Admin, 02 Gersem Baniwa

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 17

DOI: 10.5216/racs.v4.

59074

Educação para manejo do mundo

Gersem Baniwa1

RESUMO

Este artigo trata da ideia de “educação para manejo do mundo” que foi o tema de minha
pesquisa doutoral publicada em 2011. A ideia central é a educação indígena Baniwa como
processo formativo e transformativo, cujo propósito é o manejo do mundo no sentido de
compreendê-lo para respeitá-lo e dele garantir o equilíbrio da vida e da existência humana e
da natureza. Conhecimento para o manejo do mundo e da natureza possibilita a construção
permanente de uma vida e existência humana desejável e sustentável, baseada no princípio
filosófico indígena de bem viver da natureza e com a natureza, contrapondo-se à ideia
globalizada do conhecimento para exploração, destruição e dominação da natureza e da vida.
De acordo com o pensamento indígena de manejo e domesticação permanente da vida e do
mundo, o poder não está nas mãos das sociedades humanas, mas na composição da natureza,
ao contrário do pensamento ocidental globalizado, em que o poder político, histórico e
civilizatório está nas mãos das sociedades humanas.

PALAVRAS-CHAVE: Educação. Educação escolar. Educação indígena e manejo do mundo.

Ikadzeekataa kakhettiapani pamatsiatakaro Hekoapi

RESUMO EM BANIWA

Kwa ampinima waa unheen mayé yamaan ara resé, sesé waa asikai akuaarama amunham
ramekuera se doutorado, assui anpinima aé yepê livro upé 2011 ramemkwera. Kwa
yamanduari-sá umbué yandé mayé ya viveri arama puranga kwa yane ara irumu. Yavivei
arama puranga kwa panhé ya ara upé asuí irumu. Kwa yamanduari-sá yandé Baniwaitá
amuripi turusú kua mayé kariwaitá tamanduari tamunhamunham asuí tayuká kwa yane ara,
yaneretama. Kwa Baniwa tamanduari sá upé awá umundu kwa mundo upé aité kwa ara
yaraitá, umbaa miraitá, mayé kwa kariwaitá umanduari sá.

YANEENGA RETEWAÁ: Yakwa-sá. Escola ukua-sá. Yandé índio-itá yakua-sá asuí kua mayé ya
viveri puranga kwa yané ara irumu.

1
Mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UNB). Professor Adjunto do
Departamento de Educação Escolar Indígena da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas
(DEEI/FACED/UFAM). Professor indígena do povo Baniwa. Manaus, AM, Brasil. E-mail:
gmapolero@gmail.com.

R. Articul.const.saber, 2019,v.4: e59074


Education for the Management of the World

ABSTRACT

This article is about "education for the management of the world" that was the subject of my
doctoral research published back in 2011. The main idea is the Baniwa indigenous education
as a formative and transformative process which its aim is to manage the world in a way to
understand it, respect it and ensure the balance of life, human existence and nature. The
knowledge for the management of the world and nature enables the permanent construction of
a desirable and sustainable human life and an existence based on the indigenous philosophical
principle of well-being of nature and with the nature, opposing the globalized idea of
knowledge for exploration, destruction and domination of nature and life. According to the
indigenous thinking on the management and permanent domestication of life and the world,
the power is not in the hands of human societies, but in the composition of nature, unlike
Western globalized thinking, where political, historical and civilizing power are in the hands
of human societies.

KEYWORDS: Education. School education. Indigenous education and world management.

Apresentação

Este texto é resultado de uma palestra proferida em 17 de novembro de 2014, no


“Curso de especialização em educação intercultural e transdisciplinar: gestão pedagógica”, do
Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena (NTFSI) da Universidade Federal de
Goiás (UFG), sob a coordenação da Professora Maria do Socorro Pimentel da Silva que, na
ocasião, destacou a importância de se construir um Projeto Político Pedagógico com os/as
professores/as indígenas, cujas discussões visam repensar o sentido da escola e as verdadeiras
demandas que cada comunidade tem à luz de questionamentos como: Qual é a escola que
os/as professores/as indígenas e suas respectivas comunidades realmente querem? Como
repensar a escola? Como pensar a educação contextualizada? Qual é o lugar de
contextualização das políticas pedagógicas específicas, interculturais e diferenciadas?
Questões estas que fazem um apelo para uma reflexão profunda no que se refere à produção
de projetos políticos pedagógicos e, para tanto, as discussões daquele evento deveriam ser
realmente efetivas e produtivas para os povos indígenas, para a escola, para a universidade e
para a sociedade brasileira em geral.

