Da Desconsideracao Da Pessoa Juridica A

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Da desconsideração da pessoa jurídica à pessoa jurídica

desconsiderada

por
Rodrigo Xavier Leonardo
Professor adjunto de Direito Civil nos cursos de graduação e pós-gradação em Direito da UFPR
Mestre e Doutor em Direito Civil pela USP

Originalmente publicado como LEONARDO, Rodrigo Xavier. O


percurso e os percalços da teoria da pessoa jurídica na
Universidade Federal do Paraná: da desconsideração da pessoa
jurídica à pessoa jurídica desconsiderada, a partir de J. Lamartine
Corrêa de Oliveira. In: KROETZ, Maria Cândida (org). Direito civil:
inventário teórico de um século. Curitiba : Kairós, 2012, p.75.

I. Introdução

O tema da pessoa jurídica sempre foi caro à Universidade


Federal do Paraná.

Foi no salão nobre da Faculdade de Direito que a inovadora


tese da desconsideração da pessoa jurídica foi pioneiramente
enfrentada em âmbito nacional1. Dessa mesma escola provém um
dos poucos estudos a respeito da pessoa jurídica no direito romano2,
além de diversas outras obras monográficas de prestígio e grande
repercussão3.

Nesse contexto maior, insere-se o epicentro da preocupação


teórica do professor Lamartine Corrêa em sua carreia docente na
Universidade Federal do Paraná, que teve início no ano de 1960 e se
extinguiu precocemente em 1987, com o seu passamento.
1
Menciona‐se, aqui, a conferência de Rubens Requião em que se encontra o primeiro registro de
enfrentamento do tema em direito nacional. Cf. REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da
personalidade jurídica. Revista dos Tribunais. a.58, v.410, dez., 1969.
2
CARTAXO, Ernani Guarita. As pessoas jurídicas em suas origens romanas. Curitiba : Empreza Gráfica
Paranaense, 1943.
3
Cite‐se, apenas como exemplo, as seguintes obras monográficas: CORRÊA DE OLIVEIRA, J. Lamartine.
Conceito de pessoa jurídica. Tese apresentada à Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Paraná para concurso de livre docência de Direito Civil. Curitiba, 1962 (mimeo); CORRÊA DE OLIVEIRA, J.
Lamartine. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo : Saraiva, 1979; JUSTEN FILHO, Marçal.
Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1987.
Foi por intermédio desse assunto que o docente inseriu na
pesquisa de Direito Civil uma preocupação com o direito
comparado, investigando com profundidade a experiência de outras
nações em busca de soluções teóricas para o problema da pessoa
jurídica e a crise por ele constatada em meados do século XX.

E agora, diante do primeiro centenário da Universidade


Federal do Paraná, num século recém inaugurado, a obra
organizada pela civilista, Professora Doutora Maria Cândida de
Araújo Kroetz, nos oportuniza revisitar o tema da pessoa jurídica, à
luz do pensamento do professor Lamartine Corrêa, porém tomando
como pano de fundo a sociedade brasileira contemporânea.

O Brasil e o mundo mudaram bastante desde a publicação da


grande obra de Lamartine Correa a respeito do tema, intitulada “a
dupla crise da pessoa jurídica” (Saraiva, 1979).

A Universidade Federal do Paraná e o Direito Civil na


Faculdade de Direito também se transformaram. Eis a chance de, ao
reverenciar as gerações de civilistas que se foram, refletir sobre o
tempo presente e tentar abrir janelas que prenunciam o porvir.

Para tanto, neste capítulo, abordaremos o tema da pessoa


jurídica em três partes. Na primeira, apresentaremos o tema da
pessoa jurídica na sua problemática teórica e no contexto de crise
enfrentado pela obra de Lamartine Correa. Na sequencia, expomos a
repercussão da desconsideração da pessoa jurídica e opinamos
sobre os reflexos dessa operação no direito contemporâneo para, por
fim, ao colocar o tema em prospectiva, alguns desafios para o
futuro.

II. A pessoa jurídica como problema teórico e a sua crise.

A pessoa jurídica surge como problema teórico na


modernidade. É nesse período, com lindes imprecisos, que se
encontra o nascedouro da questão que novamente se põe em debate.
O direito moderno se apresenta como o produto de um projeto
individualista de sociedade. Diz-se individualista, porque
fundamentado no indivíduo, destacado de sua realidade comunitária
para figurar como eixo em relações atomizadas entre iguais e perante
o Estado4.

Não é por outra razão que a chamada teoria geral do direito civil,
cujas bases fundantes são lançadas nesse mesmo período, adota por
sustentáculo as figuras do direito subjetivo e do sujeito de direito. Todo
o direito seria concebido para a potencial titularidade de um abstrato
e formal sujeito individual, atomizado, apartado dos demais5.

Os chamados grupos intermediários, que de algum modo


pudessem se colocar como entreposto entre o indivíduo e o Estado,
mereceriam severo repúdio, vez que compreendidos como ameaças
à liberdade individual.

A esse respeito, imerso no contexto cultural que emergia com a


modernidade, Rosseau escreveu: "se, quando o povo
suficientemente informado delibera, não tivessem os cidadãos
qualquer comunicação entre si, do grande número de pequenas
diferenças resultaria sempre a vontade geral e a deliberação seria
sempre boa. Mas quando se estabelecem facções, associações
parciais a expensas da grande vontade de cada uma dessas
associações torna-se geral em relação a seus membros e particular
em relação ao Estado: poder-se-á então dizer não haver mais tantos
votantes quantos são os homens, mas somente tantas quantas são as
associações. As diferenças tornam-se menos numerosas e dão um
resultado menos geral. E, finalmente, quando uma dessas
associações for tão grande que se sobreponha a todas as outras, não
se terá mais como resultado uma soma das pequenas diferenças,
mas uma diferença única – então, não há mais vontade geral, e a
opinião que dela se assenhoreia não passa de uma opinião
particular. Importa, pois, para alcançar o verdadeiro enunciado da

4
HESPANHA, António Manuel. História das instituições: épocas medieval e moderna. Coimbra: Almedina,
1982. p.210; HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica européia. Síntese de um milénio.
Florianópolis: Fundação Boitex, 2005. p.101; GROSSI, Paolo. L'ordine giuridico medievale. 10.ed. Roma:
Laterza, 2003. p.75 e seguintes.
5
ORESTANO, Riccardo. Il <problema delle persone giuridiche> in diritto romano. Torino: Giappichelli,
1968. t.1. p. 17 e seguintes). Sobre o assunto, conferir também, GIERKE, Otto. Political theories of the
middle age. Trad. Frederic William Maitland. Boston: Beacon Press, 1958. p.67 e seguintes; PEPPE, Leo
(Org.). Persone giuridiche e storia del diritto. Torino: Giapichelli, 2004. p.89 e seguintes.
vontade geral, que não haja no Estado sociedade parcial e que cada
cidadão só opine de acordo consigo mesmo"6.

Nesse contexto, justificar agrupamentos humanos com uma


personalidade própria, diversa daqueles que lhes deram vida,
apresentava-se efetivamente como um problema.

