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Dossiê: Comunicação e estudos biográficos

NARRATIVAS DE SI E MEMÓRIA COLETIVA NO FACEBOOK

Self-narratives and collective memory on Facebook

Narrativas del yo y memoria colectiva en Facebook

Barbara Heller1
Alessandra Lourenço Simões2

Resumo
Narrativas de si, que antes pertenciam ao mundo privado, ganharam caráter público e dinâmico com o advento das redes
sociais, entre elas o Facebook. Concluímos, a partir de alguns exemplos e de estudiosos da memória social e das mídias
digitais, que esse fenômeno aponta novos contratos de leitura e de escrita, potencializa novos rearranjos de socialização, bem
como rompe fronteiras que separam a esfera privada da pública.
Palavras-chave: Narrativas de si. Memória individual e coletiva. Memória Digital. Rede Social

Abstract
Self-narratives, which before belonged to the private world, got a public and dynamic character with the advent of social
networks, including Facebook. We conclude, based on some examples, on social memory scholars and digital media, that this
phenomenon points to new reading and writing contracts, leverages new rearrangements of socialization, and breaks down
boundaries that separate the private from the public sphere.
Keywords: Self- narratives. Individual and collective memory. Digital Memory. Social network.

Resumen
Narrativas del yo, que antes pertenecían al mundo privado, han ganado un carácter público y dinámico con la llegada de las
redes sociales, incluido Facebook. Concluimos, basándonos en algunos ejemplos y estudiosos de la memoria social y los
medios digitales, que este fenómeno apunta a nuevos contratos de lectura y escritura, potencia nuevos reordenamientos de la
socialización, así como la ruptura de los límites que separan la esfera privada de la pública.
Palabras-clave: Narrativas del yo. Memoria individual y colectiva. Memoria digital. Red social.

1 Doutora. Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista, São Paulo. SP- Brasil, b.heller.sp@gmail.com |
https://orcid.org/0000-0002-8997-0155
2 Doutora; FATEC Rubens Lara, Santos, SP - Brasil. ales1308@hotmail.com | https://orcid.org/0000-0001-6833-9498

Artigo submetido em: agosto/2022. Aprovado em: outubro/2022.


Esferas, ano 12, vol. 2, nº 25, setembro-dezembro de 2022.
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Dossiê: Comunicação e estudos biográficos

Introdução

Redes sociais virtuais tornaram-se espaços privilegiados para registros de narrativas pessoais, a
partir dos anos 2000, com a popularização da internet (SANTIAGO de SÁ & HELLER, 2018, p. 34). Por
meio delas passamos a produzir e a receber, incessantemente, conteúdos por meio de textos, fotos,
vídeos e outros recursos multimídia. O Facebook é hoje uma plataforma de comunicação e entretenimento
com expressivo número de usuários ativos, algo em torno de 2.910 bilhões espalhados pelo mundo
(KEMP, 2022, p. 99). A velocidade do seu crescimento ajuda a compreender essa cifra: para chegar a 50
milhões de usuários, por exemplo, o rádio precisou de 38 anos; a televisão, 23; a internet, quatro, e o
Facebook apenas nove meses para superar 100 milhões, quando abriu sua plataforma ao público em
geral, em setembro de 2006 (LÓPEZ & CIUFFOLI, 2012, p. 27). Tal desempenho, em tão curto espaço de
tempo, justifica sua escolha como objeto para refletirmos sobre o caráter público e dinâmico que as
narrativas de si, como passaremos a chamá-las, ganharam na contemporaneidade.
Em tempos não muito distantes, isto é, até o final do século XX, nosso cotidiano era registrado
exclusivamente na esfera privada, isto é, no lugar que “abriga coisas ocultas aos olhos humanos e
impenetráveis ao conhecimento humano” (ARENDT, 2007, p. 72) e que protege a intimidade (ARENDT,
2007, p. 48). Na analogia que agora propomos, os diários particulares cumpriam a mesma função, ou
seja, a confissão de intimidades em ambiente seguro, aos quais tinha acesso apenas quem fosse
autorizado ou burlasse a privacidade alheia.
Atualmente, narrativas de si são publicadas para circularem, serem lidas e comentadas
publicamente. Acessadas por quem “segue” esses perfis ou por amigos de amigos, ampliam,

