Noeeh ganhe coragem para fazer coisas que não pode fazer.
Não deveria querer.
Nós não deveríamos querer, mas queremos.
— Está pensando em fugir? — Ele larga a pena na mesa enquanto
questiona calmamente, seu peito sobe em uma respiração demorada. Um
transtorno forma-se na minha mente, desta vez com a oscilação de remorso
e… compaixão? Não, acredito que seja apenas piedade. Contrição e dor. Eu
vacilo em demorar a responder, mas não é como se ele já não soubesse, não
é? E o que ele fará a respeito disso?
— Já disse que apenas não estou conseguindo dormir — repito, sem
compunção na voz ecoada pelo ambiente. Fui até um pouco grossa, mas ele
não me repreendeu. — Preciso fazer algo e ficar cansada. Ninguém dorme
se não gastar energia. Necessito ocupar a minha mente com qualquer coisa.
— Você ficou muito tempo parada — ele diz, dando corda para a
minha conversa. Caindo na armadilha de fogo que ele armou quando me
perseguiu naquele cemitério. — Para alguém que nasceu com a vida
movimentada e está sentindo essa agitação voltar, é comum a insônia.
Principalmente quando existem ideias a impedindo de dormir.
— Já passou por isso? — pergunto para o ser rico à minha frente,
aproximando-me do seu corpo.
— Não. — O portador dos olhos violetas e raciocínio extravagante
desvia o rosto e seus lindos globos oculares roxos pousam em mim. Ele
pisca como uma borboleta abrindo as asas para levantar voo, graciosamente
simples e misteriosamente perfeito. — Minha vida nunca esteve parada.
— Cheia de emoções. — Archiviéste deve ter aprendido a amar a
confusão, porque não me parece ter sido afetado por ela. Se bem que se
formos realmente analisar… Ele aparenta estar cercado por um domo de
ultraviolência, onde as pessoas o bateram e ele achou que foi um beijo.
Onde as lágrimas de ouro saíam dos seus olhos ardentes e a toxina mortal
entrava no seu coração enfraquecido. Há tristeza em seu olhar, e hoje ela
está acompanhada.
— Trocaria tudo isso por uma vida com menos angústia. — Uma vez
ouvi dizer que a melhor forma de arrancar os segredos das pessoas é de
madrugada. Elas estão cansadas e isso as impede de processar tudo o que
realmente está acontecendo. Então muitas apenas falam. O capitão está em
um instante fragilizado, posso usar isso ao meu favor. — Apenas uma
família e problemas comuns com filhos.
Ele quer ter filhos.
Ele quer ter filhos.
Ele quer ter filhos.
— Sofreu muito na vida, Ar? — interrogo, um pouco curiosa.
Obviamente eu sei a resposta, mas não sei de todo contexto e isso me deixa
intrigada. Curiosa para desvendar os mistérios da brisa que festeja acima
das minhas ondas.
— Não pergunte o que não está interessada em saber, Villain —
corta-me com a conversa. Bom, o que eu poderia esperar? Que este truque
funcionaria com ele? Piada. Noeeh não é diferente das outras pessoas, mas
tem algo que o torna criteriosamente especial. Eu não sei explicar o que
sinto na presença de tanta dor. — Deite-se na sua cama e vá dormir.
— Não estou com sono. — Sento-me na cadeira à sua frente,
apoiando os meus braços na mesa e olhando-o severamente. Ignoro o seu
rosto, demonstrando uma expressão apreensiva ao tomar certa atitude
agressiva e suspeita. O cisne pisca, respira e então me ouve falar: — Não é
tão fácil espantar a insônia, sabia?
O anjo caído inclina o rosto para lateral, pensando em uma solução.
Poderia facilmente supor que ele não saberia lidar com essa situação, já que
está bêbado, mas não posso esquecer daquilo. Seus olhos estão mais
estreitos que o normal, seus movimentos respiratórios estão um pouco mais
rápidos, quase imperceptíveis, porém não há como identificar o que o anjo
está pensando. Eu sou a matéria que ele possui conhecimento, não o oposto.
— Posso te ajudar a dormir — oferece, deixando-me um pouco
assustada com a possibilidade dele me colocar para dormir. Como a
madrugada quer fazer com o seu corpo. — Desde que você me prometa que
irá direto para o seu quarto quando sair daqui e não contará a ninguém.
A julgar pelo seu estado, eu capto suas intenções da mesma forma
que minha pele absorve a vitamina dos raios solares. Conserto a coluna,
mantendo-me ereta e neutra diante da sua proposta. Não há malícia no seu
olhar. Não há nada lascivo que demonstre segundas intenções na sua face
formosa.
Não. Não há nada sexual na sua expressão.
Não na dele.
Mas na minha...
— Acordo fechado — digo, sabendo que a minha parte não será
cumprida. Quando eu sair daqui, vou direto para a monarquia. Respondo
sabendo que nossos sentimentos são totalmente diferentes. Ele aqui e eu ali.
— Como pretende fazer isso?
Um sorriso curto e disfarçado instala-se em seus lábios cortados
pelo ar, apenas um lado da boca se levanta e eu caracterizo isso como o
movimento mais profano que eu já vislumbrei nesses últimos dez anos.
Archiviéste umedece a boca de olhos fechados e morde o lábio inferior,
respirando fundo após abri-los. Quero batucar os dedos na mesa por
ansiedade e ele percebe isso quando desvia a sua atenção para minhas mãos
nervosas, agitadas com toda essa tensão. Uma piscada e seus olhos estão
novamente no meu rosto, analisando-me naturalmente e anotando minhas
reações no ambiente da sua cabeça que é só meu, como ele sempre fez.
Sempre. Mordo a língua quando o violeta sacrílego da sua íris injeta uma
pressão sensual no maior órgão do meu corpo.
Eu poderia facilmente chegar ao ápice com esse olhar encarando-me
enquanto me estimula, mesmo que Noeeh esteja acompanhado por um
sentimento que eu não identifico. As nuvens da minha cabeça estão
rodeadas de pedras violetas, pretas e brancas mais preciosas que ouro e
prata, e elas estão deixando-me inquieta internamente. Tudo por culpa dessa
cautela e concentração que ele deposita ao olhar-me e isso acontece todas as
vezes que vasculha o meu corpo. E está acontecendo de novo. De novo. De
novo. De novo.
Estou perdida, hoje, e eu escolho estar perdida. Nunca me importei
com o que é certo. E não vou começar a partir de agora para tentar fazer-me
de difícil ou de menina inocente.
Eu quero isso. Apenas isso.
O cisne levanta-se com calma e elegância da cadeira em que estava
sentado, seus dedos empurram o copo para longe da beirada do móvel e isso
deixa-me dura como uma pedra. Desejá-lo não me deixa menos nervosa,
muito pelo contrário, me deixa mais estática do que eu jamais poderia estar.
Torna isso mais errado e, consequentemente, mais saboroso. Melhor e mais
difícil de se aproveitar, entretanto, espero que ambos entendamos que nessa
noite, tudo ficará debaixo dos tapetes, pelo menos até ele terminar o que
pretende fazer comigo. E depois voltaremos a nos odiar como deve ser.
Como esse contexto tem que ocorrer. A minha vontade de matá-lo voltará
com todas as forças e ela será saciada através da espada da monarquia. Se
eu não posso contra ele, arrumarei alguém que pode e o manipularei para
trabalhar ao meu favor. Mas hoje, essas emoções estão no meu baú de
sentimentos apreendidos, como estavam na época que eu era casada com
Edward. A única diferença é que agora eu tenho a chave desse maldito
objeto.
Aquilo cujo controle não possuo no momento não está no interior do
meu coração, mas, sim, entre as minhas pernas, desejando ser tocada. Como
eu não fui nessa última década. A minha velha prática de elaborar
promessas que não podem ser cumpridas.
— Sabe o que histeria, Morgana? — Nego com a cabeça,
completamente incapaz de falar. Ele se aproxima lentamente, caminhando
como um cisne negro que possui o domínio de um lago congelado. O garoto
anda de um modo que apenas ele é digno o suficiente de caminhar. De
novo, de novo, de novo. — Histeria é o nome da doença que era
majoritariamente diagnosticada nas mulheres desde a Grécia antiga.
Insônia, enxaqueca, comportamentos desobedientes e excesso de libido são
os sintomas.
Tirando dores na cabeça, eu tenho todos eles.
— E qual era a cura? — questiono, curiosa com o que ele vai falar e
não, não estou surpresa por Noeeh saber de uma coisa dessas.
— A massagem pélvica era tratamento mais recomendado pelos
especialistas. — O tom fraco de vermelho acerola beija as minhas
bochechas, expondo a minha vergonha perante sua fala, mesmo já sabendo
que esse seria o rumo da nossa conversa.
— Quer me masturbar, Archiviéste? — interrogo, observando a
minha mudança de temperatura corporal. Agora tenho certeza de que não
são só as minhas bochechas que estão em uma tonalidade carmim fraca. Eu
sempre fui muito ousada, mas hoje o meu limite está distanciado. Não
existe nada que impeça a minha língua de falar asneiras, ela está livre como
as sereias que naufragam os marinheiros.
Eu estou livre e não me importo com o que é certo.
— Quero que você relaxe essa noite, Villain — expõe a sua
intenção, algo que eu acho que nunca esteve escondido. — Você não veio
até mim querendo isso? Distração para dormir?
Assinto com a cabeça e algo nele se quebra. Eu estou ficando
maluca, porque logo essa sensação passa e a tensão volta ao ar. Estou
começando a sentir meu ritmo respiratório ficar desconcertado novamente
conforme ele se aproxima de mim. Estou parecendo uma adolescente que
acabou de terminar com o ex e cobiça o primeiro homem que aparece à sua
frente. Estou parecendo uma garotinha na puberdade, porque não tem
explicação para os meus hormônios estarem tão anormais. O cheiro de
maçã com canela agarra a mão do ar que entra pelo meu nariz, porque,
nesse exato instante, eu só consigo sentir isso. Só consigo senti-lo. As
batidas do meu coração estão aceleradas, pulsando na mesma velocidade
que o órgão responsável pelo meu prazer. Sinto a minha epiderme aquecer e
a minha concentração congelar no seu lindo rosto esculpido por anjos
caídos.
Maldito seja aquele cisne negro e sua beleza estonteante.
Estou analisando a sua formosura impura e formando pensamentos
mais sujos ainda.
O portador dos traumas misteriosos se põe de pé à minha frente, tão
perto que eu posso esfaquear a sua barriga, caso estivesse com uma faca.
Tão perto que eu posso dar um tapa na sua nuca, cravar a minha unha no
seu pescoço, dar um passo e beijá-lo. Poderia arrancar o conjunto de tecidos
responsável pela sua vitalidade. Poderia fazer diversas coisas com ele a essa
distância, assim como ele também poderia fazer comigo. Assim como
estávamos no dia em que nos reencontramos na praia. Se aquele reencontro
se assimilava ao paraíso, onde nossos olhos eram dragões celestiais que se
comunicavam por piscadas, esse daqui é o próprio purgatório, onde somos
duas almas quebradas, rezando por salvação e cobiçando o fogo caloroso e
vivo do inferno.
Aleluia.
— Levante-se da cadeira, Morgana — pede, com uma dicção que eu
nunca teria em uma idade como essa. As cinzas douradas estão se
transformando em prata líquido. Eu sempre adorei brincar com as chamas,
então se eu dissesse que não sei como vim parar aqui, estaria mentindo,
como sempre costumo fazer.
Uma raposa lendária e imparável que agora tem a permissão de ser
quem está destinada a ser. Comunica-se comigo com mentiras e ilusões.
Nesse mundo, você sempre vai me ouvir falar. Cantar como uma cigarra.
Deposito forças para levantar-me da cadeira, ficando de pé. Não
tenho tempo para comparar a diferença das nossas alturas, não tenho tempo
para olhá-lo, fitá-lo com dignidade e exaltação ou examinar a tristeza na sua
cor violeta. Não tenho porque, em questão de instantes, ele está de joelhos.
E mesmo durando a mesma quantidade de segundos que um objeto pesado
leva para cair de uma distância pequena, eu o vi se abaixar tão lentamente
quanto uma flor desabrochando. Devagar e belo, como tudo o que ele faz.
Mudo o meu peso de um pé para o outro e arrumo o cabelo atrás da orelha.
O homem de fios claros arruma a sua postura com os joelhos no chão e
levanta o seu rosto, encarando-me atenciosamente, como eu já citei várias e
várias vezes para mim mesma que ele faz.
Eu não me importo com o que é certo
E hoje eu vou provar que isso é verdade.
Vou deixar o meu inimigo me tocar.
Meus pais me matariam por isso.
Vou deixá-lo preencher-me com a sua dor.
Vou envenená-lo com as minhas mentiras
Noeeh sabe disso.
O melhor é que ele sabe disso e ainda está aqui.
De joelhos para mim.
Está nas minhas mãos desde o dia em que nos conhecemos.
Recordo-me bem da sua devoção a mim e não posso ser hipócrita e me
surpreender por continuar aqui depois de dez anos. Só não esperava que ela
viraria isso. Archiviéste era uma criança diferente, talvez um pouco
possessiva demais para a sua idade, mas ainda era um pestinha que gostava
de ouvir histórias de terror, fantasia e contos de senso comum. Além do
mais, quanto tempo ele esperou para poder fazer isso? Quantos anos ele
aguardou para se dar permissão? Há tantos anos que ele me observa. E hoje,
está aqui. Hoje nós estamos aqui. Uma dança é feita a dois, mas uma guerra
também. Ele nunca tocou em uma mulher e isso está escrito em suas linhas
faciais, mas eu aceno com a cabeça, dando-lhe permissão para continuar.
Concedendo aprovação para Noeeh tocar-me pela primeira vez na sua vida.
Um gemido escapa dos meus lábios quando ele posiciona suas mãos
enluvadas nas minhas coxas, uma em cada perna, deixando-me presa no
chão, sem permissão para saída. E o cisne pode? Sim, pode. Pode porque
enquanto Archiviéste estava olhando-me, eu cedi. Apoio a minha mão
direita na mesa, ajudando-me a ficar em pé. Sinto as batidas do órgão
ecoarem para dentro de mim, alertando-me que estou excitada. E como eu
estou. Vê-lo de joelhos para mim é um dos meus desejos mais obscuros e
vislumbrar ele se realizando em uma madrugada fria e linda como essa,
prestes a saber que vou fugir, deixa tudo mais quente e molhado.
Estou terrivelmente excitada para ele.
Estou assim por causa dele.
Meus sentidos não funcionam no momento, não quando sinto sua
boca beijar a parte inferior da minha coxa esquerda. Um gemido brota na
minha melodia, ecoando por todo o ambiente que cheira a maçã com
canela. As placas da minha vagina estão se contraindo como se quisessem
algo mais. E qualquer um é esperto o suficiente para saber o que elas
querem. Sinto o meu clitóris dolorido, querendo a consideração e a
gentileza da boca do garoto. Querendo cortesia dos lábios do homem que
está de joelhos para mim.
Acho que vou desmaiar antes mesmo que ele comece. Tenho quase
certeza. Vou colocar-me para dormir se ele continuar mordendo levemente a
parte inferior da minha coxa e apertando-a com os dedos. A mão que não
está sendo usada de base para o sustento do meu corpo pega o vestido que
estou usando e o levanta para cima, mostrando-lhe qual é o estado do há
entre as minhas pernas.
Escuto a sua risada rouca se infiltrar nos meus ouvidos, permitindo-
me ouvir sua voz lasciva segundos depois, dizendo profundamente:
— Morgana, Morgana... Minha raposinha. — Seu peito treme e as
minhas pernas também. Delicado como um casulo de lagarta verde, aquela
que tem a capacidade de virar uma borboleta, o homem coloca a minha
perna esquerda nos seus ombros e continua com os beijos nas minhas coxas.
E os meus gemidos se tornam recorrentes, como o produto de um
canto. Como os aplausos depois de uma peça. Isso é o que Archiviéste
recebe por estar submisso a mim. Minha respiração se torna ofegante e as
minhas bochechas estão vermelhas. Minha boca se abre. Meus pulmões
param de funcionar. Meu coração salta de alegria e a língua do garoto está
no que antes tanto desejava. Minha vulva está sensível, está escorrendo de
euforia e contentamento. E eu sinto todo o meu corpo estremecer quando
ele passa sua língua no fecho de nervos presente entre as minhas pernas,
estimulando o maior órgão do meu corpo.
Um som nitidamente encharcado de prazer e uma respiração rápida
saem juntos da minha constituição física. Meus dedos tremem e, quem
observasse a minha mão sem o contexto de tudo o que está ocorrendo,
acharia que eles estariam batucando na mesa, mas estão apenas recebendo a
consequência de ter a boca desse homem em mim. A pele que envolve as
minhas garras do braço esquerdo segura os fios claros do cisne negro,
intensificando os movimentos ondulados que ele está depositando nos
lábios da minha boceta. Uma sensação única percorre a minha coluna, sinto
como se um dragão de fogo estivesse dentro dos meus ossos. E o seu fluxo
de energia está crescendo. O meu fluxo está crescendo. Seguro um pouco
mais o seu cabelo, apertando os meus dedos nos fios macios e um pouco
enrolados. Tão lindamente únicos. E eu aqui, prestes a gozar na sua boca,
quase implorando para rebolar no seu rosto, no entanto eu só consigo pensar
na sua beleza.
No quão linda é a sua dor.
A perna que está pendurada nos seus ombros tremem como eu
nunca as vi tremer, como Edward nunca foi capaz de fazer. Seus dentes
raspam de leve o clitóris e ele passa a língua, deixando-o pronto para
explodir internamente. Mordendo, lambendo e me satisfazendo. Um gemido
prazeroso e triste. Eu não me importo com o que é certo. Uma respiração
pesada, meu corpo desestabiliza e eu chego no ápice, liberando o meu
líquido da sua boca. Como ele cobiçou. Como eu desejei. Como nós
queríamos. Um barulho estranho sai da minha garganta quando ele segura
as minhas coxas, mantendo-me de pé. Archiviéste ainda continua passando
seus lábios na minha vulva, como se quisesse me limpar pelo estrago que
fez. E este pequeno movimento acaba com a minha sanidade. Noeeh
continua sugando como se fosse sua bebida favorita. Tombo a cabeça para
trás, apertando a madeira da mesa e suspirando.
Não estou completamente feliz.
O que ele fez com a língua foi perfeito. Excelente para um homem
com experiência, e olha que não possui nenhuma, mas o que eu desejo não
é somente a sua língua. Eu quero tudo. Sou egoísta e quero tudo. Tudo que
ele pode oferecer, mas nunca irei pedir. Não sou eu quem deve suplicar.
Noeeh separa o rosto e o afasta das minhas pernas. Um resmungo pula da
minha boca por isso, mas eu retiro a minha coxa dos seus ombros,
colocando a minha outra mão — aquela que estava segurando o seu cabelo
platinado — ao lado do meu corpo. O alívio que sinto na minha região
pulsante é a melhor sensação que já senti na vida. É como estar deitada na
grama depois de uma chuva. Os músculos estão relaxados. Estou
parcialmente contente e pronta para fugir.
Vasculho o lugar com os olhos, ou pelo menos tento fazer isso, mas
fracasso. E como eu fracasso. É inevitável, porque a visão que eu estou
tendo é como olhar para o meu paraíso. Meus olhos querem se arregalar
com tanta perfeição. As nuvens param de brincar com a lua, deixando passe
livre para seu brilho entrar pelas janelas do local. O garoto ainda está de
joelhos, com a boca levemente suja nas laterais, seus olhos violetas estão
refletindo aquele tom magnífico de azul e branco liberado pela luz forte e
dançante que presenteia o pigmento da estrutura marítima. Roxo e azul. Um
claro e um escuro. Essa combinação é a formação mais linda da natureza.
Seu rosto está neutro, mas ainda sinto que algo está quebrado. Estilhaçado
com uma emoção ruim. Sua pele castanha ainda não tem a capacidade de
ficar abstergida e, estando de joelhos para mim, a tonalidade do luar, ele
está muito acima disso.
Os anjos que estão no céu brigariam para ter caído no seu lugar.
Discutiriam para ter um terço do seu encanto. E o pior, se matariam
para ter a sua força. E como um homem, não como um garoto.
Archiviéste não é mais um garoto.
E isso é um perigo para a minha sanidade.
— Morgana — chama-me, libertando-me dos meus pensamentos
impuros. Estou sentada na cadeira, ainda de frente para ele. Meu rosto fica
tão vermelho ao lembrar-me do que imaginei, que não posso olhá-lo nos
olhos neste momento. Abaixo o meu rosto e balanço a cabeça,
desconfortável. — Minha raposinha, concentre-se.
— O que foi, Noeeh? — interrogo, não aparentando calma. Perdoa-
me, Pai, mas, neste momento, eu não consigo me iludir. Eu não sou forte o
bastante para mentir. O domo de ultraviolência acabou capturando-me por
tempo indeterminado.
— Perguntei o que posso fazer para te ajudar a dormir? — Meu
campo de visão fica turvo quando eu me levanto rápido demais para uma
pessoa aposentada. Apoio-me na mesa e o garoto se levanta para tentar me
ajudar, o que é inútil, já que eu não caio com a movimentação brusca.
Quando minha atenção se volta para minha mão, eu lembro dos meus dedos
batucando enquanto ele… Tento rapidamente esquecer, deixando escapar
um pequeno grito de, o quê? Desespero? — Villain, o que foi?
— Nada — respondo rapidamente e ele olha-me confuso, ainda em
pé. O garoto empurra o copo para o centro da mesa e meus passos agem
como um cavalo andando para trás. Como um bandido correndo dos donos
dos pertences furtados. — Eu vou para a minha cama. Amanhã
conversamos, ou não.
Espero que não, espero muito que não. Esse tempo que Jacks pediu-
me tem que… Meu mar, meu querido mar assassino, eu não sei o que
pensar. As lembranças estão frescas como pães saindo do forno, prontos e
quentes para serem devorados, como eu fui. Como eu mentalmente fui. Isso
não poderia ter acontecido. Eu não poderia ter feito essa atrocidade.
Noeeh arqueia a sobrancelha, inclinando o rosto. Se eu continuar
agindo dessa maneira aterrorizada, o homem dos meus sonhos vai
desconfiar de algo. E ele é muito inteligente. Archiviéste poderia facilmente
entender o que ocorreu e isso destruiria a minha reputação.
— Eu vou acompanhá-la até o quarto — diz, preocupando-me
eternamente com aquelas malditas manchinhas castanhas. Seu brinco de
búzio vermelho balança-se bruscamente conforme ele caminha em minha
direção. Acho que eu deveria me importar com o que é certo.
Se eu negar, ele pode desconfiar. E se este homem suspeitar de algo,
posso dar adeus a minha rota de fuga. O anjo caído me manterá aqui até que
resolva me matar. E então, como uma bela e fiel prisioneira, concordo com
a cabeça, dizendo:
— Faça como desejar, Archiviéste. — Viro-me, quando soletro essas
palavras. Desvio o meu rosto para o caminho oposto e começo a caminhar
apressadamente.
Passo pela madeira da casa, aproximando-me do começo das
escadas. Meus braços estão ao lado do corpo e eu respiro com muita
dificuldade. Meu fôlego se assemelha ao pai de uma criança do Submundo
que está desaparecida. Ando tão rápido que as minhas pernas estão
querendo tremer, mando um sinal para minha mente, perguntando se sua
intenção é me fazer voar. Elas não são espertas para entender que estamos
em perigo. Um real perigo: eu mesma. Deixo um suspiro vazar e escuto os
passos do garoto atrás de mim. Não concentro-me em mais nada a não ser
chegar o mais rápido possível no meu quarto e dispensá-lo com urgência.
Estou suando como um corpo falecido jogado em um lago. Segurando meu
vestido e subindo as escadas, veloz como uma raposa. Transformando-me
em uma verdadeira felina, mas, nessa selva, sou eu que estou sendo caçada.
Maldita orca que habita neste oceano.
Termino de subir a escada e a minha constituição física quase
desmaia com o fedido cheiro de maçã com canela. Desgraçado arrogante,
até mesmo calado ele grita mais alto do que as vozes da minha cabeça
antiga. Acelero o passo para poder fechar a porta na sua cara, mas logo
quando chego no ambiente em que durmo, o garoto escora o antebraço
esquerdo no batente da porta, naufragando os meus planos, novamente.
Nada está colaborando para mim nesses últimos dias. O que foi que eu fiz?
— Sabe, Villain. Se não fosse loucura eu poderia facilmente pensar
que está correndo de mim. — Não sei descrever qual é o tipo de reação que
eu estou tendo, acho que porque, com essa imagem, até eu isso eu penso.
Não consigo olhá-lo mais com outros olhos. Não nesta cena. Fundo escuro
e frio, distância perigosamente pequena, sorriso implacável, a luz
iluminando apenas o seu rosto e uma parte do seu cabelo. — Quer fugir de
mim, minha raposinha?
Fico completamente calada, tentando não piorar essa conversa.
Noeeh se desencosta do batente, voltando a sua postura normal. Estou a
menos de sete passos do inferno.
— Se você correr, eu te pego. — Um passo meu para trás e um dele
para frente. — Se se esconder, eu te caço. — Um passo meu para trás e um
dele para frente. Acho que estamos dançando. Estamos ensaiando essa
coreografia desde que nos conhecemos e advinha só quem é o lobo. Quem é
o lobo? Ele é o lobo. Eu sou a sua presa. — Se fugir, eu vou te capturar. De
novo, de novo e de novo. Um animalzinho deve ficar com o seu dono, não
concorda?
— Como pode alguém tão exibido ainda ser virgem? — provoco,
esforçando-me para recuperar a minha dignidade que foi estilhaçada com
aqueles pesadelos. — Acho que, no final, eu ainda vou ter que te ensinar
sobre essas coisas, já que a sua experiência é nula. Você não vai saber lidar
com uma mulher.
Seus olhos ardem como pimenta na boca de uma criança. Eu então
noto que as palavras que soletrei, dedicadas a abalá-lo, ele reutilizou como
especiarias para o tempero de alimentos, tornando-as úteis e valiosas de um
instante para o outro. Impecável. Ele tem uma resposta na língua e não se
sentiu nem um pouco ofendido por eu ter esfregado isso na sua cara.
Virgem desgraçado.
— Eu imaginei cenas o suficiente para recolher experiências —
responde-me, aproximando-se o bastante para meu quadril cair no colchão
da cama fria, que ao menos deveria estar glacial. Meu corpo está quente,
então, automaticamente, tudo pega fogo. — E você, Morgana? Aprendeu
com aqueles livros que estavam no seu quarto? Porque se foi com o seu
marido, tenho certeza que sua experiência é tão nula quanto a minha.
Não sei o que responder.
— As acompanhantes que saíam do quarto dele nunca saíam com
uma cara satisfeita. — Quero depositar uma faca no peitoral desse homem e
deixá-lo sangrar até seus últimos suspiros. — E tome cuidado, meu amor. —
Noeeh pega o meu rosto com uma de suas mãos enluvadas, levantando-o
mais ainda, deixando-me fitá-lo com todo o desprezo.
Seu rosto se aproxima e eu tenho que respirar fundo.
— Você não pode cogitar saber como o seu inimigo lida com uma
mulher na cama, meu coração. Não pode se perguntar como ele a beija.
Como ele a toca. — Responda, Morgana. Responda. — Como a lambe. —
Ar está sorrindo. — Ou imaginar como ele a penetra.
Silêncio. Só consigo fazer silêncio. Estou tremendo.
— Imagina se cai na tentação de querer que ele a satisfaça, minha
raposinha? Isso seria o seu fim. Seria o encerramento do seu ódio, gatinha.
— O diabo lança-me uma piscadela.
Seria, com certeza seria.
Filho de uma meretriz, arrombado e traumatizado. Indigno de liderar
qualquer coisa. Tenho que erguer o queixo para olhá-lo devido a posição em
que estamos. Percebo que o sorriso não some dos seus lábios, então penso
em algo que o fará apagá-lo.
— Seu… — Ele solta o meu rosto, cortando-me e dizendo:
— Vamos dormir — diz, afastando-se de mim e rodeando a cama
pelo outro lado.
Deito-me no mesmo segundo que ele, ajeitando-me no lençol limpo
e confortável. Sinto a superfície em que irei fingir dormir afundar com a
estrutura do garoto. Uma sensação nova de necessidade cobre a minha pele,
fazendo-me querer cometer atitudes sem sentido e envolvimentos que
podem se tornar vícios prejudiciais a quem eu sou. Quero dormir nos braços
do garoto, mas nada ecoa da minha boca. Só não posso dizer o mesmo da
minha carne que, sem a minha autorização, oscila sobre a cama e rola para
perto do peitoral do meu inferno pessoal. Archiviéste expressa uma emoção
de confusão e desconfiança, abaixando o olhar e movimentando a coluna
para deitar de lado, permitindo que eu consiga me ajeitar no seu peito.
Depois disso, ele passa o braço e o apoia na minha cintura, começando a
acariciar o local.
— Eu não gosto de dormir sem alguém me abraçando — explico-
me, sem real intenção. O cheiro de maçã com canela perfuma o lugar,
invadindo a minha mente e lembrando-me de que, agora, eu estou segura.
Isso não poderia estar acontecendo, somos inimigos. Rivais. Noeeh me
aperta um pouco mais, me aproximando do seu coração, como se quisesse
que eu ficasse ali para sempre, como se essa atitude, de alguma forma, fosse
uma súplica interna que diz:
— Não fuja, Morgana. Por favor, não fuja de mim.
Mas não é isso o que eu ouço.
— Durma, Morgana — ordena, fechando os olhos. Por que ele diz
como se estivesse machucado? Noeeh soletra como se soubesse de tudo e,
mesmo assim, não quisesse acreditar. — Apenas descanse.
E eu fechei os olhos, finalmente conseguindo dormir, mas
consciente de que não ficarei aqui por muito tempo.
CAPÍTULO XVII
O profundo e deplorável conhecimento que o garoto toma da minha
alma negra, com espírito falso de raposa marsala, não é suficiente para fazê-
lo se afastar de mim. É desqualificado e fracassa quando tenta me matar. E
não é por falta de um aviso do seu interior ou de repetição da sua mente. Ele
sabe, Noeeh sempre soube que eu não prestava para isso e mesmo assim
tentou. Insistiu numa relação que nunca daria certo, mesmo enxergando o
fundamental. Archiviéste entendia que a qualquer minuto eu poderia fugir e
mesmo assim tentou. Ainda que, de todos os dedos que já me tocaram, os
dele tenham sido os mais carinhosos, ainda que nesse mês ele tenha me
tratado de uma forma que nem meus pais o faziam, ele compreendia que, na
primeira oportunidade, eu escaparia das suas mãos. Archiviéste não me
tratou como se trata uma inimiga. Não me tratou como se trata alguém que
uma vez já o traiu.
Não se beija alguém que o apunhala pelas costas.
Não fazemos carinho em alguém que nos deixou cicatrizes.
Principalmente se elas forem internas.
As feridas espirituais são as que mais doem, porque o tempo não é
capaz de fechá-las.
Os coágulos sanguíneos não são capazes de estancar o sangramento.
Mais uma vez, ele foi naufragado com mentiras dos meus falsos
toques afetivos. Mais uma vez, ele está machucado com a minha
impulsividade de traição. Mais uma vez, eu não o escolhi. Mas, desta vez,
eu sinto algo. Consegui o que eu mais queria. E estou feliz com isso? Noeeh
é um mar de cicatrizes que não é capaz de formar ondas. E fui eu que o
transformei nisso. Ele é um corpo vazio que não é capaz de transportar
almas. E fui eu que o transformei nisso. O cisne negro é alguém que foi
apaixonado por mim. E como consequência, não restou nada de si. E
também não restou nada de mim, pois me partiu saber que eu agi igual ao
meu marido que atuava para a minha segunda personalidade. A cena
dificulta quando eu penso que para o portador dos olhos violetas pode ser
ainda pior, porque seu sentimento é verdadeiro, não é uma ilusão como era
para o meu passado. Tudo o que ele sente é verídico.
“Amar o homem que era para estar ao meu lado é supérfluo. Eu
demonstro. Ele destrói. E quanto mais eu o amo, mais ele me odeia. Um
conflito de emoções opostas que me quebra cada dia mais. Um amor
preenchido de lágrimas e sorrisos. Sangue e vida. A famosa peça teatral de
cura e morte. Ele não me toca. Ele não me ouve. E, principalmente, ele não
me olha. Meu corpo desmaia, mas a minha mente nunca chega a dormir.”
Será que ele também sofria quando eu o olhava como se o quisesse
morto?
Sua esperança foi estilhaçada.
E o que mais doeu foi saber que ele ainda tinha esperança em mim.
Luz da minha vida. Fogo da minha carne.
Noeeh não pode tratar assim alguém que odeia, somos rivais e isso
não vai mudar. Por mais que me incomode — e talvez até deixe meu
coração balançado de aflição —, aquele olhar de tristeza e decepção nos
seus olhos, isso não deve e não pode mudar. Nunca fui uma pessoa cujo
ponto forte fosse a empatia e a habilidade de se colocar no lugar do outro. A
capacidade de interpretar o sentimento, principalmente a paixão. Sempre fui
venenosa. Sempre matei e traí sem pensar nas consequências ou na dor que
isso causaria em alguém. Sempre eu, nunca eles. Por isso que o traí naquele
dia, mesmo sendo íntimos ao ponto de contarmos segredos um para o outro.
Mesmo depois de tê-lo deixado colocar o seu rosto no meu braço, mesmo
depois de ter permitido que ele chorasse no meu peito. Que suas lágrimas se
juntassem às minhas. Mesmo sabendo da relação afetiva e totalmente
inocente e pura que nós criamos naquela época.
Ele me via como uma amiga e eu o via como um boneco.
Uma arma para destruir a sua família. E eu a utilizei. Na primeira
oportunidade, eu o usei.
Noeeh era só uma criança de nove anos.
Mas, como citei anteriormente, eu não me importo com o que é
certo.
Tombo a cabeça para trás, respirando fundo enquanto penso.
Relembro o segundo em que me levantei da sua cama, em completo
silêncio. Eu sabia que a madrugada não o tinha colocado para dormir.
Archiviéste sabia que eu iria sair daquela casa, sabia no momento em que
me vislumbrou descendo as escadas. E era por isso que não queria olhar
para mim. A mágoa cotidiana causada pelo passado em seus olhos roxos e
abatidos estava se mesclando com frustração e fragmentos de esperança.
Era isso que acompanhava a sua tristeza, eram os pedaços do seu coração.
Era a sensação das cicatrizes antigas abrindo-se novamente e causando uma
hemorragia muito mais profunda e impossível de ser suportada. E Noeeh
tentou fechá-las a qualquer custo, ele até se deitou comigo para manter as
linhas intactas. Impedir os tendões de se partirem. Mas a costura das suas
feridas se estraçalharam quando me viu o traindo mais uma vez, como a de
um boneco dado a uma criança irresponsável.
E vislumbrar os seus cílios molhados foi a segunda coisa mais
dolorosa para mim.
Eu não sabia que Archiviéste era capaz disso.
Para mim, o cisne não tinha o dom de chorar.
Ele sempre me pareceu tão forte.
Uma parte minha sempre o admirou por suportar e ainda se manter
implacável.
O que foi que eu fiz?
— Eu fiz o que precisei. — Não está na hora de sentir pena de
ninguém, somos inimigos. Nascemos para lutar um contra o outro. Ou eu,
ou ele. A minha morte ou a dele. Não há espaço para nós dois no
Submundo. Somos líderes e esse cargo só pode ser ocupado por um. E será
eu.
— O que disse, Morgana? — Liberto-me do meu pensamento,
olhando para Jacks. Será que eu pensei alto demais? O ruivo encara-me
confuso, como se não estivesse entendo a minha situação ou o que eu falei.
Ajeito a coluna no banco da carruagem e arrumo o meu vestido, deixando-o
certo. Silêncio. — O que você disse, Morgana?
— Eu estava pensando alto, pode ignorar — revelo, desviando o
rosto para a paisagem do local. Estamos em uma estrada que provavelmente
é a rua principal da cidade. Estamos muito perto do palácio. Perto da
mansão que abriga a minha família paterna. Consigo vislumbrar através da
clareza do dia a neve enfeitando as copas das poucas árvores que se
encontram no ambiente, as casas seguem o mesmo padrão, são quase
idênticas. Uma das coisas que mais me irrita na moda vitoriana. É preciso
ter coragem para ser diferente, porque todos aqui parecem ser semelhantes,
arrisco dizer que até iguais. Sem essência própria.
— Estamos chegando. — Escuto um som saindo da boca do cavalo
que nos carrega. — Você vai direto para o palácio, suponho. Como vai fazer
para entrar?
— Vou ter permissão para entrar se usar o sobrenome do meu pai.
Mowbray — digo, direta. — Já que ele é o falecido capitão da Marinha. A
minha família paterna ainda tem um grande poder nessa cidade, é
perceptível pelo brasão instalado em algumas casas e comércios. Acredito
que eles ainda dominam uma boa parte das docas.
— Mas então… — Eu pisco e ele começa. — Você vai ter que
relevar ser filha única de um homem que se revoltou e traiu o próprio país
para se casar com a contrabandista mais procurada da época. — Como eu
poderia me esquecer da bizarra história de amor do meu pai e da minha
mãe? Eles eram inimigos mortais, mas se tornaram amantes em um piscar
de décadas, não foi tão fácil assim. O gavião vermelho e a onça branca. —
Por mais que você odeie, é mais fácil usar o nome de Edward e dizer que
está com ele.
— Como será que Katherine entrou? — pergunto, tentando achar
uma falha no seu plano.
— Provavelmente como uma criada — ele responde e, infelizmente,
pode ter razão. Se a família do meu pai descobrisse que ele estaria
apresentando o meu nome usando outra mulher, teria enormes problemas. E
também teria voltado para casa, já que não há outro lugar onde possa ir.
Bom, agora nem mais a casa. Muito perigoso, e esse homem não sabe lidar
com o perigo. — O que vai fazer quando vê-lo novamente?
— Vou dar um tapa no rosto dele. — Quero fazer isso desde o
momento em que tomei o controle da minha mente. Tão forte que irá
machucar as suas bochechas. E isso não será o suficiente. Talvez, eu o mate.
— Não estou falando do seu marido. — Meus pulmões congelam e,
infelizmente, não foi com o frio glacial desta cidade maldita.
— Se ele me achar, ele vai me assassinar. — Como eu fiz com ele.
— No entanto, é mais seguro para mim ficar no palácio e não na casa dos
Mowbray. Pelo menos sei que não vou correr o risco de ser morta.