R. Articul.const.saber, 2019,v.4: e59074


Educação para manejo do mundo

A educação escolar indígena é um campo que não possui metodologias acabadas, até
porque é recente para os povos indígenas brasileiros, o que eleva a importância da troca de
conhecimentos como esta, proporcionada por este espaço de diálogo. Classifico este texto
como uma provocação cujo título “Educação para o manejo do mundo” é de minha tese de
doutorado (LUCIANO, 2013). A provocação tem como objetivo central chamar nossa atenção
para a compreensão da educação indígena como formas próprias e milenares de lidar com o
mundo e com a natureza, contrapondo frontalmente à ideia etnocêntrica e eurocêntrica de que
os povos indígenas vêm sendo educados, como se não tivessem antes e sempre sua educação
própria (LUCIANO, 2013).
Nossa experiência de 30 anos de luta pela causa indígena nos autoriza afirmar que é
necessário pensar melhor sobre o que nos é imposto pelo mundo do branco, especialmente,
pela escola e pela universidade. A ciência acadêmica ocidental divide e opõe índio e branco,
homem e mundo, sociedade e natureza, corpo e espírito, bem e mal, rico e pobre, gordo e
magro, conhecimento tradicional ou popular e conhecimento científico e assim por diante. É
necessário a gente entender bem esse tipo de pensamento e, principalmente, ter muito cuidado
para não acreditar nele como verdade absoluta. Os conhecimentos e pensamentos indígenas
são muito diferentes e não se baseiam nesse dualismo por oposição. Acreditar e seguir
indistintamente o pensamento ocidental na escola e na academia pode produzir estragos
profundos irreversíveis para os nossos conhecimentos e modos de vida indígena.
Sabemos que os estudos na graduação e na pós-graduação ainda não garantem espaços
institucionais adequados para os indígenas e seus distintos e numerosos conhecimentos e
experiências de vida, pois o cartesianismo e o positivismo antropocêntrico reinantes nos
programas, cursos e disciplinas continuam orientados e orientando pesquisas e teorias a partir
da ideia frágil de “objetividade” da produção acadêmica, que induz ou mesmo seduz ao
pensamento e atitudes perigosas de separação e distanciamento hierárquico do homem da
natureza cósmica com suposto privilégio do primeiro sujeito homem e em detrimento do
segundo sujeito natureza (SOUZA SANTOS, 2000).
A ciência ocidental induz os estudantes indígenas ao exercício de isolamento do
homem do mundo e da natureza, ainda que como estratégia metodológica e isso provoca
profundos dilemas existenciais, cosmológicos e epistemológicos aos indígenas que acreditam
e se sentem membros inseparáveis e interdependentes da natureza cósmica. Quando a Ciência

R. Articul.const.saber, 2019,v.4: e59074


fala que é necessário sair e afastar-se do mundo concreto para então estudá-lo e conhecê-lo e
os indígenas seguem, já estão rompendo com seus modos de vida, com suas culturas, com
seus pensamentos tradicionais milenares. Essa separação dualista da natureza é muito nociva e
perigosa para os modos de pensar e viver dos indígenas baseados fundamentalmente na
organicidade, interdependência e holismo da natureza e do mundo como um todo
(ESCOBAR, 2005).
Entendemos que é importante conhecer e compreender a Ciência Ocidental como um
modo de pensar e viver entre tantos outros modos de pensar e viver existentes no mundo,
dentre os quais os dos povos indígenas. É importante também reconhecer a importância
histórica das grandiosas conquistas do conhecimento humano do ocidente europeu para toda a
humanidade, mas não são os mais verdadeiros ou superiores e não são os únicos a produzirem
tais proezas humanas no mundo. Outras civilizações humanas como os hindus, os chineses, os
incas, os astecas, os povos indígenas em geral, os povos africanos também construíram e
deixaram legados igualmente importantes para a humanidade de hoje, no campo do
pensamento, da filosofia, da religião, das ciências, das técnicas e tecnologias.
A diversidade de pensamentos, de conhecimentos e de modos de vida é
profundamente salutar à continuidade e sustentabilidade da vida no nosso planeta. É
importante destacar que desde o momento em que o homem branco, por meio de sua ciência,
começou a separar o homem da natureza, colocando-se acima dela como dominador,
consumidor ou predador, aconteceram as piores coisas no mundo: desmatamento e queimadas
intensas de grandes proporções, aquecimento global, enchentes e tsunamis, furacões, tufões
devastadores, assoreamento e morte de rios e lagos, represas de mortes de peixes e assim por
diante.
O homem branco considera a natureza inferior a ele e, por essa razão, quer fazer dela o
que bem entender: estradas, hidroelétricas, desmatamento, assoreamento de rio, exploração
predatória e insustentável dos recursos naturais, tais como madeira, pescados, minérios,
extrativismo, porque não sente dor de consciência coletiva, orgânica e cósmica, e isso advém
da separação do homem da natureza. Praticar grandes monoculturas não é um pensamento
apenas dos políticos brancos, é pensamento do ocidente que está na universidade, na escola e
na sociedade herdeira do ocidente europeu. A partir do momento em que acreditamos e
adotamos os cânones artificiais de objetividade, imparcialidade, apolítica, neutralidade,
impessoalidade e laicidade da ciência acadêmica, passamos a pensar igual como pensa o
grande produtor de soja, cujo único interesse é ganhar e acumular dinheiro a qualquer custo e