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potencialmente, o círculo social digital e redes de influência, graças às diferentes configurações de


privacidade (LÓPEZ & CIUFFOLI, 2012, p. 63).
Por meio de filtros, o Facebook veicula imediatamente as percepções dos mais variados
acontecimentos de seus usuários: desde o interesse em eventos, de terem sido adicionados em um grupo,
estado de humor, dos locais por onde passaram, além de vídeos e fotografias em que “marcam” terceiros
e a si mesmos etc. Em outras palavras:

no Facebook há sempre um ‘eu’ que comunica, que diz, que publica, que comenta, e isto
é claramente uma herança dos blogs, que constituem ‘uma genuina expressão das
‘tecnologias do eu’, na qual o autor, sem nenhum tipo de intermediação editorial e graças
a um sistema muito eficiente de gestão de conteúdos, se converte em um ‘global publisher’,
uma voz pessoal que pode falar a todo o mundo’ (ORIHUELA, 2007 como citado em
LÓPEZ & CIUFFOLI, 2012, p. 58)3.

Trata-se, assim, de textos em que imperam a subjetividade, a confissão e, talvez o mais importante:
a crença na verdade e na sinceridade. O Facebook é alimentado e frequentado por pessoas de todas as
idades, gêneros e estratos sociais, desde que tenham acesso à internet, conheçam o idioma em uso,
familiaridade com a escrita e com as várias modalidades de leitura. Afinal, o “Facebook é, antes de tudo,
um espaço de escritura” (LÓPEZ & CIUFFOLI, 2012, p. 100) e de circulação (LÓPEZ & CIUFFOLI, 2012,
p. 104), mas com particularidades que o diferenciam dos impressos: não há como hierarquizar parágrafos,
usar negrito ou itálico, trocar as cores ou os tipos das fontes, além de espaço e tempo não serem fixos.

3 Tradução nossa. No original: “Em Facebook siempre hay un ‘yo’ que comunica, que dice, que publica, que comenta, y en esto es claramente heredero de
los blogs, que constituyen ‘una genuina expresión de las ‘tecnologías del yo’, en las que el autor, sin ningún tipo de intermediación editorial y gracias a un
sistema muy eficiente de gestión de contenidos, se convierte en un ‘global publisher’, una voz personal que puede hablarte a todo el mundo’.”

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Raramente esses textos são revisados, uma vez que os usuários não se preocupam com a norma culta e
não pretendem conservá-los ao longo do tempo, graças às inúmeras publicações que surgem
mundialmente a cada segundo.
Embora não tenham sido escritas para perdurar, essas narrativas ficam armazenadas na plataforma
e podem ser acessadas por meio de suas ferramentas. Com o passar do tempo (normalmente, quando
completam um ou mais anos), tornam-se memórias ou lembranças republicadas automaticamente pelos
algoritmos, permitindo aos seus autores e a seus amigos visualizá-las novamente.
O ato de narrar, por ser uma característica humana, realizado inúmeras vezes, todos os dias, ao
longo de toda a vida das pessoas, já mereceu atenção de muitas áreas de conhecimento. Trataram das
narrativas desde a análise do discurso, como Michel Foucault, em A ordem do discurso (1996), a
sociologia, como Pierre Bourdieu, em Usos e abusos da história oral (2006), a psicologia social, como
Eclea Bosi, em Memória e sociedade (1994), para destacar apenas alguns.
Neste artigo, destacamos os estudos da comunicação, da narrativa, da memória social e da filosofia
de: Maurice Halbwachs, autor de Memória coletiva (1990); Philipe Nora, de Entre memória e história: a
problemática dos lugares (1993); Sergio da Silva Barcellos, de Escrita do eu, refúgio do outro (2020); Luís
Mauro Martino, de De um eu ao outro: narrativa, identidade e comunicação com a alteridade (2016); Gleny
Duro Guimarães, de Aspectos da teoria do cotidiano (2002); Philipe Lejeune, de O pacto autobiográfico
(2014); e Hanna Arendt, de A condição humana (2007), entre outros.
Este artigo tem, portanto, como objetivo analisar qualitativa e teoricamente como as narrativas de
si, originalmente da esfera privada, se transformam em memórias coletivas e públicas por meio de novos
contratos de escrita, de circulação e de leitura. Para isso, usaremos exemplos extraídos da própria
plataforma para compreendermos, por meio de análise descritiva, as diferentes familiaridades e interações

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estabelecidas pelas suas regras e seus algoritmos. O artigo organiza-se em torno de dois eixos: o primeiro
discute a importância da narrativa na vida cotidiana e suas implicações na memória social; o segundo
analisa o Facebook e sua contribuição para a formação da memória coletiva digital em detrimento da
privada.

