Da Desconsideracao Da Pessoa Juridica A
Da Desconsideracao Da Pessoa Juridica A
Da Desconsideracao Da Pessoa Juridica A
desconsiderada
por
Rodrigo Xavier Leonardo
Professor adjunto de Direito Civil nos cursos de graduação e pós-gradação em Direito da UFPR
Mestre e Doutor em Direito Civil pela USP
I. Introdução
Não é por outra razão que a chamada teoria geral do direito civil,
cujas bases fundantes são lançadas nesse mesmo período, adota por
sustentáculo as figuras do direito subjetivo e do sujeito de direito. Todo
o direito seria concebido para a potencial titularidade de um abstrato
e formal sujeito individual, atomizado, apartado dos demais5.
4
HESPANHA, António Manuel. História das instituições: épocas medieval e moderna. Coimbra: Almedina,
1982. p.210; HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica européia. Síntese de um milénio.
Florianópolis: Fundação Boitex, 2005. p.101; GROSSI, Paolo. L'ordine giuridico medievale. 10.ed. Roma:
Laterza, 2003. p.75 e seguintes.
5
ORESTANO, Riccardo. Il <problema delle persone giuridiche> in diritto romano. Torino: Giappichelli,
1968. t.1. p. 17 e seguintes). Sobre o assunto, conferir também, GIERKE, Otto. Political theories of the
middle age. Trad. Frederic William Maitland. Boston: Beacon Press, 1958. p.67 e seguintes; PEPPE, Leo
(Org.). Persone giuridiche e storia del diritto. Torino: Giapichelli, 2004. p.89 e seguintes.
vontade geral, que não haja no Estado sociedade parcial e que cada
cidadão só opine de acordo consigo mesmo"6.
6
ROUSSEAU, Jean‐Jacques. Do contrato social. Trad. Lourdes Santos Machado. 5.ed. São Paulo: Nova
Cultural, 1991. p.47. (Coleção Os pensadores).
7
FERRARA, Francesco. Teoria delle persone giuridiche. 2.ed. riveduta. Napoli : Marghieri, 1923; KELSEN,
Hans. Teoria pura do direito. 4.ed. Trad. João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado, 1976..
8
CORRÊA DE OLIVEIRA, José Lamartine. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo : Saraiva, 1979.
Tratamos da perspectiva teórica desse autor em outra oportunidade, cf. LEONARDO, Rodrigo Xavier.
Revistando a dupla crise da pessoa jurídica. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo. Questões
controvertidas: direito de empresa. v.8. São Paulo : Método, 2010, p.45.
jurídica, a sua criação e o seu desenvolvimento não dependeriam de
um elevado nível de institucionalização, mediante diferenciação e
autonomização daqueles que lhe constituíram. Bastaria uma
adequação formal aos requisitos legais para o seu surgimento, ainda
que no plano da realidade social verdadeiramente se mantivesse uma
indistinção entre a entidade criada e o seu criador.
9
Grifos nossos, CORRÊA DE OLIVEIRA, J. Lamartine. Conceito de pessoa jurídica, p.164.
Este substrato ontológico surgiria a partir de um processo de
institucionalização, mediante um elevado nível de organização e
expressão autônoma da entidade personificada em relação aos seres
humanos que lhe deram sustentação. Daí, em linhas gerais, a
concepção ontológica-institucionalista defendida pelo autor.
10
Para um panorama geral da escola institucionalista francesa, conferir, dentre outros, GRESSAYE, Jean
Brèthe de la. The sociological theory of the institution and french juristic thought. In: BRODERIK, Albert.
The french institucionalists: Maurice Hariou, Georges Renard, Joseph T. Delos. trad. Mary Wlling.
Massachusetts : Harvard University Press, 1970, p.15 et seq.
11
Para Hariou: “una istituzione è una idea di opera o di intrapresa, che si realizza e dura giuridicamente
in un ambiente sociale; per la realizzazione di tale idea, si organizza un potere che la fornisce di organi;
d’altra parte, tra i membri del grupo sociale che è interessato alla realizzazione dell’idea si attuano
manifestazioni comunitarie, dirette dagli organi del potere regolate da procedure” (HARIOU, Maurice.