R. Articul.const.saber, 2019,v.4: e59074


de qualquer forma, não importando as consequências de seus atos para a vida humana e a vida
da natureza.
Nós indígenas pensamos a partir de nossos sentimentos e nossas crenças que estão
sempre relacionados com a natureza e com o mundo das quais somos inseparavelmente partes
(ESCOBAR, 2005). Vivemos em profunda interação e respeito com a natureza da qual
dependemos para viver e, assim, reciprocamente, a natureza, por sua vez, precisa de nós como
parte dela para estar em sua completude. O homem branco é alucinado pela exploração da
natureza a qualquer custo e com propósitos pouco humanos e naturais. Neste momento, não
podemos seguir o caminho apontado pelos pensamentos e conhecimentos científicos
ocidentais e devemos sim adotar atitude de desobediência epistêmica em favor de nossas
ciências, valores e crenças (MIGNOLO, 2008).
Assim, a função educativa dos povos indígenas é para manejar o mundo, não no
sentido de dominar e subjugar, mas no sentido de compreender e alinhar-se a ele, ajudando-o
e sendo ajudados. Compreender e alinhar-se à natureza de acordo com a sua dinâmica,
racionalidade, lógicas e limitações e beneficiando-se de suas forças e potencialidades naturais
e sobrenaturais sempre muito generosas, mas também muito justa, é função educativa
primordial. Mas para alcançar a sabedoria e a sensibilidade humana é necessário ouvir,
observar, compreender suas mensagens por meio de vozes (trovões, cantos), sons (ruídos
fortes de cachoeiras, correntezas, ondas e banzeiros, ruídos de peixes no fundo do rio, ou de
animais de caça no mato, som de aves revoando ou em repouso nas árvores, ou ainda o
silêncio profundo no coração dos lagos e das florestas), eventos majestosos por vezes belos e
outras vezes ameaçadores, assustadores e devastadores (tempestades, furações, tufões,
tsunamis) e, por fim, deixar compenetrar-se e interpenetrar-se seguindo os seus ritmos,
tempos, ciclos e forças. Assim, a vida é mais bem vivida com liberdade, segurança e
sustentabilidade natural.
Os povos indígenas, talvez, sejam os maiores especialistas em ouvir, seguir e conhecer
a natureza e, por esse motivo, sabem compreendê-la, beneficiar-se dela, mas também
beneficiar a ela em sua luta por existência e sobrevivência. O som produzido e emitido por
cada animal tem um sentido e significado. Cada ser, evento ou fato emite um som ou produz
um fenômeno que pode indicar um pedido de socorro, de um convite a tempos de alegria e de
abundância ou simplesmente indicando período ou ciclo de tempo da natureza (verão,
inverno, sol, chuva, tempestade, cheia do rio, seca do rio, escassez ou fartura de peixe, caça,
roça, tempo de doenças, saúde, de paz, de guerra, de fraternidade ou de ódio, de amizade ou

R. Articul.const.saber, 2019,v.4: e59074


de inimizade), identificado e indicando determinado espaço geográfico (terra firme, terra
virgem, terra capoeira, terra fértil ou terra pobre, igapó, caatinga, campo, território de caça
abundante ou não etc). Levi-Strauss observou isso assim que chegou na América e assim
testemunhou a respeito:

As faculdades aguçadas dos indígenas lhes permitiram notar exatamente os


caracteres genéricos de todas as espécies vivas, terrestres e marinhas, assim como
mudanças, os mais sutis de fenômenos naturais, tais como os ventos, a luz e as cores
do tempo, as ondulações ligeiras das vagas, as variações da ressaca, as correntes
aquáticas e aéreas (LEVI-STRAUSS, 1989, p. 17).

A educação como manejo do mundo vem para contrapor a ideia de educação para
manipulação, exploração, dominação e destruição do mundo, pois a ciência, embora busque a
compreensão da natureza, é sempre para subjugá-la, dominá-la, explorá-la como se isso fosse
possível em sua plenitude e, não para compreendê-la, respeitá-la, protegê-la e cuidá-la como
algo tão imprescindível para a vida no planeta.
A ideia de manejo traz consigo outra ideia, a de domesticação. Manejo do mundo
refere-se à capacidade sensível de compreensão e de alinhamento natural ao funcionamento
orgânico da natureza e do mundo, enquanto domesticação refere-se à compreensão e domínio
das instituições, atores e conhecimentos dominantes colonizadores, que à luz da capacidade
de manejo, devem ser humanizadas, naturalizadas (alinhadas à natureza) e apropriadas
complementariamente em benefício da vida humana, da natureza e do mundo. Ambos os
conceitos fazem parte de um vocabulário estratégico colonial, mas aqui apropriado e revertido
em estratégia de descolonização ou contra colonização cada vez mais adotadas pelos povos
indígenas nos últimos anos.
Este Curso de Especialização em Educação Escolar Indígena é uma oportunidade rara,
porque ainda são pouquíssimas as iniciativas desse gênero no Brasil. Os cursos de
especialização voltados para as temáticas de interesse dos povos indígenas precisam se
multiplicar abrindo novas abordagens teóricas, metodológicas e práticas relativas ao campo
das temáticas indígenas. Nos últimos 20 anos tem havido importantes discussões sobre o que
é educação escolar indígena e elas apontam para a necessidade de estabelecimento de outros
horizontes, outras metas e métricas e outros objetivos sobre o que significa a educação escolar
indígena que ainda é muito pouco discutida, inclusive, pelos próprios povos indígenas, para
saber como lidar com a educação escolar dentro das aldeias. Esse é um debate que tem
circulado nas academias e muito pouco nas comunidades indígenas.