Narrativa, cotidiano e memória

O ato de narrar acompanha o ser humano desde seus tempos primórdios e seus suportes se
adéquam conforme a tecnologia avança ao longo dos muitos milênios:

. . . narrar é uma manifestação que acompanha o homem desde sua origem. As gravações
em pedra nos tempos da caverna, por exemplo, são narrações. Os mitos – histórias das
origens (de um povo, de objetos, de lugares) –, transmitidos pelos povos através das
gerações, são narrativas; a Bíblia – livro que condensa história, filosofia e dogmas do povo
cristão – compreende muitas narrativas: da origem do homem e da mulher, dos milagres
de Jesus etc. (GANCHO, 1991, p. 4).

Neste artigo, em que analisaremos narrativas de si por meio do Facebook, partimos da ideia de
que narrar nada mais é que relatar fatos, contar uma história na qual personagens transitam em uma
ordem cronológica, em um determinado espaço e que se retroalimentam. Entendemos que embora
possam conter elementos imaginados, não comprováveis, as narrativas de si são contadas para fazer
crer. Estabelece-se um vínculo de confiança entre quem conta e ouve, entre autor – uma pessoa real
socialmente responsável e produtora de um discurso – e o leitor (LEJEUNE, 2014, p. 27). A partir de então,

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estabelece-se um pacto de confiança, um “contrato implícito ou explícito proposto pelo autor ao leitor,
contrato que determina o modo de leitura do texto”, mas também um tipo de escrita, “historicamente
variável” (LEJEUNE, 2014, p. 54).
Como lembra Walter Benjamin, “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que
recorrem todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem
das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos” (1994, p. 198). Para Martino (2016, p.
42), vínculos sociais imprevistos podem ser criados pelas narrativas, pois ao contar histórias
compartilhamos, com outras pessoas, sem controle, fatos, recordações, sentimentos, sendo “um
momento privilegiado para se pensar e entender o ato comunicacional como uma forma de encontro com
o outro”. Ainda segundo o mesmo autor (2016, p. 44), narrar é “elaborar um conjunto de enunciados que
faça algum sentido em si mesmo dentro de uma perspectiva compreensível a respeito de fenômenos”.
É a partir das narrativas que tomamos conhecimento de boa parte dos acontecimentos, sem
necessariamente estarmos presentes no momento do evento. Isso se dá tanto para as narrativas pessoais
e do dia a dia quanto para as narrativas jornalísticas e de outras categorias (Martino, 2016, p. 44). Em se
tratando do cotidiano, podemos considerá-las, de acordo com Guimarães (2002, p. 11), como a
“representação social do dia a dia”, ou seja, as ações que realizamos rotineiramente. Por intermédio delas,
ressignificamos os acontecimentos diários previamente selecionados, ou seja, narramos somente fatos
que gostaríamos que se tornassem públicos.
Para Guimarães (2002, p. 12), as escolhas sobre o que será narrado acabam por determinar os
valores atribuídos aos acontecimentos e fatos, ou seja, podemos narrar somente aquilo que entendemos
como importante, sob nossa perspectiva. Martino (2016, p. 45) afirma que a escolha do que será narrado

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pode traduzir a maneira como conhecemos a realidade ou entendemos o mundo e, assim, contamos aos
outros:

O ato de narrar, se por um lado é dirigido a uma exterioridade, por outro lado não pode ser
separado de uma interioridade que deve apreender, anteriormente, os elementos do
que será contado: em outras palavras, só posso contar uma história na medida em
que aprendo e compreendo os fatos que serão transformados nos elementos
fundamentais dessa história; no entanto, essa apreensão acontece exclusivamente de
acordo com meus próprios modos de conhecer, que, longe de serem exclusivamente
meus, são constituídos ao longo de minha vida, de meus relacionamentos, de minha
trajetória dentro da sociedade. Narro a partir do que sei, mas o que sei está ligado
diretamente às condições que tenho para conhecer a realidade.