Teoria dell’istituzione e della fondazione. Milano : Giuffrè, 1967, p.12).
12
RENARD, Georges. Les degrés de l’existence institutionnelle. In: La théorie de l’institution: essai
d’ontologie juridique. Paris : Sirey, 1930, p.225.
e Delos13, identificando-se, também, com as correntes filosóficas
jusnaturalistas católicas, mormente com a doutrina social da igreja.
13
DELOS, J,‐T. La théorie de l’Institution. La solution réaliste du problème de la personnalitè morale et le
droit à fondement objectif. Archives de philosophie du droit et de sociologie juridique. n.º 1‐2, Cahier
double, Recueil Sirey, 1931, p.99.
14
SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da personalidade. São Paulo : Revista dos Tribunais.
15
CORRÊA DE OLIVEIRA, J.Lamartine. Conceito de pessoa jurídica, p.165. A respeito da substancialidade
da pessoa humana e de sua projeção em uma reconstrução da noção de subjetividade no direito, cf.
GEDIEL, José Antônio Peres. Os transplantes de órgãos e a invenção moderna do corpo. Curitiba :
Moinho do Verbo, 2000, p.46 e seguintes.
16
Grifos no original, CORRÊA DE OLIVEIRA, José Lamartine; MUNIZ, Francisco José Ferreira. O Estado de
direito e os direitos da personalidade. Revista dos tribunais. a.69, v.532, fev. de 1980, p.16.
17
Sobre a perspectiva metodológica no institucionalismo francês, cf. ENPC LATTS, Gilles Jeannot. Les
associations, L’Etat et la théorie de l’institution de Maurice Hariou. Les annales de la recherche urbaine.
n.º89, juin 2001, p.19.
alcançaria uma elevada institucionalização ao redor de uma idéia de
atuação (l’idée d’ouvre) 18.
18
Registre‐se, no entanto, que J. Lamartine Corrêa de Oliveira, a despeito de reconhecer a importância
do pensamento de Maurice Hariou, tece críticas severas ao idealismo platônico desse autor, que
identificava numa idéia de obra (l´idée d’ouvre) o elemento essencial para a constituição de uma
instituição: “A noção que possui a respeito das ‘idéias’ é demasiadamente platônica e, o que há em tal
concepção de platonismo, é inaceitável e grandememente responsável por boa parte das resitências
opostas à aceitação de sua doutrina. Para êle, as idéias são objetivas desde sua origem. São encontradas
por homens inspirados (...)” (CORRÊA DE OLIVEIRA, J. Lamartine. Conceito de pessoa jurídica, p.132).
permitissem essa autonomia, tal como ocorreria, no direito alemão,
entre a pessoa jurídica e a Gesamthandgemeinschaft19.
22
Dentre os autores portugueses, pode‐se mencionar, apenas como exemplo, duas obras monográficas
que dialogam intensamente com J. Lamartine Corrêa: CORDEIRO, António Menezes. O levantamento da
personalidade colectiva no direito civil e comercial. Coimbra : Almedina, 2000, p.102, p.112;
CORDEIRO, Pedro. A desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais. Lisboa :
AAFDL, 1989, p.21, p.54, p.57, p.89‐90, dentre outras passagens.
personalidade jurídica foi transposta dos julgados ao direito
objetivo.
23
A conclusão é alicerçada em estudo de direito comparado desenvolvido por VANDERKERCKHOVE,
Karen. Piercing the corporate veil. Netherlands : Kluwer Law International, 2007, p.27 e seguintes.
24
LEONARDO, Rodrigo Xavier. A pessoa jurídica no direito privado do século XXI. In: TEIXEIRA, Ana
Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (org.). Manual de teoria geral do Direito Civil. 1.ed.
Belo Horizonte : Del Rey, 2011, p.385. Uma interessante leitura crítica da banalização da
desconsideração da pessoa jurídica é apresentada por NUNES, Márcio Tadeu Guimarães.