Morgana Villain Mowbray. Isso não combina, por isso minha mãe
não deixou que meu pai colocasse em mim o nome da sua família. Quem é
louco o bastante para enfrentar uma onça branca?
— E se ele invadir? — questiona, arqueando a sobrancelha direita.
— Se ele invadir, vai morrer pelas mãos dos guardas antes que
chegue até mim. — Passamos mais de duas semanas viajando para chegar
na capital. Estamos precisando muito, muito descansar. Eu não tenho
cabeça para pensar no que vou fazer quando encontrá-lo. Minhas
lembranças nesses últimos dias só se voltaram para ele. Apenas ele. Chega,
por favor. Quero uma pausa, pensar nele dói. Vasculho o local, minhas
pernas estão doloridas e meus ombros também e, mesmo assim, eu percebo
uma movimentação anormal na cidade.
— Por que tanta gente na rua e tanto desespero? — pergunto para o
ruivo, inclinando a cabeça. — Será que aconteceu alguma catástrofe?
— Difícil — responde, direto. Sem virar-se para mim. Ouço alguns
passos dos seres humanos se mesclando aos ruídos que saem do casco do
cavalo em movimento. A euforia pesa a atmosfera e se junta com os
segredos imundos do castelo. — Estamos na Inglaterra.
— Esse é o problema, estamos na Inglaterra. Aqui e em outros
países da Europa existe uma capa invisível que esconde as merdas que eles
fazem, mas acontecem do mesmo jeito — explico, um pouco irritada.
Países desenvolvidos e suas manias irritantes de se acharem superiores ao
resto do mundo. Querem falar de justiça, mas são os que mais cometem
crimes perante a mesma. A diferença é que a lei está ao seu lado. — Eles
sobrevivem de imagem.
Sustentam uma ilusão.
— Acho que todos nós ultimamente estamos vivendo assim. —
Quando foi que esse homem aprendeu filosofia? Ficamos apenas algumas
semanas separados. — Se nós já fazemos isso, imagina aqueles que são
sedentos pelo controle mundial. Todo grande império um dia irá cair,
Morgana.
Eu sei disso, por isso estou tentando reconstruir o meu. Talvez esteja
na hora do dele cair. Aquele garoto não deveria ter sido sequer erguido.
— Mas sempre irá nascer outro em seu lugar. — Trinco os dentes,
observando um casal conversando perto dos objetos de uma tenda tingida
com um pigmento diferenciado, um vermelho escuro puxado para um
marrom fechado. Muito bonito, mas não perfeito. Poderia ser um pouco
mais escuro. Todos nós sabemos que vinho é a cor mais bonita que existe.
Acredito que seja um pequeno comércio. Muito pequeno para chamar
atenção e perfeito para passar despercebido. — Pessoas assim não poderiam
liderar.
— Mas são as que lideram. — Uma verdade que pode ser mudada,
mas ninguém tem esperança de que vá mudar. Eles retiram sua habilidade
de questionar. — E o fato delas não liderarem de verdade é o que as
mantêm no poder.
Um suspiro exausto e curto escapa dos meus lábios cortados pelas
rajadas de vento, como a boca dele estava no primeiro dia em que eu o vi.
Isso fica tão lindo nele. Os pequenos cortes da sua boca o deixam mais
charmoso. Outras pessoas também podem ter, mas é uma característica dele.
Fecho os olhos com força, querendo bater-me por lembrar-me da criança
birrenta até em momentos como esse, completamente inapropriados. Isso
não é hora de pensar em homem, principalmente se ele for o meu maior
inimigo. Nunca tive tempo e, neste momento, eu não tenho mesmo. Tenho
que avisar a Marinha antes que eu acidentalmente mude de ideia. Percebo
que o movimento contra o vento se estaciona, meus cabelos param de
balançar, fazendo minha mente perturbada pensar em uma única e certa
coisa: chegamos.
E eu não sei se estou tão feliz como imaginei que estaria.
Abro os olhos, desviando-os para Jacks, que está abrindo a porta da
carruagem, mas antes de andar, ele para, encara-me e diz: — Quando ainda
estava aqui na capital, fiquei sabendo de algumas coisas que talvez sejam
aterrorizantes para você, Villain. Juro pelos anjos, não fazia ideia do quanto
Archiviéste é famoso nesse mundo, só não descobrimos antes, pois,
realmente chamavam-o de outro nome.
Arqueio as sobrancelhas.
— Ele naufragou cerca de quinhentos e cinquenta e oito navios —
Conclui sua fala. Quero revirar os olhos.
— Em um ano? — zombo, questionando. — Eu também consigo,
Jacks.
— Em sete horas, Morgana.
— Haviam quantos homens com ele? — Mesmo se fosse um
exército, ainda seria impressionante.
O ruivo está sorrindo.
— Nenhum. Este é o grande problema: Archiviéste estava sozinho
quando fez do mar a sua mesa de barganha.
— E a monarquia?
— Provavelmente é só mais um móvel presente na mesma sala. —
Uma mesa dele.
— Não vai dizer nada?
— Vou torcer para que isto seja apenas um boato. Ou que tenham
errado a contagem. — Espero muito que tenham errado o homem.
Encaro a entrada do Palácio Kensington, onde há um enorme jardim
com diversos tipos de flores plantadas, cujos nomes eu não sei, mas sei que
são lindas. Pelo menos a maioria. Uma pena não haver gardênias aqui, elas
sempre foram as mais bonitas e elegantes. Representam o mais puro e cru
sentimento de amor verdadeiro. Há um gramado verde, extenso e muito
bem cuidado também, limitando as estradas para a gigantesca casa onde
mora a rainha. Há várias árvores altas e cheias enfeitando os caminhos para
o palácio, elas estão instaladas nas laterais, entre a terra e o gramado, como
se os seres que não têm a capacidade de falar estivessem nos recebendo.
Confesso que é lindo, muito bonito mesmo, mas é só isso, beleza. Não há
emoção ou sentimento neste lugar. Um ambiente sem afeto. Mesmo que as
pessoas dentro das grades aparentem estar felizes, eu não sinto alegria ou
contentamento e não ouço risadas sinceras. Apenas sons falsos e
perturbadores que, pela primeira vez, me causam alergia e irritação na pele.
Quero algo verdadeiro.
Não, não eu não quero.
Há uma fonte, centímetros antes de chegar ao castelo, construído em
estilo gótico e clássico, por conta da arquitetura vitoriana elaborada pela
rainha. Mesmo de longe, deu para perceber que ela não foi muito criativa ou
até mesmo original, já que é uma mistura de modelos antigos, que viveram
antes do seu nascimento. Combinações de torres, varandas, janelas, frisos e
telhados. Tenho certeza que a mobília interior não é diferente, papéis de
parede com cores marcantes como azul, móveis pesados, sempre feitos com
madeiras escuras, alguns detalhes dourados aqui e lá e, obviamente, sempre
representando o poder sobre o que é considerado mais valioso no mundo.
Não saindo muito da estética morta. Aqui não predomina o cheiro de águas
cristalinas como em Penzance. O passado da cidade não é tão sombrio
quanto o do Submundo. Aqui não existem segredos como os que guardam
aqueles lindos olhos violetas. Não há uma sensação baixa de mistério.
Absolutamente nada.
Quero voltar para o meu lar.
Estou com abstinência da minha casa.
Um pequeno ar de preguiça me bate quando eu penso em andar todo
o caminho. Reviro os olhos e analiso os portões de ferro, há guardas
espalhados por todo o jardim e quatro soldados nos portões do palácio,
permitindo a entrada e saída de pessoas. Estão mais atentos do nunca, até se
movem com uma certa dificuldade. Seus olhos vasculham tudo, desde os
sapatos até os fios de cabelos. Estão inseguros, com um pouco de medo, de
receio. A nossa rainha está celebrando, e, pelo visto, a longa festa vai estar
aberta à nobreza, e algo horrível aconteceu da última vez em que fizeram
isso. Perfeito. Tenho que me atualizar das fofocas.
— Senhor — um guarda cumprimenta Jacks. Vira-se para mim e
diz: — Senhora. — Ele tem os olhos escuros e a pele clara, o cabelo liso e
loiro. Muito simples. Ele não tem graça. Não para mim, mas talvez teria há
alguns meses atrás. Filho da puta desgraçado. — Posso saber a qual família
vocês pertencem?
— Ela é a Sra. Lancellotti — responde o ruivo no meu lugar,
sabendo que se deixasse para mim, eu faria merda e estragaria o plano. Não
gosto do sabor amargo de ouvi-lo soletrar as palavras que comprovam que
sou casada com aquele canalha. Casada. Casada tem um cheiro ruim. Não
gosto dessa junção de letras. — Esposa do Sr. Edward Lancellotti. Eu sou
apenas um servo da nobre família.
Espero muito que aquele desgraçado não tenha apresentado
Katharine como sua esposa, ou as coisas não vão ficar legais por aqui. Vou
ter que matá-lo antes de ir embora. Se bem que não seria uma ideia tão ruim
assim. O homem loiro que é pago para proteger olhou-me confuso,
erguendo o queixo e perguntando:
— Isso é verdade, senhora? — Jacks encara-me como se a sua vida
dependesse disso, seus olhos arregalam, sua boca fica seca e sua alma sai do
corpo. Seu estado é tão deplorável e sujo que eu fiquei com pena, senti-me
obrigada a concordar com a cabeça. Sua alma voltou para o corpo, e agora
eu estou com vontade de sorrir.
— Se estiver com alguma dúvida, chame-o aqui — digo com firmeza
o suficiente para parar a terra no meio de um terremoto. — Tenho certeza
que ele adorará explicar a situação. Só saiba que ele não é um homem muito
paciente e é muito íntimo da rainha. Acho que o melhor amigo da Vossa
Majestade.
Aquela mulher é hipócrita, apoia que mulheres fiquem em casa,
cuidem do marido, dos filhos e mantenham a submissão perante aquele que
se diz chefe da residência, mas ela mesma não tem esse tipo de atitude no
castelo. Ainda bem que algumas moças perceberam e, inconscientemente, a
levam como inspiração para seguir o seu próprio caminho.
— Sei que está confuso por ele estar acompanhado de outra mulher
— continuo, persistindo no contato visual. — Mas aquela lá é apenas sua
amante.
Antes que Jacks me repreendesse e falasse o meu nome em voz alta,
desfazendo a fantasia que, até o momento, estava dando certo, eu me
seguro, inclino a cabeça, sorrio docemente para o homem à minha frente e
estreito os olhos, como uma linda e devota esposa faria ao querer visitar seu
amado, que passou dias sem vê-la de perto. Ao querer abraçá-lo. Beijá-lo.
Tocar aquela pele castanha... Pelos céus, abano a cabeça e encaro o loiro,
murmurando baixinha:
— Perdoe-me pela informalidade — minto, não estou arrependida.
— Ela é apenas a serva do meu marido, mas espero que esse engano logo
seja resolvido. Podemos chamá-lo aqui, com a mulher ao seu lado, e, se
quiser, também Vossa Majestade. Podemos chamar todos aqui. Até os
Mowbray, já que eu sou filha do ex-capitão da Marinha.
O homem se assusta, dando-me passagem para entrar. A pior coisa
seria essa bomba estourar em suas mãos. Então ele dá um passo para o lado,
alertando os outros que devem me deixar entrar no castelo. Dou-lhe um
sorriso sincero e friamente saboroso. O espírito do ruivo volta para seu
corpo, depois de passar por uns longos segundos fora do normal mais uma
vez. Ele me analisa, como se algum dia desses eu fosse matá-lo. Coloco um
dos pés para fora da carruagem, esticando a minha perna no segundo em
que a coloco no chão. Um prazer momentâneo ganha a disputa da minha
carne e substitui a força da dor que eu senti por ficar horas sentada,
esperando essa chegada. Ou essa saída.
Meus braços ficam ao lado do meu corpo e eu retiro minha outra
perna, andando para frente. Desvio meu rosto para o ruivo que está sempre
me acompanhando nas merdas e sorrio mais abertamente, como se
realmente estivesse feliz por estar naquele local. Umedeço os lábios e bato
pequenas palmas em comemoração. Apenas duas. Já estou me parecendo
com uma mulher forçada, dar mais que isso só deixaria claro o quanto odeio
meu marido. Respiro fundo e começo a andar, evitando carregar algumas
das malas que compramos no caminho antes de chegar à cidade. Seria
estranho se chegássemos sem nada e mais ainda se fizéssemos isso no local,
então as compramos algumas horas antes, para que não desconfiassem.
— Senhora — Jacks me chama, levantando as malas da carruagem e
despachando o homem que nos trouxe. Seus olhos diziam claramente: “Me
ajude a levar as coisas, Morgana”. Mas a única coisa que eu dou-lhe é um
sorriso malicioso, não no sentido sexual, mas no sentido de que, neste
momento, eu vou aproveitar e abusar do poder que me foi concedido
temporariamente.
Abro a boca em um perfeito formato de “O”, arregalo os olhos e
levanto a sobrancelha, sendo uma puta cretina, e colocando os meus dedos
nos lábios segundos depois. Imitando aquelas madames que nunca
carregaram um objeto pesado na vida. Agora é a minha vez de ser tratada
como uma mimada. Faço um beicinho, descendo minhas pálpebras. O ruivo
estreita os olhos, me xingando mentalmente de desgraçada. Por sua face
desprovida de felicidade, ele não está gostando da atuação. Coloco a mão
no coração, deitando a cabeça para a lateral esquerda.
— Ah. — Solto um suspiro cansado. — Como eu poderia me
esquecer das minhas preciosidades? — Minha voz ecoa um pouco mais fina
que o normal. Diferente de uma contrabandista, mas igual a uma dama. O
homem que se diz meu amigo quer jogar essas bolsas em mim. Na minha
época, os homens carregavam as malas sem reclamar. — Jacks, leve-as para
mim. E, por favor, cuidado com as meninas. Elas valem mais que você.
Viro os calcanhares, divertindo-me com a face do ruivo. Meus
ombros tremem e eu mordo as bochechas, segurando a vontade de rir. Passo
pelos guardas, feliz e, acima de tudo, orgulhosa. Posso estar prestes a fazer
uma besteira, mas eu consegui, consegui fugir e escapar das mãos daquele
garoto. E por mais que eu tenha certeza de qualquer hora dessas ele vai
voltar.
Noeeh vai aparecer aqui e tenho certeza de que não sairá desse salão
de festas vivo. Archiviéste acha mesmo que eu não percebi o fato dos
guardas me deixarem passar tão fácil? Eu poderia ter enganado os outros
três, que pelo visto, são soldados da rainha. Existe uma ação padrão que é
aprendida logo na seleção, a pressão nos ombros por conta do pavor
psicológico que é colocado em suas mentes, sempre questionando tudo sem
alertar a Vossa Majestade e uma postura de submissão, sem autonomia.
Parecem robôs, sempre seguindo ordens. Aquele homem não pertence à
monarquia.
Ele tem atitude, deixou-me passar por conta própria, assumindo a
responsabilidade por algo errado, coisa que os outros nunca fariam. Eles
teriam chamado Edward, para que, se algo desse errado, a culpa fosse dele.
O loiro é esperto e o único ali que sabe analisar um corpo armado. Ele
olhou todos os pontos, desde atrás do meu pescoço até as laterais do meu
corpo e partes das minhas pernas. E o loiro deixou que eu percebesse. Esse
homem não pertence à monarquia.
Ele queria que eu soubesse disso.
Ele desejava que eu compreendesse que Archiviéste está aqui. De
duas, uma: ou eu morrerei hoje à noite, ou ele quem será morto pelos
homens da rainha quando chegar. Uma respiração pesada escapa da minha
garganta, fazendo-me apressar os passos para chegar no castelo. O cisne
está aqui. Ele está aqui. Ele está aqui. Ele está aqui. Ele está aqui. Pelos
céus, o que que eu faço?
Entro na estrada que possui árvores nas laterais, sem um pingo de
desejo de esperar Jacks e ajudá-lo. O portador dos olhos mais lindos que eu
já vi está presente neste lugar. E não era isso que eu queria? Mas Ar chegou
primeiro. Isso lhe dá alguma vantagem sobre mim? Meu coração acelera
como se eu estivesse caindo de um penhasco, ele palpita como se eu
estivesse ouvindo a voz do diabo. Ele está aqui. Estaciono em um lugar,
obrigando-me a parar de caminhar, de correr ou seja lá o que que estava
fazendo. Meu peito sobe lentamente com a respiração devagar e eu repito
com a voz presente na minha cabeça: “Acalme-se, Morgana. O que esse
homem está fazendo é pressão psicológica”.
Muito boa, aliás. Mas estou cansada do fato Archiviéste estar no
controle.
— Sua pirralha. — Escuto a voz conhecida entrar nos meus ouvidos.
— Você me deixou com aqueles brutamontes sozinho.
— Eles não iam fazer nada com você — asseguro, continuando a
caminhar. Não é você quem eles querem, quem ele quer. Sou eu. Sempre.
Desde o dia em que Noeeh me entregou aquelas flores brancas. —
Archiviéste está no castelo.
— Como? — pergunta, surpreso. Jacks muda o peso do seu corpo de
um pé para outro. Seu peito está ardendo, tenho certeza de que está
ardendo. Archiviéste causa esse tipo de medo nas pessoas. De não sabermos
o que o platinado vai fazer quando nos encontrar, ou melhor, quando me
capturar.
O capitão vai ser pego pelos guardas antes que chegue até mim.
O cisne vai me matar?
— Se ele não está, ele vai chegar — afirmo, cansada dessa
brincadeira de caça entre gato e rato. Exausta de ser a presa.
— Ele é o homem mais procurado da Marinha Britânica, Morgana.
— Um sorriso se instala em seus lábios e uma falsa sensação de sarcasmo
se apodera do meu rosto. Jacks diz como se isso o impedisse de fazer algo
contra mim. Não se pode considerar o cine negro um homem burro, ele não
vai dar as caras de primeira, não. Noeeh só quer que eu saiba. Se quisesse
se mostrar para os convidados, já teria feito isso. — Por mais que alguns
guardas aqui trabalhem para Archiviéste, não são a maioria. Duvido que ele
revelará os soldados corruptos só para sequestrar você. Se Noeeh fizer o
que você está pensando, perderá muito do que construiu. Será tolo, e isso
não é do seu feitio.
— Então o que Ar planeja? — questiono, mas não foi exatamente
uma pergunta. Foi uma dúvida jogada para ao universo.
— Não sei. — Não sabemos e é isso que me preocupa. — Mas não
acredito que ele se mostre na festa. Se for para te pegar, ele fará as coisas
em silêncio. Não fique em lugares escuros, tente se manter no meio, sempre
perto dos guardas ou das pessoas. Para dificultar e impedi-lo.
— O que ele fará comigo? — Uma respiração. — Caso ele consiga
me pegar. O que acha que ele fará comigo?
— Não se preocupe, o homem não irá conseguir. — Sinto o cheiro
de comida se espalhar pelo local. Estamos perto do castelo, pelo menos o
suficiente para sentir o cheiro dos pratos tradicionais que se tornaram a
paixão da rainha Vitória. Sopa, peixes, frangos, rosbifes, batatas de todas as
formas possíveis de ser cozida, sorvetes, bolos e tortas. Pelo que se espalha
no reino, o doce favorito dela é cranberry com creme. E, além da comida, a
danada ama bebidas alcoólicas, sendo casada com o uísque desde antes de
se juntar ao seu marido.
O castelo é exatamente da forma que eu esperei que fosse. Suas
paredes altas e avermelhadas dão um pequeno tom inesperado, mas não
chamam muito a atenção. Ainda parece um ambiente morto e totalmente
copiado. As portas estão abertas e o barulho dos passos que ecoam da
correria dos empregados é nítido e um pouco assustador. Milhares de servos
passando para lá e pra cá, rodeando, desesperadamente, a sala do ambiente
por causa da arrumação da festa. Seria engraçado, se não fosse trágico e
causasse um pouco de pena na sua mente. Alguns se esbarram, mas, com
pressa, não pedem desculpas, acho que não estão autorizados para isso. O
cheiro aumenta quando eu piso no chão de arquitetura gótica. Os móveis
são pesados, de cores escuras e feitos de madeira. Alguns detalhes dourados
aqui e outros ali, mas, como falei, nada que fugisse do padrão.
Levanto a cabeça quando um dos servos caminha até mim. A
mulher alta de cabelos enrolados e loiros, olhos verdes e nariz longo seca a
sua mão no vestido antes de parar a minha frente. Ela estaciona os dois pés,
um ao lado do outro, abaixando levemente a coluna e a cabeça.
Cumprimentando-me como uma dona da nobreza, coisa que ela acha que eu
sou. Parei de ser no segundo em que Edward pisou os sapatos marrons com
aquela ponta horrorosa para fora de casa.
— Senhora… — A loira pausa por não saber o meu nome.
— Lancellotti — continuo, com um certo desprezo. Desvio o rosto
para Jacks e respiro fundo, querendo voar deste castelo, sair como se nada
tivesse acontecido. — Esposa do Sr. Edward Lancellotti.
— Sim. — Ela se abaixa novamente. Fingir está me irritando, pela
primeira vez na minha vida. Estou irritada por mentir. — Acompanhe-me,
por favor. Vou levá-la ao quarto do casal. Perdoe-me não a ter recepcionado
dignamente, o senhor não me avisou que a senhora chegaria.
— Não se preocupe. — Começo a caminhar na direção em que a
loira está andando. Seguindo as escadas do castelo. Jacks movimenta-se
atrás de nós duas, calado e apenas observando a moldura. E, obviamente,
carregando as malas. — Vim lhe fazer uma pequena surpresa.
— Tenho certeza de que ele vai adorar, senhora. — Seus olhos
brilham como dois pequenos diamantes. Um, dois, três e quatro degraus. —
A senhora é uma mulher muito bonita. — Uma pequena risada gentil. —
Seu marido é um homem de sorte.
— Não adianta ser sortudo, mas ser burro. — Ela pisca, atordoada.
Acho que a menina nunca viu uma mulher tão desbocada quanto eu, não no
lugar em que trabalha. Solto uma respiração pesada. — De qualquer forma,
muito obrigada. Fez mais em questão de segundos do que o meu
companheiro em questão de anos.
— Certo. — Sorri, sentindo-se sem graça. A moça aperta os lábios
quando terminamos de subir as escadas. Eu escuto uma risada sincera
saindo do corpo que está atrás de mim. Desvio o rosto e olho para Jacks,
perguntando:
— Por que está rindo? — A sua boca se contorce em um sorriso
sacana quando ele termina de subir. Inclino a cabeça e cruzo os braços na
altura do peito. Desafiando-o a falar.
— Estou feliz — responde, com os olhos ardendo de orgulho.
Expresso a minha confusão, desfazendo os braços cruzados e movendo o
pescoço. Neste momento, eu não tenho mais nada além de um coração
corrompido. Um órgão feito para as vitalidades de um vilão. — Você
finalmente parou de ser trouxa.
Um som estranho sai do meu corpo. Que audácia é essa? Esse é o
mesmo homem que tomou uma surra dos moradores por ser pego no
trabalho? Quem esse idiota acha que é? Um pequeno “hã” sai da minha
boca, indignada. Meu rosto fica branco e a cor pula para as bochechas. Ele
está feliz. Ele está realmente contente com isso. Não é ironia ou sarcasmo
da sua parte. Relaxo os músculos e abaixo a guarda, só desta vez. Não vou
respondê-lo a altura. Vou deixar o ruivo se expressar.
Viro-me de costas para ele quando a moça chama-me de “senhora”.
Ela está na frente da porta de um dos quartos do corredor. A janela está
atrás de si, refletindo e deixando que a luz do sol passe pelas brechas, o que
dificulta um pouco vê-la, mas clareia os móveis escuros do castelo. Dou-lhe
um sorriso simpático e aproximo-me da sua constituição física, ficando ao
seu lado e olhando para a porta. A porta do quarto do meu marido. Analiso-
a bem antes de fechar a mão em uma posição que, em outra situação,
serviria para dar um soco. Como eu queria dar um soco, entretanto esse não
é o momento ideal.
Ergo o meu antebraço, batendo à porta, como uma criança
chamando os pais.
Ninguém abre, no entanto é possível ouvir um barulho baixo,
doloroso e principalmente feminino. Fica nítido o que o desgraçado está
fazendo com a sua criada. Uma risada falsa explode no peito. Mordo as
bochechas, mudando o peso de um pé para o outro. Isso não me afeta mais,
não deixa-me triste como deixava antes, quando eu ainda sofria com sua
manipulação. Então a moça loira, com a expressão tímida e levemente
envergonhada, levanta a cabeça, respira e me diz:
— Talvez ele não esteja no quarto — mente, tentando acalmar-me.
Ela também ouviu e sabe muito bem o que está acontecendo nesse quarto.
— Podemos procurá-lo no jardim. Ele gosta bastante de ficar perto da fonte.
Se eu o encontrasse lá, eu o afogaria. Da forma mais cruel possível.
— Eu vou arrombar essa porta — declaro, direta, como se eu não
estivesse prestes a cometer uma loucura daquelas que me colocariam em
sérios problemas. Quebrar uma mobília do castelo, isso seria facilmente
uma bela desculpa para ser expulsa da capital. Escuto uma risada gostosa
vindo de Jacks. A pequena garota se assusta, da mesma forma categórica
que todos os outros, mas isso não me impede de levantar a perna direita,
apontar para a madeira, respirar e chutá-la fortemente, fazendo-a tremer,
mas não abrir. Vou tentar novamente. Vou tentar até conseguir.
— Senhora, eu acho que isso não… — O som diabético da voz dela
é abafado quando outro chute meu atinge a matéria que compõe a porta.
Desta vez, ele é mais forte, desta vez, o barulho é mais alto. E desta vez, a
madeira abre, mostrando-me o que eu esperava, mas não queria vislumbrar.
Nunca nesse mundo eu gostaria de vê-lo novamente.
Isso é nojento, muito nojento. Escroto de uma maneira tão
assustadora que nem um poeta quebrado poderia embelezar. Não é ele
quem eu quero ver despido. Não é ele quem os pintores pagam para
desenhar. Não são aqueles músculos que eu desejo absorver novamente.
Meus pés estão doendo por ter chutado a porta, mas, mesmo com a dor
rodeando o membro do meu corpo, a agonia e o desconforto não importam,
não quando o garoto birrento não sai da minha mente, não quando ele está
presente até nos segundos inconvenientes. Eu não cobiço mais o homem de
olhos verdes e pele clara que está na minha frente, recebendo algo que não
quero descrever. Não mesmo. Depois eu tenho que implorar o perdão da
moça loira e de Jacks por estarem vendo isso.
Eu não me lembrava que aquilo era tão pequeno.
Começo a rir com a expressão que os dois fazem ao serem pegos no
flagra. Katherine me olha com desprezo, como sempre me olhou, e eu
apenas retribuo o mesmo jeito de encarar. A examino como se a quisesse
morta, porém eu não perco muito tempo com ela. Bonecos manipulados não
me interessam, até porque, o que realmente quero é a queda dos seus
manipuladores. Não adianta querer brigar com um cachorro por defender o
seu dono. Meus olhos sobem, assim como meu queixo, analisando ninguém
mais, ninguém menos que o homem que prometeu-me o mundo. Só não me
avisou que seria um mundo podre e falido. Edward parece-me um ser tão
feio agora, como um neném que descobre que não existe apenas o leite da
mãe como comida.
Existem coisas muito mais gostosas. Pessoas também. E como
existe.
Seguro a vontade de rir, mordo os lábios e meus olhos brilham com
a cena. Dou um passo à frente, aproximando-me do meu ex. Edward
cambaleia para trás, vestindo-se apressadamente, como se acabasse de tocar
na boca de um fantasma que volta para assombrá-lo. Ele termina de colocar
a calça e sua nova esposa levanta-se, ficando ao seu lado. Ouço o barulho
das malas encostando no chão e, logo depois, os dedos do ruivo tamborilam
sobre alguma superfície do quarto. Lancellotti empurra os cabelos para trás,
expressando o quão nervoso está diante da situação.
— Quanto tempo, meu amor — digo, fazendo-o engolir em seco.
Meu amor, a forma como ele me chamava. O modo falso como se referia a
mim. Meus olhos descem para a mulher ao seu lado. — Serve para você
também, Katherine. Vejo que vocês dois vinham muito incomodados com a
minha ausência. Acredito que tenham sentido a minha falta.
— O que está fazendo aqui, Morgana? — pergunta-me com um tom
de voz grosso e rude. Repreendo-o com um olhar de desprezo, digno da sua
pessoa.
— Não ouviu o que eu disse, Edward? — questiono, com o mesmo
tom de voz. — Eu vim aqui para matar.
A amante levanta a cabeça, arregalando os olhos e desviando o rosto
para o homem, incrédula com o que acabou de ouvir. Os olhos deles
rodeiam as órbitas, analisando-me como se eu estivesse fora de mim. Não
estão certos, eu estou muito dentro de mim. Estou da forma que não deveria
ter parado de ser.
— Matar a saudade que eu tenho de vocês. — Sorrio.
CAPÍTULO XVIII
O profundo e imaturo devaneio hipnótico formulado pelas mãos
perfeitas do garoto de olhos violetas na tentativa fracassada de manipular-
me e dominar-me, está enraizado no perfume atmosférico que eu uso para
respirar, entretanto tenho a consciência absoluta de que ele não conseguiu
entrar totalmente na minha imaginação, ou infectar todas as vozes mortas e
secas que causam transtorno forte na linha de raciocínio dualista da minha
mente. Archiviéste não controlou-me por completo e nunca controlará. Ele
pode ter obtido sucesso ao fazer-me questionar se isso é realmente certo, se
eu estava realmente correta ou sendo injusta com a sua pessoa. O homem
fez-me duvidar dos meus sentimentos de ódio por sua carne e, por algumas
horas, acreditei que tinha falhado em partes. Nos últimos dias, deixei-me
cair e esparramar-me na ilusão de que poderia me apaixonar por ele,
entretanto isso acabou. Essa loucura fanática e ilusória desapareceu no
segundo em que Noeeh apontou a lâmina afiada e metálica daquela espada
para o meu pescoço pequeno no instante em que eu estava ajoelhada,
indefesa.
Posso tê-lo perdido antes, mas eu agora recuperei algo chamado
amor-próprio.
E ele nunca me permitiria amar o homem que apontou uma faca
para minha garganta e que me fez ficar ajoelhada diante de si na frente de
todos do salão, chamando-me explicitamente de inferior, rebaixando-me
quando deveria me colocar como sua igual; ele também não me deixaria
gostar de alguém que tentou manipular minhas emoções e me condenar por
antigos pecados, como os meus pais fizeram, como todos da cidade querem
pensar. O amor que eu tenho por mim mesma nunca me concederia a
chance de amar Noeeh Archiviéste. O anjo caído tentou e tenta até hoje
exibir e realçar cenas distorcidas entre nós que eu não estou disposta a
aceitar, estou prometendo para mim mesma que nunca mais vou me iludir
com esse papo de paixão verdadeira ou relacionamento quente que poderia
completar-me e deixar-me mais feliz. Prometo nunca mais cair nessa lábia
encantadora e falsa, ditada por uma sereia. Somos inimigos e eu não tenho
um contrato de responsabilidade emocional com esse homem, da mesma
forma que ele não tem comigo.
Ele cuida de mim porque quer.
E eu estou escolhendo não retribui-lo.
Aquele garoto vai me pagar por tudo o que fez e tudo o que está
fazendo agora. Ainda pretendo matá-lo, tenho que dar um jeito de levá-lo
para o caminho errado e vou fazer hoje. Nunca deveria ter me esquecido de
que isso é apenas uma batalha, porque a amargura bate forte no meu peito,
como a decepção arranha a minha pele. Nosso falso romance é apenas um
jogo e nesse jogo vamos ver quem vai vencer. Vou conquistá-lo para fazê-lo
se perder. Seus olhos vão se desfocar e eu vou ser a única coisa que ele vai
ver. Vou colocá-lo na palma da minha mão e depois, vou fechá-la com
força, minhas unhas vão cortar o seu coração. Quero que ele morra
sufocado com as mentiras que contou em toda a sua vida inútil. Ele poderá
fazer o que quiser comigo, mas apenas na sua imaginação e, enquanto isso,
vou fazê-lo de palhaço, porque nessa batalha eu quero dominá-lo. E eu vou
conseguir.
Tenho que tomar o que é seu.
Meu império se erguerá das ruínas em que deixarei o seu.
Ele queimará seu próprio mundo por mim. E eu transformarei em
cinzas os seus mandamentos. Desta vez serei eu, não ele. Serei eu, não
meus pais, finalmente serei eu quem vai subir as escadas e se sentar no
trono.
Inclino a cabeça para a direita, movendo meus ombros que estão
desconfortáveis e doloridos por estarem presos pelas cordas que me
amarram ao mastro do navio. Meus ossos gemem de angústia por terem
passado a noite inteira acorrentados a esse pedaço cilíndrico de madeira,
minha coluna estala quando eu a ajeito, tentando arranjar uma posição mais
aconchegante e menos perturbadora para minha carne. Meus lábios estão
secos, meus olhos estão cansados e a minha cabeça não pensa com a mesma
agilidade que deveria, eu estou com sede e também cansada. Meu espectro
suplica pela ajuda das águas que estão ao meu redor, mas não é como se
elas pudessem me ajudar, afinal eu escolhi a maior e mais venenosa água-
viva mortal de toda a vida do oceano para rivalizar.
Uma vez eu li em um livro que eu preciso saber nadar para querer
que o oceano transborde de líquido transparente. Eu sei nadar. Eu o chamei
para essa guerra porque, por mais que eu esteja debilitada e em
desvantagem, ainda sei lutar. Sou persistente e isso me levará às alturas. Se
o decorrer da minha existência fosse um conto, muitos leitores duvidariam
do meu potencial, mas poucos deles resistiriam ao que eu passei,
pouquíssimos se ergueriam na minha posição e uma quantidade muito
menor se manteria vivo. Essas pessoas me chamariam de fraca, porque até
agora eu só me mantive respirando e lutando para que ele não tomasse tudo,
em contrapartida elas não aguentariam alguém com um terço da capacidade
de Archiviéste atrás delas. Eu sou inteligente e por mais que já tenha
mostrado isso, Noeeh está sempre um passo à frente das minhas ideias.
É como se todas as vezes que ele olhasse para os meus olhos,
pudesse me ler e saber o que eu estou pensando. Meu ex-garoto favorito
entende tudo o que se refere a mim. Ele provavelmente me observava
quando eu estava sozinha, longe de todos, sendo eu mesma. Noeeh entende-
me completamente porque se apaixonou pela personalidade que mostro para
mim. É irritante, porque lhe dá uma vantagem suprema entre nós dois, ou
seja, vou ter que observá-lo mais e reaprender a mentir, como uma planta
que voltou dos mortos. Tenho que voltar a sobreviver, porque estou no
barco bonito de um garoto lindo e mentiroso.
E tenho que tomar muito cuidado, porque a minha inocência está
indo embora.
Levanto a minha cabeça quando ouço ecoar um barulho místico e
calmo, roubando a atenção dos meus ouvidos. Meus olhos piscam quando a
luz da tão querida e cálida estrela localizada no centro do nosso sistema
solar ilumina o ser profano e estimado pelo diabo que está na minha frente.
Seus braços estão cruzados, há manchas roxas rodeando os seus cílios
inferiores, indicando-me que um certo pecador não dormiu muito bem.
Mesmo com a movimentação do mar e com a oscilação das madeiras, ele
tem um perfeito equilíbrio ao andar no piso do navio. O filho da puta
consegue ser impecável até sob condições precárias. Percebo que mesmo
quando está andando na terra, os efeitos colaterais de ficar muitos meses em
alto-mar como a tontura e a confusão das pernas não afeta Noeeh como a
outros piratas ou pessoas comuns. Todos os marujos andam como se
tivessem sido atingidos pelas ondas, menos o desgraçado do meu inimigo.
Chega a ser injusto com a minha pessoa.
Acho que ele é a punição universal por todas as vezes em que eu fui
uma menina malvada.
Ele é o meu diabo pessoal.
O homem de pele castanha e fios brancos aproxima-se mais um
pouco, até que seu corpo estaciona e ele para de andar. A desgraça linda e
mentirosa abaixa um pouco a cabeça, olhando-me diretamente com aquelas
beldades violetas e brutas, que fariam qualquer ser humano matá-lo para
usar aqueles olhos como joias.
— Como você está, Morgana? — “Eu pareço estar bem,
Archiviéste?”, tenho vontade de perguntar, mas, no meio do pensamento,
achei uma resposta mais apropriada para a nossa conversa romântica e
saudável, como todas as que tivemos.
— Estaria melhor se você estivesse morto. — Sorrio gentilmente,
ainda estressada por ele ter me deixado dormir do lado de fora. Não é como
se eu quisesse dormir com ele, mas porra, amarrada ao mastro? Noeeh me
tratou tão bem quando me manteve em cativeiro. — Dormir aqui não foi a
melhor experiência da minha vida.
Seu peitoral treme com a risada profunda e sincera que escapa da
sua boca. Ele ainda está com os braços cruzados, cicatrizes abertas e olhos
intensamente grudados. A postura de alguém superior e isso me deixa muito
irritada.
— Isso é o que a minha raposinha ganha por ser uma bela mentirosa
— explica, como se eu fosse obrigada a entender. Eu sei o motivo que o fez
tomar essa atitude, apenas não concordo. Mas o que foi que eu disse? Esse
rapaz é o meu diabo pessoal.
E eu prometi que seria seu inferno.
— Como pode tratar uma grávida assim? — provoco, fazendo um
sorriso mais aberto crescer na minha boca. Movimento os meus ombros,
esperando vislumbrar o seu arrependimento ou sua raiva, isso me deixaria
muito melhor, mas o jovem não colabora e mantém aquele ataque na sua
boca.
— Você faz drama como se estivesse grávida de verdade, como
pode? — pergunta, dando alguns passos para frente, meu coração acelera
com a visão da distância sendo eliminada, mas não deixo isso transparecer
na minha fronte. Meus abismos oculares ainda continuam absorvendo a
matéria que existe no seu mar roxo. Ele descruza os braços e uma de suas
mãos enluvadas pousa no meu rosto, acariciando a minha bochecha
avermelhada enquanto a outra apenas se balança ao lado da sua estrutura.
— Vai se arrepender das suas mentiras quando tiver uma criança de
verdade. — Outro carinho na minha bochecha. — Dizem que tudo volta,
não é mesmo?
— Espero que o nosso neném nasça com os seus olhos — declaro,
inclinando a cabeça para sua mão poder ter uma área maior do meu rosto.
