Vida Ao Extremo

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VIDA AO EXTREMO

A magnífica versatilidade da vida microbiana


em ambientes extremos da Terra

Capítulo 8
Rubens T. D. Duarte, Catherine G. Ribeiro e Vivian H. Pellizari

Introdução
Os 3,8 bilhões de anos nos quais a vida se desenvolveu em
nosso planeta forjaram um amplo espectro funcional da vida mi-
crobiana, permitindo-a ocupar nichos considerados inabitáveis
para a vasta maioria de outros seres vivos. A afinidade pelo extre-
mo faz de alguns micro-organismos terrestres importantes alvos no
estudo da astrobiologia, pois refletem a plasticidade da vida nos
mais diversificados e inóspitos ambientes.

Micro-organismos, os colonizadores do planeta


O escopo da astrobiologia figura-se mais vasto do que a pro-
cura por seres inteligentes e capazes de desenvolver ferramentas
avançadas. A busca por vida extraterrestre baseia-se principalmen-
te na prospecção de formas mais simples, que dominaram a his-
tória da evolução da vida na Terra: os micro-organismos. A diver-
sidade metabólica e a capacidade de propagação conferiram aos

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ASTROBIOLOGIA – Uma Ciência Emergente

seres microscópicos unicelulares uma longa existência em nosso


planeta. A origem da vida na Terra teve início pouco tempo depois
de sua formação, quando o planeta ainda era um corpo recém-so-
lidificado. Porém, quais são os fatores que permitem a existência
de vida ou a habitabilidade de um planeta? A resposta para essa
pergunta ainda não é conhecida, no entanto, é o alvo prioritário da
astrobiologia. Através do estudo dos ambientes extremos da Terra
podemos vislumbrar as fronteiras para a ocorrência e propagação
da vida em ambientes extraterrestres e sondar a incrível complexi-
dade e o poder de sua adaptação.

Extremófilos
Em 1964, o microbiologista norte-americano Thomas Brock
fez uma descoberta que mudou o conceito de vida: ele observou
micro-organismos sobrevivendo ao redor de gêiseres do Parque
Nacional do Yellowstone (eua) que lançavam água a 82 °C, uma
temperatura muito acima da tolerância dos seres vivos. Mais tarde,
em 1967, Brock publicou os resultados de sua pesquisa descre-
vendo que o micro-organismo, identificado como uma arqueia e
batizada de Thermus aquaticus, não apenas tolerava altas tempera-
turas, mas também exigia essa temperatura para crescer. Passamos,
então, a conhecer um novo grupo de seres vivos – os extremófilos.
Muitos pesquisadores começaram a explorar diferentes ambientes
à procura de vida, muitos dos quais considerados até então inóspi-
tos por serem ambientes extremos.
O conceito ecológico de ambiente extremo está intrinseca-
mente atrelado ao conceito humano de habitabilidade. Uma am-
pla gama de ambientes com extremos de calor, frio, pH, salini-
dade, pressão e radiação são dominados por micro-organismos,
cuja divergência genética manifestada em diferenciação metabó-
lica possibilitou a ocupação de nichos considerados improváveis.
Esses ambientes podem ser característicos de exoplanetas com po-
tenciais chances de abrigar vida, mesmo que suas condições am-
bientais sejam diferentes das condições medianas do planeta Terra.
Atualmente, podem ser encontrados em cultura representantes de

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todas as classes de extremófilos, entre elas, organismos termofíli-


cos, hipertermofílicos, psicrofílicos, acidofílicos, alcalifílicos, ba-
rofílicos e halofílicos.