Lamartine Corrêa, ao investigar o assunto, percebeu que a


principal resposta que em seu tempo procurava dar conta da
questão era proveniente das chamadas correntes normativistas.
Com esteio em Kelsen, Ferrara, e outros expoentes do direito
privado7, justificava-se a pessoa jurídica como o produto de normas
jurídicas emanadas exclusivamente pelo Estado.

Tal solução, no entanto, quanto colocada à prova frente às


relações sociais apresentava severas limitações. Diversas realidades
sociais que funcionavam em sociedade com elevado grau de
diferenciação de seus criadores, com práticas equivalentes àquelas
levadas a cabo pelas pessoas jurídicas, não eram reconhecidas como
pessoas. Por qual razão? Segundo Lamartine Correa pela única e
exclusiva ausência de previsão normativa que conferisse tal
sustentação.

Dessa constatação, o autor extraiu a primeira crise da pessoa


jurídica: a chamada crise de reconhecimento8. Se a personificação de
coletividades é um produto exclusivo da norma jurídica, as
inevitáveis lacunas normativas deixariam de considerar realidades
sociais que ostentariam todas as características de entidades
personificadas. Tais entidades reais, a margem de qualquer previsão
normativa, atuariam na vida em sociedade, praticariam atos
jurídicos, seriam partes em relações jurídicas num limbo normativo.

O mesmo normativismo também conduziria à segunda crise


da pessoa jurídica. Se a pessoa jurídica é um produto da norma

6
ROUSSEAU, Jean‐Jacques. Do contrato social. Trad. Lourdes Santos Machado. 5.ed. São Paulo: Nova
Cultural, 1991. p.47. (Coleção Os pensadores).
7
FERRARA, Francesco. Teoria delle persone giuridiche. 2.ed. riveduta. Napoli : Marghieri, 1923; KELSEN,
Hans. Teoria pura do direito. 4.ed. Trad. João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado, 1976..
8
CORRÊA DE OLIVEIRA, José Lamartine. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo : Saraiva, 1979.
Tratamos da perspectiva teórica desse autor em outra oportunidade, cf. LEONARDO, Rodrigo Xavier.
Revistando a dupla crise da pessoa jurídica. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo. Questões
controvertidas: direito de empresa. v.8. São Paulo : Método, 2010, p.45.
jurídica, a sua criação e o seu desenvolvimento não dependeriam de
um elevado nível de institucionalização, mediante diferenciação e
autonomização daqueles que lhe constituíram. Bastaria uma
adequação formal aos requisitos legais para o seu surgimento, ainda
que no plano da realidade social verdadeiramente se mantivesse uma
indistinção entre a entidade criada e o seu criador.

Isso permitiria que mesmo diante da ausência duma realidade


institucional efetiva, desde que observados os quadrantes das formas
descritas em Lei, pudessem ser constituídas pessoas jurídicas para a
prática de atos ilícitos (aqui tomado o termo em sentido
amplíssimo). Nesses casos, por intermédio da separação patrimonial, a
pessoa jurídica serviria como um anteparo que impediria a
responsabilização daqueles que lhe criaram, como mera forma, para
fruir economicamente desses atos ilícitos.

Aí se encontraria a segunda crise. A atribuição da


personalidade a entidades independentemente de uma realidade
institucional que lhes desse suporte, a partir de uma concepção
formalista de que a Lei seria a fonte constitutiva da personalidade,
permitia que essa forma fosse utilizada para fins contrários ao
ordenamento jurídico.

Além de diagnosticar a dupla crise da pessoa jurídica, Lamartine


Corrêa propõe um remédio: uma revisão teórica do instituto da
pessoa jurídica, do normativismo à uma concepção ontológica-
institucionalista9.

A concepção ontológica-institucionalista reconheceria um


substrato social, um suporte ôntico à pessoa jurídica, que justificaria o
seu reconhecimento como um ser, ainda que diverso do ser humano.

O ser humano seria de forma substancial, ou seja, um ens cuja


existência independeria de fundamentos externos, extrínsecos a ele
mesmo. A pessoa jurídica também seria um ser, porém de forma
acidental, na exata medida em que sua existência seria dependente
dos seres humanos que lhe dão sustentação.

9
Grifos nossos, CORRÊA DE OLIVEIRA, J. Lamartine. Conceito de pessoa jurídica, p.164.
Este substrato ontológico surgiria a partir de um processo de
institucionalização, mediante um elevado nível de organização e
expressão autônoma da entidade personificada em relação aos seres
humanos que lhe deram sustentação. Daí, em linhas gerais, a
concepção ontológica-institucionalista defendida pelo autor.

Nesses quadrantes teóricos, a Lei não criaria a pessoa jurídica.


O ordenamento jurídico, conforme um viés mais rente ou menos
rente às liberdades democráticas, reconheceria tais formações
sociais.

Por intermédio dessa compreensão teórica, seria possível


superar a primeira crise, vez que as entidades que, na realidade
social, ostentassem um substrato ontológico institucional, deveriam
ser consideradas pessoas jurídicas.

Se o substrato ontológico institucional fosse dirigido para


objetivos contrários ao ordenamento jurídico, alguns efeitos da
personalidade jurídica, em especial a separação patrimonial,
poderiam ser afastados pela chamada desconsideração da personalidade
jurídica, possibilitando também uma superação da segunda crise.

Essa tese que inovou o estudo da pessoa jurídica foi elaborada


em um contexto particular multifacetado de seu autor. Sob a
perspectiva filosófica, José Lamartine Correa de Oliveira firmava
uma postura de crítica ao normativismo e, em especial, ao
positivismo jurídico de viés kelseniano.

Ainda nessa mesma seara, o autor buscou fundamento na


filosofia tomista e no pensamento institucionalista francês10,
sobretudo a partir das obras de Maurice Hauriou11, George Renard12

10
Para um panorama geral da escola institucionalista francesa, conferir, dentre outros, GRESSAYE, Jean
Brèthe de la. The sociological theory of the institution and french juristic thought. In: BRODERIK, Albert.
The french institucionalists: Maurice Hariou, Georges Renard, Joseph T. Delos. trad. Mary Wlling.
Massachusetts : Harvard University Press, 1970, p.15 et seq.
11
Para Hariou: “una istituzione è una idea di opera o di intrapresa, che si realizza e dura giuridicamente
in un ambiente sociale; per la realizzazione di tale idea, si organizza un potere che la fornisce di organi;
d’altra parte, tra i membri del grupo sociale che è interessato alla realizzazione dell’idea si attuano
manifestazioni comunitarie, dirette dagli organi del potere regolate da procedure” (HARIOU, Maurice.
Teoria dell’istituzione e della fondazione. Milano : Giuffrè, 1967, p.12).
12
RENARD, Georges. Les degrés de l’existence institutionnelle. In: La théorie de l’institution: essai
d’ontologie juridique. Paris : Sirey, 1930, p.225.
e Delos13, identificando-se, também, com as correntes filosóficas
jusnaturalistas católicas, mormente com a doutrina social da igreja.

Sob essa lente filosófica é que Lamartine Corrêa extrai de


Santo Tomás de Aquino a diferença entre os seres de forma
substancial e o seres de forma acidental para, por intermédio de um
raciocínio de analogia por atribuição, reconhecer a personalidade às
entidades de formação social sem colocá-las no mesmo patamar dos
seres humano.