Desconstruindo a desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo : Quartier Latin, 2007 e NALIN,
Paulo; VIANNA, Guilherme Borba. Personificação, responsabilidade patrimonial e a nova crise da pessoa
jurídica e das sociedades empresárias. Questões controvertidas: direito de empresa. v.8. São Paulo :
Método, 2010, p.123.
E nesses quadrantes, o tema da crise funcional da pessoa
jurídica segue um tortuoso caminho do avesso, do avesso e do avesso.
27
A partir do julgado citado na nota de rodapé anterior, a terceira turma do
Superior Tribunal de Justiça passou a adotar dois caminhos na aplicação da
desconsideração da pessoa jurídica. Em se tratando de relações de consumo, por
força do §5º ao art. 28 do Código de Defesa do Consumidor e, também, em matéria
de direito ambiental, por força do art. 4.º da Lei n.º 9.605/1998, bastariam os
indícios de insolvência para que a grave medida se operasse. Nas demais situações,
seria aplicável a teoria maior, que exigiria a configuração do exercício abusivo da
personalidade jurídica como pressuposto para a desconsideração, nos termos do
art. 50 do Código Civil. Percebe‐se, no entanto, que mesmo na aplicação da
chamada teoria menor, atualmente a segunda turma do Superior Tribunal de Justiça
desenvolve um cuidado maior na verificação do estado de insolvência (para além da
mera avaliação do capital social comparada com uma expectativa hipotética de
passiva, tal como no precedente antes citado). Cite‐se, nesse sentido, acórdão da
mesma relatora, Ministra Nancy Andrighi, em que se exige uma maior demonstração
d o o b s t á c u l o a o r e s s a r c i m e n t o d o s c o n s u m i d o r e s : “(...) Antes do novo Código Civil, essa
teoria encontrou disciplina nas leis trabalhistas, no Código de Defesa do Consumidor, na Lei n. 8.884⁄94
e na Lei n. 9.605⁄98, diplomas que, mais amplos, deram azo a duas teorias, uma chamada “teoria
maior”, que adota o pressuposto entalhado no Código Civil, e a outra denominada “teoria menor”,
segundo a qual a mera insuficiência patrimonial é bastante para a aplicação da teoria da
despersonalização.Todavia, não creio que essa “teoria menor” encontre fundamento em nosso direito.
A doutrina do Disregard of legal entity nasceu, e ainda vige, com o intuito de afastar as limitações que a
personificação da sociedade jurídica impõe quanto ao alcance dos bens dos sócios e⁄ou administradores
que utilizam‐na em desconformidade com o ordenamento jurídico e mediante fraude, vindo a
enriquecerem em detrimento da sociedade. Portanto, o elemento abuso de direito pressupõe e informa
o instituto do disregard doctrine. Sendo a separação patrimonial dos bens empresariais e dos sócios o
fim da personalização da pessoa jurídica, na hipótese de se pretender superar essa separação, para
atingir os bens particulares dos sócios que agiram com abuso de direito, haverá de se desconsiderar a
personalização, retirando a sociedade da relação obrigacional, porquanto, se ela permanecer, estar‐se‐á
considerando‐a, e não o contrário. Assim, na hipótese em que ambos – sócios e sociedades –
respondam pela obrigação, haverá a figura da responsabilidade solidária ou subsidiária, conforme o
caso, o que não se confunde com o disregard doctrine, embora cada qual seja um modo de
responsabilização. Em direito ambiental, a despersonalização da pessoa jurídica está prevista no art. 4º
da Lei n. 9.605⁄98: “Art. 4º. Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade
for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.” No caso dos
autos, não restou caracterizado o abuso da personalização societária em relação à poluição perpetrada
no meio ambiente. Houve sim, um grande descaso com o patrimônio público. A norma legal acima