Uma canção de gelo e fogo


As estratégias microbianas para suportar ambientes extrema-
mente quentes ou frios estão entre os principais assuntos estu-
dados pela astrobiologia. Existem na Terra inúmeros ambientes
quentes que normalmente estão associados a atividades vulcâ-
nicas. Fontes termais, gêiseres, e mesmo o interior de vulcões já
foram explorados e uma ampla diversidade de micro-organismos
foi encontrada sobrevivendo em altas temperaturas, denomina-
da termofílica. Muitas bactérias, arqueias e fungos adaptados ao
calor extremo conseguem sobreviver nesses ambientes a partir
de uma série de adaptações de suas proteínas e estrutura celular,
moldadas durante milhões de anos pela evolução. Estudos indi-
cam que o provável ancestral de todos os seres vivos tenha sido
uma célula adaptada ao calor extremo, uma vez que 3,8 bilhões
de anos atrás a Terra tinha um cenário quase inóspito – muito
calor, vulcanismo e diferente composição atmosférica. Uma das
mais fortes evidências para a origem da vida em altas temperatu-
ras é a ocorrência de micro-organismos adaptados ao calor nos
ramos mais profundos da atual árvore filogenética: muito prova-
velmente todos os seres vivos compartilham uma origem no calor.
A descoberta recente de uma ampla gama de organismos ha-
bitando a crosta oceânica surpreendeu ao revelar vida em abun-
dância onde previamente não se acreditava haver grande diversi-
dade. Pesquisadores encontraram atividade biológica em rochas
denominadas gabroicas (1.391 metros de profundidade) da crosta
oceânica do Atlântico, responsáveis pela maior porção do leito
oceânico, nas quais podem ser observadas temperaturas próximas
ao ponto de fervura da água (Mason et al., 2010). Genes relativos
a processos metabólicos como fixação de nitrogênio e carbono fo-
ram observados. Nesse estudo, a relação entre micro-organismos
habitando ecossistemas de alta temperatura e pressão no interior

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de rochas e o ciclo do metano ganhou destaque por causa da cor-


relação com a prospecção de vida em Marte. O planeta vermelho
tem metano concentrado em algumas regiões equatoriais da at-
mosfera, sendo considerado de fonte geológica, podendo compor-
tar micro-organismos consumidores desse elemento.
As condições extraterrestres caracterizadas pelo frio extre-
mo (calotas polares marcianas ou corpos cobertos por gelo,
como Europa, no sistema jupiteriano) também podem ser in-
vestigadas a partir de ecossistemas da Terra (Figura 8.1). Para
tanto, cientistas analisam ambientes como neve e gelo glacia-
res da Antártica como análogos desses possíveis nichos extra-
terrestres. Uma grande variedade de micro-organismos já foi
encontrada nesses ambientes, muitos dos quais são capazes de
tolerar temperaturas próximas ao grau de congelamento, assim
como baixos níveis de oxigênio, e de crescer na total ausên-
cia de substrato orgânico. Esses micro-organismos adaptados
ao frio, também chamados de psicrofílicos, são alvos de mui-
tas pesquisas em astrobiologia. Pesquisadores do Oregon (eua)
conseguiram reproduzir em laboratório um ambiente análogo
à gelada subsuperfície marciana, onde micro-organismos fo-
ram capazes de sobreviver usando apenas a oxidação do ferro
presente na rocha ígnea olivina (Popa et al., 2012). Tal com-
paração tem suporte no fato de que dados científicos prove-
nientes de satélites e análises diretas identificaram o mesmo
mineral em rochas de Marte.
Bactérias foram descobertas sobrevivendo em um dos ambien-
tes mais inóspitos do planeta: cerca de 3.000 m de profundida-
de no interior do manto de gelo da Groenlândia e da Antártica
(Miteva; Brenchley, 2005; Christner et al., 2006). As condições ex-
tremas dentro do gelo incluem temperaturas muito abaixo de 0 °C,
ausência de luz, baixa ou nenhuma concentração de oxigênio,
altas pressões, e baixa disponibilidade de água líquida – uma vez
que quase toda a água ali está na forma sólida. A origem e as
estratégias de sobrevivência desses micro-organismos no gelo ain-
da intrigam os cientistas.