Se ele quiser agir assim, vamos fazer um teatro verdadeiro. —, porque seria
horrível se crescesse com a sua personalidade.
— Espero que nasçam trigêmeos. — Noeeh passa a língua pelos
lábios, insistente. O cisne por acaso quer jogar praga na minha barriga? Não
tenho mais idade para ficar grávida. As situações são horríveis e acho que
se eu der à luz uma criança nessa idade, posso morrer. — Quero dois
meninos e uma menina. É apenas o começo, depois pensamos nos outros
três.
— Você por acaso é louco? — questiono, arregalando os olhos.
Archiviéste pensa que eu sou o quê? Uma máquina de produzir filhotes?
Sempre achei um absurdo mulheres terem mais de quatro filhos e vou
continuar achando, por mais que a sociedade normalize. Pergunto-me
quando foi que eu levei isso tão a sério, então, consequentemente, me
acalmo. — Do que você pensa que está falando? Tirando este, não vai sair
mais nada da minha barriga.
A personificação de Kraken aperta as minhas bochechas com os
dedos, mas não deposita força o suficiente para doer, apenas o bastante para
pressionar a minha gordura de uma maneira ardilosa e questionável. Ser
uma antiga leitora não ajuda a afastar pensamentos obscenos de alguém que
está na minha posição atual. Isso é errado, não é? Essa emoção deveria soar
muito equivocada.
— De onde vai sair um filho meu — diz, dando um passo para
frente. Noeeh umedece os lábios. Péssima hora, Morgana. Péssima hora
para você ser você. — sairão os outros cinco.
Ou seja, Ar quer tudo apenas de uma mulher. Isso foi um galho
enfiado na minha boca, todavia eu não deixo minha opinião ou meu orgulho
transparecerem. Eles estão escondidos pelo meu ego.
— Nos seus sonhos. — Meus dentes trincam com a pressão dos
meus maxilares. Tento me soltar das amarras, mas obviamente isso não
funciona. — Isso nunca vai acontecer. Você por acaso quer montar um
exército de crianças?
Ele sorri, calmo como a morte da movimentação de um furacão
arcano. Suas mãos largam o meu rosto e ele se abaixa, colocando um dos
joelhos no chão do barco. Engulo em seco quando deparo-me com seu rosto
perto do meu. Seus dedos flutuam até o nó grosso e forte que me aprisiona
nessas cordas e faz meus órgãos doerem, e segundos depois, eles começam
a trabalhar para soltar-me desse projeto de cadeia alimentar. Sinto-me um
pequeno peixe colorido e guerreiro que está prestes a virar comida de
tubarão imperador. Há uma coroa muito grande na cabeça do animal rival,
mas fui eu quem lutou na guerra, esse ornamento não merece estar ali. Eu
vou pegar aquela coroa.
— Eu gosto muito de crianças. — Tenho que lutar para que isso não
amoleça meu ódio pelo indivíduo injusto e astuto. — Mas não vou fazê-los
sozinhos, vai ser o nosso exército de crianças.
Solto um suspiro aliviado e longo quando a linha grande feita de
fibras de sisal liberta-me dos seus toques. Ajeito minha coluna e uma onda
de prazer passa pelo meu corpo, modificando minha visão e relaxando meus
músculos, até os meus ouvidos parecem mais saudáveis e alegres. A
sensação de estar sendo solta depois de ter passado a noite aqui é
maravilhosa, meus joelhos ardem por terem passado muito tempo na mesma
posição, sentada no mesmo lugar. Tombo a minha cabeça para trás e levanto
os braços, ouvindo o estalo dos ossos.
— Pelos céus. — Respiro fundo, levantando-me do chão
lentamente. A agonia da minha carne ainda estava presente, mas foi se
esvaziando aos poucos com o decorrer dos segundos. — Senti saudades de
estar de pé.
Archiviéste sorri, como se soubesse o quanto isso é bom e me
entendesse nesse sentido. Ele é o capitão, duvido que entenda como é
passar a noite do lado de fora, essa nublação compreensiva no seu rosto
deve ser apenas uma pintura na sua tela. Avalio com extrema atenção cada
feição do seu rosto, notando as suas manchinhas castanhas juntando-se com
as dobrinhas. Ele me parece mais cansado do que a primeira vez que o
reconheci, quando estava perseguindo-me através do fogo que ele mesmo
usou para incendiar minha casa.
— Pois se prepare, vamos ficar de pé por muito tempo — comunica,
autoritário. O engomadinho acha mesmo que vai mandar em mim assim?
Para seus homens, eu estou grávida, não posso fazer muita coisa ou ajudar
com as tarefas, não sou obrigada. Ele que me sequestrou e me trouxe para
cá. Só de imaginar o neném pesa na minha barriga.
— Vai colocar uma grávida para trabalhar? — questiono, mostrando
uma careta incrédula com a sua atitude ofensiva. Falsa, falsa e falsa. Como
ele me conheceu, como na primeira vez em que se apaixonou.
— Não vou colocá-la para carregar peso — explica, sendo
iluminado pelas primeiras ondas solares da manhã. Eu estou atenta ao que
sua voz quer dizer, estou captando cada ruído que sai da sua boca, mas um
som familiar e precioso entra nos meus ouvidos e deixa-me em estado
catatônico, diferente de um choque singular.
A voz do cisne negro para de ecoar na minha cabeça.
Pela primeira vez, existe algo que grita mais do que ele no meu
interior.
As minhas origens.
O meu mar.
Minha estrutura sente uma tempestade fria e longa de saudade
quando o impacto da melancolia e das lembranças beija a minha alma.
Todos os átomos do meu corpo se agitam, aquecendo a minha epiderme e
aumentando a minha temperatura corporal, como se ele estivesse quente e
meu espectro estivesse frio, causando o efeito inverso de estar sendo levada
pelas águas, de ter sua vida sendo arrancada pelos vales. Meus pulmões
respiram com dificuldade por causa do mesmo tremor que a visão marítima
causa nos meus órgãos, meus pés tentam se virar para o oceano, mas não
obtêm um sucesso completo, fazendo com que minha coluna se incline e
que eles fiquem quase no mesmo lugar. Isso não importa, posições não
ganham valor quando, da mesma forma, eu consigo vislumbrar o meu
primeiro amor. Pisco, desnorteada. Estou navegando pelos rios profundos
do corpo malicioso que levou os meus pais. E pela primeira vez em muito
tempo, eu sinto uma emoção forte ao estar navegando em um navio,
velejando sobre a morte.
Estou apaixonada pelo mar.
Estou apaixonada novamente por um assassino. Para ser sincera,
nunca deixei de amá-lo. As águas podem ter levado os meus pais, mas com
eles se foi o meu coração. E ele está trancado para que apenas dois seres
possam entrar. Um está na minha frente, fazendo e desfazendo ondas,
carregando vidas e alimentando espíritos; e o outro está ao meu lado,
levantando espadas, personificando o desespero e os seus traumas. Vou
matá-lo para que haja apenas um acesso. Quero esse humano fútil e nojento
longe de mim.
— Morgana, concentre-se. — Ele tem uma horrorosa mania de
perceber quando estou alucinando e isso não é muito legal. Levanto a
cabeça e analiso os seus olhos violetas, sempre o que me chama mais
atenção. — Você sabe cozinhar?
— Como? — interrogo, sentindo-me ofendida. Eu tenho cara de
quem não sabe fazer alguma coisa?
— Fazer comida, Villain. — Aproxima-se cruzando os braços e
dando passos para frente. — Isso é cozinhar.
— Eu sei o que é, garoto — murmuro, deixando-o eliminar a
distância. Eu gosto disso. Gosto da maneira como Noeeh me encurrala por
ter uma diferença de altura considerável. Meu orgulho se machuca com
essas palavras, mas fico encantada quando ele me coloca como presa na sua
floresta. Talvez seja pelo fato da minha cabeça bater no seu peitoral e eu
precisar erguer o queixo para poder encará-lo, mesmo não sendo uma
mulher baixa. Ou talvez seja pela crença popular de que mulheres
mandonas, decididas e de personalidade forte acabam sendo muito
obedientes em outras situações e lugares. — Vai me colocar para fazer
comida?
— Todos nesse navio precisam trabalhar ou ajudar em alguma coisa
para sustentá-lo. — Encara-me, naturalmente. — E com você não vai ser
diferente. Aqui não é a minha casa, não posso passar a mão na sua cabeça e
deixá-la sem fazer nada. — Antes que eu pudesse protestar contra essa
ofensa, ele continua: — Villain, você vai me ajudar a preparar as três pausas
para comida. Como não aguenta o trabalho pesado, tenho certeza de que
esse é o melhor serviço para uma grávida.
— Acha que eu não aguento os outros serviços que do navio? —
retruco, indignada. Por que eu tenho que preparar a comida? E nem vou
fazer isso sozinha, vou apenas ajudá-lo. Ele está me tratando como se eu
não estivesse em condições de fazer o mínimo, mas não vou reclamar, até
porque não queria trabalhar mesmo.
— Tenho certeza. — Mordo os lábios quando ele se afasta,
caminhando para o local onde eu acredito que se prepare a comida. O navio
é enorme, talvez um pouco maior que o barco que a monarquia costuma
utilizar. Ele deve ter cerca de dezessete cabines no seu interior, cada uma
sendo usada para um setor específico. E pelo o que observei, é também
muito rápido e cheio de caixas com alguns produtos. Há cordas por todo o
local, alguns barris espalhados, a madeira parece ser nova e resistente, as
velas são enormes e negras, mas não há símbolo pirata no seu tecido. —
Além do mais, você está carregando uma criança minha, não?
— Tanto faz, vou fazer o serviço designado, capitão — provoco,
inclinando a cabeça para direita, impressionada com o tamanho do veículo
marítimo. Ontem à noite eu não tive tempo ou cabeça para absorver toda
essa preciosidade, mas hoje, aqui, nesse segundo, eu levo um balde de água
natural, de tão formoso que é esse navio. Os materiais são grossos, as
escadas são grandes, as decorações são exóticas, há nove velas feitas de
linho e três escalas para a subida dos marinheiros nos ninhos, uma em cada
mastro. Há faróis que, no momento, estão desligados, algumas lamparinas
espalhadas pelas paredes, as bandeiras também não possuem nenhum
desenho. Vislumbro alguns botes de emergência no canto, junto da entrada
do andar de baixo. E o resto só vou poder admirar quando descer, ou
quando subir uma das escadas. — Qual é o nome dele?
— Pérola Negra — informa-me, enquanto eu o sigo para a cabine
que suponho ser a cozinha. — Ele é o navio mais rápido de todos os sete
mares atualmente.
— Parece nome de navio de peça de teatro — brinco, entrando no
local em que preparamos a comida. Observo os potes com alguns temperos
colocados nas prateleiras, também vejo algumas facas grandes e pequenas,
talheres em geral. Vejo algumas panelas, comidas que podem ser
conservadas como carne e biscoito feito de farinha, água e outras bebidas.
Acho que é uma mistura de rum e água, alguns colocam mel ou açúcar. Há
limões para prevenir escorbuto, também arroz e batata, que não pode faltar.
— E como seria o nome da peça? Piratas do além? Seven Seas? —
ele entra na brincadeira, sorrindo para mim como se fossemos amigos.
Levanto a cabeça lentamente, fitando-o com olhar enquanto decido o que
responder:
— Piratas do Caribe. — Dou exatamente três passos para frente,
como se estivesse dançando em um evento importante da cidade. Inclino a
minha cabeça para o seu lado, sorrindo de volta. — Mas eu gosto de Seven
Seas. Por mais que lembre o nome de um livro.
— E como seria esse livro? — pergunta, pegando um pote de limão
que está em uma das prateleiras. Archiviéste pega uma das facas com a mão
direita e posiciona o limão na tábua. Acredito que pelos seus movimentos,
ele esteja preparando um salmagundi[6] para os marujos.
— Eles seriam inimigos mortais disputando o poder pelos sete
mares, dois piratas destinados a sempre batalharem, mas uma chama de
amor surge entre eles — digo, acrescentando um tom romântico no final. O
garoto arqueia uma das sobrancelhas e pressiona a faca para cortar o limão.
Ele ainda não me pede para fazer nada, vou continuar falando para distrair a
sua mente. Ainda não quero trabalhar.
— O que você sabe sobre piratas, Morgana? — Ótimo, Noeeh acaba
de cometer o maior pecado que pode existir: dar-me a oportunidade de falar
tudo o que sei sobre os meus ancestrais.
— Eu sei que vocês não usam brincos apenas por estilo. Eles são
feitos de ouro e servem de pagamento para o sepultamento, caso o pirata
venha a falecer. A bandeira perigosa é a bandeira vermelha, não a preta, e
os piratas só mostram ela quando vão atacar sem a menor piedade, matando
todos do navio. — Dou um pequeno pulo para frente. — E o código dos
piratas existe e foi escrito por Bartolomeu Roberts, um dos maiores de
todos os tempos.
— E quais são as onze leis dos piratas? — Noeeh corta mais uma
tira do limão com precisão, sem se abalar com a oscilação do navio. Ele
está se movendo para lá e para cá e isso está deixando-me levemente tonta.
— Todo homem tem direito a voto nas questões que estão ocorrendo
no momento e a separação de comida e álcool são iguais. Não é permitido
roubar de piratas da companhia, mas caso roube, eles são abandonados em
uma ilha deserta e terão seus narizes e orelhas arrancados. Não é permitido
apostar dinheiro nas cartas ou nos dados. — Paro para respirar,
continuando. — É preciso respeitar os horários de dormir, se quiser
continuar bebendo terá que fazer de luzes apagadas e no convés. Um pirata
deve sempre manter as espadas, facas e pistolas limpas, sempre preparadas
para uma batalha. Não é permitido mulheres no navio. — Fito-o, encarando
naturalmente. — Quem se acovardar durante uma batalha, será punido com
abandono ou morte.
Começo a andar em círculos.
— As brigas entre marujos devem ser resolvidas na terra. Se forem
usar pistolas, ganha quem não for atingido. Se usarem espadas, vence quem
não sangrar por último. Se o pirata ficar incapacitado por causa da guerra,
será pago pelos machucados. Os músicos podem descansar na noite do
Shabat, mas não nos outros dias. — Estaciono ao seu lado. — E a última
regra é que o código é o código, todo pirata deve segui-lo.
— E você sabe que eu estou quebrando as regras, não sabe? —
questiona, pegando as batatas e os peixes. Sabe o que eu estou fazendo por
você?
— Você alguma vez já as seguiu? — Meus olhos ardem e
Archiviéste se aproxima, ainda com a faca na mão. Vamos, Ar, minta para
mim. — Acha que eu não conheço o filhote de cobra que eu mesma criei? O
garoto que eu conheço daria de ombros para Bartolomeu e atearia fogo no
corpo dele caso tentasse se meter nas suas ordens. O Noeeh Archiviéste que
eu conheço não segue as regras. — Um sorriso iluminado nasce nos meus
lábios. — Você criou novas ordens, não foi? Eu ouvi um dos seus homens
dizendo que o capitão sabia das regras, não teve opção a não ser me levar
com você. Acha que eu sou burra? Acha que eu não previ que faria as
coisas da forma que deseja?
— Você não pode abandonar uma mulher que carrega um filho seu.
— Quando estava na sua casa vi tudo, prestei muita atenção enquanto ele
mostrava-me o casarão. As novas regras que ele formulou estavam no seu
livro, no dia em que desci aquelas escadas para distraí-lo, no dia em que
escapei dos seus braços. Agora o cisne negro vai ter que aprender a lidar
com isso, mesmo que não queira. Noeeh volta para perto da mesa e
concentra-se nas batatas, voltando a pressionar e cortar.
Vasculho seu corpo com o olhar e deparo–me com suas mãos
enluvadas, pisco lentamente, ainda quero muito saber o que há debaixo dos
panos que cobrem a sua história. Elimino a distância que havia entre nossos
corpos e pego uma das facas da prateleira, o garoto continua em silêncio,
apenas cortando as batatas. Pego um dos limões que está na tigela e começo
a cortar lentamente. Ele para, inclina a coluna e se abaixa para pegar uma
caixa com carne e outras comidas conservadas. Segundos depois ele a abre,
sem colocá-la na mesa de comida. Ainda bem, porque a imagem do
alimento guardado não me anima muito, por mais que seja impossível, já
que estamos vivendo em um navio e condições assim são normais. Um
suspiro salta da minha garganta e o cheiro forte invade o lugar, fazendo-me
querer sair correndo da cozinha, mas impeço minhas pernas de andarem
para fora, ou de saltarem para longe do barco. Mudo o peso do meu corpo
de um pé para o outro e levanto os calcanhares, ficando na ponta dos dedos
para vislumbrar aquela carne. Faço uma careta, eu que não vou comer
aqueles peixes.
Se o cheiro está ruim, imagina o gosto.
— Você vai comer isso? — pergunto, um pouco enojada. Coloco
toda a estrutura dos meus pés no chão e localizo a faca, fingindo que não
acabei de espionar a carne e que não gostei da cara.
— Eu não, sou vegetariano — o cisne informa-me e, sinceramente,
isso me pega de surpresa. Ele não come carne e ainda é tão forte. Estou
processando a informação. Como que aqueles músculos se formaram nos
seus braços? — Quem come e gosta são os marujos.
— Eles parecem gostar muito de você — expresso, tentando não
olhar para aquele alimento maldito perto do garoto. Tento me concentrar no
seu cheiro de maçã com canela. E sinceramente, quando eu foco, pareço
estar em outro planeta. Um que não existe, mas onde eu moraria pelo resto
da eternidade. — Parece ser um ótimo capitão.
— Liderança nunca foi o meu forte, Morgana. — Observo seu
brinco pintado de vermelho se movimentar com a oscilação da cabeça, a
calma enfeita as feições do garoto de olhos violetas, mostrando-me tudo o
que ele tem para me mostrar quando está em alto-mar: calma.
— Então como consegue… — Paro para respirar. Depois pego a
faca e volto para as batatas. O garoto pega o peixe e coloca-o na tigela
maior, indicando que é isso que vamos levar para os homens presentes no
barco. — Como consegue liderar vinte e cinco homens teimosos tão bem?
— Eu governo pensando nela — Archiviéste diz, ajeitando a comida
delicadamente na panela. O garoto pega os limões cortados e coloca um por
um na tigela, decorando o peixe fedorento que esses piratas sem neurônios
gostam. — Pensando de que maneira eu poderia deixá-la feliz e acima de
tudo… — Não presto atenção no que estou fazendo, apenas olho para ele.
Quero apenas olhá-lo. — orgulhosa.
Ele ainda tem um buraco enorme na sua voz todas as vezes que cita
sua mãe, e isso é de partir o coração de todas as pessoas que tem um. A faca
desce e o sangue também, o meu e o dele. A ardência e a queimação
rodeiam o meu dedo e um grito agudo e longo ecoa da minha boca seca, um
gemido doloroso pula da garganta quando eu sinto a agonia de ter cortado
levemente a pele do meu dedo. Balanço-o bruscamente, tentando fazer com
que o sofrimento do pequeno corte passe. Lágrimas ameaçam sair dos meus
olhos e eu quero fazer birra como uma criança, avisar e relembrar que eu
não queria estar aqui. Faço biquinho para o garoto à minha frente quando
ele solta rapidamente o peixe que estava na sua mão e se aproxima do meu
corpo. Ele pega o meu dedo e o paralisa com sua força, inclina o rosto e
analisa o corte. Quando o homem de olhos violetas percebe que é pequeno,
começa a rir e o desespero se esvazia dos seus abismos roxos.
Faço careta feia quando vejo a sua zombaria e o garoto… Aquele
cretino apenas aumenta o sorriso.
— Ohhh — Noeeh imita o mesmo som que os pais ecoam para uma
criança que está se fazendo de birrenta. O cisne tenta passar a mão pelo meu
cabelo, mas lembra que pegou naquele projeto de carne, então a deixa de
lado e apenas sorri. — Tadinha da minha raposinha catarrenta, mentirosa e
manhosa. Você se machucou, foi? — Um segundo se passa. — Quase
perdeu o dedo.
Encaro-o, incrédula, quando se afasta de mim. Como pode diminuir
a minha dor assim? Na cara dura. E o homem ainda pega a faca como se ela
não tivesse acabado de me machucar. Arregalo os olhos, ainda descrente da
forma como diminui a minha agonia.
— Está sangrando. — Olho para meu dedo. — Pouco, mas está.
Minha voz sai um pouquinho mais alta, entretanto ela ainda é
abafada pela risada do garoto todo de preto. Seu peito treme e Noeeh
continua a picar o resto das batatas que eu estava cortando. Pelo menos teve
a decência de continuar o meu trabalho, porque eu não iria correr outro
risco.
— É o ferimento mais grave que eu já vi — caçoa, fazendo-me abrir
a boca em um perfeito “O”, agindo como se fosse meu namorado e
acabasse de rejeitar um drama. — Vou levá-la para o meu quarto depois de
acabarmos aqui, e lá eu faço um curativo no seu dedo. Tenho uma pasta
curativa que ajuda em cortes superficiais.
— Como pode tratar uma grávida assim? — Cortes superficiais!
Como ele pode me tratar dessa maneira? Sei que não foi lá aquelas coisas, o
machucado até parou de sangrar, mas não é superficial. Um sorriso nada
superficial se expande no seu rosto profundo e o homem larga a faca em
cima da mesa de madeira, ajeitando a postura e virando-se para mim para
analisar-me bem, muito bem. Seus olhos descem para os meus pés e sobem
lentamente, passando pelas minhas panturrilhas, meus joelhos, minhas
coxas… Minha respiração dificulta, meu coração acelera e a carne que
envolve o meu fêmur se aperta, desesperada. Nervosa, como ele sempre a
deixou, totalmente agitada.
Saltando como luzes piscantes.
— E como foi que eu te tratei, Morgana? — Noeeh inclina a cabeça
e sua voz ecoa como a melodia do diabo ecoaria se tivesse uma vítima
sacrificada nos seus rituais. Seus olhos agora passam pela minha barriga,
chegando ao meu colo, ao meu pescoço e, finalmente, parando nos meus
olhos. Agora Archiviéste está tombando o seu rosto calmamente para o
outro lado. — Diga-me como foi que eu te tratei quando estávamos fazendo
essa criança?
E na euforia dessa emoção apreendida por meses, eu poderia
facilmente convidá-lo para nos trancar em um quarto e jogar a chave fora.
Não precisamos estar apaixonados para eu fazer isso, não me importo se
não houver sentimento real entre nossas carnes, talvez apenas queira ser
uma das suas garotas nessa imaginação. Não quero passar disso. O Kraken
começa a se aproximar. Passos lentos, ombros arqueados, cabeça erguida e
olhos curiosos. Archiviéste está dando um passo de cada vez, caminhando
conforme os saltos dados pelo meu coração violento dentro do peito.
— Eu fui gentil com você? — Ele sabe tirar o melhor de mim. O
anjo exilado de asas negras sabe extrair cada pensamento trancafiado que há
em mim. No fundo, Ar está me dizendo “Conte-me suas fantasias, Villain.
Conte-me todas elas”. Sinto-me livre com ele, mas só vou parar quando o
expulsar do topo do mundo, não vou desperdiçar toda a minha vida para ser
quem eu sou hoje.
Sua mão rodeia a pele do meu pescoço e eu levanto os olhos,
fitando-o profundamente. Meu corpo cambaleia para trás, mas sua outra
mão pousa na base da minha coluna, erguendo-me novamente. Impedindo-
me de cair, como sempre fez. De um jeito ou de outro, Noeeh sempre foi
quem me levantou. Meus peitos batem no seu peitoral em um movimento
rápido, e seus dedos desencostam-se dos pequenos ossos que formam a
maior estrutura do meu corpo e começam a descer em direção às minhas
coxas. Sua íris rodeia as minhas órbitas e a minha carne aquece com o
contato dos seus dedos. O diabo vermelho aperta um pouco mais a minha
garganta e pressiona os seus dedos na parte interior das minhas coxas.
— Ou te tratei assim? — pergunta, com os olhos iluminados.
Archiviéste umedece os lábios e aproxima mais um pouco sua cavidade
bucal. Coloco as minhas mãos no seu peitoral e ele desce a mão que está na
coxa, arrancando um suspiro involuntário da minha estrutura. — Por que
está tão tensa, Villain? Eu estou te deixando nervosa?
Ar gosta do fato de eu estar presa em seus braços e, pelo que
conheço do cretino, ele está divertindo-se com a minha respiração
descompassada e o meu corpo levemente excitado. Sons estranhos ecoam
da minha boca entreaberta, arfando. Minhas pequenas e implícitas súplicas
desesperadas por beijos. Aqueles mesmos pedidos de socorro que soavam
da minha boca desde a primeira vez que eu o vi, quando estava sentado
naquela maldita praia. Quando estava com aquela cruel e desalmada camisa
branca quase transparente e molhada. Pode me doer admitir, mas aquela foi
a primeira vez que eu o quis. Apenas seu corpo, apenas ele.
— Mas você não está grávida de mim? Não precisa ficar assim. —
Seus dedos enluvados sobem novamente, fazendo-me arranhar a sua carne.
Archiviéste, Archiviéste, Archiviéste... Essa é a única coisa que está na
minha mente, mas esse é o tipo de amor que eu tenho para dar, me empurre
e me sufoque até eu desmaiar. — Até porque, se você está grávida, devo ter
tocado nessa parte aqui. — Mordo a língua quando ele aperta a área inferior
da minha coxa. — Não?
Toda a minha visão fica turva.
— Sim. — Cretina do caralho, porque concorda com o que ele diz,
mesmo sabendo que nada disso aconteceu? O garoto aumenta o sorriso,
subindo os dedos que envolviam o meu pescoço para as minhas bochechas,
sem desencostar. É por causa da minha audácia que ele me chama de
raposinha, eu tenho que fazer jus ao meu apelido. — Você já me tocou aí.
— Se algum dia eu pretender transar com você, Morgana — diz. A
gordura fácil do meu rosto sendo pressionada contra a carne que envolve
suas garras humanas. —, não quero que fique apreensiva, até porque foi
você quem disse que já fizemos isso uma vez. Vamos apenas realizar as
cenas sexuais que existem nessa pequena mente erótica e transformar as
mentiras pecadoras que você contou para os meus homens em verdades que
não podem ser revertidas.
Noeeh me solta e se afasta, pegando a bandeja de comida que
preparamos. É como se ele nunca tivesse me tocado. Meus pulmões voltam
a respirar, o garoto levanta a cabeça, respira fundo e diz:
— Desça para o meu quarto — ordena, saindo da cabine. — Depois
que eu entregar a comida a eles, vou passar o remédio no seu dedo, e você
vai poder subir e comer.
— Como quiser, capitão — provoco, negando com a cabeça a
situação a que eu acabei de me submeter.
CAPÍTULO XIX
Um velho e lendário murmúrio ressoa graciosamente pelos feixes
corridos de iluminação transparente e amaldiçoada, um tipo de raio lunar
azul-celeste que nasce do corpo massivo iluminado do satélite natural que
orbita a Terra e que falece no fundo das profundezas marítimas, sendo
desviados para um caminho diferente todas as vezes que entra em contato
com a água, formando, assim, uma seta branca que reflete nos tambores da
esponjas laranjas e ressurge extraordinariamente na superfície. Um
verdadeiro vai e volta sonoro de uma lenda morta pela falácia dos humanos,
viajando como uma língua perdida que foi recuperada pelas nuvens cinzas
da noite. E hoje, esse cochicho arcano conta-me sobre a trágica história de
uma cigana desesperada que cultuava a lua do início do seu ciclo e até o
aparecimento do sol.
Todo santo dia, ela sempre estava lá.
E nessas adorações ela sempre pedia, chorando profundamente, para
que encontrasse um cigano e se casasse rapidamente, pela pressão da sua
família de crenças antigas. Sua mente vivia atormentada pelos piores
pensamentos, cercada dos mais dolorosos sentimentos de incompetência
que uma mulher pode ter, vendo uma explícita oportunidade de suprir os
seus desejos mais humanos. O espírito da lua de prata respondeu-lhe do alto
do céu, dizendo que lhe daria um marido perfeito, um homem forte de pele
branca e olhos cinzas, desde que a menina lhe entregasse seu primeiro filho
com esse rapaz. Sem hesitar, a jovem de cabelos brancos e olhos violetas
aceitou, crente que nunca amaria um filho nascido de um sacrifício para não
ficar sozinha. Ela também se perguntou o que a essência da lua faria um
menino de pele, então, sem demora, o espírito lunar mais belo que existe
lhe respondeu que queria ser mãe, mas nunca encontrou um amor que a
fizesse mulher.
Meses depois, a criança gloriosa e mais cobiçada de toda a
eternidade nasceu.
Da pele branca como o dorso de um arminho e olhos cinzas como a
destruição, gerou-se uma criatura de pele morena e olhos violetas. O pai,
intolerante, achando ter sido cruelmente desonrado por sua esposa, dirigiu-
se a humana com uma faca afiada na mão e a perguntou de quem era a
criança. A interrogou bruscamente, acreditando ter sido traído. O homem,
então, acertou-a no peito, deixando-a gravemente ferida, levando-a
diretamente para o caminho da morte. Depois caminhou em direção a
montanha com o menino nos braços e o colocou ali. Ele o abandonou na
grama entre as piores correntezas de todo o continente. No passado, durante
as noites de lua cheia, acreditava-se que essa linda criança ainda estava
dormindo no berço feito pelas estrelas, e quando a pequena criatura mal-
amada chorava, acreditava-se que a lua minguaria para fazer um berço para
esse neném.
Hoje, eu vejo essa criatura desejada à minha frente, ele escorregou
do berço feito de luz e caiu na minha vida, dificultando qualquer tentativa
que eu tenha de triunfo glorioso para recuperar o que é meu por direito, mas
uma hora eu vou acertá-lo, porque por mais que o meu coração salte ao vê-
lo aqui, banhado pelo brilho de sua mãe, ainda somos rivais. Eu sou a filha
raiz do interior do mar catastrófico, e, analisando-o novamente,
perfeitamente neutro e silencioso, perto da borda do grande barco, apoiando
seus cotovelos na madeira e admirando atenciosamente as estrelas do céu,
qualquer ser humano percebe que ele se assemelha a um ser criado no dia
que um espírito celestial deitou-se com uma mulher atrevida e cigana. O
único e verdadeiro filho da lua.
Nascido de uma traição involuntária, mas consciente.
Odiado por muitas pessoas que nasceram naquele lugar, mas
cobiçado pela própria lua.
Eu gosto disso nele.
Escuto os passos do meu corpo caminhando pela estrutura do grande
barco em que estou localizada, aproximo-me do garoto que está com uma
garrafa de água na mão, bebendo de pouco em pouco para que o líquido do
recipiente não acabe muito rápido, já que ele cobiça enrolar com essa
garrafa até dar sono e conseguir dormir. Analisando sua postura, acredito
que não vai demorar muito. Coloco as minhas mãos para trás, consciente da
atrocidade que acabei de cometer: acabei de modificar o mapa que estava
em seu quarto. Me ofereci para dormir na sua cama, dando a desculpa de
que estava cansada e dolorida demais por conta das cordas e não queria
adormecer com o os homens do navio por conta do cheiro. Todos eles
ficaram ofendidos, mas não hesitei em continuar a minha provocação.
Archiviéste disse que eu poderia dormir em seu quarto e então me deixou lá
sozinha, sem supervisão, o que foi seu pior erro e o seu maior vacilo até
agora. O homem subiu as escadas e ficou do lado de fora, até agora. Depois
de alterar a rota, eu pensei em deitar e dormir, mas fiquei curiosa para saber
o que ele estava fazendo.
E quando subo as escadas, me deparo com essa bomba de visão.
Esse rapaz é realmente muito bonito, como a criança que citei na
lenda. É algo além da nossa percepção.
O filho da lua.
O anjo caído levanta sua cabeça levemente quando percebe que eu
estou muito perto, então olha-me levemente surpreso, inclinando a cabeça
para direita. Um suspiro sai da sua boca e ele permite que eu fale:
— Sabe que horas são, garoto? — questiono, repreendendo-o por
estar acordado. — Está muito tarde, por que não vai deitar? Ficar acordado
até muito tarde e não dormir direito causa manchas roxas em volta dos
olhos, então se você ainda pretende se casar um dia, melhor não tê-las tão
cedo.
Escuto o seu peitoral tremer com uma risada sincera. E então, ele
responde:
— Acabou de mexer no que queria procurar no meu quarto, meu
coração? — pergunta, colocando a abertura da garrafa na boca e molhando
os seus lábios, permitindo que o líquido encharque sua garganta funda.
— Eu não iria mexer em nada. — digo, simples.
O peito do homem treme antes de dizer calmamente:
— Morgana. Morgana.
Aproximo-me mais um pouco, absorvendo o encanto da pintura que,
à noite, nos permite vislumbrar sua presença barulhenta, como as ondas do
mar, toda essa visão é tão perfeita que a qualquer minuto eu posso desmaiar.
Até mesmo me esqueço que estou ao lado do meu inimigo. Eu gosto do
vento. Eu gosto da manhã. Talvez eu goste da presença dele. Eu gosto das
nuvens. Eu gosto do mar. Talvez eu goste da presença dele. Eu gosto de
sonhar. Eu gosto da chuva. Talvez eu goste da presença dele. O que eu vou
fazer? Eu não sei. O que eu vou fazer? Eu não sei mais. Estou tão perdida
que apenas listo as pequenas coisas pelas quais eu sou apaixonada.
Eu gosto de flertar. Talvez eu goste da presença dele.
Eu gosto de comer peixe. Talvez eu goste da presença dele.
Eu gosto, gosto de amar.
— Apenas queria dormir — digo, e Noeeh quase se engasga com a
água por causa da sua risada. — Então a única coisa que mudei de lugar foi
o seu lençol.
— Entendo perfeitamente — Archiviéste diz, sendo sarcástico. —
Espero que tenha dormido bem, porque pelo visto, seu sono não demorou
muito tempo.
Mudo o peso do meu corpo de um pé para o outro.
— Só queria ver o que você estava fazendo aqui — começo, não
mentindo muito nessa parte. Eu realmente quero ver. Nessas últimas horas
que passamos juntos no barco, me acostumei com a sua presença. Entendo
que passei quase um mês na sua casa, mas aqui é diferente. Lá eu ficava
presa em um quarto olhando para as paredes e só saía quando ele não estava
ocupado, aqui eu sou livre como uma tartaruga. — E pelo visto, não é nada
de interessante.
— Pode não ser para você, mas eu gosto muito de observar as
estrelas quando estou navegando — admite, retirando a garrafa da boca e
deixando outro suspiro frio escapar do seu pescoço. Apoio o meu cotovelo
na madeira do braço e acompanho essa jornada mental do céu que nos faz
alucinar, é tão lindo quanto mágico. — Morgana, quando olha para estrelas,
o que você vê?
— Estrelas — respondo, como se fosse óbvio.
— Repita — o cisne pede com um tom encantador e apaixonado na
melodia. Encaro-as novamente, finalmente percebendo ao que ele está se
referindo.
— Estrelas — digo, agora sem muita convicção. Impressionante
como o cisne me faz olhar para os pontinhos resplandecentes e alucinar
com desenhos celestiais. Sorrio, como uma criança voltando à infância.
— Não minta. — Sem eu perceber, o garoto se aproxima o
suficiente para sussurrar no meu ouvido. Perto demais. Distante demais.
Atritos na minha pele são recorrentes quando estou com ele. Céus, esse
garoto! O que ele quer de mim? Um hora faz isso e na outra coloca uma
faca no meu pescoço. É como se dissesse que quer me matar e depois
soletrasse, argumentando: “Conceda a si mesma o anseio de se apaixonar
por mim, minha querida. Talvez assim eu te mostre que ser tocada pela
cristas salgadas das marés noturnas não se assemelha à sensação de ser
tocada por mim”.
E uma pequena parte minha quer dizer sim, mas estamos brincando
de anjos e demônios, então eu terei que ser a exorcista. No final ele vai ter
que me obedecer, mas, neste momento, estou paralisada.
— Eu já disse que não vejo nada — respondo-o, sendo ríspida.
— Villain, Villain, que coisa feia, eu nunca vi uma mulher adulta
fazer tanta pirraça — repreende-me, chegando mais perto. Meu Deus, acho
que vou cair aqui mesmo. — Qual a dificuldade em aceitar o seu destino?
Você não vai a lugar algum, nem mesmo se aprender a voar — reafirma,
sendo rígido nas palavras. — Agora me diga o que você vê.
— Desenhos, Archiviéste. Está satisfeito? — Noeeh sorri como um
cachorrinho que ganhou um osso da sua dona.
— Achei que era só eu que os via e isso me deixava triste. — Até
porque ninguém quer ser louco sozinho, né? — Eu gosto de vê-los e tentar
acertar o que as estrelas estão desenhando essa noite. Minha mãe me dizia
que a noite tentava me roubar, então ela sempre evitava sair comigo quando
passava das cinco horas da tarde, com a teoria maluca de que eu era uma
criança especial.
Um escolhido.
— Sua mãe te amava muito, até hoje me lembro de quando era
pequena e ela estava grávida de você. — Archi afasta-se um pouco,
concentrado no que eu tenho a dizer. — Ela dizia que não podia ter filhos,
porque suas chances de engravidar eram baixíssimas, por isso falava que
você foi um milagre entregue pelos mares por ela ser uma boa pessoa.
— Ela sempre se gabava por ser extremamente consciente, diferente
do homem que uma vez já disse que era meu pai. — O garoto umedece os
lábios quando lembra com desgosto do homem que teoricamente é seu pai.
— Sinto muito por você — digo com sinceridade. Acho que é a
primeira vez que eu lamento por alguém sem ser eu mesma.
— Isso não é culpa sua, não tem porque se desculpar. — Eu só
piorei as coisas, entretanto eu não as causei. É assim que o anjo deve
pensar. — Aquele conjunto de estrelas que está perto daquela nuvem parece
com duas luas se beijando. — Ele aponta o dedo para o céu, indicando para
onde eu devo olhar. Meus olhos brilham de satisfação e eu levanto a cabeça,
encarando a noite. Percebo que realmente se parece um pouco, mas para
mim, possui um outro significado.
— Não. — Nego com a cabeça e ele encara-me confuso. — Para
mim, parece um pato.
— Você por acaso é louca? — O diabo sorri, negando com a cabeça.
Seus olhos violetas ofuscam a beleza de todo esse lugar e ganham a atenção
do momento. Quero entregar um prêmio ao garoto, por seus olhos serem tão
lindos. — Se fosse um animal, aquilo seria uma tartaruga grande, quase
como um dragão.