R. Articul.const.saber, 2019,v.4: e59074


Nos últimos anos, os povos indígenas têm sido orientados a ter uma educação escolar
específica e diferenciada. Mas que especificidade e diferenciação são essas? Há alguns
avanços: as línguas indígenas deixaram de ser negadas e desvalorizadas. Nossas línguas
passaram a ser valorizadas nos últimos anos, em alguns casos de forma concreta e em outros
casos, pelo menos no discurso e nas letras das normas e documentos técnicos. Alguns povos,
também, estão começando abrir as portas das salas de aula e das escolas para que os saberes
indígenas tradicionais entrem e comecem a fazer parte dos currículos, das disciplinas, dos
materiais didáticos e dos planos de ensino e de aula dos professores. Com isso, a prática de
interculturalidade começa a ganhar forma, força e gosto, promovendo, enfim, a convivência e
aplicação articulada e mutuamente complementar dos conhecimentos indígenas e dos
conhecimentos científicos escolares. É importante lembrarmos sempre que a melhor forma de
“domesticar” nós índios - domesticar aqui no sentido de dominação e tutela -, é fechando-nos
em uma sala de aulas ou dentro das paredes, muros ou cercas da escola como fomos tratados
ao longo dos 519 anos da nossa história de invasão e perversa colonização.
Em algumas escolas Baniwa, por exemplo, ainda encontramos “bancos e carteiras ou
mesas coletivas” de madeira local onde as crianças estudam construídas pelas próprias
comunidades, no lugar de carteiras modernas individualizadas fornecidas pelo poder público.
Esses “bancos” com carteiras acopladas são muito importantes para manter o espírito coletivo
e comunitário ancestral dos alunos. A escola foi e ainda é a principal responsável pela
individualização, por exemplo, da carteira, do caderno, do lápis, do copo, da comida. Os
Baniwa também ainda conservam a tradição das refeições comunitárias em que a comida é
servida em panelas ou cuias grandes e as pessoas se servem usando a técnica sutil de enfiar a
mão munida com pedaço de bejú na panela para içar um pedaço de carne a cada vez,
habilidade que requer técnica apurada, caso contrário, o bejú se derrete instantaneamente
impossibilitando carregar o pedaço de carne.
Em 2008, por ocasião da minha primeira passagem pelo Conselho Nacional de
Educação (CNE) consegui que a Câmara de Educação Básica daquele Conselho realizasse um
dia de sua reunião ordinária em uma aldeia no Alto Rio Negro que ainda vive de forma
coletiva e tradicional. Fiz com que os colegas conselheiros e as conselheiras participantes
pudessem perceber e viver, por um dia, a grande diferença e diversidade entre as culturas e os
modos de vida existentes em nosso país e, especialmente, naquela região multiétnica e
multicultural. Quando me perguntavam onde encontrar banheiro, constrangido, lhes
informava que tinham duas opções: mato ou rio. Na hora de comer, perguntaram pelos pratos

R. Articul.const.saber, 2019,v.4: e59074


e talheres e, então, lhes orientavam para que seguissem o exemplo das pessoas da região.
Tratava-se exatamente de comer usando bejú para pegar carne das panelas que estavam no
meio do salão. Todos seguiram o exemplo ou pelo menos tentaram. Todos compartilharam da
panela coletiva com seus pedaços de biju. Ao final da refeição, como manda a tradição, todos
sentados ou em pé, postados em um único e grande circulo, 10 cuias de xibé pelo menos
foram passando por cada um, de mãos em mãos e de boca em boca, iniciando no sentido
relógio e concluído no sentido contrário. Xibé é uma bebida feita com farinha de mandioca,
água ou vinho de açaí, bacaba ou patauá. Dessa vez, os conselheiros e as conselheiras e todos
os demais participantes estavam com sorte, pois havia muitas cuias de xibé de açaí e bacaba, o
que não é muito comum, mas, sem dúvida, assim, o xibé fica muito mais gostoso e nutritivo.
Cada família levou da aldeia sua panela de comida, farinha, bejú e sua cuia de xibé para
compartilhar com todos os visitantes, convidados e membros da aldeia, tornando o dia de
trabalho e reunião muito produtivo e alegre.
A experiência foi muito positiva para demonstrar aos conselheiros e às conselheiras a
diferença cultural e a distância da cultura ocidental para as culturas indígenas. Foi um dia rico,
desafiador, mas de muita aprendizagem e vivência profunda de uma realidade específica e
pouquíssima conhecida pelos brasileiros e pelo mundo. Não recebi nenhuma reclamação
negativa dos conselheiros e das conselheiras que participaram da experiência, pelo contrário,
ouvi e recebi muitos elogios, estranhamentos, sim, mas sempre no sentido pedagógico de
aprendizagem, descoberta e novos conhecimentos antes ignorados.
É necessário compreender o que é diversidade cultural que não é ideia ou conceito.
São modos de vida concretos vividos por milhares de pessoas, comunidades e povos com suas
culturas, tradições, línguas, valores, saberes, conhecimentos e visões de mundo. Um dos
lugares que mais reprime a diversidade cultural é a universidade, que só perde para as igrejas.
Um dos maiores pecados que a universidade comete com os indígenas é quando ignora ou
rechaça a espiritualidade, em benefício da separação homem/natureza/divindades. Para nós
indígenas, a vida ganha sentido com a espiritualidade, muito diferente de como pensam os
brancos. Para nós indígenas, todos os seres têm espírito. A própria natureza tem espírito. A
natureza é espírito puro. A natureza é um grande espírito. O universo é um grande espírito.
Discutir interculturalidade sem levar em consideração essas questões de
espiritualidades é nos limitarmos à artificialidade do conceito e da ideia de “objetividade”
científica, tornando o mundo e a vida incompletas, incontroláveis, à deriva, portanto,
irreconhecíveis, estranhas e perigosas.