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Figura 8.1. Calota de gelo do planeta Marte (Nasa). Fonte: Nasa/jpl-Caltech/


MSSS

Ambientes de frio extremo ainda possuem outra característica


de grande importância para a astrobiologia: temperaturas abaixo
de zero são capazes de preservar o material biológico como pro-
teínas, carboidratos, lipídeos, pigmentos, dna e até mesmo células
vivas ou em estado de dormência. Essas condições são típicas de
ambientes polares, principalmente no interior de geleiras ou em
solos chamados permafrost, um tipo específico de sedimento que
fica milhares ou até milhões de anos com a temperatura constan-
temente abaixo de zero. Pesquisadores já relataram uma grande
diversidade de micro-organismos dentro do permafrost. Algumas
dessas células foram capazes de crescer em culturas de labora-
tório, sendo as mais antigas encontradas em depósitos congela-
dos há 3 milhões de anos na Sibéria e há 5 milhões de anos na
Antártica (Rodrigues et al., 2006; Gilichinsky et al., 2008).
As biomoléculas, em teoria, podem ser preservadas por um
período ainda maior. Em um estudo conduzido por pesquisadores

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brasileiros da Universidade de São Paulo (usp) em colaboração


com cientistas da Academia de Ciências da Rússia, amostras de
permafrost da Sibéria e da Antártica foram avaliadas quanto à taxa
de preservação do dna (Duarte, 2010). Nesse estudo, os pesqui-
sadores conseguiram detectar moléculas de dna preservadas em
amostras congeladas de até 8,1 milhões de anos atrás. Esses li-
mites de longevidade são importantes ao considerar que outros
corpos do Sistema Solar têm solos como o permafrost, expandindo
as possibilidades de se encontrar vida em ambientes muito abaixo
de zero grau.

Barofílicos – a vida nas profundezas dos oceanos


A biosfera de profundidade é representada por organis-
mos que prosperam em altas pressões (também conhecidos
por barofílicos), além da ausência de luz, falta de oxigênio
e pouco suprimento de nutrientes. Embora esse ecossiste-
ma tenha sido estudado apenas recentemente, algumas des-
cobertas atestam sua importância para os ciclos globais do
carbono. Estima-se que os micro-organismos presentes nes-
ses locais contabilizem 90 bilhões de toneladas de carbono,
cerca de 1/10 do carbono estocado por todas as florestas
tropicais do planeta.
No início, mesmo incapazes de distinguir células vivas de
células mortas, os cientistas observaram que o sedimento ma-
rinho abrigava uma imensa quantidade de micro-organismos e
um cálculo estimava que mais da metade da microbiota terres-
tre habita o fundo do mar (Kallmeyer et al., 2012). Bactérias,
arqueias e fungos dos mais variados grupos taxonômicos fo-
ram identificados, sendo grande parte adaptada a sobreviver em
temperaturas frias (em média, a temperatura da água marinha
nessa profundidade é de cerca de 2 ºC) e a pressões 300 vezes
acima da pressão atmosférica no nível do mar. Realizar meta-
bolismo nessas condições é uma tarefa árdua, principalmente
por causa da pouca disponibilidade de nutrientes (carbono, ni-
trogênio e fósforo).

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VIDA AO EXTREMO

Entretanto, dados recentes indicam que grande parte do car-


bono no fundo do oceano circula por causa dos vírus. Um gru-
po de oceanógrafos da Universidade Politécnica de Marche, na
Itália, estudou 232 amostras de sedimento marinho e concluiu
que os vírus têm papel-chave na circulação de carbono do ocea-
no, liberando até 630 milhões de toneladas de carbono que são
sequestradas por micro-organismos à medida que afundam até as
profundezas do mar (Danovaro et al., 2008). Os vírus promovem
uma espécie de mecanismo autossustentável, que é responsável
tanto pela morte quanto pelo crescimento dos outros micro-orga-
nismos marinhos.
Mesmo depois dessas descobertas, o debate sobre a habita-
bilidade das profundezas ainda não foi totalmente solucionado.
Um estudo conduzido por pesquisadores no âmbito do progra-
ma internacional de pesquisa marinha iodp (Integrated Ocean
Drilling Project) começou a montar esse complexo quebra-ca-
beça. Eles estudaram amostras de sedimentos marinhos coleta-
das até 400 m no fundo do oceano, que datavam de 16 milhões
de anos atrás (Schippers et al., 2005). Os cientistas utilizaram
métodos de biologia molecular baseados na detecção de mo-
léculas de rna de bactérias. Essa molécula participa da síntese
de proteínas nas células e, como é rapidamente degradada no
ambiente, sua presença pode indicar células metabolicamente
ativas. A equipe de pesquisadores detectou uma grande quan-
tidade de moléculas de rna nesses sedimentos, e os resultados
indicam que entre 10 e 30% dos micro-organismos das profun-
dezas estão vivos.