Encaro-o, como se ele não batesse bem da cabeça. Bom, isso é
parcialmente verdade. O homem não tem a sanidade completa em certos
casos, principalmente quando se trata de mim. Principalmente quando se
trata de nós.
— E aquele conjunto que está naquela parte ali — aponto para o
lado oposto ao dele —, parece um grande jardim de flores silvestres. —
Seus olhos ardem e sua covinha aparece. Archiviéste coloca a garrafa no
chão do barco, mantendo a postura. Já disse que admiro a postura dele, não?
O barco às vezes balança tão forte que me causa tontura e muita dor de
cabeça, mas não a ele, ele não sente nada. Como eu posso pensar que
alguém assim sente-se inseguro? — Um lindo jardim, e ao lado deles,
parece ser uma raposa junto de um cisne.
— A raposa vai destruir o jardim. — Repreendo com o olhar,
cruzando os braços e arregalando os olhos. — Por que está me olhando com
essa cara de brava? — pergunta, confuso. Noeeh realmente está confuso. —
Não estou mentindo, estou?
— Eu gosto de raposas — defendo os meus pequenos animais
traiçoeiros.
— Será que é porque eu te chamo assim? — brinca, fazendo-me
soltar uma risada sincera, mas no fundo sei que uma parte, talvez uma
pequena parte, é verdade. Eu adoro quando ele me chama por qualquer
apelido que seja atribuído a minha personalidade. Não “querida”, não “meu
amor”, mas, sim, “minha raposinha”, isso é superior. — E você gostar
desses ratinhos venenosos não os faz menos destruidores.
— Pode até ser, mas é a natureza dela — comento, frugal. — Não se
pode lutar contra o seu instinto. Agitada e infiel, essa é uma raposa.
— Instintos são para animais selvagens. — Novamente eu o pego
me ofendendo internamente. — Somos muito mais que isso, temos
sentimentos e, acima de tudo, somos capazes de amar. Isso vai muito além
dos sentidos de sobrevivência.
— O amor não é tudo — resmungo, descruzando os braços e os
apoiando novamente na madeira do barco.
— Mas é uma grande parte — o cisne continua, aproximando-se. —
E é isso que faz a diferença, porque, no final, é nisso que nos diferenciamos
uns dos outros, é por meio do seu pensamento que se define se você é uma
pessoa que vale a pena amar ou não. Não é difícil entender ou descobrir,
apenas sentir. Pessoas que não conseguem sentir prazer ou felicidade nas
pequenas coisas, mas precisam sempre de algo grande para sustentar
sorrisos ou batimentos fortes, já se podem considerar mortas. Não há mais
nada nelas que alguém possa amar.
— Acredito que cada um é de um jeito, mas a partir do momento em
que você ama aquilo que os outros mandam ou ordenam, apenas porque é
considerado legal pela sociedade, não é mais você, mas, sim, uma cópia de
outras pessoas. — Coloco uma mecha do meu cabelo atrás da orelha. O que
eu sou? Permaneça na escuta. O que você acha que eu sou, meu coração?
Encaramo-nos por alguns segundos consideravelmente preciosos e
ele me analisa como se tivesse algo para falar, um mistério oculto para me
contar, o seu maior sentimento escondido para revelar, mas estou com medo
do que ele está acobertando. Então, eu pergunto, eu me pronuncio primeiro:
— Por que não foi para cama? Pelo visto, você está cansado —
digo, estranhando um pouco toda essa situação. Archiviéste solta um sorriso
barulhento entre os dentes, causando-me pequenos tremores por todo o
corpo. O anjo ajeita os ombros, paciente na sua fala.
— Está para existir o dia em que eu vou deitar-me com uma mulher
só porque ela quer me usar, Morgana. — Minha cara fecha-se dura com as
suas palavras. — Não fui para o quarto com você porque realmente estou
cansado, exausto dessas nossas brincadeiras. — Alguns segundos se passam
e eu realmente, do fundo do meu coração envenenado, não sei o que dizer.
— Eu conheço a minha mãe, Morgana. Ela não protegeria nada a distância.
— Uma respiração apressada se elabora no meu peito. — Com certeza o
ouro está na Inglaterra, acredito até mesmo que esteja em Penzance, mas
não vou ser inconveniente e procurar casa por casa.
Eu faria isso, eu com certeza faria isso, não me importaria de ser
atrevida ou abusada, desde que eu conseguisse o que eu quero, mas ele é
muito diferente de mim. Somos tão opostos e tão iguais que isso assusta e
ativa a curiosidade de qualquer mulher.
— Esse mapa tem uma dica e essa dica me levará ao triunfo. Falta
de tempo não é um problema para mim. — Noeeh realmente está confiante
disso? Sim, ele realmente tem uma sugestão forte de onde está o ouro, mas
eu não vou deixá-lo chegar às Índias. — Esperei anos demais por uma coisa
incerta que provavelmente não vai ter um final feliz. — Talvez o cisne
tenha se apaixonado pela raposa. — Posso esperar por isso.
Quero ignorar o que acabei de ouvir, pegar os meus ouvidos,
arrancá-los do corpo e jogá-los fora, para longe de mim.
— Aquelas estrelas ali. — Aponto para um local do céu, mudando
de assunto e ignorando a falta de respiração da minha estrutura. O garoto
caminha sozinho com a sua dor, então correr é o meu destino. O que está
acontecendo com você, Morgana? Nas veias do continente latino, só há
cruzada de fogo. — Parecem um casal dançando valsa.
Ele levanta o rosto, ainda muito perto de mim e então sorri. Suas
sete manchinhas castanhas e pequenas do seu osso malar se juntam, quase
desaparecendo em meio às dobrinhas que se formam perto dos olhos, seus
caninos mostram-se na boca como um troféu e ele acena com a cabeça,
concordando com a minha ilusão. Assusto-me levemente quando sinto suas
garras humanas pegando-me pela cintura, sem mover os seus pés ou oscilar
suas pernas. Ele tenta imitar o casal feito de estrelas, onde o homem
responsável por guiar a dança está atrás de sua mulher e eles movimentam-
se como dois adolescentes apaixonados. Então o garoto caminha levemente
para o meu lado, ficando atrás de mim. Um suspiro ardente sai da minha
boca ao mesmo tempo em que luvas frias encostam na minha veste curta de
tecido branco. Está parecendo que somos casados, estamos parecendo
marido e mulher e isso é tão errado. É tão bom.
Não deveria estar acontecendo, mas eu não consigo parar, não, não
quando o sinto atrás de mim. Infelizmente, perco a capacidade de raciocinar
todas as vezes que suas mãos estão na minha pele.
Sinto seus dedos se enrolarem no meu antebraço esquerdo,
levantando-o até uma certa altura e indicando que é para minha mão ficar
aberta. Abro-a lentamente e respiro fundo quando, junto dos dedos, sinto o
seu peitoral forte e trincado encostar nas minhas costas e sua outra mão
apertar a minha cintura por cima do vestido fino. Sei que já dançamos assim
antes, mas aqui é diferente, porque nesse ambiente extremamente perigoso,
nós estamos sozinhos, não há ninguém para vislumbrar ou impedir nada. E
sinceramente, entendo perfeitamente a lua por querer esse garoto ao seu
lado. Noeeh tem um magnetismo que atrai problemas impossíveis de se
resolver, por isso eu e o espírito que deseja ser sua mãe nos sentimos tão
atraídos por esse homem. Mordo a língua levemente quando nossos pés se
movimentam simultaneamente, como se estivessem entrelaçados por um
linha invisível que atravessa barreiras humanas.
Devem ser os sentimentos dele.
Porque eu não os tenho.
Eu juro pelo mar que não, prometo que não sinto nada, não absorvo
nada enquanto nossas pernas balançam com a melodia tropical que só existe
na nossa cabeça. Falo com o coração quando digo que o filho da lua não
causa-me tremor quando me toca nas regiões sensíveis. Não, isso não está
acontecendo de verdade e eu não quero suas mãos em mim. Eu não quero
fazer o que estou fazendo, não cobiço bailar com os pés, não desejo rodar e
colocar uma das minhas mãos no seu ombro. Tamnam tamnam. É o barulho
forte e grosso que ouço quando as minhas patas humanas oscilam pelo chão
de madeira do barco, seguindo as do garoto feito pela lua de prata. E assim
dançamos, um para frente. Tamnam tamnam. E com a morte a feriu. Outro
para trás. Tamnam tamnam. As memórias voltam como se estivéssemos no
salão novamente. Violinos, gritos, passos, espadas, fogo, calor, vozes e
respiração. Tamnam tamnam. O que eu pretendo fazer com esse garoto?
Um para frente, outro para trás.
E por algum motivo, sinto que o casal nas estrelas está dançando
também.
Pressiono os lábios um com o outro, forçando-me a parar de dançar,
mas não obtenho sucesso nenhum, já que o anjo caído fez questão de virar-
me de frente para ele, na mesma velocidade que um relâmpago teria se
estivesse apostando uma corrida com a chuva grossa puxada pela gravidade.
Um para frente, outro para trás. Nossas mãos estão juntas, meus dedos estão
no seu ombro e meu rosto está encarando essa obra de arte. Seus olhos estão
fitando-me tão intensamente que eu acho que sua tonalidade violeta pintará
a minha pele se não fizer alguma coisa neste momento, minhas veias
sanguíneas se tornarão brancas e o meu sangue será preto, e assim, eu terei
suas cores. Eu serei completamente sua, que é o que ele deseja. Archiviéste
gira-me em uma volta completa, fazendo meus pés se movimentarem em
um círculo completo com mais trezentos graus. E assim dançamos mais
uma vez, um para frente. Tamnam tamnam. Paixões como essas estão
condenadas a nunca se juntarem, então não importa quantas danças ele
descasque, não vai mudar.
Tamnam tamnam.
Os nossos pés param quando ele solta a minha mão e para de
conduzir a coreografia. O homem dá um passo à frente, inclinando a cabeça
e umedecendo a boca.
— Assim que deveríamos ter terminado aquela dança — diz,
profundamente, posso ouvir a sua voz comunicando-se com a minha alma.
Isso é muito além do corpo. Deveríamos ter terminado como um casal. —
Prometa-me, Morgana. — Sinto suas luvas encostarem no meu rosto e seus
cotovelos quase se juntarem, sinto cada mão em uma bochecha e o calor da
sua carne. — Prometa-me que nunca mais fará isso comigo.
Ele pede, encostando sua testa na minha, nossos narizes estão juntos
e o ritmo da nossa respiração também.
— Prometa-me que nunca mais irá atrás das pessoas que tentaram
me matar. — Isso soa quase como uma súplica. Ele quer trégua, mas
infelizmente, não é assim que as coisas funcionam. Gosto da sua presença,
mas isso não pode ultrapassar os meus objetivos.
Nunca mais vou colocar alguém acima de mim.
— Não posso, Archiviéste — respondo, sentido-o pressionar os
olhos bem forte, quase se segurando, como se quisesse chorar. E, segundos
depois, sinto algo molhar a minha bochecha. Pelos céus, isso está acabando
comigo, mais do que imaginei que alguma vez acabaria. — É a minha
natureza e não vai mudar.
Acho que acabo de perfurar mais uma cicatriz em seu coração,
porque não escuto nenhum som vindo do seu corpo. Ele está da mesma
maneira em que esteve naquele dia em que parti para procurar ajuda no
fundo da escuridão marítima, para correr em direção aos braços dos
assassinos que executaram sua família, como um mar morto, como uma
ferida aberta. Eu não vejo nada e acho que Noeeh também não. Acredito
que, desta vez, eu o perdi para todo o sempre.
Desta vez, o mandei embora de um modo tão cruel que fará com que
Noeeh nunca mais volte.
Eu consegui o que queria, o feri tanto que o homem nunca mais
cederá novamente.
— Como você quiser, Morgana — diz, soando mais distante do que
nunca. Seus olhos estão inchados e avermelhados, avolumados pela aflição.
Sua armadilha foi novamente montada, mas ainda vejo a carência no meio
desse furacão. — Pode dormir no meu quarto essa noite, irei dormir com os
marinheiros no camarote. Tenha um bom descanso.
Sua melodia soa tão formal, suas cordas vocais se esforçam muito
para esconder a angústia causada pela tortura dos seus pensamentos.
Novamente exilado da terra ilusória dos apaixonados. Experimentando
novamente a dor de um homem que nunca foi verdadeiramente amado.
— Não vai dormir na sua cabine? — questiono, sentindo a minha
garganta queimar e o meu peito doer, e eu não sei por quê.
Eu sei, eu sei sim, mas não admito. Talvez nunca admitirei.
— Já te disse, Villain. — Já faz um tempo que ele não me chama de
raposinha e quando percebo isso, minha carne se aperta e faz meu peito
doer mais ainda. — Está para nascer o dia em que vou deitar na mesma
cama que uma mulher só quer me usar. Ainda resta-me um pouco de
dignidade, e destruí-la neste momento seria o meu fim.
O fim.
Archiviéste faz cinco coisas, mas o tempo o paralisa como se
estivesse fazendo trinta. O homem se vira na direção oposta a mim e
começa a andar elegantemente, como de costume, fechando os punhos da
mão direita, querendo esconder mais uma vez seus sentimentos agitados, já
que todas as vezes que o demonstrou, foi rejeitado, sempre lesionado pela
mesma mulher que ama desde os nove anos. Seus braços balançam
conforme o vento o consola. Por último, e mais dolorido, Noeeh some do
meu campo de visão ardente, deixando-me com a lua de prata.
Deixando-me como eu sempre quis estar:
Sozinha.
Isso está realmente certo? É o que eu quero, não é? Eu desejo o
cisne traumatizado, mas por que não me sinto tão feliz assim? Eu fiz ele
chorar. Causei uma contusão tão grande no seu coração que ele chorou mais
de uma vez pela mesma coisa. Suas pálpebras tremeram e o cisne derramou
lágrimas salgadas encharcadas de tristeza de uma morta paixão. Aqui está o
meu garoto triste, negligenciado por sua família, pela cidade, pelo seu país,
pelo seu pai e por mim. Por todos que cuidou, por todos que deu a vida para
proteger. A única pessoa que verdadeiramente se importou consigo está
morta, porque o homem de fios platinados não foi capaz de protegê-la.
Noeeh vive a vida dolorosa que eu achava que vivia.
Aquelas agulhas que incomodavam a minha pele, estão rasgando a
dele.
E quando viro-me para o lateral, encontrando o céu pairando sobre a
minha cabeça, vejo as águas que banham a ilha onde se localiza uma das
instalações da Marinha Britânica. Se continuarmos navegando por esse
percurso, vamos chegar à ilha em breve e nos distanciar bastante da dica de
onde está o ouro. Estou perto de ganhar.
Estou perto de ganhar?
Levanto os olhos e sinto a claridade das estrelas. Inclino a cabeça,
captando algo que, mais uma vez, faz a minha vitalidade tremer: a lua está
triste.
Está tão triste quanto seu filho.
CAPÍTULO XX
A deslumbrante reprodução moderna, elaborada a partir de rápidas e
largas pinceladas e perfeitos traços precisos, foi efetuada de uma maneira
tão concentrada e habilidosa que metade da população britânica facilmente
iria confundir essa imagem maravilhosa com uma obra Leonardo di Ser
Piero da Vinci, exibida no maior e melhor museu contemporâneo, cheio de
riquezas e preciosidades, guardando até os mais sujos segredos da
sociedade. Mas nós sabemos que uma obra como ele não poderia ser criada
por mãos humanas. Leonardo pode até ter sido um gênio, o ser humano
mais esperto e criativo de toda a nossa existência, mas ninguém mais além
da lua prateada poderia parir um filho com tanta luminosidade.
Noeeh sente que tudo que ele deseja, o despreza, todos que ele
protege, o machucam, e isso pode ser doloroso, pode até ferir as emoções
turbulentas que ele denomina de sentimentos, ou o órgão pulsante que ele
chama de coração. E por algum tempo, até senti pena desse garoto triste,
senti arrependimento e desejei dá-lo uma chance, um talvez, mas isso não é
da minha natureza.
Não é do meu feitio saber amar.
E ele sabe disso.
Archiviéste sempre soube.
Escolheu a dor, cobiçou essa violência.
Pergunto-me por que, qual o verdadeiro motivo dele amar-me tanto,
porque tudo isso que ele fez por mim é amor. Eu sei, não sou tão insensível,
tenho consciência do que Noeeh sente por mim desde os seus nove anos.
Lembro-me perfeitamente do quanto seu pai era cruel, nem imagino as
coisas horríveis que esse garoto deve ter passado depois de sua família ter
descoberto que eu o manipulei. Sei dos cortes, mas a carne vermelha e o
meu instinto de raposa ainda cutuca meus neurônios, alertando-me de que
ainda tem mais. Noeeh é um poço muito mais profundo e misterioso do que
eu posso descrever. Dói admitir, mas uma pequena área da minha mente
assustadora se sente intensamente atraída, às vezes eu sinto que ela toma o
controle dos meus pensamentos e atitudes, mas quando a minha parte maior
e mais agressiva toma o lugar e manda-a dormir, Archiviéste não é nada
mais além de meu inimigo.
Eu não sei quem seguir.
Passei dez anos me negligenciando e isso obviamente causou
consequências na minha linha de raciocínio. Notar os problemas
psicológicos que eu possuo já é, sem dúvidas, um grande avanço, mas não é
a minha cura, não é o que eu necessito. Agora só estou seguindo o que eu
acredito ser correto e melhor para mim, mas como já disse: passei tanto
tempo sendo sufocada que quando me soltaram, eu desaprendi a respirar.
Estou confundindo o que eu quero com o que fui criada para fazer, e estou
seguindo qualquer uma dessas vias sem pensar qual é a verdadeira. Fiquei
tão feliz por ter sido solta que estou respirando de qualquer maneira.
Quando eu o entreguei, não fiquei feliz, o arrependimento tocou-me nos
lábios pouco avermelhados, fazendo-me mordê-los levemente por receio.
Então pego-me perguntando novamente: eu fiz aquilo porque queria ou por
que fui ensinada a fazer?
Minha mente ainda é um nevoeiro de tonalidade verde-clara, como o
veneno fortemente brilhante de um animal extremamente colorido e
corrosivo, provavelmente o mais perigoso de toda vida marinha. Esse
líquido esverdeado desconstrói as paredes das minhas lembranças e toda a
minha ética mostra-me coisas que eu não quero ver. Parece que tudo o que
eu vivi foi uma grande mentira. E é frustrante, é frustrante saber que eu
deixei de ser eu mesma por tanto tempo, mas estou exausta, cansada dos
mandamentos ordinários dos meus pais, irritada com a minha segunda
personalidade. Quero começar a seguir o meu coração, entretanto, por onde
eu começo?
Como faço para diferenciar tudo isso?
Sou liberta dos meus devaneios quando uma voz irritante e fina de
um homem baixo, com fios negros e olhos castanhos, de beleza grosseira e
defeituosa grita perto dos meus ouvidos. Olho para cima, encarando-o de
forma persuasiva, como se dissesse: “Qual o seu problema, bastardo?”
Ele analisa-me de volta, igual a um safado olhando para uma mulher
indefesa. Expresso uma cara de nojo misturado com desgosto, como se o
homem fedesse a peixe podre, e desvio meu olhar para frente, flagrando
Archiviéste, fitando-o de um modo hostil, agressivo e, aos olhos de
qualquer mulher que também o esteja encarando, sexy. Ainda bem que não
tem nenhuma mulher examinando o que é meu, porque se tivesse, esse
ambiente não ficaria legal.
Archiviéste está sentado sobre os joelhos, seus pulsos estão
amarrados para trás e tenho certeza de que sua coluna está dolorida. O meu
cisne negro está da mesma maneira há quase quatro dias, mas mesmo
assim, exerce uma influência forte sobre a tripulação, porque, no momento
em que o nojento percebe que o platinado está encarando-o, para de me
analisar e sai de perto da minha estrutura. Ainda bem, porque se fosse
aquele loiro branquelo, o seu homem ainda estaria me comendo pelos olhos.
Está quase anoitecendo e já chegamos na ilha há alguns minutos. Leonard é
tão frouxo que ainda tentou convencer seus homens de que eu era inocente,
mas não conseguiu fazer muita coisa. Ele não teve uma fala firme, então
vou ter que melhorar a minha atuação com seus guerreiros, ou tudo cairá
por terra.
Vasculho rápido o ambiente, notando que os homens estão
arrumando as cordas e as escadas para poderem descer do grande navio que
pertence ao pirata.
— Então esse é o seu plano? — pergunta a voz conhecida que eu já
cansei de elogiar. — Deixar-me aqui para morrer de fome enquanto você
volta para Penzance e governa o que eu conquistei?
— O que eu vou fazer não é mais da sua conta — digo, sem olhá-lo
nos olhos. Examino a forma desajeitada com que os marinheiros britânicos
descem a corda do navio, seria engraçado se não fosse triste. — Você voltou
sabendo o que poderia acontecer.
Ouço o som da sua risada se misturar com o som vibrante da brisa
marinha. Que coisa deliciosa de se ouvir, acho que poderia ficar aqui por
mais alguns minutos. Seria loucura se morasse nessa ilha com esse homem?
— Como soube deste lugar? — pergunta, frugal. Pelo seu tom de
melodia, Noeeh ainda está incrédulo com o que eu fiz. — Desde quando
você pretende colocar-me aqui, Morgana?
Não preciso ser um gênio da Idade Moderna para saber que sim, isso
doeu no seu peito, machucou a sua carne elaborar esse questionamento. O
cisne negro não está me interrogando à toa, ele quer saber se eu estaria
pensando em machucá-lo quando ele disse aquelas palavras. Não quero
responder, até porque Noeeh já sabe o resultado.
— Meus pais eram manipuladores, Archiviéste. — Mudo o peso da
minha estrutura de um pé para outro. O vento traz algo que ele não teve
coragem de falar:
— É só isso que você tem a dizer?
— Sim, meu garoto, é só isso.
Um minuto de silêncio se passa.
— Acha que não percebi isso, Morgana? — O platinado sorri. —
Percebi que os seus pais eram manipuladores no dia em que eles ordenaram
que você se casasse com aquele homem. No dia em que você comprava
flores vermelhas para levar na cerimônia, mas não tirava os olhos das
gardênias brancas.
— Meus pais tinham os defeitos deles, ambos eram ambiciosos e
queriam o governo para eles. — Umedeço os lábios. Eu só não os julgo
hoje, porque sou igual. Quero tanto que estou sacrificando coisas que
poderiam dar certo. Meus olhos se iluminam quando percebo que Leonard
está me chamando para fora do barco, mandando-me descer a corda. Coloco
as minhas mãos no objeto grosso com textura áspera, mas a voz do diabo
vermelho chama minha atenção.
— Essa corda está mal colocada. — Ele inclina a cabeça para a
lateral esquerda, fitando a minha coluna. — Não faça uma burrice dessa. Os
homens dele não souberam prender a âncora da forma correta, você vai
acabar se machucando.
Mordo os lábios, indecisa. Eu sei descer essa corda, mas se for parar
para olhar direitinho, ela realmente não está amarrada muito bem.
— Villain — o loiro chama-me, alto o suficiente para todo o mar
ouvir. Encaro-o naturalmente. — Você não sabe descer?
— Estou com medo. — Arrumo uma desculpa rapidamente, o que
não é tão mentira assim. Escuto o som do peito de Archiviéste tremer com
uma risada longa e sincera, como se me perguntasse como eu consigo ser
tão cara de pau e mentirosa. — Faz muito tempo que eu não toco em uma
dessas.
E lá está ele, o instinto masculino de se sentir herói e proteger uma
mulher. Um grupo de idiotas que, no fundo, são mais inseguros e medrosos
que nós. Quero revirar os olhos, mas seguro-me profundamente, com todas
as forças que me restam depois de passar dias nesse navio. Viro a minha
cabeça rapidamente para o lado quando ouço passos conhecidos se
aproximarem de mim, meu coração salta com uma emoção que eu
desconheço quando percebo que Archiviéste está atrás de mim, com as
mãos amarradas. Tenho que levantar o queixo se quiser olhá-lo nos olhos
por conta da diferença de altura.
— Eu a ajudo a descer — oferece, vislumbrando-me sem segundas
intenções. — Mas vão ter que dar a ela permissão para desamarrar os meus
pulsos. Prometo não escapar.
O loiro solta uma risada debochada, cutucando as bochechas com a
língua. Sinto os raios solares virem cada vez menos frequentes, também
sinto a terra girar, porque meu coração está batendo tão rápido que tudo fica
devagar. Eu vou descer desse barco pendurada no corpo dele. Não poderia
estar mais fodida que isso, não neste momento. Ajeito os ombros e aprecio
o capitão da Marinha arregalando levemente os olhos e encarando-o
inocentemente. Um estalo que não ecoa da minha boca entra pelos meus
ouvidos, acho que alguém não gosta de presenciar a carinha de inocente que
eu faço para o loirinho bonitinho. Lancaster fica alguns minutos pensando.
— Por favor — suplico com um tom de voz mais meloso. Apertos
os dedos, lacrimejo de leve e mordo os lábios. — Eu estou com medo.
Seus olhos verdes brilham conforme sua íris passeia pelo meu
corpo, minhas bochechas não ardem, eu não perco o fôlego, isso se torna
apenas sem graça. Não tem graça brincar com alguém como ele. Quero
apenas agarrar o homem que está ao meu lado.
— Pode desamarrá-lo, Morgana — libera. Viro os calcanhares para
o lado e aproximo-me de Archiviéste. Um pé depois o outro. — Mas se
você ousar escapar, Archiviéste. — O garoto alto olha-o de forma criteriosa.
— Eu vou matar os seus amigos e vou torturar aquele ruivinho com quem
você se importa. Eu não confio em um pirata.
— Uma coisa que você não sabe sobre nós, piratas, Lancaster — ele
aponta, ficando parado à minha frente enquanto as minhas mãos passam
pela sua cintura e pousam nas cordas que estão no seu pulso. —, é que
temos honra, eu disse que não fugiria e não vou fugir.
Arregalo os olhos quando percebo que as cordas já estão soltas.
Respiro fundo, nervosa. Há quanto tempo ele se soltou das amarras? Noeeh
poderia ter zarpado com o navio há minutos, assim que Leonard saiu deste
lugar. Mordo as bochechas. Não, ele não iria embora sem seus homens.
Esqueço-me frequentemente que estou de frente para um verdadeiro líder.
Pego as cordas, atuando como sempre, e fingindo que fui eu que desfiz o
nó. Um suspiro escapa da minha garganta, agindo como se estivesse
insegura e com receio de soltá-lo, mas nós sabemos, no fundo nós sabemos
o quanto eu queria ser envolvida por aqueles braços novamente.
O meu britânico favorito começa andar para frente e eu para trás.
— Só vou sair quando alguém me tirar — o anjo diz e eu paro de
respirar. Ele quer que eu o tire daqui. Isso é mais um teste, isso é uma
chance. Novamente o pego se humilhando por mim. E implicitamente, seus
olhos dizem: “Eu vou ter você, Morgana. Eu não vou parar até te ter”.
Meu peito se encosta em seu peitoral, minhas pernas não têm para
onde ir porque eu cheguei nas paredes de madeira do barco. Estou
praticamente sentando-me na borda, porque Noeeh está tão perto que quase
o sinto na minha virilha. Seus ombros estão perfeitamente arrumados,
mostrando-me quem manda e quem obedece. Ele nunca se aproximou de
mim dessa forma. Talvez Jacks tenha razão, eu nunca conheci
verdadeiramente o lado agressivo desse garoto de olhos violetas. A parte
dominante que todos eles temem e todos discutem, como se fosse um
espírito maligno do qual é preciso manter distância, porque Archiviéste tem
o olhar forte e frio, encharcado de tristeza, mas a sua íris é ardente como a
de um assassino.
O platinado matou o primo com nove anos, pode ter sido para me
proteger, mas matou. Naquele dia, eu não recordo-me de tê-lo visto chorar,
sequer o vi fraquejar, sua lâmina atravessou a garganta do seu parente como
uma flecha certeira e nenhum lacrimejo saiu dos seus olhos. E é com a
mesma espiada mortífera que ele está encarando Leonard Lancaster neste
exato momento. Não é com Archiviéste quem devo me preocupar agora,
não nesse instante, com o desejo escorrendo desses cílios longos e grossos.
Sua mão enluvada voa em direção a minha cintura, mas não a toca. Ao
contrário do que penso, ele encosta em algum buraco que há nas tábuas do
navio e um barulho alto ressoa. Assusto-me levemente, ativando mais o
atrito que há nos nossos corpos. Levanto minha íris que não possui cor,
como minha alma.
Seus olhos parecem estar amaldiçoados. Toda a vez que ele me
repreende, uma praga é jogada sobre meu corpo, nem a punição de todos os
setes pecados capitais juntos chega aos seus pés.
— Sabe qual era o meu plano, Morgana? — Vejo uma veia saltar do
seu pescoço logo depois dele soltar a escada que me leva à superfície.
— Me matar? — pergunto, fingindo que não estávamos
conversando. Coloco a mão na mureta que divide o barco do mar, um pouco
assustada com essa autoridade.
— O meu plano nunca foi o mesmo que o seu, raposinha. — E aqui
está, novamente, o apelido que eu tanto odeio, mas que, se fico sem, sinto
saudades. Muita saudades. Só ele pode me chamar assim. — Você acabaria
morta sim, mas não forma que tanto pensa. Acabaria cansada, marcada,
deitada em cima de um lençol azul escuro na parte mais alta do navio,
completamente nua e sendo admirada pelas estrelas. — Como um anjo,
tenho certeza de que ele me enviaria ao céu. — Eu faria de tudo para te
levar ao paraíso, Morgana, mesmo não tendo experiência alguma. Mas
agora… — Uma risada fraca ecoa do seu peito. — Agora, sabendo do erro
que você cometeu, eu vou fazer de tudo para te fazer sentir as chamas do
inferno.
Sento-me na borda do navio e escapo das suas garras, começando a
descer as escadas frágeis que me dão acesso a terra firme.
— Torça para que seu corpo não me conceda permissão para tocá-lo,
Villain. — Continuo descendo as escadas, tentando não importar-me com
suas palavras. — Porque se ele vacilar, eu vou te fazer se arrepender por
cada palavra de ódio que proferiu contra mim.
Estou correndo dele, como uma presa.
Estou correndo dele, como o diabo corre da cruz.
Estou correndo dele, como a humanidade corre dos sete pecados
capitais.
Um para cada manchinha castanha que há no seu rosto.
Termino de descer as escadas e engulo em seco, respirando o ar frio
da ilha em que estacionamos. Começo a cambalear por causa do efeito
consequente de se ter ficado muito tempo no mar, a terra parece que gira e
fica difícil se equilibrar. Dependendo de quanto tempo você passa
navegando, esse efeito pode durar anos. Os meus dentes só não estão caindo
porque Archiviéste fez uma cabina com janelas dentro no navio que nos
permitia plantar algumas frutas e legumes, obviamente só os pequenos e
que crescem mais rápido, como o nabo. Pisco uma, pisco duas, pisco três
vezes e, mesmo assim, ainda não sinto o efeito passar. Levanto o antebraço
e coloco a palma da minha mão sobre a testa, sentindo a ardência das
minhas moléculas agitadas, ouço os meus ossos gemer enquanto descolo da
minha carne um suspiro cansado.
Exatamente como eu estaria se estivesse deitada na cama del…
Pelos céus! Por que, caralhos, estou pensando nisso?
Sou segurada pelos braços do garoto alto de fios brancos quando
tropeço na areia. Levanto o queixo, ouço os passos dos soldados se
aproximando e ele diz calmamente:
— Quero que Villain me amarre.
— Por que? — Não sou eu quem diz isso, estou tão descrente
quanto a pessoa que perguntou. Como? Estou tão perdida quanto um filhote
de tartaruga dentro de um baú de ouro. Do que esse moleque está se
falando?
— Porque não quero ser tocado por você. — Olho para o lado e
entendo o que o portador dos olhos violetas diz, agora sim sua frase ressoa
com algum sentido. Noeeh está se referindo à amarra que Leonard traz
consigo. Archiviéste quer que eu o amarre e isso não poderia soar menos
importuno.
— Como podemos saber se ela não vai sabotar a gente? — pergunta
um soldado distante, fazendo todos os vinte e sete homens que estão na
praia olharem para ele. A maioria aqui são loiros, possuem os olhos claros,
mas mesmo assim ainda não são tão bonitos. Às vezes me pergunto o
motivo de endeusarem tanto esse tipo de homem.
— Porque foi ela que nos trouxe até vocês — Archiviéste explica,
mas todos que estão presentes o olham com desconfiança, até mesmo
Lancaster. Até porque, com esse pensamento preconceituoso de que uma
mulher não é capaz de enganar um homem, ninguém navegando nesses sete
mares iria acreditar. — Se está na dúvida, veja os traços dos desenhos e
compare o mapa que está perto do timão. — Minha respiração está ofegante
por causa dos sentimentos confusos e agilidade desnecessária. — Os traços
dele são mais finos e mais suaves que os meus por conta do peso leve da
mão dela.
Tento me desvencilhar do seu corpo, mas ele ainda me prende.
— Como marinheiros, vocês sabem diferenciar, não sabem? —
interroga, com um sorriso cretino no rosto.
— Se sabia diferenciá-los, por que não impediu que isso
acontecesse? — questiona o homem mais velho dos vinte e sete. Seus
cabelos são quase grisalhos, mas isso não combina com ele.
— Porque eu queria saber até onde ela iria — afirma, soltando-me
dos braços quando sente que meu corpo está mais estável. Archiviéste,
Archiviéste... Ele é o tipo de homem que me encontraria no rio mais
profundo, onde deságuam as lágrimas do meu primeiro e único amor.
E seus lindos olhos violetas dizem novamente: “Eu vou te ter,
Morgana. Eu não vou parar até te ter”.
— Deixem ela o amarrar — declara o loiro, aproximando-se mais
um pouco e entregando a corda para mim. Minhas mãos estão escorrendo
de água corporal, mas eu não devo deixar isso à vista. Não vou demonstrar
que estou nervosa. — Pode fazer isso, Morgana?
— Posso sim — respondo, sentindo a textura grossa da corda pegar
nos meus dedos. O meu cisne negro se aproxima de mim e dou um passo a
frente, repetindo a movimentação. Passo minhas mãos pela sua cintura e
começo a envolver as cordas no seu pulso, ainda olhando em seus olhos
elementares. O espírito da tristeza está presente na sua íris arroxeada, mas o
caos sempre se destaca naquela pupila negra.
— É melhor você me amarrar muito bem, Villain. — Faço uma
volta. Faço duas. Sinto os seus pulsos se apertarem com a corda. — Porque
não cairiam bem para você se eu conseguisse desamarrar isso daqui —
avisa-me, ainda focado no meu rosto. — Cairia?
— Para a minha sorte, Archiviéste — comento, mordendo as
bochechas e fazendo o nó. —, eu sou boa com amarras.
Isso ecoa no duplo sentido, nós dois sabemos disso, mas apenas ele
sorri, revirando o meu sangue como as ondas reviram o Mar Morto. Mova-
me, meu amor. Mova-me, porque eu sinto paixão pelo o que é errado. E ele
não vai desistir até me ter nas mãos. Afasto-me do garoto de fios brancos e
vou para perto de Leonard. O loiro levanta a cabeça e põe suas mãos nos
meus ombros, trazendo-me para mais perto.
— Fique longe dele, Morgana — diz, baixinho, como se isso fosse
uma ameaça. — Isso é para o seu próprio bem, porque eu não vou
conseguir deixá-la fora da cela essa noite se você continuar agindo como se
estivesse encantada pelo bastardo. Ninguém acreditará em você, nem
mesmo eu.
— Está dizendo que não pode me proteger, Lancaster? — questiono,
cutucando a bochecha com a língua.
Ele consegue, Archiviéste sempre conseguiu. Por anos ele me
protegeu das pessoas que me queriam morta.
— Estou dizendo que não colocaria a minha mão no fogo por você,
Villain. — O loiro morde a boca e eu sinto nojo ao vislumbrar tal
horripilante cena. Ergo o queixo e ajeito os ombros.
— Foi por isso e por mais alguns motivos que eu não quis me casar
com o homem mais prestigiado da capital. — Seus olhos ardem de um
sentimento que eu desconheço. — Você parece um príncipe, tenho que
concordar, mas eu quero muito mais que isso.
Eu tenho muito mais que isso. E ele está encarando-me
atenciosamente enquanto sussurro no ouvido do capitão da Marinha, seu
semblante é de ciúmes, mas seus olhos refletem tristeza. O vento sobe e
seus fios claros voam com a força invisível elaborada pelo ar, e eu penso em
algo que nunca pensei antes: “E se além de matá-lo, eu pudesse usá-lo para
poder chegar onde eu quero?” Archiviéste faz quase tudo o que eu mando,
será difícil controlá-lo mais um pouco? Arruiná-lo no momento seria um
desperdício de arma.
Ainda não existe nós.
CAPÍTULO XXI
As dessemelhantes inverdades proferidas pela minha boca cortada
pelo vento causaram consequências para minha mente em uma proporção
que eu nunca imaginei que poderia ocorrer. Em quase três décadas da minha
vida recheada de superações, reviravoltas, segredos, traumas, emoções,
paixões, adrenalina e tristeza, eu nunca fantasiei que pagaria tão forte com a
língua pelas mentiras que disse. Paguei de uma forma tão agressiva que foi
como colocá-la no magma de um vulcão em erupção e dizer que ela não iria
queimar. Essa atitude brusca e duvidosa seria um ato imperdoável para a
Morgana de dezessete anos, ela não gostaria dessa decisão, nunca aprovaria
isso sob hipótese alguma. Mas eu não sou mais ela. Um dos motivos de
toda essa briga é que eu queria voltar a ser como eu era antes, porém eu não
sou mais aquela garota manipulada pelos pais para ser uma arma de defesa,
também não sou mais aquela jovem que se submetia a coisas horríveis
porque não queria lidar com os traumas, que não queria aceitar quem
realmente era. Isso mudou porque abri os olhos.
Agora sou uma mulher que perdeu tudo e aceito isso, pois não tiro a
responsabilidade dos meus atos, todavia não tolero continuar de cabeça
baixa. Posso mudar alguns conceitos da minha visão e seguir com o que eu
acho correto, porém eu não permitirei que isso aconteça novamente.
Se esse homem realmente me quiser como está demonstrando, ele
terá que aceitar isso.
— Ele é apenas uma arma. — Recordo-me, ainda confusa.