citada é bastante clara ao estabelecer que a despersonalização tem lugar quando a personalização da
pessoa jurídica constituir obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos ambientais. Assim, em que pese meu
entendimento de que tal dispositivo tem de ser interpretado em consonância com os princípios
informadores da teoria da desconsideração, in casu, sequer foi aventada a hipótese da existência de
obstáculos à reparação buscada. Ao contrário, as informações trazidas pelas mineradoras, em suas
peças recursais, dão conta de que os trabalhos de recuperação já foram iniciados” (RECURSO ESPECIAL
Nº 876.974 – SP. Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 09.08.2007). Registre‐se que há acordão da
segunda turma, de relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, que inclusive afasta expressamente a
aplicação da chamada teoria menor: “(...) não creio que essa ‘teoria menor’ encontre fundamento em
nosso direito. A doutrina do Disregard of legal entity nasceu, e ainda vige, com o intuito de afastar as
imitações que a personificação da sociedade jurídica impõe quando ao alcance dos bens dos sócios e/ou
administradores que utilizam‐na em desconformidade com o ordenamento jurídico e mediante fraude,
vindo a enriquecerem em detrimento da sociedade. Portanto, o elemento abuso de direito pressupõe e
informa o institto da disregard doctrine (RECURSO ESPECIAL N.º 647.493‐SC. Relator Ministro João
Otávio de Noronha. DJ 22.10.2007, sublinhado no original). A preocupação com uma excessiva
abrangência na utilização da desconsideração da personalidade jurídica é expressa, por exemplo, em
voto vista do Ministro Aldir Passarinho Júnior, em que afirma: “O importante, ao meu ver, é não se
banalizar o instituto do ‘disregard’, aplicando‐o a qualquer caso. Este excesso a 4ª Turma tem,
reiteradamente, podado (STJ. Recurso Especial n.º 1.180.714‐RJ. Rel. Ministro Luis Felipe Salomão. DJE.
06/05/2011). O cuidado para se evitar uma banalização do intituto, ao meu ver, decorre e justifica‐se a
partir de julgados anteriores do próprio Superior Tribunal de Justiça e dos demais Tribunais, e
atualmente é reiterado em praticamente todas as decisões do STJ. Cite‐se, ainda, nesse mesmo
sentido:(...) para a desconsideração da personalidade jurídica não basta a existência de um dano
provocado pela sociedade ou pelo sócio ou de uma dívida por qualquer deles assumida. A pessoa
jurídica tem existência própria, distinta das pessoas físicas que a compõem, e tem, imanente, o princípio
da autonomia patrimonial, de sorte a, via de regra, não permitir a confusão entre seus bens e aqueles
de seus sócios. A excepcional penetração no âmago da pessoa jurídica, com o levantamento do manto
que protege essa independência patrimonial, exige a presença do pressuposto específico do abuso da
personalidade jurídica, com a finalidade de lesão a direito de terceiro, infração da lei ou
descumprimento de contrato. Em outras palavras, há de se ter presente a efetiva manipulação da
autonomia patrimonial da sociedade em prol de terceiros. Nesse contexto, o não recebimento, pelo
credor, de seu crédito frente à sociedade, em decorrência da insuficiência de patrimônio social, não é
requisito bastante para autorizar a desconsideração da personalidade jurídica e conseqüente avanço
sobre o patrimônio particular dos sócios. Estando o capital social integralizado, estes não respondem
pelas dívidas sociais, salvo nas situações em que ficar caracterizada a administração irregular. A falta de
bens da empresa, necessários à satisfação das dívidas contraídas pela sociedade, consiste, a rigor, em
pressuposto para a decretação da falência e não para a desconsideração da personalidade jurídica” (STJ.