Ao narrarmos nosso cotidiano aos outros estabelecemos relações, formamos redes de


conhecimento e significações, criamos um espaço social e um lugar de experiência, isto é, apresentamos
“a relação dos seres humanos com as coisas e a relação dos seres humanos entre si” (LACOMBE, 2008,
p. 159).
Também podemos narrar o nosso cotidiano apenas para nós mesmos, em um diário pessoal ou
íntimo. Ali relatamos por meio de textos, figuras, fotos, entre outros recursos, os acontecimentos diários
que julgamos mais importantes para nossa leitura posterior (LIMA & SANTIAGO, 2010, p. 23).
Entendemos que as narrativas de si, em uma plataforma como a do Facebook, aproximam-se da
noção de diário defendida por Barcellos:

. . . um espaço de relação, de convivência, de vivência e de desempenho de funções


(existenciais, sociais, religiosas, etc.), apontando para o sentido oposto do estigma de

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refúgio do eu, a começar pela forma como o eu se reconhece: não mais como centro, mas
como parte de um todo (2020, p. 4).

Narramos nosso cotidiano com certa “entonação”, isto é, selecionamos todos os fatos que mais
chamaram nossa atenção em detrimento de outros eventos, tornando-os mais importantes,
diferentemente de outras testemunhas, que poderiam considerá-los menores. É essa seleção subjetiva
que acaba por mostrar nossa maneira de ser e de estar no espaço-tempo, pois nunca os mesmos eventos
são tratados da forma igual por todos (GUIMARÃES, 2002, p. 15).
Essa autora ainda pondera (2002, p. 20) que, possivelmente, muitos narradores acham seus
cotidianos pouco atraentes e acabam por inventar rotinas que nunca existiram, hipótese que confirma a
necessidade de contrato pensado por Lejeune, sem o qual essas narrativas deixariam de circular.
Tais narrativas de si, independentemente dos seus suportes e das verdades que contêm, assim
que se materializam, se tornam memórias ou lembranças. Para efeito de clareza, consideramos que a
memória é o lugar onde as lembranças são armazenadas como representações (ou reconstruções) de
fatos ocorridos no passado, carregadas de fator emocional, mas nem sempre acessadas.
Compartilhamos com Bergson que

o passado se conserva indefinidamente. A memória... não é uma faculdade de classificar


recordações numa gaveta ou de inscrevê-la num registro . . . Na verdade, o passado se
conserva por si mesmo, automaticamente. . . O mecanismo cerebral é feito precisamente
para recalcar a quase totalidade do passado no inconsciente e só introduzir na consciência
o que for de natureza que esclareça a situação presente . . . (2006, pp. 47-48).

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Uma vez que a memória é “recalcada”, conforme lembra Bergson, a ideia de memória coletiva,
pensada por Maurice Halbwachs, ajuda-nos a entender os mecanismos por meio dos quais, ainda assim,
muitas delas são ativadas: “nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros,
ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós
vimos” (HALBWACHS, 1990, p. 26).
Silva, em seu trabalho, retoma as considerações de Halbwachs (1990) sobre seu conceito de
lembrança:

As lembranças, sobretudo, são representações que se baseiam, mesmo que em partes,


em testemunhos e deduções, reconstrução, especialmente nos seguintes aspectos: de um
lado porque não é mera repetição dos fatos/eventos/vivências que se estabeleceram no
passado, mas acima de tudo, por ser responsável pelo resgaste desses acontecimentos,
que se dão a partir de interesses e preocupações atuais . . . (SILVA, 2016, p. 251).