Vida em baixas umidades e altas salinidades


Os solos dos locais mais áridos da Terra, como os Dry
Valleys na Antártica e o deserto do Atacama, no Chile, são pal-
co de estudos sobre uma das questões primordiais da astrobio-
logia: a necessidade de água para o desenvolvimento da vida
(Figura 8.2). Um dos pontos de maior interesse é a análise da
atividade metabólica da biota presente nesses locais, ou seja,

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como os organismos presentes estão ativamente interagindo


com seu ambiente e prosperando nas baixas umidades dessas
regiões. Uma das chances para o desenvolvimento de ativida-
de microbiana seria o lapso de tempo quando a interface en-
tre solo árido e lama congelada derretem durante o verão, por
exemplo, nos Dry Valleys. Nessa época, finas camadas de água
líquida podem se formar entre os grãos de areia. Tal efeito não
poderia ser observado nas atuais características ambientais de
Marte. Porém, o passado pode ter tido uma história diferente.
Atualmente, o eixo de rotação marciano encontra-se bastante
próximo ao da Terra. Entretanto, há 5 milhões de anos, seu eixo
apresentava-se inclinado 45°, de modo que as regiões polares
recebiam luz solar constante durante boa parte do ano, sen-
do possível uma pequena janela para a existência de água na
forma líquida, como acontece nos ambientes áridos do nosso
planeta.
O deserto do Atacama também apresenta outra característica
propícia a certos organismos extremófilos: ambientes hipersali-
nos. Organismos halofílicos enfrentam desafios principalmen-
te relacionados à desidratação e ao estresse osmótico. Com o
intuito de contrabalancear a força osmótica promovida por um
ambiente hipersalino, a maior parte desses organismos desen-
volve estratégias de síntese de protetores osmóticos. Estes são
compostos solúveis orgânicos que contribuem para o potencial
de solubilidade, mas não rompem biomoléculas como fazem os
sais inorgânicos. Cientistas observaram, no solo chileno, uma re-
lativa alta diversidade microbiana proliferando na ausência de
luz do sol ou oxigênio, a cerca de dois metros de profundidade
(Parro et al., 2011). Esses locais são formados por compostos hi-
groscópicos, ou seja, com tendência a absorver a umidade do
ar, condensando a pouca umidade na superfície dos cristais de
sal. Essa descoberta foi realizada utilizando-se a ferramenta Solid
(Detector de Sinais de Vida, em português), um instrumento do-
tado de biochip para a análise de presença de açúcares, dna e
proteínas, projetado para futuras missões a Marte.

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Figura 8.2. Dry Valleys, na Antártica, um dos desertos mais secos da Terra.
Fonte: Nasa/gsfc/meti/ersdac/jaros e u.s./Japan aster Science Team

Resistência à radiação
Embora a maioria das espécies existentes na atualidade ne-
cessite de um escudo para a radiação solar de alta energia, alguns
micro-organismos são capazes de suportar e proliferar em altos
níveis de radiações ultravioleta e ionizante. A bactéria de solo
Bacillus subtilis detém o recorde de seis anos de sobrevivência no
espaço (Horneck; Bücker; Reitz, 1994; Wassmann et al., 2012).
Outra bactéria, denominada Deinococcus radiodurans, é consi-
derada um dos seres vivos mais resistentes à radiação ionizante.
Essa bactéria de pigmento laranja-avermelhado foi descoberta
por acaso em 1956, quando a indústria começou a usar radiação
gama para esterilizar comida enlatada. Doses mil vezes maiores
que a dose capaz de matar seres humanos não causam efeito letal
nessa bactéria.
A pesquisa envolvendo resistência em níveis consideráveis de ra-
diação também está correlacionada às questões sobre panspermia e
à possibilidade de micro-organismos sobreviverem a longas viagens