Minha garota de dezessete anos não engoliria o fato de eu estar
pensando nessa possibilidade, ainda mais por algo que pode desencadear
outras lembranças. Não que eu vá deixar isto acontecer, eu não posso ceder
tão facilmente. Por mais que essa proposta aparente ser excepcional, por
mais que namorá-lo se assemelhe a um sonho feito de mel, eu não posso ser
tão fácil. Essa situação seria ainda pior para a Morgana renascida que
passou dez anos sofrendo nas mãos daquele bastardo. Aceitando traições e
se conformando com críticas desnecessárias sobre o seu corpo e sua beleza.
Como ela lidaria sabendo que já estamos com outro homem? Como aquela
jovem que passou dez anos sendo abusada psicologicamente iria reagir ao
ver que cedemos novamente para um homem?
Eles não são iguais.
Ele ainda pode me machucar.
Archiviéste nunca me machucaria, mas eu não tenho certeza disso.
Estou disposta a dá-lo uma chance?
Noeeh colocou uma faca na minha garganta, porém deixou que eu
escapasse com vida. O platinado não dormiu a noite toda porque ficou com
medo de alguém me ferir, entretanto colocou fogo na minha casa; me
perseguiu para ter certeza de que eu não me queimaria, mas me jogou em
uma piscina; me resgatou de um afogamento e ainda vigiou a praia todas as
noites por medo que eu tentasse acabar novamente com a minha dor. Com
noves anos, Ar matou o próprio primo porque iria tentar me atacar,
entregou-me flores todos os anos após ser exilado, cuidou da minha cidade
por mim, impediu-me de engravidar e perder o meu último fio de
esperança. Archiviéste ficou com medo de me perder. O meu cisne negro
fez tantas coisas por mim, mas também tentou me arranhar, tentou provar
para si mesmo que sentia raiva, mesmo não havendo nada ali.
Noeeh nunca me machucaria, mas eu não tenho certeza disso. Isso é
uma mentira, porque eu sei que ele não faria, mas ainda estou tão confusa,
tão perdida.
Sou capaz de amar novamente? Se sim, estou disposta a dá-lo uma
chance de ser o meu amor? Eu seria capaz de corresponder a esse
sentimento perseverante que queima seu coração há mais de dez anos?
Fechos os olhos, umedecendo os lábios. As correntes de vento
noturnas balançam os pequenos fios do meu cabelo que estão soltos,
somente os rebeldes que eu não consegui amarrar movimentam-se pela
onda de ar. A pouca iluminação que o quarto de Leonard recebe atrapalha-
me um pouco a pegar a chave do seu bolso, mas eu não deixo isso
influenciar na minha persistência. Meus pés estão amarrados por um pano e
esse tecido é grosso e rosa claro, e está envolvido em uma engrenagem
inútil feita de ferro presente no teto do quarto. Alguns homens que servem
ao loiro estão no ambiente, e é por este motivo que eu não posso
simplesmente pegar a chave e sair correndo desse cômodo sombrio. Minhas
pernas estão doendo pelo tempo que estou de cabeça para baixo, meus
braços estão esticados e Leonard não me ajuda quando se movimenta para o
lado. Um suspiro escapa da minha boca, fazendo-me aproximar meus dedos
da sua calça. Quase. Quase. Outro quase.
Junto as sobrancelhas, demonstrando minha dificuldade de pegar
essa chave pela minha expressão facial. Archiviéste terá que me agradecer
de joelhos por isso. Logo depois que eu libertá-lo daquela cela, não aceito
menos que um beijo nos meus pés e um dia sendo mais mimada que uma
rainha, porque como uma governante, ele já me trata. Alongo os meus
braços e encosto a ponta dos meus dedos no material frio do utensílio que
será útil para mim. Quase. Quase. Empurro e finalmente pego a chave.
Dou-me um sorriso que destruiria a sanidade daquele platinado de olhos
violetas. Ele ficaria louco por mim, mais do que já é. Deposito força nas
minhas pernas e levanto o meu tronco, buscando fôlego no fundo da minha
carne, no entanto eu não julgo-me por estar enferrujada, há anos que eu não
pratico esse tipo de abordagem. Depois de colocar as minhas mãos no
tecido, inclino para lateral e, com muita dificuldade, coloco os pés
silenciosamente na madeira fria que projeta o quarto. Ágil como uma
raposa sem garras, furtiva como um camaleão que não sabe qual é a sua cor
verdadeira.
Mordo a minha boca e começo a colocar os pés um na frente do
outro, fabricando uma caminhada que seria digna de uma modelo. Respiro
fundo e saio do quarto, sem ser pega pelos homens mentirosos que estão
dormindo. Obviamente eles estão desmaiados e, a não ser que aconteça um
estrondo muito grande nas próximas horas, eles não vão acordar tão
facilmente, pois passaram a tarde inteira procurando por alguns marinheiros
de Archiviéste que sumiram do mapa, então estão todos cansados.
Agradeço ao mar por isso, porque eu não saberia o que falar caso o capitão
da Marinha me perguntasse o que estava fazendo enquanto tentava roubar
sua chave. Seguro o objeto firmemente para que ele não faça barulho e
afasto-me do cômodo. As escadas são escuras e o brilho iluminado da lua
não gosta de entrar por essas brechas. Isso dificulta o meu caminho, mas
não o impossibilita, vou cumprir a minha promessa, nem que eu tenha que
fazer isso sozinha.
Desço as escadas rapidamente, um pouco amedrontada e receosa de
ser pega pelos marujos do meu rival. Vou ficar muito ferida caso for
capturada. Pisco uma vez quando finalmente termino os degraus de pedra,
ignoro a dor nas minhas pernas e corro até a cela mais próxima, colocando
as mãos nas grades e levantando na ponta dos pés, tentando achar o meu
garoto. Analiso a meu redor, mas não acho nada, nem uma lamparina, muito
menos Archiviéste. Ele deveria estar aqui, eu o deixei aqui quando subi
para o quarto do loiro. Meu coração salta de desespero e eu encaro o
homem familiar que se encontra jogado no chão. Seus fios negros estão
bagunçados e seu rosto está machucado. Sahil está muito ferido e sua pele
está vermelha, mas para ser sincera, eu não me importo com isso. Se fosse
ao menos Noah, eu teria um pequeno pedaço de pena, todavia eu não ligo
muito para o que acontece com esse daí.
— Cadê Archiviéste? — pergunto, direta, sem me questionar como
ele estava. — Onde ele foi parar?
— Boa noite para você também, Morgana. — Sua voz ecoa com
uma certa dificuldade. Seus olhos ardem de raiva e ele encara-me como
quem me quer morta. Óbvio que o moreno já sabe que fui eu quem cometeu
essa atrocidade, que é por culpa minha por ele está dessa maneira. Eu não o
julgo, eu também o encararia assim. — Por que a pergunta, garotinha? Não
era o que você queria? — Sorri. — Ele está muito longe daqui.
— O motivo não é da sua conta, Sahil — repreendo-o, com um
pouco de agitação. — Cadê o meu garoto?
— Seu? — zomba, inclinando a cabeça para a lateral direita. —
Você é uma mulher louca, não sei como conseguiu conquistar um homem
tão centrado como ele, certamente não foram feitos um para o outro.
Isso é nítido desde o começo. Se hoje ele é um anjo caído, foi
porque eu o expulsei do céu.
— Se não quiser ficar aqui pelo resto da sua existência miserável,
acho melhor você começar a abrir a boca — ameaço, perdendo a paciência.
Independente se eu o mereço ou não, ele será meu. Archiviéste é meu. —
Porque se eu perdê-lo por causa da sua demora, vou tirar a sua vida.
Seu sorriso cresce como um pão em um forno quente de padaria.
— Você é louca, porra! — Cutuca a bochecha com a língua. —
Ainda ontem estava querendo matar ele. Bipolar do caralho. — Levanto o
queixo, pressionando-o com o olhar. — Calma, pequena sereia do mal, o
seu príncipe encantado está na costa, preso em um navio.
— Como? — questiono, confusa. Isso é impossível.
— Eles amarraram Archiviéste ao mastro de um navio e o deixaram
sem água e sem comida — diz o moreno, calmo como uma onda fraca. Meu
pulmão esquenta na parte da água e da comida, mas eu não dou tanta
importância porque é Archiviéste. Ele facilmente sairia daquele lugar. — O
capitão está em um dos navios da costa.
— Eles são burros? — interrogo, mudando o peso do meu corpo de
um pé para outro. — Deixar Noeeh sozinho naquele navio.
Desta vez, sua piscada é mais lenta e triste que o normal, como se
Sahil tivesse acabado de ser atingido por um soco de realidade.
— Eu também diria isso. — Respira calmamente, ao contrário de
mim. — Mas eles o bateram tanto que o chefe ficou desnorteado, eu nunca
o vi assim, a cena foi horrível, a pior de tortura que eu já presenciei. Saiu
tanto sangue de sua boca que eu duvido que ele esteja vivo. — Lágrimas de
dor querem sair dos meus olhos. — Isso tudo porque eles acharam que o
chefe havia tocado em você.
Dou passos para trás. Um, dois, três. Ar nunca foi desrespeitoso
comigo. Meu peito se aperta e as gotas de águas ameaçam sair. Novamente
agredido por mim, mas desta vez, eu só queria ajudar. Ele pode estar morto
por causa disso. E esse foi o amor que ele desejou de mim, um amor
ultraviolento.
— Não… — Entro em negação, não aceitando que eu fiz. Não
deveria tê-lo trazido aqui.
— Mas se não está morto, duvido que dure muito tempo. —
Balanço a cabeça negativamente. Não, não, não, não. Isso não pode
acontecer. Perco a capacidade de respirar. — Sinto muito, Morgana. Eu não
coloco mais esperança de que o capitão esteja vivo.
Silêncio. Puro silêncio, porque nem eu, muito menos ele consegue
falar alguma coisa.
— Villain. — Desta vez é uma voz diferente que chama-me do meu
mundo. Levanto os olhos, achando o ruivo sentado no fundo da cela, seus
olhos estão inchados, seus fios estão bagunçados e ele está profundamente
ferido. Seu espírito pede por ajuda. E, acima de tudo, encara-me como se eu
o tivesse o traído. — Como pôde fazer isso comigo, Morgana? Como pôde
fazer isso com ele?
— Noah… — resmungo, sentindo-me levemente culpada. Eu nunca
senti isso antes e é um sentimento tão ruim. Parece que quando ferimos
quem amamos ou gostamos, sentimos uma decepção interna com nós
mesmos e não se pode odiar ninguém, ninguém além de si. A culpa é sua e
a responsabilidade também.
— Vá atrás dele, Villain — pede-me, encarecidamente, como uma
criança pedindo para que um adulto busque seu ursinho. Coloco uma mecha
de cabelo atrás da orelha, assentindo com a cabeça. — Traga ele aqui vivo,
por favor.
Vejo Sahil o encarar como se fosse um tolo esperançoso.
— Noah… — Uma melodia profunda sussurra.
— Calado, Sahil! — O som da sua voz soa muito alto, acho que
nunca o vi tão alterado. Engulo em seco e o homem de fios negros arregala
os olhos. — Eu não me importo se você não acredita. O chefe está vivo e
vamos sair daqui, independente do que você acha.
Solto um suspiro, entregando-lhe a chave pela brecha da cela. O
ruivo estende a mão e pega o utensílio, um pouco mais contente.
— Liberte todos os tripulantes e vão para o navio — digo, atenciosa.
Eu tenho que trazer esse homem vivo, para minha sanidade e para o
controle deles. — Eu vou procurar Archiviéste e logo depois vou levá-lo
para lá.
— Como podemos confiar em você? — pergunta o marujo de olhos
azuis, fitando-me com o olhar.
— Eu não gosto de você — digo, com sinceridade. —, mas eu quero
Archiviéste muito mais do que qualquer um. Não me importo se você
confia em mim ou não, isso não muda nada.
Ele umedece os lábios, pronto para falar algo, mas é o garoto ruivo
quem responde:
— Não me decepcione, Villain — pede. — Por favor.
Pisco lentamente, sorrindo e sumindo da sua visão. Gosto muito de
Noah, mas não é para ele que tenho que prometer isso, minha dívida será
sempre com o meu cisne negro. O pouco de lealdade que eu tenho, também
pertence a ele. E agora o resto? Eu não ligo para o resto. Vou achá-lo, nem
que para isso eu exploda este lugar.
CAPÍTULO XXII
A frustrante e cansativa percepção caótica de que tudo e todos a sua
volta pertencem ao seu transtorno mental e perturbado não me assombra
mais. Antes ela não me afetava com frequência, diminuindo os seus
impactos e não causando tantas sequelas, cortando menos a minha pele com
aquela maldita agulha afiada. Agora, principalmente nesse segundo
precioso, observando o mar atentamente enquanto o vento beija as minhas
bochechas e limpa a minha linha de raciocínio impetuosa, eu sinto que
peguei esse objeto fodido e o taquei muito longe da minha vista. Não
consigo enxergá-lo, não consigo tocá-lo. Essas metáforas horríveis e tristes
não se aplicam mais a mim, nem parcialmente, muito menos absolutamente.
Cheguei em um estágio da minha vida em que acredito e confio estar
intocável, as pessoas encostam-me, mas não podem me atingir. Só precisa
da dor para se sentir vivo quem está morto por dentro.
E eu estou tão viva que as nuvens com tonalidade de neve formam
uma coroa esbranquiçada sobre a minha cabeça, sua textura macia e
formosa se fricciona no meus negros fios de cabelo e elas cochicham no
meu ouvido, dizendo-me francamente que eu nunca estive tão impalpável e
bonita como estou nesse instante. Talvez sejam elas, ou talvez seja a
sensação de ser observada pelo lindo garoto de olhos violetas. Ele me faz
me sentir como a única mulher do mundo, como se eu fosse a criatura
mais linda que ele já viu. E vamos ser sinceros, para ele, eu sou. Morgana
Villain é a única pessoa que pode derrubar Noeeh Archiviéste, e Noeeh
Archiviéste é o único ser que pode tocá-la, que pode machucá-la, mas
qualquer um saberia que ele é tão leal e apaixonado que nunca seria capaz
de fazer isso.
Além do mais, mesmo depois de tudo o que eu fiz para ele há dez
anos, mesmo depois da confusão que eu causei na sua vida, o cisne me
ajudou a sair da minha segunda personalidade, ele estourou a bolha que
impedia as nuvens de formarem uma coroa na minha cabeça.
Meu garoto retirou as vendas que me impediam de voar. Hoje eu sou
livre, graças a mim. Hoje eu sou livre, graças a ele.
Nos livros, aqueles personagens que precisam de angústia para se
sentirem humanos são romantizados. Essa condição mentalmente precária
em que se encontram é exaltada, transformando-os de pessoas necessitadas
em seres gloriosos meramente perturbados, como se esse fosse apenas um
pequeno problema. Só quem passou sabe o que é se sentir perdido, sabe
como é ruim e doloroso lidar com algo que, na sua mente, não possui
controle, não possui salvação, não possui direito a uma segunda chance.
Alguns livros sombrios descartam o desenvolvimento desse tipo de
indivíduo apenas por denominá-los obscuros, jogam fora o potencial de
vários personagens que poderiam se tornar bem construídos, caso
estivessem nas mãos certas. E só piora quando o escritor resolve tudo com
sexo.
Eu largo a literatura na hora.
Odeio personagens que possuem diversas falhas profundas.
Por isso que se Archiviéste fosse um desses protagonistas literários,
ele seria o meu favorito, essa divindade não parece ter defeito; se o tem,
suas qualidades são tão gratificantes que os escondem, tudo é varrido para
debaixo do tapete de uma maneira tão gloriosa e sutil que não quero
enxergar. Ele é leal, fiel, perseverante, confiante, um traumatizado que é
capaz de lidar com seus problemas de um modo surpreendente, inteligente,
elegante, apaixonado, compreensível, respeitoso e único. Ele é o primeiro e
será o último. Não há cópias que sejam boas o suficiente para se
assemelharem.
Eu choraria todos os dias por não tê-lo.
Mas eu o tenho.
E vou aproveitar.
O mar está muito calmo, então assim que avistamos uma ilha,
atracamos nas areias que a cercam. O satélite natural e prateado que orbita o
nosso planeta está sendo o responsável por iluminar cada madeira presente
nesse barco que está parado sob os pequenos pontinhos cintilantes que
decoram o céu noturno, que não concedem a visão das fumaças em formato
de algodão de tonalidade esbranquiçada. Sinceramente, mesmo se
concedesse, isso não me chamaria atenção, não quando o verdadeiro
organismo que prende profundamente os meus olhos é o rosto do meu
homem de mãos ensanguentadas.
E hoje, principalmente nesta noite, quero que ele me empurre e me
sufoque até eu desmaiar novamente. De novo. De novo. De novo. Até nos
tornarmos corpos suados, jogados e cansados sobre o piso. Quero que a lua
brilhe, os planetas se alinhem e a besta descontrolada que há dentro
daquelas águas violetas apareça. Desejo que, pelo menos na nossa primeira
vez, ele perca a sua elegância e, por alguns minutos, também deixe de lado
o seu respeito por mim. Quero sentir-me aprisionada de uma maneira
diferente, porém eu entendo que para ativar esse lado do anjo caído, tenho
que provocá-lo e deixar explícito onde eu pretendo chegar e até onde eu
quero que ele chegue.
E talvez eu necessite que estejamos apaixonados.
— Os homens estão do outro lado da praia — começa,
aproximando-se de mim. Viro-me na direção oposta da sua estrutura e
encaro o mar noturno. Quero que ele elimine a distância entre nós e fique
atrás do meu corpo, encostado nas minhas costas. — Não quer passar a
noite bebendo com eles?
Não, eu não quero.
Meu corpo resmunga quando o garoto de olhos violetas concede os
meus desejos. Encosto a minha nuca no seu peitoral e descanso meu corpo
sobre sua carne. Respiro apressadamente, um pouco eufórica. Como eu vou
mostrar para ele o que quero neste momento? Óbvio, sem destruir o meu
orgulho, uma vez que eu disse que não daria outro beijo nele, não até
conquistar o tesouro. No entanto, neste momento quero beijá-lo até ficar
perdida.
E quero que o meu britânico favorito tire essas luvas.
Pois eu também desejo ser tocada por suas mãos.
— Archiviéste — chamo-o, lentamente. Kraken abaixa a cabeça e
rebate, dizendo:
— Diga, minha raposinha. — Uma de duas mãos enluvadas por um
tecido branco levanta, colocando mechas do meu cabelo atrás da minha
orelha. Meus ossos se estalam. Seus olhos brilham.
— Por que você me ama? — Esse é o ponto que eu estou tentando
entender. E tenho que esmiuçá-la antes de prosseguir com isso.
— Isso eu não posso responder, Morgana. Sentimentos complexos
não são algo que se define em palavras — diz, passando sua mão em volta
da minha cintura. — Mas posso falar as coisas que me encantam em você.
— Ele deixa um selar na minha testa e depois sorri. — A minha raposinha
me lembra o oceano, talvez sejam as ondas presentes no seu cabelo que são
muito parecidas com as ondas que mar reproduz na superfície, ou talvez
seja o simples fato de você fazer redemoinhos debaixo de tempestades para
proteger quem realmente ama, ou… — continua dizendo. Continua
sorrindo. Eu gosto muito da visão dele sorrindo. — talvez seja o brilho das
cristas marítimas, elas me lembram a mesma iluminação que existe em seus
olhos.
Um tremor ecoa do seu peito, então ele abaixa o pescoço, coloca sua
boca perto da minha orelha e diz:
— Todas as vezes que eu te observava, torcia para você me observar
de volta, porque quando olho para eles, sinto que estou naufragando. —
Ouvir isso me faz sorrir, como Noeeh. Como nós.
Eu sou o mar que ele está navegando, e vou naufragá-lo com as
minhas mentiras.
Eu sou o mar que ele está navegando, e vou naufragá-lo com as
minhas mentiras.
Eu sou o mar que ele está navegando, e vou naufragá-lo com as
minhas mentiras.
Essa foi apenas uma promessa que eu não fui capaz de cumprir.
— Gosta de tempestades? — pergunto, tendo noção de que estou
entrando em um assunto sensível.
— Mesmo não tendo uma boa experiência com elas. — Até porque
foi em uma tempestade que o barco da família afundou. — Já perdi as
contas de quantas vezes passei a noite acordado só para sentir a sensação de
tudo se dissolvendo e transformando-se em algo pacífico e aconchegante. A
calmaria depois da tempestade é uma das coisas que eu sempre pedi para
minha vida.
Quando se cresce na tortura, você aprende amar o silêncio da
solidão.
— E qual foi a outra coisa que pediu? — questiono, querendo ouvi-
lo falar o quanto me cobiçava, o quanto me cobiça mais uma vez. O garoto
tomba a cabeça para trás, levanta, ajeita a postura e responde:
— Você é o monstrinho mais chantagista que já conheci —
resmunga baixo, fazendo-me umedecer os lábios, solto-me do seu aperto,
giro a cabeça e defendo-me, dizendo:
— Mas eu nunca chantageei ninguém — rebato, virando-me de
frente para ele e colocando as minhas mãos no seu ombro.
— Claro que já — comunica-se, colocando suas mãos na minha
cintura, como um casal. Como um verdadeiro casal. — Todas as malditas
vezes que você sorri é uma facada no meu pobre coração. — Minhas
bochechas ficam vermelhas. — Eu me submeto a querer tocá-la, desejar
beijá-la, pego-me querendo levá-la ao fim do mundo junto comigo. Há dias
que eu a cobiço tanto que condeno-me ao meu próprio inferno por não ter
controle sobre o que eu sinto por você.
Eu necessito respirar, mas como não consigo, ele prossegue com
suas lindas palavras.
— Quando minha raposinha entender o seu potencial — acrescenta,
deixando-me mais apaixonada do que já estou, se isso for possível. —, o
mundo inteiro vai ficar aos seus pés.
Sim, é possível, mas agora, acho que cheguei ao limite.
— Por anos você largou tudo para ficar com Edward, até você
mesma, porque naquela época, pela primeira vez na sua vida, achou que ele
iria ficar — Noeeh soletra essas junções de palavras, mas isso não me
machuca mais, então permito-o continuar. — Você tinha traumas de
abandono e não sabia como lidar com eles, Morgana. Você pode ter ainda,
afinal isso não acaba de um dia para o outro, mas, no passado, sua mente se
apegava a qualquer pessoa que lhe dava esperança de que iria ficar presente.
E seu coração amava.
— O que quer dizer com isso, Archiviéste? — questiono,
pressionando-o a ser direto e sincero.
— Me ame por quem eu sou, Villain — pede, simplesmente. —
Posso estar sempre aqui, nunca vou te largar, mas por favor, me ame por
quem eu sou.
Noeeh joga os cotovelos para trás e aproxima a minha estrutura da
sua, fazendo com que os meus pés oscilem para frente e meu peito se
encoste ao seu. Um suspiro borrichal escapa da minha garganta e meu
cérebro está feliz pela falta de espaço que há entre nós. E assim, ele começa
a me tocar, uma de suas mãos descem para a amarra que se localiza no
vestido e o garoto de fios brancos começa a desfazer o nó que há na veste,
com a intenção clara de deixar-me nua, despida, como ele prometeu que
faria. Archiviéste cumpre o que promete. É uma característica oposta, mas
que, quando se trata dele, é maravilhosa. E eu não vou e não pretendo
impedi-lo, não quero fazer isso, até porque, é o que eu cobiço desde que me
libertei dos pensamentos e o vislumbrei aqui, sendo banhado pelo luar da
sua mãe prateada e chegando perto de mim.
E com um sussurro mental, eu confesso para mim mesma: sempre
desejei isso.
Eu sempre o quis.
Depois que Archiviéste desprende o pequeno empecilho de material
branco e grosso que envolve o meu corpo, meus pulmões sentem-se mais
libertos e a minha pele, mais exposta. O anjo caído levanta o antebraço,
ainda sem desviar os olhos de mim, e abaixa a alça do meu vestido,
deixando-me atordoada pela tensão presente na atmosfera pesada. Minhas
pernas tremem, mas eu não caio por estar sendo segurada pelo seu outro
braço. Sua postura altera-se nesses curtos segundos massivos, sua coluna
está mais ereta, sua presença mais destrutível, seus dentes caninos mais
afiados, sua personalidade educada encontra-se evaporada, seu olhar está
mais forte, inflexível, venenoso, como se ele estivesse prestes a me dizimar.
Consumir.
Mas é como dizem: quando o sol se põe, a besta aparece.
E eu não tenho lugar para correr.
Agora, com os ombros nus e sendo pressionada contra a estrutura
dele, Archiviéste inclina o rosto, elimina a distância entre sua boca e a
minha pele, dizendo:
— Mostre-me o seu corpo, Morgana — diz o portador dos olhos
violetas, frio como água de um lago congelado. O cisne negro deposita um
beijo glacial no maior órgão do meu corpo, produzindo um estalo nos meus
ossos. — Peço que exponha-o para mim. — Levanta a sua coluna,
ajeitando-se calmamente enquanto no outro lado, utiliza a sua mão para
erguer uma das minhas pernas. — Mas, além disso. — Nenhum lugar para
correr, correr, correr. Quero que ele volte aqui agora, ordeno mentalmente
que volte a selar minha estatura, também conhecida como sua catedral —
Quero que me mostre a nudez dos seus sentimentos.
E como se estivesse me ouvindo, ele volta, resmungando:
— Quero que mostre suas manchinhas. — O ser divino beija uma
pinta que está posicionada no meu outro ombro. Arranho o material que
está impedindo-me de observar o seu corpo, contorcendo-me contra o que
há entre suas pernas. Só há uma coisa neste momento que eu quero sentir, e
não são suas roupas. — Quero que me mostre suas cicatrizes.
Um selar carinhoso na minha testa, onde estão todos os meus
traumas. E ao detectar o que eu tento fazer, Archiviéste age como um garoto
caridoso, abre mais as minhas pernas e me puxa para mais perto, mais perto
e mais perto. Ele está sob a minha pele e eu estou ansiosa. Noeeh como a
tinta azul e Morgana como a tela branca, juntos representamos o quadro
mais perfeito do oceano lunar.
— Quero cada detalhe do meu corpo. — Mais um beijo é depositado
em mim, mas, desta vez, na área no pescoço. Não fale comigo, apenas me
mostre o que você sabe fazer. Apenas um olhar e sinto que ele pertencerá a
mim, então, como uma boa mulher, eu o encaro e o flagro dizendo: —
Quero saber que, no fundo, eu serei tudo para você.
Ele usa e trabalha com magia, porque não é possível que esse
homem seja real.
— Isso é o mais perto que eu cheguei do amor. — Esse garoto quer
me matar, só pode. — Seu toque é o mais perto que eu alcancei da
felicidade.
— Pelos céus, garoto. — Um gemido escapa dos meus lábios
quando ele morde o meu colo, fazendo-me tremer. Meus olhos ardem, mas
minha estatura não respira. Pego-me arranhando-o novamente.
— Diga novamente, só que, desta vez, para mim — pede, calmo
como a brisa presente na madrugada. — Por favor, diga para mim.
— Pelos céus, Archiviéste. — E então, o cisne me beija.
Seguro a sua nuca prateada com força quando suas mãos descem e
me pegam no colo. Nossos lábios se tocam, nossos peitos também, e nossas
almas se juntam, estando, desta vez, cem por cento apaixonadas. Minhas
unhas da garra direita arranham o seu pescoço castanho, produzindo um
gemido da sua boca cortada pelo vento. Na primeira vez em que nos
beijamos, eu percebi, mas com toda emoção eu não consegui focar somente
nisso. Agora que tudo está em silêncio e eu estou presa a ele, percebo mais
uma vez que Noeeh Archiviéste tem o mesmo gosto que o seu cheiro de
maçã com canela. E sinceramente, é uma delícia, como o seu dono de olhos
violetas como um todo. Mas preciso citar um desabafo: que homem gostoso.
Ele exala um certo nível de superioridade.
Mesmo estando sobre os seus braços, eu tenho capacidade para
começar a tirar suas roupas. Começo pela sua blusa branca e folgada,
rasgando apressadamente os botões do tecido. Captando o que eu desejo, o
garoto separa nossas bocas que estavam quase coladas, sorri fracamente e
me solta no chão, obrigando-me a ficar em pé sobre a madeira do navio.
Respiro fundo, anestesiada, carente pelo seu toque. O meu britânico
favorito pega na bainha da sua blusa com a mão direita e do outro lado, com
a esquerda, automaticamente levantando os cotovelos e retirando o tecido
que escondia a sua pele castanha. E eu quero lambê-la, quero lambê-la até
ficar cansada e jogada. Até que nós estejamos arruinados. E não é da forma
que estávamos no começo. Não, eu quero que Archiviéste seja demolido de
uma maneira sexual.
E como seria linda e erótica a visão desse homem sexualmente
exausto.
Isso faz meu clitóris pulsar de necessidade.
Ele solta o tecido branco e o deixa de lado, aproximando-se de mim.
Desço os meus olhos maliciosos por seu abdômen, mordendo as bochechas.
Se não estivéssemos no frio, expostos ao mar e ao vento, essa visão me
faria ferver de tanto calor. Acho que no fundo, mesmo com o aspecto
glacial, ele está, pois a cada passo que ele dá, eu sinto minha carne pegando
fogo. Eu o quero, eu o quero muito, mas antes, eu tenho que brincar. Quero
fazer algo antes de deixá-lo me introduzir, antes de tirar a sua virgindade.
Umedeço os lábios, erguendo o olhar, aquele mesmo olhar que o observava
quando imaginava coisas inadequadas.
Se Noeeh soubesse as cenas que criei, me daria um tapa, me
chamaria de pervertida e eu adoraria, porque sei que no fundo, por debaixo
de todo esse autocontrole, Archiviéste é igual a mim.
Porque, se não fosse, não iria querer me comer com tanta vontade.
Se não fosse, não estaria sorrindo dessa forma, como está sorrindo para
mim. O cisne é igual a mim, apenas usa uma máscara que, sinceramente, é
muito bem-feita, pois se não tivesse me agarrado no dia que estávamos no
barco pegando fogo, eu ainda acreditaria na sua imagem de bom moço,
como muitos ainda acreditam.
As estrelas se alinharam, meu garoto, pode trazer a besta para fora.
Porque você é literalmente um monstro debaixo da minha cama.
Estico o braço, puxo-o pela barra da calça preta e o faço se chocar
contra mim, instalando um meio-sorriso nos meus lábios. Sua boca se
contorce e Noeeh cutuca a bochecha com a língua. Com a outra mão,
coloco a minha palma sobre sua barriga magra e a aliso, para cima, para
baixo, arranhando-o de leve quando as unhas são friccionadas na sua pele.
Pisco e me surpreendo com os seus músculos definidos. É bom, é muito
bom tocar nisso, deixa-me excitada, tocá-lo deixa-me empolgada.
Archiviéste inclina a cabeça para a esquerda e a indecência, acompanhada
da pouca-vergonha, nubla as suas feições masculinas. Kraken encara-me
como se estivesse avisando-me para não entrar nessa disputa, porque o
diabo faria questão de ganhar, mas eu devolvo, e com olhos, digo:
— O que um garoto virgem pode fazer?
Ele entende, óbvio que ele entende, sua mente foi feita para ler a
minha. Sorrio e avanço novamente, beijando-o. Nossas línguas se
entrelaçam enquanto sua mão enluvada volta para o meu vestido, mas desta
vez, eu o impeço. Ar pausa, se distancia e analisa-me, confuso com a
situação. Ansioso para saber o motivo de eu ter parado. Quero sentir suas
mãos sem as luvas, porque se a textura do abdômen já é gostosa, imagina a
da sua mão cicatrizada. Há muito tempo que cobiço esse toque, entretanto
antes eu tenho que satisfazer outra meta. Tenho que realizar outras
vontades. O anjo solta-me com o meu impasse, mesmo depois de tudo o que
já fizemos, respeitando-me. Se eu quisesse parar agora, ou dissesse “não”,
ele cederia, vestiria as roupas e me honraria, mesmo estando excitado.
É por atitudes como essa ou parecidas com essa que eu o considero
homem.
— Você quer que eu pare, Villain? — questiona, sem resmungar.
— Não, Archiviéste. — Coloco as minhas mãos no seu ombro,
captando a visão do vento brincando com as mechas soltas e brancas do seu
cabelo.
Deposito força nas garras humanas, indicando que se ajoelhe. E em
questão de segundos, ouço o som dos seus joelhos no chão. Os cantos da
minha boca transformam-se em um lindo convite para o céu. Os cílios do
garoto se encostam e quando ele o separa, sinto que minhas energias estão
sendo roubadas por aquele mar violeta. Bendito seja esse mar violeta. Um
dos pilares da minha paixão pelo cisne negro. E para piorar, o luar o banha,
iluminando o que já é suficientemente brilhante para chamar de borboletas
azuis, ou raposas marsalas, como eu. Passo as mãos pelos seus fios,
acariciando-os. Agacho-me logo depois, ajoelhando-me entre as coxas dele.
Fico quase do seu tamanho — tirando a diferença de altura — e aproximo
minha boca do seu ouvido, dizendo:
— Eu quero amarrá-lo. — Olhe para ele. Olhe para mim. Olhe para
nós. Seus lábios se pressionam e suas bochechas perdem a cor. Vejo seus
dedos se movimentarem e do seu peito, ecoar um barulho de uma curta
gargalhada. Ele tomba a cabeça para trás, sorrindo logo depois.
Nunca vi algo tão bonito quanto o que estou vendo agora.
— Como você desejar, Morgana. — Archiviéste me fascina. Acho
que, de alguma forma, ele devora meu coração como um lobo disfarçado de
cordeiro, porém eu não consigo parar de encarar esses olhos maléficos.
E novamente, eu o beijo. Acho que gosto disso, acredito que esteja
gostando muito de fazer tal coisa. Pergunto a mim mesma se já gostei tanto
de algo como gosto de beijá-lo. E o meu subconsciente murmura palavras
enquanto eu passo a mão, desviando-se do seu corpo e pegando a corda
atrás de si, ainda com os lábios friccionados no seu. Acho que já transamos
nos meus sonhos, porque é impossível sentir uma conexão tão surreal pela
primeira vez. Eu só queria ganhar essa disputa, mas agora estou amarrando
os seus pulsos em uma corda que acabo de encontrar enquanto o beijo.
Ouço um estalo. Ouço um gemido e continuo passando as cordas pelos seus
pulsos.
Esse garoto é um monstro.
Acho que por isso eu me apaixonei por ele.
E, pelos céus, como eu o levaria para minha cama.
Termino de efetuar o nó que envolve seus pulsos e separo-me dele,
respirando fundo pela falta de ar. Solto um suspiro e a satisfação expressa-
se nas minhas feições, mostrando-o o quanto estou feliz e orgulhosa. O
garoto tenta se repuxar, mas é preso pelo canhão de ferro atrás de si, que
está cravado na madeira do barco. Sorrio ao vê-lo frustrado e um pouco
amedrontado. Deixo um selar na sua testa e o ouço perguntar:
— Por que você me prendeu em um canhão?
— Porque você pode facilmente quebrar a madeira — respondo,
afastando-me do seu corpo. Uma parte da minha pele resmunga por isso,
mas eu a ignoro, primeiro quero provocá-lo, para depois deixá-lo mandar no
resto da noite, até ele estar entusiasmado o suficiente para enforcar-me e me
fazer desmaiar. — E eu te quero bem amarrado.
E que as ondas do oceano concedam minhas imaginações eróticas.
Alucinações que queimam igrejas, caso eu pise nelas.
Começo a andar pelo convés do barco, ainda ouvindo o canhão
sendo puxado. Eu adoro vê-lo assim, se debatendo contra as cordas,
tentando se soltar. É gracioso vislumbrar uma besta sendo enjaulada,
principalmente quando é você quem a acorrenta. E como uma bailarina
apresentando uma dança clássica para pessoas ricas, eu, graciosamente,
começo a tirar a minha roupa, ciente de que ele não poderá fazer nada.
Absolutamente nada, só me olhar, só me almejar, como eu o ambicionei por
todos esses meses, desde o maldito dia que o homem apareceu, incendiando
a minha casa, conquistando o meu coração. Acho que está na vez dele de
me apetecer. O seu sorriso desapareceu, já o meu está brilhante como
nunca.
Acho que velhos hábitos nunca mudam.
Se é que posso chamá-los assim.
O vestido cai sob meus pés, autorizando que ele me veja nua, pronta
para ser… No entanto, Archiviéste não pode fazer nada. E eu amo isso, amo
vê-lo se debatendo contra as correntes. Meus peitos estão duros, os mamilos
estão eretos por saber que estou no controle e o que há entre minhas pernas
pulsa mais que o principal órgão do meu corpo. O sangue corre pelas
minhas veias, algo parecido com adrenalina desenfreada ataca a minha
mente e eu continuo andando nas pontas dos pés como se nada estivesse
acontecendo. Deixo os braços ao lado do meu corpo quando aproximo-me
da borda do barco, ouço as cordas sendo puxadas mais uma vez, sorrio mais
abertamente e analiso as ondas noturnas do mar.
— Morgana, Morgana... — o homem diz calmo e o mar grita,
agitado. Até os vales da morte clamam quando Ar repete meu nome duas
vezes. Archiviéste, Archiviéste... Coloco uma mecha escura dos meus fios
de cabelo atrás da minha orelha e inclino a cabeça, sem olhar para ele.
— O que foi, Ar? — pergunto, colocando a minha mão na parte de
trás da minha coxa. Passeio as pontas os dedos pela minha pele, levantando
meus pelos estruturais. Um gemido curto escapa da minha garganta. — Por
que você não vem aqui, meu garoto? — chamo-o inocentemente. Minha
garra sobe para a polpa da minha bunda e eu inclino a coluna para frente,
dando-lhe uma visão mais explícita de como está a minha boceta. De como
ele a tocaria, se estivesse solto. Abaixo a cabeça quando meu peito solta
uma pequena risada barulhenta. — Por favor. — Ouço o som da corda. O
som da sua respiração pesada. — Vem aqui, por favor.
As pontas dos dedos continuam subindo, até que tocam em um dos
lábios que compõem a minha vulva. Mordo os meus lábios e jogo uma das
minhas patas para frente, apoiando-me na madeira do barco e abaixando a
minha silhueta, quando a sensação de prazer simultâneo com o desejo
invade a minha mente. Sinto-me desnorteada e perdida. Meu clitóris lateja e
um gemido mais alto ecoa, mas eu prometi a mim mesma que não
massagearia o meu ponto de prazer, deixaria pronto para que ele o tocasse.