Pessoa, em sentido ético, seria apenas o ser humano. Apenas ao


ser humano seria reconhecida a dignidade. Às pessoas jurídicas,
como seres de forma acidental, seria atribuída a personalidade por
analogia ao ser humano14. Segundo Lamartine Corrêa, a pessoa
jurídica seria uma “realidade análoga à pessoa humana, porque
idêntica em inúmeros aspectos e distinta no mais importante: a
substancialidade, que esta possui e aquela não. É pessoa, portanto.
Mas não no sentido pleno da palavra e sim por analogia”15.

Em coautoria com o Professor Francisco Muniz, esclarece-se


que a pessoa humana seria mais que uma realidade ontológica. Seria
uma realidade axiológica, vez que “ser e valor estão intimamente
ligados, em síntese indissolúvel, eis que o valor está, no caso,
inserido no ser. O homem vale, tem a excepcional e primacial
dignidade de que estamos a falar, porque é”.16

Das correntes institucionalistas francesas, Lamartine Corrêa


extrai uma epistemologia indutiva17, em que os fenômenos sociais
são observados como base para as conclusões. A personalidade de
determinadas organizações surgiria na realidade social e, por vezes,

13
DELOS, J,‐T. La théorie de l’Institution. La solution réaliste du problème de la personnalitè morale et le
droit à fondement objectif. Archives de philosophie du droit et de sociologie juridique. n.º 1‐2, Cahier
double, Recueil Sirey, 1931, p.99.
14
SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da personalidade. São Paulo : Revista dos Tribunais.
15
CORRÊA DE OLIVEIRA, J.Lamartine. Conceito de pessoa jurídica, p.165. A respeito da substancialidade
da pessoa humana e de sua projeção em uma reconstrução da noção de subjetividade no direito, cf.
GEDIEL, José Antônio Peres. Os transplantes de órgãos e a invenção moderna do corpo. Curitiba :
Moinho do Verbo, 2000, p.46 e seguintes.
16
Grifos no original, CORRÊA DE OLIVEIRA, José Lamartine; MUNIZ, Francisco José Ferreira. O Estado de
direito e os direitos da personalidade. Revista dos tribunais. a.69, v.532, fev. de 1980, p.16.
17
Sobre a perspectiva metodológica no institucionalismo francês, cf. ENPC LATTS, Gilles Jeannot. Les
associations, L’Etat et la théorie de l’institution de Maurice Hariou. Les annales de la recherche urbaine.
n.º89, juin 2001, p.19.
alcançaria uma elevada institucionalização ao redor de uma idéia de
atuação (l’idée d’ouvre) 18.

Assim como na natureza seria possível verificar uma gradação


entre os inúmeros seres vivos, partindo dos mais simples em
comparação aos mais complexos, dentre as diversas instituições
surgidas em sociedade, seria possível verificar algumas com um
padrão tão elevado de organização e atuação em sociedade que
passariam a existir com independência das pessoas humanas que
lhe criaram.

Na perspectiva da metodologia do direito, ainda, José


Lamartine Corrêa de Oliveira investiu nos estudos de direito
comparado. Sua pesquisa sobre a dupla crise da pessoa jurídica se
tornou possível após a investigação do assunto em diversos
sistemas, classificando as opções encontradas nos diversos
ordenamentos jurídicos em minimalistas, maximalistas, monistas e
dualistas.

Nos ordenamentos jurídicos classificados como minimalistas


bastaria um mínimo de correspondência analógica entre os
agrupamentos sociais e o ser humano para se operar a
personificação. O direito francês seria um exemplo paradigmático
para o autor. Nos ordenamentos jurídicos maximalistas, por sua vez,
seria exigido um máximo de analogia entre essas entidades e o ser
humano para que se pudesse reconhecer a personalidade jurídica
(como, v.g., no direito suiço).

A partir dos modelos minimalistas ou maximilistas, esses


mesmos ordenamentos jurídicos poderiam adotar posições
monistas, quando a pessoa jurídica fosse o único mecanismo de
autonomização perante as esferas jurídicas individuais, e posições
dualistas, quando, ao lado da pessoa jurídica, outras figuras

18
Registre‐se, no entanto, que J. Lamartine Corrêa de Oliveira, a despeito de reconhecer a importância
do pensamento de Maurice Hariou, tece críticas severas ao idealismo platônico desse autor, que
identificava numa idéia de obra (l´idée d’ouvre) o elemento essencial para a constituição de uma
instituição: “A noção que possui a respeito das ‘idéias’ é demasiadamente platônica e, o que há em tal
concepção de platonismo, é inaceitável e grandememente responsável por boa parte das resitências
opostas à aceitação de sua doutrina. Para êle, as idéias são objetivas desde sua origem. São encontradas
por homens inspirados (...)” (CORRÊA DE OLIVEIRA, J. Lamartine. Conceito de pessoa jurídica, p.132).
permitissem essa autonomia, tal como ocorreria, no direito alemão,
entre a pessoa jurídica e a Gesamthandgemeinschaft19.

O direito brasileiro, à época da publicação da dupla crise da


pessoa jurídica, seria situado como um sistema minimalista e
monista, o que agravaria as possibilidades de cada uma das duas
crises da pessoa jurídica.

Na perspectiva política, por fim, nosso autor figurava como


um dos expoentes do movimento de redemocratização do Brasil
que, à época dos fatos, alcançava seu ápice para o início de uma
transformação nacional.

Seja como advogado, que exerceu a presidência da Seccional


da OAB no Paraná, seja como docente que professou um ensino
jurídico crítico e democrático, Lamartine Corrêa não capitulou20. Sua
obra sinalizou a precedência de valores transpositivos sobre as
normas jurídicas, materialmente orientado a uma inserção do
homem em seu contexto histórico e social21.

Esse compromisso com a ciência, com a política e, sobretudo,


com o ser humano, ainda ecoa nos corredores da Santos Andrade. E
para além dela.

III. Da desconsideração da pessoa jurídica à pessoa jurídica


desconsiderada (ou o avesso do avesso...)

A tese da dupla crise da pessoa jurídica alcançou uma


incomum projeção. Em direito nacional, trata-se de obra obrigatória
19
LEONARDO, OAB, p.52‐53.
20
Pode‐se colher a opinião crítica do autor nos escritos CORRÊA DE OLIVEIRA, J. Lamartine. A função
social do advogado e a crise do ensino jurídico. In: semana do advogado (7 a 11 de agostode 1972).
Ordem dos advogados do Brasil – Seção do Paraná, 1972; CORRÊA DE OLIVEIRA, J. Lamartine; MUNIZ,
Francisco José Ferreira; APPEL, Emmanuel José. Cultura, ensino e universidade: contribuição da UFPR
ao debate constitucional. Curitiba : UFPR, 1986. Cabe mencionar, ainda, o resgate histórico e emotivo
de PASSOS, Edésio. O tempo da memória: Vieira Netto: o discurso proibido. Lamartine Corrêa: a véspera
dos bárbaros.
21
CORRÊA DE OLIVEIRA, J. Lamartine. A véspera dos bárbaros. Discurso de paraninfo proferido em 8 de
março de 1968 aos bacharelandos da turma “Des. Hugo Simas”. Centro Acadêmico Hugo Simas, 1968
(mimeo). CORRÊA DE OLIVEIRA, J. Lamartine. Lição de resistência. Discurso de paraninfo aos Bacharéis
em Direito de 1965 da Universidade Federal do Paraná, turma Ministro Alvaro Ribeiro da Costa (mimeo).
em todos os estudos monográficos sobre o assunto. Além mar, o
livro tornou-se uma referência constante entre autores europeus,
sobretudo portugueses, mantendo-se atual, mesmo muitas décadas
após a sua publicação22.