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ASTROBIOLOGIA – Uma Ciência Emergente

de asteroides, servindo como colonizadores em diferentes sistemas


planetários. Testar essa hipótese é extremamente complicado, pois,
inicialmente, precisaríamos encontrar vida em algum planeta e
posteriormente compará-la com a terrestre. No entanto, um estudo
conduzido por brasileiros da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(ufrj) em conjunto com pesquisadores argentinos da Universidade de
Buenos Aires (uba), revelou dados surpreendentes (Abrevaya et al.,
2011). A equipe de cientistas testou a possibilidade de sobrevivên-
cia de micro-organismos extremófilos a uma viagem interplanetária
simulada em laboratório, principalmente quanto à resistência das cé-
lulas em ultravácuo e ao espectro completo de radiação ultravioleta.
Entre os micro-organismos testados havia, evidentemente, a bacté-
ria recordista de sobrevivência D. radiodurans (Figura 8.3), além de
duas espécies de arqueias halofílicas Natrialba magadii e Haloferax
volcanii. Essas haloarqueias, como também são conhecidas, são or-
ganismos modelos para habitabilidade em astrobiologia, não apenas

Figura 8.3. Fotografia em microscopia eletrônica da bactéria radiotolerante


Deinococcus radiodurans. Fonte: Latin stock

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VIDA AO EXTREMO

por serem capazes de sobreviver em ambientes com alta salinidade


(o solo de Marte, por exemplo), mas também por sua habilidade de
crescer em extremos de temperatura, pH e radiação. O experimento
mostrou que, enquanto as células de H. volcanii foram totalmente
destruídas, cerca de 0,1 a 1% das populações de N. magadii e D.
radiodurans resistiram ao estresse causado por alto-vácuo (10-5 Pa) e
altas doses (1350 J.m-2) de radiação uv de alta energia, quase na faixa
do raio X.
Porém, não só bactérias podem sobreviver ao inóspito ambiente
espacial: liquens também têm essa característica. Em um experimen-
to realizado no laboratório orbital Columbus, da Estação Espacial
Internacional (iss, na sigla em inglês), a espécie de líquen Xanthoria
elegans foi capaz de suportar radiação cósmica, uv, o vácuo e tem-
peraturas variáveis (Sancho et al., 2007; Onofri et al., 2012). Nesse
experimento, um total de 664 amostras biológicas e bioquímicas foi
exposto às condições espaciais por cerca de 18 meses.

Acidofílicos e alcalifílicos
Micro-organismos vivos também proliferam em pH extremos
e muitas vezes requerem ambientes extremamente ácidos ou alca-
linos para apresentarem atividade metabólica. O pH tem uma gra-
dação logarítmica de 0 a 14 e mede a concentração de íons H+ em
solução. A maior parte dos processos biológicos no planeta Terra
tende a acontecer na porção mediana da escala. Os micro-orga-
nismos acidofílicos (adaptados ao ácido, ou pH abaixo de 5,0) e
os alcalifílicos (adaptados à alcalinidade, com pH acima de 9,0)
não têm muito em comum, a não ser o fato de serem extremófilos.
São organismos de grupos diferentes, que evoluíram com adapta-
ções distintas. Entre os amantes do ácido, a arqueia Picrophilus é
considerada a espécie mais acidofílica já encontrada, isolada de
solos vulcânicos do Japão, tendo um crescimento ótimo em pH
0,7 – algo entre um ácido de bateria veicular e o ácido sulfúrico
(Schleper et al., 1995). Embora solos ácidos sejam abundantes em
nosso planeta, ambientes alcalinos são particularmente difíceis de
serem encontrados e são representados principalmente por áreas

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geotermais, solos ricos em carbonato e alguns lagos alcalinos. A


bactéria Bacillus alcalophilus, por exemplo, sobrevive em lagos al-
calinos de pH acima de 10 (Ntougias et al., 2006). Organismos
que vivem em extremos de pH são importantes modelos para es-
tudos de metabolismo microbiano, pois as estratégias para obter
energia são particularmente dependentes da diferença do pH den-
tro e fora da célula. Dessa forma, acidofílicos e alcalifílicos podem
dar pistas importantes para a astrobiologia, indicando possíveis al-
ternativas para o metabolismo energético em ambientes extremos
fora da Terra.