Entretanto eu abusaria dos toques nos arredores. Minha respiração se
acelera, o vento beija a minha testa e levanta o meu cabelo. E com os olhos
fechados, eu o ouço dizer:
— Sabe qual foi o seu maior erro por muitos anos, Morgana? —
interroga, mas eu não presto muita atenção. Não sendo estimulada de forma
tão exposta como estou sendo agora. — Tentar me conquistar pelos desejos
sexuais. Isso sempre foi o seu ponto fraco, Villain, não o meu. Mas, por
favor, pare, está acabando comigo.
Então, como um mago que realiza ordens, eu paro.
Minhas garras humanas se afastam da minha boceta e eu ajeito a
coluna, viro-me lentamente, ficando de frente para ele. E começo a
caminhar, nada me encanta mais que isso. Escuto as ondas do mar.
Archiviéste conjuga palavras que vão direto para a minha mente, e, com
isso, eu vou direto para o abismo. Ultrapassando o meu limite, eu escolhi o
meu veneno e ele se chama Noeeh Archiviéste. Acho que se ele fosse uma
orquestra, formaria a batida de uma música que se refere à costa oeste, a
garotos tristes, paixões intensas, saudades silenciosas, amores balançados,
imprevisíveis e movimentos mágicos.
Mova-se querido, mova-se.
Elimino a distância que há entre nós e sento-me novamente à sua
frente, devagar, colocando minha mão na sua bochecha e acariciando os
setes passos para o inferno, observando-os atentamente antes de beijá-los.
Beijo perto dos seus olhos, aproximo o joelho e, com ele, pressiono o que
há entre suas pernas, prensando-o e sentindo-o duro sobre a carne da minha
coxa. Archiviéste está excitado, está muito excitado, porra, e como ele está
bonito. Tão lindo e todo desorientado. Sua boca encontra-se entreaberta, sua
respiração descompassada, sua testa um pouco molhada e sua carne cortada.
Quero abaixar-me e acabar com isso, ou piorar a sua situação, o que para
mim, seria mais interessante. Encontro-me inconscientemente descendo os
meus beijos. Selo o seu pescoço, arranho os seus ombros, mordo uma parte
do seu peito, ele geme e minhas coxas se apertam, ansiosa para introduzi-lo
entre minhas pernas.
Pego-me passando a ponta da minha língua pelo seu peitoral magro,
perto da região onde se localiza o seu estômago. Ar joga a cabeça para trás,
respirando fundo e puxa as cordas, mas é como se não fosse nada. O
homem com certeza deve estar xingando-me mentalmente, mas ele está
certo, quem nesse contexto não xingaria? Seu peito sobe e desce, acelerado.
Escuto seu coração saltar pela carne e continuo descendo com os beijos,
mordo de leve uma parte que fica embaixo do seu umbigo, quase, quase
chegando na sua virilha. O cisne negro resmunga com uma certa
dificuldade, grave e áspero, mas harmônico para meus ouvidos.
Desabotoo os botões das suas calças, abaixo o tecido e encontro o
que tanto queria colocar na boca.
Arregalo os olhos, coloco a palma da minha mão sobre os meus
lábios e encaro-o, ainda abaixada e, agora, espantada. Se não fosse ele, e o
garoto não fosse tão cuidadoso, eu sairia daqui voando. Essa imagem vai
ficar na minha mente igual ao cheiro do gambá quando gruda nas roupas,
impossível de sair. Uma risada ecoa do peito do anjo, seu peito treme e as
minhas pernas também. Pergunto-me se o que ele tem entre as pernas é um
pau ou um tronco de uma árvore baobá, porque, perto do meu ex, isso daqui
parece um monstro. Respiro fundo e o pego com as mãos, tento fechá-lo
com os dedos, mas ainda sobra um pouco — talvez muito — de espaço.
Abaixo-me levemente, com a boca salivando e passo a língua pela glande
peniana. O homem de pele castanha que está sob os meus toques estremece
quando sente a textura do meu órgão quente e molhado lamber o que quer
que seja essa criatura entre suas pernas.
Pelos céus, como é bom sugá-lo.
Acreditei que, pelo tamanho, seria difícil, mas acho que a minha
vontade e o seu gosto dobraram a extensão da minha garganta, porque o
coloco ainda mais na minha boca, engolindo-o, no entanto não chego nem
perto da metade. Meus olhos lacrimejam, minha língua passa pela sua pele,
o homem suspira e mesmo amarrado, inclina a sua nuca para trás. Minha
pele treme, meus dedos começam a alisar o pequeno — enorme —
monstrinho que têm seus corpos cavernosos sendo bombardeados de
sangue, mantendo-o ereto e duro dentro da minha boca. Passo a ponta da
língua novamente pela mesma glande e volto a chupá-lo, ouvindo os
murmúrios e gemidos de Archiviéste. E isso me deixa excitada, muito,
muito excitada. Minha mente viaja pelo seu corpo, lembrando-me dos seus
beijos, lembrando-me dos seus toques e isso intensifica a minha vontade de
sugá-lo.
— Morgana. — Ouço. Não ouço. Eu não consigo parar.
Passo a língua mais uma vez e, com um gemido rouco, ele se desfaz
dentro da minha boca com um líquido esbranquiçado, do modo erótico e
sujo que eu desejo. Tiro-o da minha da minha garganta e vejo Archiviéste
com a respiração apressada, sorrio satisfeita com a cena e passo a minha
mão pelo seu rosto, especificamente pela sua bochecha. Aproximo-me dele
ainda de joelhos e mordo de leve a hélice da sua orelha, provocando-o e
dizendo:
— Você que parar por aqui, meu garoto? — brinco, colocando a
mecha do seu cabelo atrás da orelha. Noeeh levanta os olhos, analisando-me
naturalmente, mas de uma forma mais sexy e mais assustadora. Ele não
sorri, ele não pisca, apenas ouço um grande estalo na madeira e quando
tento olhar para trás, com intuito de identificar o que aconteceu, vejo que o
homem arrebentou as cordas que o amarravam ao canhão.
Arregalo os olhos, um pouco assustada. Esqueço que o cisne passou
muita coisa para estar vivo, então com certeza isso não o seguraria por
muito tempo. Agora sim, Ar está sorrindo como se fosse o meu diabo
pessoal. Vejo vultos passando pelos meus olhos e, em um piscar, em um
encontro de pálpebras, tudo borra, minha visão se eleva e eu estou
novamente presa em seus braços. Archiviéste está de pé, a cor da sua fronte
volta, ele abotoa o fecho da calça enquanto segura a minha cintura com um
braço, minhas pernas envolvendo o seu quadril, e sou carregada pelos seus
pés. Agarro-me nos seus ombros e coloco a minha cabeça no seu pescoço,
não querendo sair dali nunca mais. Quero ficar presa nessa gaiola grande e
confortável pelo resto da minha vida.
Meus olhos brilham quando o anjo desce as escadas com minha
estrutura nos seus braços. Segundos se passam e o garoto abre a porta da
cabine, movimenta-se por cima da madeira e entra no seu quarto. As
cortinas vermelhas, as velas apagadas, a luz do luar, as coisas extremamente
arrumadas e em ordem é o que me faz amar esse ambiente, junto ao fato de
que tudo isso pertence a quem eu amo. Engraçado falar isso, a quem eu
amo. Amar é uma palavra muito forte, mas eu acho que o amo. O meu
Kraken amaldiçoado entra no cômodo e fecha a porta com o braço, ele não
está mais tremendo, não está mais desorientado, neste momento o platinado
está no controle e eu gosto muito disso. Porque esse vai ser o único segundo
em que vai ser eu a pessoa quem vai dar a patinha.
Deito, rolo e fico extremamente obediente.
O portador dos olhos violetas solta-me e coloca-me no chão, ainda
calado como um anjo caído, banido do paraíso, exilado por quem ama.
Esses traumas só o deixaram mais gostoso, certificaram-se de que ele
aprenderia a ser sexy e calado quando deve ser, mas não implicante, nem
agitado, e, sim, quieto e prepotente. E como estou ansiosa para vê-lo assim.
Quero compreender como ele vai fazer para tocar-me com essas luvas. Fico
observando-o por um tempo enquanto ele retira algumas das coisas da
mesa, deixando-a limpa, seja lá para o que ele pretende fazer. Meus
pulmões perdem a capacidade de respirar, mas meu corpo nu gosta, posso
dizer até que ama essa atmosfera ambiental, menos fria, mais aconchegante,
mais propícia para o que ele quer fazer. Estalo os meus dedos, nervosa. O
homem termina de tirar as coisas do objeto de madeira e volta-se para mim,
ainda calado.
Meus peitos estão eretos e Noeeh percebe isso, mas não diz nada
sobre, apenas olha-os maliciosamente, como se quisesse colocá-los na boca
e sugá-los. Archiviéste pousa na minha frente, perto o suficiente para bater-
me. Ergo o olhar, encarando-o ardilosamente. Já o garoto analisa-me com
autoridade, como se mandasse em mim. Pelos céus, neste momento ele
manda, ele manda muito. Ar passa a mão pelo rosto, abaixando um pouco
cabeça, e encosta o seu peitoral no meu, produzindo um curto suspiro da
minha estatura. A besta umedece os lábios, aproxima-se do meu ouvido e
diz:
— Quando eu estiver pronto, vou contar tudo que aconteceu naquele
dia — expressa, levantando o seu antebraço. — Mas, no momento, eu não
quero concentrar-me em outra coisa a não ser tê-la na minha boca. — Outro
suspiro. — Estamos entendidos?
Assinto com a cabeça, obediente, e o homem de fios brancos deixa-
me tocar as suas luvas. Respiro fundo, sentindo que posso perder a minha
vitalidade fazendo isso. Há meses que eu tenho curiosidade sobre suas
garras humanas, sobre o quanto elas foram feridas por mim, o quanto que
ele foi machucado por me amar. Lembrar disso me deixa excitada, me sinto
um pequeno demônio por não sentir apenas tristeza, mas é a verdade, o
maior motivo de eu estar com ele, além da sua personalidade elegante, é
saber até onde o rapaz já foi por mim. A sua lealdade é perdidamente
valiosa. Até onde foi, até onde irá com o seu amor. Passo meus dedos pelo
tecido branco e o arranco da sua palma, encantada por suas cicatrizes. São
os cortes mais bonitos que eu já vislumbrei em toda a minha vida e olha que
já causei muitos. Suas marcas são profundas, carregadas de sentimento
relacionados a devassidão, ao respeito e a fidelidade e elas estão por toda
sua pele, presentes nas juntas, nas pontas dos dedos, no centro. Possuem
variados tamanhos e incontáveis níveis de beleza.
Ele é a porra de um deus com cortes humanos.
Quero beijá-los para sempre.
Ergo o olhar, fixando-o em seu belo rosto. O diabo suspira e me
agarra pelo pescoço com a palma que acabou de se soltar do tecido, todavia,
mesmo me apertando, ele não me sufoca, apenas coloca pressão. Olha,
talvez alguém aqui não seja totalmente inexperiente. Sorrio ao sentir sua
textura na minha garganta, como eu adoro esse contexto, adoro esse lado
dele, adoro sentir suas cicatrizes me apertando, me naufragando como o
mar afunda nós humanos, eu amo tudo isso que acontece. Mesmo sendo
enforcada, consigo esticar meus braços e, com as pontas dos dedos, tirar sua
outra luva. Ambas as partes do corpo são deslumbrantes. O portador da
inteligência divina fricciona a minha garganta, provavelmente deixando
marcas na minha pele branca, e com isso, ele resmunga:
— Era isso o que você queria, Morgana? — O capitão solta o dedo
indicador, deixando-me mais confortável e ainda acaricia a minha
mandíbula com o dedão. Assinto com a cabeça, então o homem continua:
— Fico feliz em ter te dado o que queria, minha raposinha. — Seu rosto se
ilumina, mas, desta vez, não é pelo luar. — Agora vamos fazer o que eu
quero. — Suas mãos soltam minha garganta, o pirata coloca um pé para
trás, aponta para o objeto de madeira e ordena: — Aproxime-se da mesa,
minha raposinha.
Mudo o peso do meu corpo de um pé para outro enquanto começo a
deslocar-me até mesa. Arrasto a minha estrutura até ao móvel que ele usa
para estudar e trabalhar e estaciono à sua frente. O anjo caído caminha atrás
de mim e quando percebe que meu corpo está parado, ele pega-me pela
parte de trás do pescoço e estica o braço, obrigando o meu tronco curvar-se
e minha bunda despida inclina-se contra o seu órgão sexual rígido sob a
calça. Seus dedos descem lentamente até minha coluna e, com isso, ele
obriga os meus peitos duros a se abaixarem e tocarem a madeira fria da
mesa. Minhas garras humanas ficam ao lado do meu tronco, uma na direita,
outra na esquerda. Meus fios negros de cabelo caiem sobre o meu rosto,
escondendo o tom de vermelho acerola que pinta as minhas bochechas.
Minha visão está quase fechada, mas isso não me deixa menos
nervosa, menos ansiosa. Um músculo da minha mandíbula se contrai,
afrouxando-se logo depois e, como consequência, minha boca se abre.
Movimento-me contra madeira, inquieta, arquejo um pouco apreensiva e
sinto a ardência da minha carne na região da coxa, acompanhada por um
estalo alto do meu corpo. Minha nuca é agarrada e minha cabeça é
levantada. Os fios do meu cabelo oscilam com o movimento repentino e eu
ouço sua melodia charmosa avisando-me:
— Fique quieta, Morgana. — A cor foge do meu rosto, mas eu solto
um gemido sincero, muito sincero quando Noeeh ditou essa ordem de
forma autoritária. Seu rosto se contorce de euforia, eu o senti entre minhas
pernas e o homem coloca meu rosto de volta na mesa. — Eu espero não ter
que repetir isso de novo.
O espanto transforma-se na minha máscara facial, mas eu concordo
com o queixo, dócil e submissa. Coisa que eu não sou, coisa que eu nunca
vou ser, mas estamos entre quatro paredes e isso muda a perspectiva de
qualquer mulher. Minha expressão verdadeira endurece quando o ruído dele
ajoelhando-se sobre o piso ecoa pelos meus ouvidos, minha respiração fica
fraca e eu fico mais excitada, imaginando a cena perfeitamente. Meu clitóris
pulsa quando ouço o som de Archiviéste se movimentando sobre os joelhos,
Noeeh passa entre as minhas pernas esticadas, vira-se e fica de frente para o
pequeno o órgão que chama a sua concentração, exige os seus beijos. E
então, o cisne negro começa tocando o interior das minhas coxas, passando
o seu polegar para cima e para baixo.
Solto um suspiro frustrado, inclinando o quadril para trás, carente de
contato, o que piora o meu descontentamento e a decepção, porque não há
algo em que eu possa me esfregar. Escuto uma risada ecoando do seu
peitoral e o xingo mentalmente, desgovernada. Ele sobe os seus dedos,
quase chegando perto da entrada do canal vaginal e quando sua pele encosta
nos lábios da minha vulva, eu percebo que seus toques são únicos. O tecido
da sua mão com o relevo dos cortes tornam suas carícias especiais, as
primeiras e últimas a alcançar tanta perfeição e precisão, é como ser tocada
pelas águas salgadas dos sete mares e ser beijada pela areia da praia.
Archiviéste não precisa estimular diretamente meu ponto de prazer para eu
chegar a um orgasmo, só a sensação de ser acariciada por suas marcas já
mostra que posso chegar ao clímax, tanto de alma, quanto de corpo.
Seus atritos afloram, fazendo-me gemer quando as pontas dos seus
dedos introduzem-se na minha boceta e, ao mesmo tempo, sua língua
alcança o meu feixe de nervos. Sinto-me afundando intensamente em uma
enorme fossa oceânica, a maior presente em todos os planetas e sendo
carregada pelas correntezas do Atlântico. Meu peito desce, meus pulmões
se enchem de ar e eu solto vários suspiros, gemendo sobre a mesa enquanto
sinto sua boca sugando o meu clitóris e seus dedos estimulando-me
internamente. Archiviéste não estoca com as garras, como já vi muitos
livros descrevendo, ele introduz uma vez e inclina as pontas dos seus dedos
na parte interna do meu clitóris, massageando o local. Meus lábios se
separam, minha carne queima e com essa ardência incontrolável dentro da
minha boceta, sinto que posso tocar as estrelas.
Sei que não vou aguentar por muito tempo.
— Você gosta de sentir isso daqui. — Refere-se a sensação da sua
língua em volta do órgão pulsante. Noeeh separa-se de mim. Ele volta,
raspa seus dentes levemente no feixe e coloca sua língua mais uma vez. O
homem aperta as minhas coxas com a mão livre. — E eu gosto de fazer
com que você sinta.
Minhas pernas tremem assim que ouço suas palavras. Arranho a
madeira com as unhas e quando menos percebo, há um líquido branco e
quente escorregando pela minha pele, entre as minhas coxas. Mas o prazer
de ser estimulada não para. A diabo retira os dedos da minha entrada, mas
não afasta sua língua do meu clitóris, poderia dizer que agora eu consigo
respirar, mas não posso, não com uma emulação pós-orgasmo. Meus olhos
vibram como se estivessem em uma batida de dança. Mordo o lábio inferior
e aperto a minha mão com as unhas, suspirando com o excitamento. Esse
garoto é realmente um monstro que quer me tragar como uma planta
encolhida em um papel. Quero que o homem continue mostrando-me como
gosta de fazer isso. Archiviéste aperta as minhas coxas e, desta vez, pela
forma precária e saborosa em que me encontro, desfaço-me com mais
facilidade. Estou tão sensível que posso ter múltiplos orgasmos em curtos
segundos. E pouco tempo depois, enquanto me segura pelas coxas e passa
os dentes em movimentos repetitivos, arranhando-me na região, eu tenho o
meu segundo orgasmo.
Sei disso porque sinto choques nos meus braços e na minha barriga,
sinto ondas de calor dos pés à cabeça e quero fechar as minhas coxas. Esse
consegue ser mais devastador que o primeiro.
As partículas de água passeiam pelo meu corpo, encontro-me até um
pouco abatida, a descarga de tensão sobre os meus músculos deixaram-me
nas nuvens noturnas, como se estivessem explodindo dentro do meu sangue
e estalando os meus ossos. Estou um pouco cansada, mas sou erguida de
cima da mesa logo após sentir os braços do garoto de olhos violetas
abraçarem-me. O anjo deposita força nos antebraços e me desencosta da
mesa, deixando-me de pé com a ajuda da sua estatura extremamente alta.
Jogo a minha cabeça no seu peitoral e apoio a minha coluna na sua barriga.
Ainda com meu líquido nos lábios, ele deposita um beijo molhado na minha
bochecha, anda um pouco com a minha estrutura grudada na sua e empurra-
me na cama. Não raciocino muito bem porque ainda me sinto em uma
espécie de transe, ou em estado vegetativo. Só sei que um gemido pula da
minha boca quando meu corpo encosta no lençol limpo e macio.
Jogo a minha cabeça para trás e abro os olhos, observando-o
atentamente subir em cima de mim. O peso dos seus ossos afunda a cama e
suas mãos pousam ao lado da minha cabeça, uma na direita, outra na
esquerda. Ele sorri e logo beija a região que fica entre o queixo e a
garganta, causando arrepios desumanos pela minha estrutura, fazendo-me
revirar a carne profundamente e deixando-me mole. Essa parte da pele é
vagarosamente sensível e quando o demônio dos sete mares percebe minha
fraqueza, beija novamente. Agarro-me ao seu pescoço com uma mão e
desço a outra para sua barriga, com a descarada intenção de tirar sua calça.
Um pequeno choro que, com certeza, não é triste quer escapar dos meus
olhos, porque Archiviéste não para de me incitar. Arranho seu abdômen, o
homem geme, mas ainda não para de me beliscar com a boca. Até que
consigo descer uma parte da sua calça, mas o peito do capitão treme,
negando com a cabeça.
Meus olhos estão nos seus e eu recuso-me a fechá-los.
— Tem certeza que quer fazer isso, Morgana? — questiona,
encorajado a ir até o fim.
— Eu que deveria perguntar isso a você. — Seus ombros oscilam
com a risada, seus olhos disparam e eu estou novamente perdida naquele
mar violeta. — Não sou eu a virgem aqui.
Mordo a bochecha e o platinado responde:
— Eu sempre quis, Villain — confessa, beijando novamente aquela
maldita região. Noeeh coloca suas coxas um pouco mais próximas das
minhas pernas e levanta uma delas pela região de trás do meu joelho. — Eu
sempre desejei que isso acontecesse. Desde o primeiro dia em que voltei.
Apenas uma besta controlada.
Apenas um humano querendo ser amado.
Esse é o meu garoto que, hoje, não me parece estar tão triste.
— Então não hesite, Archiviéste. — Passo a minha mão pelo seu
rosto, acariciando sua bochecha direita. Levanto um pouco a minha nuca e
beijo os seus lábios. Volto a ficar deitada, observando-o diretamente seus
olhos.
Percebo-o se posicionar corretamente sem precisar abaixar o rosto.
Pergunto-me mentalmente se esse garoto é realmente virgem, porque sua
habilidade de fazer as coisas é impressionante. O cisne negro aproxima a
glande peniana do órgão masculino na entrada do meu canal vaginal e a
insere devagar e com muito cuidado. Minhas unhas cortam a pele que
envolve seu ombro e o Kraken volta a beijar o local que fica entre o meu
queixo e minha garganta, meus ossos se estalam, de novo, de novo, de
novo. Se antes eu estava em um transe, isso daqui é uma espécie de violenta
hipnose sexual. As paredes da minha boceta devem estar apaixonadas pela
textura do seu pau, porque ela não para de querê-lo para dentro, mais fundo.
Um som nítido de prazer brinca nos meus lábios e eu suspiro na sua orelha.
O diabo vermelho arrasta suas mãos para a minha bunda e a levanta,
introduzindo mais uma parte do órgão, cautelosamente.
Eu o beijo nos lábios, olhando-o nos olhos, sentindo-me
completamente preenchida com a sua luz, com os seus devaneios. Estou
ciente de que ele é o único que sabe tirar o melhor de mim. Estamos suando
em movimentos simultâneos e o garoto continua me tocando, me
consumindo. Respiro devagar, percebendo que estou no topo do mundo e
ainda completamente livre. Separo o meu rosto, ainda sendo destruída,
ainda agarrando o lençol da cama. Quero que ele me sufoque, quero me
sentir à beira da morte, quero que Archiviéste coloque as mãos no meu
pescoço enquanto me empurra. É por isso que, mesmo sentindo uma intensa
vibração pelo corpo, jogando a cabeça para trás, respirando com muita
dificuldade e sentindo aquele fenômeno doente outra vez, aquele mesmo
impacto corporal e sexual que é acompanhado de um líquido pegajoso e
esbranquiçado, eu fecho olhos, deixando tudo escuro, tudo calmo.
Logo sinto esse mesmo líquido — só que desta vez, vindo do corpo
do garoto — ser injetado no meu canal vaginal, ele o extrai do seu órgão
sexual e capto que o monstrinho deita ao meu lado na cama. Um suspiro e
então, venenosa como uma víbora, eu digo:
— Eu quero mais. — Abro os olhos naturalmente, rindo com a sua
reação. O homem está com a sobrancelha arqueada e os lábios entreabertos.
— Você quer o quê? — Archiviéste, Archiviéste... Sorrio, passo as
mão pela sua nuca, ainda cansada do que acabamos de fazer.
— Mais. — E então, eu o beijo, mesmo quase desmaiando.
Separo os meus cílios uns dos outros, vejo os lençóis limpos e sinto
o cheiro de coisa nova, absorvo os raios solares presentes na atmosfera
assim como algumas marcas que estão espalhadas pelo meu corpo.
Vasculho o local e percebo que o dono desse barco não está presente no
cômodo. Estou nua, as memórias vagam pela minha mente, ainda vivas com
cada acontecimento, sendo ele sexual, ou não. Lembro-me de tudo tão
perfeitamente que até fico surpresa comigo mesma, já que não tenho fama
de ter uma mente boa para recordações, muito pelo contrário, meus pais
diziam que eu tinha uma mente de peixe pequeno e alaranjado quando se
trata de lembranças. Paguei muito por isso conforme os anos se passaram,
mas hoje eu não me importo, esse homem é complexo que tenho certeza de
que sua memória também é encantadora. Deposito força nas minhas mãos e
ergo o meu tronco, percebendo que tudo está em seu devido lugar. Sorrio ao
sentir aqueles toques novamente.
Aquele homem é um monstro e ele devorou o meu coração. Eu
gosto disso. Gosto de ser devorada.
Escuto passos leves serem ecoados juntamente às ondas luminosas
que dão vida às cores de diversas tonalidades. Mordo a bochecha, deito a
minha cabeça, escondendo a verdade, vou fingir que estou dormindo para
ver a sua reação. Meu coração acelera quando consigo compreender que o
meu príncipe está no quarto e a melodia dos seus passos fica cada vez mais
forte e mais alta, mas de um jeito que ainda não incomoda o sono de uma
pessoa. Tenho que morder as bochechas para não sorrir, porque agora, o
meu garoto está muito perto e pode perceber qualquer sorrisinho nos meus
lábios.
— Morgana, Morgana... — Noeeh passa a sua mão enluvada pelos
cabelos, devagar. Novamente enluvada por aquele maldito tecido branco,
quero rasgá-lo por me impedir de sentir a pele do meu homem. — Você
sabe que eu sei, não sabe?
— Você vai fingir que não sabe — ordeno, voltando a ser a
mandante da relação. — Esse vai ser o seu castigo por acordar e não vê-lo
aqui.
Seu peito treme com a risada, mas ele obedece como um bom
marido.
— Villain. — Sinto um beijo ser depositado na minha testa. —
Acorda, minha raposinha. — O diabo coloca uma mecha do meu cabelo
atrás da minha orelha. Resmungo algo baixo, revirando-me na cama. Um
gemido matinal ecoa dos meus lábios. — O café está pronto lá em cima —
diz, frugal. — Deve estar com fome, então acorde para comer. Preparei-o
com as suas frutas favoritas e ainda coloquei sobre a mesa algumas
gardênias que encontrei nessa ilha.
Abro um dos meus olhos, mantendo o outro fechado e, de forma
manhosa, pergunto:
— Saiu para fazer o café. — O cisne negro concorda com o queixo.
— Então está perdoado.
Ele sorri, lindo como o vento da manhã, perfeito como o amanhecer.
— Quando foi que trocamos o lençol? — questiono, confusa. — Eu
não me lembro disso.
— Você dormiu depois do décimo orgasmo. — Noto que todas as
suas roupas são pretas, como no dia da praia. Poderia até ficar com
vergonha pelo que o garoto acaba de falar, mas Archiviéste está tão
deslumbrante que não sou capaz de focar em outra coisa. — Então eu a tirei
da cama, troquei a roupa de cama e a coloquei de volta.
— Me colocou no chão? — questiono, mas não me sinto ofendida,
apenas quero implicar com o homem de mente perturbada.
— Não preciso colocá-la no chão para fazer algo — responde,
beijando a minha testa. — A madame ficou nos meus braços. Satisfeita?
Minhas bochechas ganham um leve tom de vermelho-acerola e eu
estou sorrindo como uma boba. Concordo com a cabeça, contente por ter
ficado em seus braços e um pouco frustrada por não me lembrar. Esse
homem é um monstro que devorou meu coração, que colocou fogo na
minha casa, que me perseguiu durante anos, que roubou a minha empresa e
fez diversas coisas, mas eu estou feliz por tê-lo como parceiro e, quem sabe,
talvez um futuro marido e possível pai das minhas crianças. Das nossas
crianças.
CAPÍTULO XXIII
Eu nunca estive tão feliz em toda a minha vida como estou agora,
nesse segundo leve e marcante que compõe a minha existência catastrófica.
A perfeita e encantadora gravura emocional que possuo da minha mulher
nunca foi tão sorridente e sutil, em nenhum momento ela esteve tão ardente,
como águas fervidas no banho de sol ou como o mar no começo da
escuridão noturna. Em tempo algum eu a vislumbrei tão perdida no
contentamento ou fortemente apaixonada pela alegria de estar comigo. Sim,
de estar comigo. Morgana Villain tem sorrido abertamente, ganhando uma
cor vermelha na região alta das bochechas. Às vezes passa a língua pelos
lábios, em outras situações eles brilham e ela fala, pronuncia palavras
longas tão amavelmente que a população britânica inteira gritaria em seu
ouvido, alertando-a de que está se perdendo na poção rosa da paixão
desorientada.
Vê-la assim já me traz de volta à vida, mas compreender que ela
está assim por minha causa, aquece a frieza que está no meu coração e,
principalmente, espanta a tristeza que congela os meus olhos violetas. É
como se eu, finalmente, estivesse estilhaçando o vidro que havia entre mim
e o mundo, que havia entre mim e minha vontade de existir, dizendo-me
que, finalmente, depois de muitos anos tentando, eu me sinto uma pessoa
completa.
Sempre entendi por que as pessoas têm receio do perdão, têm medo
e até pavor de voltarem a confiar em alguém depois de se sentirem traídos,
mas entre sentir apreensão ou amá-la, eu prefiro mil vezes me apaixonar por
ela, mesmo que, de alguma forma ou por algum motivo futuro, ela me traia
novamente. E pela primeira vez eu sei que isso não vai acontecer. Pela
primeira vez, estou entregando-me completamente.
E eu estou muito saltitante, porque finalmente deitei-me com
alguém que amava, e ela me amava de volta. Minha raposinha pode ser
louca, mas é completamente minha.
Morgana sempre exalou um cheiro gostoso, mas agora, além de ser
gostoso, é estranhamente amoroso, como se as algas marinhas que a
banham estivessem se preparando eternamente para um casamento de
sereias, com direito a tiaras de flores, banquetes em mesas com gardênias,
festas por toda a extensão do oceano marinho, como seria o nosso
casamento caso fôssemos metade peixe e metade humanos. Ela seria a
rainha e eu, um mero servo. Isso porque não estamos juntos há muito
tempo, mas essa mulher já está mandando em mim como se fôssemos
casados há anos.
Volto a ressaltar: eu estou gostando disso.
Pelo mar, eu estou amando muito isso.
Adoro dar a patinha para a mulher linda que manda em mim.
Então não reclamo, fico caladinho, como um cachorro obediente de
estimação.
O barulho do ambiente está alto, cansativo e com certeza não se
encaixa no meu gosto. Gosto de lugares silenciosos, profundos e acima de
tudo, perigosos. São os territórios que mais me chamam atenção, talvez seja
por isso que ainda estou atrás desse maldito ouro, porque, além de querer
conquistar sua dona, do fundo da minha mente perturbada, eu não ligo para
riqueza, mesmo eu sendo um homem com muita concentração de renda.
Posso afirmar com muito orgulho que boa parte — posso até dizer que
oitenta por cento do lucro que iria para mim — eu não vejo, não passo nem
perto, porque eles são diretamente enviado para abrigos que recebem
crianças abandonadas ou desabrigadas cujos pais morreram, mas não só
crianças, também cachorros, gatos e outros animais de estimação.
Uma pequena parte também é destinada para famílias carentes,
principalmente aquelas formadas por crianças e viúvas.
Sustento esses grandes lares adotivos e solidários porque não quero
que outro ser humano se sinta como eu me senti: perdido, destruído e
exilado. Excluído por todos e rejeitado pelo seu grande amor. Um peso nas
costas e um ar massivo na atmosfera que ninguém merece suportar.
Hoje eu estou feliz, porque não sinto mais esse peso.
Minha esposa é tão maravilhosa que ainda me deu um tempo para
poder sentar e desabafar com ela sobre o que aconteceu com as minhas
mãos. E eu pretendo contar assim que chegarmos em Penzance, quando ela
estiver deitada no meu peitoral, chorando de tanta satisfação e sorrindo com
gosto por estar nos braços de alguém que é capaz de protegê-la para todo o
sempre.
Na vida e na morte.
Na saúde e na doença.
Aproximo o rosto, perto o suficiente para encostar os meus lábios,
eliminando a distância e beijando a mulher que, se o universo permitir, será
minha noiva. Morgana sorri, dando um pequeno tapa no meu braço, ela
resmunga um murmúrio, algo como “bobo” ou “tolo”, mas eu não dou
importância, pois o interessante para mim é fazer minha mulher se sentir
amada.
— Por que não trouxe o mapa? — a minha paixão questiona, um
pouco alto. O barulho da música das Índias ecoa pelos nossos ouvidos,
irritando-me levemente. Eu não gosto de melodia alta, a não ser que sejam
os gemidos deliciosos da minha esposa. Estamos em um beco estreito, as
pessoas estão animadas, há barracas de comida por todos os lados, crianças
brincando, cachorros correndo, coisas jogadas e gritos sendo ecoados.
Também existem tecidos coloridos, vermelhos, verdes, azuis, cheiro forte
de especiarias e peixe, tudo isso com algumas madeiras quebradas.
— Eu conheço aquele mapa como a palma da minha mão — digo,
pegando em sua cintura e levando-a para o lado, retirando-a de perto do
pedaço de madeira afiado que estava perto das suas pernas. — Assim como
conheço o corpo da minha esposa.
Faz exatamente uma semana que perdi a minha virgindade e, dentro
desse tempo extenso, eu e a minha mulher já transamos mais quinze vezes.
Essa garota, por mais que já tenha quase trinta anos, é incansável, e se a
morena dos olhos escuros não fosse tão gostosa, eu já teria corrido para
longe dela. Ela é louca, mentirosa, trapaceira, filha da puta, mas é minha.
Não à toa que sua desculpa é a tentativa de fazer uma criança. Pergunto-me
se essa ninfomaníaca quer povoar um planeta, porque não é possível com
tanto apetite sexual.
— Não sou sua esposa — ela diz de uma forma passiva e virtuosa.
— Vai ter que lutar um pouco mais para me ter.
— Então já posso chamá-la assim. — Pego sua mão, ainda com as
luvas. Meus homens estão logo à frente, eu os acompanho mais atrás. Nós
os acompanhamos. Por incrível que pareça, eles aceitaram bem a relação,
mas tenho um receio, talvez ainda haja uma possível guerra por causa disso,
uma grande discussão que acabaria com meus dias de paz. — Já considere
essa luta ganha, senhorita.
Seus lábios curvam-se vagarosamente e, logo depois, formam a
coisa mais linda que já vi. Puta merda, essa mulher ainda vai foder com o
resto do meu psicológico.
— Prefiro madame, me sinto mais jovem. — Agora é a minha vez
de sorrir.
— Como quiser, minha raposinha. — Levanto o seu braço com a
mão que estou segurando e deixo-a passar na frente no pequeno espaço que
termina o beco. — Como você desejar e preferir.
— Quando achar o ouro, o que vai fazer? — questiona, ficando ao
meu lado.
— O ouro é meu? — rebato com outra pergunta. A lindeza nega
com a cabeça. — Então eu não vou fazer absolutamente nada, a dona dele
que resolva o seu destino, apenas vou apoiá-la.
— Então por que está fazendo isso? — interroga, confusa. — E
como seus homens vão reagir?
— Quero saber o que a minha mãe aprontou aqui. Visitar o que ela
construiu me deixa mais perto de saber quem ela foi um dia — respondo,
frugal. Passo a língua sobre os lábios e ela observa atentamente. — E sobre
o destino, vão aceitar bem, desde que eu os recompense quando chegarmos
na cidade. É só pagá-los que está tudo certo.
Villain solta um suspiro e apoia sua cabeça no meu braço, ainda
andando.
— Ela foi uma mulher maravilhosa. Perfeita em diversos níveis. —
Eu sei, o que me conforta é que eu sei disso. Morreu na minha frente
quando eu tinha cinco anos por ordens do meu pai, isso depois de ser
violentada. E eu não fui capaz de protegê-la, não fui forte o suficiente para
defendê-la.
Um dos motivos que me fez perseguir Morgana no primeiro dia em
que nos vimos, quando eu tinha nove anos, foi esse: queria resguardá-la,
salvá-la, nem que, para isso, tivesse que dar a minha vida. Eu tinha que
defendê-la, porque não sabia o que meu primo faria com ela. Se ele a
machucasse na minha frente e, mais uma vez, eu não fizesse nada, nunca
me perdoaria. Então ajudei todas as mulheres que estiveram ao meu
alcance, ensinei e obriguei meus homens a serem respeitosos e matei todos
aqueles que violaram verbalmente ou fisicamente uma mulher. Isso foi o
que eu fiz, em parte por culpa, em parte porque vê-las felizes, sabendo que
foram salvas, não tem preço. Não há palavras nem dinheiro que pague vê-
las agradecidas por se verem livres de algo que as assombraria pelo resto de
suas vidas. Eu as olhava e via felicidade.
Eu as olhava e via minha mãe orgulhosa, sabendo que muitas
mulheres estavam sendo salvas de passarem pela dor que ela fortemente
suportou segundos antes da sua morte.
E é o seu filho que está fazendo isso. Calia estaria muito contente de
me ter como seu filhote.
— Ela era, ela realmente era — digo, mais para mim mesmo do que
para a garota que está ao meu lado.
E quando levanto os meus olhos violetas, percebo que chegamos.
Sorrio de lado após encarar o rosto da futura mãe dos meus filhos. O
ar, em movimentos dolorosos, está murmurando juras de amor falsas sobre
nossas estruturas, sentenciando para todas as divindades naturais que
nascemos para ficarmos juntos. Unidos pelas cicatrizes arcanas e enlaçados
pelas mentiras recém-nascidas. Não há casal mais desorientado, impossível
e perfeito que Noeeh Archiviéste e Morgana Villain. Podemos não estar
juntos no papel ou na lábia, mas estamos ligados há tantos anos que já nos
vejo envelhecidos, com cabelos grisalhos, netos correndo pela casa, vários
filhos e uma família enorme. O futuro que vejo é pacífico. Muitos pedem
coisas às estrelas, mas uma criatura tão linda e tão traiçoeira quanto minha
raposinha de cor marsala, só o mar é capaz de conceder.
Solto um sorriso abafado, a vista é linda, mas o rosto desse
monstrinho levemente apavorado é mais lindo ainda.
— Do que está rindo? — pergunta, de forma direta. Desvio o olhar,
ainda com os dedos entrelaçados nos seus, pressionados, conectados.
— Eu te pedi ao mar, Villain, e ele me entregou-a com gosto —
digo, observando o cemitério abandonado, que é o lugar onde o mapa
trouxe-nos. De começo, acho que é uma pequena chantagem ou brincadeira
dos nossos pais, acredito nisso até perceber que há algo estranho e
interessante. Isso me cheira a coisa de raposas. — Jogou-te nos meus braços
desde o dia em que você resolveu naufragar e se entregar para ele. Minha
raposinha foi expulsa do fundo do oceano e foi trazida diretamente para
mim.