Segundo Pollak (1989, p. 13), a memória ordena os acontecimentos da história de vida das
pessoas, dá certa coerência e organização cronológica, baliza a existência por meio de laços lógicos de
acontecimentos, os quais selecionamos ou consideramos como “chave”: “O que a memória individual
grava, recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização”
(Pollak, 1992, p. 5). Ou seja, a partir da narração da memória, ativamos acontecimentos, fatos, objetos ou
eventos do passado ao tempo presente, seguindo uma certa ordem cronológica e seleção:

O ato de relembrar e reconstruir o passado partindo do presente tem grande importância


não apenas para aquele que lembra, pois as vivências de cada um podem contribuir para

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a análise de uma conjuntura do cotidiano, dos valores e da cultura de uma sociedade


(AMORMINO, 2007, p. 1).

Para Halbwachs (1990, p. 71), o contexto em que se vive influencia a reconstrução da memória,
alterando a imagem passada. A lembrança é pensada como “uma reconstrução do passado com a ajuda
de dados tomados de empréstimo ao presente e preparados por outras reconstruções feitas em épocas
anteriores”.
Já para Amormino (2007, p. 8), a experiência passada se mistura à experiência presente quando a
memória é relatada, e o que era individual acaba por servir de instrumento para a construção do
relacionamento com o outro e transformar a memória em coletiva e social. O ato de lembrar, de trazer a
memória à tona é “. . . refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do
passado” (AMORMINO, 2007, p. 9).
A partir dessa narrativa de memória, despertamos o sentimento de pertencimento social, de
inclusão, de reafirmação de identidade coletiva:

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado


que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos
conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre
coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs,
famílias, nações, etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e
das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua
complementariedade, mas também as oposições irredutíveis (POLLAK, 1989, p. 9).

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Para reconstruir o passado à luz do presente, basta um cheiro, um barulho, uma cor, um objeto,
paisagem ou qualquer outra coisa que reative a lembrança, conforme Pollak (1989, p. 11). Para esse
autor (1989, p. 10), a memória está presente em diversos lugares e objetos, conforme afirma: “A memória
é assim guardada e solidificada nas pedras: as pirâmides, os vestígios arqueológicos, as catedrais da
Idade Média, os grandes teatros, as óperas da época burguesa do século XIX e, atualmente, os edifícios
dos grandes bancos”.
Nora (1993, p. 9) afirma que “a memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem,
no objeto”, é carregada pelos seres humanos ao longo do tempo e da sua evolução como um elo presente
que se “alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas,
sensível a todas as transferências, cenas, censura ou projeções”. A memória é a vida carregada por grupos
vivos, uma hora lembrada e outra esquecida, “vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de
longas latências e de repentinas revitalizações” (Nora, 1993, p. 9).
Vimos rapidamente, até agora, que os estudiosos da memória social aqui trabalhados ora
privilegiam a memória informal, como a oralidade, ora a formal e simbólica, como textos, imagens, objetos
etc. Graças a essa diversidade de categorizações é que se tornou possível analisar, teoricamente e no
campo da comunicação, narrativas de diferentes grupos sociais em plataformas impensáveis há menos
de 20 anos, como o Facebook.

Facebook como ferramenta de narração do cotidiano e memória coletiva digital

O desenvolvimento da internet trouxe diversas mudanças para a vida social, dentre elas a
possibilidade de comunicação, expressão e sociabilização mediada por computador (RECUERO, 2009,

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p. 24). As redes sociais, entendidas aqui como “agrupamentos complexos instituídos por interações
sociais apoiadas em tecnologias digitais de comunicação” (Recuero, 2009, p. 13), partilham conteúdos
em forma de textos, vídeos, imagens e outros recursos multimídia em larga escala. Para Castells, entre
suas características, destaca-se o processamento de “mensagens de muitos para muitos, com o potencial
de alcançar uma multiplicidade de receptores e de se conectar a um número infindável de redes que
transmitem informações digitalizadas pela vizinhança ou pelo mundo” (2013, p. 15).
A transmissão massiva de conteúdo é adotada pelo Facebook, lançado na internet em 4 de
fevereiro de 2004, exclusivamente para universitários, por quatro colegas da Universidade de Harvard,
entre eles, Mark Zuckerberg, atual presidente, e o brasileiro Eduardo Savarin, como mostra o filme A rede
social (RUDIN et al., 2010). Desde 2006, aberta a todos os tipos de usuários, ainda é uma das plataformas4
mais acessadas, apesar da concorrência com outras redes sociais, especialmente entre os mais jovens.
Seu sucesso pode ser explicado, entre outros motivos, pela reunião de diversos recursos em uma
única plataforma, entre os quais destacamos: 1. Hipertexto: interação entre pessoas tão logo se cria um
perfil (página na rede social liberada para postagens e acesso mediante identificação e senha pessoal);
escrita e leitura não sequenciais, colaborativa e existência de links.2. Algoritmos que controlam conteúdos
e memórias. 3. Monopólio de uma única empresa. 4. Produção de textos em rede. 5. Compartilhamentos
de conteúdos.
Se tais características fazem do Facebook um novo suporte para diários digitais contemporâneos,
“. . . um espaço de registro de acontecimentos” (HENRIQUES, 2017, p. 129), não podemos ignorar que
os algoritmos modulam conteúdos e memórias conforme os cliques dos usuários e que o monopólio de