Da década de 1970 aos dias de hoje, o tema da


desconsideração da pessoa jurídica apresentou um grande
desenvolvimento. Desde que abordado pela primeira vez no país
mediante estudo também tributado à nossa escola, o assunto foi
objeto de inúmeros estudos monográficos, decisões judiciais e,
sobretudo, alterações legislativas.

Em princípio, a desconsideração da personalidade jurídica


seria uma ferramenta hermenêutica para determinadas situações em
que se verificasse a crise de função, ou seja, o descompasso entre as
finalidades admitidas pelo ordenamento jurídico para a
personificação e a realidade social, subjacente ou sobrejacente, de uma
específica e determinada pessoa jurídica.

Se a crise de função era um dos frutos do normativismo,


certamente não seria o mesmo normativismo a sua solução. A
superação da separação patrimonial que compõe o conjunto eficacial
da personificação exigiria um esforço de interpretação da realidade
social que transborda as formas.

O caminho tomado pelo direito brasileiro, no entanto, foi


outro. O pensamento de Lamartine Corrêa – que é referência
obrigatória do tema, como antes indicado –, foi muito mais acessado
no diagnóstico da crise do que na proposição de soluções.

O Brasil acabou optando por tratar da crise de função pelo


mesmo normativismo que lhe deu causa.

A partir da década de 1990, a começar pelo Código de Defesa


do Consumidor (Lei n.º 8.078/90), a desconsideração da

22
Dentre os autores portugueses, pode‐se mencionar, apenas como exemplo, duas obras monográficas
que dialogam intensamente com J. Lamartine Corrêa: CORDEIRO, António Menezes. O levantamento da
personalidade colectiva no direito civil e comercial. Coimbra : Almedina, 2000, p.102, p.112;
CORDEIRO, Pedro. A desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais. Lisboa :
AAFDL, 1989, p.21, p.54, p.57, p.89‐90, dentre outras passagens.
personalidade jurídica foi transposta dos julgados ao direito
objetivo.

Cumpre observar que, nessa passagem da construção


jurisprudencial ao direito objetivo, verifica-se uma relevante
transformação: ao passo que a experiência jurisprudencial limitava a
desconsideração da personalidade jurídica às situações de abuso ou
descompasso funcional do instituto, o direito positivo nacional
passou a admiti-la independentemente de qualquer desvio de
função.

Isto inicia no Código de Defesa do Consumidor, pela original


distinção entre aquilo que se convencionou chamar de uma teoria
maior e de uma teoria menor da desconsideração da pessoa jurídica.

A teoria maior exigiria a verificação de pelo menos um dos


requisitos eleitos pelo legislador para que se operasse a
desconsideração, nos termos do caput do art. 28 da Lei n.º 8.078/90:
“O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando,
em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder,
infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato
social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência,
estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica
provocados por má administração”.

Sublinhe-se que o extenso rol de situações que ensejariam a


grave medida expande-se por hipóteses nada uniformes. A
enumeração do caput do art. 28 da Lei n.º 8.078/90 perpassa por
situações objetivas (como, v.g, o excesso de poder, a infração da lei,
o fato ou ato ilícito), por situações com elevada subjetividade (como,
v.g., má administração) e, ainda, por outras que podem ser apenas
consequências de vicissitudes da própria atuação em mercado
(como, v.g., um estado de insolvência). A amplitude é evidente.

Não fosse suficiente a enumeração no caput do art. 28 da Lei


n.º 8.078/90, a chamada teoria menor da desconsideração da pessoa
jurídica, que estaria presente no parágrafo quarto ao art. 28 do
Código de Defesa do Consumidor, permitiria a limitação da
separação patrimonial quando a personalidade jurídica significasse,
apenas e tão-somente, um óbice ao ressarcimento do consumidor:
“Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua
personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos
causados aos consumidores”.

O mesmo texto normativo foi reproduzido em diversos outros


diplomas legislativos. Isto ocorreu, por exemplo, no direito
ambiental (art. 4.º da Lei n.º 9.605/98), na Lei que versa sobre a
atividade de distribuição de combustível (§3º ao art. 18 da Lei n.º
9.847/1999) e, também, na legislação a respeito da indústria de
petróleo (art. 23 do Decreto n.º 2.953/1999).

Ao lado dessas regras, cite-se também como exemplos de leis


que tratam da desconsideração da pessoa jurídica, a legislação
antitruste (art. 18 da Lei n.º 8.884/1994 e art. 34 da Lei n.º
12.529/2011) e, também, o Código Civil Brasileiro (art. 50, CCB).

No direito trabalho é comum a desconsideração da


personalidade jurídica pela aplicação do Código de Defesa do
Consumidor por analogia e, também, pela imputação da relação de
emprego à empresa e não à sociedade empresária personificada
empregadora (mediante aplicação do art. 2.º da CLT, ainda que se
distanciando da compreensão da empresa como atividade e não
como sujeito de direito).

No direito tributário, por sua vez, isto se dá pela amplitude


conferida ao polo passivo da obrigação tributária (cite-se, nesse
sentido, sem prejuízo de outros, os arts. 124 e 135 do Código
Tributário Nacional).

Por intermédio deste sumário levantamento legislativo,


constata-se quase uma dezena de fundamentos normativos
diferentes que costumam ser apontados pelos tribunais como
fundamento para a desconsideração da pessoa jurídica.

Cumpre observar, portanto, que em direito brasileiro não há


uma teoria ou um regramento de desconsideração da pessoa jurídica.
Há diversas teorias da desconsideração da pessoa jurídica, com
pressupostos e requisitos igualmente diferentes, que podem ser
encontrados em um emaranhado normativo desuniforme.
Sob um viés comparado, as inúmeras e diferentes regras
jurídicas a respeito da desconsideração da pessoa jurídica no Brasil,
ao que tudo indica, inserem o país em uma posição singular.

Ao passo que a experiência em direito comparado mantém a


excepcional limitação dos efeitos da personalidade jurídica como
uma construção exclusivamente jurisprudencial, no Brasil, tal como
antes demonstrado, ela passa a ser constantemente objeto de um
disperso tratamento legislativo23.

Diante desse quadro, pode-se sustentar que, no tempo


contemporâneo, vivemos uma crise às avessas: o advento de uma
crise da crise da pessoa jurídica na proliferação legislativa de
hipóteses para a sua desconsideração.

Nessa nova crise, desfaz-se a personificação pela aplicação de


normas jurídicas independentemente da real atuação em sociedade
da entidade, a despeito da conformidade ou desconformidade da
real atuação em sociedade, dessas entidades, ao ordenamento
jurídico.

Tantas são as hipóteses de desconsideração da pessoa jurídica


que, como antes sustentamos24, da teoria da desconsideração da
pessoa jurídica chegamos à situação da pessoa jurídica desconsiderada
em direito nacional.