R. Articul.const.saber, 2019,v.4: e59074


A saúde corporal e espiritual das pessoas e da própria natureza depende da relação
dialógica, respeitosa, colaborativa e interdependente entre os espíritos que sustentam a
existência dos seres e das coisas. A natureza é constituída de consciência e capacidade de
sentimento e de ação e reação, por isso, se alegra diante de boas ações retribuindo igualmente
com boas ações (fartura na pesca, na caça, na roça, de frutas, na saúde) ou se entristece com
más ações e retribui com escassez de coisas.
A natureza é uma agência indomável, autônoma, autoconsciente, generosa e muito
produtiva, mas, também reativa, defensiva e ofensiva. Sua reação diante de uma ameaça,
desrespeito ou violência contra ela é autodefensiva na busca de garantir sua existência,
sobrevivência, diante de sua limitude primordial. Essa concepção de natureza está muito
distante do pensamento acadêmico dominante no mundo globalizado atual. A exploração
destrutiva da natureza, em curso, põe em risco a própria capacidade de continuidade
sustentável da vida humana e do planeta e que acontece porque o pensamento ocidental não
considera a espiritualidade, agencialidade e finitude da natureza.
Para os Baniwa, as doenças existem porque o homem deixou de ter uma relação
respeitosa com a natureza, em algum momento, e de alguma forma. Portanto, doenças
humanas são resultados de não observância aos princípios de convivência e coexistência com
a natureza. Como todos os seres são munidos de agências espirituais – espíritos do bem e
espíritos do mal –, a natureza na sua totalidade é permeada permanentemente de tensões,
predações e ataques, que são equilibrados pelos espíritos bons e superiores sob o manejo dos
sábios pajés. Este manejo da natureza e da vida obedece a um protocolo definido e conhecido
pelos indígenas, principalmente pelos sábios. Aliás, curar uma doença por meio do ritual
proferido por um pajé é por em prática este protocolo de relações primordiais de respeito.
Para cada situação ruim existe um protocolo próprio para cura e superação. Uma coisa é curar
uma doença de uma pessoa acometida por espíritos da floresta, outra é curar a escassez de
peixe ou de caça em um terminado território, rio ou lago.
A ideia de educação para manejo do mundo e da vida é para contrapor à concepção do
homem globalizado quando concebe a educação como necessidade instrumental para
domínio, exploração, manipulação, subjugação e destruição da natureza, do mundo e da vida.
O homem globalizado, mesmo com seu sofisticado aparato tecnológico, consegue explorar e
destruir a natureza, mas nunca dominá-la ou sujeitá-la, porque ela possui espírito grande, forte
e superior. As principais forças representativas e reativas da natureza não sofrem controle e

R. Articul.const.saber, 2019,v.4: e59074


domínio da ciência e tecnologias atuais, a exemplo dos raios, trovões, tempestades, furações,
secas, enchentes etc.
Assim, conhecimento para o indígena é entender como a natureza funciona, para saber
viver e conviver com ela, com respeito, com ética, sem transgredi-la. Seguindo este princípio
filosófico básico garante-se saúde corporal e espiritual e as condições necessárias para uma
vida boa, bem viver (MACAS, 2000). Cada ato simples e impensado que se pratica contra a
natureza, ou seja, contra algum ser que compõe o mundo, pode ter sérias consequências para a
vida do ser humano e para a natureza como um todo. Bem viver é a concepção e prática de
vida indígena, predominantemente andina, que leva em consideração e a sério, a
interdependência da natureza e do mundo. Nessa perspectiva filosófica e ontológica do bem
viver, a vida é possível e boa, quando é para todos os seres, ou seja, um estado de equilíbrio e
harmonia entre todos os seres, entre o homem e a natureza. Basta uma parte em desequilíbrio
para impor coisas, fatos e eventos ruins a todos.
Conclui-se, com isso, que temos hoje duas maneiras de pensar muito distintas: o
pensamento indígena que considera e trata a natureza como sua casa e da qual depende para
existir e bem viver e o pensamento dominante no mundo globalizado que considera a natureza
como objeto material, recurso econômico, sendo o homem o dono ou propriedade particular,
ou seja, a natureza dependente do homem. Na academia é necessário saber lidar com as duas
formas de pensamento com muito cuidado. Muito cuidado porque podemos
inconscientemente e inconsequentemente ir substituindo os conhecimentos indígenas pelos
conhecimentos científico da universidade. Deste modo, vamos submetendo os nossos povos
ao domínio do conhecimento não indígena e, por tabela, ao poder político, cultural,
econômico e religioso dos nossos colonizadores e dominadores.
Por isso, é necessária uma boa compreensão e consciência histórico-cultural de quem
somos; de onde viemos; onde nos situamos e quais perspectivas coletivas dos nossos povos,
mantendo nossos pensamentos ancestrais, nossas identidades, nossos conhecimentos e nossos
modos de vida próprios. Acessar e dominar os conhecimentos não indígenas, especialmente
os conhecimentos científicos não é uma coisa ruim em si mesma, ao contrário, é uma coisa
boa e necessária, desde que seja para somar, complementar e fortalecer nossos conhecimentos
próprios e ancestrais e nossas identidades e modos de vida. Nunca pode ser para substituir
nossos saberes, valores e modos de vida, muito menos para negá-los ou interiorizá-los, pois se
assim for, estaremos reproduzindo o que há de pior nas práticas coloniais, que é a visão de
que ou não somos ou somos inferiores, humana, cultural e cognitivamente.