A caixa-preta biológica
A prospecção pela existência de vida fora da Terra pode en-
contrar barreiras dentro da pesquisa biológica convencional. Uma
das questões que desafiam a microbiologia ambiental é a chama-
da Caixa-Preta Biológica (ou Biosfera Oculta), que representa o
desconhecimento da maior porção da microbiota que nos cerca.
Esse fenômeno decorre das limitações de cultivo de micro-orga-
nismos in vitro: a ciência ainda não é capaz de simular todas as
condições necessárias para o crescimento de muitas espécies de
micro-organismo. Estima-se que menos de 1% da biodiversidade
microbiana já tenha sido cultivada em laboratório. Isso é ainda
mais crítico ao se tratar de extremófilos, pois pouco conhecemos
sobre sua biologia. Em termos práticos, essa impossibilidade de
cultivo gera problemas na análise do metabolismo e função eco-
lógica dos micro-organismos, deixando vagas as inferências sobre
o papel deles em seus respectivos ambientes. As técnicas mole-
culares têm ajudado muito a preencher essas lacunas e detectam
e identificam sequências de dna específicas de micro-organismos
em qualquer amostra ambiental, independentemente se estiverem
dentro de células vivas, mortas ou em estado de dormência. Desde
que foram estabelecidas, em meados da década de 1980, muitos
grupos novos de micro-organismos foram descobertos através des-
ses métodos. Com técnicas cada vez mais sofisticadas, como o
sequenciamento de genoma de células únicas, utilizando-se dna

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VIDA AO EXTREMO

extraído de células isoladas, assim como as análises de proteoma e


transcriptoma, a biologia molecular é uma das grandes potenciali-
zadoras da pesquisa astrobiológica. Um exemplo dessa pesquisa é
o estudo do genoma e transcriptoma da bactéria Exiguobacterium
antarcticum B7. Essa bactéria, que pode crescer em ampla faixa
de temperatura (20 a 41 °C), foi isolada pelos pesquisadores do
Instituto Oceanográfico (io-usp) na Antártica, em um projeto com
pesquisadores da rede genômica da Universidade Federal do Pará
(ufpa). Como resultado, eles descreveram quais genes da bactéria
são expressos em temperatura de 0 °C e quais são responsáveis
pela resistência da bactéria ao frio.

Os segredos enterrados na Antártica


O lago Vostok, na região oeste da Antártica, é um dos ambien-
tes mais misteriosos já identificados. Trata-se de um lago subgla-
cial, isto é, coberto por uma camada de gelo de aproximadamente
3,6 km de espessura. Apesar disso, a água do lago permanece no
estado líquido. Os cientistas especulam que talvez haja uma fonte
de água termal no leito do Vostok, similar aos gêiseres e fontes hi-
drotermais de oceano profundo. Calcula-se que o lago está isolado
da atmosfera desde a formação do manto de gelo antártico, que
se iniciou há 30 milhões de anos. Desde que foi descoberto em
meados da década de 1960, os cientistas levantam questões sobre
a existência de vida no lago Vostok e, em caso positivo, surge a
pergunta: que formas os seres de lá tomaram após milhões de anos
evoluindo independentemente da biosfera terrestre? A resposta po-
deria ser alcançada da forma mais simples – indo até lá e coletan-
do amostras do lago. Cientistas russos começaram as perfurações
alguns anos após sua descoberta, mas foi interrompida em janeiro
de 1998 por pressão da comunidade científica, que exigia cuida-
dos adicionais nos métodos de perfuração para evitar a contami-
nação do lago com micro-organismos externos. Mais de 10 anos
depois, com a questão ambiental resolvida, os russos continuaram
a perfuração e, em 5 de fevereiro de 2012, concluíram um dos
feitos mais extraordinários e complexos da ciência: alcançaram o