Eis o normativismo, outrora denunciado por Lamartine


Corrêa, que reaparece com uma nova roupagem: para resolver a
crise de função, pela pura e simples aplicação de normas,
desconstrói-se a eficácia da personificação independentemente de
uma eventual utilização desfuncional.

23
A conclusão é alicerçada em estudo de direito comparado desenvolvido por VANDERKERCKHOVE,
Karen. Piercing the corporate veil. Netherlands : Kluwer Law International, 2007, p.27 e seguintes.
24
LEONARDO, Rodrigo Xavier. A pessoa jurídica no direito privado do século XXI. In: TEIXEIRA, Ana
Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (org.). Manual de teoria geral do Direito Civil. 1.ed.
Belo Horizonte : Del Rey, 2011, p.385. Uma interessante leitura crítica da banalização da
desconsideração da pessoa jurídica é apresentada por NUNES, Márcio Tadeu Guimarães.
Desconstruindo a desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo : Quartier Latin, 2007 e NALIN,
Paulo; VIANNA, Guilherme Borba. Personificação, responsabilidade patrimonial e a nova crise da pessoa
jurídica e das sociedades empresárias. Questões controvertidas: direito de empresa. v.8. São Paulo :
Método, 2010, p.123.
E nesses quadrantes, o tema da crise funcional da pessoa
jurídica segue um tortuoso caminho do avesso, do avesso e do avesso.

Permitam-me explicar. Num primeiro momento, o instituto da


pessoa jurídica é utilizado para fins contrários ao ordenamento
jurídico que lhe dá sustentação. Em seguida, formula-se a tese da
desconsideração da pessoa jurídica para aplicação nos casos de
fratura entre a real atuação das entidades e as finalidades admitidas
pelo ordenamento jurídico.

Desse segundo momento chega-se a um terceiro, quando da


teoria passa-se ao direito positivo, com inúmeras hipóteses de
desconsideração da personalidade jurídica independentemente de
utilização desfuncional, com repercussão na jurisprudência
nacional.

Atualmente, o direito brasileiro vive um quarto momento. A


partir dos excessos que o direito positivo encaminhou a respeito da
desconsideração da personalidade jurídica, verificamos um esforço
em se limitar as hipóteses de desconsideração, mediante hermenêutica
integrativa que insere requisitos para aplicação da desconsideração
da pessoa jurídica que remontam ao descompasso funcional
inicialmente denunciados pela doutrina.

Isto pode ser percebido, por exemplo, pelos enunciados das


Jornadas de Direito Civil do Superior Tribunal de Justiça25, por
contundentes manifestações doutrinárias a respeito do assunto e,
também, por um movimento da jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça26, que se inicia pela adoção da chamada teoria
25
Cite‐se, neste sentido, os seguintes enunciados: “Só se aplica a desconsideração
da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular, e
limitadamente, aos administradores que nela hajam incorrido” (Enunciado n.º 7 da I
Jornada de Direito Civil do STJ; “Nas relações civis, interpretam‐se restritivamente
os parâmetros de desconsideração da personalidade jurídica previstos no CC50
(Enunciado n.º 146 da III Jornada de Direito Civil do STJ).
26
A mais expressiva adoção da chamada teoria menor da desconsideração da pessoa jurídica pelo
Superior Tribunal de Justiça, com uma considerável expansão dos lindes do instituto, ocorreu em
recurso especial destinado a julgar pedido indenizatório das vítimas de explosão do Shopping Center de
Osasco. N a q u e l a o p o r t u n i d a d e , s o b o a r g u m e n t o d e q u e “ a l i q u i d a ç ã o v a i e n c o n t r a r
valor vultoso. O capital social da B‐7 é de R$ 3.100.000,00 (três milhões e cem mil
reais), para outubro de 1995 (...). O capital social da Administradora Osasco Plaza é
de R$ 10.000,00 (dez mil reais (...) E o valor real da empresa sempre estará na
dependência de sua operação regular”, concluiu‐se pelo “estado de insolvência”,
justificando a aplicação da teoria menor da desconsideração da pessoa jurídica.
menor da desconsideração da personalidade jurídica, fundamentada
apenas em indícios hipotéticos de insolvência. Logo na sequência,
no entanto, o mesmo Superior Tribunal de Justiça passou a construir
critérios restritivos para a gravíssima medida, circunstanciados na
efetiva verificação de um abuso do instituto, expressando
preocupação com a sua banalização27.

Com isso, compreendeu‐se que o §5.º do art. 28 do Código de Defesa do


Consumidor teria aplicação independente do caput, razão pela qual, nas relações
jurídicas de consumo, bastaria se compreender a personificação como obstáculo
para o ressarcimento (v.g., pela insolvência), para que a medida de desconsideração
fosse operada. Nesse sentido, lê‐se no acórdão: “A tese, ora acolhida, de que a
teoria menor da desconstituição aplica‐se às relações de consumo, está calcada,
como dito, na exegese autônoma do §5º do art. 28, do CDC, isto é, afasta‐se, aqui, a
exegese que subordina a incidência do §5º à demonstração dos requisitos previstos
no caput do art. 28 do CDC. E isto porque o caput do art. 28 do CDC acolhe a teoria
maior subjetiva da desconsideração, enquanto que o § 5º do referido dispositivo
acolhe a teoria menor da desconsideração, em especial se considerado for a
expressão ‘também poderá ser desconsiderada´, o que representa, de forma
inegável, a adoção de pressupostos autônomos à incidência da desconsideração”
(R E C U R S O E S P E C I A L N º 2 7 9 . 2 7 3 – S P . R e l a t o r a p a r a o A c ó r d ã o , M i n . N a n c y
Andrighi, DJ de 29.03.2004).