4 Entendemos por plataformas os aplicativos ou sistemas de redes sociais que utilizam a internet para sua execução.

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uma empresa dos dados de quase três bilhões de pessoas ao redor do mundo podem ser empregados
para, à revelia de seus usuários, vazar informações, alterar comportamentos, hábitos de consumo,
sociabilidades, disseminar desinformação. As organizações privadas podem, ainda, encerrar suas
atividades sem aviso prévio e reter todos os registros digitais, deixando os usuários desprovidos de suas
próprias memórias. Ou seja: confiar todos os relatos de uma vida nessas instituições é arriscar perder
tudo.
Ainda que essas ameaças sejam reais e pertinentes, entendemos que cabe a cada usuário decidir
o que vai narrar na sua linha do tempo (ou timeline5), seguindo sempre a legislação vigente a respeito de
notícias falsas ou de outros delitos como falsidade ideológica, calúnia e difamação, considerados crimes,
com penas previstas no Código Penal Brasileiro. Também determinamos para quem a mensagem se torna
visível quando marcamos6 terceiros, mesmo que não tenham tido participação ou envolvimento. É por
meio dessa arquitetura que o acontecimento narrado se torna coletivo, pois está previsto que até mesmo
os amigos e amigos de amigos, que não foram sequer marcados, podem comentar, curtir etc.: “. . . não
são apenas os registros pessoais (textos, fotos, etc.) no Facebook que apresentam uma narrativa sobre
cada pessoa, mas também as contribuições dos amigos transformam a página pessoal em um arquivo
pessoal digital de histórias” (HENRIQUES, 2017, p. 129).
A substituição dos antigos diários pela narração pública nas redes sociais, ao compartilhar imagens,
textos, vídeos, incentiva a preservação da memória, mas ao mesmo tempo torna-a vulnerável em
decorrência da guarda dessas informações estarem em poder de terceiros (HENRIQUES, 2017, p. 142).

5 Página principal do usuário, onde é possível realizar as publicações e ver as publicações dos demais usuários que fazem parte do seu círculo de amizade na
rede social (nota do autor).
6 Marcar alguém em uma rede social, como o Facebook, significa incluir no seu registro (postagem) outra pessoa para fazer parte da publicação.

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Uma alternativa para evitar que essas memórias sejam perdidas é manter uma cópia das fotos ou
de suas publicações em texto, em outras ferramentas ou recursos digitais, seja em notebooks pessoais,
seja em forma de backup em nuvem7.
Mas, se como lembra Bergson, “o passado, sempre em andamento, se avoluma sem cessar de
um presente absolutamente novo” (2006, p. 52), como ficam os registros depositados diariamente nas
redes sociais? Ora, eles também se tornam passado e podem ser reorganizados como memória, mas sob
a curadoria dos meios digitais:

As redes sociais, além de suas funções comunicativas e sociais, tornaram-se espaços de


registro e preservação de memórias e armazenadoras dos rastros digitais memoriais. Dessa
forma, o Facebook acaba reivindicando para si um ‘lugar de memórias’ na internet
(HENRIQUES, 2017, p. 123).

Como já antecipamos na Introdução, quando uma postagem completa um ano, por exemplo, ela
passa a ser republicada a cada aniversário seguinte, ininterruptamente, na timeline do autor. A princípio,
essa lembrança, como é chamada pela rede social, aparece somente para ele e para os que foram
marcados, por meio de uma notificação, conforme ilustra a figura 1.