R. Articul.const.saber, 2019,v.4: e59074


Uma das maiores fragilidades dos povos indígenas de ontem e de hoje é não conhecer
bem e a fundo o mundo do branco. Como ele funciona, quais os seus pensamentos, suas
lógicas, seus valores ou contravalores, seus conhecimentos, seus interesses, suas artimanhas,
suas estratégias, suas visões, seus ideais, seus jeitos, seus trejeitos, suas manhas, suas
fortalezas, suas fraquezas. Não em busca de dominá-los ou subjugá-los, pois se assim fosse,
estaríamos copiando tudo o que reprovamos neles. Mas conhecendo o mundo do branco ele
se torna mais compreensível, inteligível, decifrável, previsível, portanto, manejável para nós.
Decifrável e previsível para sabermos como dialogar, conviver, coexistir simetricamente ou
pelo menos de formas menos assimétricas.
Essa compreensão de como funciona o mundo do branco e o mundo globalizado é
essencial para a defesa e garantia dos nossos direitos coletivos indígenas, por meio de
estratégias certas de diálogo e de lutas. É necessário, portanto, estudar e pesquisar o branco e
o seu mundo para termos uma compreensão do seu modus operandi, sobre ele mesmo, mas,
sobretudo sobre nós. O que ele pensa de nós. O que ele quer de nós, O que ele deseja para
nós. O que ele deseja para ele e para o mundo. Sabemos muito pouca coisa do homem
branco. Sabemos de coisas muito superficiais e artificiais do mundo globalizado e, por vezes,
de formas equivocadas ou através de fake news. Sabemos o que ele nos diz, promete, idealiza.
Mas uma das características dele é a perspicácia política onde quase tudo vale, inclusive,
iludir. Referimo-nos ao mundo do branco, pois nossa maior preocupação é com o seu mundo,
pelo que já nos fizeram e continuam fazendo, isso, é claro, sem desconhecer, a importância de
outros mundos, dos negros, asiáticos e outros.
Sem conhecimento profundo sobre o mundo do branco, não temos como manejar o
mundo dele e nem o nosso, porque o nosso está muito influenciado pelo dele. Por isso,
muitas vezes nossas lideranças se iludem, se vendem e às vezes traem seu povo por
ingenuidade ou por má fé, por não entenderem ou compreenderem as questões em jogo. O
mundo do branco é muito complexo, burocratizado e institucionalizado, por isso, é necessário
compreendê-lo bem. Todos os indígenas podem ir às universidades para compreendê-lo, mas
não para serem dominados. Assim, é parte da missão de indígenas na escola e na
universidade, além de afirmar, pesquisar, registrar e divulgar suas identidades, culturas,
línguas e conhecimentos, também estudar, pesquisar e conhecer os códigos, os pensamentos e
conhecimentos dos não indígenas.
A “objetividade” científica desvaloriza a relação orgânica dos povos indígenas com a
natureza e isso os enfraquece interna e externamente. Assim, é importante os indígenas

R. Articul.const.saber, 2019,v.4: e59074


acessarem a universidade não para negar o pensamento e os conhecimentos ocidentais
acadêmicos, pois estes também são muito importantes para o mundo por suas proezas,
avanços e conquistas históricas, mas para oferecer outros pensamentos e conhecimentos e
demonstrar que a universidade tem uma série de limitações e empobrecimento ao não
reconhecer, considerar e promover também outros pensamentos e conhecimentos que podem
fortalecer o seu papel e enriquecer ainda a riqueza da sabedoria humana na sua diversidade.
Sem este reconhecimento de outras lógicas e racionalidades humanas, as universidades se
tornam ou continuam sendo espaços de violência cultural, cognitiva e epistêmica ou como
denomina Boaventura Souza Santos, Epistemicídio (SOUZA SANTOS, 2000).
No mundo atual liberal e globalizado, o predomínio da razão e a ruptura com a
natureza marca a imposição de uma dualidade radical próprias do pensamento moderno
europeu: natureza x cultura; sujeito x objeto; matéria x espírito; corpo x mente; razão x
emoção; indivíduo x sociedade; ser x pensamento, dentre outras.
Um novo universo intersubjetivo vai se impondo, pautado pelos princípios da
modernidade que, segundo Edgardo Lander, atuam como eixo articulador central dos
conhecimentos científicos, desenvolvidos e definidos por quatro pressupostos básicos: a ideia
de progresso; a naturalização das relações sociais e da natureza humana da sociedade liberal-
capitalista; a ontologização das múltiplas separações próprias dessa sociedade, e a
superioridade dos conhecimentos científicos dessa sociedade em relação aos outros saberes
(LANDER, 2000).
As ciências sociais ao adotarem essa referência universal da modernidade, deixando de
fora a natureza, impõem essa cosmovisão liberal não permitindo a existência de outras lógicas
e visões de mundo próprias e nem reconhecendo a sua contemporaneidade (LANDER, 2000;
PORTO-GONÇALVES, 2000). Pelo contrário, tendem a extinguir estas outras existências,
como tem acontecido com os povos indígenas, configurando-se o que Boaventura de Souza
Santos define como “epistemicídio”.

El privilegio epistemológico que la ciencia moderna se concede a sí misma es, pues,


el resultado de la destrucción de todos los conocimientos alternativos que podrían
venir a enjuiciar ese privilegio. En otras palabras, el privilegio epistemológico de la
ciencia moderna es producto de un epistemicidio. La destrucción del conocimiento
no es un artefacto epistemológico sin consecuencias, sino que implica la destrucción
de prácticas sociales y la descalificación de agentes sociales que operan de acuerdo
con el conocimiento enjuiciado (SOUZA SANTOS, 2000, p. 276).