27
A partir do julgado citado na nota de rodapé anterior, a terceira turma do
Superior Tribunal de Justiça passou a adotar dois caminhos na aplicação da
desconsideração da pessoa jurídica. Em se tratando de relações de consumo, por
força do §5º ao art. 28 do Código de Defesa do Consumidor e, também, em matéria
de direito ambiental, por força do art. 4.º da Lei n.º 9.605/1998, bastariam os
indícios de insolvência para que a grave medida se operasse. Nas demais situações,
seria aplicável a teoria maior, que exigiria a configuração do exercício abusivo da
personalidade jurídica como pressuposto para a desconsideração, nos termos do
art. 50 do Código Civil. Percebe‐se, no entanto, que mesmo na aplicação da
chamada teoria menor, atualmente a segunda turma do Superior Tribunal de Justiça
desenvolve um cuidado maior na verificação do estado de insolvência (para além da
mera avaliação do capital social comparada com uma expectativa hipotética de
passiva, tal como no precedente antes citado). Cite‐se, nesse sentido, acórdão da
mesma relatora, Ministra Nancy Andrighi, em que se exige uma maior demonstração
d o o b s t á c u l o a o r e s s a r c i m e n t o d o s c o n s u m i d o r e s : “(...) Antes do novo Código Civil, essa
teoria encontrou disciplina nas leis trabalhistas, no Código de Defesa do Consumidor, na Lei n. 8.884⁄94
e na Lei n. 9.605⁄98, diplomas que, mais amplos, deram azo a duas teorias, uma chamada “teoria
maior”, que adota o pressuposto entalhado no Código Civil, e a outra denominada “teoria menor”,
segundo a qual a mera insuficiência patrimonial é bastante para a aplicação da teoria da
despersonalização.Todavia, não creio que essa “teoria menor” encontre fundamento em nosso direito.
A doutrina do Disregard of legal entity nasceu, e ainda vige, com o intuito de afastar as limitações que a
personificação da sociedade jurídica impõe quanto ao alcance dos bens dos sócios e⁄ou administradores
que utilizam‐na em desconformidade com o ordenamento jurídico e mediante fraude, vindo a
enriquecerem em detrimento da sociedade. Portanto, o elemento abuso de direito pressupõe e informa
o instituto do disregard doctrine. Sendo a separação patrimonial dos bens empresariais e dos sócios o
fim da personalização da pessoa jurídica, na hipótese de se pretender superar essa separação, para
atingir os bens particulares dos sócios que agiram com abuso de direito, haverá de se desconsiderar a
personalização, retirando a sociedade da relação obrigacional, porquanto, se ela permanecer, estar‐se‐á
considerando‐a, e não o contrário. Assim, na hipótese em que ambos – sócios e sociedades –
respondam pela obrigação, haverá a figura da responsabilidade solidária ou subsidiária, conforme o
caso, o que não se confunde com o disregard doctrine, embora cada qual seja um modo de
responsabilização. Em direito ambiental, a despersonalização da pessoa jurídica está prevista no art. 4º
da Lei n. 9.605⁄98: “Art. 4º. Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade
for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.” No caso dos
autos, não restou caracterizado o abuso da personalização societária em relação à poluição perpetrada
no meio ambiente. Houve sim, um grande descaso com o patrimônio público. A norma legal acima
citada é bastante clara ao estabelecer que a despersonalização tem lugar quando a personalização da
pessoa jurídica constituir obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos ambientais. Assim, em que pese meu
entendimento de que tal dispositivo tem de ser interpretado em consonância com os princípios
informadores da teoria da desconsideração, in casu, sequer foi aventada a hipótese da existência de
obstáculos à reparação buscada. Ao contrário, as informações trazidas pelas mineradoras, em suas
peças recursais, dão conta de que os trabalhos de recuperação já foram iniciados” (RECURSO ESPECIAL
Nº 876.974 – SP. Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 09.08.2007). Registre‐se que há acordão da
segunda turma, de relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, que inclusive afasta expressamente a
aplicação da chamada teoria menor: “(...) não creio que essa ‘teoria menor’ encontre fundamento em
nosso direito. A doutrina do Disregard of legal entity nasceu, e ainda vige, com o intuito de afastar as
imitações que a personificação da sociedade jurídica impõe quando ao alcance dos bens dos sócios e/ou
administradores que utilizam‐na em desconformidade com o ordenamento jurídico e mediante fraude,
vindo a enriquecerem em detrimento da sociedade. Portanto, o elemento abuso de direito pressupõe e
informa o institto da disregard doctrine (RECURSO ESPECIAL N.º 647.493‐SC. Relator Ministro João
Otávio de Noronha. DJ 22.10.2007, sublinhado no original). A preocupação com uma excessiva
abrangência na utilização da desconsideração da personalidade jurídica é expressa, por exemplo, em
voto vista do Ministro Aldir Passarinho Júnior, em que afirma: “O importante, ao meu ver, é não se
banalizar o instituto do ‘disregard’, aplicando‐o a qualquer caso. Este excesso a 4ª Turma tem,
reiteradamente, podado (STJ. Recurso Especial n.º 1.180.714‐RJ. Rel. Ministro Luis Felipe Salomão. DJE.
06/05/2011). O cuidado para se evitar uma banalização do intituto, ao meu ver, decorre e justifica‐se a
partir de julgados anteriores do próprio Superior Tribunal de Justiça e dos demais Tribunais, e
atualmente é reiterado em praticamente todas as decisões do STJ. Cite‐se, ainda, nesse mesmo
sentido:(...) para a desconsideração da personalidade jurídica não basta a existência de um dano
provocado pela sociedade ou pelo sócio ou de uma dívida por qualquer deles assumida. A pessoa
jurídica tem existência própria, distinta das pessoas físicas que a compõem, e tem, imanente, o princípio
da autonomia patrimonial, de sorte a, via de regra, não permitir a confusão entre seus bens e aqueles
de seus sócios. A excepcional penetração no âmago da pessoa jurídica, com o levantamento do manto
que protege essa independência patrimonial, exige a presença do pressuposto específico do abuso da
personalidade jurídica, com a finalidade de lesão a direito de terceiro, infração da lei ou
descumprimento de contrato. Em outras palavras, há de se ter presente a efetiva manipulação da
autonomia patrimonial da sociedade em prol de terceiros. Nesse contexto, o não recebimento, pelo
credor, de seu crédito frente à sociedade, em decorrência da insuficiência de patrimônio social, não é
requisito bastante para autorizar a desconsideração da personalidade jurídica e conseqüente avanço
sobre o patrimônio particular dos sócios. Estando o capital social integralizado, estes não respondem
pelas dívidas sociais, salvo nas situações em que ficar caracterizada a administração irregular. A falta de
bens da empresa, necessários à satisfação das dívidas contraídas pela sociedade, consiste, a rigor, em
pressuposto para a decretação da falência e não para a desconsideração da personalidade jurídica” (STJ.
RECURSO ESPECIAL Nº 787.457 ‐ PR. Relatora. Min. Eliana Calmon. j. 14/08/2007). Ainda a esse
respeito: “(...) A possibilidade de ignorar a autonomia patrimonial da empresa e responsabilizar
diretamente o sócio por obrigação que cabia à sociedade, torna imprescindível, no caso concreto, a
análise dos vícios no uso da pessoa jurídica por se tratar de medida que excepciona a regra de
autonomia da personalidade jurídica, e como tal, deve ter sua aplicação devidamente justificada, pois
atinge direito de terceiro que não fez parte da relação processual original (STJ. Recurso em Mandado de
segurança n.º 25.251. Rel. Ministro Luis Felipe Salomão. DJe 03/05/2010). Os acórdãos aqui
apresentados foram levantados e discutidos em grupo de estudos formados pelos estudantes do curso
de graduação Carolina Raboni e Ricardo Busana Galvão Bueno e, também, pelo mestrando Rafael Santos
Pinto e o recém mestre João Paulo Capelotti, todos da Universidade Federal do Paraná.
E não é só isso.

É certo que, em muitas vezes, não obstante se utilizar o termo


desconsideração da personalidade jurídica, sob um olhar crítico, tal
medida efetivamente não se verifica.

A autêntica desconsideração da pessoa jurídica pressupõe uma


limitação da eficácia típica da personificação, que corresponde à
composição de um sujeito de direito autônomo, que titulariza uma
esfera jurídica separada e um patrimônio distinto daqueles sócios,
acionistas, fundadores ou associados que lhe constituíram.

Não é incomum perceber que em situações de


responsabilidade solidária entre o sócio e a sociedade ou, ainda, em
casos de responsabilidade do administrador por atos praticados pela
companhia, a despeito da pessoa jurídica não ser efetivamente
desconsiderada, tal teoria constantemente é invocada (ainda que não
se verifique uma limitação da eficácia típica da personificação).