Literalmente, isso aconteceu literalmente.
Olho-a diretamente nos olhos, percebendo o brilho na sua imensidão
misteriosa.
— Eu a observei naquele dia, quando estava bêbada, prestes a se
matar. — Ergo o queixo e reparo na igreja gótica abandonada ao lado do
cemitério, sorrindo abertamente. As paredes são finas e as lápides são reais,
não estão quebradas. E os meus homens, como tolos, estão começando a
cavar. Eles nunca vão encontrar nada lá. — Fiquei de longe, reparando
enquanto você caminhava para a morte, observando-a enquanto chorava,
enquanto se declarava, enquanto jogava aquele maldito anel fora. Naquele
segundo… Eu sei que deveria amar cada momento daquele segundo, até
porque eu estava presenciando a derrota da minha inimiga, no entanto eu
não fui capaz.
Nunca consegui odiá-la, nunca consegui fazer mais nada além de
amá-la.
Começo a andar com a garota ao meu lado, puxando-a de leve,
caminhando em direção ao santuário católico.
— E eu sei disso porque foi naquele dia em que te pedi abertamente
para o mar. — Eu implorei, basicamente. — E quando você estava quase se
afogando, eu corri para o fundo daquela praia e, por alguns segundos, não te
achei. — Entrei em desespero, entrei muito em desespero. Meu coração não
conseguia desempenhar sua função vital. Quase morro junto da minha
raposinha. — Até que você foi jogada para a superfície da água, foi trazida
de volta para mim e quando eu a capturei, toda a bomba de sentimentos
guardada durante esses dez anos foi despejada com um só toque, com um
contato.
Eu senti tantos ciúmes dela com Edward. Nunca fui capaz de
esquecê-la, como eu deveria.
— Tanto amor e tanto carinho. — ela diz. Observo a faca que está
pendurada na minha coxa direita, mas não me chama tanta atenção quando
passamos pela igreja extremamente similar a que habita em Penzance. É
como se fosse o mesmo lugar. O local tinha a arquitetura de uma igreja
gótica, só que com paredes finas e leves. Era tingida de branco cinzento,
com várias janelas e portas espelhadas por sua estrutura. Tinha vários vitrais
transparentes, com variação de formas e tamanhos, sem nenhum sinal de
cor. De perto, suas torres pontiagudas, seu formato de cruz, sua grande
rosácea no centro e estátuas de gárgulas em alguns pontos altos davam-lhe
mais atenção. Outro ambiente que não seguia os estereótipos de um local
abandonado. Muito pelo contrário, parecia até ser tratado com cuidado. —
Olhando assim, nem parece que a primeira coisa que falou foi que eu estava
cobiçando-o nu na minha cama.
Uma risada ecoa do meu peito enquanto entramos no salão onde se
localiza o altar. Da última vez que estivemos em um ambiente bonito como
esse eu estava sufocando-a e perseguindo-a, e mesmo que eu continue
sufocando-a e fazendo-a desmaiar, naquela época não era de um jeito muito
prazeroso, literalmente. Mas isso é passado, vou deixá-lo bem enterrado
para não sentir vergonha.
— Mas você estava. — Já recebi vários olhares lascivos de
mulheres, todavia sempre os ignorei, porque nenhuma delas era a minha
inimiga, só que naquele momento eu nunca me senti tão devorado, parecia
que minha esposa queria me engolir por inteiro, ela olhava-me como se eu
pudesse fazê-la alucinar de tanta satisfação. E quando a mulher de cabelos
negros fechou as pernas e esfregou as coxas inconscientemente, acabou
comigo. Se ela não queria transar, eu que estava querendo. — Naquele dia
você me desejou tanto, Morgana, que eu achei que sairia daquela praia sem
as minhas pernas.
O território de reunião dos cristãos foi deixado de lado, alguns
lustres estão quebrados, alguns quadros foram roubados, outros estão
manchados de vinho, há espelhos nas paredes e no teto, mas os bancos estão
intactos e as mesas perto do altar também. As imagens estão conservadas e
o local que parece uma piscina de batismo está seco. Continuamos
caminhando, devagar, ainda com as mãos entrelaçadas uma na outra. A
respiração dela está normalizada, sua sobrancelha está levemente arqueada,
como se quisesse absorver cada detalhe deste lugar. Então, umedecendo os
lábios, a dama defende-se da minha acusação, rebatendo:
— Você é ridículo — provoca, ainda com os olhos fixos nos
detalhes da igreja, lugar que deveria pegar fogo com a nossa entrada. — Eu
não estava fazendo isso.
— Você me acha ridículo? — questiono, devolvendo a brincadeira.
— Estranho, seus peitos discordaram plenamente de você na primeira vez
em que nos vimos.
Ódio era o sentimento que mais a definia e medo era o que mais a
afetava, eu não gosto das lembranças daquele dia e tenho medo de que elas
voltem. Eu sei o porquê, mas ainda me entristeço com seus olhos naquela
noite. Eles estavam tão escuros quanto a matéria profunda que compõem o
infinito, mas sem as estrelas, não tinha nada brilhante naquela região sem
ser a vermelhidão sanguínea de certas áreas e o redemoinho branco de
frustração estampado no meio.
— Estavam duros por causa do frio, não se exiba por algo que não
merece os créditos — retruca, instalando um sorriso na minha boca. Viro-
me de frente para ela, ciente de que o reflexo da minha coluna está visível
para o seu campo de visão. Coloco uma mecha do lindo cabelo atrás da sua
orelha e ponho minha mão nas suas bochechas.
— Acredita mesmo nisso, Villain? — Aproximo-me da sua
estrutura, encostando o meu peitoral no seu, e quase, quase eliminando a
distância entre nossas bocas, mas quando eu chego perto, mudo levemente a
direção, inclinando e quase beijando o seu ouvido. Aproveito sua
sensibilidade para sussurrar: — Então posso saber por que eles estão assim
agora? — Seguro sua cintura, levantando os olhos e deixando-a
desorientada. Gosto de ter esse controle. Bom, agora acho que amo ter esse
domínio. — Está com frio, Morgana? — pergunto, observando-a engolir em
seco. — Você quer que eu esquente seu corpo?
Talvez não seja só ela que seja ninfomaníaca.
Distancio-me da sua estatura e caminho lentamente, passando pelo
seu corpo ereto e aproximando-me novamente, só que desta vez por trás.
Villain é uma mulher que adora ser pega por trás. Encosto novamente meu
peito, só que na sua coluna, pego uma parte dos seus fios de cabelos e jogo-
os de lado, deixando seu ombro branco completamente despido. Seus
músculos estão tensos, sua respiração se encontra no mesmo estado e seus
olhos não são capazes de me encarar. Vejo-a pelo reflexo do espelho a nossa
frente e coloco minhas mãos nos seus braços, uma em cada osso que forma
sua estrutura. Mudo o peso do meu corpo de um pé para outro, apoiando-me
perfeitamente atrás da garota que ainda está com a cabeça abaixada.
Umedeço os lábios quando percebo que suas bochechas estão vermelhas.
Um perfeito tom fraco de marsala.
Minha cor violeta pega fogo.
Adoro vê-la submissa a mim, o mesmo tanto que amo estar
submisso a ela.
— O ouro está aqui, não está? — questiono, frugal. A garota ergue o
olhar, naturalmente. — Quer dizer, não aqui, está na igreja em Penzance.
A mesma igreja onde eu a persegui, onde brincamos de continuar
vivos.
— Pode estar no cemitério — propõe, passando a língua pela boca.
— Pode estar em vários lugares daquela cidade.
— Não, não está. — Toco os seus ombros e ela estremece,
respirando fundo. Pressiono os dedos, massageando a sua pele.
— Como sabe? — questiona, ainda focada. Concentrada em não
perder o controle, afinal estamos em uma igreja. Desço uma das palmas,
passo-a pelos seus peitos e Morgana suspira, passo-a pela sua barriga e a
mulher deposita um passo para trás, morde as bochechas, pisca lentamente e
eu finalmente chego no interior das suas coxas.
Sorrio ao encontrar o que quero.
— Eu enterrei vários corpos naquele local e nunca encontrei nada —
respondo, passando os dedos da minha outra mão pelo seu pescoço. Villain
empurra seu quadril e a cabeça para trás. Tiro minhas garras da sua garganta
e agarro sua nuca, obrigando-a encarar-me no rosto enquanto ouve-me
murmurar. — As paredes daquela igreja são grossas e pesadas, chegam a
quase três metros de largura, mas todas as igrejas góticas tem as paredes
finas e leves, é um padrão de estética. No começo, eu achei que fosse
apenas um erro de arquitetura. — Há ouro dentro daquelas muralhas.
Aperto suas coxas. — Mas o tesouro está entre as pedras que formam as
paredes, não está?
Ela sorri tão lindamente que é impossível captar outra resposta sem
ser sim.
“Sim, meu garoto, ele está”. É isso o que seus dentes à mostra me
dizem.
Cutuco a bochecha com a língua e seu peito ecoa uma risada
gostosa, agarro seus fios escuros de cabelo com mais força e puxo seus
lábios para os meus, formando um choque entre nossas línguas, e beijo-a
com vontade, incansavelmente. Ela coloca uma de suas mãos no meu
peitoral e os meus dedos brincam com os lábios da sua vulva, a mulher
geme na minha boca, sinto ondas de calor lamberem meus pés, meus pelos
se arrepiarem com as suas tentativas de toques, mas eu paro e me afasto.
Dou três passos para trás com os dedos molhados, sorrio e com a maior cara
de pau, coloco os dedos na boca, chupo, solto e digo:
— Estamos em uma igreja, meu amor. — Analiso-a revirando os
olhos. — Temos que mostrar mais respeito.
— Filho da…
CAPÍTULO XXIV
Eu nunca salvei ninguém na minha vida.
O misterioso e imersivo sentimento de ser a defensora de alguém
nunca passou pela minha pele antes, é a primeira vez que eu sinto o que é
gostar de um indivíduo a ponto de querer salvar a sua vida, nem que para
isso, sacrificasse a minha. Estou disposta a abrir um enorme buraco na
madeira do meu barco só para levar junto o meu inimigo, tudo isso para que
ele não toque no meu grande amor, nem que o lesione de alguma forma.
Isso é novo para mim, mas estou disposta a ir até o fim, literalmente o fim.
Tudo por paixão e gratidão. Eu estava morta, ele me trouxe de volta à vida,
é mais do que justo eu devolver esse favor e mantê-lo seguro. Nesse
pequeno tempo que passamos juntos, o homem me fez mais alegre do que
todos os meus minutos de existência, até mesmo quando eu estava no ápice
do poder.
Até mesmo quando tive o gosto de derrotar todos os meus inimigos
e fazê-los cair aos meus pés.
Desde a minha infância, fui criada para manipular, mentir, enganar,
trapacear e tudo o que envolve o gênero. Meus pais me criaram tão bem
que, inconscientemente, consegui dissimular por dez anos, fingindo ser uma
pessoa que eu não era. É isso o que eu sei fazer: burlar as regras e aplicá-las
aos meus rivais, obrigando-os a seguir algo que, no fundo, sou eu que
construo, sou eu que os desmorono.
E é o que eu estou fazendo, mas desta vez, não para benefício
próprio. Dessa única e última vez, é para o meu garoto.
Eu me tornei sua salvadora e estou orgulhosa disso.
Espero muito que ele seja feliz pelo resto da sua vida, mas sem mim,
e mesmo que não seja, isso não me fará desistir. Estou fazendo isso por ele
e vou até o fim. Penzance está sob minha proteção e Noeeh Archiviéste
também. Estou caminhando em direção à morte, mas essa é a consequência
do meu dever. Fui ensinada a mentir, mas também fui feita para ser
engenhosa, escandalosa e cruel, decidida, muito complexa para ser muito
devastadora.
Nascida para morrer.
E está tudo bem, porque eu já aceitei isso no segundo em que abri os
olhos.
Tudo pelo meu garoto.
Sinto o vento balançar os meus fios negros e brincar com as mechas
maiores. Respirando fundo e mantendo-me calma, começo a caminhar. Meu
vestido branco e fino que é mais longo atrás e um pouco mais curto na
frente movimenta-se conforme minhas coxas oscilam pela madeira do
barco. Inclino a cabeça para lateral, mordendo os lábios e observando as
ondas misteriosas chamarem-me para descansar eternamente. E como boas
aspirantes a sereia, elas sussurram nos meus ouvidos levemente:
— Volte, Villain. Volte porque é no fundo dos vales onde você deve
ficar.
Nascida para morrer. Criada para matar.
Piso calmamente quando avisto Penzance de longe, meus músculos
não ficam rígidos, porque, como já citei, eu aceitei o meu destino. Não sinto
mais nada, é como se eu houvesse desligado minha capacidade de ter
sentimentos, apagado a minha humanidade e todas as emoções.
A única coisa que está presente aqui é o meu amor por ele, porque é
inapagável.
— Quando vamos chegar? — questiona o loiro atrás de mim. Dou
um passo para frente, distanciando-me do seu corpo e viro-me para ele,
umedecendo os lábios pela falta de água.
— Já chegamos — digo, apontando para a costa da cidade. Vasculho
a praia e aponto para a pilha de pedras grandes que formam a fortaleza da
morte, respirando fundo. — Aquela pilha de rochas ali é a fortaleza da
morte. — O homem cruza os braços. — E a alavanca perto dela libera o
ouro. A riqueza sairá do fundo do mar assim que eu virá-la.
— Acha que eu sou algum idiota? — questiona o loiro, olhando-me
de cima a baixo.
— Sim, eu acho, mas isso não vem ao caso agora — respondo e ele
resmunga rapidamente, se aproximando e apontando uma faca para a minha
garganta. Pisco, ainda calma, ele precisa de mim, então não vai me matar
agora. Na verdade, Lancaster não vai ter a oportunidade de me matar.
— Estou com quatorze barcos cheios de marujos — diz, ríspido.
Leonard cutuca a bochecha com a língua. — Melhor você pensar bem antes
de dizer ou agir de forma agressiva, Villain.
— Exatamente, você está com quatorze navios na costa. — Garoto
atrevido do cacete, eu lhe daria um soco se isso não fosse colocar o meu
homem em perigo. — Não posso fazer nada nessa situação. Se nada vir para
superfície das águas, você vai me matar. E esse será o meu fim. Tenha
paciência, garoto.
— Se nada acontecer, eu vou te matar e vou atrás do seu amante. —
Fecho os punhos, mas mantenho a calma e o tom de voz baixo.
— Como achar melhor — digo, finalizando esse assunto e sabendo
que ele nunca sairá daqui vivo. — Agora me dê um arco e uma flecha.
Tenho que acabar logo com isso.
— Consegue atirar daqui? — questiona, abaixando a mão e
afastando-se de mim.
— Consigo atirar de qualquer lugar — respondo, gostando dessa
distância entre nossas estruturas. Vejo um dos seus homens entregar os
objetos que eu pedi na sua mão. O loiro encara-me, ainda desconfiado,
alguns segundos se passam e ele entrega-me o arco. Pego-o com a mão
esquerda, deixando os meus braços ao lado do corpo.
Leonard ajusta a coluna, levantando a cabeça e piscando diversas
vezes. Ele levanta o antebraço e entrega-me apenas uma flecha, ainda
inseguro com a decisão. E deveria estar mesmo, o homem compreende que
está lidando com algo mais mortal que uma víbora. Pego a flecha e começo
a caminhar pelo meio de transporte, oscilo em direção às escadas de
madeira, estreitando os olhos e mordendo as bochechas. Aperto o material
do arco e ergo o queixo, mantendo-me ereta e confiante perante a situação
drástica. Eu não posso errar, mas isso não é um problema, já que eu não sou
de errar.
O vento dança com os meus fios negros e balança o meu vestido
branco, mostrando-me o caminho para o céu, levando-me para o caminho
para morte.
Nascida para morrer.
Meus olhos se iluminam quando chego na área mais alta do barco.
Os homens se dispersam, uns cruzam os braços e soltam sorrisos
debochados, outros balançam a cabeça negativamente, mas todos os seres
vivos desse e dos outros barcos estão olhando para mim, todos duvidando
da minha capacidade de acertar. Mal sabem eles que eu já venci. Umedeço
os lábios e, com a mão direita, coloco uma mecha de cabelo atrás da minha
orelha, confiante. Marcho em direção à borda do barco, estalando os ossos e
vibrando a pele. O caminho é curto e eu tenho que continuar. Lembro-me
das memórias de Archiviéste já que, nesse estado, é a única coisa que a
minha humanidade permite recordar e sentir. Não os meus pais, não
Penzance, não o meu poder, não eu, mas ele. Nesse segundo gracioso, eu
penso apenas nele.
A ironia desse contexto é que agora sou eu que estou sofrendo por
não tê-lo.
A dor no peito de ser impossível ficar com meu amor agora pertence
a mim. Lesionaram-me como ácido em feridas abertas, quebrantaram-me
como se tivessem colocado a lua prateada dentro de uma catedral, suas
paredes desmoronam e a poeira subiu, tudo embaçou e as cicatrizes se
espalham pela minha vitalidade, deixando-me imersa na ilusão do que
poderia ser a nossa paixão.
Minhas pernas querem falhar, mas eu as impeço de cometer esse
erro. Posiciono o arco na altura do alvo, coloco a flecha na corda flexível e
levanto os cotovelos de uma maneira perfeitamente correta. Eu não devo e
não vou errar, não tenho essa opção. Estava perdida, mas agora me
encontrei. Posso perceber que já fui cega, porque só uma mulher em tal
condição desperdiçaria seu precioso tempo recusando aquele homem, mas
foi o que eu decidi, foi o que eu cobicei. E agora vou pagar por isso e
pagarei com prazer.
Meus fios dançam novamente com o vento, as ondas sussurram,
mandando-me voltar para casa, meu coração salta e eu aprecio os meus
últimos minutos. Mantenho a calma quando as lembranças me atingem,
quando seus toques invisíveis acariciam o meu rosto, seus beijos
pressionam minha pele, meus ossos estalam com a respiração profunda,
minha visão fixa-se na alavanca distante, seu cheiro de maçã com canela
exala pelas minhas narinas e minha boca resseca pela falta dos seus selares.
Mordo as bochechas, meus olhos ardem, foco com mais concentração no
meu alvo e solto os dedos, atirando a flecha na madeira que estava mirando.
Respiro fundo, ciente do que está por vir. A flecha acerta, a alavanca desce
o suficiente para ativar o pélago de fogo feito por materiais bizantinos. A
fórmula secreta do povo desconhecido.
Viro-me para o lado enquanto o ruivo me encara, dou passos para
frente, o mar estremece e a areia que cobre a região onde se localiza o navio
também. A tremedeira atinge o convés do barco e todos caem, se
desequilibrando e apoiando diversas partes do corpo no chão. As chamas
atingem as águas e cobrem a superfície marinha com o cheiro forte de
fumaça. O calor deixado pela ardência atinge o material que compõe o
barco, fazendo-nos lidar de frente com a morte. Os gritos dos homens
ecoam pelo ambiente caótico, nenhum deles está entendendo por que
existem chamas nas ondas do mar. Alguns marujos tentam retirar seus
navios da área incendiada, mas não conseguem, pois a extensão do pélago é
imensa, demoraria minutos para chegar nas bordas e, até lá, o barco já teria
naufragado. Sorrio contente com o desespero que causei em Leonard. Ele
encara-me como se quisesse me esfaquear, mas vai falecer antes de tentar, o
capitão da Marinha sabe disso. O mar de fogo finalmente está aqui.
E fui eu que o trouxe de volta.
Solto o arco, jogo a flecha no piso e caminho em direção à borda do
veículo marinho, subindo em cima da madeira devagar. Deixo os meus
braços ao lado do meu corpo, o vento beija-me pela última vez, no meu
último dia. Pressiono o meu corpo para baixo e dou um pequeno salto para
fora do barco. Desta vez, ele não irá me tirar daqui, pois agora as águas
estão querendo que eu volte para casa, estão desejando que eu encontre
meus pais. Fechos meus olhos, fecho a minha alma e aproveito meus
últimos segundos, ciente de que acabei com todos os perigos que
ameaçavam a pessoa que eu amo, como eu fui ensinada a fazer desde
pequena.
Projetada para mentir. Nascida para morrer.
E morrerei nos braços do meu segundo grande amor, porque o meu
cisne negro sempre será o que eu mais me apaguei e me encantei em toda a
minha vida.
Estou drasticamente perdido sem Morgana ao meu lado.
Minha mente não raciocina direito, meus pés falham, não consigo
falar, minha pele está sem cor, meus músculos tremem e dos meus olhos
saem água salgada em quantidades que desidratam o meu corpo. Meu peito
se aperta a cada minuto corrido, principalmente porque a minha visão está
fixa nas chamas que destruíram todos os barcos que estavam no pélago de
fogo. Os corpos dos homens ensanguentados estão boiando sobre as águas,
tudo está vermelho e um dos líquidos que dá um tom carmim para o oceano
pode ser o sangue da minha esposa. Só de pensar nisso meu coração quer
parar de bater e minha alma, de viver. Eu não suportava mais essa falta de
paz que havia na minha vida, mas antes a dor me afetando do que afetando
alguém que eu amo mais do que eu mesmo. Ela se sacrificou por mim, mas
isso não pode acontecer, não, isso não poderia ocorrer.
Era meu sangue que deveria estar flutuando naquelas águas fervidas.
Eu que deveria ser um daqueles corpos, não ela.
Villain não merecia isso, fui eu que nasci para morrer, não ela.
Nunca ela. Fecho os meus punhos e sinto o tecido das minhas luvas. Eu
nem pude explicar o que aconteceu comigo naquele dia, nem pude beijá-la
na chuva, não pude deitá-la sobre a areia, não vou mais ter os meus filhos e
o pior, eu não vou mais tê-la para mim. Perdi a minha felicidade. Acredito
que tenha perdido a minha vontade de viver, já que um dos meus objetivos
era defendê-la, mas nem isso eu fui capaz de cumprir. Deixei que a minha
mãe morresse na minha frente e agora, deixei que a minha esposa escapasse
da minha proteção. Ambas se sacrificaram por mim.
Eu sou o culpado da morte das duas.
Sou inútil a ponto de não conseguir salvar nenhuma das duas
pessoas com quem mais me importei durante toda a minha existência.
Agora não é o sangue da minha mãe que está nas minhas mãos, o da minha
mulher também está, tudo isso porque sou fraco, tudo isso porque um mar
morto não é capaz de alimentar lindas sereias que vivem nas profundezas.
Por que eu não deixei ela em paz? Se eu a tivesse deixado, ela ainda
estaria viva. Ela ainda estaria bem, muito bem, talvez com filhos e até
animais.
Ela seria feliz sem mim.
Estou destruído.
O sangue das duas pessoas que eu mais amo está nas minhas mãos.
As lágrimas molham o tecido das minhas luvas, deixando-me
bombardeado de emoção sanguinária. Com os dedos trêmulos, retiro a luva
da garra direita, para depois, retirar a da garra esquerda. Vejo os cortes da
minha mão e as lembranças me atingem com clareza.
Meus olhos violetas estavam escuros como a noite nublada, sem
vida como os corpos que eu vi o meu pai matar, minha raiva e confiança
nunca estiveram em um nível tão alto quanto hoje. Faz quatro anos que
minha mãe morreu na minha frente por ordens do meu pai, tocaram-na sem
permissão enquanto eu gritava e pedia para eles pararem. Os gritos foram
abafados por mãos grandes e eu fui obrigado a ficar parado, pegaram o
meu rosto e me forçaram a ver tudo o que estava acontecendo. E em um
piscar rápido dos meus olhos, ela foi esfaqueada e jogada no beco, seu
corpo foi deixado para apodrecer como um saco de frutas estragadas. Meu
pai estava atrás de mim e, em um suspiro, disse:
— Isso foi necessário, Archiviéste. — Sua voz ecoou fria, sem
compaixão nenhuma pela com quem mulher que deitou na mesma cama,
com quem compartilhou o mesmo filho. Ele era um monstro, a pior das
criaturas que fazem o mal. — Calia passou para o lado errado quando
decidiu ajudar a família Villain a esconder o ouro.
Maldito seja aquele ouro.
Maldito seja esse monstro.
Eu quero matá-lo. Eu quero muito matá-lo pelo que fez com a minha
mãe.
Então esperei, esperei para tramar a sua morte, mas antes que eu
pudesse fazer qualquer coisa, encontrei uma garota que ganhou meu
coração, ela tinha a doçura da minha mãe e era esperta como ela. E era a
coisa mais linda que eu já tinha visto, como uma porção de terra sendo
molhada pelas águas do oceano azul-fraco como o céu. Quando eu percebi
que o meu primo estava perseguindo-a, as memórias vieram à tona, e um
instinto protetor se apossou do meu corpo no momento em que a
vislumbrei.
Eu eliminei a possível ameaça que a colocava em perigo, ou que
poderia machucá-la ou deixá-la assustada. Eu tinha que fazer isso, era a
minha obrigação salvá-la, principalmente porque não tive habilidade e
força para salvar minha mãe. Ela ficaria orgulhosa de mim. Ficaria
contente em saber que eu resgatei uma mulher.
Nem que, para isso, eu sofresse as consequências. Nem que, para
isso, eu fosse amarrado em uma cadeira de madeira velha, com os pulsos
atados por cordas que lesionam a minha pele, e sob uma iluminação
sombria que tirava-me do meu consciente normal. Subi os olhos e encarei o
meu pai furioso, o homem tinha pele e olhos castanhos e cabelos loiros. O
seu rosto era um pouco parecido comigo, mas a beleza eu, claramente,
havia puxado da parte materna. O homem inclinava a cabeça,
decepcionado pelo o que eu fiz.
Leander estava com um pote de sangue, um sangue que eu
acreditava ser da minha mãe, já que o lunático sempre gostou de guardar
sangue das pessoas que ele matava. Escutava seus passos, sons de alguém
que estava se aproximando, meu coração saltava, mas eu mantinha-me
calmo. Fui ensinado a ser assim, a sempre manter o controle e nunca
perder a chance de revidar.
Fui projetado para ser leal, mas não a uma pessoa como ele.
Minha mãe sempre me lembrava de não me tornar um monstro
como ele e, até hoje, eu me esforço muito para não me tornar assim, já que
temos tendências assassinas fortes no DNA da família. Eu nunca vou ser
como essa criatura selvagem sem autoridade e compaixão, me recuso a ser
nojento como ele. O homem abriu o recipiente e passou a ponta da sua faca
sobre o líquido vermelho do pote, devagar. A lâmina brincou com o sangue
da minha mãe e ele fez tudo isso com um sorriso grande no rosto. Seus
olhos ardiam e o homem, furioso, colocou o vidro no chão. Tentei manter a
calma, mas tudo isso mudou conforme ele se aproximava de mim com a
faca na mão, meu corpo já sabendo o que ele iria fazer.
— Eu tenho que te punir por isso — disse, calmo. Ele oscilava como
um deus, mas pecava como o diabo. — Você é o meu filho.
— Se fizer isso, me tornarei o seu assassino. — Um sorriso
diabólico se instalou nos lábios de Leander e, pausadamente, ele apontou a
lâmina do utensílio cortante para as minhas palmas paralisadas. Respirei
fundo e logo depois, senti a faca ensanguentada cortar a minha pele.
Meus olhos se encheram de lágrimas salgadas e eu mordi as
bochechas, mas não por causa da dor, não por causa da ardência, mas,
sim, porque o sangue da minha mãe estava, literalmente, nas minhas mãos
e ficaria para sempre gravado na carne que envolve a minha palma.
Fecho os olhos e nada some.
Jogo as luvas para o lado e bato os joelhos na madeira, impedindo-
me de olhar para os lados, agora só focado nas águas sujas de vermelho, nas
madeiras flutuando nas ondas e no caos perfumando a atmosfera pesada.
Tudo está acabado, tudo está destruído, tudo está igual a mim. Respiro
fundo, minhas últimas esperanças saindo pelas entradas, junto as palmas
das mãos e, com muito carinho, peço:
— Por favor — digo, deixando as lágrimas escorrerem pelos meus
olhos. — Por favor, deixem Villain voltar para mim. Eu juro que vou ficar
mais forte, juro que vou ficar mais inteligente, juro que, desta vez, vou fazer
de tudo para protegê-la. Vou fazer de tudo para amá-la com todas as minhas
forças, vou defendê-la com a minha vida. — Meu peito se aperta. — Por
favor, não tire-a de mim. Devolva-a para os meus braços.
E quando abro os meus olhos inchados, encontro-a jogada na praia.
Um salto de felicidade eclode dentro do meu coração, mas a
frequência diminui quando eu percebo que o seu corpo está muito
machucado e sua pele, ensanguentada. Coloco força nas pernas e subo o
meu corpo, corro pela madeira do barco e jogo-me na água suja e
contaminada do pélago de fogo, sem me importar se vou me lesionar, sem
me importar se vou me ferir, sem me importar se vou morrer. Se eu falecer
hoje, morrerei com a minha esposa. E isso, para mim, é um final digno da
minha paixão proibida. Eu ficarei com ela até o final, essa é única coisa que
me importa no momento, estar com a minha mulher, na vida ou na morte,
na saúde ou na doença.
Eu pedi ao mar por você, no entanto se ele se recusar a me dá-la,
nadarei para o fundo catastrófico do oceano e me sufocarei com as
consequências da minha paixão.
Me jogo nas águas e nado até o corpo dela.
O famoso e antigo cansaço não me atinge, mesmo que eu tenha
passado quase cinquenta minutos nadando no mar. Minha respiração está
estabilizada, minhas roupas estão molhadas e coladas ao corpo, assim como
meu cabelo, acredito que um pouco de água tenha entrado no meu ouvido,
mas nada que me impeça de correr até o seu corpo, o único jogado no praia
e sozinho pela areia. As gotículas de água escorrem pela minha pele
castanha e caem no corpo de Villain, meu peito se aperta e a tristeza nubla
minha fronte como nuvens quando encontro-a toda machucada e com uma
queimadura leve na região da barriga. Mordo as bochechas e inclino a
cabeça para a lateral esquerda, ajoelhando-me ao lado da sua estrutura.
Morgana ainda respira, mas com muita dificuldade.
As lágrimas enchem os meus olhos e eu digo a mim mesmo que ela
vai ficar bem. Ela tem que ficar bem. Pelos céus, eu não sei o que farei se a
minha esposa não se recuperar dessas malditas e irritantes lesões. Já mandei
os meus marujos chamarem um doutor e trazê-lo para praia nem que seja na
base do sequestro. Eu não tenho coragem de largá-la sozinha, não quando,
no fundo, eu sei que existe a possibilidade de que ela não saia daqui com
vida. Sento-me ao seu lado, colocando as minhas mãos limpas no seu
sangue e deixando a dor me esfaquear. Novamente o sangue de quem eu
amo está nos meus dedos, sujando-me e deixando-me com cicatrizes.
Vê-la inconsciente causa-me a angústia mais forte que senti em toda
a minha vida.
Coloco o seu lindo rosto no meu colo, mordendo os lábios. Um
resmungo ecoa do corpo cheio de areia, abaixo a coluna e deixo um beijo na
sua testa, minhas lágrimas caem nas suas bochechas e minhas mãos ajeitam
seu cabelo. Então, fraco como um dente de leite que já está amolecido, eu
choro, eu imploro, eu me declaro novamente:
— Eu pedi ao mar por você, Morgana. — Tiro mais um fio de
cabelo do seu rosto. Seus lábios estão cortados, mas ela ainda é a coisa mais
linda que já coloquei em meus braços. — Sempre pedi ao mar para que me
devolvesse você, mas ele nunca foi de realizar os meus desejos. — Um
suspiro ecoa do meu peito, sinto que estou sendo esmagado por blocos de
pedras grandes que formariam ondas enormes caso fossem jogados no
oceano. — Ele não pode tirar você de mim, não, por favor. — Minha pele
treme. — Você não.
Tudo, menos você.
Então, como se fossem os seus últimos segundos de vida, eu digo:
— Horas depois que eu matei meu primo, meu pai amarrou-me em
uma cadeira. — Torturo-me com as lembranças. — Ele fez questão de que
quando fosse cortar as minhas palmas, o trauma me atingisse por completo,
então esfaqueou-me com a faca suja do sangue da minha mãe, para me
lembrar do quão cruel ele poderia ser. Leander fez isso para que eu nunca
mais me esquecesse de que suprir a sua ganância era e sempre seria o seu
objetivo.
E conseguiu, porque eu nunca mais me esqueci, por isso que quando
descobri que Morgana estava usando-me para conseguir as riquezas da
minha família, deixei o seu plano prosseguir com excelência, e ainda a
ajudei internamente, sem que ela soubesse que, no fundo, eu estava no
controle. Da mesma forma que ela foi ensinada pelos seus pais, eu fui
ensinado por minha mãe, tenho certeza de que foi ela quem deu a ideia de
como esconder o ouro e ainda escondeu sua ajuda do meu pai por cinco
anos. Ela o manipulou e o controlou por vários anos, eu observava a forma
como minha mãe o levava na conversa e descobria as coisas que queria
saber, foi quando percebi que Villain estava fazendo o mesmo comigo.
Então deixei que ela me dominasse, pesquisei tudo que poderia atrapalhá-la
e deixei seu caminho livre para que nenhuma pedra a impedisse.
Eu participei da destruição da minha família.
Além do mais, fui eu quem afundou aquele navio. O transporte que
nos transportava no dia em que fomos exilados. Sabotei e imergi aquelas
madeira para o fundo do mar. Não foi um acidente, não foram os Villains,
fui eu. O meu eu que tinha apenas nove anos. E ainda fiz questão de que só
o meu corpo saísse vivo daquela explosão.
O que me deixou triste não foi o fato dela ter, basicamente, banido
meus parentes e, sim, o fato dela ter me exilado. Não esperava que fizesse
isso comigo, ainda mais por ser uma criança. Mas agora eu aceitaria ser
exilado novamente, passaria por tudo o que passei e mais um pouco só para
vê-la bem, presenciar sua saúde.
Aceitaria ser expulso da terra dos apaixonados. Trocaria a minha
felicidade pela sua. Passaria fome nas ruas, como já passei.
Observo as ondas marinhas, ainda chorando pela moça deitada no
meu braço. Fecho os olhos e abalado, peço:
— Deus, por favor, se você existir... — Coloco uma das minhas
mãos no rosto de Morgana. — traga minha esposa de volta para mim. Não a
leve para o paraíso neste momento, deixe-a viver comigo. Esse é o único
pedido que eu peço ao Senhor. Devolva-me Morgana Villain.
Abro os olhos lentamente, ainda abalado pelo sofrimento, olho para
baixo e a vejo sorrindo lindamente. Seus olhos estão entreabertos, seu rosto
está sujo de sangue, há brilho na sua íris e seu rosto ganhou uma pequena
cor. Respiro profundamente, sentindo as batidas do meu coração voltarem a
ficar frenéticas, um perfume de gratidão exala pelo ambiente, sentimentos
fortes tomam a minha cabeça e sinto as minhas veias saltarem com
satisfação. Obrigado. Pelos mares, muito obrigado. A euforia percorre meus
dedos, mas eu ainda tenho cuidado ao pegá-la. E com uma melodia
ambiciosa de sereia repleta de dor corporal, ela sussurra:
— Eu te amo, meu garoto. — Seus olhos fecham e ela apaga.
CAPÍTULO XXV
O triste e doloroso desprazer que a saudade causa no coração é pior
que olhar para um pequeno pedaço de papel branco e desejar que o mar azul
ilustrado na folha te toque e te molhe. Eu sei que é algo impossível de
acontecer, as crianças e os adultos também sabem, mas é difícil deixar de
acreditar em algo que se deseja só porque é teoricamente impossível, uma
possibilidade que, no fundo, é criada por sua mente, como uma leve e
atrevida esperança que conduz seu corpo à maré errada, uma onda que te
puxará para o fundo de uma fossa oceânica, que levará a sua estrutura a
cometer coisas erradas ou a estilhaçar promessas que não deveriam ser
quebradas. No entanto, eu nunca fui de cumprir o que sentenciei para mim
mesma, muito menos o que prometi para os outros.
Quebro um juramento quantas vezes eu achar necessário.
E eu estou estraçalhando mais um, até porque eu não deveria estar
pisando nessas terras sem a proteção de alguém, todavia eu o avisei com
todas as letras, o alertei severamente de que, caso sentisse muita saudade,
eu o sequestraria e o prenderia na minha casa. O que é meu, é meu. Ele é
meu e hoje estou voltando para pegá-lo da monarquia. Está na sua hora de
devolvê-lo para mim. Por isso que ateei fogo no barco principal do castelo e
escrevi nossas datas de nascimento na madeira antes de incendiá-la.
Oito de junho de 1813.
Dia dos oceanos.
O dia em que nasceu uma rainha.
Vinte e oito de novembro de 1821.
O dia em que nasceu um soldado desconhecido.
Não me importo se nossos anos batem, se nossos meses combinam,
se somos inimigos, se a Inglaterra vai bombardear o Submundo, ou
qualquer outra situação que impeça-nos de ficarmos juntos. Noeeh
Archiviéste pertence a mim. Vou trazê-lo de volta para Penzance, o lugar de
onde nunca deveria ter saído, nem que para isso eu tenha que amarrá-lo e
trazê-lo vendado. Já tenho trinta e dois anos, não aguento esperar mais que
isso. E ainda quero ter os meus filhos com ele, ainda quero um bebê com os
olhos dele. Minha pele treme de mágoa e melancolia quando recordo-me
que faz quase cinco anos que eu não vejo meu garoto, faz quase cinco anos
que não o beijo, que não o toco, que não ouço a sua voz. Fui paciente e lhe
dei muito tempo para causar uma boa desordem na Inglaterra de modo que
ela nunca mais pudesse nos perturbar, entretanto eu não consigo mais
esperar, não aguento mais conviver com a ansiedade diária de vislumbrar os
seus olhos violetas.
Estou com tanta infelicidade e desânimo no olhar que sinto-me uma
viúva, por isso coloquei fogo no barco e não o procurei. Estou tão sem
paciência com essa distância que quero que ele venha agora,
imediatamente, não aguento mais ficar longe do meu garoto.
Depois que incendeio e causo um alvoroço na cidade, atraindo boa
parte da Marinha para o litoral, começo a caminhar pela praia, mas ainda
não o vislumbro correndo atrás de mim. Não acho o capitão e, por um
momento, passa pela minha cabeça que talvez ele tenha encontrado outra,
mas logo rio de mim mesma pela tolice, transportando essa ideia absurda
para outro planeta. Esse homem me ama demais para me trocar por outra e,
além do mais, quem é que trocaria? Eu sou mais gostosa que o fogo.