7Backup em nuvem é o armazenamento de uma cópia de qualquer arquivo digital em servidores de terceiros, que oferecem esse serviço de forma gratuita ou
paga (nota do autor).

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Figura 1 – Notificação do Facebook lembrança do dia.

É possível compartilhá-la novamente, e de forma aberta, para todos os amigos do usuário que, por
sua vez, podem novamente não só visualizar, mas também tecer comentários e recompartilhar, conforme
ilustra a figura 2.

Figura 2 – Lembrança compartilhada na timeline em conjunto com outro perfil.

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Essas lembranças, geradas automaticamente pelo Facebook, podem ser entendidas como
construções de uma memória coletiva, conforme Maurice Halbwachs:

para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam seus
depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas
memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as outras para que a
lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum (1990,
p. 34).

José Van Djick, em seu livro Mediated Memories – In the digital age, aponta a função comunicativa
pública do diário. Embora não trate desse conceito, reconhecemos que suas ideias também se
assemelham à noção de memória coletiva,

Quando as pessoas leem ou ouvem lembranças narradas por outros, muitas vezes se sentem
acionadas ou convidadas a contribuir com suas próprias lembranças . . . Em outras palavras,
a subjetividade e a afetividade se constituem em um loop constante de feedback entre o eu
e os outros, em que a narração de experiências, memórias e sentimentos dos outros
contribuem para a formação do eu (VAN DJICK, 2007 como citado em BARCELLOS, 2020,
p. 124) 8.

Vimos até agora que diversos autores entendem as mídias digitais, em especial o Facebook, como
ferramentas em que as memórias armazenadas são coletivizadas e, portanto, sujeitas a novos sentidos,
movimento próprio da constituição da memória social.

8 Tradução nossa. No original: “When people read or hear reminiscences narrated by others, they often feel triggered or invited to contribute their own memories
. . . In other words, subjectivity and affectivity constitute each other in a constant feedback loop between self and others, where the narration of experiences,
memories, and feelings of others contribute to the formation of the self.”

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Segundo o próprio Facebook (10.out.2018), os vários tipos de conteúdo abaixo podem ser exibidos
como recurso de lembrança da ferramenta ou como memória coletiva:
a) Suas publicações do Facebook;
b) Publicações no Facebook em que você foi marcado;
c) Acontecimentos importantes;
d) Seu aniversário de casamento, caso o tenha adicionado a seu perfil;
e) Quando você se tornou amigo de alguém no Facebook;
f) Quando você entrou no Facebook;
g) As fotos do rolo da câmera do seu dispositivo móvel;
h) Recapitulações do mês ou da temporada anterior.
A rede social ainda informa que fotos em outro dispositivo (celular, computador ou notebook)
somente serão exibidas se o usuário as incluir na ferramenta como publicação ou álbum (FACEBOOK,
10.out.2018). O Facebook ainda permite que o mesmo usuário também crie também um álbum digital em
seu perfil. Como em álbuns físicos, também é possível acrescentar fotos e descrições e deixar tudo
disponível para todos os que quiserem acessá-los, não importando o lugar geográfico ou o fuso horário
em que se encontram. Caso alguém queira, voluntariamente, ver lembranças de outros dias também é
possível, por meio da mesma opção de configuração de lembranças e selecionando a data desejada para
visualização (FACEBOOK, 2018).
Quando o Facebook traz essas lembranças para nossa timeline, o usuário revive os acontecimentos
do cotidiano passado no tempo presente, mas que podem ativar sentimentos indesejados. A figura 3
apresenta a tela de configuração do Facebook visualizada em notebook, em que, ao clicar no item
“Lembranças”, no menu inicial à esquerda, sua configuração pode ser alterada. É possível, ainda,

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configurar para que lembranças de um período ou até mesmo compartilhada com outros usuários da rede
não mais apareçam para proteger o usuário.

Figura 3 – Configurações de visualização do Facebook.

Porém, podemos observar que, quando a publicação é compartilhada com outros usuários no
tempo presente, mesmo que seu autor a tenha configurado para não mais visualizá-la, outro usuário
poderá compartilhá-la, conforme ilustra a figura 4.

Figura 4 – Compartilhamento de lembranças em comum por outro perfil: Alessandra e Jurema.