R. Articul.const.saber, 2019,v.4: e59074


Instrumento de dominação étnica/racial, o epistemicídio é conceito retomado por Sueli
Carneiro que ressalta como este processo de destituição da racionalidade, da cultura e da
civilização do Outro se inicia no período colonial e se consolida no século XIX, controlando
mentes e corações, sendo uma “[...] forma de sequestro da razão em duplo sentido: pela
negação da racionalidade do Outro ou pela assimilação cultural que em outros casos lhe é
imposta [...]” (CARNEIRO, 2005, p. 97).
O conhecimento imposto e considerado como válido e verdadeiro legitima modos de
vida pautados pela exploração e dominação que são aceitos pela grande maioria como única
opção possível. Histórica e culturalmente se ensina a desconsiderar outros saberes,
desqualificar seus detentores, e reproduzir as opressoras dinâmicas sociais sem críticas, sem
referências para se buscar agir de outros modos.
Quem determina qual é o verdadeiro conhecimento? A quem ele serve? Até quando
seguiremos seguindo seus fundamentos? O modelo civilizatório da modernidade que se
apresenta como a única lógica possível vem sendo sustentado historicamente por todo o
aparato do Estado e suas instituições, incluindo a universidade.
A ideia de que a ciência é a única portadora ou produtora de verdade enfraquece e
complica muito a realidade dos povos indígenas. Por conta disso, os povos indígenas
precisam compreender bem o pensamento ocidental para não se tornarem meros
consumidores ou vítimas deles, mas também oferecer opções e alternativas de outros modos
de pensamento e de vida diferentes e, assim, ajudar a construir uma sociedade mais plural,
mais democrática, mais humana, mais intercultural e intercientífico. Precisamos pensar e
construir novas e outras universidades no Brasil e no mundo abertas ao mundo na sua
diversidade cultural, étnica, racial, cosmológica e ontológica.
A escola nos ajudou muito a compreender o mundo do branco, mas ajudou muito
pouco na compreensão da relação do mundo do branco com o mundo indígena. Tivemos que
aprender sobre essas relações históricas no percurso concreto da vida, muitas vezes de forma
sofrida, dramática. Hoje, o movimento indígena tem se enfraquecido em suas lutas e uma das
possíveis causas é pela incapacidade de fazer questionamentos sobre essas questões de fundo
que permitiriam buscas por respostas e processos novos de relações com o mundo extra-
aldeia. Realidades extra-aldeias que afetam diretamente e de forma irreversível a vida nas
aldeias.
O pensamento ocidental se considera autossuficiente e o único verdadeiro. O
pensamento indígena não. Este utiliza a ideia de complementariedade de pensamento, o que

R. Articul.const.saber, 2019,v.4: e59074


significa admitir a necessidade de outros pensamentos e a limitação do seu próprio
conhecimento. Por isso, vamos à busca dos conhecimentos científicos e de outros
conhecimentos do mundo. Nós, povos indígenas, entendemos a necessidade de
aperfeiçoamento constante de nossos conhecimentos que, aliás, é de ordem primordial, uma
vez que a missão mais nobre recebida por ocasião da criação do mundo e dos seres – dentre
eles, os humanos -, é o aperfeiçoamento do mundo criado, por meio do conhecimento.
Conhecimento este que vem da natureza e sobre a própria natureza.
A ideia e proposta de interculturalidade (WALSH, 2010) têm sido propagadas na
universidade, mas pouco praticadas ou vivenciadas. Processos de debates são ricos,
animadores, mas ainda necessitam levar em consideração o campo da espiritualidade, que
vem e está referenciada na natureza. No mundo atual globalizado, a espiritualidade está ligada
ao sobrenatural, ao transcendente, a Deus que está muito distante da compreensão humana,
portanto, não manejável. A espiritualidade indígena está ligada e é parte intrínseca do mundo
natural, imanente, e, portanto, manejável, por meio do conhecimento. Acessível em benefício
do homem e da natureza. Considerando essa perspectiva cosmológica, filosófica, ontológica e
epistemológica indígena a atual escola indígena e a universidade pluricultural necessitam ser
repensadas, ressignificadas e transformadas, pois ainda estão baseadas em conceitos
ocidentais, portanto, empobrecidas e fora da realidade concreta da diversidade cultural
humana e da própria natureza.
Nós, povos indígenas, devemos continuar buscando e lutando por espaços nas
universidades e uma vez dentro delas, buscar contribuirmos na sua necessária transformação
abrindo e garantindo espaços para outros pensamentos, conhecimentos e modos sustentáveis
de vida, e diminuindo ou mesmo eliminando os pensamentos etnocêntricos dominantes e as
práticas de epistemicídio (SOUZA SANTOS, 2000). É necessário compreender que para
romper barreiras dentro da universidade exige um longo caminho de luta para quebrar a
hegemonia do saber colonial e colonizador que já produziu tragédias humanas e naturais
demais para continuar incólume, não para negá-lo ou destruí-lo, mas para possibilitar a
continuidade de outros saberes, que ao longo de milhares de anos da história, possibilitaram o
desenvolvimento de complexas, ricas e grandiosas civilizações humanas em todos os
continentes do nosso belo planeta Terra.
Não se pode esquecer que isso tudo é uma luta política também, uma disputa de poder
não só pela força, mas também pelas ideias. Seria muito bom fazer mais trocas de
experiências entre nós, até para poder enfrentar o poder central de cada universidade. Não é

R. Articul.const.saber, 2019,v.4: e59074


mais possível admitir a subalternidade. Não se pode admitir que o mito seja subjugado a
irracional ou o poder dos homens e do mundo sobre a natureza. Para nós indígenas o poder,
enquanto capacidade de se estabelecer e fazer cumprir as regras no mundo, na natureza e na
vida está inexoravelmente nas mãos da natureza, na sua organicidade e diversidade e não nas
mãos das sociedades humanas, como a ciência política do mundo globalizado dominante, nos
quer fazer crer a partir da ideia de contrato social (ROUSSEAU, 1999).
O contrato de convivência e de governança global indígena não é apenas social, é
também, e, sobretudo, com o mundo, com a natureza, portanto, cósmico ou cosmopolítico.
Usamos a noção de cosmopolítico no sentido próprio de política do cosmo ou política que
engloba ou feita por todos os seres do cosmo. Mesmo quando o poder localizado está em
mãos humanas este depende da natureza, ou seja, o poder será limitado por ela. Nosso
contrato não é social, é cósmico, é com a natureza. De fato, por mais poderoso que possa
parecer um governante em sabedoria, riqueza, armas e soldados, este se inclina diante de uma
simples ação ou reação da natureza. Neste sentido, Stavenhagem nos lembra que em “contra
quinientos años del olvido, los indígenas desafiam ahora al mundo y a las ciências sociales
con um mundo em que quepan todos los mundos” (STAVENHAGEN, 2010, p. 27).