Desvio-me de alguns homens quando passo pelas árvores, agora vejo alguns
deles correndo para o outro lado do litoral e tentando me achar.
Eles nunca vão conseguir, só sou pega quando quero ser.
Levanto os olhos negros quando minha carne alerta-me que estou
sendo vigiada por olhos intensos e conhecidos, e eles encaram-me como se
quisessem me pegar. Ajeito a coluna, sem fazer barulho, e começo a
caminhar mais rápido, estimulando-o a vir correndo atrás de mim. Meus pés
se conectam com a areia e logo se soltam com os passos ligeiros que minha
estatura deposita conforme eu corro. O ar entra pelos meus pulmões com
mais rapidez, não caminho tão apressadamente por causa da falta de
exercícios nos últimos anos, até porque não é mais necessário, depois da
ameaça do garoto, todos aceitaram a minha liderança e, com o tempo,
começaram a gostar de mim. Minha sorte é que ele também não está usando
o máximo da sua velocidade e — isso é óbvio — sua respiração está
controlada, seu corpo não faz tanto barulho e ele dá piques durante a
corrida.
Avisto uma casa que parece estar abandonada, viro os meus
calcanhares e direciono-me à pequena residência de madeira velha. Desvio
de algumas pedras na areia e aproveito a brisa que bate no meu rosto alegre
com a alma divertida, a tristeza evapora como água no deserto quente, é só
sentir a presença do cisne negro que minha felicidade me atinge. Eu sinto
tanta saudade dele. Levanto uma parte do meu vestido e chego perto da
casa. Abro a porta apressadamente e vasculho o ambiente, procurando um
armário castanho para poder me esconder, mas o móvel do casebre jogado é
pequeno demais e a única coisa que cabe dentro daquelas prateleiras são as
cordas localizadas na superfície da tábua. Ia virar-me para poder correr, mas
o homem de fios brancos e olhos violetas já está agarrando-me pela parte de
trás do pescoço e virando meus peitos para se encontrarem com seu
peitoral.
Ergo o queixo, levanto o meu campo de visão e encontro-o sorrindo
para mim. Ele ainda é a coisa mais linda que existe. Perco o fôlego quando
o avisto, sua beleza ainda é angelical, mesmo quase cinco anos mais velho.
Seus traços são os mesmos, o homem não mudou nada, só alguns detalhes
do seu rosto que ficaram mais maduros e sua estrutura um pouco mais forte.
Mas sua alma ainda é a mesma, seus olhos estão mais brilhantes e seu
semblante mais sério. Ele está muito mais maduro que o seu eu de dezenove
anos, mas ainda é impecável, acredito que mais uma vez paguei com a
língua por duvidar que esse homem conseguiria ser mais perfeito do que já
é.
Ele sempre me prova que consegue melhorar. E, pelos céus, como
melhorou.
— O que eu disse na última conversa que nós tivemos, Morgana? —
pergunta, ainda com a mão na parte de trás da minha garganta. Sinto
saudade da sua melodia. Bom, achei que sentia até perceber o quanto ela
mudou. Agora está mais fria e muito mais sensual, acho que meu garoto não
é mais tão garoto assim.
— Que você iria me prender se eu estivesse na capital — respondo,
frugal. Um sorriso erótico instala-se nos meus lábios. Talvez, talvez nós
tivéssemos nos encontrado nas longas noites da madrugada, mas era muito
raro de acontecer, não era a mesma coisa que tê-lo somente para mim.
Olhávamos um para o outro de longe. Apenas uma vez que tive a
oportunidade de beijá-lo, mas logo fui interrompida. Nunca seria a mesma
coisa que tocá-lo com tempo.
— E o que você está fazendo aqui? — questiona, colocando a sua
outra mão no meu queixo.
— Eu senti saudades de você e disse que se eu sentisse saudades,
viria te buscar — digo com um pouco de dificuldade, aproximando-me do
seu corpo.
— Morgana, Morgana... — Isso causa um estrago em mim,
principalmente se estivéssemos em uma cama, mas aqui só há uma cadeira
e várias cordas. — Ainda me quer?
— Nunca parei de te querer — expresso, levantando o antebraço.
Passo a língua pelos lábios e elimino a distância que há entre seu lindo rosto
e minha delicada mão. Os adjetivos podem ser recíprocos também. —
Nunca deixei de te esperar.
— Você demorou muito para vir me buscar. — Uma risada gostosa
treme no meu peito, quase deitando a minha cabeça no seu corpo. — Achei
que tinha desistido de mim.
Não, Noeeh não achou, ele sabe que eu nunca desistiria dele.
— Fiel a mim, meu esposo? — brinco, imitando uma certa mulher.
— Para todo o sempre, minha esposa. — Leal companheira.
Comunica-se e logo depois o cisne negro me beija profundamente.
Archiviéste solta suas garras do meu pescoço, da minha bochecha e desce o
seu braço, enquanto minhas pernas reúnem força e preparam-se para agarrar
o seu quadril. Respiro, agarro sua nuca e levanto as minhas pernas. E,
ligeira como um estalar de dedos, estou agarrada ao seu corpo, sentindo o
encorpamento do que há na sua virilha. Suas mãos sem luvas estão na
minha bunda por baixo do vestido, suas palmas tocam a minha pele e eu
sinto suas cicatrizes.
Ele evoluiu tanto que agora não sente vergonha de mostrar suas
marcas para o mundo, como tinha aos dezenove anos. Não há culpa em seu
olhar, não há responsabilidade em seus ombros, isso significa que o meu
homem conseguiu o que queria e o melhor, conseguiu ajudar muita gente
estando ao lado da rainha e manipulando o Parlamento. Acho que o
platinado finalmente sente orgulho de si mesmo e isso o torna tão mais
excitante. Uma pena eu não ter presenciado cada etapa dessa evolução, cada
passo em direção ao céu que o anjo caído dava, entretanto eu o destruiria e
isso o impediria de voltar para o paraíso, isso o impediria de voltar para
mim.
Noeeh Archiviéste nunca foi o meu demônio, o garoto era apenas
um anjo exilado buscando redenção.
E finalmente conseguiu, porque, hoje, o cisne negro expande o seu
território e toma o lago para si. Hoje, Archiviéste é um homem completo.
Foi o portador dos olhos violetas que pediu ao mar por mim, mas sou eu
que o recebo de presente. Acho que fui uma boa garota durante esses cinco
anos, porque que presente maravilhoso ganhei, que homem gostoso.
Eu estou apaixonada e ainda estou feliz, porque, desta vez, vou ficar
com ele para sempre.
Para todo o sempre, até que a morte venha nos buscar.
Quando pisco, estou sentada na cadeira, ele me colocou aqui e
soltou-se do meu corpo. O homem anda sobre a madeira e lentamente,
estica o braço e pega uma das cordas no armário. Um sorriso brota no seu
rosto e ele encara-me descaradamente, inclinando a cabeça para a lateral
esquerda mostrando-me os seus caninos. Suas bochechas ganham um tom
vermelho. Meu rosto perde a cor, mordo minhas bochechas e coloco uma
mecha de cabelo para trás. Acho que agora está na vez dele de me amarrar e
eu de ficar amarrada. O pequeno — que é muito maior que eu — deve ter
aprendido bem, já que passou os últimos quase cinco anos prendendo
forasteiros e contrabandistas. Pisco algumas vezes e, como um felino,
Noeeh se aproxima de mim, passo ante passo, graciosamente. Chamando
atenção até do oceano que não pode vislumbrar isso. Uma pena para ele,
muita sorte para mim.
Só eu, somente eu.
— Eu disse que iria te amarrar, Villain — diz, caminhando para trás
da cadeira. Um arrepio passa pela minha nuca, mostrando-me que a vida
não se encontra só em Penzance. Está muito, muito longe dela. Passo os
meus braços para trás da madeira, facilitando o seu trabalho. Ansiosa, estou
muito ansiosa. — E mesmo assim você veio até mim.
Sinto as cordas serem passadas pelos meus pulsos e sorrio
alegremente.
— Acho que gosto da ideia, Archiviéste — minto, eu não acho, eu
tenho certeza. Sinto a pressão na minha pele, meus braços se juntando e
sinto-me presa à sensação. Estou acorrentada com essas amarras, estou
aprisionada no fundo desses mares violetas.
Acho que, no final, fui eu quem naufraguei.
— Quero que abra as pernas para mim, Morgana — pede, passando
ao meu lado. Seu corpo se estaciona à minha frente e, logo depois, seus
joelhos estão no chão. — Pode fazer isso, minha raposinha, por gentileza?
Seu rosto está quase na altura da minha barriga, mas a sua boca está
muito perto do que ele quer no momento. Faço o que o anjo reivindicado —
salvo pelos céus e feito pelo mar — manda e separo as minhas coxas uma
da outra, abrindo caminho até minha boceta. Suas mãos sobem a barra do
meu vestido branco e eu tento ajeitar minha coluna na cadeira, mas ele
agarra a carne que envolve meus ossos e puxa o meu quadril para mais
perto, impedindo-me de fazer qualquer movimento. Seus olhos fitam-me
com um certo erotismo e paciência e, com isso, meu clitóris incha no
mesmo segundo, sendo bombardeado com o sangue da minha carne. Mordo
os lábios, respiro fundo. Noeeh aperta a parte interior da minha coxa, espera
eu assentir com a cabeça e então aproxima o seu rosto da minha vulva,
passando sua língua pelos meus lábios.
Sons profundos ecoam do meu peitoral.
Um gemido escapa da minha boca e eu jogo a cabeça para trás. Meu
corpo evapora com a sensação de estar sendo abocanhada. Os sentimentos
afloram, meus olhos piscam, ondas ardentes pulam na minha pele e eu sinto
que vamos reproduzir tudo o que fizemos na nossa primeira vez. Com isso,
quase explodo de tanta euforia correndo pelas minha veias. Aperto as coxas,
meus dedos tremem, ele afunda a sua boca e espera eu ajeitar o quadril para
ir mais fundo com a língua. Mordo as bochechas, respiro e o capitão aperta
a minha bunda, cravando sua unha no maior órgão do meu corpo.
Pelos céus.
Pelo mar.
Por Noeeh Archiviéste.
Pela sede que o garoto aparenta, acho que finalmente vamos fazer a
primeira criança. E seus olhos violetas me encaram, como se quisesse
confirmar a minha afirmação. Sorrio, completamente apaixonada, feliz pela
evolução dele, feliz pelo meu renascimento, feliz por nós termos a
capacidade de amar um ao outro. E novamente eu repito: somos inimigos,
somos casados, somos Noeeh Archiviéste e Morgana Villain.
CAPÍTULO XXVI
Nunca me senti tão pobre.
Os bancos espalhados pelo ambiente são brancos, todos brancos e
em perfeito ou melhor estado para a madeira. Existem tecidos claros em
tons de bege e champanhe enfeitando a pequena plataforma em que estou
localizado. Há vasos cheios de gardênias espalhados pelo chão, perto dos
convidados, que, aliás, é toda a Penzance. Villain fez questão de chamar até
os animais que circulam as fronteiras do Submundo, até os peixinhos estão
presos em aquários perto da mesa de comida — e como toda a população
está aqui, tem muita comida. Tem fartura para as formigas viverem pelo
resto da eternidade até o fim da nossa existência. Poderia dizer até o fim da
nossa paixão, mas eu duvido que um sentimento forte como o que eu sinto
por ela um dia acabe. É mais fácil achar uma ostra que produz pérolas sem
ser estimulada do que o meu amor se encerrar finalizando a sua história.
Esse pode ser o fim de uma narrativa para alguns, mas não será para mim e
para minha noiva.
Mas repito: eu nunca me senti tão pobre.
Jogos de amor são colocados sobre o meu coração em uma
velocidade lenta, mas o dinheiro está escapando do meu bolso tão rápido
que ultrapassa os veados indefesos que correm dos leões predadores. A
selva está uma bagunça, está barulhenta, há gente se perdendo em todos os
cantos e as presas se escondem nas árvores altas e grossas, igual minha
riqueza se escondeu de mim, mas o que eu não faço para fazer minha
esposa sorrir e saltitar como um cabrito que recebe leite todas as manhãs? O
que eu não mudo ou altero a força para não proteger Morgana Villain de
todo o mal? Não há nada que eu não faça por ela. Tudo eu faria. Todos eu
mataria. Todos eu caçaria. Minha raposinha mentirosa e traiçoeira pisa em
cascas de ovos tão frágeis quanto as asas de uma borboleta transparente, sou
eu que impeço-as de quebrarem com ela em cima. Deixo-a matar todos que
a atacam pela frente, enquanto eu cuido de quem vem por trás. Aniquilo
quem tenta derrubá-la do comando de Penzance.
Ela subiu as escadas por conta própria, estou apenas estou
garantindo que continue sentada no trono, onde é o seu lugar. Minha
felicidade está entrelaçada à sua. Se Morgana Villain cair, Noeeh
Archiviéste cairá também.
Eu pedi por ela a um deus quem, antes de toda essa confusão
perfeitamente harmoniosa, eu não fazia questão de acreditar ou rezar, mas
desde que ele devolveu-me a minha esposa, vou à missa todos os domingos
em uma igreja que não é conhecida. Fico de joelhos no chão todas as noites,
rezo por Morgana e pela criança que está em sua barriga, somente por elas,
porque nada mais me importa desde que seus corações estejam bem. Óbvio,
sempre suplico e clamo a Deus mesmo compreendendo que eu não vou
poder visitar o céu, pois troquei a minha ida ao paraíso pela vida da minha
noiva. Então, por mais que esteja muito feliz com os dias a mais que recebi,
penas negras de anjos exilados não pertencem ao reino de Deus. Entendo
que, ao partirmos desse mundo, vou receber a minha punição.
E eu estou tranquilo com isso, porque já citei e vou repetir:
Não existe nada que eu não faria por minha esposa. E como prova
de amor, vou ao inferno por ela.
Tenho certeza de que quando eu for castigado pelos meus desastres,
o remorso não vai tocar os meus olhos, a única coisa que vou desejar vai ser
estar perto da raposa e, talvez assim, eu me torne o pior dos pecadores.
Nunca vou sair de lá. E é por isso que estou aproveitando ao máximo aqui,
enquanto sorrio como um tolo apaixonado, feliz por minha noiva estar
vestida de um branco surpreendentemente brilhante, seus cabelos soltos,
livres como as minhocas que não vão ser usadas para pesca, sua boca
vermelha como cereja, seus planetas brilhando como se estivessem sendo
iluminados pelo sol e seu corpo caminhando desajeitadamente. Meu peito
treme. Mesmo eu ensinando-a um truque para não cambalear depois de
desembarcar em terra, minha mulher ainda anda um pouco — muito —
desajeitada. Não me importo, fica preciosa e linda de qualquer forma,
mesmo se assemelhando a uma bêbada.
Minha garotinha bêbada cicatrizada.
Meu peito treme mais um pouco e a minha alma clama, rezando:
— Deus, por favor, se isso for um sonho, não me traga para
realidade. Prefiro viver o resto da minha vida em um sonho do que viver
uma verdade sem ela.
Dizem que o lar é onde você apoia sua cabeça, onde você caminha
quando está triste, onde suas memórias habitam quando pensam na sua
infância, mas eu não acredito nessa superstição. Lar é onde seu coração
grava detalhes em uma pedra que se localiza no fundo mar, onde sua mente
descansa dos problemas quando as nuvens se fecham e formam uma
tempestade, onde seus olhos brilham quando a empolgação do amor
atravessa a sua íris. Morgana Villain é o meu lar, é onde moram as paredes
secretas do principal órgão do meu corpo, é onde meus traumas se afastam
e, principalmente, onde a minha felicidade me abraça, tornando tudo mais
quente. Tudo fica mais bonito.
Quando estou com a minha raposinha, muita coisa ainda fica em
preto e branco, mas o importante é que ela continua colorida. Até porque, se
eu estiver ao lado da minha esposa, não me importo para onde estou indo.
Tudo se resume a ter um lugar para lacrimejar quando estiver tudo
uma zona.
E eu achei a minha própria ilha, onde eu tenho o direito, o dever e o
privilégio de ser um homem perturbadoramente apaixonado.
Ela gosta do fato de eu ser louco por ela. E como um bom marido,
eu também gosto disso.
— Bom, eu disse que sua raiva toda por mim era só porque você
queria ser o cachorrinho da madame. — Reviro os olhos quando Jacks,
mais uma vez, abre a sua boca para soletrar verdades. Sim, talvez eu tenha
tido um pouco de ciúme, mas fazer o que, né? Não gosto quando se
aproximam muito do que é meu.
O peito de Sahil treme com a brincadeira do ruivo e Morgana
continua caminhando até o altar improvisado. Estamos na praia, estou de
costas para o mar e a minha esposa está vislumbrando os dois seres pelos
quais ela mais é apaixonada. Bom, agora três, já que fizeram alguma
bruxaria com a agulha e souberam que é um menino. Como? Não sei, mas
minha intuição diz que o pedaço de metal está correto. Não quero atrapalhar
o momento dela, então sussurro, baixinho:
— Você só está vivo porque minha mulher gosta de você, mas tome
cuidado, Jacks, Morgana está grávida. — E ela é o drama em pessoa,
todavia eu a amo, e para mim, mimá-la é a coisa mais fácil do universo. —
Ela pode se estressar com os seus cachinhos ruivos e pedir para que eu
coloque fogo na sua cabeça. E eu não pensaria duas vezes.
O olhos azuis da minha outra punição psicológica brilham com o
desafio e logo o moreno diz:
— É, parece que a madame trocou um chihuahua por um diabão. —
Um de seus braços cruza o pescoço de Jacks. — Mas não se preocupe,
ruivinho, a tripulação te aceita. Eu gosto de caras fortes como você.
Acredito que amo todos que têm coragem de enfrentar Archiviéste por não
ter medo da morte. Até porque, capitão — fala Sahil, encarando-me.
Morgana, meu amor, minha linda, chega logo, por favor. Eu não aguento
mais esses dois juntos me perturbando. Tirando a paz que você me traz. —,
o seu nome está circulando pela costa da Europa, estão associando você à
reencarnação fantasma do ex-comandante do navio holandês. Descrevem-
no como o dono da vela fantasma. Dizem que quando o seu navio se
aproxima, névoa verde engloba o mar.
— Isso é a maior idiotice que eu já ouvi — murmuro. — Seria mais
legal se eles me comparassem com o Kraken.
Morgana disse-me uma vez que eu apreço a lenda do Kraken. Eu
gostei, porque ela gostou.
— O Kraken é sem graça. Você quer ser comparado a uma lula
gigante? — questiona o moreno, frugal. Eu ignoro sua pergunta. — Capitão
do navio holandês te deixa mais sexy e combina mais com você. Além de
ser mais tenebroso. Sem contar os rumores de que o nosso capitão afundou
quase todos os navios da Europa sozinho. Foram quantos mesmo?
Quinhentos e cinquenta e oito? — Nunca vão saber, até porque, eles
pararam de contar depois dos seiscentos e sete. Sahil aperta a bochecha do
ruivo e brinca, murmurando: — Eu ainda prefiro você, faisquinha. Não
fique com ciúme.
— Você não faz meu estilo — o cacheado rebate a provocação,
ofendendo a peste um.
— Como é que é? — pergunta o portador dos olhos azuis. — Como
eu não posso fazer o seu estilo? Faço o estilo de todos e ainda faço
caridade, você nem é tão bonito assim.
— Gosto de homens com mais bunda. — Arqueio uma das
sobrancelhas quando pego o pedaço de fogo olhando para minha coxa. Ele
sorri, brincalhão.
— Vazem daqui, antes que eu mate vocês dois — digo, encarando-
os como se realmente fosse o capitão do navio holandês.
Ambos os peitorais tremem com a risada quente. Eles me encaram e
o moreno pergunta:
— Não vai contar a ela o que Edward fez? — interroga. Tirando o
braço do pescoço do ruivo. Nego com a cabeça. — Por quê?
Porque tenho medo de perdê-la de novo. Foram dez anos para
recuperar o amor da minha vida, não quero passar por isso novamente e não
posso deixar que ela passe também. Minha esposa vive e viverá para
sempre em um mundo ideal.
— Porque há coisas que os esposos não podem contar as suas
mulheres — digo, e finalizo essa conversa com um olhar que ordena que os
dois se afastem.
Até porque a principal atração da festa está vindo para cá com um
buquê de gardênias brancas nas mãos. Minha cônjuge é tão bela que eu
poderia juntar todas as conchas do oceano para fazer um retrato dos seus
traços, seria a única forma possível de desenhar a sua beleza. Além das
flores brancas, a mulher carrega dois colares de pérolas naturais de ostras
— ambos pintados de vermelho e preto — , um em cada mão, indicando
que essa será a representação da nossa aliança. Sem alianças, sem contratos
ou padres. Apenas eu, ela, as pérolas, o mar e a nossa criança. Quando eu
colocar aquele enfeite, nunca mais vou tirá-lo do meu pescoço, porque
enquanto estiver com ele, saberei a mulher a quem pertenço e a quem vou
pertencer para sempre. Meus olhos estão lacrimejando e eu mordo os lábios
de nervosismo.
Esperei tanto tempo por isso que nem consigo acreditar que é real.
Todos os meus homens estão aqui, assustados, e isso é normal,
afinal nunca na minha vida eu chorei na frente deles, mas estou quase
desabando no meu casamento. Villain está sorrindo como uma princesa,
como a minha princesa. Ela levanta os pés, ficando na ponta dos dedos,
ponho minha mão na sua cintura para impedir que a minha raposa se
machuque. O vento dança com seus fios negros que me amarram neste
lugar, estou descalço, suportando a sensação de areia, mas, no fundo,
adorando, porque é o que meu primeiro coração adora. Morgana coloca o
colar no meu pescoço e seus olhos quase se fecham, minha ruína saborosa
também está querendo chorar.
— Bom…. — digo, começando os votos de casamento. Um soluço
escapa do meu peito. A linda mulher de beleza estonteante coloca os dedos
nos meus lábios, fazendo:
— Shiii. — Um biquinho se forma na sua boca. Quero mordê-lo
com os dentes e depois beijá-lo. — Não diga nada, Archiviéste. Suas
lágrimas e atitudes são o suficiente para provar que você me ama.
Libero as lágrimas que estava prendendo. Morgana tomba a cabeça
para lateral, passa seus braços pelos meus ombros e agarra a minha nuca. A
diabinha aproxima sua testa da minha e diz:
— Você merece, meu garoto que não é mais triste. — Talvez isso
não seja verdade, mas quem se importa? Eu posso naufragar nas suas
mentiras, até porque esse sempre foi o principal ato do livro da minha vida.
Afundar com as palavras de Morgana Villain. Esse é o meu propósito. —
Depois de tudo o que você passou, você merece. Eu te amo, Archiviéste.
Olho para uma festa que poderia incluir todos os animais do oceano
e ainda sobraria espaço. Alguns homens não gostam disso, mas todos,
exatamente todos, até mesmo Sahil, apoia. Eles estão felizes por mim.
Todos eles. Cada uma das cabeças presentes está com os corações quentes,
porque, no fundo, o que importa é que estou bem. Estou feliz. Contente.
Ciente de que toda a dor que suportei durante todos esse anos valeu a pena,
porque, no fim, tive a minha recompensa. No fim, eu ganhei a mãe dos
meus filhos como prêmio por ser um bom ser humano. Sou eternamente
grato. E uma nova fofoca está sendo sussurrada na ilha onde dormem as
estrelas, dizendo que nós somos o casal perfeito do milênio e seremos para
todo o sempre.
Noeeh Archiviéste e Morgana Villain.
Morgana Villain e Noeeh Archiviéste.
Tudo que está à nossa volta está contente, inclusive a lua prateada,
que brilha como se eu fosse o seu filho.
— Morgana. Morgana. Eu te amo. — expresso tudo o que há no
meu peito. Com uma das mãos, eu aperto a sua cintura, e com a outra, eu
pego o buquê de flores brancas e jogo para o alto. — Você é a minha pessoa
favorita. É o meu primeiro e único amor. E vou protegê-la de tudo e todos
que tentarem a machucar. Vou tratá-la como uma parte minha e se
necessário, vou me sacrificar por você, porque tu és a minha mulher, a
minha noiva e não há nada que eu não faria por sua segurança e aprovação.
Você é minha eterna e profunda paixão. E hoje, anunciarei para o oceano,
testemunho do nosso amor e da nossa história, quem é a minha esposa.
Minha companheira. E serei eternamente grato pelo mar, por ter entregado-
a para mim. Por não ter me deixado aqui sem a minha felicidade.
Silêncio.
— Então por favor, minha raposinha, case-se comigo e deixe-me
retribuir a luz que você se tornou na minha vida.
As trevas desaparecem, os fantasmas festejam, o mar volta à vida, as
cicatrizes se fecham, a tristeza vai embora, o pássaro descansa e quando eu
a beijo, selando o nosso casamento, a lua dá sinais de que está aprovando
nossa união e tudo ganha cor. As pétalas brancas se despedaçam com o
contato com a atmosfera e atravessa as realidades, uma bruxa de magia,
cuja principal função é a cura, toca os nossos sentimentos e tudo é
simbolizado para toda a eternidade. Estou entrelaçada a ela e ela está
entrelaçada a mim.
Nós dois gostamos disso, nós dois gostamos muito disso.
EPÍLOGO
A antiga e encantadora afeição que a minha mente possui pelo mar
não se desfez com o passar dos anos. Ainda sinto-me agarrada quando meus
pés tocam a areia, ainda sinto-me em uma lavagem cerebral quando a brisa
marinha beija os meus fios de cabelos pintados pela lua, ainda quero soltar-
me da terra e voar pelo céu quando os raios solares queimam a minha pele,
deixando-me mais velha a cada minuto que passa, mas eu aceito perder a
beleza surreal da juventude para ganhar a sabedoria deslumbrante da
maturidade. Tenho trinta e sete anos atualmente e Archiviéste tem vinte e
nove. Evoluímos tanto nos últimos longos e felizes anos com a criação
intensa das crianças que encontro-me desorientada quando esbarro em
alguma confusão que já pertenceu a minha cabeça. Pergunto-me como
aquilo pôde me atingir, no entanto, isso não importa mais, fico tão contente
quando olho para trás e vejo que não sou a mesma Morgana do passado.
Fico tão grata quando lembro-me o quanto eu mudei, o quanto eu
melhorei, o quanto aprendi a me valorizar.
Eu não sou a mesma Morgana de vinte e sete anos, mas também não
sou a mesma de trinta e dois. Sou diferente das duas, eu sou melhor que as
duas.
Estou tão velha que muita coisa parou de abalar-me, minha mente
cresceu de uma maneira absurda e nova, aprendi tanta coisa nesses dez anos
que penso ser mais velha que o fogo e ainda continuo mais gostosa. Não
penso que a idade tenha me abalado, não. Minha beleza surreal ainda se
mantém intacta, o pai das minhas crianças sabe bem disso.
Ele ainda me compreende perfeitamente.
Archiviéste ainda continua sendo o homem perfeito.
O ser humano mais lindo que já vi.
Passo a mão na minha barriga grande que carrega uma criança, ou
duas, eu não sei. Tenho que parar com a paranoia de pensar que vou ter
outros trigêmeos. O cisne negro passa andando pela casa com dois pratos de
comida quentes nas mãos. Ele coloca-os na mesa de madeira e logo depois
volta, pegando mais três e virando-se para trazer e colocar nas mãos das
crianças, o homem chega perto do objeto de madeira novamente, coloca os
três utensílios e volta novamente. Seguro a risada, escondendo minha
vontade de zombar da sua cara maravilhosa. Ele vai ter que se acostumar.
Não, ele já está acostumado, porque quando eu estou grávida não faço
absolutamente nada em casa. Nada. Nada. Nada mesmo, desde as tarefas
domésticas até as obrigações de Penzance, é ele quem manda.
Acho impressionante o quão bem Noeeh lida com várias situações e
ainda consegue ter tempo para mim. Como? Eu não sei, isso é algo que só o
portador de olhos violetas consegue fazer. Literalmente, o homem perfeito.
Mordo as bochechas quando Noeeh carrega os últimos pratos e os põe na
mesa, finalmente acabando a sua jornada de andar pela casa. Bom, cuidar
de seis crianças, uma grávida e uma cidade não é nada fácil, no entanto o
cisne consegue amar de uma maneira que só o mar explica. Acho que foi a
vida que ele sonhou, então não pode e não pensa em reclamar. Archiviéste
sorri para as crianças, depois de fazer o prato favorito do mais velho. Cada
dia da semana ele prepara a comida favorita de uma das criaturas
catarrentas, e no sábado é a minha vez.
Primeiro nasceu o menino mais velho, Malachi. O garoto nasceu
ruivo igual ao meu pai, mas com os olhos violetas e o rosto de Archiviéste.
O monstrinho hiperativo e comunicativo é realmente muito elétrico e foi o
que mais deu trabalho quando bebê, todavia, como toda criança, ele implica
e cuida das suas três irmãs mais novas, as trigêmeas.
Althea, Tamaya e Marzana. Todas vieram com a mesma aparência
que a minha, mas apenas uma veio com a mesma personalidade: afrontosa,
mentirosa e muito, muito atacada, defende Penzance mais do que defende
os irmãos. Marzana é muito provocativa e, de vez em quando, confronta o
seu irmão. Ela só abaixa a cabeça para mim e para Archiviéste, tirando isso,
é melhor sair da reta dessa garota. As outras duas são mais tranquilas,
puxaram a personalidade da mãe de Archiviéste, até a calma e sabedoria na
fala. Asael e Takara vieram logo depois, mas separados — rezei para que
não viessem gêmeos. O menino tem os meus olhos, mas a aparência do anjo
caído, ele é calmo e possui um caráter quieto e inteligente. Já Takara tem o
meu cabelo e os olhos do seu pai, totalmente contrários um do outro.
Ainda estamos decidindo quem tomará o controle da cidade, mas
todos nós temos certeza de que não será Malachi.
— Quando eu crescer, vou ser capitão da Marinha igual ao papai —
diz a criança mais velha, colocando um pouco de comida na boca. Ele
levanta a mão para cima, como se fosse um herói de livros. — Vou ser forte
e muito bonito.
— Você nunca vai ser igual ao papai — provoca Marzana,
levantando o queixo. — Forte você não é, e bonito muito menos.
— Marzana! — grito o seu nome, repreendendo-a com o olhar. A
menina tenta me desafiar, mas eu inclino a cabeça, estreito os olhos e ela
cede.
— Não diga isso a seu irmão, Marzana. — A voz de Archiviéste
ecoa. — Chamar os outros de feio é coisa de pessoa insegura. Só seres
humanos que não estão bem consigo mesmos se acham superiores, carroças
vazias são as que mais fazem barulho.
— Sim, papai — diz, ficando quieta. — É que eu vi Malachi
observando a filha da rainha e não queria que ele criasse esperança. Não
quero que meu irmão fique longe de casa.
Mente. Essa garota é uma mentirosa, mas, para seu azar, eu tenho as
mesmas manias que ela. Eu sei definir outra víbora quando eu a vejo. Ela
está usando isso como pretexto para dedurar seu irmão. Eu gosto muito
dessa menina, entretanto suas atitudes a condenam. Marzana ainda tem a
personalidade mais forte que a minha, quase chegando à da minha mãe.
— Eu só achei ela bonita, não é como se eu fosse fugir daqui —
defende-se o ruivo, encarando Archiviéste. — Eu quero ela para mim,
papai.
— Ela não é sua, garoto, não pode olhar para uma mulher e decidir
que ela é sua. — Examino o homem ao meu lado, como se quisesse julgá-lo
por dizer essas palavras. Não foi exatamente isso o que ele fez? — E
também, ela é muito velha para você. Sossegue.
— Mamãe também é muito mais velha que você, papai — diz
Althea, inocentemente. Ela realmente não faz isso por mal.
— Como é que é, pirralha? — interrogo, abrindo os lábios. O pai
dos monstrinhos coloca a mão na minha coxa, acariciando o local, como se
pedisse para eu me acalmar. Mas não estou nervosa, essas criaturas do mar
ainda não me viram nervosa. Ainda. Ela faz biquinho de choro, eu fico com
pena e passo a mão na sua cabeça. Quando foi que fiquei tão mole?
— Não chora, Althea, não chora — digo, acariciando os seus fios
negros. Ela abre a boca, chora de comida na língua, nego com a cabeça e
passo a mão em seus cabelos mais uma vez, respirando fundo.
— Não biga comigo, mamãe. — Começa a abrir a boca, chorando
alto.
— Se você for o capitão da Marinha, eu vou ficar de olho nos seus
passos, e se você trair o Submundo, eu vou te matar — ameaça Marzana,
encarando seu irmão. Observo uma enquanto a outra berra. Takara começa
a beijar sua irmã sensível, mesmo sendo a mais nova, é a mais carinhosa.
Asael termina de comer, se despede de mim e vai para fora brincar,
ignorando todos na casa. Ele odeia confusão e odeia gente chorando, evita
Marzana, mas mesmo assim a ama. Ele é o que menos dá trabalho, o mais
calado e o segundo mais independente.
— Marzana e Malachi, vão para fora — digo, firme, depois que eu
percebo que eles terminaram de comer. — E parem de brigar, porque se eu
perceber que estão discutindo, sou eu que vou matar vocês dois. Estamos
entendidos?
Ambos concordam com a cabeça e vazam do local, captando o
recado. Isso vai durar por alguns dias, até eles voltarem com as farpas.
— Acho que, no final, montamos nosso exército de crianças —
Noeeh brinca baixinho, beijando o topo da minha cabeça. Ele se afasta e
sorri levemente. Meus olhos brilham fortemente quando a aliança de
pérolas — negras e marsalas — que está no seu pescoço balança com a
inclinação da sua coluna. Eu amo a representação do nosso casamento,
simplesmente um dos meus maiores orgulhos. —, só não esperava que ele
fosse tão caótico.
Archiviéste pega Althea e Takara no colo depois que percebe que só
vai conseguir acalmar a menina quando levá-la para o mar. Levanta as duas
com uma facilidade extrema, manda um beijo aéreo para mim, a criança
chora e o ambiente fica em completo silêncio depois que ele sai pela porta,
ficando somente eu e Tamaya. A menina de olhos negros e cabelo escuros
sobe o seu campo de visão, me encara com um olhar naturalmente mortal e
sorri para mim. Ela se levanta, senta-se lentamente, ergue o seu antebraço
ao meu lado e passa a mão pela minha barriga grande. Seus dedos tocam
minha pele delicadamente, piscando logo depois. Ela é a mais responsável,
a mais séria e a mais adequada. Gosto do Azael, mas ele fugirá na primeira
briga que não gostar, porque não se importa com o povo igual Tamaya se
importa.
A menina tem a minha aparência, mas conseguiu se sobressair na
personalidade, porque tem as minhas qualidades, as qualidades do meu pai,
do seu próprio pai, da minha mãe e também da mãe de Archiviéste. Ela é a
mistura perfeita de todos os grandes líderes que passaram por Penzance e
ainda é mais divina que todos nós. A garota nasceu para ser uma rainha, sua
forma de pensar, seu modo de agir, sua atitude calada, mas sempre
observadora. Ela ainda é o equilíbrio entre os irmãos, todos a respeitam,
todos a obedecem.
Uma verdadeira campeã.
— Eu te amo, mamãe — diz, aproximando o seu rosto das minhas
bochechas e selando os seus lábios. — Eu também amo muito os meus
irmãos, então vou vigiar Malachi, vou controlar Marzana, vou cuidar de
Althea, vou fazer questão de que Takara tenha a mesma personalidade pelo
resto da vida. — Uma pausa para respirar. — E acho que a senhora sabe que
não preciso me preocupar com Azael, no entanto eu prefiro ter todos eles ao
meu alcance, para cuidar e puxar orelha quando precisar. — Eu nunca
precisei chamar atenção dessa criança, acho que a alma dela é mais velha
que a minha. — Também vou tomar as devidas providências quanto a essa
criança que está na sua barriga.
— Por que está dizendo isso, Tamaya? — pergunto, já sabendo a
resposta. É ela, sempre foi ela. Sorrio para a garota.
— Porque quando eu for a líder do Submundo, quero que a senhora
tenha orgulho de mim e veja como vou domar os meus irmãos e proteger o
meu povo. — Passa a língua pelos lábios. — Pelo mar, pelo céu e pela terra.
Eu vou comandar as três famílias e tornar Penzance tão forte que nunca
mais ficará escondida, porque defenderei o meu reino.
— Se eles atacarem com uma flecha bem no peito do Submundo?
— questiono, curiosa com a sua fala.
— Então não irá penetrar a carne — explica-se, analisando o fundo
da minha alma. — Há um escudo no coração da cidade.
— E se atingir a cabeça? — insisto, frugal.
— Então cairei sozinha. — Ou seja, ela será a cabeça do lugar.
Maravilhoso. — Porque naufragarei nos sete mares para defender as
pessoas deste lugar, para salvar quem eu amo.
— Você ama Penzance? — questiono, estreitando os olhos e ligando
o meu sinal de mentira. Ela chega mais perto de mim, desafiando-me, mas
não de uma forma autoritária, e, sim, para mostrar sua confiança. E eu vejo
o reflexo de amor no seu olhar.
— Sou mais apaixonada por eles do que sou pelos meus próprios
irmãos — diz, sem hesitar.
— Fiel a eles? — minha última pergunta.
— Para todo o sempre, mamãe. — É ela, sempre foi ela.
Está na minha frente a nova líder do Submundo, sucessora do meu
império.
Tamaya Archiviéste Villain.
Ela naufragará todos que tocarem no seu território e não usará
mentiras.
AGRADECIMENTO
Nos vemos no agradecimento do livro físico com as cenas adicionais.
Espero que tenham tido uma boa leitura. E esperem pelo livro dos pais da
nossa raposinha. Obrigada por chegar até aqui e apoiar o meu trabalho.
Próxima obra: A PODRIDÃO DOS VÉUS.
Estão ansiosos para lerem um livro medieval entre um padre e uma bruxa?
@autoravecchi ou @ThaidylaVecchi
[1]
Por que você está fazendo isso?
[2]
Eu não lhe dei autoridade para olhá-la.
[3]
Você entende?
[4]
Como quiser, chefe.
[5]
Se você desrespeitar outra mulher, eu vou te matar.
[6]
Salmagundi é um prato frio ou salada feita de diferentes ingredientes que podem incluir carne, frutos do mar, ovos, vegetais