RECURSO ESPECIAL Nº 787.457 ‐ PR. Relatora. Min. Eliana Calmon. j. 14/08/2007). Ainda a esse
respeito: “(...) A possibilidade de ignorar a autonomia patrimonial da empresa e responsabilizar
diretamente o sócio por obrigação que cabia à sociedade, torna imprescindível, no caso concreto, a
análise dos vícios no uso da pessoa jurídica por se tratar de medida que excepciona a regra de
autonomia da personalidade jurídica, e como tal, deve ter sua aplicação devidamente justificada, pois
atinge direito de terceiro que não fez parte da relação processual original (STJ. Recurso em Mandado de
segurança n.º 25.251. Rel. Ministro Luis Felipe Salomão. DJe 03/05/2010). Os acórdãos aqui
apresentados foram levantados e discutidos em grupo de estudos formados pelos estudantes do curso
de graduação Carolina Raboni e Ricardo Busana Galvão Bueno e, também, pelo mestrando Rafael Santos
Pinto e o recém mestre João Paulo Capelotti, todos da Universidade Federal do Paraná.
E não é só isso.
abusividade lesiva à sociedade (ultra vires, por exemplo), ao passo que na desconsideração da
personalidade jurídica é a pessoa moral que tem seu uso desvirtuado, por ato dela, tudo em benefício
dos sócios e administradores. Ou seja, na primeira, não há um sujeito oculto, ao contrário, é plenamente
identificável e evidente, e sua ação infringe seus próprios deveres de sócio/administrador, ao passo que
na segunda, supera‐se a personalidade jurídica sob cujo manto se escondia a pessoa oculta, exatamente
para evidenciá‐la como verdadeira beneficiária dos atos fraudulentos” (STJ. RECURSO ESPECIAL N.º
1.180.714‐RJ. Min. Luis Felipe Salomão. DJE: 06/05/2011).
29
“A r t . 5 0 . E m c a s o d e a b u s o d a p e r s o n a l i d a d e j u r í d i c a , c a r a c t e r i z a d o p e l o d e s v i o d e
finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da
parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os
efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens
particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
30
“Art. 184. Sem prejuízo do disposto no artigo antecedente, o acionista controlador responde por
obrigação trabalhista da sociedade anônima até o limite da totalidade dos dividendos, juros sobre o
capital e demais participações nos resultados sociais, que dela tiver recebido desde o exercício em que
teve início o contrato de trabalho firmado entre a sociedade anônima e o credor” (COELHO, Fabio Ulhoa.
O futuro do direito comercial. São Paulo : Saraiva, 2011, p.47)
31
Desenvolvemos o assunto noutra oportunidade, cf. LEONARDO, Rodrigo Xavier. A pessoa jurídica no
direito privado do século XXI. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (org.).
Manual de teoria geral do Direito Civil. 1.ed. Belo Horizonte : Del Rey, 2011, p.385. Uma interessante
leitura crítica da banalização da desconsideração da pessoa jurídica é apresentada por NUNES, Márcio
Tadeu Guimarães. Desconstruindo a desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo : Quartier
Latin, 2007.
VI. Da crise do reconhecimento à perda da centralidade.
32
Em tese de doutoramento, defendemos que a Constituição Federal atribuiu competências para o
desenvolvimento de relevantes atividades por organizações associativas independentemente dessas
entidades ostentarem estatutos escritos e registrados: “referidas organizações – pela projeção social
que alcançam e não pela existência de estatutos escritos e inscritos – constituem núcleos
institucionalizados para o exercício de direitos coletivos (...) Partindo‐se do pressuposto de que, no
presente momento histórico, objetiva‐se construir uma sociedade pluralista, não parece admissível que
o reconhecimento das associações em sentido estrito mantenha‐se dependente de um ato registral que,
em última análise, é de competência unificada do Estado. Referido raciocínio, por sua circularidade, faria
com que o pluralismo objetivado fosse fulminado pelo mesmo Estado que lhe projeta”.E, naquela
oportunidade, concluímos: “De que adianta atribuir competências para as associações em sentido
estrito, visando descentralizar o desenvolvimento de atividades de sensível relevância social, se o
reconhecimento dessas mesmas associações ficar dependente de um unificado ato estatal?”
(LEONARDO, Rodrigo Xavier. As associações em sentido estrito. Tese de doutorado defendida perante o
Programa de Pós‐Graduação da Universidade de São Paulo – USP. Orientador: Prof. Dr. Alcides
Tomasetti Jr, São Paulo, 2006, p.186).