Qualquer extensão eficacial de situações jurídicas passivas


para além da pessoa jurídica costuma ser fundamentada na teoria de
sua desconsideração, mesmo que a consequência jurídica não seja
fruto da limitação da eficácia jurídica típica da personificação.

As situações são completamente distintas e deveriam ser


tratadas de maneiras diferentes. A responsabilidade pessoal do
administrador, por exemplo, se dá por uma imputação direta de um
dever a alguém diverso da pessoa jurídica que, muitas vezes, não
compõe o quadro de sócios.

Não se desconsidera, não se limita, não se altera a eficácia da


personificação em nada. Apenas e tão somente atribui-se a alguém
diverso da pessoa jurídica a responsabilidade de atos por esse alguém na
qualidade de administrador da pessoa jurídica28.
28
Em acórdão relatado pelo Ministro Luis Felipe Salomão, fixa‐se a distinção entre a desconsideração da
personalidade jurídica e a responsabilidade do administrador, tantas vezes cambulhada pela legislação
(como, p.ex., no art. 50 do Código Civil), com repercussão na jurisprudência: “(...) não há como
confundir a ação de responsabilidade dos sócios e administradores da sociedade falida (art. 6.º do
Decreto‐lei n.º 7.661/45 e art. 82 da Lei n.º 11.101/05), com a desconsideração da personalidade
jurídica da empresa. A responsabilização dos sócios ocorre quando estes, por ato próprio, praticam a
O Código Civil de 2002 encaminhou essa grave indistinção no
art. 50, que trata das situações de desconsideração da pessoa
jurídica29. O anteprojeto de novo código comercial parece seguir
passos ainda mais equivocados, ao atribuir uma responsabilidade
especial ao sócio controlador pelas obrigações trabalhistas
independentemente de qualquer desvio funcional das sociedades30.

Tal postura, obviamente, dificulta e, nalguma medida,


vulgariza a teoria31.

Concluímos que a proliferação legislativa em tema de


desconsideração da personalidade jurídica acabou por agravar a
crise de função, ao se sustentar no mesmo normativismo outrora
denunciado por Lamartine Corrêa.

Por vias tortuosas, isso encaminha, no tempo presente, um


retorno do problema ao Poder Judiciário para que se avalie e se
interprete as situações concretas da vida social em que se sucede um
descompasso funcional apto a justificar a gravíssima medida da
desconsideração.

abusividade lesiva à sociedade (ultra vires, por exemplo), ao passo que na desconsideração da
personalidade jurídica é a pessoa moral que tem seu uso desvirtuado, por ato dela, tudo em benefício
dos sócios e administradores. Ou seja, na primeira, não há um sujeito oculto, ao contrário, é plenamente
identificável e evidente, e sua ação infringe seus próprios deveres de sócio/administrador, ao passo que
na segunda, supera‐se a personalidade jurídica sob cujo manto se escondia a pessoa oculta, exatamente
para evidenciá‐la como verdadeira beneficiária dos atos fraudulentos” (STJ. RECURSO ESPECIAL N.º
1.180.714‐RJ. Min. Luis Felipe Salomão. DJE: 06/05/2011).
29
“A r t . 5 0 . E m c a s o d e a b u s o d a p e r s o n a l i d a d e j u r í d i c a , c a r a c t e r i z a d o p e l o d e s v i o d e
finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da
parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os
efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens
particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
30
“Art. 184. Sem prejuízo do disposto no artigo antecedente, o acionista controlador responde por
obrigação trabalhista da sociedade anônima até o limite da totalidade dos dividendos, juros sobre o
capital e demais participações nos resultados sociais, que dela tiver recebido desde o exercício em que
teve início o contrato de trabalho firmado entre a sociedade anônima e o credor” (COELHO, Fabio Ulhoa.
O futuro do direito comercial. São Paulo : Saraiva, 2011, p.47)
31
Desenvolvemos o assunto noutra oportunidade, cf. LEONARDO, Rodrigo Xavier. A pessoa jurídica no
direito privado do século XXI. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (org.).
Manual de teoria geral do Direito Civil. 1.ed. Belo Horizonte : Del Rey, 2011, p.385. Uma interessante
leitura crítica da banalização da desconsideração da pessoa jurídica é apresentada por NUNES, Márcio
Tadeu Guimarães. Desconstruindo a desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo : Quartier
Latin, 2007.
VI. Da crise do reconhecimento à perda da centralidade.

A crise de reconhecimento apontada por Lamartine Corrêa,


em considerável medida, indicava uma inconguência estrutural
entre a opção do Código Civil de 1916, em estabelecer um número
fechado de entidades que seriam consideradas pessoas jurídicas de
direito privado, comparada à realidade social, na qual inúmeras
outras entidades atuariam tal como se pessoas jurídicas fossem.

Nesse particular, o Código Civil de 2002 não promoveu


alterações substanciais, mantendo a questão sob os mesmos
quadrantes. Pelo texto codificado, a pessoa jurídica continua a
corresponder um restrito número fechado de entidades (art.44,
CCB), que têm seu ato constitutivo levado ao registro adequado
(art.45, CCB).

Por um viés mais amplo, no entanto, o assunto se tornou


muito mais complexo no ordenamento jurídico brasileiro
contemporâneo, permitindo que a crise de reconhecimento tomasse
proporções muito diferentes daquelas anteriormente denunciadas.

A personificação em situações nas quais os dados de realidade


institucional mínimos não se mostram presentes talvez indique uma
crise ainda maior, decorrente da excessiva ampliação do catálogo de
pessoas jurídicas, assim consideradas apenas e tão somente pelo
arbítrio e pela conveniência do legislador, sem qualquer
correspondência ao que, em realidade, até então se considerava
como tal.

A adoção pelo direito brasileiro das chamadas empresas


individuais de responsabilidade limitada, que se tornaram espécie de
pessoa jurídica pela Lei n.º 12.441/2011, é um exemplo expressivo
dessa transformação.

A um só tempo, mantém-se a tipicidade fechada do elenco de


pessoas jurídicas e amplia-se esse rol sem qualquer preocupação
com uma efetiva correspondência de autonomia institucional na
realidade social.
Por outro lado, outros centros autônomos que servem para a
imputação de direitos e deveres são cotidianamente reconhecidos
como aptos a desenvolver atividades juridicamente relevantes
independentemente da personificação (pelo menos pela exigência de
atos constitutivos escritos levados ao registro, nos termos do art. 45
do Código Civil).

Isto assim se sucede, por exemplo, pela atribuição de


competências para que organizações associativas participem da
construção de soluções em espaços democráticos
independentemente da personificação32.

Com efeito, um olhar crítico sobre o ordenamento jurídico


brasileiro pode demonstrar como a diretiva política de ampliação
dos espaços democráticos adota como um dos seus principais
pilares a abertura à participação de organizações associativas,
sobretudo àquelas de caráter local. As hipóteses, ainda que
meramente exemplificativas, são expressivas33.