Considerações finais

É preciso pensar a educação escolar ou universitária de indígenas na perspectiva de


uma possibilidade ou capacidade de manejo do mundo que também implica na necessidade
de, a partir deste manejo cósmico, domesticar o mundo humano dominante e hostil da escola e
da universidade, do ponto de vista indígena. A arquitetura conceitual das ideias de manejo e
domesticação do mundo serve para sair da famigerada linha de pensamento dominante de
dualismo índio versus branco, conhecimento tradicional indígena versus conhecimento
científico, mundo indígena versus mundo do branco que, definitivamente, por um lado, não
representa o pensamento indígena na contemporaneidade, ainda que na sua heterogeneidade e
singularidade e, principalmente, não ajuda na construção de um horizonte intercultural do
mundo desejável.
O dualismo de oposição em si nos conduz ao fim trágico da história, pois não haveria
saída para os sujeitos diferentes da história, humanos e não humanos. Optamos por acreditar
que a humanidade e o mundo podem ter futuro sim nas suas e com as suas diversidades, sem,
portanto, negar nenhuma de suas partes, por mais simples que sejam. Os pensamentos

R. Articul.const.saber, 2019,v.4: e59074


indígenas e as ricas experiências existenciais que esses pensamentos genuínos dos nossos
ancestrais possibilitaram construir e viver ao longo de milhares de anos são provas
contundentes de que o capitalismo, o neoliberalismo e a teologia do desenvolvimentismo (des
ou anti)humano e (des ou anti)natureza não são de longe as únicas formas de existência e de
vida, nem hoje, nem nunca.
Pode ser utopia, mas o pensamento indígena alimentado pela possibilidade de
domesticação humana e cósmica pelo viés da sabedoria e da agencialidade da mãe natureza,
dá sentido e razão existencial para que os povos indígenas continuem suas lutas por seus
direitos à existência e à vida. Desse direito e valor, eles não estão dispostos a abrir mão, como
não abriram mão em nenhum momento durante os 519 anos de tentativas de dominação e
extermínio colonial. Esta perspectiva de protagonismo da natureza por meio do manejo e
domesticação pedagógica e filosófica do homem, talvez seja a única saída para o mundo
humano perdido em sua vaidade, ambição, arrogância e traição, a quem o possibilitou existir,
a natureza, tão maltratada em nossos tempos.
Concluo esta comunicação com o pensamento muito oportuno de Souza Lima:

Educação para manejo do mundo é, sobretudo, uma prova de que do árduo processo
de domesticação podem-se afirmar a independência do pensar e novas bases para a
ação transformadora (SOUZA LIMA, 2013, p. 17).

Referências bibliográficas

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser.
Feusp, 2005.

ESCOBAR, Arturo. O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou pós-


desenvolvimento? En libro: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais.
Perspectivas latino-americanas. Edgardo Lander (org). Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad
Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005. p. 133-168.

LANDER, Edgardo (editor). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales.


Buenos Aires: Unesco/Clacso/Faces UCV, 2000.

LEVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papyrus, 1989.

LUCIANO, Gersem dos Santos. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos
indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

R. Articul.const.saber, 2019,v.4: e59074


LUCIANO, Gersem J. dos Santos. A educação como manejo do mundo: entre a escola ideal e
a escola real. Rio de Janeiro: Contracapa; Laced, 2013.

MACAS, Luis. Sumak Kawsay: la vida en plenitud. In: América Latina en movimiento nº
452. Fevereiro de 2010.

MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de


identidade em política. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade,
n. 34, p. 287-324, 2008.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias


sociales. Presentación a la edición brasileña. Buenos Aires: Unesco/Clacso/Faces UCV, 2000.

ROUSSEAU, J-J. O contrato social. In: Oeuvres completes, tome III. Collection “Pléíade”.
Paris: Gallimard, 1757.

ROUSSEAU, J-J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os


homens. São Paulo: Nova Cultural, 1999;

SOUZA LIMA, Antônio Carlos. A domesticação do mundo. Prefácio do Livro A educação


como manejo do mundo: entre a escola ideal e a escola real, de LUCIANO, Gersem J. dos
Santos. Rio de Janeiro: Contracapa; Laced, 2013.

SOUZA SANTOS, Boaventura. Crítica de la razón indolente. Contra el desperdício de la


experiencia. Vol. 1. Para un nuevo sentido común: la ciencia, el derecho y la política en la
transición paradigmática. Palimpsesto Derechos Humanos y Desarrollo. 2000.

STAVENHAGEN, Rodolfo. Repensar América Latina desde la subalternidad: el desafío de


Abya Yala In: Los pueblos originarios: el debate necessário. Compilado por Norma
Fernández. - 1a ed. - Buenos Aires: CTA Ediciones: CLACSO: Instituto de Estudios y
Formación de la CTA, 2010.

WALSH, Catherine. Interculturalidad crítica y educación intercultural. In: Construyendo


Interculturalidad Crítica. La Paz: III – CAB, 2010.

Submetido em 17 de junho de 2019.


Aceito em 05 de agosto de 2019.
Publicado em 05 de agosto de 2019.

R. Articul.const.saber, 2019,v.4: e59074

Você também pode gostar