33
O art. 29, incisos XII e XIII da Constituição Federal, ao tratar da organização dos
Municípios (com original posição na história federativa brasileira), estabelece a cooperação de associações
para o planejamento das cidades. No item pertinente à assistência social, o art. 204 da Constituição Federal
determina uma política de descentralização que, expressamente, menciona a possibilidade de participação
da população por intermédio de organizações representativas. Os artigos 231 e 232 da Constituição
Federal reconhecem a comunidade dos índios, atribuindo às suas organizações legitimidade para ingressar
33
em juízo em defesa de seus direitos e interesses . Mais adiante, no art. 68 do ADCT, atribui‐se aos
remanescentes das comunidades dos quilombos a propriedade definitiva das terras que estejam
ocupando. Há um traço comum em todas essas hipóteses normativas. Todas essas normas poderiam ser
classificadas como normas secundárias de competência, adotando‐se, aqui, a classificação de Herbert
Hart. Nelas, não se determinam propriamente condutas que devam ser praticadas por essas
associações, encaminha‐se a atribuição de competências para o desenvolvimento dalgumas atividades
nelas descritas (Sobre o assunto, cf. HART, Herbert. El concepto del derecho. Trad. Genario Carrió. 2.ed.
Outro exemplo se dá com a crescente adoção dos chamados
patrimônios de afetação, que se apresentam como outra via à
separação patrimonial, talvez até mesmo em resposta à pessoa
jurídica desconsiderada ante tantas hipóteses de sua desconsideração,
tal como sustentamos no item precedente34.
México: Nacional, 1980. p.113‐117, e também BOBBIO, Norberto. Studi per una teoria generale del
diritto. Torino: Giappichelli, 1970. p.180.
34
A respeito do assunto, permita‐se citar dissertação de mestrado, defendida perante o Programa de
Pós‐Graduação em Direito da UFPR, que trata do assunto com ineditismo. Cf. (XAVIER, Luciana Pedroso.
As teorias do patrimônio e o patrimônio de afetação na incorporação imobiliária. Dissertação de
mestrado defendida perante o Programa de Pós‐Graduação da Universidade Federal do Paraná – UFPR.
Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Xavier Leonardo, Curitiba, 2011, p.97).
35
“(...) naquilo que doutrinariamente se conheceu por crise da pessoa jurídica, sublinhe‐se que o
surgimento de diversas organizações que, por estratégia, recusam‐se submeter ao prévio registro para obter
a personificação demonstra uma situação inusitada: a pessoa jurídica, tal como concebida
tradicionalmente, perdeu sua exclusividade como meio para a conformação de núcleos
institucionalizados para o desenvolvimento de atividades coletivas. Justamente por isto, a
personificação (pelo menos tal como concebida e retratada no Código Civil) não detém mais
exclusividade na conformação dos grupos organizados ainda que, doutrinariamente, não se reconheça
isto. As estratégias sociais de ação coletiva, deliberadamente, muitas vezes são feitas à margem dos critérios
tradicionais de personificação das organizações. Não obstante isto, tais organizações atuam com tal
intensidade e eficiência social que se torna verdadeiramente impossível ignorar a sua existência jurídica.
Mais que isto. Referida postura teórica ignora que o próprio ordenamento jurídico confere competências a
essas organizações independente de estarem previamente registradas ou não” (LEONARDO, as
associações em sentido estrito, 2006, p.187).
sujeitos de direito que titularizam situações jurídicas ativas e passivas
que não são pessoas36.
36
LEONARDO, Rodrigo Xavier. Sujeito de direito e capacidade: contribuição para uma revisão da teoria
geral do direito civil à luz do pensamento de Marcos Bernardes de Mello. In: DIDDIER JR, Freddie;
EHRHARDT JR, Marcos (org). Revisitando a teoria do fato jurídico. 1.ed. São Paulo : Saraiva, 2010,
p.549‐570.
personificadas do civil law e o trust, proveniente do direito anglo-
americano.
V. Referências bibliográficas