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Santiago de Sá e Heller (2018, p. 37) não nos deixam esquecer que algo postado no Facebook,
mesmo que apagado por seu autor por arrependimento ou por qualquer outro motivo, pode já não ser
mais suficiente para cair no esquecimento, pois “. . . ele pode ter sido compartilhado por algum seguidor
da página e visualizado por várias pessoas antes de ser excluído, por exemplo”. Além de já visualizadas,
essas postagens podem ser copiadas e até mesmo replicadas na linha do tempo das pessoas que fazem
parte do nosso círculo de amizades na rede, ou seja, “. . . os percursos das narrativas em análise são
totalmente imprevisíveis e desconhecidos” (SANTIAGO de SÁ & HELLER, 2018, p. 37).

Conclusão

Podemos entender as narrativas de si no Facebook como uma versão do século XXI dos antigos
diários, pois ainda fazem uso da escrita e da leitura e obedecem aos princípios da verdade, como pensou
Lejeune. O que alterou são os novos protocolos de expressão, quando narrativas de si, postadas nos
perfis, são continuamente comentadas pelos usuários e rememoradas pelos algoritmos do Facebook,
mesmo à revelia das configurações do autor. Nesses casos, conta-se com a sorte de passarem
despercebidas, ainda que tenham sido originalmente compartilhadas com outros perfis.
As novas tecnologias permitem atualizações constantes e imediatas do que é narrado, fazendo
com que esse novo formato de diário deixe de ser uma representação de uma subjetividade congelada
no tempo passado e se torne um processo dinâmico e contínuo de reconhecimento de si por meio do
outro.
Tais práticas produzem outras sociabilidades que acabam por deixar ainda mais instável a
separação da esfera privada, isto é, a da intimidade, da pública, em que “aquilo que é visto e ouvido pelos

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outros e por nós mesmos constituiu a realidade” (ARENDT, 2007, p. 59). Mais uma vez retomamos
Hannah Arendt:

As maiores forças da vida íntima – as paixões do coração, os pensamentos da mente, os


deleites dos sentidos – vivem uma espécie de existência incerta e obscura, a não ser que, e
até que, sejam transformadas, desprivatizadas e desindividualizadas, por assim dizer, de
modo a se tornarem adequadas à aparição pública (2007, pp. 59-60).

Não à toa, nesse exercício de tornar o incerto certo, ganham-se e perdem-se amigos e inimigos na
velocidade de um clique, pois o que antes era experimentado como memória individual e inacessível é
tornada coletiva nas redes sociais, pois “a presença de outros . . . garante-nos a realidade do mundo e
de nós mesmos” (Arendt, 2007, p. 60). No exercício de interações contínuas e republicações, corremos
o risco de não mais distinguir com clareza as figuras de autor, isto é, quem primeiro escreve, e a do leitor,
daquele que confirma a realidade.
Autores e leitores não são mais figuras tão separadas, pois muitas vezes produzem e reagem aos
textos não mais como resposta à necessidade humana de narrar e assegurar a posição que ocupam no
mundo, mas como consequência do efeito provocado pelos algoritmos que nos fazem rememorar,
incessantemente, mesmo quando queremos esquecer.
Com a internet e as redes sociais, as narrativas de si e a memória ganharam uma nova ferramenta,
que atrai milhões de internautas globalmente graças aos inúmeros recursos digitais. Mas ao tornar públicas
essas memórias, continuamente acessadas e ressignificadas, podem comprometer a imagem que o
usuário queria fazer de si, e o que antes era apenas uma postagem pode se tornar a materialização de

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algo que não se consegue mais esconder e conter, inclusive algo que não queria ou não deveria ser mais
lembrado.
Esses são alguns dos desafios que os quase três bilhões de usuários do Facebook espalhados ao
longo do planeta precisariam assumir, mas as delícias de tornar-se visível e lembrado tornam o mundo
digital cada vez mais atraente.
São essas novas formas de expressão, de contratos e protocolos de escrita e de leitura, de crença
nos pactos de verdade que precisam ser pensadas à luz dos estudiosos que acionamos no artigo, pois
mesmo à nossa revelia, estamos cada vez mais expostos e vulneráveis.

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