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lago Vostok, 3.769 m abaixo do gelo antártico. As amostras do lago


estão sob análise, e o grande mistério da vida em um dos últimos
lugares inexplorados da Terra está sendo resolvido (Figura 8.4).
Bactérias e outros micro-organismos já foram detectados (e
cultivados) a partir de testemunhos de gelo coletados durante a
perfuração do lago (Shtarkman et al., 2013). Muitas delas mostra-
ram-se organismos psicrofílicos, ou seja, extremófilos adaptados
a ambientes frios e capazes de sobreviver a temperaturas abaixo
de 0 °C. Isso não significa, necessariamente, que há vida no inte-
rior do misterioso lago, mas já é um grande achado a descoberta
de micro-organismos sobrevivendo sob 3,6 km de gelo antártico.
Entretanto, outra descoberta chamou mais a atenção: na interface
entre o lago e o manto de gelo antártico, há um tipo de gelo es-
pecífico chamado de gelo de acreção, ou seja, a água do próprio
lago que congelou quando em contato com a geleira. Essa cama-
da de gelo contém, portanto, evidências do que há no interior do
lago. Através de métodos moleculares, uma equipe de cientistas
europeus encontrou preservada no gelo de acreção moléculas de
dna similares ao da Hydrogenophilus thermoluteolus, uma bacté-
ria termofílica que só é encontrada nas ferventes fontes hidroter-
mais oceânicas (Lavire et al., 2006). Embora a bactéria não tenha
sido isolada e cultivada, os cientistas consideram o achado como
uma forte evidência de que haja um sistema geotermal no leito do
lago, que mantém sua água em estado líquido.
Os segredos do lago Vostok são preciosos para a astrobiolo-
gia porque o lago subglacial é considerado como um ambiente
análogo ao da lua Europa, uma das quatro luas descobertas em
1610 por Galileu Galilei ao apontar o telescópio para o planeta
Júpiter. Europa é uma lua formada por um núcleo rochoso, similar
ao da Terra, composto de silicato e ferro. Sua superfície é formada
por uma camada de 100 km de gelo e uma tênue atmosfera rica
em oxigênio. Abaixo do gelo, os cientistas apontam a existência
de um vasto oceano de água líquida e salgada, de volume quase
duas vezes maior que os oceanos da Terra. Essa configuração é
muito similar à do lago Vostok – um grande corpo de água líquida

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isolado da atmosfera por uma espessa camada de gelo. Se a vida


for confirmada no Vostok, os cientistas poderão utilizá-la como
modelo para uma possível vida extraterrestre em Europa.

A partir de 1967, a estação Vostok perfurou


Idade do
cinco poços de diferentes profundidades
gelo, em
Diâmetro
milhares
do poço
de ano

Broca
térmica

Broca
eletromecânica

O poço tem 3.769 m de profundidade.


É o mais fundo já perfurado em gelo.

Figura 8.4. Perfil da perfuração do Lago Vostok, na Antártica. Fonte: Sputnik/


Ria Novosti/Glow Images

Sondar os limites em que a vida prolifera na Terra pode forne-


cer informações importantes sobre as probabilidades de encontrá-
-la em ambientes extraterrenos. Sendo assim, estudar ambientes
extremos de nosso próprio planeta ajuda a entender a variabilida-
de metabólica e o poder de adaptação de organismos a diferentes
gradações ambientais, definindo fronteiras de habitabilidade para
as formas de vida que conhecemos.

Referências
Abrevaya, X. C. et al. Comparative survival analysis of Deinococcus
radiodurans and the Haloarchaea Natrialba magadii and
Haloferax volcanii, exposed to vacuum ultraviolet irradiation.
Astrobiology, v. 11, p. 1034-1040, 2011.

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