32
Em tese de doutoramento, defendemos que a Constituição Federal atribuiu competências para o
desenvolvimento de relevantes atividades por organizações associativas independentemente dessas
entidades ostentarem estatutos escritos e registrados: “referidas organizações – pela projeção social
que alcançam e não pela existência de estatutos escritos e inscritos – constituem núcleos
institucionalizados para o exercício de direitos coletivos (...) Partindo‐se do pressuposto de que, no
presente momento histórico, objetiva‐se construir uma sociedade pluralista, não parece admissível que
o reconhecimento das associações em sentido estrito mantenha‐se dependente de um ato registral que,
em última análise, é de competência unificada do Estado. Referido raciocínio, por sua circularidade, faria
com que o pluralismo objetivado fosse fulminado pelo mesmo Estado que lhe projeta”.E, naquela
oportunidade, concluímos: “De que adianta atribuir competências para as associações em sentido
estrito, visando descentralizar o desenvolvimento de atividades de sensível relevância social, se o
reconhecimento dessas mesmas associações ficar dependente de um unificado ato estatal?”
(LEONARDO, Rodrigo Xavier. As associações em sentido estrito. Tese de doutorado defendida perante o
Programa de Pós‐Graduação da Universidade de São Paulo – USP. Orientador: Prof. Dr. Alcides
Tomasetti Jr, São Paulo, 2006, p.186).
33
O art. 29, incisos XII e XIII da Constituição Federal, ao tratar da organização dos
Municípios (com original posição na história federativa brasileira), estabelece a cooperação de associações
para o planejamento das cidades. No item pertinente à assistência social, o art. 204 da Constituição Federal
determina uma política de descentralização que, expressamente, menciona a possibilidade de participação
da população por intermédio de organizações representativas. Os artigos 231 e 232 da Constituição
Federal reconhecem a comunidade dos índios, atribuindo às suas organizações legitimidade para ingressar
33
em juízo em defesa de seus direitos e interesses . Mais adiante, no art. 68 do ADCT, atribui‐se aos
remanescentes das comunidades dos quilombos a propriedade definitiva das terras que estejam
ocupando. Há um traço comum em todas essas hipóteses normativas. Todas essas normas poderiam ser
classificadas como normas secundárias de competência, adotando‐se, aqui, a classificação de Herbert
Hart. Nelas, não se determinam propriamente condutas que devam ser praticadas por essas
associações, encaminha‐se a atribuição de competências para o desenvolvimento dalgumas atividades
nelas descritas (Sobre o assunto, cf. HART, Herbert. El concepto del derecho. Trad. Genario Carrió. 2.ed.
Outro exemplo se dá com a crescente adoção dos chamados
patrimônios de afetação, que se apresentam como outra via à
separação patrimonial, talvez até mesmo em resposta à pessoa
jurídica desconsiderada ante tantas hipóteses de sua desconsideração,
tal como sustentamos no item precedente34.

Constata-se, ainda, que determinadas organizações


deliberadamente se afastam da personificação, segundo os
requisitos traçados pelo direito objetivo, como estratégia de
atuação35.

E a crise de reconhecimento, observada por Lamartine Corrêa,


foi em alguma medida invertida. Por outros meios, foram abertas
portas para o desenvolvimento de atividades por entidades que não
se submetem aos critérios para a atribuição da personalidade
jurídica, diluindo a centralidade da personificação no ordenamento
jurídico.

Não mais existe correspondência entre a noção de sujeito de


direito e o binômio pessoa humana e pessoa jurídica. Há inúmeros

México: Nacional, 1980. p.113‐117, e também BOBBIO, Norberto. Studi per una teoria generale del
diritto. Torino: Giappichelli, 1970. p.180.

34
A respeito do assunto, permita‐se citar dissertação de mestrado, defendida perante o Programa de
Pós‐Graduação em Direito da UFPR, que trata do assunto com ineditismo. Cf. (XAVIER, Luciana Pedroso.
As teorias do patrimônio e o patrimônio de afetação na incorporação imobiliária. Dissertação de
mestrado defendida perante o Programa de Pós‐Graduação da Universidade Federal do Paraná – UFPR.
Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Xavier Leonardo, Curitiba, 2011, p.97).
35
“(...) naquilo que doutrinariamente se conheceu por crise da pessoa jurídica, sublinhe‐se que o
surgimento de diversas organizações que, por estratégia, recusam‐se submeter ao prévio registro para obter
a personificação demonstra uma situação inusitada: a pessoa jurídica, tal como concebida
tradicionalmente, perdeu sua exclusividade como meio para a conformação de núcleos
institucionalizados para o desenvolvimento de atividades coletivas. Justamente por isto, a
personificação (pelo menos tal como concebida e retratada no Código Civil) não detém mais
exclusividade na conformação dos grupos organizados ainda que, doutrinariamente, não se reconheça
isto. As estratégias sociais de ação coletiva, deliberadamente, muitas vezes são feitas à margem dos critérios
tradicionais de personificação das organizações. Não obstante isto, tais organizações atuam com tal
intensidade e eficiência social que se torna verdadeiramente impossível ignorar a sua existência jurídica.
Mais que isto. Referida postura teórica ignora que o próprio ordenamento jurídico confere competências a
essas organizações independente de estarem previamente registradas ou não” (LEONARDO, as
associações em sentido estrito, 2006, p.187).
sujeitos de direito que titularizam situações jurídicas ativas e passivas
que não são pessoas36.

A pessoa jurídica, portanto, perdeu a sua centralidade e


convive com diversos outros suportes para se alcançar o efeito da
autonomia das esferas jurídicas e da separação patrimonial. Isto é
sintoma de uma nova crise de reconhecimento, com contornos
próprios ao século XXI.

IV. A pessoa jurídica e os desafios para o futuro

Das teorias analíticas colhe-se a crítica sobre as possibilidades


de se encerrar no termo pessoa jurídica uma realidade única, imóvel e
imutável no tempo e no espaço.

Não se pode negar que as sucessivas e diferentes crises do


instituto da pessoa jurídica transformaram-na severamente. Talvez
como resultado de uma época de incertezas e imprecisões
conceituais, a pessoa jurídica foi conceitualmente dilarecerada e
parte de suas funções até mesmo foram transportadas para outros
institutos.

Nesse contexto, há diversos desafios. Tal como outros


institutos de direito privado submetidos a transformações, é
necessário um trabalho de reconstrução e de readequação à
sociedade contemporânea, inclusive sopesando os riscos que os
excessos da desconsideração da pessoa jurídica encaminharam.

De outro vértice, a maior inserção do Brasil na economia


internacional exige providências compatíveis na estruturação do
direito privado.

Já faz algum tempo que o direito privado europeu convive,


por exemplo, com o desafio da comunicação cultural entre as figuras

36
LEONARDO, Rodrigo Xavier. Sujeito de direito e capacidade: contribuição para uma revisão da teoria
geral do direito civil à luz do pensamento de Marcos Bernardes de Mello. In: DIDDIER JR, Freddie;
EHRHARDT JR, Marcos (org). Revisitando a teoria do fato jurídico. 1.ed. São Paulo : Saraiva, 2010,
p.549‐570.
personificadas do civil law e o trust, proveniente do direito anglo-
americano.

O Brasil não pode escapar de semelhante desafio e, mais uma


vez, as universidades públicas e, particularmente, a Universidade
Federal do Paraná ostenta um papel relevante na reflexão e
construção crítica desse futuro, alicerçada na tradição e no
conhecimento dos seus mestres que se foram.

V. Referências bibliográficas

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